Cadernos de Jornalismo n.° 5 2011

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aqui dentro António Feio. O Artista sem tretas “O conhecimento não é neutro“ Diálogos Urbanos Levantados do Chão

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Publicação de 2011

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A função das notícias

é sinalizar um acontecimento;

a função da verdade

é revelar os factos escondidos.

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cadernosdejornalismo 01maio n 0511

secção de comunicação

departamento de filosofia,

comunicação e informação

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Perfis

António Feio. O Artista sem tretas . 2

Albert Camus. Entre o Sol e o Mar . 5

Entrevistas

Ninguém luta para defender

valores que não ajudou a construir . 7

“O conhecimento não é neutro” . 12

Diálogos Urbanos . 18

Teoria Prática

The Wire: a ficção ao serviço da realidade . 28

Conto

Sem-abrigo morre durante acto heróico . 34

Um repelente cheiro a morte . 36

Reportagens

Fantasmas de Coimbra . 40

Levantados do Chão . 48

Crónica

Cores frias . 58

Cartoon . 60

Inês Murta

2010

2 cadernosdejornalismo 05 Perfis

António FeioO artista

sem tretastexto: Marta Pedro

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Rir.Rirsempre.Riréoseupassatempopreferido,éoseurefúgio,éasualiçãodevida.Risempre.Ridesi,ridorisodosoutros,ridaignorância,efazsorrirparanãosesentirsozinhoenquantoripordentro.Osseusolhossãoverdesmaspodiamsercastanhos,comoosdasuamãe.Irrequietos,vãoexigindoàssobrancelhasomesmoritmo.Gesticulaenquantofala,gostadeconfrontaroolhardosoutroscomoseu,depoisvailibertando-ocomoqueconcedendo-lheautorizaçãoparaouvi-lo.Asrugasbemtraçadasnorostonãosãomaisdoqueoref lexodeumavidabemvivida,noslimiteseparaládeles.AntónioFeioéactoreencenador,comolhequiseremchamar,nãofazquestãodedefiniroquefaz,desdequefaçaalgumacoisa.Gostade representar,masquando f ica atrásdopano sabe comopôrosoutrosafazê-lo.Ohumorherdou-odopaiedamãe.Aalegriadeviverveiodamãe,ohumorcorrosivoopaiemprestou-lho.Temumafamília cigana.Nãopelaorigem,maspelaunião.Éomaisnovo,aalmadafamília,masnãoosabe,eteimaemnegá-lo.Paraondeumvai,vãotodos,não invademoespaçounsdosoutros, f icamàesperaqueosdeixementrar.FoiassimqueFeiocresceueaprendeuovalordapalavrasolidariedade.Da infânciaguardaasmelhores recordações.Brincou tudooquehavia para brincar, e gostou tanto que ainda hoje o sabe fazer.Lembra-sedaliberdadequesentiaedotempoqueperdiaapassearjuntoàpraiaounopinhalpor trásdacasadeCarcavelos.Voltaratrásno tempo faz-lhe confusão, causa-lhe estranheza.Sentequemudou,enãosabeseparamelhorouparapior.Datasnão são comele, sabeque as coisas aconteceram, sabequegostoudeasviver,masnãoprecisadocalendárioparaaslembrar.Lembra-se que tinhadoze anos quando soube o que era teatro.Foiparaumensaiocomamãeenuncamaisconseguiudeixaropalco.FoiCarlosAvillezquemoconvidouparaaprimeirapeça.Paraelenãopassavadeumjogoquelhemostravaummundonovoepessoasinteressantes.Sempresecontentoucompoucoenuncaquestionavamuitooquelheiaacontecendo,aindahojeéassim.QuandopisouopalcodoTeatroExperimentaldeCascaispercebeuqueaqueleeraoseumundoequeoquetinhadooutroladolheagradava.Houvealturasemquetentounãoviverparaoteatro.Trabalhoucomodesenhadornumateliê,masa imaginaçãonão se sentia satisfeita.Percorreuváriosgruposdeteatro.Fezpeçasdetodososgénerosefeitios.Fezdetudoemaisalgumacoisa,raramentedemau,achavamsemprequenãotinhaperfil.Otrabalhofaz-lhebemporquelhedáautilidadequeprecisaparase sentir vivo.Oscolegas, esses tornam-se amigos.Comtodososquepartilhouopalco,fezamizadeemuitasfezquestãodeasmanter

paraavida.JoséPedroGomes,oamigod’As conversas da tretafoiumdeles.FoinapeçaInoy-take 5queseconheceram.Acumplicidadequeosuneempalconãoterminaquandoopanocai.Ateimosiadeamboschocaporvezes,masFeionãoseimportadepensarduasvezes,ouvirtrêseceder.Gostadeagarrarosqueamanasuavida.Apossibilidadedeperder aspessoas importantes irrita-o,nota-sepelavelocidadequeaspalavrasganham.Éumamantenato.O seu talentopara a conquistanunca f icouindiferente a ninguém. Ama fugazmente tudo e todos. As suasex-mulheres são as suasmelhores amigas.Deram-lheoquedelevai f icar,para alémdamemória,os seusquatro filhos.Bárbara eCatarinasãoasmaisvelhas.Catarinaéoseurouxinol.Feioadorareclamardasuamávozenquantodançaaosomdoqueelacanta.Sara,frutodosegundocasamentodoactor,comatambémactriz,CláudiaCadima,ganhouasas e vooupara longe.Londres éhojeemdiaumaparagemobrigatóriaparaAntónioFeio.Assaudadesdafilhaguiam-nosemprequepodeparalá.Passeiamhorasafiopelasavenidaseacabamsemprenoteatro.Nãoéumpaigalinha,nãoseimportaqueos filhoscaiam,pois sabecomoajudá-losa levantar.Aúnicacoisaquenãolhespermitequenãofaçaméquedeixemdefazeroquequerem.Éobservador.Nãolheimportamacordosolhos,aformacomosevesteouadatadenascimento—sãoosgestosdaspessoas,aformacomofalamouumsimplestiquequelheprendemaatenção.Preferealmoçarsozinhoparanãoteralgoqueodistraiados“filmesdecafé”.Depoispeganospormenoresetransforma-osempersonagens.FoiassimqueoToninasceu,apersonagemqueficousemprecoladaaohomemactor.Háalturasnomeiodas suas conversasqueoToniemerge,queemprestaexpressõesaoAntónio.Acabouporficarumpoucodobonecoemsi,masnão se importaporqueéassimqueaspessoascomuns falam,éassimqueele sabefalar.Semrodeios e sempalavrasdemasiadobonitas.Faladoqueviveedaíafrontalidadequelheparecequererfugirdosolhos.Fá-lopausadamente.Nãoseinibedepararaofimdecadafrase,parasorrir,ouparapensarsobreoquedisse.Nãotempaciênciaparaasqueixas.Nãoasentendeereplicaquandoelasexistem.Relativizatudo,nãoéquenãodêimportânciaàscoisas,nãodeixaéqueomundogireàvoltadelas.Afastaaschatices,custemelasoquecustarem.Aliásnunca foi forreta,muitomenosquantoàvida.Nãosearrependedenadadoquefezeoquenãofez foi sóporquenãoquis.ComFeio,osproblemasnãotêmproblemas,eledescomplica,torna-osbanais.Tudopodeserumatretaseassimoquisermosver.Éum“bacano”esabedisso.

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Raramenteovemoscomabarbafeita,éessaaintenção.Osseusóculos,comarmaçõesdetodasas cores, f icampelopescoço amaiorpartedasvezes.Ocigarroessenãoolarga.Naorelha,nabocaounopensamento.Háummêsten-toudeixardefumar,masovíciofoimais fortequea sua teimosia.Háquarentaanosquefuma,enãosabeporquantosmaisiráfazê-lo.Sesoubessenunca teriacedidoàinsatisfaçãodaprimeiraprova.Trabalhouemdobragensdedesenhosanimados,foiprofessordenovasgeraçõesde actores. Nuno Lopes é um deles,foiFeioquemoensinouatrabalhar,anuncaparar.Deu-lhe liçõesde teatroedevida.Hojeemdiaviveoseudia-a-dia,entre aquiloque a vida lhe vai impondoeoqueelequerfazer.Fezrádio,televisãoecinema,masénopalcoquesesenteútil.QuandonãotemquepassarpeloCurryCabral,AntónioFeiovaiparao teatro.O seumaiordesafio é apurarospormenores.Àsvezessentenecessidadedesubirparacimadopalcoeexemplificar.Enquantoence-nador, tenta tornaro teatronaquiloqueaspessoasquerem.Nãogostadeolharparaumacadeiraesentirqueestávaziaporsuacausa.Otempoensinou-lheanãofazergrandesplanosparanada.Tudooqueosoutrosfazemquestãodeplanearporsitemum“emprincípio sim”como resposta.Opróximomês trar--lhe-áafrescurados55anos.Esperaláchegar.Desdepequenoque achavaque as pessoasmorriamaos50.Agoraquando selembradisso,alémdesorrir,tentapensarquejápassouolimite.Ocancronopâncreasquedescobriuhácercademeioano,fá-loviverentreosaltoseosbaixosdavida.Apesardea lembrançadadoençalhebateràportatodasasmanhãs,fazquestãodesorrirparao “bicho”.Está a aprender a ter cancro.Temomesmomedoquetodasaspessoas,mastentaolharparaooutroladodahistória.Otempoagoraparece-lhemaior,eleparecemaiscapazdeoaproveitar.Aforçacomquetemencaradoaspossibilidadeseasimpossibilidades,tornaram-noaindamaisadmirável,portodososqueorodeiameulti-mamentetêmsidomuitos.Hojeosseusplanosresumem-seaoamanhã.Aindaquerfazermuitacoisa,conhecermuitagente.Masnadaacorrerpara issopreferenãoo fazer.Asuaúnicapreocupaçãoéterfeitoalgodeinteressante.Nãoteveumavidamá,disso temacerteza.Amortenãooassusta,não lheapeteciaterqueadeixartornar-seprotagonista,massetiverqueser,“paciência”.

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Albert CamusEntre o Sol e o Mar

Olhoà volta.Maisdedez livros amachucadospelosdedos enca-valitam-sena secretária, entrepapéis epequenasnotas.A canetapermanecepousada, o somdas teclasdo computador cessou, oscigarros vão-se consumindo como tempo, a canecade café estávazia e adoce vozde JoannaNewsom fogedas colunas a cantaracamusianaThisSideofTheBlue.Desenhocurvasnomeupequenoquartoàprocuradealgo.Nãoseibemoquê.Camuséassim.Revolta.Incita. Apaga. Desvaira. Quebra-me em dois. Deixa-me mudo,amastigarpensamentosfumegantes.AmúsicadeNewsomacabou.Nosilêncioprofundoecrepitantedanoite,procuroaspalavras.Umlivroabertochamapelosmeusolhoscansadosedá-meacintilaçãointelectualqueprocuravaemAlbertCamus.“Nailusãodavida,eisohomemqueencontraassuasverdadesequeasperdesobreaterradamorte,pararegressaratravésdasguerras,doslamentos,daloucuradeinjustiçaedeamor,dador,enf im,aessapátriatranquilaemqueaprópriamorteéumsilênciofeliz.”(CAMUS,2007:13)OsilênciofelizsacudiuCamusdestemundodehumanosnaprimeirasegunda-feirade1960.Morreuafitarosol,deitadoentreaschapasdeumFaceldesventradoporuma árvore.Morreuumescritor emorreuumhomem.Umhomemqueaclamouoamorquetinhapelavidaequeolhoudeolhosbemabertosparaa luzeparaamorte,agarrandoomundocomosseusgestos.Umhomemaquemadorapenasfezengrandecerasuasededeviver.

A criança e a misériaUmapartamentopequeno,umamãeanalfabetaedeouvidosatadospela surdez,umpaimortonabatalhadeMarne,o fulgordo soldaArgélia,o azulpuroe líquidodomareumamiséria sentidaeamadaporCamus.Foiessaa sua infância.Foiesseo fiodeouroquealumioutodaasuaobradeumocultoesplendor.NessaArgéliapovoadaaoacaso,conquistadeaventura,apareceuohomemqueasentiumaiscruelmentedoquequalqueroutro. Juntodasuamãe,enraizouumaintimidadefeitadeaceitaçãoedeconstrangimento.Juntodomaredosoldasuaterra,lavrouumforteeincessanteamor.FoiemArgel,precisamentenobairrodeBelcourt,ondeaconcepçãodeInfernoéumamávelgracejo,queoescritornasceu,deolhospostosnamisériadoshomensenabelezadavida.Avidadeoperário,talhadaparatodasascriançasqueganhavambigodenospobresbairrosdacapital argelina,nãochegouàsmãosdeCamus.O seuprofessor,LouisGermain,viuemCamusumalunodotadodeumaexcelênciarara.Tirou-odosamargosfadosfabrisearranjou-lheumabolsa.OsolhosdeCamus,jácheiosdesoledemar,foramabrindocadavez

mais.Afazerfiguradeindigentenumliceuparaburgueses,foi-seapercebendodasdisparidadesentreosdoismundosondeconviviatodososdias.Bairrodospobres,escoladosricos,bairrodospobres,escoladosricos,miséria,ostentação,silêncio,sabedoria.Noliceu,distantedosbairrospobresdeArgel,Camusganhouumcarinhoespecialpelaboladefutebol,ensinando-lheassuasúnicaseverdadeirasliçõesdemoral.Todavia,foinumdomingodefutebol,envergandoacamisoladoRacingUniversitário,queCamusreceberaumasentençaperpétua.Nessedomingo,depoisdeumjogonervosoeaguerrido,Camus,ensopadoemsuor,caiudecama.Sofreumalesãopulmonar.Acabatuberculoso.Aos16anosadoençaataca-osemelepoderdefender-se.Ficoumaisforte.Comadoençaaacompanhá-lo,opequenoAlbert,queentretantoseriasenhorCamus,senteaneces-sidadede secompletarantesdamorteaparecer, espreitandopelosolhosdeumatísica impiedosa.NobairrodeBelcourt,abraçadoàmiséria e à liberdade resplandecente,Camusmenino.NobairrodeBelcourt, abraçadoàs alegriasbruscas e à tuberculose,Camushomem. Agarrou desde então a crença de não renunciar nuncaàfortunadeexistir.

A ResplandecênciaA tuberculose foi aparecendoao longoda suavida, cortando-lhecaminhosesonhos.Adoençacegou-o,deixou-oimpotentedeseguiraluzdassuasidentificaçõespaternais.Impediu-odejogarfutebolcomoLouisGerman,de serprofessor como JeanGrenier (o seumestre)edecombaterosalemãescomooseuprópriopai.Numquartocomumaarcaqueserviadecamaedearmário,acom-panhadade livros empilhados contra a parede, apareceCamus.Depoisdobacharel emFilosofia,depoisdapaixãoporMalraux,Gide,Proust,Dostoievsky,Stendhal,restavaumCamussucumbidoaumapromessanãocumprida.Aos25anoseraumhomemsozinho,entregueàpobrezadeumquartopequenoedespidodemobília,nacapitalargelina.Paratrás,ficouumcasamentoefémero,aexpulsãodoPartidoComunista,arejeiçãodasuaentradanaUniversidade,odespedimentodohumildeempregoquematinhacomoescriturário.Umeruditoabaixodoproletariado.Esquecido.Foinestas condiçõesqueo f ilhopródigodaArgélia começaria acrescer e a retribuir todas as esperançasquenos seusombros sepousaram.EntranoAlgerRépublicainem1938e,comojornalista,encetaumacarreiradifícil e escandalosa,descortinandocasosdodesenraizamentodosárabesdasuaprópriapátria.Nestaaltura,Camusnãofazqualquerdiferençaentreaescritadolivroedojornal.Nãofaz,nemquerfazer.Escrevesemobscuridadenemcomplacência.

texto: João Gaspar

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Anos mais tarde, distante da resplandecente Argélia, Camusacaba O Estrangeiro enquanto a Wehrmacht desf ila, soberana,nosCamposElísios.AndaporFrançaaosabordasondasdaresis-tência, acompanhandoa redacçãodoParis-Soir.Comaofensivaalemãcomobandasonora,oMal-EntendidogerminaporentreoabsurdodeCamusenquantoasprimeirasfrasesdoMitodeSísifojáchicoteiamasuacabeça.Acabaporregressaràterraqueoviucrescersemdinheironemplanos.DepoisdapublicaçãodeO Avesso e o Direito eNúpcias em Argel,O Estrangeiromaterializa-see saicorajosoem1940,entregandoumheróitrágicoàsociedade,paraaajudaravenceroseudestino.DepoisdeO Estrangeiro,CamussobeaoOlimpoliterário.Apesardacríticaqueoisoladosintelectuaisfranceses,apósolançamentodoHomem Revoltadoem1949,CamusrecebeoPrémioNobeldaLiteraturaem1957.Asuaobraf icaimortalizada.Asuarevoltaéaclamadaeaplaudida.O Primeiro Homem é o seu último livro. Um livro inacabado,escondidoentreas suasmãos já semvida,naquela segunda-feiratraiçoeirade1960.Ohomemmorre,maso silêncio feliz que seabraça aos seusolhos curiososdeixapara trásum rastode sons,

rasgados entre amiséria e a revolta, entreo sol e omar, entre asolidão e a felicidade, entre aHistória e aTragédia.A sinfoniacamusianacanta-seemtimbresinsurrectos,umaGrosseFuguedeBeethoven empalavras, af inadaporpaisagens argelinas em sóisquentesafricanos.“Dentroempouco,quandomelançarnosabsintosparafazerentraroseuperfumenomeucorpo,tereiconsciência(…)derealizarumaverdadeque é ado sol eque será tambémaminhamorte.Numcertosentido,ébemaminhavidaqueaquijogo,umavidaasaberapedraquente,cheiadesuspirosdomaredascigarrasquecomeçamagoraacantar.Abrisaéfrescaeocéuazul.(…)Estesol,estemar,omeucoraçãorebentadode juventude,omeucorpoasaberasaleoimensocenárioondeaternuraeaglóriaseencontramnoazulenoamarelo.(…)Tudoaquimedeixaintacto,nadaabandonodemimpróprio,(…)basta-meaprenderpacientementeadifícilciênciadeviver…”(CAMUSapudMATHIAS,1978:28)Deixo-oentregueàsuapátriatranquila,mergulhadonumaArgéliaondeosdeusesnãoprecisamdeexistir.AArgéliabasta-seasipró-pria,assimcomooseufilho.Camusbasta-seasipróprio…Aamardesmedidamente.Entreosoleomar…

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É frequentemente descrito como psiquiatra, etnógrafo ou activista político, mas sem que estes vários caminhos se cruzem. Até que ponto existe uma assimetria entre estas várias vertentes?Evidentementequetudoestáligado,nãopodehavergrandescom-partimentos estanques. O conhecimento entrecruza-se, o saberé actualmentede talmodo extensoquedif icilmentepodehaverhomensenciclopédicos,peloqueterãodeser subsidiáriosunsdosoutros.Quandoacabeiocurso,naalturaosLiceus,tiveumespaçodeindecisão:CiênciasouLetras?Nalógicadessaaltura,deadoles-cente,chegueiàconclusãodequeosabercientífico,nãosóporsermaisracional,eramaisclaro.Edaíqueopteipelaciência.Medicina,porquê?Porquecontinuaaparecer-meumexercíciodehumanismo,edentrodelaaPsiquiatria,porserumaciênciadegrandepreocupa-çãohumanística.Opsiquiatratemdeserumhomempreocupadoetodasasformasdesaberdãocorpoàsuaestruturaçãoprofissional.Admitimosqueumtécnicodesaúdeouumengenheiroquetêmoexercícioprofissionalqueobriga, amaiorpartedasvezes, a sabermaisdecadavezmenos.NaPsiquiatria,issonãoéverdade.PorquetodooconhecimentolhepermiteconhecermelhoroHomemeassuasformasdeadoecer.

