CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · apaixonado imitador" (Ibd. 5). O Filho de Deus fez-se...

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3 CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 24 Editorial Franciscana BRAGA 2004

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

24

Editorial Franciscana BRAGA – 2004

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Índice

O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA

PROJECTADO NO NOSSO MUNDO Fr. David de Azevedo ofm

A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS

DE SANTA CLARA

(Nos 750 anos do seu passamento)

Ir. Maria V. Triviño, osc

A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS

DE SANTA CLARA (Nos 750 anos do seu passamento)

Ir. Maria V. Triviño, osc

SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE

*Fr. José Rodríguez Carballo, ofm

Ministro Geral

O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE:

UMA PROPOSTA DE ANÁLISE Fr. Luís Oviedo

Documentos

A Pobreza, Carisma Capuchinho

Mensagem de João Paulo II aos Capuchinhos italianos

pela ocasião do ―Capítulo das Esteiras‖

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I — Estudos

O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA

PROJECTADO NO NOSSO MUNDO

Fr. David de Azevedo ofm*

————— * Conferência proferida no dia 4 de, no Mosteiro de S. Miguel das Aves, no âmbito das

"Jornadas Clarianas", lá realizadas.

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O ROSTO DE JESUS EM SANTA CLARA

PROJECTADO NO NOSSO MUNDO

Celebramos os 750 anos da morte de Santa Clara e da aprovação da

sua Regra, respectivamente em 11 e 9 de Agosto de 1253. Dois aconteci-

mentos dignos de memória solene para a humanidade, porque Santa Clara é

figura de destaque na galeria das mulheres mais ilustres da história; e a sua

Regra, como experiência do Evangelho, define uma filosofia de vida de

importância decisiva para o a realização do homem como homem.

Escolhemos como tema o Rosto de Jesus em Santa Clara, porque o

rosto é a presença da pessoa e o relacionamento interpessoal é central na

vida de Clara e indispensável para que a vida do homem seja um vida ver-

dadeiramente humana. O Capítulo Geral da Ordem Franciscana celebrado

em Madrid em 1973 promulgou um documento intitulado Declaração so-

bre a vocação da Ordem nos Dias de Hoje. No parágrafo quinto estabelece:

"No coração da vida franciscana encontra-se a experiência de fé em Deus

no encontro pessoal com Jesus Cristo"1. A afirmação vale com igual pre-

cisão para a espiritualidade clariana. No coração da espiritualidade de Santa

Clara está uma experiência singular de fé em Deus, no encontro pessoal

com Jesus. Tudo brota desse encontro. Vamos, pois, considerar, primeiro, a

centralização de Clara no rosto de Jesus; depois, seu enamoramento e amor

esponsal; e, finalmente, dois traços do rosto de Jesus.

I – CENTRALIZADA NO ROSTO DE JESUS

Sua Santidade o Papa João Paulo II na carta apostólica No Início dum

Novo Milénio, depois de recordar a celebração do ano jubilar, ao voltar-se

para o futuro, para o novo milénio, apresenta como título da sua reflexão, a

————— 1 – Declaração sobre a Vocação da Ordem nos dias de Hoje, Ed. Franciscana, Brga 1973,

p. 11

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expressão: Um rosto a Contemplar. É um título singularmente feliz porque

dum significado crucial para a vida cristã. O que é decisivo nesta não são

comportamentos impessoais: a crença num determinado elenco de doutri-

nas, a observância dum código de normas morais, fosse ele o mais sublime,

ou a proposta duma filosofia política capaz de construir um mundo ideal;

mas sim a relação do homem com Deus – que é pessoa – e a relação do

homem com o homem – que pessoa é também. Só quando as relações entre

os homens forem autenticamente inter-pessoais, é que o homem estará no

seu "habitat" próprio. É essa a grande prioridade do novo milénio.

Santa Clara está nesta corrente. A vida da irmã clarissa tem alguns tra-

ços configuradores: a contemplação, a fraternidade, a igualdade, a pobreza,

a clausura, o silêncio, a vida comunitária e outros, mas as irmãs não vivem

para isso. Vivem para Jesus. Tirem Jesus da vida delas e que é que fica?…

No seu Testamento – escrito talvez em 1247, como forma de acentuar o seu

carisma em contraste com a regra proposta por Inocêncio IV – Clara, de-

pois de proclamar a sublimidade da vocação clariana, afirma: "O Filho de

Deus fez-se nosso caminho (cf. Jo 14-16), como nos mostrou e ensinou

pela palavra e exemplo o nosso bem-aventurado pai S. Francisco, seu

apaixonado imitador" (Ibd. 5). O Filho de Deus fez-se nosso caminho en-

quanto centro de amor, como indicia o adjectivo " apaixonado". Francisco

foi imitador, porque antes foi apaixonado. Mais à frente Clara recomenda

as suas irmãs à protecção da Igreja e do Cardeal Protector, "a fim de que,

por amor daquele Senhor que foi reclinado pobre no presépio, pobre viveu

no mundo e nu ficou sobre o patíbulo, se dignem conduzir o pequenino re-

banho que, na sua Igreja santa, o Senhor Pai gerou com a palavra e exem-

plo do bem-aventurado Pai São Francisco" (TCl 45-46). Note-se a emoção

e encanto com que Clara se refere "àquele Senhor que foi reclinado no pre-

sépio, pobre viveu no mundo e nu ficou na patíbulo". Não a comovem a

pobreza e a humildade como virtudes ascéticas, mas sim "aquele Senhor",

no presépio, na vida e na Cruz. Na Regra é de novo a pessoa de Cristo que

aparece no centro: "A forma e vida da Ordem das Irmãs Pobres que

S. Francisco instituiu é esta: Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor

Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade (cf Mat

19,22)" (RCl 1-2). A forma e vida das Irmãs Pobres não é outra senão con-

templar Nosso Senhor Jesus Cristo e torná-lo presente, como num espelho,

pela observância do santo Evangelho. Por seu lado, S. Francisco diz no seu

Testamento: "E, depois que o Senhor me deu o cuidado dos irmãos, nin-

guém me ensinava o que devia fazer; mas o mesmo Altíssimo me revelou

que devia viver segundo a forma do Santo Evangelhos" (T 14). Francisco

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saltou sobre todas as formas tradicionais de vida religiosa que lhe eram

propostas (cf. LP 114), para se fixar directamente e só no Evangelho. E fê-

-lo não porque considerava o Evangelho a única proposta religiosa e polí-

tica capaz de renovar a Igreja e de converter a sociedade de então, mas por-

que estava enamorado de Jesus e o Evangelho era para ele Jesus.

Esta centralização na pessoa de Jesus é ainda mais forte nas cartas de

Clara a Santa Inês de Praga. Na primeira, depois de lembrar a possibilidade

que Inês teve de aceitar casamento com o Imperador, diz com encanto:

"Mas a tudo isso renunciastes. Antes preferistes abraçar com todo o afecto

de alma e coração a santíssima pobreza, escolhendo um esposo de lin-

hagem mais nobre, o Senhor Jesus Cristo, que guardará imaculada e incó-

lume a tua virgindade. (E continua em jeito de hino):

Amando-O sereis casta,

abraçando-O, ficareis mais pura,

acolhendo-O, sereis virgem.

O seu poder é mais forte,

a sua generosidade, mais excelsa,

o seu aspecto, mais formoso,

o seu amor, mais suave

e as suas graças, de maior encanto". (1CCl 6-9).

Na segunda carta, advertindo Inês contra as pressões que havia contra

a opção pela pobreza absoluta, encoraja-a: "Esta é aquele perfeição pela

qual o Rei dos céus se unirá a ti na mansão celeste, onde reina sentado num

trono de estrelas. Pois que desprezaste a glória da realeza terrena, e renun-

ciaste às delícias dum casamento imperial, tornaste-te imitadora da altís-

sima pobreza e em espírito de grande humildade e caridade, seguiste as pe-

gadas daquele que te achou digna para esposa" (2CCl 5-7). E mais à frente:

"Antes, como virgem pobre, abraça a Cristo pobre. Contempla-O despre-

zado por teu amor e segue-O tornando-te desprezível por Ele neste mundo.

Contempla, nobre rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos

homens (cf Sl 44,3) transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível

dos mortais" (Ibid. 17-20).

O mesmo enlevo na terceira carta: "Alegra-te, tu também, em Cristo

(Fl 4, 4) caríssima e não te envolva qualquer névoa de amargura, dilecta

Senhora em Cristo, alegria dos anjos e coroa das irmãs. Fixa o teu olhar no

espelho da eternidade, deixa a tua alma banhar-se no esplendor da glória e

une o teu coração Àquele que é a encarnação da essência divina, para que,

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contemplando-O, te transformes inteiramente na imagem da sua divindade.

(…) Ama, repito, aquele Filho do Deus Altíssimo, nascido da Virgem, que

o concebeu sem deixar de ser virgem" (3CCl 11-17).

Na quarta carta, depois de felicitar Inês por ter desposado o Cordeiro

de Deus, deixa o coração transbordar:

"Feliz daquela a quem foi dado

gozar desta íntima união,

e que aderiu com todas as fibras do seu coração

Àquele cuja beleza

é contemplada por todos os santos do exército celeste,

cujo amor nos encanta,

cuja contemplação nos vivifica,

cuja bondade e benignidade nos basta,

A sua doçura satisfaz-nos plenamente

e a sua recordação ilumina-nos com suavidade.

O seu amor ressuscita os mortos,

e a sua visão beatífica

santifica os habitantes da Jerusalém celeste.

Ele é o esplendor da eterna glória,

a luz da eterna luz,

o espelho sem mancha (cf Sb 7,20). (4CCl 9-14).

Perdoe o leitor tão longas citações, mas pareceu-nos não dever privá-lo

de saborear o encanto e poesia de Clara. Alem disso, este encanto mostra

bem que a relação era de Esposo-esposa, e não qualquer função de caracter

utilitarista.

Terá esta centralização na Pessoa de Jesus algum sentido para hoje?…

Não será preciso demonstrá-lo. A vida dos humanos na actualidade situa-se

quase totalmente no campo da economia: produção, eficácia, profissiona-

lismo, competição, consumo, negócios, grandes empresas, grandes fábricas,

grandes superfícies comerciais, lutas laborais, jogos de bolsa, grupos finan-

ceiros, etc., etc.. Jesus disse: "Já não vos chamo servos, mas amigos".

Quando chegará o dia em que as relações dos homens entre si serão preva-

lentemente relações de amizade?…

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II – ENAMORAMENTO E AMOR ESPONSAL

Tentámos contemplar a centralização de Clara na Pessoa de Jesus, mas

importa projectar mais luz sobre essa relação. O cristão pode fixar-se em

Jesus duma forma interesseira. Jesus é o Redentor, porque a mentalidade

está dominada pelo problema do pecado. Jesus é a Vítima de Expiação,

porque predomina a ideia da justiça divina. Jesus é o Mestre, porque são

necessárias normas para definir os caminhos da vida. Jesus é o Modelo,

porque é necessário espevitar o zelo contra as injustiças e o fogo para a li-

bertação dos oprimidos. Em todos estes casos é o homem quem está no

centro. Não foi essa a posição de Clara. Jesus não está em função de Clara,

nem Clara em função de Jesus. As coisas passam-se em registo diferente.

Simplesmente: amar. Clara é uma flor. Clara é um fruto… simplesmente

porque se sente amada e ama. As clarissas não estão em função de nada.

São flores, são uma primavera… simplesmente porque se sentem amadas e

amam; e isso basta.

Este enamoramento manifesta-se em duas linhas: na veemência do

falar e nas imagens esponsais. Por dentro das palavras de Clara há um

força incontível de encanto, de ternura e de paixão. Só algumas expressões

"Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo" (RCl 2);

"Clara indigna serva de Cristo e plantazinha do bem-aventurado Francisco"

(RCl 1,3); "depois que o altíssimo Pai celestial" (RCl 6, 1); "a altíssima po-

breza que abraçámos" (RCl 6, 3); "em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo

e sua santíssima Mãe" (RCl 12, 11). Repare-se na frequência dos superlati-

vos. No Testamento é a mesma melodia: "O Filho de Deus fez-se nosso

caminho" (TCl 2); "Qual não deve ser a solicitude e empenho que devemos

pôr em realizar, de alma e corpo, os mandamentos de Deus nosso Pai" (TCl

18); e, referindo-se a S. Francisco: o "nosso bem-aventurado Pai S. Fran-

cisco"; "ele que, depois de Deus, era a nossa coluna, a nossa única conso-

lação e nossa fortaleza" (TCl 38); "E eu Clara, indigna serva de Cristo e das

Irmãs Pobres de S. Damião e plantazinha do santo Pai" (TCl 37); "Eis por-

que, de joelhos em terra, prostrada de corpo e alma, recomendo à Santa

Igreja romana… a fim de que por amor daquele Senhor que pobre foi recli-

nado no presépio, pobre viveu no mundo e nu morreu na patíbulo" (TCl 44-

-47). Mesmo quando não visa directamente a Jesus, e esta vibração de

Clara é ressonância da ternura que tem por Ele.

É ainda mais enternecido o seu sentir nas imagens esponsais que pas-

samos a focar nas cartas. Sendo correspondência entre duas almas femini-

nas, é natural que o falar de Clara assuma imagens do amor esponsal. Posto

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que frequente na espiritualidade de então, por influxo de S. Bernardo, Guil-

herme de S. Tierry e da escola de S. Victor, a beleza com que Clara o

"canta" é bem pessoal dela.

A palavra "esposa" referida a Inês aparece pelo menos dez vezes e o

qualificativo de "esposo" aplicado a Jesus, quatro vezes, mas o fio das pa-

lavras, linha após linha, é um sentir todo repassado de melodia esponsal, às

vezes compondo verdadeiros hinos nupciais. Assim na primeira carta:

Amando-O sereis casta,

abarçando-O, ficareis mais pura,

acolhendo-O, sereis virgem.

O seu poder é mais forte.

a sua generosidade, mais excelsa,

o seu aspecto., mais formoso,

o seu amor, mais suave

e as suas graças de maior encanto.

Ele vos segura em seus braços,

e ornamenta de pedras preciosas o vosso peito,

e enfeita de jóias inestimáveis

vossas orelhas,

e vos envolve de pérolas cintilantes,

coroando-vos com a coroa de ouro,

marcada pelo sinal da santidade (cf Ecl 45.14) (1 CCl 8-11)

Na carta segunda: "Contempla nobre rainha o teu esposo. Sendo o

mais belo dos filhos dos homens, transformou-se, para tua salvação, no

mais desprezível dos mortais… Olha, medita e contempla e que o teu co-

ração se inflame na sua imitação" (e logo, como eflúvio espontâneo):

Se com Ele sofreres,

com Ele reinarás:

se com Ele chorares,

com Ele exultarás;

se com Ele morreres na cruz da tribulação,

com Ele habitarás na glória dos santos,

na mansão celeste,

e teu nome será gravado

no livro da vida

e para sempre glorificado ente os homens" (Ap 3, 5). (2CCl 20-21).

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Mais emocionada ainda a encontramos na última carta, já sobre o fim

da sua vida, em 1253, em texto já citado acima. Juntando ao conceito de

esposo à imagem de espelho, exorta: "Contempla diariamente este espelho,

ó rainha e esposa de Jesus Cristo. (…) Neste espelho poderás contemplar,

com a graça de Deus, como resplandece a bem-aventurada pobreza, a santa

humildade e a inefável caridade. Contempla, no fundo deste espelho, a po-

breza, pois está colocado no presépio e envolto em paninhos. Oh maravil-

hosa humildade! Oh admirável pobreza! O rei dos anjos, o Senhor do céu e

da terra reclinado num presépio! Ao centro desse espelho contempla a

humildade e a santa pobreza. Quantas tribulações e sofrimentos não supor-

tou para resgatar o género humano! E no fim deste espelho contempla a

inefável caridade que o fez sofrer no patíbulo da cruz a morte mais infame.

(…) (E, plena de anseios e profundo amor, põe na boca de Inês):

Atrai-me a Ti

e correrei ao odor dos teus perfumes,

ó celeste Esposo.

Correrei sem desfalecer,

até que me introduzas na sala do festim,

até que a minha cabeça

repouse sobre a tua mão esquerda,

e a tua direita me abrace com ternura

e me beijes com o ósculo suavíssimo da tua boca.

(cf. Ct 1,3. 2, 4-6; 1,l); (4CCl 15-32).

Mais uma vez, alargando o pensamento, terá este aspecto afectivo al-

guma importância para a vida social? O Pai Américo, numa festa de cari-

dade em 1956, partindo do hino à caridade (1 Cor 13), gritava no cinema

Tivoli: "Tirem a caridade do mundo e que é que fica?… Tirem a caridade

do mundo e que é que fica?… Tirem a caridade do mundo e que é que

fica?… Sem a caridade, nada presta… sem a caridade, nada vale… sem a

caridade, nada dura…". Nós poderíamos dizer: Tirem a amizade do mundo

e que é que fica?… Ou, melhor ainda: "Tirem a ternura do mundo e que é

que fica?… Pode o mundo ter riquezas a deitar por fora… grandes viven-

das… grandes palácios… etc., etc., etc., se dentro do mundo não há ter-

nura?!… Teremos um mundo árido, duro e frio. Os mosteiros de clarissas

deverão ser canteiros a emanar esse perfume indispensável ao homem.

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III – JESUS POBRE E HUMILDE

Além da natureza da relação com Jesus – uma paixão enamorada – é

importante focar dois traços do rosto de Jesus, para termos uma ideia de

como ele era para Clara. Em primeiro lugar, a pobreza. A linguagem es-

ponsal de Clara prolonga-se nas referências à pobreza. Tanto nas Cartas

como na Regra. No Testamento, dos seus 79 parágrafos, 56 são sobre a po-

breza. Para compreender a pobreza, porém, importa realçar duas vertentes:

a descida de Jesus e a não-propriedade.