Nasceu em Castanheira de Pêra……SerradaLousã.

… na Serra da Lousã e oriundo de uma família ligada ao trabalho do campo. Poderá estar também aí a origem da sua paixão pela Etnografia?Estácomcerteza,seeudisserqueasminhasorigenssãodascomu-nidades agro-pastoris daSerradaLousã.Mas tambémmarcadapela emigração transoceânica,noBrasil enaAméricadoNorte.Foi, aliás, essa emigração é quepermitiuum certodesafogodevida.Daíque,possivelmente,oencontraressascoisaseocontactarcomessemundo,deruralidade,metivessechamadoaatençãoparaoquepoderia estar, eque está,pordetrásdessas culturas.Destanossaculturarural.

Cedeu a colecção……Sim, foi essapreocupação,demuitonovo,das contradições edos encontrosdaHistória,quepassa tambémpelos instrumentosmusicaispopulares,quetambémdãoumtestemunhodastradições.Entregueiumespóliopara servirdebase aummuseude instru-

texto e fotografias: João Miranda

Ninguém luta para defender valoresque não ajudou

a construirEntrevistaaManuelLouzãHenriques

Sentadonumcanto saladeestar, entreumadezenadediscos eumvelho realejo,ManuelLouzãHenriques,de roupãoenfiado,observaatentamenteomaçodeSGGigantequejazsobreamesa.Nasquaseduashorasdeconversaqueimamaisde30cigarros.Sãoelesquelheservemdebatutaamarcaraspausasdodiscurso.Detentordamaiorcolecçãoportuguesadeinstrumentosetnográficos,cedidaàCâmaraMunicipaldaLousã,ondeemprestouonomeaummuseu,omédicoaindaseguraofiocondutordasmúltiplasfacetasqueramificamnoseupercurso.

8 cadernosdejornalismo 05 Entrevistas

mentospopulares,portuguesesenãosó.Africanos,quenosfalamdepartedeumimpério,masquetambémfalamdeencontrosetno-musicais,quesãomaisevidentesnamúsicaedançaportuguesadoque se imagina.Mas épreciso verque essa colecção é estudada,nãoobedeceaumpurocoleccionismo,nabasedotercoisas.Efoiarranjadacomapreocupaçãodequeviessea ser socialmenteútil,paraquemaquisesseveresobretudoestudar.

Na tese de mestrado de Ana Valadas, esta refere um arrependimento de Louzã Henriques por ter cedido o espólio e pela forma como a Câmara Municipal da Lousã o encara.Não tenho arrependimento.Oquenão tenho édisponibilidadeparapoderestarsempreemcimadessascoisas.Porquevivodomeutrabalho,quemeocupaomeu tempo.Agora,omaterialdeve serumbempúblicoeninguémestáemmelhorescondiçõesdeotrans-formarembempúblicodoqueasautarquias.Sóque,semcairemexigênciasexcessivas,acolecçãodevesermaiscuidadaeconservada.Oqueinfelizmentenãotemacontecido.

Se as exigências não forem atendidas, defende um novo caminho para o museu?Achoque esse caminho temde ser aperfeiçoado,pelasdiferentesformas de saber que nele se encontram. E ao mesmo tempo, asautarquias têmde investir nessesmuseus, escolhendopessoas eprofissionaiscompetentes.

A tese refere uma colecção de 3000 peças……Éumnúmeroumbocado exagerado e quenão énecessário.Algumas centenas…Mas éumacervoquehoje é impossível deconseguir, com as alterações que houve na sociedade. Há umaoutrapartequeaindatenhoemmeditação,queéotemadoacessoque o cidadão vai tendo, ao longodo séculoXX, às novidades.Especialmente, aquiloque jápodem ser consideradasmáquinas:rádio, grafonolas,máquinas de costura.Que vão entrandopelacasado cidadão comum.Por exemplo, amáquinade costura foide importância fundamentalpara a independênciadasmulheresem relação aosmaridos, e isto ref lecte-sena conjugalidade enamudançadehábitosecostumes.

Como é que avalia hoje o panorama do estudo da Etnografia em Portugal?Jáháumconjuntodeestudos,quesedevemamuitagente,masemquesedestacaogrupodoErnestoVeigadeOliveiraedaquiloaquechamaramos “TrêsMosqueteirosdaEtnografiaPortuguesa”,queeraopróprio,oFernandoGalhanoeoBenjamimPereira.Bateramtodooterritórioportuguês,estudandoasalfaiasagrícolas, instru-mentosmusicais,velhastecnologias,asmáscaras…Podemosdizerquepercorreramtodaarealidadeétnicadopaís.Estãoaliasbasesdetodooestudodofuturo.

E estão a ser desenvolvidas, essas bases?Creioquesim.

Há pouco tempo, António Arnaut referiu na apresentação de um livro que Manuel Louzã Henriques merecia um programa televisivo.

Considera que fazem, hoje, falta na televisão pública programas como “O povo que canta”, do Michael Giacometti?Fazemfalta,defacto.Nãonecessariamentecomigo,quenãotenhotempo,nemdisponibilidade.Aculturapopularestámuitodesleixada,principalmenteaoníveldastelevisões.Quasenãotemlugar.Mesmoosranchosfolclóricos,quenemsempreassentamemcritériosmuitoescorreitos,nãotêmtidoapresençaquelhesédevida.

É inevitável estabelecer um paralelismo entre o interesse pelas raízes e tradições do povo português e a sua militância no PCP.Voltandoumpoucoao iníciodaconversa, tudo isto:omeu lavorprof issional; aminhapreocupação coma etnograf ia, onde creioqueestáa“alma”[aspaspedidaspeloentrevistado]deumpovo,easminhasorigens, tudo isto estádentrodoque foramasminhaspreocupaçõesdeordemideológicaepolítica.Oquemaisumavezacentuaquetudoestáligado.

O livro de Teresa Carreiro, sobre a vida da República Palácio da Loucura, refere que já era militante do PCP em 62. Quando é que se dá a sua adesão ao partido?Essascoisaspretendemsempreumarespostarápida,enormalmentenãoéessaarapidez.Nummundodeclandestinidadeeperigosidadepolítica,aspessoasvão-seaproximando.Nãoháumcartão.Háumaaproximaçãoquesevemdandodesdeofimdaminhaadolescência,eháumestágioquesedánoMUDJuvenil,sempapéisescritos,hácompromissos,participações,maisoumenoscorajosas.

Mas quando é que se dá esse primeiro contacto?Aos19,20anos.QuandoresolvooptarporMedicina.Ocurso,jáoatravessotodocomumgrandecompromissopolítico.

O que é que leva um jovem de 19 anos, durante aquele regime, a aderir ao PCP? Oproblemaéeste:eu tenhoumacerta raivinhapessoalaos indi-víduossaídosdopovo,equetendoconhecidoavidadopovo,porascensãodeclasse,nãosósedistanciaramcomoquasetiveramódioemrelaçãoàs suasorigens, incluindoopróprioSalazar.Edepoisháofenómenodaconsciencializaçãodavidaedomundo,quenosvaipermitirtomaropçõesdeordemhumana,políticaesocial.Mastambémconhecimuitagente,quetendosidocriadaemberçosdeouro,fizeramopçõesdeesquerdaautêntica.

Em 62, é preso, no início da Crise Académica, mas na qual não chega a participar.Sealgumacoisaeu tinhaavercomodesencadeamento, já estavapresoquandoela rebenta.Aliás,não sei atéqueponto a vagadeprisõesquesedáantesnãotemavercomissomesmo.Naaltura,játinhagrandesresponsabilidadespolíticas.

Teresa Carreira apresenta-o como o estudante que esteve mais tempo preso pelo regime, e que chegou a passar por todas as cadeias políticas. A que é que se deveu esta metodologia, por parte da PIDE, de ter que o passar……Faziapartedaorganizaçãodeles.Haviaosjulgamentosemuitagentetinhaprisãocorreccional,deumano.Aquelesquerecebiam

Entrevistas cadernosdejornalismo 05 9

penasmaiores emedidasde segurança iamparar aPeniche,quefoioquemeaconteceuamim.Mastambémporresponsabilidadespolíticas,nãoerapormeroacaso.Elesnãoeramcegos,nãoé?

Embora não morasse lá, era membro activo do Palácio da Loucura desde o liceu.Porummotivomuitosimples.Emjovem,tocavaguitarra,oqueeraumaformadeanimaçãodascoisas.Eassimestabelecicontactocommuitasgerações,comquemmantivesempreocontactotertulial.

Ainda assim, hoje mantém-se como uma referência dentro da república.Écapazdisso,podeacontecernamedidaemquenormalmentehavia,ouaindahá,umascertasdiscursatas,queaocontráriodoquemuitagentepensa tinhamsempre algumapreocupaçãocultural e,maisoumenosveladamente,deordempolítica.Coisaquepensoquejánãoétãoactualnemtemomesmosentidodessemundosecretoeperigosoquesevivianessetempo.

Foi também esse gosto pela guitarra que o levou à Tuna Académica?Sim,emboraaguitarranãofosseuminstrumentodaprópriatuna,mas alipassei a tocarumbocadinhodeviola,oque estavamaisna estruturadogrupo, e acabeipor,duranteo tempoemque láandei,serooradoroficialdatuna.Depoispasseiparaoteatrodosestudantes,queculturalmenteeramaisinteressante.Tornei-meumgrandeamigodoprofessorPauloQuintela,quetambémeramuitomeuamigo,semcredenciaisnemcoisasdefamílias.

Existia a vontade, por parte do Adriano Correia de Oliveira, de musicar alguns dos seus versos, algo que nunca chegou a concre-tizar. Guarda pena?Nuncafoiumproblemaquemepreocupassemuito.AvivênciadoAdrianovivo-a commágoa,porque foiuma tragédia criadapelaprópriamãodele.Elenaúltimafasedavidaestavamuitodegradado,atédopontodevistaartístico.Enuncaconsegui fazernadadele,apesardesermosmuitoamigos.Segurá-lonostemposdoalcoolismo,nãoconsegui.OAdrianoeramaisnovodoqueeue,atéporrazõesideológicas,estabelecemosumaligação,eledormiaaqui[emcasa],f icavaporaqui…

Em 1966 é formado o GEFAC...…Emtodaaminhavida,aesseníveltertulialdecaféscomaminhageração,tinhabatidoogostopelascoisasdonossopovo,masnãoestivedirectamenteligadoaessaformaçãoque,aliás,tinhacome-çadopor serumgrupodecantaresedançares.Aminhageraçãojásetinhaidoembora,masénaturalquealgumacoisaf icassedoque eudefendia,de tentarmos agarrar anossa culturapopular.OcertoéquedepoisconsidereiqueoGEFACagarrouumafacedacoisaportuguesamuitointeressante.Temnaturalmenteosseusaltosebaixos, sempre lhesprestei a ajudaquemepediram,aindahojesouamigodelesesousóciohonoráriotalvezporcausadisso,oquenãoquerdizerquenãosejanalgumascoisasumcríticoimplacável.Porqueachoquealgunsdeles,ouatétodos,deviamtermaiorcul-turaetnográfica.SesechamamGrupodeFolcloreeEtnografiadaAssociaçãoAcadémica,emboracomoamadores,terãodetermaior

preocupação, aprofundamento e aproveitamentoda artepopular.Concretamentedaqueéteatralizável,oulevadaaespectáculo.Massomosamigos,ecánosvamosentendendo.

Esta ligação ao associativismo, e ao próprio movimento estudantil, advém das responsabilidades políticas da altura?Não.OgrandemovimentoassociativoemPortugal,doséculoXIX

emdiante,dá-sefundamentalmentesobreaégidedamaçonaria,masnãosó.Etodaaesquerdaprocurouteressapreocupação,masnemsempreaconseguindolevaràprática.Atéporquesendoperigosaeclandestina,aorganizaçãodecombatepolíticonãopodiaexpor-seexcessivamente.Maspodiaterumapalavraadizernasassociaçõespopulares,daíque todoomovimento associativo eraum terrenonãosódosprodutosnaturaisdaculturapopularcomotambémdocombatepolítico.

Ao mesmo tempo, era sócio do Ateneu. Não poderia haver aqui uma contradição, sendo o Ateneu mais voltado para a população de Coimbra?Ainda sou. Isso foi uma coisamal interpretadahistoricamente.Sempre houve uma parte da academia que tinha preocupaçõesdeordempolíticaesocial,equeestevecomagentedeCoimbranas suas diferentes nuances, dando a sua colaboração. Existiusempreumpapel,dentrodoassociativismo,quenãoera separa-tista, antes pelo contrário, era de fusão. E não raro, nas coisasqueenvolveramosmovimentospopulares,Coimbratevesempreumagrandeinf luênciaanarquista,massempreesteveestudantadaenvolvidanisso.Não eraumacoisa tão separada comoparece àprimeira vista, embora pudesse sobreviver um bocadinho dosimpulsosdeclasse.Certo,masissoeracomoutragente,porquetambémnuncahouvesóumaAcademia,houvesempreduas.Umaque se comprometia como seupovo, enão estou a falar sódoscomunistas,eoutraquenão,quenofundoassentavanumacertaaristocracia e quenaturalmente se constituíamaioritariamente,masnãoexclusivamente,dedireita.

À luz de tudo isso, como é que viu o processo de luta académica, primeiro em 62 e depois em 69?Aluta temumafasedeenchimentoedepoisdeesvaziamento,quetambémcorrespondeàsformasderepressão.Emplenosalazarismo,opoderestavaenquistadoeexercia-secomtodoodescaramento.Teveoscilações, inclusivecomofimdaguerra,mas logoqueseafirmaopanoramadochamadoocidente,voltaoutravezaterforçaeautilizarassuasformasderepressãosemgrandeslimites.Sóquequandoessarepressãoacontecia,haviaumcertoesvaziamentoealutaenfraquecia,eranecessárioreconstruir tudo,evoltaraoprocessodeenchimento,comtudooquesepodia.Masnapassagemdosanos60,creioquehouvesempreumacontinuidade,quesedeuporqueasformasdelutadeixaramdeser fechadasaosnúcleosderesistentes,maisoumenosclandestinizados.Começaramaenvolverestudantes, curiosamenteatravésdasprópriasestruturaseorganismosacadémicosedaprópriadirecçãodaAcadémica.Alutadava-seaí.Eondesetornoumaisvito-riosa foiatravésdasRepúblicasedoConselhodeRepúblicas,ondeaspessoascomeçarama lermais,a ter influênciasmaisdirectasdereferênciasideológicasedizendo-o.Acontinuidadedalutaestudantil

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játinhanamaiorpartedoscasosumpropósitopolítico,queemdeter-minadaalturapassouaserpredominantementedeesquerda,emboracomalgumasnuances.Foitambémimportanteoesforçodelibertaçãosocialdasmulheres,easuamaiorfrequênciauniversitária.Asrapari-gasestudantescomeçaramadesabrochareaalinharnaslutas,issofoimuitíssimoimportante.Modificouotipodenamoro,derelação,deestatuto,começouaaproximar-sedamodernidade.

Estando ainda ligado ao GEFAC e à AAC, como encara hoje o associativismo académico?Nãotenhoumaconvivênciademasiadointensaparaterumacons-ciênciaplenadoquesepassa,masachoqueoestudanteactualestádetalmodopreocupadocomoseufuturo,quenãoénadafácilqueinvistanumacerta competitividadeescolar,porvezes aténomausentido.Aomesmo tempo,o seu sistema lúdicodeixade ser feitopelasuaprópriamão.Quandooestudantesequeriadivertir,tinhaquecriarosseusprópriosdivertimentos,porqueacidadenãolhosvendia.Nostemposactuais,acidadevendediscotecas,bares...eoestudantejánãotemnecessidadedefazerosseusbailes,defazerassuasfestas,anãosermaistípicasquemantêmarotinadetradição.Masentretanto,tambémháumadecadênciaideológicaquesereflectenaorganizaçãodepensamentoeconsciencializaçãodavida.Nãoéum factorgeral,hávárias cores,masa conf litualidadeacadémicabaixabastantedevidoàordempragmáticanãosódesobrevivência,comotambémumamarcadecarreirismo.

Entre 65 e 74 manteve tarefas e responsabilidades políticas?Mantive semprecontactose laborespolíticos,masnão jápropria-mente coma responsabilidadeanterior, atéporqueasmedidasdesegurançapermitiamqueautomaticamenteapessoafossepresa,semnecessidadedemais.Podíamosdizerqueasmedidasdesegurançapermitiamquaseumapenadeprisãoperpétua,porqueeramreno-váveispelaprópriapolíciapolítica.

E depois de 1974, nunca se desligou do PCP. Ainda acredita naquele ideal de construção de sociedade?Nuncamedesliguei.Acreditoque,no fundo, sóomarxismo, e asua adequaçãoprogressiva aos temposquevão correndo,permitefazeruma leitura escorreitadaHistória eda evoluçãodospovos.Ehá-devir sempreà superfície,porqueagrandeburguesianuncatevedignidademoralparagovernaromundo,há-decriarcadavezformasmaisinjustas.Aprópriaeconomiatendeanãoconceptualizarprincípiosdeéticaedejustiçanoseulavor,evaicriaruminfernoquemais tardeoumais cedo todososhomensde coração eboavontadehão-dedestruir.Enaturalmente,nunca,nemomarxismo,nemosprópriospartidoscomunistas,tiveramapreocupaçãodefazerosgrandesfatos,vestidos,nãomerefiroaosfactos,queistoagoraestá tudomisturado,doshomensdo futuro.Ohomemdo futuroéquetemquefazeroseuprópriovestido.Ehá-deadaptá-lonumfuturoquenãoestátãolongínquocomomuitagentepensa,porqueomundoestáaficaragressivo,injustoeperigoso.

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E não teme pelo contrário, pela agudização desses problemas?Infelizmente,sóquandoháagudizaçõesegrandescontrasteséqueasgrandesmassastomamconsciênciaecomeçamaficaraptasparaqualquerformadeluta.Nogeral,ninguémlutaparadefendervaloresquenãoajudouaconstruir.

E a dinamização da cultura popular pode ser um caminho para isso?Adinamizaçãodacultura,naturalmentedapopulartambém,porseramaispróximadopovo.Masquenãodispensaoutras formasdecultura.

Em 2007, foi um dos subscritores do abaixo-assinado “Liberdade e Democracia” que, entre outras questões, exigia a dinamização cultural, como vincula a Constituição. Que visão tem do panorama cultural actual português?Achoqueapesardetudo,estámelhoremrelaçãoaopassado,masacusa asdificuldades financeiras edeorganizaçãodecorrentesdoquesetemverificadonopós-25deAbril.Alémdealgumaincom-petênciaculturalqueadinamize, juntodopoder,comoumvalorfundamentaleumariquezahumanasemigual.