A descida de Jesus – Na pobreza de Jesus, juntamente com a pobreza

material – que contempla com tanto encanto no Presépio, na vida pública e

no Calvário – e mais importante ainda do que ela – Clara admira sobretudo

a humildade, a descida do Verbo de Deus, do seu trono real até à pequenez

do seio de Maria e à candura do presépio: "Se, pois, um tão grande Senhor

desceu ao seio da Virgem Maria e apareceu desprezível, desamparado e

pobre neste mundo, para que os homens, pobres desamparados e carencia-

dos do divino alimento, nele se tornassem ricos, possuindo o Reino dos

Céus, alegrai-vos e rejubilai, enchei-vos de grande prazer e de alegrias espi-

rituais" (1CCl 19-21). Na carta segunda: "Contempla, nobre rainha, o teu

Esposo. Sendo o mais belo dos filhos dos homens, transformou-se, para tua

salvação, no mais desprezível dos mortais". (2CCl 20).. Na terceira: "Ama,

repito, aquele Filho do Deus Altíssimo, nascido da Virgem, que O conce-

beu sem deixar de ser virgem. Vive unida à Mãe dulcíssima que deu à luz o

Filho que nem os céus puderam conter. E, todavia, ela o levou no pequeno

claustro do seu ventre sagrado e o formou no seu seio de donzela" (3CCl

17-19). E na quarta: "Contempla, no fundo deste espelho, a pobreza, pois

está colocado no presépio e envolto em paninhos. Oh maravilhosa humil-

dade! Oh admirável pobreza! O Rei dos reis, o Senhor do céu e da terra re-

clinado num presépio" (4CCl 19-22).

Ao contemplar esta auto-humilhação, esta auto-pequenez de Deus,

Clara está bem no centro do sentir de Francisco. É também assim que o

Santo de Assis vê, antes de mais, a santa pobreza, contemplando os misté-

rios da Encarnação e da Eucaristia. No início do opúsculo intitulado Avisos

Espirituais ou Exortações, no início, digo, das suas Exortações, Francisco

coloca, como pórtico de entrada, essa infinita descida do Verbo: "Por isso,

ó filhos dos homens, até quando haveis de ser de coração duro? Porque

não reconheceis a verdade e acreditais no Filho de Deus? Eis que Ele se

humilha cada dia como quando baixou do seu trono real, a tomar carne no

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seio da Virgem; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar, para as mãos

do sacerdote!" (Ex 1ª 14-18). Na Carta a toda a Ordem, pedindo a ado-

ração dos irmãos, principalmente dos que são ou desejam ser sacerdotes,

para a Santa Eucaristia, exclama: "Que o homem todo se espante, que o

mundo todo trema, que o céu exulte, quando sobre o altar, nas mãos do sa-

cerdote, está Cristo, o Filho de Deus vivo! Oh! grandeza admirável, oh!

condescendência assombrosa, oh! humildade sublime, oh! sublimidade

humilde, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se

humilde a ponto de esconder, para nossa salvação, nas aparências dum bo-

cado de pão. Vede, irmãos, a humildade de Deus, e derramai diante dele os

vossos corações; humilhai-vos também vós para que Ele vos exalte. Em

conclusão: nada de vós mesmos retenhais para vós, a fim de que totalmente

vos possua Aquele que totalmente a vós se dá" (CO 26-29).

A Ir. Maria do Rosário, clarissa do mosteiro de Monte Real, em livro

recente, escreve com profunda intuição e beleza feminina: "Clara pertence

àquela estirpe de "águias imperiais" que, pairando nas alturas, fitam o sol.

S. João começa a sua narrativa evangélica a partir da Fonte: "No princípio

era o Verbo (…) e o Verbo era Deus…) Tudo começou a existir por meio

dele e sem Ele nada foi criado. Nele estava a Vida e a Vida era a luz dos

homens (…) O Verbo era a luz verdadeira que, vindo a este mundo, a todo

o homem ilumina. Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, mas o

mundo não o conheceu. Veio ao que era seu e os seus não o receberam (Jo

1, 1-11). Clara, como S. João, remonta ao Verbo no seio do Pai. É aí a gé-

nese da sua Pobreza.: porque o Verbo de Deus desceu do seio do Pai e ani-

quilou-se a si mesmo, fazendo-se homem – servo – por nosso amor. Deus

atreve-se a descer dos Céus para lavar os pés aos homens… A Pobreza de

um Deus não começa para Clara no Presépio ou em Nazaré, mas no ani-

quilamento do Verbo. (…) Clara contempla, em abismos de vertigem, o

Verbo incriado baixar ao seio duma Virgem que vive no anonimato… (E

um pouco à frente, à guisa de conclusão): A Pobreza em Clara não é o

"sustine et abstine" dos estoicos ou dos cínicos (…) A verdadeira pobreza

de Clara está no interior, é a seiva da árvore que lhe dá a Vida Teologal. A

renúncia à posse de bens (…) é apenas a casca da árvore"2. A pobreza é,

pois, uma realidade teologal. É preciso distinguir no Evangelho a superfície

– que neste caso seria a pobreza material – e as funduras do Mistério que

nos dão o significado teológico da mesma.

————— 2 – MARIA DO ROSÁRIO F. GASPAR, Clara – a constelação e o signo, Ed.- Paulinas,

2004, p. 316 s.

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Esta descida e auto-doação do Verbo – a pobreza – nasce na essência

da Santíssima Trindade – que é Amor -; e define toda a lógica de Jesus.

Aos discípulos que discutiam entre si sobre qual deles era o maior, Jesus

contesta: "Sabeis que os chefes das nações as governam como se fossem

seus senhores e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja

assim entre vós. Pelo contrário quem entre vós quiser fazer-se grande, seja

o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro seja vosso

servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para ser-

vir e dar a sua vida para resgatar a multidão" (Mt 20, 25-28). É a definição

mais perfeita da palavra "menor" que faz parte do nome da Ordem Francis-

cana, Ordem dos Frades Menores. O franciscano é alguém que sente uma

alergia visceral a tudo o que seja grandeza, poder, dominação, auto-

-afirmação de si mesmo. Pelo contrário, sente-se como uma fonte cujo

existir é todo e só oferecer continuamente sua água cristalina. Em total

gratuidade e generosidade, sem um mínimo movimento de retorno ou a

mais ténue intenção de sentido contrário, voltada para si mesmo. "O Filho

do Homem não veio para ser servido, mas para servir". Esta foi a pobreza

de Jesus. Giovanni Miccoli, nesta linha de pensamento, depois de recordar

a Carta de Francisco a Um Ministro, conclui: "A misericórdia para com os

pecadores e o amor dos inimigos vão unidos à rejeição de todo o acto de

violência, de poder e de domínio sobre os outros e convidam a adoptar

uma lógica que constitui uma mudança total e a antítese absoluta em re-

lação à lógica que domina as relações habituais entre os homens.(O su-

blinhado é nosso. Fixe-se sobretudo a expressão "antítese absoluta"). E

continua: "É neste contexto de ideias, exortações e de opções que se situa o

augúrio da paz – "O Senhor te dê a Paz" – que caracteriza a maneira fran-

ciscana de saudar. É este contexto que lhe dá o significado profundo: não se

trata só do desejo de que diminuam os conflitos e contendas. Trata-se (vol-

tamos a sublinhar) da vontade de se apartar da lógica do mundo, feita de

possessão, de poder e de afirmação de si mesmo, como condição para rea-

lizar a paz"3. Estas palavras – que consideramos absolutamente exactas –

revelam a importância do "Rosto de Cristo", visto por Clara de Assis, para

o mundo de hoje.

A não-propriedade – De significado semelhante e de amplitude maior

ainda é o tema da "não propriedade", o não ter nada de seu, para viver sus-

————— 3 – MICCOLI G. Francisvco de Assis – Realidad y Memoria de una Experiencia

Cristiana, Ed- Aranzazu, 1994, p. 79.

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penso da Divina Providência. Logo no início da Regra de Clara, tal como

na de Francisco, há uma palavra que surpreende. Em vez de pobreza diz

sem próprio. "A Regra e vida das Irmãs Pobres é esta: observar o santo

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem pró-

prio, e em castidade" (RCl 1-2). A formulação habitual seria: "vivendo em

obediência, em pobreza e em castidade". Porque terá Francisco, e depois

Clara, substituído pobreza por sem próprio? Porque nela está a diferença

decisiva entre pobreza relativa e pobreza absoluta. Nas demais ordens reli-

giosas, a ordem ou mosteiro, como colectividade, mantinha a propriedade

dos seus bens: terrenos e outras fontes de rendimento para garantir o sus-

tento dos seus membros. Francisco nada quer ter de seu. Nem individual

nem colectivamente. Nada que se lhe apresente como uma segurança dife-

rente do Pai. Foi este o cavalo de batalha de Clara durante toda a sua vida,

até à aprovação da sua Regra dois dias antes de morrer. Por solicitação de

Roma, o mosteiro de S. Damião aceitou inicialmente a Regra de S. Bento,

mas Clara logo conseguiu de Inocêncio III, em 1216, o "privilegium pau-

pertatis, que era precisamente isso: não poder ter terrenos para sustento das

Irmãs. Por encargo de Honório III, o Cardeal Hugolino, entre 1219 e 1221

procurou estruturar os grupos de "mulheres religiosas" que se multiplica-

vam no centro e norte da Itália; e para tanto redigiu uma regra de teor cis-

terciense, na qual se impunha a clausura, a dependência directa de Roma e

o direito de possuir terrenos para sustento das religiosas. Em 1228, já

como papa, sob o nome de Gregório IX, quis atrair S. Damião para o seu

monaquismo, mas Clara resistiu. E como o ponto de maior melindre era o

possuir terrenos, o Papa renovou o "privilegium paupertatis". Em 1247 o

Papa Inocêncio IV publicou uma nova regra para os mosteiros hugolinia-

nos; e estendeu-a a S. Damião. Mais uma vez Clara advertiu o perigo e, in-

satisfeita, começou a redigir a "sua" Regra que, não obstante as pressões do

papa e do cardeal protector, acabou por ver aprovada pelo mesmo Inocên-

cio IV, em 9 de Agosto de 1253, dois dias antes morrer. Deste problema

aparecem indícios bem claros no Testamento e na Regra. No Testamento

(1247): "Se para salvaguardar a dignidade e isolamento do mosteiro se

achar conveniente em determinada altura, adquirir terrenos fora da horta,

não se adquira mais do que o absolutamente necessário. E de maneira nen-

huma se cultive ou se semeie este terreno, antes se deixe baldio e inculto"

(TCl 54-55). E na Regra (1253): "Por isso, não recebam, por si ou por

interposta pessoa, algum domínio ou propriedade, ou alguma coisa que ra-

zoavelmente possa ser considerada como tal. Só podem ter aquela porção

de terra que honestamente se achar necessário para decoro e isolamento do

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mosteiro, a qual não poderá ser cultivada senão como horta para satisfazer

as necessidades da comunidade" (RCl 12-14). Admite que haja algum ter-

reno, mas não para garantir sustento das Irmãs, mas somente para salva-

guardar a dignidade e isolamento do mosteiro. Porquê esta resistência?

Porque Jesus dissera: "Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam.,

nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai do céu alimenta-as. Não valeis

vós mais do que elas? (…) Olhai como crescem os lírios do campo: não

trabalham nem fiam. Pois eu vos digo: Nem Salomão em toda a sua mag-

nificência, se vestiu como qualquer deles" (Mt 6, 26-29). E ainda: "As ra-

posas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não

tem onde reclinar a cabeça". Clara queria existir como Jesus: existir entre-

gue à Providência divina. Ser como um dom de Deus que nos faz existir

como a corrente eléctrica mantém iluminada a lâmpada suspensa no tecto.

Ser alimentada dia a dia pelo Pai do céu que inspira a caridade dos irmãos.

Um mundo de confiança, de gratidão e de alegria.

A pobreza absoluta tem ainda outro aspecto que a liga à humildade e à

fraternidade. Não propriamente pela partilha de bens, como se compreende

habitualmente, mas pelo respeito ante a liberdade de cada um. Copiando da

Regra dos Frades Menores, Clara faz escrever no c. VIII da sua Regra: "As

Irmãs nada tenham de seu, nem casa, nem lugar nem coisa alguma. Como

peregrinas e estrangeiras, servindo o Senhor em pobreza e humildade, com

muita confiança sejam enviadas a pedir esmola. E não devem ter vergonha

porque também o Senhor por nós se fez pobre neste mundo. Esta é a ex-

celência da altíssima pobreza que a vós, minhas irmãs caríssimas, vos

constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus. Fez-vos pobres das coisas

temporais mas enobreceu-vos de virtudes. Seja esta a herança que vos leve

à terra dos vivos. Apegai-vos bem a elas, minhas queridas irmãs, e nen-

huma outra coisa, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima

Mãe, jamais queirais ter debaixo do céu". (RCl 8, 1-6).

"Sola abdicatio dominii facit pauperem". Um pobre só é pobre quando

não tem nada seu, quando abdica de ser dono das coisas. Quando Roma

declarou que os bens que os frades usam são propriedade da Santa Sé, al-

guns membros do clero secular e alguns mestres da Universidade de Paris

acharamn que a solução não passava dum fingimento, "fictio iuris". Di-

ziam: "Eu só posso usar aquilo que é meu… e daquilo que é meu faço o

que eu quero e ninguém tem nada com isso". A reacção deve situar-se no

seu contexto histórico. Não é mera questão de economia, mas de organi-

zação social. Na mentalidade de então o distintivo da nobreza estava em ser

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Senhor, ser Dom (D. António, D. Nuno, D. Sancho…) ter domínios, não

depender de ninguém ser mais que os outros, dominar. Ora era precisa-

mente isso provocava – e deve provocar sempre – uma alergia mortal no

franciscano. O Capítulo Geral de 1967, que na renovação das Constituições

Gerais pôs de lado as tradicionais Declarações Pontifícias e suprimiu tanta

coisa, manteve, todavia, esta declaração aparentemente jurídica. É que se

trata dum tema decisivo, tanto no que diz respeito a Deus: ter para com Ele

uma gratidão total; como no que diz respeito aos homens: não ser mais que

os outros. Todos iguais, nada de classes, nada de dominação… Era verda-

deiramente revolucionário. Desmoronava a sociedade. Mas o Evangelho é

isto.

Se os homens de hoje se sentissem como as avezinhas do céu… que

tudo recebem de Deus… sentissem que são verdadeiramente filhos do Pai

celeste… que devem administrar os bens e talentos para a felicidade dos

irmãos… que a circulação de bens – que chamamos comércio – é na rea-

lidade uma inter-comunhão de amizade e solicitude… se não quisessem

dominar ninguém… oprimir ninguém… ser mais que ninguém, mas, pelo

contrário, procurassem zelar pela liberdade e felicidade todos… teríamos

realizadas as utopias dos profetas. Um caso prático: o trabalho. S. Francisco

disse: "os irmãos trabalhem fiel e devotamente (…) não por causa da co-

biça do preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e repelir a ociosi-

dade". Hoje, em vez de "dar bom exemplo e repelir a ociosidade", diría-

mos: para fazer a felicidade de todos, principalmente dos mais carecidos.

Paradoxal! Não é o salário que importa!… Mas colaborar para a felicidade

dos outros!… E S. Francisco continuava: "e quando não lhes derem o preço

do trabalho, recorram "mesa do Senhor", pedindo esmola de porta em

porta" (T 20-22). Pedir esmola é uma possibilidade extrema. Hoje, a "mesa

do Senhor" seria a inter-comunhão de amizade e a solicitude mútua, nas-

cida da alegria ver os outros felizes". Fazer do mundo uma "mesa do Sen-

hor, fazer do mundo uma família de irmãos, eis um desafio, para todos nós,

do Rosto de Jesus em Santa Clara.4

————— 4 – Reflexões mais extensas sobre estas projecções da espiritualidade franciscana nos

grandes temas da vida humana, pode encontrar em DAVID DE AZEVEDO, OFM, Francisco

de Assis, Fé e Vida, 2ª Edição, Ed. Franciscana, Braga, 2003.

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A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS

DE SANTA CLARA

(Nos 750 anos do seu passamento)

Ir. Maria V. Triviño, osc*

————— * Artigo publicado nas Selecciones de Franciscanismo, nº 97, 2003.

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A IRMÃ MORTE NOS ESCRITOS DE SANTA CLARA

(Nos 750 anos do seu passamento)

A morte é uma realidade a que ninguém consegue subtrair se. O que se

disse de Moisés, que partiu deste mundo pelo caminho que todos se-

guem (Dt 34,5) dir-se-á de todos os que chegámos e hão-de chegar à vida.

É fácil filosofar acerca da morte.

Podemos entrar em reflexões teológicas, e é esse, de facto, o objecto

duma parte da dogmática que estuda os novíssimos, a escatologia.

A morte é a fronteira, a porta, a passagem de um a outro estado de que

só temos notícia pela revelação "Creio na ressurreição dos mortos e na vida

eterna". É esta a nossa fé. Aquilo que esperamos. E quando a fé se funda-

mentar na visão, e a esperança se diluir na posse, permanecerá sempre o

amor. A vida eterna decide-se no juízo graças a uma iluminação que há-de

permitir o conhecimento sem véus de Deus e da própria consciência.

Na reflexão medieval sobre a morte fazem-se duas propostas: uma ne-

gativa, que pretende mover à conversão pela consideração da brevidade da

vida, da caducidade dos bens terrenos, da angústia da agonia, da corrupti-

bilidade, etc…; outra positiva, que alimenta a esperança cristã na bem-

-aventurança eterna, no gozo da ressurreição da carne. Destes dois aspectos

se extraía um ensinamento para viver no Bem, e a serenidade para morrer

em Paz.

Santa Clara escutou e meditou, sem dúvida, aquilo que no seu tempo

se ouvia a respeito da morte. Porém, quando sobre ela exorta e escreve, pa-

rece não ter em conta os aspectos negativos. Ao acompanharmos Clara de

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Assis nos 750 anos da sua morte, o percurso que vamos seguir é o da fran-

ciscana humildade e simplicidade, da pobreza e obediência, a via da Beleza

e da contemplação transformadora, que faz da morte um encontro desejado

e jubiloso.

São Francisco chamou "irmã" à morte e, exultando, acolheu-a entre

louvores. Clara recebeu-a dando graças ao Pai pela esmola da vida. Para

que também assim a vejamos impõe-se-nos encontrar a chave da santa po-

breza, do despojamento, da humildade original. Aquilo, numa palavra, que

Leclerc chama "um coração leve". Desgraçadamente, porém, "o homem

moderno tem o coração pesado. Percorrendo sofregamente os caminhos do

poder, o coração torna-se-lhe cada vez mais pesado. Tenhamos a coragem

de reconhecer: nem temos leve o coração, nem sabemos o que isso seja".

Cristo disse: "Vinde a Mim todos os que andais afadigados e sobrecarrega-

dos e Eu vos aliviarei" (Mt 11, 28-30). Ele tirou de cima de nós a pesada

lousa que nos oprimia na caminhada e nós apressámo-nos a carregar nova-

mente com ela.

Um coração leve – como o que vemos claramente em Francisco de

Assis – retira toda a sua força e serenidade do relacionamento íntimo com a

fonte da vida e do ser. Uma relação de carácter, que lhe permite comportar-

-se tal qual a criança em presença do último segredo das coisas e encontrar

a felicidade no seu Criador.

Daí essa segurança última na existência que não se deixa perturbar

com coisa alguma. Daí também essa feliz confiança, essa divina alegria de

existir. "Obrigado, Senhor, por me terdes criado", exclamava Clara pouco

antes de morrer. Esta expressão de Clara é um eco fiel do cântico de Fran-

cisco. Seria inútil procurar nesse cântico o mais ténue vestígio de angústia,

mesmo perante a morte. Nele só brilha o esplendor da manhã, à hora do sol

nascente, quando o orvalho ainda não apresenta vestígios de qualquer pas-

sagem1.

Nos seus escritos, Clara fala da morte onze vezes. É quanto nos basta

para seguirmos o seu pensamento, uma vez que tais referências são bastante

uniformes e espaçadas no tempo.

————— 1 LECLERC, E., Desponta o Sol em Assis, EF, Braga, 1999, p. 158

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Podemos abrir dois apartados nestes seus textos: os que contemplam a

morte do Filho de Deus e os que se referem ao instante da morte de Fran-

cisco e de Clara.

1. JESUS MORREU POBRE E DESNUDO

Chegou o momento em que, para Clara de Assis, a reflexão sobre a

morte corporal se dilui na contemplação da morte do Filho de Deus. Morrer

será fitar os olhos no divino amante Crucificado, obediente, desnudo, ren-

dido… e com ele morrer num lance de total entrega, de obediência, de

desapropriação, de amor esponsal.

"E no fim deste espelho contempla a inefável caridade que O fez pade-

cer no patíbulo da cruz a morte mais infame" (4CCL 23)2.

Por penosas que sejam as circunstâncias que acompanhem a agonia,

nada pode ser considerado bastantemente humilhante e doloroso quando

vemos o Filho de Deus morrer da morte mais infame. Sabemos que quando

Frei Reinaldo, ao acompanhar Clara na sua agonia, "a quis exortar à paciên-

cia, ela respondeu-lhe com toda a franqueza: ‗Querido Irmão, desde que me

foi dado conhecer a graça do meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu

servo Francisco, nenhuma pena me foi molesta, nenhuma penitência me

pareceu severa, nem nenhuma doença me foi difícil de suportar" (LCl 44).

A graça começou a transformar Clara desde que conheceu Francisco

nos alvores da remota juventude. Agora, ao chegar ao derradeiro momento,

bem podiam os jograis de Francisco cantar-lhe a última estrofe do Cântico

das Criaturas: "Felizes os que aceitam em paz a dor, porque chegou para

eles o tempo da consolação".

Já não havia para Clara pena suficientemente molesta, ou amargura

bastantemente amarga que não se transformasse em doçura. Essa confissão

da Senhora Pobre, providencialmente preciosa para conhecermos a sua for-

taleza de ânimo e os frutos de tão porfiada contemplação do Espelho da

eternidade, temos que a agradecer à solicitude loquaz de Frei Reinaldo.

"Varão piedoso" era ele, mas, em vez de lhe dar consolação em transe tão

————— 2 As citações são feitas a partir das FONTES FRANCISCANAS II – SANTA CLARA DE ASSIS,

ESCRITOS, BIOGRAFIAS, DOCUMENTOS, EF, Braga, 1996

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difícil como fez frei Junípero, "molestava-a com palavras supérfluas" (cf.

LCL 45).

Jesus é o Espelho da eternidade onde Clara, nele reflectida, busca a

vera efígie divina e tenta a sua semelhança com Ele. É o Espelho em que

anseia transfigurar-se por inteiro, em perfeita sintonia e comunhão. Consta

o Espelho de três partes ou momentos e neles se contempla o mistério de

Cristo: no começo o nascimento do Senhor pobre, em Belém; no centro a

vida pública; no fim a morte e ressurreição.

Quando Francisco e Clara repetiam uma e mil vezes: "Tu és Humil-

dade", repeliam energicamente de si mesmos a veleidade de serem alguma

coisa, a fim de que a humildade do Filho de Deus pudesse encher por com-

pleto todos os escaninhos de suas almas.

Quando diziam: "Tu és Paciência", parecia-lhes impossível haver no

mundo pena alguma que não pudessem suportar em paz.

Quando diziam: "Tu és Doçura, tu és Mansidão‖ sentiam não haver

doçura comparável à do olhar do Senhor. Nem nada tão amargo que não

pudessem transformar imediatamente em doçura. E, como dizia São Leão

Magno: "A amargura não é motivada pela maneira de actuar da justiça di-

vina, mas da maldade humana. E neste sentido, é mais deplorável a atitude

de quem pratica o mal do que a situação de quem tem de padecer por causa

da maldade, porque ao injusto a malícia acarreta-lhe castigo, ao passo que a

paciência do justo leva-o à glória. Aos pacíficos e mansos, aos que estão

dispostos a tolerar toda a espécie de injustiça é-lhes prometida a posse da

terra‖3.

E quando diziam: "Tu és Caridade, tu és Ternura" rendiam-se ao amor

do Salvador, "em extremo" fascinados por Ele. E choravam todas as lágri-

mas do mundo, movidos de compaixão, embriagados com a inefável ter-

nura do Filho de Deus na sua paixão e na sua cruz.

Se caminhar é ter os olhos, a mente e o coração fixos no Filho de

Deus para nos tornarmos, como ele, pobres, humildes, amorosos, mansos…

————— 3 Sermão 95, 4-6; PL 54, 462-464. Ofício de Leituras do Sábado XXII, do Tempo

Comum.

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morrer que será ? É imitar o Esposo, tendo em pouca monta o sofrimento, é

dar-lhe graças antegozando a proximidade do encontro:

"Contempla, nobre rainha, o teu Esposo. Sendo o mais belo dos filhos

dos homens, transformou-se, para tua salvação, no mais desprezível dos

mortais. Morreu na Cruz, no meio dos maiores sofrimentos, golpeado e

vezes sem conta açoitado em todo corpo. Olha, medita e contempla e que o

teu coração se inflame na sua imitação " (2CCL 20-21).

Quem, de si esquecido, perseverar nessa contemplação é levado ao

abraço que identifica, como virgem pobre, é totalmente transfigurado após

ter seguido a pobreza, a humildade, paciência, mansidão e doçura… do

Filho de Deus. Ruminado então pela sua inefável caridade, quem com ele

morrer com ele reinará.

"Receberás a coroa da imortalidade" (5CCL).

A morte, nos aspectos negativos, está vencida. Será qual irmã abrindo

a porta da bem-aventurança. Júbilo, santidade, esplendor… para sempre!

É esta, em toda a sua simplicidade, a argumentação de Clara a respeito

da morte. Há um Espelho, Cristo pobre. Um espelho que urge imitar na

vida e na morte. Em estreito abraço, com Ele se vive, se morre e se alcança

a eterna bem-aventurança. Os braços para esse abraço transfigurados e glo-

rificante são a humildade e a pobreza.

Pobre, humilhado e desnudo morreu o Senhor no leito da cruz. Des-

nudo, reclinado sobre a terra nua do aniquilamento e da cinza, morria Fran-

cisco… Abrasado em inefável caridade, morre o Senhor. Abraçada a Cristo

pobre, virgem pobre, em seráfico arrebatamento, morria Clara.

2. FRANCISCO DEIXA COMO HERANÇA A SANTA POBREZA, ANTES E

DEPOIS DA SUA MORTE

Outra série de textos se referem igualmente à morte de Francisco e de

Clara, porém uma morte escandida em dois tempos: um "antes" e um "de-

pois". De qualquer modo, o denominador comum é invariavelmente a santa

pobreza do Filho de Deus que as irmãs, tanto presentes como futuras, de-

vem abraçar.

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a) O legado de Francisco "antes da sua morte "

A influência de São Francisco não terminou com o seu passamento.

Clara recorda e escreve que a vida é um caminho interior, uma evolução

mística para se chegar ao abraço: "O Filho de Deus fez-se nosso caminho,

como nos mostrou e ensinou pela palavra e exemplo o nosso bem-

-aventurado Pai São Francisco, seu apaixonado imitador" (TCL 5). De re-

sto, ele teve sempre um cuidado amoroso e a mais diligente solicitude no

acompanhamento das irmãs pobres, quais senhoras suas, num caminhar que

era o seguimento fiel das pegadas do Filho de Deus (1Pe 2,21, manso,

humilde e pobre…

Pouco antes da sua morte Francisco legou-lhes a Santa Pobreza em

escrito firme e singelo. Tal como ele se comprometia a observar a Pobreza

"até ao fim", isso mesmo pedia o fizessem as senhoras pobres. Clara re-

colhe esse escrito e integra-o na redacção da Regra. É sua convicção que,

tanto para as irmãs que puderam venerar as chagas do "verdadeiro amante

do Filho de Deus", como para as que viriam depois, nada seria tão forte e

aliciante como aquela exortação testamentária em forma de testemunho.

“E para que nem nós, nem as que nos hão-de suceder nos desviásse-

mos da altíssima pobreza que abraçámos, pouco antes de morrer, nova-

mente nos escreveu a sua última vontade: „Eu, o pequeno irmão Francisco,

quero seguir a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor Jesus Cristo e

da sua santíssima Mãe e perseverar nela até ao fim, rogo-vos, minhas sen-

horas, e vos aconselho, que vivais sempore nesta santíssima vida e po-

breza. E conservai-vos muito atentas para que de nenhum modo jamais vos

afasteis dela, por ensinamentos ou conselhos, donde quer que venham”

(RCI VI, 6 …).

b) O legado de Francisco para "depois da sua morte"

Francisco exortou as Senhoras Pobres a que, depois da sua morte…

continuassem abraçadas à pobreza do Filho de Deus como forma de vida.

Deixou muitos escritos que não chegaram até nós, ou chegaram em reco-

lhas cujos destinatários ainda hoje ignoramos se eram irmãs ou irmãos.

"Não contente em nos exortar durante a vida, com muitas palavras e

exemplos, ao amor e observância da santíssima pobreza, deixou-nos tam-

bém muitos escritos, para que, depois da sua morte, de modo nenhum nos

afastássemos dela, a exemplo do Filho de Deus que, enquanto viveu neste

mundo, nunca da santa pobreza se quis desviar" (TCI 34-35).

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São estas as referências de Clara à morte de São Francisco. Visam ine-

vitavelmente a imitação da santíssima vida e pobreza do Senhor e de sua

bendita Mãe pobrezinha. Há ainda outra citação que transferimos para mais

adiante pelo facto de coincidir com a própria exortação de Clara.

3. CLARA EXORTA À OBSERVÂNCIA DA POBREZA PARA ALÉM DA SUA

MORTE

Porém, após a morte de Francisco, irmãs houve que claudicaram des-

viando-se da santa pobreza. Este facto foi ensejo para palavras de Clara em

que nunca reflectiremos bastantemente e que denunciam bem a dor e de-

cepção que lhe coube sofrer como fundadora e mãe.

"Eu, Clara, indigna serva de Cristo e das irmãs pobres de São Da-

mião e plantazinha do santo Pai, considerando com as outras minhas

irmãs a sublimidade da nossa profissão e o mandato de tão grande Pai, e

ao mesmo tempo a fragilidade das nossas irmãs – fragilidade que nós

mesmas temíamos depois da morte do nosso Pai Francisco que, depois de

Deus, era a nossa coluna, a nossa única consolação e fortaleza…" (TCL

37-38).

Olhando para além do seu tempo, Clara exorta "a que, depois da

minha morte… " Na verdade, morta ela, a influência da sua santidade e dos

seus ensinamentos jamais se extinguiria. Como transparecendo luminosa-

mente de um véu, o seu magistério continua a inspirar e a renovar a fideli-

dade ao abraço de Cristo pobre.

"Frequentemente renovamos a nossa adesão voluntária à nossa sen-

hora, a santíssima pobreza, a fim de que, depois da minha morte, as irmãs,

tanto as presentes como as futuras, de nenhum modo delas se apartem"

(TCL 39).

"E se acontecesse terem as referidas irmãs de deixar este lugar para se

mudarem para outro, sintam-se mesmo assim obrigadas a guardar depois da

minha morte, onde quer que se encontrem, a sobredita pobreza que a Deus

prometemos e a nosso Pai Francisco" (TCL 52).

As irmãs presentes e as que vierem na sucessão dos tempos… Todas

as irmãs… em toda a parte…, quer se mantenham num mesmo lugar ou se

transfiram para outro… Sempre e em toda a parte hão-de permanecer abra-

çadas à Pobreza, a exemplo do Filho de Deus, segundo a forma do Evange-

lho que a Igreja aprovou para Francisco e Clara.. Na vida e na morte:..

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"Esta é a excelência da altíssima pobreza que a vós, minhas, irmãs

caríssimas, vos constituiu herdeiras e rainhas do Reino dos Céus, fez-vos

pobres das coisas temporais e enobreceu-vos de virtudes. Apegai-vos bem

a ela, minhas queridas irmãs, e nenhuma outra coisa, em nome de Nosso

Senhor Jesus Cristo e sua Santíssima Mãe, jamais queirais ter debaixo do

céu" (RCL VIII,4-6).

Abraçai-vos a Cristo pela altíssima pobreza que vos torna herdeiros de

Deus como filhos, co-herdeiros com Cristo como irmãos e esposas. Re-

serva para vós uma habitação nas moradas eternas e ofereceu amizade de

gente de tão bom trato, como é os santos em sua glória. Clara conjura em

nome daquele Jesus, ante cujo poder e soberania se dobram todos os joel-

hos no céu, na terra e nos abismos…

Nada há mais poderoso do que a humildade e a pobreza do Filho de

Deus, conquanto não seja fácil anunciá-las a uma sociedade que aposta no

bem-estar e na cultura do lazer. Nada há mais apetecível do que a mansi-

dão, fortaleza no meio da insegurança propiciada pela violência. Para que

apetecer outras riquezas? "O que se propõe e proclama em todo o orbe não

é Cristo ostentando poder terreno, nem um Cristo opulento de riquezas

terrenas, ou um Cristo resplandecente de felicidade terrena, mas um Cristo

crucificado. Dele escarneceram povos soberbos e o mesmo continuam a

fazer os que ainda hoje lhes pagam a herança. Porque quando se pregou a

Cristo crucificado para que nele cressem uns quantos ante a irrisão dos po-

vos, os coxos andavam, os mudos falavam, os cegos viam e os mortos vol-

tavam à vida. Assim, finalmente, a soberba terrena pôde dar-se conta de

não haver nada mais poderoso do que a humildade divina. E desse modo a

salubérrima humildade humana pôde defender-se, por obra e graça da di-

vina imitação"4.

————— 4 Santo Agostinho, Carta 236-6, Madrid 1944, BAC 99-b, 398.

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4. CLARA ABENÇOA. ―DEPOIS DA MINHA MORTE…‖

Já prestes a morrer, a Senhora Pobre avançava no tempo antes de sair

do tempo. Mãe e fundadora, dispõe-se a deixar a sua bênção. Com essa

bênção deseja repartir todo o bem alcançado em favor de todos os seus de-

votos e filhas. Mais, teve em mente não apenas as que então estavam com

ela como as que viriam depois.

"Eu, Clara, serva de Cristo e plantazinha do nosso pai São Francisco,

irmã e mãe vossa e de todas as irmãs pobres, ainda que indigna… vos

abençoo durante a minha vida e depois da minha morte, quanto posso e

mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das misericórdiascon-

cedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas espirituais…" (BCL

6.11-12).

Clara promete uma bênção que continuará actuante depois da sua

morte. Por isso ela diz abençoar "quanto pode e mais do que pode". Na

verdade, lega-nos uma bênção de tão longo alcance que ainda hoje, no sé-

culo XXI, envolve todos os seus devotos e não apenas os seus filhos e fil-

has. Tão é isto uma confissão de fé na vida bem-aventurada, na comunhão

dos santos? Se alguma dúvida nos restasse sobre tão ardente fé, que se

move no eixo que une misticamente os três estratos da Igreja, atentemos em

como ela associa e compromete na mesma causa, na mesma bênção, todos

os santos e santas.

CONCLUSÃO

Fascinada pela pobreza, mansidão e doçura do Filho de Deus na vida e

na morte, Clara já não busca mais espelhos nem outros pensamentos a res-

peito da irmã morte senão os de "morrer com Ele para com Ele reinar".

Nem outra coisa sabe recomendar para além da fidelidade à imitação da

humildade e pobreza do Filho de Deus "até ao fim".

Esta a lição para a vida: "Abraçar a Cristo pobre como virgem pobre."

Esta a lição para a morte: "Se com Ele morrermos com Ele reinare-

mos."

Se virmos as palavras de Clara à luz das que ela própria escreveu a sua

irmã Inês: "É do agrado de Deus que eu parta…"; se, mais ainda, nos lem-

brarmos as suas últimas palavras: "Obrigado, Senhor, por me terdes

criado…‖ por terdes tratado de mim com a ternura duma mãe para com o

S

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seu filhinho…, melhor veremos a unidade rectilínea de toda uma vida em

que o passamento deste mundo é algo natural, previsto e ditoso.