Até que ponto o cumprimento da actual Constituição poderia ser um passo para a ruptura da situação actual?[AConstituição] temos condimentosnecessários para que issosejapossível,masémuitodifícilquetenhagenteemquantidadee

qualidadeparalhedarcorponalutasocial.JáovelhoLeninecha-mavaatençãoparaumacoisa:sóaclassepopularécapazdelutarpoderosamenteporvaloresquenão sãoos seus.Épreciso tempo,consciencializaçãoeparticipaçãoactivanoplanopolítico.

Não existe muita informação, no espaço mediático, sobre Louzã Henriques. Faz por isso?Não.Nãoécoisaquemeinteressemuito,atéporquesouumbocadocontra essa criaçãodebalõesde “eu, eu, eu”.Souautenticamentecontra.Mastenhotidomuitasparticipações juntodomuseu,queforampublicadas emuitomal escritas,umavezque foramtrans-critasdegravações.Tambémfaçoumavida,dopontodevistadapraxis,muitorotineira.Equandovouaqualquercoisaéporquesouchamado,nãomevoulámeter.

Olhando para trás, sente que tomou o rumo certo?Acho que sim. Mudava só algumas coisas. Se tivesse tido umacarreira médica, que não tive possibilidades de ter, teria talvezumadisponibilidadede tempoparamais coisas e outro tipodecoisas.Mas aceitei essa hiper-ocupaçãodo tempo.Hoje já não.Éumproblemadavelhice.Talvezdesenvolvessealgunstextoscompretensãoliterária.

Ainda falta encontrar peças para a colecção Louzã Henriques?Falta.Efaltarásempre.Masasfundamentaisestãolá.

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texto: Tiago Martins

“O conhecimentonão é neutro”

EntrevistaaJoséManuelPureza

Noespaçodemêsemeio,deilustredesconhecidodaopiniãopública,passouaumadasmaisfortespresençasnoespaçopolíticonacional.Oseupercursofulguranteéemtudoatípico.Aténomodocomolidacomassolicitaçõesdequeéalvo:aindaatendeotelefoneàprimeiraerespondeàsmensagensquelhedeixamnoseufacebook.QueméJoséManuelPureza?Oquepensadapolíticanacional?Equeleiturafazdasquestõesinternasdoseuprópriopartido?

Este seu interesse pela política, quando surgiu?Nasceusobretudono25deAbril,quecoincidiucomaminhaado-lescência.Digamosque eume identif iquei e ganhei identidade apensarnoprimadodacausapúblicaeapolíticaapareceu-mecomooveículocertoparaisso.Hojeemdia,osadolescentesidentificam-sedemuitasoutrasmaneiras.Apesardetudo,achoqueacausapúblicacontinuaa terumpesomuitograndena formaçãode identidadesdamaltamaisnova.Porexemplo,agrandedisponibilidadequetêmparao trabalhohumanitárioouvoluntárioéumaoutra formadelhedarimportância.

Participou no associativismo estudantil?Participei,masnuncaemcargosdirectivos.Achoquesempre tivealergiaacargosdessanatureza,apesardeistoparecercontraditório.

Que outros interesses tinha enquanto adolescente?(Risos)Tinhaosinteressesquequalqueradolescentetem:despertardashormonas, tudooque isso envolve,umgrande interessepelaliteratura, sobretudopelade f icção.Hágrandes textosque linaalturaquememarcaramparasempre.Etinhatambémumgrandeinteressepelamúsica,pelasgrandespropostasmusicaisderupturacomoestablishmentnaaltura.

Ambicionava chegar onde chegou?Ambicionava chegaronde cheguei enquantohomem.Nunca tiveambiçõesdefazercarreira,massempreambicioneitrabalharnumacoisaquegostasse.Sempresonheiterplataformasdeempenhamentocívicoalargadas e sempreambicionei termuita liberdade.Sempreprocurei encontrar espaçosde respiração, forade ambientesdis-ciplinados, canónicos, sejanospartidos, sejanas igrejas, sejanas

universidades…Seaperguntaémázinhanosentidodeambicionarchegar a algumpostode relevopúblico, issonunca ambicionei enãoambiciono.

Como é que de ilustre desconhecido da opinião pública passa a líder parlamentar do Bloco de Esquerda?Porresponsabilidadedequemmeescolheu.Quemmeescolheuachouqueesseilustredesconhecidotinhacompetênciaparadesempenharestecargodeumaformaeficiente.Portanto,aresponsabilidadenãoéminha.Eunãomecandidatei,masaceiteiaescolha.

Como é que são os seus dias na Assembleia da República?Uff ! (risos). São dias de vertigem, com duas ou três grandespreocupações.Umadelaséestaratentoàsiniciativasdasoutrasforçaspolíticasparaverquaisdelassãosusceptíveisdenegociaçãoequaisdelasnãoosão.Depois,umaoutra,éapreocupaçãocomo que se passa fora do Parlamento. O Parlamento é tão absor-venteque,porvezes,perde-seanoçãodoquesepassaláforae,no entanto, ouvir as notícias, ler os jornais, saber o que está aaconteceréabsolutamentefundamental.Poroutrolado,otemponoParlamentoémuitopreenchidocomtrabalhoemplenáriooutrabalhoemcomissões.

Quais são as principais dificuldades pelas quais tem passado?Negociar é sempreuma tarefamuitodifícilporqueexige f irmezae,aomesmotempo,margemdeabertura.Depois,háumasegundadificuldadequeé“pôrarender”ostalentosde16deputadosenemsempreéfácil:saberencontraromomentocertoparaapessoacertafalarouintervir,ouperguntar,ou,ainda,coordenaras iniciativaslegislativasedefiscalizaçãopolíticados16deputados.

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E ainda tem tempo para si?Tenhomais tempodoque tinha antespara algumas coisas.Porexemplo,paraaleitura,porquevoudormirforadeLisboaeutilizoometro.Nessascircunstânciastenhomaistempoparaleremuitomenos tempoparaoutras coisas.Tenhomuitomenos tempoparaaminha família e isso faz-memuita falta.Tenho tambémmuitomenos tempopara a concentração com tranquilidade,para saberoquesepassanomundo;émuitosoboímpetodanecessidadedomomento,muitomenospausadoeref lectido.

A sua carreira académica é mais conhecida pelos trabalhos na área da Sociologia e das Relações Internacionais. No entanto, começou por se licenciar em Direito…Éverdade.Licenciei-meemDireito,écerto,masnuncaquisexercernenhumadaquelasprofissõesquenormalmentelheestãoassociadas.Advocacia,magistratura,notariado,nuncaquisexercerisso.EntreiparaDireitocomumobjectivo,que foiodeviraestarpróximodadiplomaciae,porisso,rapidamentemeapaixoneipeloDireitoInternacional.Edepoistiveaoportunidadede,logoquetermineio meu curso, trabalhar na academia como professor, primeirona Universidade Nova de Lisboa e, depois, na Universidade deCoimbra, justamentenessa área,deDireito Internacional, Insti-tuições Internacionais,Relações Internacionais.Portanto, esta éumaevoluçãodequemolhaparaoDireitocomoumaferramentadeintervençãosocial.

Então, posso depreender das suas palavras que a sua carreira académica sempre adquiriu uma forma de intervenção política…Sim,semdúvida.Eusempreacheiqueoconhecimentonãoéneutro.Oconhecimentopodeedeveserobjectivomasnãodeveserneutroporquetodooconhecimentoqueproduzimosinf luenciadesdelogoonossoolharsobrearealidadee,destemodo,inf luenciaaprópriarealidade.Temos,portanto,aobrigaçãoéticaecientíficadeproduzirconhecimentoqueintervenhanosentidodecorrigirdesigualdades,decorrigirinjustiças,denosdarhorizontesdefuturomaisagradáveis.ComeçahojemesmoacimeiradeCopenhagae,justamenteaí,estáumaformadeconhecimentonaáreadasciênciasdoambiente,dasciênciasnaturais,produzidaaolongodeanosporimensoscientistas.Hojeelapermiteolharparaumproblemasocialdamaiordimensão,quesãoosdesequilíbriosambientaiseinterviraíparaoscorrigir.

E como é que faz a viragem da Sociologia e depois para os Estudos para a Paz?Porumarazãomuitosimples.NuncaquisolharparaoDireitocomoumaáreaemsimesma,massimcomoumutensíliodeintervençãonasociedade.ASociologiaaparececomoalgocujouniversoémuitomaisamploqueouniversodoDireito,porquenosmostraofuncio-namentodassociedadeseosfundamentosprofundosdemotivaçõespessoaisecolectivas.EcomoofiznaáreadasRelaçõesInternacio-nais, semgrande surpresa, acabeipor encontrarnosEstudosparaaPazumaformadelerasRelaçõesInternacionaisdeumamaneiracomprometida comumcertovalor, comprometida comumcertohorizonte.E essehorizonte éodaPaz,quenão seja apenas adapazdasarmascaladas,masquesejaadajustiçasocial,adajustiçaeconómica,daautonomia…OsEstudosparaaPaz sãoumapeça

destatrajectóriadetudooqueforamopçõestomadasaolongodeumavidaquesematerializanoterrenocientifico.

Num dos seus livros, Fogo sobre os Media, faz a distinção entre Jornalismo de Guerra e Jornalismo para a Paz. Quais as principais diferenças?Temosumatradiçãonaáreadojornalismoqueéadeumdiscursosobre aguerra feito,nãopor repórteresdeguerra,porque esses eessassãoaquelesquetêmaoportunidadedever in locooabsurdodos conf litos armados.Nãome estou a referir a esse jornalismo,massimàquelejornalismododia-a-dia,quetrivializaasviolências,quequaseenaltece socialmenteoadversarialismoecriacondiçõesde senso comumparaque,mais tardeoumais cedo,umaguerrapossaseraceitesocialmentecomoaúnicasaída.OJornalismoparaaPazéexactamenteaqueleque,aocontráriodisso,secomprometecomovalordaPaz.

Este enaltecimento pode também ser aplicado à própria cobertura noticiosa da política?Absolutamente.

Tem vindo a tornar-se protagonista assíduo nos media. Que considerações tece à cobertura noticiosa da prática política pelos media nacionais?Nestemêsemeio, tenho tidouma relaçãopróximacomessa rea-lidade.Metemuita impressãoaobsessãopela superficialidadequemarcamuitasdasagendasnoticiosas.Nãoestouadizerqueissosejaresultadodaopçãodosjornalistasqueestãonoterreno.Osrepórteresseguem,evidentemente,umaagendadeterminadapelasdirecçõesdeinformação.Poroutrolado,tambémsesabequealimitaçãoeconómicanosmeiosdecomunicaçãosocialdeterminaredacçõescadavezmaisreduzidasemqueosjornalistassãoempurradosparatarefasmultifun-cionais.Istonãofazsentidoedeterminaumagrandesuperficialidade.Estavem,acimadetudo,dafaltadetempoparareflectirporpartedosjornalistasedafaltadememóriaqueistoimplica.Quemvaihojecobrirumaactividadequalquernãoconsegueestabelecerosnexosentreaquelefactoeumasériedeoutrosqueforampassandoequedãosentidoàquilo.Nãodiscutoacompetênciadaspessoasporque,dopontodevistatécnico,serãomuitocompetentes.Aliás,dou-mediariamentecomjornalistasdamaiorcompetênciaprofissional.Mascreioqueàcoberturanoticiosadaactividadepolíticafalta,sobretudo,umagrandememória.Faltaessetempoparareflectir.NoParlamento,àsvezes,passam-secoisasabsolutamenteinexplicáveis.Àvoltadeumpequeníssimoerroprocessualéumaagitaçãobrutal,éumafeiraquenãopodeimaginar.Todososcanaisdetelevisão,todasasrádios,todososjornaiscomosmicrofonesapontadoseaquilonãotemimportânciarigorosamentenenhuma!Éafebredoimediato,doefémeroecreioqueissonosempobreceatodos.

Crê que se joga também com esses factos para desviar as atenções do que é discutido?AchoquefoiChomskyquedisseumavezque,naconduçãodaagendamediática,sejogasemprenahipervisibilidadedeumascoisasparagarantirainvisibilidadedeoutras.DuranteaGuerraFria,agrandecoberturaquesedeuadeterminadosconf litospermitiu,porexem-

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plo,invisibilizaroutros.NinguémsabiadeTimorporqueosfocosmediáticosseconcentraramnoutrasáreas.Napolíticanacionaléamesmacoisa.Aquiloqueéhipervisível,invisibilizaoutrasgravidades.Precisamosdeterumaatençãomuitograndesobrerealidadessociaisquesãomarcantesnopaís,comoéapobreza,afaltadehorizontesdagentemaisnova,arealidadedaprecariedade.

Considera a actual cobertura noticiosa como uma fonte de distorção da realidade social?Emalgumamedidaé.Masnãoquerocomistoestaradizerqueétudoperverso.Achoquetemessadimensãoequeosjornalistasmaisconscientes,enquanto,cidadãostêmrealmenteessanoção.Tambémmepreocupaque,aodar-segranderelevoapequeninascoisas,sepossacontribuirparaumadescredibilizaçãodapolítica.Nãoquerdizerqueospolíticosnãoseponhamajeito!Todosnós,semexcepção.Masachoque,justamenteporhaverpolíticosquevivememfunçãodosmedia,seriabomqueestestrabalhassemumaoutraagenda.

As acções de campanha do BE são, regra geral, pautadas pela fraca massa humana que as envolve, optando-se muitas vezes por as ocultar com acções simbólicas como ir dar um passeio de barco ou de helicóptero. O que é que falta na estrutura do BE?Asváriasforçaspolíticasescolhemestratégiasemfunçãodaquiloquelhesconvémemcadamomento.Sinceramente,nãoseiseumpasseiodebarcoéumaprovadefraquezaeumaarruadaumaprovadeforça.Achoquecadavezmaisumaarruadaéumaliturgiafeitadecoisastotalmentepostiças.Olhandoparaasúltimascampanhaseleitorais,vejoqueasgrandesconcentraçõesderuasãoquasetodastrazidasdecamioneta,comalugueresdeprimeirosandaresparalançarconfettis.AquelaspessoasqueestavamnasvarandasemCoimbrasãoexacta-menteasmesmasqueestavamemSantarémpassadasumashoras,ouqueestavamemBragaumashorasantes!Portanto,nãoseiseumpasseiodebarco,umaconversacompescadoresouumavisitaaumcentrosocialéalgoqueprovefraqueza.Umacoisaéóbvia:oBlocodeEsquerda temmenosmilitantesdoque têmosoutrospartidosparlamentares,comaexcepçãodosVerdes.Logo,procuramosnasnossasacçõesdarmaiorvisibilidadeàscausas,independentementedetermosmuitaoupoucagente.

Se não fosse a importância conferida pelos media, as acções de campanha do BE corriam o risco de ter um impacto reduzido na opinião pública?NãocreioqueissoseapliqueaoBloco.Creioqueacapacidadedetrazerparaodebatepúblico certas causasporpartede todosospartidos é sempre intermediadapelosmeiosde comunicação.OBloconãofazdosmeiosdecomunicaçãoumacompensaçãodasuafraqueza.Ouentão,todosfazem.Veja-seaquiloquesepassacomoPSeoPSD.Nãoháqualqueriniciativaqueganherelevosocialpelosseusméritospróprios,semintermediaçãodosmeiosdecomunicação.Essaéumacondiçãodetodasasforçaspolíticas.

Sem os media, o BE teria hipótese de ser a força política em que se tornou?UmdossegredosdosucessodoBlocofoiacapacidadedeevidenciaraproximidadecomcausasqueestavamcarentesdeumaforçapolítica,

que as representassedemaneira f irme. Isso faz-sepelosmeiosdecomunicação? Faz. E o Bloco fez bem. E saber casar interessessociaisefectivoscominteressemediáticonãoéqualquerumqueécapazdefazer.Issonãoénenhumpecado,éantesumserviçoquesepresta.Agoraoqueeunãoaceitoéalgoquepodeestarimplícitonapergunta:que“oBlocoéumprodutodosmeiosdecomunicação”.Nãoéverdade.OBlocoétãoprodutodosmeiosdecomunicaçãocomooutros.OBlocoé,acimadetudo,produtodacompreensãoqueaspessoastêmdequeanossaagendaeanossainsistênciaemcertostópicosestácerta.

É a força do BE fruto da conjuntura actual?Nãocreio.Vejabem,oanúnciodahecatombedoBlocojáfoifeito“n”vezes.Logoqueapareceutinhanascidoparamorrerdoismesesdepois.Eraumcasamentoentremaoístas,trotskistaseex-comunistas,logoaquilonão iadar.Deu, tivemosdoisdeputados,depois três,depoisseis,depoisoitoeagoratemdezasseis.Ecrescemosemmuitasconjunturasdiferentes.CrescemoscommaioriarelativadoPartidoSocialista,crescemoscomGovernosdedireitaecommaioriaabsolutadoPartidoSocialista.AsváriasconjunturasforamjásuficientementediferentesparamostrarqueaexistênciadoBloconãoémeramentecircunstancial.Éumaquestãomaisfundadoqueisso.

Mas como pode uma força sobreviver se, como demonstraram as autárquicas, não tem implementação a nível local e regional?CreioqueadinâmicapolíticaemPortugalnãoestáobrigatoriamentesujeitaaospartidosdemassasclássicos,queassentamnumaestru-turaemredepesada,local,quedepoisvaicrescendodolocalparaonacional.Nãotemqueserassim.Averdadeéqueanívelinterna-cionalháforçaspolíticasquetêmgrandedimensãonacionalequenãotêmsustentaçãolocalforte.EsseéjustamenteocasoactualdoBloco.AgoraéóbvioqueasautárquicaslançamaoBlocoumdesafioenormequeéodesertambémumaforçapolíticacomcredibilidadeparadiscutirasagendas locais.Ecreioqueestes resultados,dessepontodevista,denotamgrandefragilidade.

Porquê estes resultados?Têmessencialmenteduasexplicações.Aprimeiraéadequeoelei-toradoentendeu,sejaàdireita,sejaàesquerda,manternoessencialoestablishmentpolíticolocal.FoiassimemCoimbra,noPorto,emLisboa.Maisainda,houveumagrandetendênciaparaabipolarização.Emterceirolugareacimadetudo:oBlocomostraassuasfragilida-desemtermosdeimplementaçãolocal.Nósnãotemos,nestaaltura,salvocasosraros,capacidadedeapresentaçãocredíveldepropostasdecarácterlocal.Estassãoasprincipaisexplicações,nãoháqueevitá-las.

Faz parte da estratégia do Bloco inverter esta situação?Evidentemente.Temosalgumtempoànossafrente,masevidente-mentequeumageraçãode interlocutores locaisnão se formaemquatro anos.Éumprocesso longo.Asoutras forçaspolíticas sãoestáveisdopontodevistalocalporquetêmumaimplementaçãofeitaaolongodedécadas.Portanto,nãovaiseremquatroanosqueistovaiacontecer.Agora,achoquefazemosbememinvestirnaforma-çãoeinformaçãodequadroslocaisparaque,apoucoepouco,vãoganhandocredibilidadeaosolhosdoeleitorado.