Ela sabe que, um dia, Deus a chamou pelo nome, sabe que foi criada

com inefável amor durante toda a vida – uma vida que, segundo o nosso

cômputo, terá totalizado 59 anos e oito meses – e que sempre caminhou

com os olhos postos no Filho de Deus. Agora, a morte era como que o

chamamento do divino Amante, ansioso por levá-la nos braços ao banquete

das núpcias eternas. "É do agrado de Deus que eu me vá". O mesmo amor

que a criou e a santificou vem buscá-la para lhe dar a plenitude do gozo, do

amor e da doçura.

Os olhos de Clara fecharam-se. Silenciou a água, emudeceu o vento, o

fogo acolheu-se debaixo das cinzas, a mãe terra abriu-lhe os braços. As es-

trelas correram o véu e ela desferiu voo para além do sol e da lua a fim de

reinar para sempre. "Clara morreu rodeada pelas irmãs, pelos primeiros

companheiros de Francisco e seus também, na morada onde sempre vivera.

Morreu como uma rainha, ou antes, como a jovem esposa que recebe da

rainha-mãe o dote desde sempre preparado para com ela reinar"5.

Clara ensina a arte de morrer com a serenidade e a doçura infinita de

Deus.

Clara ensina-nos a arte de morrer na infinita serenidade e doçura de

Deus.

————— 5 Bartoli, M., Clara de Asís, Oñate 1992, Ed. Franciscana, p. 265.

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CLARA,

CO-FUNDADORA DO FRANCISCANISMO

Fr. Isidro Lamelas, ofm*

————— * Palestra pronunciada a 25 de Junho de 2004, no Mosteiro de S. José, Vila das Aves

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CLARA,

CO-FUNDADORA DO FRANCISCANISMO

―Por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher‖. Se

a sentença foi usada no passado e, em muitos casos, confirmada pelos fac-

tos, ela é hoje menos aceite pela sua carga de preconceito… Porque há-de a

mulher estar ―atrás‖? perguntam as mentes emancipadas dos nossos dias.

Mas talvez já noutros tempos não fosse bem assim. Pelo menos não o é no

caso de Clara e Francisco. Primeiro, porque Francisco não se assume como

―um grande homem‖, mas o ―menor e mais miserável dos homens‖, depois

porque Clara não merece permanecer ―detrás‖ ou sob a sombra de Fran-

cisco, como sucedeu em tempos passados (ou sucede ainda?). Bastará re-

cordar que só no século XX os seus escritos foram recuperados e estuda-

dos: como foi possível esconder uma tal luz sob o alqueire?

E, no entanto, a riqueza do carisma franciscano só será plenamente

abrangido se colocarmos Francisco e Clara não um atrás ou à frente do ou-

tro, mas lado a lado ou no coração um do outro, pois ambos são parte e,

com Deus, o todo de uma mesma e única aventura. Tal aventura nada tem a

ver com as cores românticas com que o vulgo frequentemente pinta a re-

lação entre os dois jovens de Assis. O movimento franciscano a que deram

origem e continua vivo só se explica pelos alicerces bem mais profundos

sobre os quais assenta.

Sabemos que a vocação e o caminho de Clara nasceram e amadurece-

ram na escuta de Francisco e na frequência da fraternidade minorítica pri-

mitiva. Mas quantos outros e outras não escutaram Francisco? Porém, só

Clara soube, como ninguém, ler no coração do Poverello e conhecer exac-

tamente a sua vontade em relação aos irmãos menores assim como relati-

vamente às Damas pobres de S. Damião. Clara é, sem dúvida, o espelho ou

o reflexo mais lúcido do mundo interior de Francisco. Isso sucede porque

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ela encontrou em Francisco algo que procurava, e alcançou porque bus-

cava, isto é, tinha inquietudes e, por isso, encontrou o seu tesouro.

Não sabemos ao certo de quem partiu a iniciativa do primeiro enco-

ntro: de Francisco ou de Clara? Ou do Espírito? O que sabemos é que,

paulatinamente, a relação entre Clara e Francisco é patenteada em dois mo-

vimentos aparentemente contraditórios: de um lado o grande desejo de

Clara de ver frequentemente Francisco; por outro lado, o progressivo dis-

tanciamento físico de Francisco que evita cada vez mais encontrar-se com

as suas ―Damas‖, sem, no entanto, alguma vez as abandonar (cf. 2C 204):

―Quando as virgens de Cristo, vindas de todas as partes do mundo, se

lançavam numa vida de alta perfeição… foi-se o pai furtando pouco e

pouco a visitá-las, não, todavia, sem redobrar de solicitude ao amá-las

ainda mais no Espírito… Efectivamente… prometeu-lhes firmemente, a

elas e às que viessem a professar o mesmo teor de vida pobre, o seu inde-

fectível apoio e o dos irmãos. Enquanto viveu, manteve, sempre escrupulo-

samente esta promessa, e, prestes a morrer, recomendou encarecidamente

aos irmãos que tivessem por elas as mesmas atenções, porquanto, dizia ele,

um só e mesmo espírito levou os irmãos e as senhoras pobres a deixarem o

mundo” (2C 204).

Por sua vez, S. Clara, no seu Testamento, afirma: ―Recomendo as min-

has irmãs presentes e futuras ao sucessor do nosso bem-aventurado Pai

Francisco e a toda a Ordem, para que nos ajudem a progredir no serviço

de Deus e a observar cada vez melhor sobretudo a santíssima pobreza‖

(TCL 50-51).

E, na sua Regra, ―Clara e suas irmãs prometem obediência ao bem-

-aventurado Francisco, da mesma maneira promete obediência inviolável

aos seus sucessores‖ (1,4). Em flagrante contradição com a Regra não bu-

lada (12,1.3), Clara e suas irmãs assumem, ―livremente‖ (Regra 6,1) a obe-

diência a Francisco e seus sucessores.

Como vemos, há uma sintonia perfeita nas palavras e no comporta-

mento. O ―amor espiritual‖ de que fala Francisco é muito mais real que

qualquer outro amor, por que não é possessivo, não atrofia, não infantiliza,

mas faz crescer ou ―progredir‖, como anseia Clara.

Por isso, segura que estava que este era também o desejo de Francisco,

tudo fará para que os frades continuem a exercer o ministério pastoral em

S. Damião. E teve de lutar tenazmente para que entre as duas Ordens se

mantivesse a relação mútua querida por ela como por Francisco: isto é, para

que entre ambas se mantivesse a comunicação espiritual que germinou en-

tre Francisco e Clara.

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O verbo ―germinar‖ não vem ao acaso. A própria Mãe Clara se auto-

-assume como ―plantazinha‖ de S. Francisco. Que significa este diminu-

tivo? Dependência e subserviência? De modo nenhum. Uma planta, por

pequena que seja, tem vida própria e não é a dimensão que garante a beleza

das flores ou a qualidade dos frutos. ―Plantinha‖ de Francisco, porque

muito próxima e alimentada da mesma seiva, mas com uma vida própria,

com um vigor próprio e original. A ―pequena planta‖ não é mais que uma

―muda‖, isto é, um rebento que brota da seiva comum da planta matriz.

Mas, uma vez despontado, este rebento cresce por conta própria, permane-

cendo fiel à planta-mãe.

Compreende-se que toda a planta necessita de um ―plantador‖, mas

depois, torna-se autónoma, sem deixar de necessitar dos cuidados daquele.

O plantador e o jardineiro é Francisco, mas foi Clara que cresceu e, à sua

volta fez-se jardim. Ela aparece-nos, por isso, tão viva e tão pujante como

Francisco.

A metáfora da ―planta‖ traduz, pois, bastante adequadamente o vín-

culo entre Francisco e Clara, entre a primeira e a segunda Ordem: as irmãs

clarissas são franciscanas e não beneditinas; mas exprime igualmente a

identidade e as possibilidades de desenvolvimento próprios de cada uma.

Clara e sua Ordem são outra árvore que mergulha as suas raízes no

mesmo solo que Francisco e produz, por isso, flores semelhantes e frutos

próprios. Por isso, podemos e devemos afirmar que Clara é tão mãe da Fa-

mília Franciscana quanto é Francisco seu pai. Os fundamentos da sua espi-

ritualidade são comuns aos de Francisco (Jesus Crucificado, pobreza, con-

templação, fraternidade), porém, Clara nunca copia, mas recria. Quer seguir

à risca o exemplo de Francisco, porém, a sua imitação não é mimética mas

criativa e marcada pela exuberância da sua experiência feminina de Deus.

Clara e Francisco dificilmente seriam o que são um sem o outro, mas são

irredutíveis um ao outro.

Clara e Francisco iluminam-se e completam-se, portanto, mutuamente.

E se na génese da vocação de Clara foi determinante o testemunho de Fran-

cisco, no discernimento e na consolidação do posterior carisma franciscano

é difícil avaliar de onde veio o maior contributo1. Mas não nos preocupe-

mos com tais comparações, pois não serão os pedestais por nós construídos

que diferenciarão a sua equidistância do Sol Altíssimo.

————— 1 A sua figura como mãe do franciscanismo emerge sobretudo nos 27 anos que viveu após

a morte de Francisco.

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Um dos testemunhos do processo de canonização de S. Clara narra

que, tendo certo frade da Ordem dos Frades Menores, de nome Estêvão,

ficado doente, S. Francisco o enviou ao mosteiro de S. Damião, para que

Clara fizesse sobre ele o sinal da cruz. Uma vez cumprido este desejo, o

referido frade dormiu um pouco sobre o mesmo lugar onde Clara costu-

mava rezar. Quando acordou, estava curado. Comeu qualquer coisa e re-

gressou ao seu convento‖2.

Este episódio, confirmado por outras fontes, ilustra bem o clima de

proximidade e colaboração que, por querer do próprio Francisco, vigorava

entra as duas ordens. Francisco confia a Clara a cura de um irmão, porque

está certo da ―força‖ de que Clara é dotada. Por outro lado, Clara e suas

irmãs não poupam meios espirituais e materiais para ajudar este irmão en-

fermo em hora de dificuldades.

Depois da morte de Francisco, Clara continuou, durante os 27 anos de

vida que lhe restaram, fiel ao primitivo ideal de Francisco, nomeadamente

no que se refere às relações com a primeira Ordem. Não por acaso os mais

íntimos confidentes de Francisco serão também os confidentes de Clara

(cf. LCL 45). Tendo presente que estes primeiros anos do movimento fran-

ciscano foram marcados por ventos e marés tempestuosos, Clara não se

deixou ficar como espectadora alheia ao que ia sucedendo com o movi-

mento religioso iniciado por Francisco.

Na vida do beato Egídio conta-se que, em determinado dia, um douto

frade foi enviado a pregar a S. Damião. Enquanto este falava, frei Egídio

interrompeu-o, tomando a palavra em sua vez para pregar às sorores. O

referido frade muito mais douto, acedeu humildemente a tal intromissão. O

que levou Clara a exclamar: ―pareceu-me ter visto o próprio Francisco‖3.

Este episódio mostra, por um lado, que Clara continua a assegurar às

suas irmãs a partilha do pão da palavra, recorrendo aos frades mais doutos;

por outro lado, a presença de frei Egídio em S. Damião, dá a entender que

era comum que a referida pregação fosse escutada juntamente pelos irmãos

e as irmãs. Por outro lado, como o mesmo episódio parece mostrar, Clara,

S. Damião e suas irmãs continuam a ser o garante da conservação da me-

mória de Francisco e do franciscanismo.

Como afirma Fr. Giacomo Bini, ―Francisco constitui o momento inspi-

racional da comum vocação; Clara, na sua fidelidade, garante a continuação

do primitivo projecto de vida de Francisco. Da clausura de S. Damião, ela e

————— 2 ProcC 2,15.

3 Dicta B. Aegidii, 73.

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suas irmãs sustentam e animam os seguidores da forma de vida francis-

cana‖4

Tomás de Celano, ao escrever em 1228, a primeira biografia de

S. Francisco, já se refere a Clara como ―pedra preciosa e inabalável, ali-

cerce para as outras pedras que se haviam de sobrepor‖ (1C 18,29). A força

expressiva da metáfora arquitectónica reaparece num outro passo em que

Celano se refere às origens do ―edifício espiritual‖ que Francisco e Clara

erigiram a partir de S. Damião:

―Depois da restauração material da Igreja de S. Damião, um edifício

espiritual muito mais precioso ia ser erguido pelo Pai naquele mesmo lu-

gar, sob a conduta do Espírito Santo… como já anteriormente o Espírito

Santo havia predito, devia ali ser fundada uma Ordem de santas virgens,

as quais, como reserva de pedras vivas e trabalhadas, serviriam a seu

tempo para a restauração da casa do céu” (2C 204).

Francisco viu em S. Damião o símbolo e a realidade, o alicerce e o

edifício a construir. E Clara é a pedra angular desse edifício que, sem ela,

ficaria mais pobre e mais frágil. Na verdade, ela conferiu ao edifício fran-

ciscano o traço artístico e a profundidade que distingue as obras de arte que

Deus planeou. Enquanto o jovem Francisco incorreu na tentação de perma-

necer em S. Damião, preso à sua tarefa de ―reconstrução‖, Clara guia-o

para a novidade e as alturas de uma Igreja espiritual e interior. Ela é, na

Igreja, a primeira mulher fundadora: deu origem a uma Ordem religiosa,

deu-lhe uma espiritualidade e redigiu-lhe uma Regra, a primeira saída das

mãos de uma mulher.

Podemos, por isso, dizer que é ela a primeira a realizar e a mostrar o

sentido do mandato: repara a minha Igreja. E, como continua Celano, ―um

nobre edifício de pérolas preciosas emerge sobre ela‖ (1C 19).

Em Clara a utopia de Francisco fez-se clarividente e realidade. Ela não

é, pois, a sombra mas a luz de Francisco. Ambos são dotados de uma ener-

gia e personalidade fortes, mas une-os o mesmo espírito, o mesmo ideal e

radicalidade, o mesmo projecto evangélico. Dois apaixonados pela vida, e

uma mesma paixão: seguir Cristo pobre e humilde; duas almas inconfundí-

veis, mas uma mesma vocação: restaurar a casa de Deus. Clara é o incenso

que o fogo brotado de Francisco transformou em perfume irradiante.

Clara assume plenamente as consequências da sua aliança esponsal, a

qual implica a total comunhão de bens. Narra a Legenda que, num mo-

mento de carência maior, Clara partiu a meio o único pão que restava no

————— 4 Fr. GIACOMO BINI, Clara de Assis, um hino de louvor, II.

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mosteiro, enviando uma das partes aos filhos de Francisco. Este gesto da

partilha do pouco pão que resta exprime bem o vínculo de comunhão na

pobreza que une ambas as ordens (LCL 15). Mas explica também o milagre

da multiplicação de tantos bens que Deus opera em ambas.

Por isso reagirá com surpreendente firmeza quando algo ou alguém

põe em causa a comunhão espiritual e o cerne do carisma franciscano, e

tudo fará para salvaguardar as boas relações com os irmãos da primeira Or-

dem. Recordemos apenas um conhecido episódio:

―Uma vez, quando o papa Gregório [IX] proibiu qualquer frade de ir

sem sua licença aos mosteiros das Senhoras. A piedosa madre, doendo-se

porque ia ser mais raro para os Irmãos o manjar da doutrina sagrada, la-

mentou: ‗Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos que nos

davam o alimento da vida‖. E, na mesma hora, devolveu aos ministros to-

dos os irmãos esmoleres‖ (LCL 37). Clara ameaça recorrer à ―greve de

fome‖, caso o papa promova a separação das duas ordens. O que levou o

papa a retirar imediatamente a proibição, entregando o caso ao Ministro

geral.

Por estas e por outras, Paul Sabatier pode retratar Clara como ―uma

mulher que durante todo um quarto de século susteve uma luta de todos os

dias, mantendo-se ao mesmo tempo respeitosa e inquebrantável‖. ―Nin-

guém me ensinou o que devia fazer‖. A mesma firmeza de Francisco, ex-

pressa nestas palavras, aparece também na atitude de Clara. Tal atitude não

manifesta qualquer tipo de arrogância ou sede de protagonismo, mas a

plena confiança na iniciativa do Altíssimo

De facto, tudo fez para evitar as intromissões inconvenientes dos sen-

hores feudais e dos bispos, e, quando lhe foi ―imposta‖ a Regra de

S. Bento, Clara tudo fez para permanecer fiel ao ideal de Francisco e para

ter como único privilégio viver sem privilégios (―Privilégio da Pobreza).

Em contrapartida, conhecendo ―por dentro‖ e envolvendo-se total-

mente no mesmo projecto evangélico de Francisco, Clara revelou sempre

um particular empenho em manter e incrementar a comunhão com os irm-

ãos:

– Conservando e exortando à fidelidade, à memória e vontades de

Francisco, explicitamente evocadas na sua Regra (cap. 6) e no seu Testa-

mento (2, 3, 4-5, 7, 8-15, 17, 22, 23), assumindo para si e suas irmãs a pa-

ternidade espiritual de Francisco (TCL 22);

– No seu Testamento encomenda suas irmãs ao cuidado da Igreja e dos

irmãos menores;

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– Na sua Regra pede explicitamente quatro irmãos menores para o

serviço do mosteiro: um capelão, um clérigo de boa fama, e dois irmãos

leigos: Pedimos à Ordem dos Frades Menores, pelo amor de Deus e o

bem-aventurado Pai S. Francisco, que nos faculte sempre esta graça até

agora nunca regateada‖ (12,5).

– Toda a história das duas ordens mostram como este matrimónio feliz

entre ambas perdurará: desde S. António de Lisboa que cuidará das irmãs

pobres de Arcella até aos nossos dias.

O caminho percorrido por Clara no sentido de preservar seu carisma

será árduo como o de Francisco. Passou por momentos e situações difíceis

e combates que se prolongaram até à sua morte. Dificuldades que se pro-

longarão ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Tais lutas nasceram

sempre, porém, de uma exigência de radicalidade e fidelidade ao Evan-

gelho e a Francisco. E, por isso, cabe-nos a nós hoje e aqui procurar, sem

medo de ―ir à luta‖, a mesma fidelidade, para sermos mais evangélicos e

mais sal e luz do mundo.

―Clara morreu vitoriosa, não contra alguém, contra Gregório IX ou

contra Inocêncio IV, ou contra a autoridade, mas vitoriosa consigo e com

eles. São dois os elementos que fazem tão original o catolicismo de S.

Francisco e S. Clara: a submissão em liberdade, e a liberdade na submis-

são‖ (P. Sabatier).

Submissão à Igreja e a Francisco, porque via em ambos a fonte da sua

própria liberdade e neste último o exemplo acabado daquilo que ela mesma

procurava viver de modo autónomo e responsável. Ela é, por isso, com

Francisco, fundadora e mestra da nossa comum espiritualidade. Ela é fun-

damental para toda a família franciscana, e para o nosso mundo. As nossas

irmãs clarissas são as guardadoras deste tesouro de precioso valor para a

nossa família religiosa.

Com e como Clara e Francisco cabe-nos hoje a nós incrementar a co-

munhão espiritual e fraterna e a permuta do ―pão espiritual‖ que nos faz

crescer como franciscanos e como Igreja. Aprendamos com os nossos fun-

dadores a transformar o tempo em templo e as clausuras e os conventos em

viveiros de liberdade e crescimento humano, espiritual. E que Clara e Fran-

cisco nos ajudem a ser fiéis ao carisma que eles plantaram e, por eles, Deus

fez crescer e multiplicar-se até nós.

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SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE

*Fr. José Rodríguez Carballo, ofm

Ministro Geral*

————— * Palestra dirigida à Ordem Franciscana Secular, pelo Ministro Geral, aquando da sua

visita a Portugal, Março de 2004.

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SER FRANCISCANOS E FRANCISCANAS HOJE

Queridos Irmãos e Irmãs

Alegra-me muito estar convosco. Saúdo-vos cordialmente a todos,

queridos Ministros provinciais e queridos irmãos e irmãs da Família Fran-

ciscana. O Senhor vos dê a sua paz!

Nestes dias em que não cessam de chegar-nos notícias de combates e

de morte, em que o Santo Padre, perante a violência dos poderosos das

nações, convida todos a construir pontes em vez de muros, em que se eleva

a voz dos povos pedindo a paz, constantemente negada, sentimo-nos cha-

mados a oferecer, uma vez mais, aos irmãos e irmãs do nosso tempo a sau-

dação de paz que o Senhor revelou a São Francisco. Esta saudação nos seus

lábios não continha nenhuma retórica, pois comunicava aos irmãos o dom

da paz que havia recebido pessoalmente de Deus e que ele mesmo vivia na

sua vida. O nosso desejo é que se possa dizer o mesmo de nós, franciscanos

do terceiro milénio. Com efeito, também nós, quando saudamos desejando

a paz, queremos fazê-lo sobretudo como homens e mulheres que encontra-

ram a verdadeira paz no encontro com o Ressuscitado e nos passos de São

Francisco e de Santa Clara, e desejam dá-la aos seus irmãos; gostaríamos

que todas as nossas acções e os nossos gestos se convertessem em anúncio

da salvação que encontrámos, em anúncio da verdadeira paz. De facto, sa-

bemos, como nos recordava João Paulo II, que ―os homens do nosso tempo,

talvez nem sempre conscientemente, pedem aos crentes de hoje não apenas

que nos falem de Cristo, mas de certo modo que no-lo façam ―ver‖ […]. O

nosso testemunho seria por outro lado imensamente deficiente se não

fôssemos os primeiros a contemplar o seu rosto‖ (Novo Millennio ineunte

16).

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HOMENS E MULHERES DE CONTEMPLAÇÃO

Para sermos verdadeiros anunciadores e portadores de paz é, pois, in-

dispensável partir da dimensão contemplativa da nossa vida. Só mantendo-

-nos numa relação vital com o Senhor teremos olhos novos para ler a histó-

ria que vivemos e estar significativamente presentes nela. Assim, perante as

mudanças cada vez mais rápidas da sociedade e do mundo, os nossos esfor-

ços apontarão exactamente para a elaboração de novos projectos que ex-

pressem o sentido da nossa presença. Mas não podemos esquecer que este

sentido nos é dado na relação com Deus e que sem Ele todo o projecto será

estéril.

Por isso, é cada vez mais urgente o chamamento de São Francisco a

todos os franciscanos e franciscanas para que, ―removido todo o impedi-

mento e posto de parte todo o cuidado e solicitude, do melhor modo que

possam, trabalhem por servir, amar, adorar e honrar ao Senhor Deus com

um coração limpo e espírito puro‖ (1R 22, 26). O que primeiramente nos

deveria caracterizar como homens e mulheres no seguimento de Cristo pelo

caminho traçado por Francisco e por Clara deveria ser precisamente ter o

olhar constantemente voltado para o Senhor, ou, dito com palavras de São

Francisco, ―ter o Espírito do Senhor e a sua santa operação‖ (2R 10, 9).

Manter este único ponto de referência significa alcançar a unidade na

própria vida e, portanto, viver reconciliados consigo mesmos e com os ou-

tros. É talvez o maior sinal profético que podemos oferecer hoje aos nossos

irmãos. Mas para isso, temos que nos converter continuamente para que

Jesus Cristo seja verdadeiramente o centro da nossa vida e da vida da nossa

fraternidade. Assim, a nossa vida poderá ―converter-se em anúncio de um

modo de viver alternativo ao do mundo e da cultura dominante‖, pois ―com

seu estilo de vida e a busca do Absoluto [a vida consagrada] quase insinua

uma terapia espiritual para os males do nosso tempo‖ (Partir de Cristo

[PC] 6a).

Poderemos falar de renovação da nossa vida e da nossa presença se

estamos dispostos e na medida em que estivermos dispostos a acolher a

Palavra e a Eucaristia ―com um coração limpo e espírito puro‖, a convertê-

-las no eixo central das nossas actividades, a fazer crescer as nossas frater-

nidades a partir do intercâmbio e da participação destas riquezas inesgotá-

veis.

Como sabemos, tudo isto requer de nós uma grande disposição para

nos pormos seriamente a avaliar o tempo pessoal e comunitário que dedi-

camos, tanto quantitativa como qualitativamente, à vida com Deus, pois ―é

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necessário aderir cada vez mais a Cristo, centro da vida consagrada, e vol-

tar a percorrer um caminho de conversão e de renovação que, como na ex-

periência inicial dos Apóstolos, antes e depois da sua ressurreição, seja um

recomeçar a partir de Cristo” (PC 21a). Só recomeçando a partir de Cristo

a nossa vida poderá ser verdadeiramente um cântico que dá glória a Deus

no alto do Céu e paz na terra aos homens que Ele ama (cfr. Lc 2, 14).

HOMENS E MULHERES QUE VIVEM A FRATERNIDADE NO

DIÁLOGO

Vivendo neste diálogo com Cristo, Palavra de Deus vivo, abre-se ao

ser humano a possibilidade de um verdadeiro diálogo com os irmãos. Efec-

tivamente, na relação com a Palavra feita carne aprendemos a conhecer o

amor de Deus aos seus filhos e a todas as criaturas, e, portanto, a entrar em

diálogo com elas a partir desse amor e não simplesmente de nós mesmos.

Nesta nova relação, que abarca todos os aspectos da pessoa e toda a reali-

dade que a rodeia, o que era amargo pode tornar-se verdadeiramente em

doçura de alma e corpo (cfr. T 3). Re-criados à imagem de Cristo Jesus, Ele

―que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a

Deus; no entanto esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo‖

(Fl 2, 6s), também nós queremos despojar-nos de nós mesmos e ir ao enco-

ntro dos homens e acolhê-los com o mesmo amor e respeito com que Cristo

nos acolheu.

Abraçar o outro na sua pobreza, respeitando a sua alteridade, viver

com ele a experiência de sermos irmãos e irmãs significa romper as bar-

reiras do egoísmo e do individualismo que, talvez hoje mais do que nunca,

são a causa dos males da sociedade. Para fomentar esta mudança, temos

que partir da nossa experiência quotidiana, das nossas fraternidades, pois,

como ensina o Senhor ―todos conhecerão que sois meus discípulos se vos

amardes uns aos outros‖ (Jo 13, 35). Por isso é indispensável comprometer-

-se a que nas fraternidades se criem as condições para viver o que prome-

temos e se dediquem tempos à programação e à avaliação comunitária do

caminho que se está a percorrer em comum.

Neste sentido, as nossas fraternidades podem chegar a ser verdadeiras

escolas nas quais se aprende e se ensina a viver o despojamento de si

mesmo para dar espaço à vida do irmão na nossa própria vida, do mesmo

modo que a mãe está disposta a renunciar às suas próprias necessidades

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para satisfazer as do filho, realizando assim a sua maternidade (cfr. 2R 6, 8-

-10).

A forma de vida franciscana converte-se então, para o mundo de hoje,

num desafio para substituir toda a forma de domínio e de exploração do

outro, cujo fim são a afirmação pessoal, pela escuta e o acolhimento que se

exprimem no serviço e na participação dos bens e cujo fim é a promoção da

justiça e da paz.

Abrir-se ao diálogo significa não se refugiar em posições consideradas

adquiridas de uma vez para sempre, mas estar abertos e disponíveis, cons-

cientes de que o outro não é um inimigo de quem temos de nos defender ou

a quem derrotar, mas alguém que, como nós, é portador de verdade, pois

Deus manifesta-se em todo o irmão e irmã. Na escola de Francisco e de

Clara de Assis, queremos aprender a escutar o outro, ―pois muitas vezes o

Senhor revela à que é menor o que é mais conveniente‖ (RCL 4, 18), e a

falar com ele como fez Francisco com o Sultão, que ―intensamente como-

vido pelas suas palavras o escutava com grande prazer‖ (1C 57b).

HOMENS E MULHERES QUE QUEREM VIVER NOS LUGARES

DE FRACTURA

Sem dúvida alguma, semelhante itinerário é difícil de percorrer, pois é

contrário às lógicas que parecem prevalecer hoje e que, por isso, não são

totalmente alheias nem sequer à nossa própria vida, à vida das nossas fra-

ternidades e da nossa actividade pastoral.

Numa sociedade que parece ter perdido a referência aos valores de que

surgiu, vemos impor-se um mercado que, com frequência carente de regras,

não faz senão aumentar as diferenças entre ricos e pobres, perseguindo

como único fim o crescimento incessante dos que dominam este sistema

sem se preocupar com os meios utilizados nem com as consequências que

produz. O uso da força e da violência são justificados como instrumentos a

que é lícito recorrer para garantir a convivência pacífica entre os povos e as

pessoas. Espezinham-se os direitos dos mais pobres e dos mais débeis e

sente-se a necessidade de afirmar a própria identidade negando a do outro.

Renasce o mito da própria superioridade e com ele a ilusão de não estar ao

serviço da verdade, mas de possuí-la. Enfim, subordina-se tudo ao engano

da própria e imediata afirmação e realização.

Contra esta lógica, negação de todo o diálogo, como seguidores de

Francisco e de Clara que encontraram a felicidade no encontro com o outro

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e não na sua negação, não queremos fechar os olhos a estas realidades de

pecado, mas assumi-las e vivê-las com aqueles que as sofrem, repetindo

uma vez mais que nos sentimos felizes quando convivemos com gente de

baixa condição e desprezada, com os pobres e os débeis, com os enfermos e

leprosos, e com os mendigos dos caminhos (cfr. 1R 9, 2). Esta é a tarefa

que a Igreja confiou às comunidades de vida consagrada: ―fomentar a espi-

ritualidade de comunhão, antes de mais no seu interior e também na pró-

pria comunidade eclesial e para além das suas fronteiras, iniciando ou res-

tabelecendo constantemente o diálogo da caridade, sobretudo onde o

mundo de hoje está dilacerado pelo ódio étnico ou por loucuras homicidas‖

(Vita Consecrata [VC] 51a).

Seguindo a voz do Espírito que guia os nossos passos, queremos co-

meçar por nós mesmos, a partir da nossa realidade de cada dia, vivendo

nela não apenas uma convivência entre pessoas diferentes pela sua idade e

cultura, mas dando testemunho de que se pode viver a reconciliação acei-

tando precisamente o valor de tais diferenças em vez de as eliminar. Ao

mesmo tempo, desejamos privilegiar a nossa presença nos lugares onde

aparecem mais dramaticamente as feridas provocadas pelo pecado do

mundo e ser aí testemunhas da misericórdia e profetas da esperança.

HOMENS E MULHERES TESTEMUNHAS DA ESPERANÇA

Com santa Clara confessamos que no encontro com o Salvador nos foi

revelado o ―Pai das misericórdias‖ (2Cor 1, 3), a quem queremos dar graças

com toda a nossa vida (cfr. TCL). A experiência de que Deus se fez miseri-

córdia em Jesus nos impulsiona a olhar o homem com olhos diferentes so-

bretudo quando está ferido na sua dignidade. O primeiro e principal gesto

de misericórdia, como nos ensina a parábola do ―Pai misericordioso‖ (cfr.

Lc 15, 11-32), consiste em devolver a dignidade à pessoa. Esta é sem dú-

vida a perspectiva de São Francisco na sua Carta a um Ministro, na qual

concebe o exercício da autoridade como um serviço de misericórdia: ―E é

desta forma que eu quero ver se amas o Senhor e a mim, seu servo e teu, se

procederes assim: Que não haja no mundo nenhum irmão que por muito

que tenha pecado e venha ao encontro do teu olhar a pedir misericórdia, se

vá de ti sem o teu perdão. E se não vier pedir misericórdia, pergunta-lhe tu

se a quer. E se, depois, mil outras vezes vier ainda à tua presença para o

mesmo, ama-o mais que a mim, a fim de o trazeres ao Senhor. E que sem-

pre te enchas de compaixão por esses desgraçados‖ (CM 9-11).

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O dom da misericórdia consiste, portanto, no amor que atrai os

homens para o Senhor. Um dom que não devemos oferecer só quando nos

pedem, pelo contrário, devemos adiantar-nos a oferecê-lo a quem dele pre-

cise. Neste sentido, a misericórdia é uma atitude vital, um modo de ser en-

tre e com os outros, mais do que uma acção que se deva realizar em deter-

minadas circunstâncias.

E fomos chamados a ser testemunhas da misericórdia num mundo que

tende a opor-se à misericórdia e a considerá-la supérflua. Se a lógica ven-

cedora é a do domínio e do controlo da natureza, das nações e das pessoas,

parece não haver espaço para a misericórdia (cfr. Dives in Misericordia 2),

que seria a atitude do débil e do perdedor, a atitude de quem renuncia a im-

por o seu direito sobre o outro para lhe devolver a dignidade perdida ou

negada.

Certamente estar com estas pessoas ou do seu lado significa decidir-se

entre duas alternativas e ter a valentia de se comprometer, como fez São

Francisco, que levou a todos a misericórdia de Deus Pai e não teve medo da

crítica dos seus concidadãos quando abraçou o leproso nem dos seus irm-

ãos quando levou comida aos ladrões de Monte Casale, nem dos cidadãos

de Gúbio quando foi à procura do ―lobo‖ para o levar a viver na cidade.

Quem foi tocado pela misericórdia de Deus sabe muito bem que ela é a

única capaz de romper as barreiras dos corações mais endurecidos para re-

conduzir o homem ao seu criador. Esta é a nossa esperança!

HOMENS E MULHERES GUARDIÃES E PROFETAS DA

ESPERANÇA

Diante do mal presente no nosso tempo, nós, os franciscanos, temos de

ser necessariamente homens de esperança, pois nos nossos corações ressoa

a palavra do Ressuscitado: ―Não tenhais medo […] Eu estou convosco to-

dos os dias até ao fim do mundo‖ (Mt 28, 10.20). Como repetiu João Paulo

II: ―Cristo é a nossa esperança‖ (Ecclesia in Europa [EiE] 19), uma espe-

rança que rasga os limitados horizontes humanos e que é a única que pode

saciar a sede de felicidade do ser humano.

Firmes nesta esperança, captamos por entre as densas sombras que nos

rodeiam os numerosos sinais de renovação que nos permitem continuar a

olhar com confiança o futuro que nos espera. Juntamente com a busca do

proveito exclusivamente individual e até em prejuízo dos interesses dos

outros, cresce a consciência duma solidariedade que considera o outro não

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apenas como alguém a quem se deve ajudar, mas como um companheiro de

caminho. Juntamente com a violência como único instrumento para fazer

respeitar o direito, cresce cada vez mais a consciência de que nunca se po-

derá alcançar a paz se não se garante ao mesmo tempo a justiça. Juntamente

com a soberba de uma humanidade que se sente dona indiscutível da natu-

reza, aumenta a sensibilidade perante o meio ambiente, o respeito por ele e

a consciência de formar parte dele. Juntamente com o uso massificado e

passivo dos meios de comunicação, aumenta o desejo de formas de ex-

pressão que dêem espaço à criatividade e à imaginação pessoal.

Portanto, a nossa tarefa deve ser a de homens e mulheres que, tendo

em Cristo uma esperança que não pode defraudar, sabem indicar aos seus

irmãos e irmãs as luzes que guiam até ao Salvador. Portanto, devemos sa-

ber ler os sinais dos tempos em diálogo contínuo com a Palavra de Deus,

pois ―a verdadeira profecia nasce de Deus, da amizade com Ele, da escuta

atenta da sua Palavra nas diversas circunstâncias da história. O profeta

sente arder no seu coração a paixão pela santidade de Deus e, depois de ter

acolhido a Palavra no diálogo da oração, proclama-a com a vida, com os

lábios e com os factos, tornando-se porta-voz de Deus contra o mal e contra

o pecado‖ (VC 84b).

Por isso não podemos descuidar a qualidade da nossa vida fraterna que

contém a força de ser profecia autêntica de um mundo renovado, sinal certo

de esperança para um futuro mais humano (cfr. VC 85), como aconteceu no

princípio do movimento franciscano e clareano quando, tendo abandonado

tudo, aqueles homens e mulheres começaram uma experiência de vida que

continua a fascinar ainda hoje com a transparência da sua mensagem evan-

gélica.

Guardar e testemunhar esta esperança é o maior serviço que podemos

prestar aos homens do nosso tempo; mas para poder fazê-lo é preciso saber

abandonar tudo cada dia para seguir Jesus pobre e crucificado. Só sendo

autenticamente livres das lógicas do mal que ameaçam a nossa sociedade,

só despojando-nos continuamente de nós mesmos para recomeçar a partir

de Cristo, só se tivermos a força de sair dos nossos conventos para ir, des-

armados, ao encontro dos nossos irmãos, seremos testemunhas credíveis do

amor que nos foi dado e, então, como nos ensina a Igreja, na nossa vida

encontrará ―novo impulso e força o anúncio do Evangelho a todo o mundo.