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Daí os candidatos autárquicos serem tão jovens…OBlocoéumaforçapolíticacomumaestruturaetáriamuitoclaradessepontodevista.Énormalquehajaumapresençafortedemaltamaisnova,atéporqueéessacamadaqueaderecommaisevidênciaàspropostaspolíticasdoBloco.ApesardenanossaDirecçãoPolíticanacionalhaverumatendênciaparaageraçãodos50anos,éverdadequetemostidosempreumagrandepreocupaçãoemrejuvenescerosnossoquadros.

É isto um plano estratégico a longo prazo?Achoqueéumbocadinhopretensiosodanossapartepensarnessestermos.Háumapreocupaçãocomessaquestão,issohá.OBlocotemcrescidosistematicamente,masocrescimento,apartirdedeterminadomomento, lançadesafios aumacerta estruturação.Nóspodemoscrescermuitorapidamente,masécomoaquelascriançasquedepoissetornamfrágeisdopontodevistafísico.Porisso,temosdeteressecuidadoemcriarmúsculo,emcriarossaturafirme,talcomoumapessoaquecresce.Nãoé,portanto,umplanoestratégicomasumapreocupaçãoparaqueanossacontribuiçãonãoesmoreça.

Não considera que o BE poderia ultrapassar esta fraca represen-tação a nível local através de coligações com o PS, à semelhança do que faz o CDS e o PSD?Fazercoligaçõessóparadisfarçaranossafraqueza,comofazoCDS,éumacoisaqueachoerradaporqueelaseriaevidenciada.AchoqueoBlocodeve estardisponívelpara se articular comoutras forçaspolíticasàesquerdaehádiálogosa fazer.Todosestamosemfaltadessepontodevista.

E com o PCP?Todososdiálogossãomuitonecessárioseachomuitobomquehajaconvergênciaemcoisasessenciais.Nestemêsemeiodelegislaturatemhavidoconvergênciasmuitoimportantes,nalutacontraacor-rupção,nasquestõesrelativasaosubsídiodedesemprego,ouadefesadeuma reforma sempenalizações aos40anosdedescontos.Temhavidorealmenteumagrandeconvergência.Oqueéprecisoéqueelacontinue.Pôrnohorizonte,comoúnicaformadematerializaçãoumacoligaçãoéqualquercoisaqueempobrece.

O que é que distingue os dois partidos?Distingue-nosanossahistória, anossavisãodaHistória.OPCPtemumasexperiênciascomochamadoSocialismoreal,queécom-pletamentediferentedaquelaquenóstemos; temumconjuntodealinhamentosinternacionaisquenãosãoosdoBlocodeEsquerda,etemumaconcepçãodarelaçãodopartidocomasociedadequeédiferentedanossa.Porexemplo,narelaçãocomossindicatos,comomovimentoestudantil…ouaténaprioridadedadaacertostemas.Asnossasprópriasconcepçõesdeagendassãodiferentes.

A soma dos votantes nas 3 forças de esquerda é frequentemente superior à dos votantes nas coligações CDS, PSD e PPM. No entanto, a sua divisão abre caminho para que estes consigam conquistar diversas autarquias. É a esquerda “burra”?Compreendoperfeitamentearazãode fundodestaafirmação,masnãoa razãoepisódica.Aliás, exprimiaoautordessaafirmação,dequemtenhomuitoprazeremseramigo,asminhasdiscordâncias.Ospartidosde esquerda têmdeperceber, enão é fácil,queparaládo seu interessedelimitadoháum interessemais amploque éo interessedaesquerda.Oproblemaéque secontacomo fazendopartedaesquerdaalgoquenãoédeesquerda.Está-seaquia fazerumaaritméticadepartidaquedácomotranquilamentedentrodessaaritméticaalgoqueestáforadela…

Refere-se ao Partido Socialista?Não, refiro-meapartedoPartidoSocialista.Para aspolíticasdeesquerdanósnuncapudemos contar, salvo raríssimos casos, comadirecçãoPolíticadoPartidoSocialista.Maisaté:nestesúltimosanos temsidoadirecçãopolíticadoPS, e esteprimeiro-ministroemespecial,que temchefiadoestratégiasque são tudomenosdeesquerda.Portanto,nãoésériodurante364diasdoanoexprimir-mos indignaçãoporopçõespolíticasquemanifestamentenão sãode esquerda eno365ºdia virmosdizerque énecessário juntar aesquerdatoda, incluindoessaspessoas.Elasnãocontamparaestaaritmética.Aesquerdaémaioritáriaemtermossociológicos,masaesquerdasociológicanãoéaesquerdapolítica.

Mas não preferia, mesmo com estas limitações, estar com o PS…Masnósjáprovámosisso!Essaperguntanãoéparanossercolocadaanós.Quandosetratoudelegislarsobreainterrupçãovoluntáriadagravidez,estivemosnaprimeiralinhadeumtrabalhodearticulaçãomuitointensocomasváriasforçaspolíticasdeesquerda.Nessaaltura,justiçasejafeita,oprimeiro-ministronãofaltou.Issoprovaquequandoéprecisoeépossívelfazerpontesnósaíestamos.Mas,vejabem:háunsdias,discutíamosumapropostadoBlocopara terminarcomadistinçãodacorrupçãocomopráticadeactolícitoeparaapráticadeactoilícito.OPSficouisolado,pordeterminaçãodoprimeiro-ministro.Estasemana,vamosvotarumapropostadoBlocosobresegredobancárioeoutrasobreenriquecimento ilícito.Há indicaçõesclarasporpartedadirecçãoPolíticadoPSparanãodeixarpassar.Querdizer,nestasmatériasqueéondesefazodia-a-dia,essaaritméticadeviafuncionar.Pessoalmente,estoumuitoempenhadoquehajaumamaioriaqueàesquerdaresolvaestesproblemas,masseiquenãopossocontarcomoPSpordeterminaçãodosenhorprimeiro-ministro.

O que é que aconteceu então à facção mais à esquerda do PS?Elaexiste.Alegislaturapassadaelaexprimiu-sedeumaformamuitoaudívelecorajosanoParlamento,votandocontraasindicaçõesdasua

Entrevistas cadernosdejornalismo 05 17

direcçãodebancadaedirecçãopolítica,porexemplo,emmatériadeavaliaçãodosprofessores.Oquemepareceéqueháaquiumafidelidade,porpartedaactualdirecção,aumavisãoquenãohonraopassadoeumavisãodeesquerda.Issotemsidodito,nãopormim,masporgentecomoManuelAlegre,quetemsublinhadoquantohádedistânciaentreessadirecçãoeumcomportamentoquotidianoàesquerda.

Há pouco falou da estrutura descentralizada do Bloco. No entanto, a actual direcção tem vindo a ser criticada pela centralização das decisões num grupo restrito. Faz parte deste grupo?Ascríticassãosempredelevaremconta.Chamoaatençãoparaofactode,nosmomentosdedecisãocolectiva,nasConvençõesNacio-naisporexemplo,boapartedasvozesqueagoraaparecemafazeresse tipode crítica teremumaexpressão internamuito reduzida.Portanto,nãodemosaesse tipodeobservaçõesmais importânciasocialdoqueelatem.Achoquequalquerdirecçãopartidáriadeveteremcontaaquiloqueéumaexpressãodemal-estar,sejadequemfor.Mas,umaforçapolíticaquecrescetemqueterumacoordena-çãoenãopodemosalimentarailusãodeumpartidoinfinitamentedescentralizadooudeumagenerosidadebasistaquedepoisnãoteriasenãoconsequênciasmuitoperigosas.Temquehavercoordenaçãoeissoenvolveumcertograudecentralização.Nãoconfundamoséistocompessoalizaçãodascoisas,nemcomcentralismodemocráticoàvelhamaneiraestalinista.EalgunsdessesquefazemestascríticastêmalgumanostalgiadecentralismodemocráticoàEstaline.

Preocupa-o a acusação de asfixia das forças minoritárias dentro do partido (veja-se o caso de Gil Garcia, 13º à Câmara de Lisboa)?Nãomepreocupaporquenãoachoque issosejaverdade.Aprovaéadeque,sistematicamente,oGilGarciaeoutroselementosdaschamadasminoriasdentrodoBlocovêmàpraçapúblicadizeraquiloquetêmquedizerenuncaforamsancionados.Malseria!SairiadoBloconomomentoemquehouvessequalquer sançãoporopiniãopolítica.Achoquenãohánenhumaasfixia.AcorrenteRuptura/FERtemassentonaMesaNacionalondeapresentaassuaspropostas.Nãopodeépretenderquesejamleiporqueelassãodebatidasediscutidasehádepoistomadasdeposiçãomaioritáriasdeumladooudeoutro.

Como justifica a necessidade de afirmação de forças como a Rup-tura, que até um jornal próprio têm?IssotemqueperguntaraoGilGarciaeaosseuscompanheirosdaRuptura/FER,nãoéamim.Háumacoisaqueeuobservo:équeoentrosamentoentreasváriascorrentesquenumcertomomentoconf luíramparaoBloconãocontacomumadisponibilidadeporpartedaRupturaparaperder a sua identidadedegrupo fechado.HáumcomportamentoporpartedosmembrosdaRupturaqueémuitasvezesdenatureza sectária.Agoraoporquêde ser assim…nãosei.NãosoudaRuptura,nuncafuidaRuptura,nãoqueroser.

Umgrupoque se comportade forma fechada e como seita acabadepoisporfantasiarasfixiasecoisasdogénero.

O Bloco ainda não se libertou do conglomerado de forças que o criou?Nãoselibertoucompletamente,issoéinegável.Masfezumcaminhobastanteapreciável.Aameaçaquedesde sempre temsido lançadadequenosvamos todos comeruns aosoutros estáporprovar.Emaisainda:muitospartidosestrangeirosdanossaáreapolíticanosfazemfrequentementechegarasuanecessidadedeperceberqualtemsidoosegredodosucessodoBloco.AexperiênciadoBloconumaesquerdaalternativa,nãoclássica,éefectivamente,umaexperiênciainvulgaràescalaeuropeia.

Não deixa de ser curioso que o professor seja de Coimbra, onde o Ruptura tem uma força assinalável. É uma estratégia de partido ou não tem nada que ver com isso?Eu não me sinto instrumentalizado por nenhuma estratégia decombateaoRuptura.Issoseriaridículo.Nãoéalgoquemereçaumaestratégiasofisticadadecombate.Devodizer,emabonodaverdade,quenostemposmaisrecentestivemosempenhamentosempredispo-nívelporpartedosmembrosdessacorrente.AminhaparticipaçãoemmecanismosdoBlocoeinstitucionaisnãotemnadaavercomavidainternadopartido,mascomavontadedeteralguémdisponívelparafazerasnegociaçõesquesãonecessárias,deterumavozfirme.Temmuitoquevercomdesempenhosenãocomestratégiasinternas.

Há pouco falava do segredo do Bloco de Esquerda. Qual é o segredo?(Gargalhada)Osegredotemsidoconcentrarmo-nosnapluralidadedeagendasqueestãoànossafrente,semfazerahierarquiadecausas.Temsidomuito a concentração,nãoemdebates internos estéreisdopontodevistaideológico,masnamilitânciatendoemcontaasquestõespluraisquenos aparecem.OBlocoé, emsimesmo,umlaboratóriodearticulaçõesàesquerdaquepoderiaedeveriagerararticulaçõesmaisamplasàesquerda.

E ambiciona vir a ser opção de Governo?Claro.Nósnão estamosnistopordesportonempara ter razão.OBlocoveioàpolítica,efoiporissoqueentrei,justamentepara,diantedestesdesafiosconcretos,plurais,deváriasarenasdecombateetransformaçãosocial,fazermaioria.Parafazermaioria,incluindoacapacidadedeassumirresponsabilidadesdeconduçãodaspolíticas.Estamosnodebatepolítico em todas as escalaspara formarmosmaioriasdetransformação.

A curto prazo?Isso éperspectivadoem funçãodaquiloque for a combinaçãodeforçasqueoeleitoradodecideemcadamomento.Comodizíamosnaúltimacampanha,estamosprontos.

18 cadernosdejornalismo 05 DiálogosUrbanos

DiálogosUrbanosDiálogosUrbanos

Umacidadeéoencontrodemúltiposolharesesensações,

umespaçodefruiçãoedescoberta,ondecadaumvê,sente

evivedeformamuitoíntimaessarelaçãoespecial.Agustina

Bessa-Luís,quando recordavaCoimbraviaumacidade

onde“osprédiossobemedescempelasencostascomoos

anjospelasescadasdeJacob”.EugéniodeAndrade,que

emCoimbradescobriuOliveiraMartinspelamãoamiga

deTorgaenasliçõesdeMatemáticacomJoaquimNamo-

radomergulhounapoesiadeNerudaeMaiakovski,não

conheciaumversodejeitosobreacidade.“Nãoespanta

—dizia—queporaquiapoesiatenhaescolhidoaprosa

parahabitação”.Naspáginas seguintes, imageme texto

dialogam—ouseduzem-se?—numjogodesombrase

sinaisparanosmostraremumfragmentodacidadeque

escapa aoolhar apressadodequemnão senteo espaço

quehabita.

texto: Patrícia Troca

DiálogosUrbanos cadernosdejornalismo 05 19

Os sentimentos que invadem o peitoNão cabem num coração humano.Mas as paredes,Primeiramente imóveis ,Palpitam cada sentir deste espaço.

E se o HomemPuder alguma vez acreditarQue não era um sino ou um gato ou alguémQue era só o coração da cidade

Este, a baterImóvel nas paredes que se erguem Nem assim aurículas e ventrículosBombeiam a solidãoQue invade neste momento o coraçãoDe um sapiens sapiens.

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20 cadernosdejornalismo 05 DiálogosUrbanos

Ecos do coração humanoNão desistem de chegar à almaDepois de os passos os terem levadoÀ Alta de Coimbra .

A cidade vai mais além quando chega à Alta

E o sentir humano perde razão de ser.Os pés não podem largar-se do chão,Quebrando o uníssono do Homem com a cidade.

Ser Homem na Alta é ser sozinho.

As paredes que são feitas de sentirMostramMais do que qualquer coraçãoAs feridas de que ambos são feitos .

A f raqueza das tuas paredes, “ ó cidade”Reforça-se de quem f ica para trás no sentirMas não te abandona -O povo, que é quem mais ordena .

DiálogosUrbanos cadernosdejornalismo 05 21

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22 cadernosdejornalismo 05 DiálogosUrbanos

Eles, sedentos de vencer,Imbuídos da força de um fadoConstroem caminhos de revolução.

DiálogosUrbanos cadernosdejornalismo 05 23

Quando, por vezes, o luar se escondeQue outro refúgio tem, se não a Alta ?

Nos seus caminhos passaramOs corações inebriados de paixãoCobertos por um manto preto.

São passos de boémios sonhadoresDe pernas torpes e olhar nubladoCom trilhos perdidosQue o álcool remexeu.

O luar vem invadirEstes olhos que já não vêmHomens que, de certo,Só já têm o coração na voz

E, sob o luar que se escondeu,Recatadas donzelasVêm ouvir a serenata .©

Car

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24 cadernosdejornalismo 05 DiálogosUrbanos

As paredes também se fazemDe sentimentos que permanecem.Na Alta vai-se além da juventude.

Há caminhos certos .Feitos de Fé e de símbolosDe História e reis“Do bater da velha Cabra”…

A cidade aqui é quotidiano.Quem sabe impregnado de pequenos pecados…Daqueles que podem ainda lavar-se…

Molhadas, as roupas pairamNo limbo do ventoDa “Coimbra do MondegoE dos amores que lá tive” .

DiálogosUrbanos cadernosdejornalismo 05 25

Cada dia começa e acabaNa triste solidão de se ser apenas humanoNa cidade certa de um amanhãTal como de sentimentos e de luz

Que o Homem procura ref lectir na Alma

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26 cadernosdejornalismo 05 DiálogosUrbanos

Em Coimbra, os meninos de oiro- são de oiro os seus meninos”São trazidos do céu , fazem-se Homens.Constroem segredos.

“Segredos desta cidade”Que a Alta encerra para a vida .

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TeoriaPrática&PráticaTeórica cadernosdejornalismo 05 27

Em Coimbra, os meninos de oiro- são de oiro os seus meninos”São trazidos do céu , fazem-se Homens.Constroem segredos.

“Segredos desta cidade”Que a Alta encerra para a vida .

Teoria Prática & Prática Teórica

Diz-nosJoséLuizArangurenque,paraAristóteles,ateo-

riaeraaformasupremadapraxis.EmTeoriaPrática&

PráticaTeóricaconfrontamo-noscomumartigoquenos

mostracomoopensamentoteóricoé fundamentalpara

orientaçãodaacçãoecomoaspráticassãoessenciaispara

aproblematizaçãodequestões fundamentaisdonosso

quotidiano.

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28 cadernosdejornalismo 05 TeoriaPrática&PráticaTeórica

The Wire: a ficção

ao serviço da realidade

texto:Lídia Paralta Gomes

Os desaf ios éticos

e deontológicos do

jornalismo de hoje

TeoriaPrática&PráticaTeórica cadernosdejornalismo 05 29

1. Introdução

Decorriaoanode2002quandoo canal por cabonorte-ameri-cano HBO estreia a primeiratemporada do drama policia lThe Wire. Criada por DavidSimon,antigorepórterdecasosdepolíciadojornaldoMarylandThe Baltimore Sun,asérieéfre-quentemente considerada pelacrítica como uma das melho-res sériesde televisãode todosos tempos.Porquê?The Wire émuitomais doqueumdramapolicial. Filmada, produzida epassadanacidadedeBaltimore,esta produção televisiva é umretrato cru e ultra-realista dascidadesamericanasedecomoassuasinstituiçõestêmefeitosnosindivíduos.Decomoapolícia,o crime, a política, e o poderjudicialserelacionam,numateianem sempre translúcida ondeninguém é inocente ou incor-ruptívelnasuaplenitude.Cada temporada de The Wireescolheumcenário icónicodeBaltimore. A primeira tempo-radafoca-senotráficodedrogaenos seusbarões (tema, aliás,transversalemotivadordetodaasérie),asegundanofunciona-mentodoportodeBaltimore,aterceiratemporadaéumretratodaburocraciaedasidiossincra-sias do governo da cidade. Jáa quarta temporada tem comopanodefundooprecáriosistemaescolardeBaltimoreeaquintaeultimatemporada,objectodeanálise deste artigo, entra nomundodaimprensaescrita,dassuas f iguras, dos bons e mausjornalistas,dasboas emáshis-tórias,dasnotícias verdadeirasounãotanto,dapromiscuidadeentreosactoressociopolíticosdacidadeeoseujornal.AquintatemporadadeThe Wire,retratodoThe Baltimore Sunedassuascaras, traçaumesboçodosdesafiosàéticadojornalismodosnossosdias.Acrescentecomercia-

lizaçãodosmedia,afaltademeioseos jornalistas semescrúpuloscolocam-nosmuitas perguntasedúvidas,questões essasque adeontologiaprocura responder.Oobjectivodestetrabalhoéentãoprocuraressasameaçasàéticajor-nalísticaeaspossíveisrespostasdadeontologiatendocomopanodefundoesteretratorealistadavidaurbanaeaprofundaexploraçãodosmaisquentestemassociopo-líticosquenosofereceBaltimoreeasérieThe Wire.