Com efeito, são necessárias pessoas que apresentem o rosto paterno de

Deus e o rosto materno da Igreja, que dêem a vida para que os outros ten-

ham vida e esperança‖ (VC 105b).

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Gostaria de concluir esta intervenção com a ―confissão de esperança‖

da exortação apostólica Ecclesia in Europa, que, parece-me, alcança o an-

seio, presente no coração de cada um de nós, de que o Reino, cujo aconte-

cimento estamos a celebrar nestes dias, possa difundir-se e chegar a todos

os homens e mulheres: ―Tu, Senhor, ressuscitado e vivo, és a esperança

sempre nova da Igreja e da humanidade, tu és a única e verdadeira espe-

rança do homem e da história, tu és entre nós a ‗esperança da glória‘ (Col 1,

27) já nesta vida e também para além da morte! Em ti e contigo podemos

alcançar a verdade, a nossa existência tem um sentido, a comunhão é possí-

vel, a diversidade pode transformar-se em riqueza, a força do Reino já está

a agir na história e contribui para a edificação da cidade do homem, a cari-

dade dá valor perene aos esforços da humanidade, a dor pode tornar-se sal-

vífica, a vida vencerá a morte e a criação participará da glória dos filhos de

Deus‖ (EiE 18b).

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O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE:

UMA PROPOSTA DE ANÁLISE

Fr. Luís Oviedo*

————— * Artigo publicado na VITA MINORUM revista di spiritualità e formazione

interfrancescana, Janeiro-Fevereiro de 2000, pp. 35-60. Trad. Cadernos de Espiritualidade

Franciscana.

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O DECLÍNIO FRANCISCANO NO OCIDENTE:

Uma proposta de análise

Não tem havido muito empenho em analisar as causas da crise actual

de crescimento que sofre a Ordem Franciscana – tal como outras ordens –

nas sociedades mais avançadas e secularizadas, nem em buscar soluções1.

Dispomos de algumas hipóteses de explicação deste panorama desolador,

mas falta-nos uma visão suficientemente ampla, baseada em dados empí-

ricos, de molde a compreender como a grande parte dos grupos religiosos

se afundou no ambiente moderno e secular, e porque estas dificuldades

afligem de maneira particular as Ordens tradicionais, salvo alguma ex-

cepção significativa. Excluímos desde já a tese segundo a qual a seculari-

zação moderna compromete todas as iniciativas religiosas; experiências

positivas em curso, constituem um antídoto contra o derrotismo geral.

Podemo-nos socorrer de muitas perspectivas para levar a cabo o nosso

intento. A sociologia das religiões, no seu desenvolvimento mais recente,

pode-nos fornecer, melhor que qualquer outra teoria, os instrumentos de

diagnóstico e sugestões para possíveis paliativos. É certo que se trata de um

ponto de vista parcial (como é qualquer ponto de vista), mas estou conven-

cido que nos pode oferecer informações suficientes e elementos para esti-

mular uma reflexão.

Convém reconhecer que o caminho proposto suscita graves problemas,

sobretudo por causa da dificuldade que acompanha a teoria social, conside-

rada por muitos «intrinsecamente social». Não é este o lugar para debates

————— 1 O único exemplo que conheço, refere-se às ordens religiosas em geral: P. WITTBERG,

The Rise and Fall of Catholic Religious Orders: A Social Movement Perspective (State University of New York Pr. 1994): concentra-se nos aspectos ideológicos que motivam e

mantêm um ―movimento de virtuosos‖.

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tão complexos; permanece válido, todavia, o método sociológico ao menos

para dar o mínimo de esclarecimentos sobre alguns dos nossos problemas.

Em todo o caso estamos dispostos a assumir um risco: o trabalho tem so-

bretudo um carácter explicativo, e pode servir ainda de modelo para uma

aplicação prática, mesmo para outros casos.

As explicações propostas devem juntar-se a outras, habituais entre nós

– mais de índole ―espiritual‖ – relacionadas com a fidelidade pessoal e co-

munitária aos ideais evangélicos que professamos. Não é minha intenção

negar a validade e a capacidade de denúncia crítica que estas percepções

têm; só desejaria complementar a partir de outra perspectiva, até porque,

em especial a vida religiosa vivida com sinceridade e generosidade não

basta para analisar os graves problemas que temos pela frente. Estou con-

victo que, se queremos compreender e resolver certos problemas caracte-

rísticos da nossa forma de vida, é necessário um aprofundamento pela via

da ―reflexão‖: a boa intenção e o bom exemplo não são suficientes para

orientar a acção duma instituição da dimensão da Ordem Franciscana. De-

sejaria prevenir contra um voluntarismo que no fim dá resultados escassos,

como também contra um certo ―abandono à providência‖ que atraiçoa o

sentido cristão da Providência.

1. O QUE HÁ DE NOVO E DE ÚTIL NA SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO

Desde há muito tempo que nos habituamos a compreender o papel da

religião na sociedade no âmbito da assim chamada ―teoria da seculariza-

ção‖. Duma maneira geral reinava a convicção de que a fé religiosa e a sua

forma institucional entrou numa fase de decadência, submetida à dinâmica

da ―superação‖ e da emergência social, privada do influxo puro a nível da

consciência pessoal. Para os mais extremistas o desenvolvimento descrito

poderia levar à extinção da maior parte das formas religiosas. A única espe-

rança reservada aos crentes seria transformar, com coragem e redimensio-

nar os conteúdos considerados propriamente ―espirituais‖ e partir para ou-

tro tipo de ―prestações‖ da vida cristã: o serviço social e político, a di-

mensão ―terapêutica‖ da fé, assinalando os motivos estéticos e existenciais,

abandonando, se necessário, os dogmas e valores tradicionais.

A situação mudou nos últimos anos. No último decénio os especialis-

tas que ―observam‖ as dinâmicas e os influxos do ambiente religioso na

sociedade moderna advertem que, antes de tudo, não é verdade – como

afirmava a teoria da secularização – que, quando uma sociedade se desen-

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volve e se moderniza, o resultado é a diminuição e o desaparecimento da

religião (o exemplo norte americano é o mais claro); em segundo lugar,

nem todos os grupos religiosos sobrevivem no novo contexto, que favorece

alguns e penaliza outros, que ficam para trás nesta espécie de competição;

isto porque a influência de outros factores na sociedade continua a pesar,

como se viu no caso do comunismo.

A sociologia das religiões, teve que recorrer a outras estratégias para

compreender o fenómeno, uma vez que a teoria da secularização tinha per-

dido a sua capacidade de explicação. Finalmente foram adoptadas a se-

guintes estratégias: o modelo económico da ―escolha racional‖ e o da ―teo-

ria da organização‖. Tanto num como noutro caso, a teoria procura com-

preender, como num contexto altamente concorrencial, há umas entidades

que prosperam e outras que vão à falência e há certas organizações que re-

sistem à erosão do tempo e outras que se dissolvem depois das primeiras

dificuldades.

No primeiro caso o instrumento conceptual mais usado na assim cha-

mada ―escolha racional‖ (em inglês: rational choice), compreende a maior

parte dos processos económicos: tanto na perspectiva da oferta como na da

procura, cada um dos actores ou a corporação tenta obter o máximo de

vantagens com o mesmo esforço. Ser ―racional‖ neste caso significa fazer a

escolha que permite melhorar a própria situação. Não só no campo econó-

mico, mas também noutros campos se provou as vantagens de utilizar este

critério de ―racionalidade‖: na política, nas relações pessoais e até nas reli-

giões, susceptíveis de ser analisadas como uma relação de oferta e procura,

numa situação de ―falso mercado‖2.

A perspectiva que oferece a ―teoria da organização‖ é ligeiramente di-

ferente: o objectivo é apontado sobre a estratégia que favorece a sobre-

vivência e o crescimento de uma instituição no tempo, malgrado a tendên-

cia de entorpecimento (ou de perca progressiva de energia) que leva depois

à dissolução do colectivo. São seguramente factores positivos e negativos

que interferem no sucesso duma organização, não sendo fácil, neste caso,

falar de ―racionalidade organizativa‖, porque muitas vezes a sua lógica é

distinta daquela que se verifica no comportamento racional atrás descrito.

————— 2 L.A. YOUNG, Rational Choice Theory and Religion (New York – London 1997); L.R.

IANNACCONE, Introduction to the Economics of Religion, Journal of Economic Literatur 36

(1998) 1465-1496.

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Não podemos ignorar que os ―modelos de análise‖ propostos são par-

ciais e objecto de crítica e de discussão entre os especialistas. De facto não

é difícil provar um certa diferença, por causa de orientações fortemente

egoístas, que exibe a teoria da ―escolha racional‖, uma perspectiva que

deixa sem explicação as condutas mais altruístas em favor do próximo.

Devo admitir que a aplicação deste modelo de análise à instituição re-

ligiosa deixa perplexidade e suspeita, sobretudo quando se quer equiparar

as dinâmicas que presidem à escolha no campo religioso a um cálculo de

vantagens e proveitos, reduzindo as relações entre grupos religiosos a um

―mercado‖ onde tudo concorre para conseguir o maior número de clientes.

É óbvio que o fenómeno religioso não se esgota em considerações deste

género; aqui entram sempre elementos de outra ordem: a pertença a tradiç-

ões vividas, convicções profundas e outros factores dificilmente sujeitos a

tais ―racionalizações‖3. Muitas vezes os modelos propostos mostram-se

muito fecundos – como mais tarde se verá – e capazes de compreender o

actual panorama religioso, permitindo assim superar a teoria da seculari-

zação, os complexos e os desânimos por ela provocados.

Infelizmente os protagonistas da vida eclesial interiorizaram a ideia de

que no mundo moderno a fé religiosa estava condenada à irrelevância. O

―dogma sociológico‖ da secularização proporcionou a lógica da ―profecia

auto aplicada‖, na medida em que expoentes do clero e da actividade pasto-

ral se tornaram de modo incansável ―agentes de secularização interna‖:

quanto mais se acentuava o carácter inconsistente daqueles diagnósticos,

mais se acomodavam vários sectores da vida eclesiástica a este panorama

de crise, em vez de tentar opor-se a estas tendências que apontam para a

dissolução. O problema é que muitos davam como adquirido a perda de

interesse em relação à dimensão religiosa e quiseram encontrar o signifi-

cado do cristianismo algures (causas morais, ecológicas e culturais) na ten-

tativa disparatada de conter os danos. Hoje sabemos que uma boa parte da-

quela teoria tinha matrizes ideológicas e que não se preocupava muito em

————— 3 M. Chaves, On the racinal Choice, Journal for the Scientific Study of Religion 34 (1995)

84-104; Rationality and the Framing of Religious Choices, Journal for the Scientific Study of

Religion 35 (1996) 128-144. Pode-se ver alguma crítica na resposta da parte de L.R. IANNACCONE, Second Thoughts. A Response to Chaves, Demerath and Ellison, Journal for

the Scientific Study of Religion 34 (1005) 113-120; e a continuação do debate com a resposta de R. FINKE-R.STARK, Religious Choice and Competition, American Sociological Review 63

(1998) 761-766.

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fornecer evidências empíricas, sobretudo no caso de sociedades avançadas

com outros níveis religiosos.

A vida religiosa já prestou colaborações notáveis às ciências humanas

e sociais, contribuindo para a compreensão do mundo. Ao contrário, certas

teorias psicológicas e sociológicas foram utilizadas para iluminar as escol-

has no campo formativo e no discernimento sobre as melhores formas de

encarnação, com resultados muitas vezes discutíveis. A tentativa que agora

se propõe não deve causar grandes preocupações: provavelmente servirá

apenas para corrigir outros usos menos construtivos e estéreis das ciências

sociais, usadas de maneira pouco crítica e pouco útil na análise da situação

eclesial.

Não temos notícia de estudos empíricos do género que proponham a

temática que eu apresento neste estudo sobre a realidade da vida religiosa.

Caso novos estudos sejam feitos devemo-los avaliar na aplicação sobre ou-

tros tipos de grupos religiosos, procurando aproveitar as analogias e as se-

melhanças que nos ajudem a iluminar a própria realidade.

2- OS FACTORES ORGANIZATIVOS DO SUCESSO/INSUCESSO DOS GRUPOS

RELIGIOSOS. O CASO FRANCISCANO.

Todos os estudos recentes revelaram uma multiplicidade de factores

que ajudam a compreender o ―sucesso religioso‖, porém devemo-nos limi-

tar aos resultados mais notáveis e seguros, aqueles que resistem à confir-

mação empírica e aqueles que parecem mais adaptados à vida religiosa e

franciscana. Muitas vezes trata-se – insisto – de hipóteses de explicação

que requerem um estudo mais aprofundado e mais análises de dados con-

cretos sobre a vida de comunidade e da província.

2.1 Os problemas que colocam aqueles que “ Se aproveitam”

Muitas investigações no campo da sociologia das religiões acentuam o

mecanismo da ―oferta‖, isto é a estratégia que alguns dos institutos religio-

sos adoptaram em vista à sobrevivência num ambiente hostil e competitivo.

Trata-se de cada grupo convencer os seus fiéis, de forma que novos ele-

mentos a ele se juntem. Se o comportamento daqueles que ―oferecem reli-

gião‖ é racional, os dirigentes das instituições religiosas empenham-se em

tirar o máximo de vantagens para a Igreja ou para o movimento a que per-

tencem. O objectivo do sociólogo é seguir os métodos que possibilitam a

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adaptação ao novo contexto e de individualizar as estratégias que garantem

sucesso.

Do ponto de vista exposto uma organização racional não pode tolerar a

pertença de membros que se aproveitem, isto é, de pessoas que procuram

aproveitar as possibilidades que oferece a organização, graças ao empenho

de todos, mas não contribuem com o próprio esforço. Estes elementos

―aproveitadores‖ são frequentes e reflectem uma tendência natural, mesmo

em nome da racionalidade exposta; só que neste caso verifica-se um desen-

contro entre a ―racionalidade do indivíduo‖ que procura obter o máximo de

vantagens com o mínimo de investimento de energia, e a ―racionalidade da

instituição‖, que deve maximizar os resultados com os recursos humanos

disponíveis.

A racionalidade económica das organizações procura prevalecer sobre

a acção destrutiva dos ―manhosos‖. A lógica é muito simples: se num

grupo fundado sobre a cooperação, ou esforço comum, não são penalizados

aqueles que só perseguem o interesse pessoal (em inglês, free riders), e não

contribuirem positivamente e, apesar da sua atitude, gozam das mesmas

vantagens daqueles que se comprometem, a consequência mais provável é

que o resto do grupo se desencoraje e tenda a colaborar o menos possível.

O sociólogo americano Laurence Iannaccone usou este modelo para

explicar a dinâmica de crescimento e declínio nos grupos religiosos. O re-

sultado é que quanto mais tolerante é um grupo em relação aos ―manhosos‖

mais decai a instituição religiosa; com efeito os estudos de campo mostram

que os movimentos rigoristas conhecem maior sucesso que os mais ―mórbi-

dos‖4. A explicação que oferece o sociólogo é que as formas religiosos

rigoristas adoptam uma linguagem de comportamento e de exigência que

levam a uma distinção cada vez mais clara entre o indivíduo pertencente ao

movimento religiosos e o resto da sociedade e da cultura, através da criação

de espaços internos, o de ―micro-culturas‖ inter-ligadas. Desta forma torna-

-se difícil alguém aproveitar-se da instituição. Só no interior do grupo ou

em estreita ligação com ele têm significado as actuações e os códigos de

comunicação usados. É muito diferente o ambiente das organizações

religiosos onde é possível servir-se das vantagens de dentro e viver ao

mesmo tempo mais orientados para o exterior; é muito alto o nível de

exigência e o ―preço a pagar‖ para se poder ―aproveitar‖. Muitos exemplos

————— 4 L.R. IANNACCONE, Why Strict Churches are Strong, American Journal of Socology 99

(1994) 1180-1211.

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confirmam a hipótese: movimentos como a Comunidade Neocatecumenal

ou Comunhão e Libertação fornecem casos ilustrativos, onde o rigor in-

terno e a criação duma linguagem e cosmovisão própria, afastam a atitude

de busca de vantagens pessoais e evitam a consequente tendência para a

desmobilização5.

No nosso caso a aplicação é óbvia: tal como aconteceu em outras or-

dens, os franciscanos, nos últimos tempos, não tiveram êxito em impedir o

abuso dos ―manhosos‖. O critério de tolerância foi aplicado muitas vezes

na ajuda a pessoas em situação difícil e em facilitar a inclusão de todos, o

que levou, por fim, a extremos de auto desmoralização. Se um frade pode

gozar das vantagens e da segurança que oferece a vida religiosa, sem que se

lhe exija o mínimo de compromisso, como no campo da oração comum, da

comunhão de bens, da obediência e na colaboração nos trabalhos, não é

estranho que se produza uma certa desmobilização na comunidade e na

província, quando os religiosos se apercebem que, com um mínimo de es-

forço, podem continuar a gozar as vantagens de todos. Dito de outra ma-

neira: muita das províncias franciscanas do Ocidente não conseguiram ―ac-

tivar‖ os seus membros como o fizeram outros grupos religiosos e até ou-

tras províncias, no sentido de encorajar e atiçar o entusiasmo que leva a es-

colhas de grande generosidade e empenho6.

A explicação até agora apresentada é ―racional‖, isto é, não toma em

consideração os elementos espirituais que reclamam que cada um seja dono

de si e uma fidelidade que não deve depender de cálculos mesquinhos sobre

aquilo que fazem os outros. É verdade que, malgrado a lógica exposta, mui-

tos vive a sua vocação com grande entusiasmo; mas a consequência da falta

de rigor, ou simplesmente a falta de medidas para desencorajar os ―manho-

sos‖ (o que tradicionalmente significa aqueles que provocam escândalo),

acumulam-se em médio e longo prazo e acabam por corroer a estrutura de

um instituto religioso.