2. Por detrás da 5º temporada de The Wire

O jornalismo é um tema caroa David Simon, o criador deThe Wire. Depois de deixar auniversidade,Simon trabalhoucomorepórterdecasosdepolícianoThe Baltimore Sun.Apaixo-nadopelaprofissão,chamava-lhe“o trabalho de Deus”. Inicial-menteSimoneraum idealista,inspirado pela cobertura doWashington Post aocasoWater-gate,mastorna-secadavezmaispragmáticoàmedidaqueganhaexperiência.Chegamesmoaafir-mar,numaentrevistaaoSeattle Post,quenofinaldasuacarreirao seuobjectivopassava apenasporcontaramelhorhistóriapos-sívelsemfazerbatota.Noiníciodosanos90chegaaoThe Baltimore Sun uma novadirecção.JohnCarrolleWilliamMarimow transitavamdoPhi-ladelphia Inquirer com umaexcelentereputação.Numarepor-tagemnarevistaThe New Yorker,emOutubrode2007,Simonnãopoupacríticasaosdoisjornalistasque irá retratar em The Wire :“QuandoosrapazesdeFiladélfiaapareceram, chegaram com omitode que tinhamas chavesdoreinoequenosiammostraroqueerafazerjornalismo”.Afirmaaindaquepara suagrande sur-presa–“porcausadareputação

que traziam–eles eramsurdose estavamesfomeadosporpré-miosemaispreocupadosemseengrandecer do que em cons-truirum jornaldequalidade.”EventualmenteSimonacabariapordeixaro jornalededicar-seàescritadeficção.Estadesilusãocomojornalismofoi o ponto de par t ida paraincluir uma sa la de redacçãoemThe Wire. ApreocupaçãodeSimon com o poder do jorna-lismo,comasuacadavezmenorcapacidadepara criar reacçõesnaspessoas tornava imperativoqueopúblicoconhecessearea-lidade.Aquinta temporadadeThe Wireésobreaspessoasquesupostamente deveriam moni-torizaromundoe fazer soaroalarme–osjornalistas.Eporquenãoo fazem?Simon aproveitasituaçõesvividasporelemesmo,pessoasque conheceu,práticasquefoiobrigadoaadoptarparadenunciar os vírus que conta-minamaprofissãonosdiasdehoje: a crescente concentraçãoe comercialização mediática eas suas consequências como alógica “fazermais commenos”eaambiçãodesmedida,aimpor-tância dos prémios que podelevar os jornalistas às maioresdesonras como a invenção dehistórias,defontesedenotícias.

3. Os protagonistas

· Scott Templeton

Templeton é um jovem jorna-listacomumpassadoemjornaislocaismenores.Antesdesercon-tratadopeloThe Baltimore Suntrabalhou no Wichita Eagle enoKansas City Star, maso seugrandeobjectivoéchegaraumgrande jornalnacional comooThe Washington Post ouoNew York Times. É extremamenteambiciosoedeéticadiscutível.

Este desejo de trabalhar numdosgrandes jornais americanosvaifazê-loinventarumhistóriacomgrandesrepercussões.Oseuestilodeescritaéumref lexodasua personalidade: exagerada,f loreada,poucoobjectiva,procu-randoprimeiroossentimentosdoleitoreignorandoaverdadedosfactos.Étidocomoumexcelenteprofissionalpeloseditores-chefesdo jornalThomasKlebanoweJamesWhitingmasosjornalistasveteranosdoThe Baltimore Sun,nomeadamenteGusHaynes,des-confiamdasuaconduta.

·Gus Haynes

Dedicado e com princípios,Haynes éumrepórter cheiodeexperiênciaeoactualeditordecidade do The Baltimore Sun.Dadaàsuaexperiênciaeperseve-rança,mantémmuitas fontesnaPoliciadeBaltimoreeconseguelernasentrelinhasosdiscursosdospolíticosepolíciasdacidade.Vaiserumcríticodanovadirecçãodojornalqueprocuraoreconhe-cimentoatodoocustonemqueparaissoorigorsejaprejudicado.Éoepítomedamoralidadenumaredacçãoquecomeçaaapodrecer.

·James Whiting

Whitingéonovodirectorexe-cutivo do The Baltimore Sun.É ambicioso e o seu grandeobjectivoéganharumPulitzerparaoseujornal.Prefereeviden-ciaro“aspectoDickensiano”dashistórias,ouseja,asuaemotivi-dade,doque aprofundidade eosreaisproblemassociopolíticosdeBaltimore.

· Thomas Klebanow

Vaidosomastímido,KlebanowéoDirectorGeraldoThe Balti-

30 cadernosdejornalismo 05 TeoriaPrática&PráticaTeórica

more Sun. Éoresponsávelpeloscortes e rescisões de contratoexigidospela administraçãodogrupoempresarialaquepertenceo jornal e impõe a política de“fazermaiscommenos”.

4. O enredo

Quandoaacçãodaquintatem-poradadeThe Wire temo seuinício, são tumultuosososdiasque se vivemnoThe Baltimore Sun.Hádelegaçõesafecharumpoucopor todoomundo enacidadedoLesteamericanopairao fantasmadosdespedimentos.Aalgunsdosmaisexperienteseveteranosjornalistaséoferecidaarescisãoamigáveldocontrato.No primeiro plenário são-nosapresentadas as quatro f igurasessenciais da trama: o jovemjornalista Scott Templeton, oveteranoGusHaynes eosdoisnovosdirectores,JamesWhitingeThomasKlebanow,homemdaadministração.Oschefesanun-ciammudanças, épreciso fazer“mais commenos”.Discute-seumareportagemsobreosistemaescolardeBaltimoreedestatrocade ideias as personagens reve-lam-se:Gus faznotarqueseriaimportante irmais além,veroqueestápordetrásdoabandonodasescolaspúblicas.WhitingeKlebanowqueremumahistóriaforte,humana,focadanasesco-lasenosseusalunos,ondesalteà vistao “aspectodickensiano”(The Wire,ep.1).ScottTemple-ton, jovem jornalista apostadoemsubirrapidamente,concordacom a v i são dos d irectores .GanhaaconfiançadeWhitinge Klebanow e é incumbido detrabalhar a história. A partirdaquiTempleton,oseutrabalhoeos seusmétodos, tornam-seocentrodoenredo.Templetonnãoquermenosqueo The Washington Post ou oThe New York Times.Chega à

redacçãocomashistóriasmaisincríveis.ApresentaaGusHay-nes,editordecidade,ahistóriadeE.J, ummiúdoparaplégicoqueconheceuàportadoestádiode basebol de Baltimore. Semdinheiro para a entrada espe-ravaasolidariedadedealguém.Masnãotemfotosnemonomecompleto do rapaz. Haynes,experiente e íntegro, achaquenãoháelementossuficientesparapublicarahistória.Whitingdizqueasituaçãonãoéaidealmasestá seguroda sua veracidade.No dia seguinte a reportagemdeScott causa revolta entreosmaisveteranosdaredacção.Nãoháumafotodorapaz,umnome,sóumaalcunha.Entretanto,na cidade, estalaocaso do assassino em série desem-abrigo.GusenviaScottparao terrenopara conseguir teste-munhosdeoutrossem-abrigoeo jornalista volta coma espan-tosa história de uma famíliade quatro, a viver debaixo daponte, com um pai que temepelavidados seus filhos.Tem-pletonapresentaaGusonomedopai:NathanLeviBoston.MasNathanLeviBostonéapenasonomedeum indigente aquemTempletonhavia tentadopedirdeclarações sem sucesso.Tem-pletonéambiciosoepercebequepodeestaraquiasuagalinhadosovosdeouro.Depoi s de a lguns d ia s semnovidadesno caso,Templetonentendeque temde fazer algo.Forja entãoumachamada tele-fónica e anuncia aosdirectorese aGus que o serial killer lhetelefonou,contandopormenoresdoscrimes.Ocasodoassassinoemsérie,aqueoThe Baltimore Sun não havia dado destaqueanteriormente, aparecenapri-meira páginado jornal nodiaseguinte.Ofococoloca-seemScottTem-pleton que é alvo dos maioreselogiosdosdoisdirectores,Whi-

ting e Klebanow. Este mostraumaatitudede falsamodestia,dizendoqueahistória“escreveu-seasiprópria”(The Wire,ep.6).Klebanow diz que Scott foi àrua, lutou pela notícia. Tem-pletonpropõepassarumanoitecomossem-abrigo,ideiaqueosdirectoresrecebemcomagrado.Entretanto Scott é convidadoparaentrevistasemtelevisõeserádioslocaisenacionais.Kleba-nowvênestesconvitesummodode mostrar o jornal e as suasnotíciasquandoascandidaturasparaosPulitzer se aproximam.Templeton,dissimulado,dizquenão estáhabituado a tamanhaatenção.Whiting,maisumavez, consi-deraqueojornaldeveprocuraro“aspectodickensiano”nocasodos sem-abrigo.Maisumavezrecusaumaanáliseprofundadotema.ParaosdirectoresdoThe Baltimore Sunémaisimportanteo aspecto humano e as emo-ções,colocandoorigordelado.Amatéria sobre aprecariedadedosistemaescolardeBaltimoreé colocadade lado jáque,paraWhiting,ocasodossem-abrigo“temmais impacto” (The Wire,ep.6)Entretanto,ScottTempletoncon-tinuaoseutrabalhodecampo.Falacomumveteranodeguerracom síndromepós-traumático.Chega à redacção uma queixaa uma not íc ia red ig ida porTempletoneGuspede-lheparaconfirmarosfactos.UmpolíciatelefonaaScottfazendo-sepassarpelo assassinodos sem-abrigo,o jornalista é apanhadona suaprópria rede.OThe Baltimore Suncolocatodososseusrecursosnacoberturadocaso.Templetonvaiserentrevistadopeloprópriojornalparaamatériaprincipal.Depoisdaqueixa,Gus, que jánãoapreciavaoestiloexageradodeTempleton,apresentaassuasdúvidasaosdoisdirectores.Ape-sardeScottseroactorprincipal

danotícia,nãovênecessidadedeeste escreverna1ºpessoa.Gusacusa Templeton de ornar emdemasia as suasnotícias; acha-o pouco sério. No seu últimoartigo,escrevesobreaexperiên-ciadevivercomossem-abrigo,segundoGus,“comoseestivessehásemanascomeles”(The Wire,ep.7), quando na realidade sópassoucomelesumanoite.Alémdisso,achaoseudiscursoépico,heróico,comoseestivesseapôrasuavidaemriscoparaconseguira reportagem. Klebanow nãoouve as preocupações de GusHaynes e toma a responsabili-dadedapublicaçãodoartigo.OsjornalistasveteranosdoThe Baltimore Sunenfurecem-secadavezmaiscomosartigosdeScottquevãocontratodasasregrasdojornal,oupelomenosdoquejáfoiojornal,Gusdizquenãocon-fiaemTempleton,quelhepediupara tirara limpoaqueixaquelhefoidirigidaequeestevoltoucom uma desculpa completa-menteinverosímil.Emconversacomumajornalistadasuagera-çãoGus comentaque todososjornalistas já foramenganadosmas há que admitir o erro, oqueScottestranhamentenuncafaz.Umjornalistaquenegaumamentiraouumerroeque,parapiorar, mente na correcção doerrotambémécapazdementirparamelhorarumahistória.Gusrelembra a história do miúdoàportado estádiodebasebol,cheiadeincoerências.Nomesmodia chegamais umaqueixa aojornal:oveteranodeguerraqueScotthavia entrevistadoacusa-o de colocar pormenores nanotíciaquenuncaaconteceram.Scottnegaaacusação,masGus,falandomaistardecomumdoscompanheirosdoveterano,provaasuamentira.Scott volta a escreverum textosem citar fontes e Gus veta asuapublicação.Ojovemjorna-listanãoaceitaadecisãodeGus

TeoriaPrática&PráticaTeórica cadernosdejornalismo 05 31

e argumentaqueutilizouumafonte anónima porque “a suacitaçãoerafantástica”(The Wire,ep.8).Oveteranomostraasuapreocupaçãoe,pelaprimeiravezimplicitamente,faznotarassuasdúvidasemrelaçãoàveracidadedosrelatosdeTempleton.Numareuniãocomalgunsedito-resejornalistasdasuaconfiança,KlebanoweWhiting traçamaestratégia para a candidaturaaosPulitzer.Asnotíciasdevemdepreferênciaencaixarnascate-goriasdoprémio.UmdosjornalistasdoThe Balti-more SuninvestigaohistorialdeScottTempletoneconfirmaumsemnúmerodeincongruências,desdeexagerosaaperfeiçoamentodecitações.ComentacomGus:

“É como uma malha de uma camisola, assim que puxas....” (The Wire, ep.9)

DepoisdeScottafirmarqueviuumraptoaumsem-abrigo,factoque apolícia rapidamentedes-mente,GustentamaisumavezabrirosolhosaKlebanow:

“Já reparaste que os tipos que fazem isto, os Blairs, os Glasses, os Kelleys, come-çam sempre com uma coisa pequena, uma citação que melhoram. Depois é uma notícia inteira e logo já vêem coisas extraordinárias” (The Wire,ep.10)

Mostra os artigos queprovamasinvençõesdeTempleton,masaindaassimosdirectorestomamopartidodojovemjornalista.No f inal da temporada, ScottTempletonganhaoprémioPulit-zer pela cobertura do caso doassassinodossem-abrigo,missãocumpridaparaWhitingeKleba-now.GusHaynesédemitidodocargodeeditor.

5. A 5º temporada de The Wire à luz da deontologia

Nadescriçãodatramaqueefec-tueinopontoanteriorestãobemespelhados algunsdosdesaf iosqueojornalismodosnossosdiassevêobrigadoaencarar.NoThe Baltimore Sunsente-seaquebradevendasquegrassapelaimprensaescrita.Hádespedimentose,con-sequentemente,menosjornalistaspara cobrir amesma realidade.De cima as ordens são muitoconcretas, mesmo com menospessoas,commenosexperiência,háquefazermais.Ojornalvê-secomandadopordoisdirectorespoucopreocupadoscomorigoremais interessados emvendase prémios, para alémdeque aambiçãodesmedidadeumdosmembrosdaredacçãocolocaemriscoaidoneidadedoThe Balti-more Sun.MasdeveremosolharparaThe Wire apenas como uma sériede televisão com todas as par-t icularidades que o discursoficcionadocarregaoucomoumrelatohiper-realista?Comumarevisãoda literatura adequada,podemosperceberoquãopró-ximodarealidadeestáasériedeDavidSimon.Aquebradevendasdosjornaisestá a tornar cada vez difíci la sobrevivência dos mesmos,já que os projectos editoriaistorna m-se pouco rentávei s .Consequência desse facto é aprecarização das condições detraba lho dos jorna listas e oscortes nas redacções, cada vezmenosnumerosasemaisbaratas.O recurso aos despedimentoscolectivosou rescisõesde con-tratoeacontrataçãode jovensmenosqualificadoseestagiáriosemdetrimentodeprofissionaismaisexperientes(Fidalgo,2008)éhojeumarealidadeeThe Wiremostra-obem:logonoiníciodatemporada, vários jornalistas,

comlargaexperiênciaemuitoscontactos, são “convidados” asairoquerapidamentesereper-cutenasrelaçõescomasfontes.Directamente relacionadocomestefactoestáasujeiçãoàlógicacomercial: a quebrade vendasleva à proletarização da con-dição dos jovens jornalistas e,estes,receandoafalênciadoseuempregador, são inf luenciadospara sacrif icar as verdadeirasnotíciasdeinteressepúblicoemfunçãodoquepodetrazermaisleitores ao jornal. Neste caso,osjornalistasdoThe Baltimore Sunsãopressionadospelosseussuperiores a escrever históriasdecaráctermaishumano,compoucaprofundidade,paraassimterem mais leitores, mais visi-bilidade e mais possibilidadesde conseguir nomeações paraosPulitzer.No plano da aná l i se ét ica edeontológica, esta 5º tempo-radadeThe Wireémuitorica.NaopiniãodeJoaquimFidalgo,o rápido desejo de sucesso éum entrave à independência,autonomiaeàqualidadedotra-balhojornalístico,resultadodacrise da imprensa escrita e daconcorrência feroz entremeiosde comunicação (idem, 2008).Oscritérioscomerciaisganhamassimumaimportânciadesme-dida. Os casos de jornalistasdesmascaradosdepoisdeinven-tarem ou plagiarem histórias,ou mesmo usando frequente-mentefontesnãoidentif icadas,é um sintoma desta “doença”.Ocasoapresentadonasériedojorna lista Scott Templeton ébaseado nos mediáticos casosde Jayson Blair, do The New York Times, StephenGlass, doThe New Republic,oudeJanetCooke , do The Washing ton Post. Tal como Blair, Temple-ton mostrava-se um repórtertalentoso, capazde trazerparaaredacçãocitações“too good to be true”(Fidalgo,2004:12),tal

como Glass fabricou notíciase tal comoCooke ganhouumPulitzerporumahistóriapelomenosparcialmenteinventada.S e g u ndo Joa qu i m Fid a l g o(2008), amultiplicaçãodestas“derrapagens ét ica s” no tra-ba lho jorna líst ico é fruto deum certo “relat ivismo ético”toleradopelasempresas,numaeradeconcorrênciadesmedidaedelógicacomercialferoz.Dáoexemplodoabusodautiliza-çãodefontesnãoidentif icadasporpartedeJaysonBlair,algonunca questionado pelas che-f ias do The New York Times,ideia transcrita também parao cenário de The Wire, ondeas brilhantes declarações queTempleton conseguia nuncamereceram a preocupação dosdirectores,apenasdoseueditorGus Haynes. Tal como Blair,Templetonusavaaconfidencia-lidadeparainventaroudistorcercitações. Este procedimentoestá bastante generalizado nojorna lismo norte-americano,principalmente no político, jáque os directores, com fomedetítulosfortesequeagarremo público, nem se preocupamem indagar os seus jornalistasacerca da utilização de fontesnão ident i f ic ada s (Fida lgo,2004 :12). Há, portanto, umcertoclimadeimpunidadequesóaregulaçãopareceterpoderespara travar. Segundo EstrelaSerrano, “o “endurecimento”da regu lação dos media porpartedoprópriopoderpolíticoreside no comportamento dospróprios media , nas derrapa-gens individuais e num certolaxismodo sistemamediático,quenãoparecepreocupadocomas suas derivas senão perantea ameaça de medidas legais”(Serrano, 2007:129).Masnãoseráimportanteapostarnaauto-regulaçãoparaojornalismonãover o poder polít ico ditar assuasregras?