Por outro lado não parece que o excesso de rigor seja sempre vanta-

joso para os movimentos religiosos e para a vida consagrada. Em alguns

————— 5 O caso dos neo-catecumenais e de outros movimentos com indiscutível sucesso nos

ultimos anos adapta-se perfeitamente à chave da análise que R. STARK propõe e ao seu

modelo de 11 pontos: Why Contemporary Religious Movement Succed or Fail: A Revised General Theory, Journal of Contemporary Religion 11 (1996) 133-146; e a aplicação a um

caso concreto: The Rise and Fall of Christian Science, Journal of Contemporary Religion 13 (1998 189-214.

6 Tomo o termo ―ativar‖ de R. STARK que refere o sucesso de uma entidade religiosa à

capacidade de mobilizar os próprios membros tal como aconteceu nos pricípios da Ordem

Franciscana e em alguns períodos posteriores à reforma.

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casos registam-se abusos que demonstram pouca ―adequação‖ à maturidade

da pessoa e à opção por uma sociedade complexa7. A ―modernização‖, por-

tanto, duma instituição religiosa, não depende tanto do incremento dos ní-

veis de tolerância no seu interior, nem de facilidades na disciplina e obri-

gações, mas da adequação e equilíbrio entre os extremos, o que em alguns

casos se verifica através dos resultados e da capacidade de evitar ulteriores

efeitos desagregadores.

2.2 Orientação religiosa versus orientação à “agência de serviço”.

Um segundo factor a ter em consideração, foi proposto pelo sociólogo

Mark Chaves, que observa as organizações sobre o ponto de vista da

orientação da oferta e da estrutura da autoridade. Tendo como ponto de

partida estudos empíricos efectuados sobre algumas confissões religiosos,

sublinha um factor de ―secularização interna‖ que prejudica o desenvolvi-

mento da instituição religiosa: quando se dá muito espaço e autonomia no

que se costuma chamar agência, isto é, ―agência de serviços‖ não especi-

ficamente espirituais, favorece-se a progressiva dissolução da estrutura re-

ligiosa. Ao contrário, os grupos que mantêm uma orientação para as activi-

dades especificamente espirituais ou, em qualquer caso, são dependentes da

autoridade religiosa, têm mais hipótese de sobreviver e de crescer8.

Não é difícil de observar como esta norma se cumpre a nível geral: os

grupos que conseguem maior sucesso são os que se centram mais nas

actividades espirituais, enquanto que aqueles que se dedicam a outras acti-

vidades, como o ensino, a saúde, a assistência social, a ―justiça e paz‖ fra-

cassam e definham. Quando se investe muito nas actividades socialmente

úteis, presta-se, certamente, um serviço à comunidade, mas não à Igreja,

————— 7 A opinião de R. STARK mostra que só uma ―meia tensão‖ no rigor favorece um gripo

religioso: ―The Rise and Fall of Christian Science, Journal of Contemporary Religion 13

(1998) 198 ss. Por outro aldo nãos eria honesto esconder a opinião contrária de Ianaccone: G.

MARWELL, We Still Don‟t Know if Strict Churches are Strong, Much Less Why: Comment on Iannacconte, American Joutnal of Socilogy 101-104 (1996) 1097-1103; e a resposta de L.R.

IANNACCONE, Strictness and Strenght Revisitet: Reply to Marwell, ibid. 1103.1108. 8 M. CHAVES, Intraorganizacional Power and Internal Secularization in Protestant

Denominations, American Journal of Sociology 99 (1993) 1- 48; Denominations as Dual Structures. An Organizational Analysis, N.J. DEMERATH III – P. DOBKIN HALL – R.H.

WILLIAMS (eds.) Sacred Companies: Organizational Aspects of Religion and Religious Aspects of Oeganization (New York – Oxford, Oxford Univ. Pr. 1998) 175-194. Ajuda a

compreender e classifa-a de orientações das missões das oprganizações religiosas, que oferece com grande clareza J.M. MCCANN, Church and Organization: Um inqérito

sociológico e teológico (Crambury, NJ – London, Associated Univ. Pr. 1993) 161-185)

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que vê uma desvalorização dos interesses e das prioridades. Já Niklas

Luhmann advertia nos anos 70 que a escolha eclesial orientada à dioconia

(serviço social em sentido alargado), não trazem um reconhecimento co-

rrespondente da parte de sectores mais estéticos e distantes da Igreja, antes

provocavam um incremento da secularização, que vem da identificação de

actividades prioritárias, não propriamente religiosas: seria como se a pró-

pria Igreja reconhecesse que a opção por actividades não espirituais fosse

mais importante que a opção pelas actividades espirituais9.

A nossa Ordem optou subitamente, como tantas outras, por esta ten-

dência agora analisada. Muitos sectores e protagonistas interiorizaram a

ilusão de poder ganhar maior relevância social através da inserção em acti-

vidades não especificamente religiosas, mas de grande conteúdo simbólico,

prestígio social e força atractiva, em relação aos mais jovens.

Pode-se certamente objectar que alguns movimentos que tiveram

grande sucesso, optaram por uma orientação clara pela via da ―agência‖,

como no caso da Opus Dei no campo do ensino, ou o caso das Missionárias

da Caridade de Madre Teresa de Calcutá no campo da assistência. Em am-

bos os casos, uma análise mais profunda descobre que as coisas são mais

complexas. A verdade é que a Opus Deis aproveita o ensino como meio de

formação religiosa e do aumento do grupo e as filhas de Madre Teresa co-

locam a opção decisiva na dimensão espiritual e na oração, embora os

meios de comunicação só valorizem o serviço aos mais pobres e doentes.

As prioridades são sempre espirituais, o que não acontece noutros casos.

Nós franciscanos entendemos como sinal de generosidade e de

desinteresse a dedicação a actividades sociais e assistenciais, sem reque-

rermos uma adesão religiosa e sem exigirmos aceitação das mensagens

mais espirituais, receando que isso se entenda como atitude interessada,

como proselitismo, o que seria uma traição à bondade e à pureza do nosso

serviço gratuito. Noutras ocasiões identificamos, simplesmente, evange-

lização ou missão com obras de promoção humana e cultural, independen-

temente da relação à mensagem religiosa explicita: fazer bem aos outros

————— 9 N. LUHMAN, Funktion der religion (Frankfurt a.M. Suhrkamp 1977) 264. Recentemente

a pesquisa de alguns sociólogos alemães demonstraram as teses de Luhmann: quando as

igrejas se convertem em ―organizações orientadas para a acção social‖, favorecem a secularização, usando uma expressão de K. Gabriel, se dá um ―desequilíbrio, entre a lógica da

participação e da inluência‖: quanto mais cresce o individualismo, mais se acentua o carácter de ―organizações de serviços‖ da parte das igrejas, tendo como resultado um afastamento dis

fiéis; K. GABRIEL, Modernisierung als Organisierung von Religion, M.RUEGGELER – K. GABRIEL – W. GEBHARDT (Hrsg.), Institution, Organization, Bewegung: Sozialformen der

Religion im Wandel (Opladen, Leske+Budrich 1999) 19-37, qui: 33.

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seria, para muitos, mais importante que o próprio anúncio espiritual, que

viria em segundo lugar ou como consequência.

Estamos em condições de afirmar que depois de anos de experiência,

regra geral, a opção por voltar ao sector secular, mesmo que vivida em cir-

cunstâncias difíceis e até heróicas, (sobretudo em ambientes de missão) não

deu o resultado desejado e muitas vezes a aposta de forma cada vez mais

clara por outros centros de interesse, tornou-se veiculo de secularização e

de desvalorização da dimensão estritamente espiritual. O cuidado das co-

isas como a justiça, a solidariedade, a paz e a ecologia, não é negativa em si

mesmo, mas sem a justa dimensão da evangelização em sentido restrito,

arrisca-se a comprometer o futuro da Igreja e da Ordem. Todas as activida-

des seculares devem submeter-se à autoridade e centralidade da dimensão

espiritual, no sentido afirmado por Francisco quando se referia ao ―espí-

rito… ao qual todas as coisas devem estar sujeitas‖ (2R 5, 3).

2.3 A realidade da concorrência religiosa

Admitamos que não é pacifico falar de ―concorrência‖ em relação

às diversas comunidades e iniciativas de seguimento evangélico. No

entanto não nos resta outro caminho, se queremos compreender alguns

fenómenos que mais se parecem com ―movimentos religiosos‖. O fenó-

meno percebe-se, seja no confronto entre as grandes religiões num am-

biente socialmente tolerante, seja no interior duma mesma confissão

cristã, quando se regista uma concorrência − não só latente − entre os

diversos movimentos, carismas e organizações de fiéis que os animam.

Muitos sociólogos defendem amplamente a bondade desta situação,

frente a situações de ―monopólio‖ dominante. Autores como Rodney

Stark e Laurene Iannaccone inverteram, por fim, um dos princípios que

guia o empenho ecuménico, isto é, a convicção de ver a divisão entre

igrejas cristãs como um escândalo que impede o crescimento do Evan-

gelho. Estes autores vêem as coisas sob outra perspectiva: quanto mais

as confissões concorrem entre si numa certa zona, mais vitalidade con-

hece a oferta religiosa, enquanto que o domínio duma certa religião em-

pobrece a oferta, diminui a qualidade e a atenção aos potenciais ―clien-

tes‖ da oferta de bens espirituais 10

.

————— 10

Sobre esta questão há abundantes estudos: R. STARK − L.R. IANNACCONE, A Supply-

-Side Reinterpretation of the 2Secularization of Europe”, Journal for the scientific Study of

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A situação descrita tem ―paralelo económico‖ e adquire grande força

de explicação: do mesmo modo que num mercado concorrencial determi-

nada empresa procura conquistar a sua fatia de mercado, fazendo valer a

sua marca, assim numa situação de mercado ―religioso fictício‖ as entida-

des religiosos tudo devem, para melhorar a qualidade da sua prestação, ofe-

recendo ―a melhor religião possível‖. Numa situação de monopólio cai-se

na inércia e acaba-se por oferecer um serviço de ―fraca qualidade‖, uma

vez que os clientes estão seguros e sem concorrente. A mesma coisa acon-

tece com o catolicismo quando no seu interior concorrem movimentos e

grupos de inspiração diversa, com a pretensão de oferecer um ―cristianismo

melhor‖ para cada pessoa nas coisas referentes á fé e à satisfação dos seus

desejos espirituais.

Mesmo que a análise pareça brutal – além disso, longe da espirituali-

dade franciscana – não convém desprezar a perspectiva dos sociólogos e a

sua lógica. Queiramos ou não, nós franciscanos encontramo-nos no meio

dum ambiente concorrencial com todos os seus condicionamentos. Os gru-

pos e movimentos que melhor aceitaram esta circunstância no novo con-

texto, e se adaptaram tomando medidas de conquista que afirmam a sua

identidade própria, sobreviveram melhor à crise do que os grupos que se

deixaram levar por um espírito optimista de inclusão, por uma aceitação

ecuménica de tudo e de todos.

É verdade que a vocação religiosa pode crescer e desenvolver-se nos

mais diversos institutos e congregações e que não devemos considerar nen-

huma entidade cristã como de inferior de qualidade, mas isso não significa

esbater as diferenças e acabar por reconhecer e proclamar as vantagens dos

outros: a nossa ―bondade‖ não deve levar – efeito não desejado − a uma

descida temerária dos nossos níveis de auto estima, que impediria que jo-

vens candidatos entrassem na Ordem.

Na situação presente demonstrou-se que as organizações religiosas

mais exclusivistas e que afirmam sem complexos a sua identidade diferen-

ciada, prosperam, enquanto que os grupos que optam por posições de diá-

logo e de abertura aos outros carismas, perdem presenças. A lógica do pro-

cesso é óbvia: na chave da ―escolha racional‖, independentemente da bon-

dade dos grupos e dos seus protagonistas, consegue mais sucesso quem

acentua mais a própria posição e exibe, sem problemas, a própria identi-

————— Religion 33 (1994) 230-252; L.R. IANNACCONE, Introduction to the Economics of Religion,

Journal of Economic Literature 36 (1998) 1465-1496.

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dade e o próprio projecto, como expressão duma fé mais viva capaz de

convidar à adesão e ao seguimento.

Ainda neste caso convém matizar antes de cair no extremo oposto. De

facto alguns autores contestaram a linha de pertença e mostraram que no

campo religioso é muito difícil que se dêem as condições de uma con-

corrência perfeita entre os diversos contendores: existem muitos condicio-

namentos de tipo afectivo e ambiental, que sem dúvida pesam na hora das

decisões11

. Não obstante certos fenómenos, como a emergência de novos

movimentos e o seu rápido sucesso, demonstram uma flexibilidade na rela-

ção ―oferta‖ e ―procura‖ religiosa, uma relação em todo o caso menos rí-

gida que em tempos passados.

Devemos reter, de qualquer forma, que o inclusivismo franciscano não

resultou numa boa estratégia: fazer de todos franciscanos, pensar que ou-

tros movimentos eclesiais possam assumir tranquilamente o carisma será-

fico porque todos são evangélicos, prejudicou a capacidade de propor como

algo original e distinto o projecto espiritual franciscano. Vai ser necessário

algum tempo para corrigir uma mentalidade – junto com outros factores –

que contribuiu consideravelmente para a crise de identidade e para a disso-

lução do nosso carisma, e que resultou na incapacidade de propor o nosso

caminho vocacional.

2.4. Falta de racionalidade organizativa

Outros factores que contribuíram para a crise actual dizem respeito aos

níveis especificamente organizativos. Alguns são mais evidentes que ou-

tros: deficit de leadership e de centralização, falta de especialização, abuso

de iniciativas sem coordenação; e abandono consciente de orientação diri-

gida à expansão. Analisemos estes pontos mais de perto:

a- Um lugar comum da cultura política popular é que a modernização

das grandes organizações sociais coincide com os processos de democra-

tização e participação subsidiária. Na realidade as coisas são bem mais

complexas e muitas contrariam as ideias mais difundidas: a teoria da orga-

nização mostra, claramente, que certos colectivos de grande dimensão não

podem funcionar sem um elevado nível de centralização e controle sobre as

partes. Ainda hoje se discute muito sobre os níveis de participação mais

————— 11

Entre outros: S. BRUCE, Religion and Racional Choice: A Critique of Economical

Explanations of Religious Behavoir, Sociology of Religion 54 (1993) 193-205.

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conveniente para cada tipo de organização (uma multinacional não é o

mesmo que uma organização de beneficência), mas é indiscutível que or-

ganizações com uma certa dimensão e complexidade exijam estruturas de

direcção muito mais centralizadas e um leadership decisivo e reconhecido.

O sociólogo italiano Luca Diotellevi mostrou recentemente a existên-

cia de uma relação positiva entre os níveis de centralização em algumas

dioceses italianas e o indicador de vitalidade religiosa, mostrando a evidên-

cia de causa efeito12

. Não parece que do ponto de vista organizativo a dis-

persão de forças contribua para o sucesso duma ordem religiosa, sobretudo

quando se atravessa um tempo de crise. A história pode-nos ajudar a com-

preender esta relação, ao identificar certos momentos de centralização com

esforços de renovamento em algumas etapas históricas da nossa Ordem. O

esforço organizativo levado a cabo por S. Boaventura, para guiar um grupo

muito heterogéneo e disperso, é um bom exemplo. Mas também nos tem-

pos mais recentes vem à memória a figura de Bernardino de Portogruaro, o

Geral que nos momentos da restauração, nos fins do século XIX, soube,

como evidenciam os estudos de Giuseppe Buffon, adoptar estratégias mais

condizentes com os tempos modernos, de forma a enfrentar as contingên-

cias da época, deixando de parte alguma nostalgia paralisante13

.

De qualquer forma devemo-nos interrogar sobre o tipo de autoridade

requerido nas estruturas tão peculiares como são as ordens religiosas. Em

geral aceita-se que no nosso caso o melhor é haver a autoridade carismática

frente a outras opções e estilos, como é no caso duma autoridade de origem

democrática. Certamente que a democracia sempre foi um procedimento na

vida religiosa para caracterizar os superiores maiores e provinciais; mas

normalmente a função deste sistema, acaba nas decisões capitulares toma-

das por maioria. Mesmo já a este nível as coisas tornam-se problemáticas,

sobretudo porque nem sempre uma assembleia geral possui as informações

e a capacidade de juízo e decisão que se exige a um dirigente e aos seus

conselheiros. Mesmo que a ideia seja pouco agradável, a análise empírica

das organizações – incluindo as religiosas – demonstra que um colectivo

com um leadership decidido, em relação ao discernimento dos carismas e à

————— 12

DIOTALLEVI L., Religione e modernizzazione. Un contributo sul ruolo delle chiese a partiere dal caso italiano, tese de doutoramento, Univ. De Parma X Ciclo; The terriotorial

articulation of secularization: social modernization, religious modernization in Italy, publicado no Archives de sciences sociales des religions (1999).

13 G. BUFFON, Dalle soppressioni alla rinascita: il sine próprio nell prospettiva di una

« histoire au ras du sol”, Antonianum 72 (1997), 267-301; Tra ideati utopici e strategie di

modernizzazione, Antonianum 74 (1999), 527-543.

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tomada de decisões com pleno conhecimento, é mais capaz a enfrentar o

desafio da secularização, do que no caso de grupos que se deixam levar por

práticas democráticas e de participação. A presença duma autoridade deci-

dida resolve melhor os conflitos e a ameaça de divisões.

b- A especialização é ou outro factor de grande importância organiza-

tiva. Nós, os franciscanos, cultivamos muito a ilusão de que todos os frades

servem para tudo ou quase tudo. Pondo de parte as questões históricas de

alguns abusos e de cenários de especializações pouco edificantes (como ati-

tudes classicista e de superioridade de alguns irmãos sobre os outros), a rea-

lidade organizativa exige aquilo que os técnicos chamam ―sofisticação‖, e

que significa a orientação de cada um para funções especializadas, com

notável vantagem para todos. Um exemplo da tendência oposta a estas

normas é a tendência que quer envolver a todos na pastoral vocacional, o

que não só não é realista, mas pouco eficaz, porque ao querer responsabili-

zar a todos, acaba por diminuir a responsabilidade num âmbito tão essen-

cial para o futuro duma entidade religiosa.

A especialização implica o discernimento e escolha, muitas vezes

incómoda para a nossa mentalidade, habituada muitas vezes à ideia de que

todos devem empenhar-se em tudo. A ciência organizativa mostra que não

é viável um tal modelo, e recentes estudos empíricos evidenciam a influên-

cia positiva dos processos de especialização em algumas dioceses. Que di-

versos movimentos de sucesso sejam privados de ―animador vocacional‖,

isto deve-se ao facto de os mecanismo de convocação ou chamada serem

substituídos, funcionalmente, por um espírito de proselitismo muito irra-

diante e com um alto grau de empenho pessoal no envolvimento dos outros,

elementos infelizmente muitas vezes estranhos na maior parte dos membros

das nossas instituições.

c- O terceiro elemento organizativo é designado eufemisticamente

como ―abuso de iniciativas de coordenação‖. Refiro-me à prática de reu-

niões, encontros, cursos, convívios e outras actividades requeridas para a

animação dos irmãos, mas que muitas vezes são vistas como um perda de

tempo e de energias; com escassos resultados, provocando o desencoraja-

mento geral.

Muitos estudiosos da teria da organização mostraram nos últimos anos

a abundância de práticas irracionais que afligem o mundo organizativo. Dá-

-se o caso que alguns responsáveis têm necessidade de mostrar, de forma

protocolar a sua capacidade de convocação, por razões de imagem e, so-

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bretudo, por causa de tendências miméticas. Isto leva a que se incorporem

modelos e práticas provenientes de outros grupos ou instituições considera-

das mais prestigiadas, independentemente da sua actividade concreta. É o

assim chamado ―isomorfismo organizativo‖14

.

Muitos frades lamentam-se, ultimamente, sobre a inflação de reuniões

nas quais se fala de oração e fraternidade, sem resultados satisfatórios à

vista. Não estou, obviamente, a propor o fim de actividades como encontros

de animação, mas a sua revisão numa perspectiva mais pragmática: as aná-

lises da nossa realidade mostram que não é realista pretender o renova-

mento através de reuniões e de cursos de formação.

Na verdade podemo-nos guiar pelos resultados, e as nossas decisões e

estratégias deveriam antes de tudo procurar resolver os graves problemas

que temos entre mãos. Sem duvidar da bondade das iniciativas apontadas, é

necessário dar-lhe o justo valor: elas não podem de forma alguma substituir

as medidas concretas que devemos tomar em ordem à sobrevivência e ao

crescimento.

d- Por fim, mas não o último dos problemas organizativos, está a falta

de um espírito claro voltado à expansão, isto é a falta de objectivos dirigi-

dos ao crescimento, aspecto que não é tão secundário como alguns fazem

querer.

A orientação duma organização pode assumir formas que vão da con-

servação de posições adquiridas, à experiência de formas novas, ao apro-

fundamento do próprio carisma, à qualidade de ―autenticidade‖, e também

à expansão e ao crescimento. Este último aspecto privilegia as actividades e

os trabalhos de procura de novos membros, ao incremento do número de

presenças, a propor de forma convincente o próprio modelo de vida para

que seja seguido pelo maior número possível de pessoas.

Infelizmente a maior parte das Províncias do Ocidente franciscano

descuidaram, nos últimos trinta anos, o sentido do crescimento, sobretudo

por causa da má consciência em relação a formas anteriores de busca de

crescimento (recrutamento de crianças de ambientes pobres), também por

causa da difusão de algumas ideias ou teorias sobre a interpretação correcta

do carisma franciscano que denunciavam um estilo suspeito de proselitismo

————— 14

J.G.MARCH, Introduction: A Chronicle of Speculations About Decision-Making in Organizations, J.G. March (ed.), Decisions and Organizations (Oxford − New York, Basil

Blackwell 1988) 1-21; P.J. DI MAGGIO − W.W. POWELL, The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Racionality in Organizational Fields, American

Sociological Review 48 (1983), 147-160.

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demasiado pretensioso, e longe do espírito que aponta para a autenticidade

e a Providência; para muitos a única via de ―chamamento vocacional‖ é o

nosso testemunho e a vida exemplar. Infelizmente tratou-se duma orien-

tação estéril do ponto de vista dos resultados concretos.

A nível empírico, pode afirmar-se, hoje, com toda a certeza que os

grupos religiosos mais orientados à expansão, que não duvidaram em pro-

por de modo firme o próprio carisma ou modelo de seguimento evangélico

aos jovens, estão em vantagem em relação àqueles grupos mais tímidos e

que adoptaram um outro tipo de estratégia; esses ficaram para trás nos ce-

nários concorrenciais descritos15

.

2.5. A certeza doutrinal

O último factor que incide fortemente sobre o andamento da Igreja e

das organizações religiosas relaciona-se com a questão das crenças parti-

lhadas.

Os especialistas vêem uma relação positiva entre os níveis de certeza e

o crescimento dum grupo. Dito de forma oposta: quanto mais uma entidade

religiosa duvida das crenças recebidas, quanto mais revê os valores morais

e favorece o pluralismo interno, mais adesões perde e mais experimentará a

indiferença dos seus membros16

.

Este fenómeno observa-se, por exemplo, na igreja da Inglaterra, onde

vozes autónomas se mostraram como um dos factores que mais pesaram no

processo de secularização em curso. Esse factor consubstancia-se numa

excessiva disparidade de opiniões no seu interior, numa diversidade de ten-

dências exibidas por clérigos e até por bispos17

. Os grupos mais sólidos

apresentam um alto nível de certeza, uma autoridade sem oposição em re-

lação ao conteúdo das crenças e uma grande unidade proclamada e vivida.

————— 15

A evidência empírica, neste caso, parece óbvia. Todavia estudos recentes demonstram que o mais importante não é o rigorismo, mas que é a capacidade de recrutamento e de oferta

de bens interessantes, que explica o sucesso dos movimentos: C.K. HADAWAY − P.L. MARLER, Response to Iannaccone: Is There a Method to this Madness?, Journal for the

Scientific Study of Religion 35 (1996 217-222 16

Como explicação diz-se que, em tempos de transformação e de insegurança, muitos

movimentos arriscam assumir a expressão de ―continuidade cultural‖, oferecendo uma imagem de autoridade intocável: L.L. DAWSON, Comprehending Cults. The Sociology of

Religious Movements (Oxford − New York, Oxford Univ. Pr. 1998) 41-71 17

Consulte-se, por exemplo, a opinião de R.J. NEUHAUS, The Future of Once Protestant

Britain, First Things 96 (1999, October) 78 s.

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Infelizmente a vida religiosa em geral, e a franciscana não é excepção,

não goza neste momento de um alto grau de certeza. Não que tenha che-

gado ao extremo da igreja da Inglaterra, mas não alcança a solidez, a

coesão e a força convincente que caracterizam muitos movimentos religio-

sos do Ocidente que manifestam uma certa supremacia e auto-confiança.

Que se passa: de alguns anos a esta parte difundiram-se algumas ideias

em relação ao carisma das nossas origens que tiveram uma influência dis-

cutível. Atendamos, por exemplo, à auto estima que deveria sustentar a

opção pela consagração, já de si difícil e que requer muita coragem. Se a

vida consagrada se coloca ao mesmo nível de outras opções cristãs, tem

pouco sentido o esforço suplementar que se exige para se tomar uma opção

muito difícil, como é a opção pela vida consagrada.

Mas o mais inquietante diz respeito a uma certa releitura das nossas

Fontes – pondo de lado a crítica histórica – que traz para o interior da Or-

dem a ideia de Sabatier, graças sobretudo a novos ―sabatierianos‖ e à ajuda

que lhes temos dado na publicação das suas obras. Segundo esta corrente

deu-se uma ruptura e por isso uma verdadeira oposição entre Francisco e as

sucessivas gerações de franciscanos; assim, nós franciscanos não nos sen-

timos mais como protagonistas e herdeiros da experiência de vida e dos

ideais do Santo de Assis (que na verdade se esfumaram um pouco na histó-

ria), antes somos considerados agentes de uma degeneração ou, quiçá,

como traidores do carisma original, e de toda a frescura da intuição. Nós

franciscanos tornamo-nos agentes de uma falsificação, resultado dum pro-

cesso de identificação com os interesses dos poderosos18

. São posições que

ferem claramente o amor à nossa Ordem e carregaram as novas gerações

com um complexo de culpa histórica do qual ainda não nos libertamos. O

resultado é uma incapacidade de propor com convicção o próprio projecto

de vida, o perigo de uma frustração institucional e uma profunda e absurda

crise de identidade.

O elenco dos factores descritos pode ser considerado em si mesmo ou

por partes: não é necessário a presença de todos os factores para explicar

uma situação do bom enquadramento de um grupo religioso no contexto

moderno; a falta da maior parte dos elementos assinalados, é por si sufi-

ciente para o declínio de muitas ordens religiosas.

————— 18

Esta problemática já foi tratada por estudos precedentes: LL. OVIEDO, A identidade

franciscana como questão prática, Selecciones de Franciscanismo 77 (1997) 285-303; Sobre la noción de autenticidad aplicada al seguimento franciscano de Jesu Cristo, Verdad y Vida

222 (1998) 239-248.

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A espiritualidade e a praxis franciscana podem continuar ligadas a cer-

tos ideais característicos da segunda metade do século passado, mas com o

preço de um declínio ainda mais dramático, ou podem abrir-se a outras

ideias e práticas, que mesmo que pareçam atraiçoar os ideais de uma ge-

ração inteira (ou de duas) podem, no entanto, salvar a vida franciscana no

Ocidente. Por outro lado não sei que vantagens há em continuar com certas

ideias, acaso muito belas, mas que não vão encontrar seguidores nos

próximos anos. A refundação provável de algumas províncias na Europa

estarão nas mãos daqueles que souberem sobreviver, mesmo que com es-

tratégias que a alguns pareçam pouco adequadas ao espírito franciscano.

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II — Documentos

A Pobreza, Carisma Capuchinho

Mensagem de João Paulo II aos Capuchinhos italianos

pela ocasião do ―Capítulo das Esteiras‖.

Queridos irmãos capuchinhos italianos.

1- Dirijo-me a vós com afecto, saudando-vos cordialmente, pela oca-

sião do ―Capítulo das Esteiras‖ dos capuchinhos italianos. Estendo a minha

saudação a toda a vossa benemérita Ordem, guiada pelo Ministro Geral

P. John Corriveau, a quem dirijo o meu pensamento, com votos de bons

desejos.

Esta vossa reunião na seráfica cidade de Assis, junto ao túmulo de S.

Francisco, fonte viva do carisma franciscano, reveste uma importância sig-

nificativa, tanto para o número de pessoas reunidas – sois 500, represen-

tando aproximadamente 2500 irmãos italianos – como pelo tipo de enco-

ntro, que faz reviver aquela primeira e singular assembleia desejada por

São Francisco e conhecida como ―Capítulo das Esteiras‖ (LP 114). As te-

máticas que vos propusestes aprofundar inspiram-se no conhecido pequeno

Testamento de Siena (TS), que evidencia a solicitude do vosso fundador

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pela Ordem e que é a sua última vontade: o amor recíproco entre os irmãos,

o amor pela pobreza evangélica, o amor pela Igreja. Quereis enquadrar as

vossas reflexões num contexto eminentemente existencial e dinâmico,

tendo em conta as mudanças do tempo presente em contínua evolução, à

luz dos desígnios providenciais de Deus, que acompanha com o seu amor a

―história sagrada‖ desta nossa época.

2- ―Em memória da bênção e do testamento‖ (TS 3) de São Francisco,

a vossa primeira preocupação será a sublinhar o sentido e as consequências

do nome que o vosso fundador vos deu: quis que vos chamasses ―frades‖,

―irmãos‖. Os termos fraternidade e irmão expressam de forma significativa

para vós a novidade evangélica do ―mandamento novo‖. Ser irmãos deve

caracterizar as vossas atitudes para com Deus, para convosco mesmos, para

com os outros e para com as criaturas. Portanto, em função do valor funda-

mental evangélico da fraternidade vivida, a espiritualidade, o modo de vi-

ver, as opções práticas, os critérios pedagógicos, os sistemas de governo e

de convivência, as actividades e métodos apostólicos, em suma, a vossa

própria identidade carismática de grupo bem definido no seio da Igreja, as-

sumem para vós conotações muito próprias.

Esta forma de vida em fraternidade constitui um desafio e uma pro-

posta no mundo actual, com frequência ―dilacerado pelo ódio étnico e pela

loucura homicida‖, atiçada por paixões e por interesses contrastantes, pelo

desejo duma unidade, mas incerta sobre o caminho a seguir (cf. Vita Con-

secrata, 51). Com efeito, a fraternidade evangélica, proposta ―quase como

modelo e fermento de vida social, convida os homens a promover as relaç-

ões fraternas entre si e a unir as forças com vista ao desenvolvimento e à

libertação de toda a pessoa, assim como dum autêntico progresso social

(CCGG 11,4).

Como irmãos e membros da fraternidade, vós formais uma ―Ordem de

irmãos‖. Este estilo fraterno, peculiar deve reflectir e favorecer o sentido da

pertença de cada um a uma grande família sem fronteiras. Uma conversão

contínua e total à fraternidade por parte dos indivíduos, das fraternidade

locais e das províncias, poderá levá-los a uma espécie de globalização da

caridade, vivida como irmãos a nível da Ordem, com a possibilidade real e

plenamente normal de dispor dos recursos individuais e comunitários para

o serviço fraterno e ―menorítico‖, conforme as exigências prioritárias e ge-

rais de toda a fraternidade capuchinha.

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3- Outro tema sobre o qual quereis deter-vos é o amor à pobreza à luz

da ―menoridade‖. Este termo identifica a vossa denominação completa

―Frades Menores‖ e compreende ao mesmo tempo os demais aspectos sig-

nificativos do carisma capuchinho, e a própria pobreza. Sobre as dimensão

da menoridade, que deve caracterizar o vosso ser e actuar, concentra-se

neste momento a atenção de toda a Ordem, tendo em vista o próximo Con-

selho Plenário. Estou certo que as reflexões emergentes deste ―Capítulo das

Esteiras‖ contribuirão para compreender e para actuar cada vez mais de

acordo com este valor que vos identifica na Igreja. Como tive oportunidade

de vos dizer noutra ocasião, este valor torna-vos ―próximos e solidários

com o povo humilde e simples‖ e faz das vossas fraternidades menoríticas

―um ponto de referência cordial e acessível para os mais pobres e para to-

dos os que, sinceramente, buscam a Deus‖ (Mensagem de 18 de Setembro

de 1996).

A ―menoridade‖ implica um coração limpo, humilde, manso e sim-

ples, como Jesus propôs e como São Francisco viveu; requer uma renúncia

total de si mesmo e uma disponibilidade plena para Deus e para os irmãos.

A ―menoridade‖ vivida expressa a força desarmada e desarmante da di-

mensão espiritual na Igreja e no mundo. E não só isso! A ―menoridade‖

verdadeira liberta o coração e dispõe para um amor fraterno cada vez mais

autêntico, que se dilata numa ampla constelação de comportamentos típi-

cos. Favorece, por exemplo, um estilo caracterizado por atitudes de simpli-

cidade e sinceridade, de espontaneidade e franqueza, de humildade e ale-

gria, de abnegação e disponibilidade, de proximidade e serviço, especial-

mente com o povo e as pessoas mais necessitadas.

4- Além do amor fraterno e o amor pela pobreza, meditareis também

sobre o amor fiel à Igreja. Este amor exige de vós, à imitação do vosso pai

e irmão São Francisco, uma atitude de fé e de obediência, que se traduz no

serviço humilde e criativo, capaz de transformar a vida num ―sinal‖ esti-

mulante e convincente de fidelidade eclesial e de abertura aos irmãos‖. São

Francisco fez-se promotor e porta-voz duma mensagem humilde mas inci-

siva de renovação evangélica, porque conseguiu propor o Evangelho na sua

integridade e pureza, mediante uma vida caracterizada pelo amor, pela

proximidade, o diálogo e a tolerância cristã. Testemunhai, queridos irmãos,

a vossa obediência à Igreja, seguindo o coração e o estilo do vosso funda-

dor. Trata-se de um compromisso sem descanso, que vos fará felizes e

conscientes de gastar a existência pelo reino de Deus, em nome de Jesus.

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5- Desejo de coração que o ―Capítulo das Esteiras‖ produza os frutos

espirituais esperados e vos ajude a descobrir a direcção certa para avançar,

fiéis ao vosso carisma, num mundo em transformação. É estimulante para

vós que vos tenhais encontrado para reforçar a vossa vocação fraterna,

como menores e eclesiais. Num clima de oração, de reflexão e de diálogo,

podereis apreciar melhor a graça de serdes filhos e irmãos de São Fran-

cisco, sendo possível pôr em evidência a vossa missão no início do terceiro

milénio. Discernindo e perscrutando o passado, abrir-vos-eis às exigências

do presente, para construir juntos o futuro da vossa Ordem.

Desejo, também, que este importante encontro vos ajude a compreen-

der ainda mais o dever urgente de percorrer o ―caminho estreito‖ do Evan-

gelho: o caminho da conversão permanente a Cristo, que é o caminho da

santidade. Segundo o ensinamento evangélico, é necessário mudar o co-

ração para que haja mudança sincera de vida. Ao contrário, corre-se o pe-

rigo de experimentar o desencanto e frustração, e resultariam inúteis as pa-

lavras e as propostas, por muito belas que sejam, os encontros e reuniões, e

ficariam perdidas tantas energias gastas para elaborar programas espirituais

e apostólicos.

Que a Virgem ―Convertida em Igreja‖ (SVM), Santa Maria dos Anjos,

Rainha da Ordem dos Menores, vos assista. Vos sustente e alente a inter-

cessão constante de São Francisco e os inumeráveis santos e beatos capu-

chinhos, para que possais viver a fidelidade na transformação, mediante a

conversão permanente do coração.

Com estes votos, concede-vos a vós e aos demais irmãos da Itália e do

mundo inteiro uma especial bênção apostólica.

Vaticano 2 de Outubro de 2003

João Paulo II