32 cadernosdejornalismo 05 TeoriaPrática&PráticaTeórica

5.1 A resposta da deontologia – o caso português

Numaeradenovosdesafiosàpro-fissão,comoalgunsqueacabámosdeexpor,aimportânciadaauto-regulaçãoéfulcral.Nopanoramaportuguêsdiscute-seaadequaçãodonossoorganismoauto-regu-lador,oConselhoDeontológicodoSindicatodos Jornalistas,aoníveldasuacredibilidadepública,autoridadeentreosseusmembrose eficáciadeactuação (Fidalgo,2008).HáquemconsiderequeoCódigoDeontológicoconstituiumdocumentoapenasaplicávelaosmembrosdoSindicato, logooConselhoDeontológico ape-nas tempoderes sobre estes.Averdade,segundoAlfredoMaia,équetodososjornalistasportu-guesestêmassumido“comoseuoCódigoDeontológico,indepen-dentementeda suacondiçãodesindicalizados”(Maia,2007:149),aopontodeaelaboraçãoeaprova-çãodocódigoterenvolvidotodosos jornalistas e não apenas osmembrosdoSindicato.Assim,opoderderegulaçãoecontrolodoConselhoDeontológicodoSindi-catodosJornalistaséconsideradoportodososjornalistaseatéporcidadãos e entidades que a elerecorrem,emboraosseuspoderesnãosejamtãovinculativoscomosedesejaria(idem,2007:150).DamesmaopiniãonãosãoCarlosAlbino ou Mário BettencourtResendesquedefenderamacria-çãodaOrdemdosJornalistasporconsideraremexistirumdéficedeauto-regulaçãoeaOrdemseraúnicaformadeabrangertodosos jornalistas e conseguirumaeficazautodisciplinadaprofissãoatravésdorespeitopeloCódigoDeontológicoedapuniçãodasuaviolação.(Fidalgo,2008).Asprópriasempresasdevemcriarinstrumentosdeauto-regulação.Veja-seocasonorte-americano.DepoisdoescândaloBlair,oThe

New York Times adoptouregrasmaisrestritivasquantoaousodefontesnãoidentificadaseinsti-tuiuosfact-checkers,profissionaisencarregados de conf irmar averacidadeno terrenodenotí-cia s já publ icadas. TambémnomeoufinalmenteumProvedordoLeitor,funçãoqueatéentãodesprezara.Aliás,naopiniãodeJoaquimFidalgo, a ausênciadeinstrumentos quepermitissemuminterfaceentreosleitoreseojornalfoiumdosmotivospelosquais aspessoas envolvidasnasintervençõeseinvençõesdeBlairnunca,ouquasenunca,tiveramaoportunidadedesequeixaraojornal(Fidalgo,2004:13),oqueatestabema importânciadesteinstrumentoparaumamelhorauto-regulação. Em Portugal,iniciat iva s como o Livro deEstilodoPúblico eosCódigosdeCondutadarevistaVisãoedoExpresso,mostramumesforçodeauto-regulação,aexemplodoqueacontececomafiguradoProve-dordoLeitornoPúblico,Diário de NotíciaseJornal de Notícias.Em Novembro de 2003, cercadevinteórgãosdecomunicaçãosocialassinaramum“acordodeauto-regulação”especificamentedirigidoàcoberturanoticiosadeprocessosjudiciais,numareacçãoàcoberturanemsempredignadoprocessoCasaPia.É i mp or t a nt e a p r o f i s s ã oempenhar-sena instituiçãodeiniciativas estabelecidasdentrodosMeiosparaAsseguraraRes-ponsabilidadeSocialdosMedia,os MARS, de forma a mantera sua autonomia em relaçãoaopoderpolítico eprestarumserviçomais sério e idóneoaosseus leitores.A auto-regulaçãoapresenta-seassimcomoessencialnamonitorizaçãodotrabalhodosjornalistaspelosjornalistas,quedevemteracapacidadededefinirassuasprópriasregrasefazeremvaleressasregras,respeitando-asepromovendo-as.

6. Conclusão

Noderradeirodiálogo,quandojásabequeosseusesforçosparadesmascarar Templeton foramemvão,GusHaynes explica aumajovemjornalista:

“Olha à tua volta. O lago está a encolher, os peixes estão nervosos. Ganha nome, ganha um prémio, talvez encontres um lago maior do que este. O Whiting, o Kleba-now, o Templeton, vão ganhar um Pulitzer ou dois e depois vão-se embora para sempre. Para eles este é o objectivo. Eu? Sou demasiado simples para fazer isso. Só quero ver uma coisa nova todos os dias e escrever uma história sobre isso.”

OidealistaGusHaynes jánãoéumjornalistadonossotempo.Hojeemdiaaprofissãodebate-secomdesafiosquesereflectemnaformacomofazemosojornalismo.A crescente comercia lização,a crise da imprensa escrita, aconcorrência ferozmudaramosvalores, aspráticas efizeramasquestõesdaética,dadeontologia,daauto-regulaçãoedosMARSmaisimportantesdoquenunca.

The Wire temocondãodenosabrirosolhos,nosfazerperceberoqueestápodreno jornalismoe até queponto a ambição e aprocurada glórianãoolhandoa meios pode chegar. No f im,os“maus”ganham,umsinaldealerta para os prof issionais daárea,para seorganizarem,paraseauto-regularem.Paraque“can-cros”comoTempleton,WhitingeKlebanownuncamaisentremnumasaladeredacção.

7. Bibliograf ia

FIDALGO, J. 2004. O caso JaysonBlair/ The New York Times : daresponsabilidadeindividualàsculpascolectivas.Comunicaçãoapresentadano II Congresso Ibérico de Ciências

da Comunicação / III Congresso da SOPCOM, UniversidadedaBeiraInterior/Covilhã,Portugal

SERRANO,E.2007.Pensararegulaçãodos media numa sociedade emmudança,Comunicação e Sociedade.11,pp.129-133

M A I A, A . 2007. O imperat ivo daregulaçãoparticipada.Comunicação e Sociedade.11,pp.149-155

FIDALGO, J. 2008. Novos desaf iosa um velho ofício ou... um novoofício?A redef iniçãodaprof issãode jornalista. In.M.PINTOeS.MARINHO (org.),Os Media em Portugal nos primeiros cinco anos do século XXI. Porto: Campo dasLetras/UniversidadedoMinho

The Wire – Season 5. 2008. HBO –HomeBoxOffice

HBO: The Wire: City Editor Augustus “Gus” Haynes[online].[Acedidoem06/01/10].Disponível em:http://www.hbo.com/the-wire/cast-and-crew #/the-wire /ca st-and-crew/augustus-gus-haynes/index.html

HBO: The Wire: Scott Templeton [online].[Acedidoem06/01/10].Disponívelem:http://www.hbo.com/the-wire/cast-and-crew#/the-wire/cast-and-crew/scott-templeton/index.html

HBO : The Wire : Managing Editor Thomas Klebanow[online].[Acedidoem 06 / 01/10] . Disponíve l em:http://www.hbo.com/the-wire/cast-and-crew#/the-wire/cast-and-crew/thomas-klebanow/index.html

HBO: The Wire: Executive Editor James C. Whiting III[online].[Acedidoem06/01/10].Disponível em:http://www.hbo.com/the-wire/cast-and-crew #/the-wire /ca st-and-crew/james-c-whiting-iii/index.html

Interviewing the man behind The Wire [online]. [Acedido em10/01/10].Disponível em:http://www.slate.com/id/2154694/

P r o f i l e : S t e a l i n g L i f e : T h e Ne w Yorke r [ on l ine ] . [Ac ed ido em11 / 01 / 10 ] . D i s p o n í v e l e m :h t t p : / / w w w. n e w y o r k e r . c o m /reporting/2007/10/22/071022fa_fact_talbot?currentPage=1

TeoriaPrática&PráticaTeórica cadernosdejornalismo 05 33

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Conto cadernosdejornalismo 05 35

EUA — 26 Abr i l 2010.Umsem-abrigofoiesfaque-ado até à morte ao tentarsalvar uma mulher de umassa l tante, no bairro deQueens, em Nova Iorque.Segundo o vídeo de segu-rançadivulgadopelo jornalNewYorkPost,HugoAlfredoTale-Yaxestevecercadeumahora no chão, numa poçade sangue, até chegar umaambulância. Nesse espaçodetempo,cercade25tran-seuntespassamindiferentes,semajudaremosem-abrigo.

TudoaconteceudomingodemanhãquandoHugotentousalvaramulherefoiesfaque-adonopeitodiversasvezes.Tentouperseguiro seuata-cante,mas acaboupor cairnochão,emfrenteàcâmaradesegurança.

Ovídeomostraaindiferençados transeuntes, que nãoparamparaajudarHugo.Háatéquemtireumafotografiacomotelemóvelecontinueoseucaminho.Apesardeapolícia ter recebidoquatrochamadas pelos gritos damulherassaltada,nãoforaminformados do estado dosem-abrigo.

texto:Martha Mendes

Sem-abrigo morre durante

acto heróico

36 cadernosdejornalismo 05 Conto

texto:Martha Mendes

Um repelente cheiro a morte

Naverdade,Hugosempresoubequeiaacabarassim.Desdeaquelediaemquenadaviriaaserigual,elesabia.Sentiaqueasuavidaiaterminardepressa,semqueissoincomodassealguém.Nuncaimaginouque fossepor esfaqueamento. “Talvezum tiroponha fima tudo”,costumavapensar.Umtirodadoporumdaqueles “vândalos”queoameaçavamregularmentenas ruas. “Vândalos”.Era comoHugolhes chamava. Imaginavaumamorte limpa, rápida, indolor.Nissoenganou-se.Acabariaporseresfaqueadoatéàmorte,numaruadeNovaIorque.NobairroQueens,parasermaisexacto.Paramuitos,Queens eraum lugar adorável.Obairrodeondeosnova-iorquinosviamaviõeslevantarvoo,ondeassistiamaosjogosdoMetseàsvezesaalgunsjogosdeténis,noUSOpen.Osoperadoresturísticoscostumammesmoreferir-seaobairrocomo“aNovaIorquerealehonesta,nemelitista,nemyuppie”,“averdadeiraexperiênciavivadomelting pot”.MasparaHugoobairro eraumacasa.Cadaruaeraumcorredor,cadapraçaumasala.Aentradadobairro,comoseutrânsitoinfernaleascoresensurdecedorasdamáquinaurbana,eraohalldeentradadoseucantinho.Elenemsempretinhavividoali.Naverdade,arua–eaquelaruaemparticular–estavacheiadeestóriascomoasua.Estóriasdehomens,nalgunscasoscomfamília,aquemavidatinhaapontadoestecami-nho.Tambémhaviaestóriasdehomensquetinhamfeitoasescolhaserradas.Eestóriasdehomensquesetinhamarrependidotardedemais.OtempolevouHugoatéàsruasdeQueens,asuacasa.Aliatétinhaumbancoque os outros consideravam “seu”. Sabia quedebaixodaquelebancopodiadeixarassuaspoucascoisasqueninguémlhesmexia.Os estranhospormedo, os camaradas sem-abrigoporqueconheciamasregrasdarua.Masnestesnãoseincluíamos“vândalos”.Eraassimqueelelheschamava.Traficantesdedroganasuamaioria,nãoperdiamumaoportunidadepara ameaçaros sem-abrigo.Eosoutros,transeuntesquevinhamàprocuradessa“NovaIorquerealehonesta”queanunciavamasoperadorasturísticas.ErasóessaaestóriadeMary.Inglesa,estavapelaprimeiraveznosEstadosUnidos.Era,naverdade,umaalunafinalistadearquitecturaque tinhadecidido festejaro fimda licenciaturacomumaviagemaNovaIorque.Ascidadessempreatinhamfascinado.Adinâmica,obarulho,ofumo,aspessoas,apressa,ocalor,ofrio.Avida.EmInglaterra,viviaemLondres,ondeofriocinzentoepesadoquepareciadeixardesconfortáveistodososoutros,eraumencantoparaela.NosEstadosUnidossemprequisconheceracidadequenuncadorme.Tinhaapenasumamochila.Não se percebe como é que uma jovem de ar tão simples pôdedespertar tanto interessenos“vândalos”.Maseles eramumpoucoassim:escolhiamasvítimasaleatoriamente,nemsempreporcausadodinheiroqueadivinhavampoderroubar,nemsempreporcausadafraquezadequeseapercebiam.Àsvezesasvítimaseramtão-somenteumdesejoaqueelesnãopodiamresistir.Umímanqueospuxavanadirecçãodaraiva,davingança,domal.Àsvezesasvítimas,semo

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saberem,estavamaatraí-loscomoasflautaschamamasiaserpente.Comopormagia.Era essamagiaqueMary espalhavapelobairro, como seupassoleve,omapadependuradonamão, a alçadamochila a escorregarpeloombro,osolhosperdidosdequemquervertudo,osagasalhosfortesparaotempofriodeJaneiro.EHugotambémnãoeraimuneaessamagia.HaviaalgoemMaryquelhelembravaasuaoutravida,aquelaqueviviaantesdeterconhecidoorepelentecheiroamorte.Primeirofoisóumaatracção.Umajovemdearperdido,ànoite,emQueens.Nãopareciaserdalie,noentanto,asuafiguraenquadrava-senaperfeiçãonapaisagemdebuliçodeum fimdedia emNovaIorque.Hugofoiseguindoaquelespassosàdistância,nãoaqueriaassustar.Paravaquandoelaparava, aceleravaquandoelaacelerava,paranãoaperderdevista.Apesardemanter algumadistância,Hugo conseguia sentir-lheoperfume.Jovemefresco,comoumfrascodePrimavera.Derepenteveio-lheamemóriadaqueledia.SeaomenosHugolhepudesseroubaraquelecheirosuave.Seaomenosapudessematar.Seaomenossepudessevingardavida.Uminstantebastava.IssoeraumaliçãoqueHugotinhaaprendidobem.Afinal, tudo tinha sidodecididonum instante,numacidentedeautomóvel.Asuavidatinhaterminadonumaestrada.Velocidadeamais,cuidadoamenos.Hugorecordavapoucodessedia.Erasempreassimcomascoisasrealmenteimportantes.Tinhavindodohospitalmaiscedo.Naqueledia,omédicotinhamenospacientesdoqueeranormalporqueo fim-de-semana fora já estava agendado eHugogostavadeviajardedia.Saíramcedodecasa,Hugo,ela,osmiúdos,aavódeles.Acarrinhaeranova,tinhapoucosmesesnafamília.Umanovidadequeveiocomachegadadoquartofilho.Depois foi sóohorror.Vidrospartidos, sangue, choroegritos.Oimpacto.Atéquesefezsilêncio.Umsilênciodemorte.Depoisdaperda,Hugopassoumuitosmesessemfalar.Arranjaram-lhe um psicólogo, depois um psiquiatra. Chamaram-lhe “stresspós-traumático”ederam-lhecomprimidos.Umdiaeledesapareceuenuncamaisninguémsoubedele.Fechouaportadecasaatrásdesie,comisso,fechouavidaquetinhaconhecidoatéentão.Começouadeambularpelas ruasdacidadeatéperceberqueaquilo sepodiatornarumhábito.Quandoosonochegou,Hugoescolheuumbancoedormiu.Dessesinstantesbrevesquemudariamtudo,Hugorecordavapoucomaisdoqueocheiroa sangueeamorte.Cheiroaborrachaquei-madadospneusdoscarros.Aalcatrãodaestrada.Todososcheirosmisturadosnumcheiroqueera exactamenteo cheirodamorte.EHugopensou,nesseinstante,queseasuafilhamaisvelhanãotivessemorridonaqueleacidenteteriaagoratalvezamesmaidadedaquelajovemquepasseava feliz porQueens.E talvez tivesse tambémomesmocheiroaPrimavera, enãoaquele cheiroamortequeopaihaveriaderecordarparasempre.Etalveztivesseosmesmossonhos,amesmacuriosidade.Etalvezandassetambémaviajarpelomundocomaalçadamochilaaescorregarpeloombro.Eumaraivagenuínafoi-lhecrescendonopeito.Sepudesseaomenosmatá-la.Hugodesejavapoderacabarcomaquelafelicidade.Pôrfimatantajuventudeeatantofuturo.Comoavidatinhafeitoconsigo.Primeirofoisóumaatracção.Masagoratorturasmonstruosaspas-savampelacabeçadosem-abrigo.Umdesejodevingançamórbidoe confortável tomava-lhe contada cabeça edas acções, enquanto

eleseguiaMary,cadavezmaiscoladoàsuapegada.Eaquelecheirofresco,aPrimavera,queteimavaemtomardeassaltoossentidosdohomemqueemtempostinhaperdidotudopersistia.Comosempreacontecia comas coisas importantes, seHugo tivesse sobrevividoparacontaroqueaconteceu,nãose lembrariadegrandecoisa.Sódocheiro.Ocheiromantinha-seintactonamemóriadohomem.Denovo,ocheiroasangue.Eradenovoaquelehorrívelenauseabundocheiroamorte.OcheiromaisrepelentedoMundo.MarynãohaviadespertadoapenasointeresseearaivadeHugo.Os“vândalos”tambémtinhamreparadonela.Começaramporchamá-la.MasMary iadistraída aolharparaummapa cujas indicaçõesparecianãoperceber.Nãoestavaaignorá-los,nãoestavacommedo.Simplesmentenãoosouvia.Omedoveioalgunsminutosdepois.Começarampor lhepuxaramalae com issoatiraram-naaochão.Insultaram-na.Abriramamochilaecomeçaramaesvaziá-laparaochãodarua.Quandoperceberamqueajovemtinhapoucomaisdoqueumadúziadedólares,umaraivaincontidaatirou-oscontraMary.FoinessemomentoqueHugonãopôdecontinuaraolhar.Lembra-se vagamentede ter corridonadirecçãodeles, de os terempurradoeda forçadoseuempurrãoterdeitadoaochãoos trêshomensdesprevenidos,quenãocontavamcomaofensiva.Lembra-sedeseterodiadoporterdesejadofazer-lhemal.Lembra-sedeterajudadoaraparigaassustadaaerguer-sedochãoedetersentidooseucheiroaPrimaveraumaúltimavez,antesdeavercorrer,fugir,eesgueirar-sepelasruasdessaQueensimensaebarulhenta.Depoisvoltouocheirohorrível,repelente,amorte.Hugo recordaria, se tivesse sobrevivido, a sensação de ter o friodo açoda faca apenetrar-lheo corpo.Primeiro apele,depoisosórgãos.Recordariaos gritosde raivados “vândalos”, recordaria aformacomoestesfestejaramasuamortecomoseestivessemnumaespéciederitualtribaldesacrifíciodeumavida.Recordariaotoquedocimentodochãodarua,quesetingiadevermelhoaospoucos,contraapeledoseurosto.Talvezrecordasseafriezadasdezenasdepessoasquepassaram,indi-ferentes,peloseucorpomorto,aficarcadavezmaisfrio,duranteosmaisdesessentaminutosqueapolíciademorouachegarao local,apesardas sucessivas chamadasdesesperadasdeMary.Eraocorpodeumsem-abrigo.Apenasocorpodeumsem-abrigo.Talvezrecor-dasseojovemque,indiferenteàsuamorte,parouencostadoaumaparedepara tirar, como telemóvel,uma fotografia aocadáverqueagorajaziaemplenarua.EHugorecordaria,certamente,asuaúltimavisão.Espalhadospelochãodessaruaporondeagoracorriamos“vândalos”embando,emfugadolocaldocrime,estavamosobjectosqueMary,ajovemfeliz,trazianamochilaequehaviamsidodespejados.Umtelemóvel,umperfume,umamaçã já tocadaqueMarynuncachegouacomer.Umblocodenotas,duascanetas–dasquaisumajánãotinhatampa–eumpacotedelenços.Umacarteiraentreaberta.Ládentro, vários cartões,pequenospapelinhos eumadivisãoquedeixavaque se entrevissempequenas fotografias, tipopasse,queajovemtraziasempreconsigo.Dacarteira,opaideMaryolhavaHugo.Umhomemgrisalho,forte,sorridente, feliz.Agradecido.Foi a imagemdessehomemque lhefechouosolhos.

Coimbra,27deAbrilde2010

40 cadernosdejornalismo 05 Reportagem

Reportagem cadernosdejornalismo 05 41

F a n t a s m a s d e C o i m b r a

AocaminharporCoimbraporvezespodemossentir-nostrans-portadosparao tempoemqueestaaindasechamavaAeminium.Pelomenos,édeláqueparecemviralgunsdosvultosquehabitamacidade.Masosvultostêmumhomempor trás.Que temumavidaassociada.Éalturadedarcorevidaaalgunsdosvultosquenosvisitamnodia-a-dia.

Estes não são fantasmas quea ssombram a cidade. Ta lvezsejamassombradosporela.Sãopensadores, conversadores ouvendedoresde sorte. Sortequehámuitonãotêm,equetalveznãosaibamprocurar.Maslutam.Àsuamaneira.Nãopedem.Oupelo menos não se limitam apedir.Têmalgoparaoferecer.Aqui,foi-seembuscadoquetêmparaoferecer.Edescobriram-sehistóriasdevida,quesecontamemseguida.Paradepoisdesapa-receremcomoosseusactores.

O pensador italiano

GiuseppeCianciolaéumpensa-dor italianoquevenderevistasnos tempos livres. Há pessoasque o vêem, impecavelmentevestido,entreaFerreiraBorgeseaViscondedaLuz.EmfrenteàsescadasdeS.Tiago,sugerem.Eu vejo-o. Num movimentojá mecanizado va i est icandoo braço direito anunciando a“Cais”. Os transeuntes não o

vêem. Não o ouvem. Ou pelomenos assimparece.Baixamacabeça,viramosolhos,seguemocaminho.Alguns,muitopou-cos, numa quase amabilidadeforçadaabanamacabeçanega-t ivamente. Menos a inda sãoaqueles que acompanham essemovimentodacabeçacomum“obrigado”,agradecendo,quiçá,aabordagem.

Com cerca de uma dúzia derev i sta s no braço e squerdo,outrastantasnasacolavermelhadefechoestragado,Giuseppevaipercorrendo,compequenospas-sos,nãomaisdequatrometrosquadrados. Pisando sempre omesmo chão faz quilómetrosnesseespaço,semprepensativo.Porvezesdistante.A certa altura pára. Dirige-seamim.Contando-meque temartigos escritos no Brasi l, naHolanda “e em mais países ! ”.Fa la-me da complexidade doescrever.Explica-meque éumerro escrever sem conhecer aespecif icidade de cada caso.Escuto aquelas pa lavras comatenção.“Eusouumpensador,sabe?”.Perceboqueprecisadedescansarumpouco.Estáumaatípica manhã de Abril, comperto de 30 graus. Enquantodia loga noto-lhe uma curio-sidade na fala: todo o tipo detom que emite teima em ter-minarnum“tu”,“ta”,dotípicosotaque italiano.Como “tuttonellavita”.

Depois deumapequenapausaregressa à sua luta, à sua“vita”.Estou a observá-lo há mais demeia hora, quando à enésimaabordagemconseguevenderoseuprimeiroexemplardodia.Parecerecusar-se a ficar pela simplestrocado“vilmetal”pelaspalavrascompiladasnaqueleA4depapel.Dois, três dedosde conversa eumquasesorrisoarrancadopelasenhora que acabade comprarmaisuma“Cais”.

Aindahápessoasqueparamsóparaconversar.Enessesmomen-tos nada mais importa para opensadoritaliano.Doisminutosde conversa valem-lhemaisdoqueduasmoedasde euro, comquesecompraumarevista.“OláSr. José, comoestá?”,perguntauma raparigaquepassa. “Não,hojenãovoucomprararevista,deixever.Pois, essa já tenho.Éa mesma da semana passada”.É,defacto,amesmadasemanaanterior, edaoutra.A revista émensaleestamosnosúltimosdiasdeAbril.Destaveznãovaihavervenda, mas a conversa pareceencherdeforçaofrágilhomem.

Mais tarde confessar-me-á queé issoquelheencheasmedidasnesta“profissão”.Éafaltadissoque lamenta.Édessa falta queculpa a “crise”. A “crise”, diz,levou-lhe amigos. Recusa-se afalaremperderclientes,poiscon-sideraissosecundário.Contudo,lamenta profundamente que

alguns amigos tenhamdeixadodepassarpelo “seuespaço”pornãoterem,agora,possibilidadesdecomprararevista.Pensaquetalvez “o sentimentode culpa”os tenha levadoadesviaro seucaminho.

Maismeiahoramal contada, euma nova venda. Desta vez éumsenhorque,apesardoritmoapressadodoseupasso,abrandaemeteamãoàcarteira,sempre-cisardoanúncioquedeveouvirtantasvezes.Outraspessoashá,que se desviam da abordagemdestefantasma.Talvezassustadas.Commedoqueoseubraçoesti-quedoismetrosepossa invadiro ar que respiram. Penso paracomigoquesecalharaqueladis-tânciaéescassa.

“Pensoquevouparar.Sintoquehojenãoéumbomdia.Aexpe-riênciadiz-meisso”.OtalfeelingqueandaporestaalturanabocadetodaagentelevaGiuseppeaparar. Depois de mais de duashorasde insistência, odianãoparece estar a correr de feição.Foram apenas duas as revistasvendidas,edadoquetemdireitoa70%dovalordecadauma,amanhãrende-lheamíseraquantiade 2.80€. “Melhor que nada”,atiracomarconformado.

Pergunto-lhe se oposso acom-panhar ao almoço, e a respostaé um “sim claro”. “Onde querir?”,pergunta-me.“Leve-meonde

texto:Adérito Esteves

Pessoasinvisíveisquejáfazemparteda“paisagem”deCoimbra.Fantasmasqueseacendemcomaalvorada,edesaparecemnoocaso.Desa-parecemaoacaso.Atéaoraiardonovodia.Fantasmasquesedissolvemnachuva,outrosquevivemdela.Paramuitosdosquecomelessecruzamtodososdias,nuncaexistiram.Masaverdadeéquesubsistem.InsistememlutarnestaCoimbraquenuncafoi,etalveznuncavenhaasersua.

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costumair,aumsítioquegoste”.Guia-meporruelasdabaixaatéaoTerreiro da Erva. Entramosna“Casadasbifanas”.Ambienteagradável, mais não seja, pelofrescoquenos oferece.Amis-turade cheiros abreo apetite aqualquerguerreiroquepasseporaquelasparagens.Bifanas,ham-búrgueres, salsichas, a oferta évariada.Avivacidadeeovolumedas conversas entre os clientesatestamaqualidadedospetiscos.Asatisfaçãodasbarrigas.

Nada melhor do que uma boaconversaaoalmoço.Aíconheçoeste italiano de Bari. As suashistórias.Acimade tudoo seuconhecimento.Masnomeiodoturbilhãoqueéaexistênciadestepensador, coloquemos algumaordem. Comecemos pelo iní-cio.PeloprincípiodacaminhadaqueotrouxeatéestaAeminiumintemporal.

Quandoaosvinteanosdeidadesaiu da Itália natal guiava-o a“inconsciência”.A sededades-coberta.E seguindoesse rumo,correuváriospaísesdaEuropa,fazendodetudoumpoucoparaterquecomer.Masa idadedasloucurashaviadechegaraofim.Quando,cercados30anos,quisdarum rumocerto à sua vida,o fadoassimnãoquis.Omapapeloqual passou a guiar-se foiodestino.Foiesseoculpadodasua chegadaaPortugal.Depoisdeumanopor terras algarviasfixou-seemCoimbra,ondeestáhá10anos.

Agora,comumavidadifícil,dizqueaúnicacoisaqueaindaofazviver é a coragem, “é a últimacoisaquemeresta”.Mastemfé.Émuito religioso. “Nãodessesque vão àmissa todos os dias,masquandoposso,aodomingo,costumo ir”.A sua fé faz-sedeleituras. E aí há um livro quesempreoacompanha:“Livrode

SantoAgostinho(Confissões)”.Giuseppeconta-mequesebaseianolivro,aplicandoosseusensi-namentosaosdiasdehoje.

Assim,numaescriturade “con-fissões de louvor à grandeza deDeus”, este cidadãodomundofazassuas“confissões de miséria,gritodealmadeumhomemque(…)sesentiutocadopelagraçadeDeusnomais íntimodoseuser,perdoadodosseuserros,doorgulho,dopecado”.Opensa-dor italiano transporta-se paraapeledeSantoAgostinhoeissoaproxima-odoseuser,comoquelibertandoasuaconsciência.

Masvoltandoàmesadoalmoço,começoaperceberoporquêdese intitularde “pensador”.Paraalémdasconversascomosami-gosquelhecompramasrevistas,há uma outra coisa que adorafazer:ler.Afirmaquequandolênãose sente sozinho,queoseupensamento voa.Ao falar comGiuseppepercebe-se que éumhomemdemuitacultura.Faladetudo.Comconhecimento.

Durante a conversa ao almoçoestebareseexplica-meosprimór-dios da civilização no Egipto.D o s p rob l em a s s o c i a i s d aChina,aoCorão,passandopelobudismo,detudofazquestãodesemostrarconhecedor.Teologia,filosofia.Aformacomoencadeiao discurso deixa perceber queassuasleiturassãoasuagrandecompanhia.

Sómaistarde,quasenofinaldaconversa,perceboquetambémseinteressapor futebol.Pelo fute-bolitaliano,massobretudopelahistória do futebol. Mundiais.Europeus.Finaisdaligadoscam-peões.Leva-meconsigopelassuasmemórias.Edeixo-meir.Guiadopelaemoçãocomquefaladoseugostopelodesporto.

Àmedidaqueoscoposdo“bran-quinho” se vão acumulandonamesa,Giuseppevai esquecendoumpoucooportuguês.Refugia-se no materno italiano, aindaque semnotarqueo faz.Commaioroumenordificuldadevouconseguindodeslindaroquediz.Mas o almoço já se arrasta háalgumashoraseGiuseppediz-meque temde ir. Jánãovaivoltaràs vendas hoje, mas tem de irpara casa. Há compromissos acumprir.Nasdespedidaspede-meque volte.Que tragamaisper-guntas.Acompanhiafaz-lhebem,eajuda-oaesquecerosproblemasdeumavidaquenãoacreditaquepossaviraterumfinalfeliz:“issoénosfilmes,queacontece”.

O vendedor da sorte

AcercademilmetrosdopostodevendadeGiuseppeencontrooutrofantasma.ValdemarMatias,63anos, éum infortunadoquevendeasortenaruadaSofia.Écego.Afirmaquelhearrancaramos olhos há cerca de quarentaanos. Apesar de não gostar defalar sobre o assunto–porque“foihámuito tempo,não inte-ressa isso. Jánão sepode fazernada!” –, confidencia que foiemLisboaque lhe fizeramessacrueldade.Hojeemdia,eapesardaslimitaçõesimpostaspelasuacondição,diz-se feliz. “E isso émelhordoqueterdezmilhõesdefortunasguardadasnumbanco.Eunãojuntodinheironenhum.Nãopreciso.Nuncativemulher.Comigo é chapa ganha, chapagasta”.

O ponto de venda diário estásituado em frente ao CentroComercialSofia.Éali,nafachadadoantigoedifícioconventualdaordemdeS.Domingos–tambémconhecidacomoordemdospre-gadores–queoValdemarapregoaaosventos.Dascentenasdepes-

soasquediariamentelhepassamacercadeummetrodedistância,poucos sãoosquedãopela suapresença.Aspalavrasalgoenrola-das,quedisparaaumritmoquasealucinante, são constantementeabafadaspelo roncodos carrosquevãopassando.

Muitas vezes dá a ideia queValdemarfalaparasi.Nãoseper-cebemuitobemoqueapregoa.Encostadoàplacaquemarcaoedifíciocomopatrimóniohistó-rico,tambémeleparecepertencera um outro tempo. Distante.Longínquo.Esquecidonotempo.Apagado da memória das pes-soasquenãooviveram.E foradocampovisualdamaioriaquepassa.

Masnãodascrianças.Háquemdigaqueestastêmmaissensibili-dadeparaascoisassobrenaturais.Queconseguem,inclusivamente,fa lar com seres que já não seencontramnomundodosvivos.Sãomaistolerantes.Averdadeéqueessedizerdosantigosfaz-senotar quando se está perto deValdemar.Nãohá criançaquepasseequenãovejaovendedorda sorte.Muitas vezesos adul-tosqueasacompanhampassamsem notar qualquer presença.Masascriançasnão.Desperta-lhescuriosidadeaqueleser,quetalvez não percebam ser real.E enquanto lhes é f isicamentepossível,mantêm-secomosolhoscoladosemValdemarque,indi-ferenteatodasessasobservações,mantém-secomacaixadeesmo-lasseguraentreasduasmãos,ecomas taludas entaladas entreosdedos.

Háumsenhorquepassa,comotantos outros. Contudo, esteabranda.Parecenãoteracertezase viu a lguma coisa. Hesita.OlhaparatrásedádecarascomValdemar. Não parece segurodo que vai fazer mas fa la-lhe

Reportagem cadernosdejornalismo 05 43

quase ao ouvido. “Desculpe,quanto custa cada ta luda ? ”.“Cinco euros, mas pode dar600mil!”,recebecomoresposta.Entretantodizqualquercoisaaovendedor e afasta-se. Perceboquelhedeveterdadoaentenderque lhevaicompraras taludaspoisValdemardobra-asentreosdedosejánãoapregoa.

Parece cantar, agora. Ta lveztrautearsejaadesignaçãomaiscorrecta.Poucosminutosvolvi-dos,láregressaosenhorcomomesmoarhesitante.“Dê-measduas, se faz favor.” “O sorteioé segunda-feira”, atira Valde-marcomoqueadivinhandoqueo cliente não será um jogadorassíduo. A nota de dez eurosparece selar o negócio. Mas ocompradordátrêspassosevoltaatrás. Parece continuar poucoseguro.“Tome,cincoeurosparasi”.“Muitoobrigado,queDeusoilumineelhedêmuitasorte”.

Éassimsempre.Quandorecebeuma e smola agradece pron-tamente. O passo seguinte éretiraraesmoladacaixa.Prefereguardarnobolso.Maistarde,àconversacomValdemarpercebooporquêdoritual.“Jámerou-baram a caixa algumas vezes.Porissohádiasemquenãomevêemcomela.Tenhodearranjaroutra.”Masissonãoodemove.Nemàsuafé.“Nuncaandosozi-nho”,af irmaenquantocolocaamãoaobolsodacamisa.Delásaiumcrucifixodotamanhodapalmadasuamão.“Tenhoumagrandecompanhia,nãoseisemeestáaentender”,confidencia-mequasenumsussurro.

À sua companhia vão clientesde todososdias,queo tratampor“tu”eobrindamcommui-tas brincadeiras. Entrando naparódiaValdemaratiracomumar aprovador: “você está maismagro”,recebendologodooutro

lado:“oh!Issoéstuqueestasavermal”.PorentrebrincadeirasVa ldemar não esquece o seuofício: “Compre-me a lotaria.Estaéaúltima.Depoisdeaven-dervou-meembora”.“Essanão.Dá-meumadasmaisbaratas”.“Toma. Essa moeda é de umoudedoiseuros?”,perguntaocliente. “Esta é de dois”, atirasemqualquertipodehesitação.“Mas compre-me esta para eumeirembora.Olhequeéo69.”“Epa!Agoraf izeste-mepensar.Dá cá isso.Eudeixei agora os69eentreihádiasnos70,podeserquetenhasorte”,af irmaemtom just if icat ivo. Pagando acautela testa mais uma vez ascapacidadesdovendedor:“Dá-me dez euros, anda. Eu dei-teuma nota de 20.” “Não. Estanota é de 10”. “Ora deixa cáver”, pede o cliente enquantotrocaanotadedezporumadevinte.“Então?Éounãode20?”“Estaé,aquemedeuanteseradedez”,dizselandoaconversacomumarisada.

Os“testes”nãoparam.Entrandonocentrocomercialparabeberumgalãoecomerumpão“comdentes” – sem nada dentro,leia-se –, tem direito a maisumtesteaosseussentidos.Faztudosozinho,pedeapenasquelheponhamoaçúcarnogalão.AD.Conceição,talvezporveroclientedetodososdiasacom-panhado por um “sobrinho”brincacomosenhorValdemar:“Já tem açúcar, pode beber ! ”Desconfiadotentaconfirmarainformação atravésdoolfacto,comosedevinhosetratasse.Emalerta, talvez pelo tom de vozquevemdooutro ladodobal-cão,optaporcolocaros lábiosaocopo,soltandoumsorrisodequemcaiuemmaisumaarmadi-lha.Aspessoasqueestãonocafériem-secomele.Percebe-sequeéumapessoadacasa,ebastantequeridodetodos.

“Seja ceguinho…”

Nãotendotrocode10€,epres-tando-se a sair em busca, D.Conceição é interrompida porValdemar. “Eu tenho aquidezeuros”. Começa a t irar moe-dasdosbolsosaté fazera somadaquilo que precisa. “Estão aídezeurosValdemar?”perguntapiscandooolhoaosqueassistem.“Seja ceguinho senão estão aídezeuros!”.Agargalhadaégeral,e issodeixaValdemar comumsorrisodedevercumprido.

A certa altura acompanhandoValdemaratéà suaparagemdetodos os dias – e ouvindo osseus lamentosporeste sermaisumdiadegreve–,partilheiumpensamento com o meu com-panheiro de braço: “sinto quepodiafecharosolhosedeixar-meguiarporsi”.“Nãotenhadúvi-das.Pode fecharqueeuguio-oondequerqueseja”–interrompepara me fazer parar antes deuma passadeira. “Agora aindanãopodepassar”.“Estesinal jáestá avariado há uma data detempo,deviaapitarparaoscegosseorientarem,masnãoofazhámuito”.É realmente impressio-nanteafacilidadecomqueesteinvisual se orienta na cidade.Ainda que o percurso que fazsejaigualtodososdias,sãoseisaspassadeirasqueValdemartemdeatravessarparairdopostodetrabalhoatéàparagem.

EnquantoesperamosoautocarroquelevaráValdemaraAntanhol,onde vive com uma irmã e ocunhado,estehomemconta-meum pouco mais da sua vida.Fala-meprincipalmenteda suafé. Das suas rezas. Conta-meque “há rezas para tudo, mastêm de ser feitas no momentocerto.Eeu sei-as todas.Todososdiasantesdedormirrezoumterço,pelaspessoasquemedãoesmola.”

Nessemomentosurgeumauto-carro indicando o destino queValdemarpretendeseguir.“Pronto,tenhodeir”,atiraemjeitodedes-pedida.Aoentrarnoautocarromaisumlaivodeboadisposição:“adeus,gosteideover”.

O engraxadorde palavras

José Manuel dos Santos, ouapenas “ZéEngraxador”, éumhomemde57anosque,hojeemdia,poucomaisfazdoquepuxarolustroàspalavras.Asmãoscomquelidacomotrabalhosurgemescurecidas. Sinaldo tempodeexposiçãoàgraxa.Ousequiser-mos,agarantiadaexperiênciadetodaumavidadoofício.Debaixodobigodegrisalho,eamareladopelotabaco,aspalavrassaemcoma fluência de um rio de com-portas abertas. E o sorriso, dedentição incompleta,nãopedeautorizaçãoparaaparecer.

Segundo fazquestãodemedarlogoaperceber,éaúnicapessoaemCoimbraqueaindasededicaexclusivamente à profissão deengraxador.Mas lamenta.Nãogostade ver a suaprofissãodesempre amorrer. “A juventudenãosequeragarraraumofíciodestes.Ninguémvaiquerersujarasmãos comaspomadas, paralimparossapatosdosoutros”.

Paraexercera suaprofissão temum pequeno quiosque, abertode segunda a sábado,naPraçadaRepública.E ali permaneceincógnito.Quase invisívelparaosquepassam.“Jáfaçopartedapaisagem.Estouaquinestemesmosítiovaipara30anos.”Quertenhamuitos,poucos,ounenhunsclien-tes,émuitodifícilverestehomemdesanimado.Vai-semetendocomcarasquevêtodososdiaspassar-lhediantedaporta,ecomquem

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temdialectos,códigosesinaisquemaisninguémpercebe.

A conversa é, de facto, a suamaiorcompanhia,eéassimquegostadepassarotempo.Clientes?“Acrisetambémchegaaoengra-xador!Anteseracapazdeterunscemporsemana!Agora,setiver15jáficosatisfeito.”Hojeaindanãotevenenhum,masnãoperdeaesperança:“istopodeacontecernão ter nenhum de manhã, edepoisàtardeaparecem-meaquiunsquatrooucinco.”

Af irmanão ter horários.Mas,pornorma,apareceàsnovedamanhã e, dependendo do dia,fechaportasentreas17eas19horas.Fala comigo sentadonacadeiraondesesentamosclien-tes.Umacadeiramarcadapelossinais do tempo. “Se reparar éumacadeiradebarbeiro,masfoiadaptadaparaservirumengra-xador. Foi-me dada pelo meuantigo patrão.” Bom pretextopara contar uma história quedeveserrepetidaatodosaquelesqueprocuramesteengraxador,

com o intuito de saber maissobre uma prof issão cada vezmaisrara.

Começouatrabalharcomtrezeanosnumasapatariaquefuncio-navaavintepassos,dolocalondehojeseencontra.Depois,quandoopatrãodecidiu fecharportas,abriuo caminhoparaZézito–assimeracarinhosamentetratado–iniciaroseupróprionegócio.Aformadeiniciaroantigopupilono ofício foi dar-lhe a cadeiraondeaindahojesentaosclientes.

ApartirdaífoiveroZéEngra-xador ganharnomeeprestigioentreaquelesquegostamdeverossapatossempreabrilhar.

Outra coisaquedeve aoantigopatrão é um ensinamento quenuncamaisesqueceu:“unssapa-tospodemsermuitovelhos,masseandarembemengraxadosnin-guém repara”. Quando está apuxarolustroaumpardesapa-tos é istoque vaina cabeçadeumhomemquenãose imaginanumaoutraprofissão. “Sempre

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gosteidefazeristo.Quandoeramiúdo adorava estar a ver umsapateiroarecuperarumsapato.Acho que sempre tive vocaçãoparaestaprofissão.”

Osclientesqueoprocuramsão,quase sempre, de longa data.Contudo, “de vez em quandolá aparece um estudante queprecisados sapatos engraxadospara ir aumacerimónia.”Essaémaisumarazãopelaqualnãoacreditanofuturodaprofissão.“Agoraestasgeraçõessóquerem

sapatilhasechinelos.Emesmoosquetêmsapatosnãoseimportamde andar comeles todos sujos.Metem-nosdebaixoda cama enem se lembram deles”. Entredesabafossempremarcadospelaboadisposição,oengraxadorláconfessaquelhe“custaverpassarumpardesapatostodossujos”,masconforma-se:“nãohánadaafazer.Sãopoucososqueligamaisso.”Está na hora de fechar. Hojenãotevenenhumcliente.“Estetempo de chuva também não

a juda”, re fere con formado.“C á pa r a m i m f u i eu quenão lhe trouxe sorte”, brinco.“Nada disso ! Já lhe disse quehá dias assim. Amanhã há-deser melhor.” Enquanto fechao quiosque conta-me que “hárituaisquefazemumhomem,eeuvouparaomeuagora”,atirasorridente.Percebodoquefala.Duranteashorasquepassámosàconversafalou-medeumhábitoque cumpre sempre que pode.Irbeber “um f inooudois, atéchegar a hora para apanhar o

6”, que o leva a Santa Clara,ondemora.

Enquantoesperaqueosinaldospeões f ique verde, apoia-se namuletadeinoximprovisadaporumamigo.É essa queo ajudana sua locomoção dif icultadaporumadoençaqueo afectouquandotinhaapenastrêsmeses.“Não se esqueça de depois deacabar isso vir aqui pagar umcaneco ao amigo”, exclamaemjeitodedespedida,soltandomaisumaagradávelgargalhada.

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O homem que se faz invisível

Na rua da Sofia há uma bancaque chama a atenção de quempassa.Por entrebonés, chapéusde senhora, guarda-chuvas, cin-tos, bolsas, cachecóis, e outras“quinquilharias”, um letreiro avermelho sedestaca: “Plastificodocumentosacaloreaotoculante”.Pordetrásdabanca,quasecamu-fladopelosseusartigosestáRaulSimões Cacho, de 73 anos deidade.Enfiadonumchapéuigualaosque se encontramexpostos,este homem parece querer serinvisível.

Ealiestá.Há50anosnomesmolocal,oSr.Raulplastificadocu-mentosaocalor,aofrio,àchuva.Actualmente,diz-me,“hápoucosdocumentosparaencartar”.“Hojejáarranjeium,seapareceremmaisdoiséaminhasorte”.“Quandovimparacáeraàbicha,nemviaoscarrospassar,comtantagenteparaplastificar cartões.” “Sabe,fuioprimeiroacomeçarcomestenegócioaquiemCoimbra,depoisoutrosmeteramosolhosemmimecomeçaramaabrirporaí,mas

isto agora estámuito fraco.Hápoucoscartõesparaplastificar”.

Permanecendo algum tempoao ladodo “sobrinhodoCarne Assada”,comodizserconhecidopor muitos, apercebo-me queé um homem um pouco con-formado com a vida que tem.Duranteo tempoemque estoucomelenãovejonenhumclienteque se aproximeparaplastificarumdocumento.Poucossãotam-bémaquelesquemostramvontadede comprarumqualquer artigodosqueseencontramexpostos.ERaulpoucofazparamudarisso.Mantém-sequase incógnitopordetrásdetantosadereços,sendomuitopoucosostranseuntesquenotamasuapresença.

Apesardetrabalhardesegunda-feiraadomingo,dizqueduranteos dias da semana faz muitopouco dinheiro. “Ao sábadoe ao domingo é que me safomelhor, vendo brinquedos noparqueManuelBraga,eaícorremelhor.Devezemquandoapa-receuma excursão e ganham-seumascoroas”.Actualmenteo seudia inicia-sebemcedo.Porvoltadassetehoras

damanhãcomeçaamontarasuabanca feita de madeira desgas-tadapelo tempo. “Tenho tantafreguesiaqueàsvezesatémedáaquio sono”, ironiza.Confron-tando-ocomofactodeestarnumlocalondepassampordialargascentenasdepessoas, oSr.Raulqueixa-sedequeaspessoasnãolhepassamcartão…literalmente:“Passaaquimuitagente,masnãoqueremnadacomigo,nãodevemtercartõesparaplastificar”.

Questiono-osefazalgoparacha-mar a atenção das pessoas, e aresposta,vemnumtomdetotalresignação: “não vale a pena”.“Aspessoaspassamaqui enemmeperguntamoqueestouaquia fazer”. “Mas faz algumacoisapara que as pessoas o vejam, efalemconsigo?Amimparece-mequetemdemasiadascoisasàsuafrente,easpessoasassimnãoseapercebemqueestáaqui”,digo-lhe eu tentando incitar algumareacção.“Seaspessoasquiseremcomprar, compram, tanto faz seanuncioounão.Ealémdissoseeume chegarpara trás consigoespreitar aqui pelos lados, nãoprecisodevermaisdoqueisto”,responde-medepronto.

“O tempoestá a arrefecer, comsorte vem aí trovoada na parteda tarde, e pode ser que vendaunsguarda-chuvas.”Averdadeéquea impressãoquedá équeaesperançadestehomemsereduzaficar“àesperaquechova”.Pelasua forma de estar, este perso-nagem encarna tudo o que sepodeassociaraumgrupoaquesepoderia chamaros “VencidosdaVida”.Obviamentequemuitodiferente do grupo homónimoquecontavacomnomescomoEçadeQueirós,RamalhoOrtigão,ouGuerraJunqueiro.

Desdelogoteriadeserdiferenteporqueo senhorRaulnão sabeler.“Tenhopenaporquegostavamuitodesaberler,masapenasseiescreveromeunome”.Escreveoseunomeamuitocusto.Numadascapasqueserveparaplastificarosdocumentos,aparecem,timi-damente, algumas letras,que searrastamesepercebequeformamonomedeRaulSimõesCacho.As iniciaisde cadanomeque éseusãofeitascomosepertences-semaumacriançaqueaprendeuagoraaescrever;contudo,asletrasseguintesmaisfacilmentesecon-fundiriamcomsimplesrabiscos.

Associação CAIS

CAIS é o nome de umaassociaçãodesolidariedadesocial sem fins lucrativos,quetemcomomissãocon-tribuir para melhorar ascondiçõesdevidadepessoassem lar, ouque são socialoueconomicamentevulne-ráveis.Fundada em1994,os principais objectivosdesta associaçãoconsistememdivulgarproblemáticascomoapobrezaeaexclusãosocial, evalorizarosbene-ficiários do sistema socialenquantoelementosactivos,implementandoestratégiasdeintervençãoadequadasàs

necessidadesdaspopulaçõesaquesedirigem.A revista com o nome daassociação foi o primeiroprojectodesta, tendo sidoidealizadaparaservendidanaruaporpessoasdesfavo-recidas,tentandoconstituirumprimeiropassoparaoiníciodavidaactiva.Oconceitodestaassociaçãonão é novo. A inspiraçãoparaarevistaveiodapubli-caçãoinglesaTheBigIssue,criadaem1991,quetemosmesmosobjectivosqueasuacongénereportuguesa.Em termos editoriais arevistaprivilegiaastemáticassociais, culturais e científi-

cas, sendoqueoprincipalobjectivoéodedespertarnaopiniãopúblicaumamaiorconsciênciaparaas formasdeexclusão–como indicao subtítulodapublicação:“Despertaconsciências”.EmCoimbraoscentrosdedistribuiçãodarevistasãoaCasaAbrigoPadreAméricoeaAssociaçãoIntegrar,ehádoisvendedoresacreditados.

Santa Casada Misericórdia

Remonta ao século XV onascimentoda instituiçãoquehojeéconhecidacomo

Santa Casa da Misericór-dia.A iniciativapartiudara inha D. Leonor, porvoltadolongínquoanode1498,quando foi fundadaaprimeiramisericórdiapor-tuguesa.Desdesempreumdos principais objectivosda instituiçãopassoupela“protecçãodosenjeitados”.Porvoltadoanode1783,devidoàsdificuldadesfinan-ceiras causadas, emparte,pelonúmero crescente debeneficiados das institui-ções,aMesadaMisericórdiae os Hospitais Reais deEnfermos eExpostos soli-citaramàRainhaD.MariaIainstituiçãodalotaria.

Reportagem cadernosdejornalismo 05 47

HojeRaulestáinquieto.“Tenhode ir fazer um telefonema e orapaz da sopa dos pobres nãoapareceparaficaratomarcontada banca”. “Sabe que isto nãose pode deixar assim de qual-quermaneira.Às vezespassamaí alguns indivíduos comelec-tricidadenasmãos, e depois oprejuízo émeu”.Mais tardedoqueesperariaovendedordequin-quilharia–éassimqueaparecena sua licença concedida pelacâmaramunicipal – lá apareceoRui,umrapazqueumpoucocontra a sua vontade, lá f icaa tomar conta da banca. Raulsaiquaseacorrer,e regressadamesmaforma,poucomaisdetrêsminutos depois, já aliviado.Otelefonemaeraparaumarmazémno Porto onde quer ir buscar“v ira-ventos, que se vendemmuitobemparaascrianças”.

“Estouaverquehojenãocorrebem. Ainda por cima é a feira dos sete,passaaquimuitomenosgenteporquevãotodospara lá.Mas quando não é isso são aslojasdoschineses,quenostiramaclientelatoda.Aleiparecequeestáfeitaparaeles”,queixa-seati-randoumasmigalhasdepãopara

oar.“Gostodeverospombosavoaremparaochão,ealémdissotambémprecisamde comer,oscoitadinhos”,diz-meemtomjus-tif icativo,mudandodeassunto.

Mastambémhádiasquecorremmelhor.NumdiacinzentodecidoirfazermaisumavisitaaosenhorRaul. “Então bom dia. Comoestá a correr o negócio hoje ?”“Aindanãofiznemumtostão”,responde com ar desi ludido.“Mashojedevechover,podeserqueconsigavenderunsguarda-chuvas”, respondona tentativadeencorajarovendedor.“Esperobemquetenharazão”,continuanomesmotom.

A chuva parece teimar em nãoajudarRaul.Contudo,entretanto,apareceumclienteparaplastificarumdocumento.Eaquidescortinoaprincipaldiferençaparacomosoutros fantasmas.Praticamentenãohádiálogoentreovendedoreocliente.ComodocumentonamãoRaulcomeçade imediatoatrabalhar,ecercadetrêsminutosdepois o serviço já se encontrapronto.Enquantopreparaocartãoparaaoperação, ligaamáquina,queprecisadeestaràtemperatura

de 110º centígrados para fun-cionar. O calor que emana doaparelhocontrastacomafriezadarelaçãocliente/comerciante.

Ummútuo“obrigado”selaarela-çãoquenuncaexistiu.Ecadaumsegue à sua vida.Pouco tempodepois uma senhora aproxima-secomointuitodeusufruirdoqueestáanunciadonocartazdeletrasvermelhas.Maisumavezodiálogoquasenãoexiste.Decidoeumeterconversacomasenhora.PerceboquenãoéaprimeiravezqueutilizaosserviçosdosenhorRaul.“Quandoprecisovenhocá.Gostomuitodo trabalhodestesenhor, é muito perfeitinho. Eestáaquimesmoajeito.Eusoufuncionária judicial edou aquiumsalto.Émuitorápido,enãoconheçoninguémquefaçaotra-balhoassim[a calor].Duramuitomaistempo”.Aconversaécurta.Durao tempodaplastif icação.No f inal, para Raul são mais4,5€ ganhos. “Esta senhora jáaquitemvindomaisvezes,sabequeeutrabalhobem”,orgulha-se.

Jáchove.Nãopassamuitotempoaté apareceroprimeirodespre-venido na banca do vendedor.

Eoutro.Aspingasgrossasobri-gammuitosmaisaabrigarem-sedebaixodamesmavarandaqueabrigaRaul.Alguns resistemacomprarguarda-chuvas.“Esperoque seja passageira !”, atira umtranseunte. “Espero que duremuito tempo ! ”, deve pensa rRaul,paraconsigo.Umasenhoracansa-sedaespera:“acomoéochapéu?”. “Quatro euros”, res-ponde o vendedor agarrandoumvermelho.“Dê-meantesumpreto,sefazfavor”.Assimé.

Achuvaabranda.Foramquatroos chapéus-de-chuva vendidosnum espaço de vinte minutos.A ssim fosse todos os d ia s, equiçáosenhorRaulfossedife-rente.Outalveznão.“Hojeestáa correr melhor. Pode ser quesejaumbomdia”,digo-lheparao animar. “Era a única coisaquequeria.Devia fazer vinte equatro contosparapoder ir aoPortobuscarmaterialtãobonitoqueláestánumarmazém”,res-pondelamentando-se,maisumavez.“Vaiverqueconsegue,temde acreditar”. “Oh! Crença navida só vou ter quando mor-rer, quando estiver dentro docaixão”.

Desde então,os jogosquetêm a chancela da SantaCasadaMisericórdia têmcontribuídoparamelhoraravidadosmaisnecessitados.

A imagemde marca daMisericórdia

“Já foram mais de cin-quenta,masagora,atirandoumnúmeroporcima,diriaque não são mais de dezos vendedores de lotariade Coimbra”. A afirma-ção édeAltinoMaurício,gerentedaCasadaSortedeCoimbra.Averdadeéque

oscauteleiros–vendedoresambulantesdelotaria–sãocadavezmenos.NaopiniãodeAltino estadiminuiçãodonúmerode vendedoresdeve-seaoaparecimento,emmassa,deestabelecimentosdevenda.Masparaestehomem,queéogerentedeumdosmaioresestabelecimentosdevendade lotaria, era preferívelhavermaisvendedores,doquepostosdevenda fixos.“Esses vendedores são aimagemdemarcadosjogosda [Santa casa da]Miseri-córdia. Sãouma tradição,e tem toda a lógica quecontinuema aparecer.Até

porque,tenhopoucasdúvi-dasemrelaçãoaisso,essesvendedores vendem maislotariadoqueos estabele-cimentos.Elestêmclientesfixos,quecompramsempreosmesmosnúmeros.Ealémdissomuita gente compraa lotariaporque sentequeestá a ajudarpessoasmaisnecessitadas.Afinal,foicomesse objectivo que foramcriadosestesjogos”.Apesardisto,Altinoadmitequesãocadavezmenososquemostraminteresseementrar no negócio. Con-tudo, ressalvaque “de vezem quando ainda entramvendedores . Sobretudo

senhoresmais velhosque,chegados à reforma, nãogostamde estarparados evêemaquiumaoportuni-dadepara passar o tempoe g a n h a r m a i s a l g u mdinheiro.”Quando apare-cem novos candidatos, “éfeito um estudo, relativa-menteaosantecedentesdocandidato,paraverificarseéumapessoadeconfiança.Afinal este é um trabalhode grande responsabil i-dade”.Em termosde lucrosparao vendedor, “dependendoda quantidade vendida”,ganham entre oito e dezporcentodoquevendem.

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L e v a n t a d o s d o c h ã o

São verdadeiras obras de vida,ponteiros de sabedoria, comocordas gastas e entrecruzadas.São gente de um país grisalhonuma Europa grisalha que dárostoaosnúmerosdeumapopu-laçãoavivermaisanoscomsaúdeeautonomia.Rostosdeumpaísquecaminhaparaoaumentodaesperança média de vida, mastambém para o adiamento daidadedareforma.Rostosdeumpaís que é hoje o sétimo maisvelho do mundo e que numadécadapode chegar aonúmerocincona contagemdos cabelosbrancos.Rostosdeumpaís deidososemqueapopulaçãocommaisde60anos representaumquinto da sociedade e que até2050deverá aumentarparaumterço.DeumPortugalAtlânticoeinterior,povoadoedespovoado,urbanoerural.Dosqueforamàuniversidadeedosquefizeramaescolacomercial.Dosquesaíramdecasaparatrabalharaos12anosedosque juntaram18dedes-contosaoEstado.Dosquenuncativeramumdiadedesempregoedosquetiveramdesairparaoprocurarem.Dosquevãoàigrejaedosquenãopassamsemocafédatarde.Dosquedormemasestaedosqueselevantamdemanhãparaaginástica.Gentecomros-tos que se levantam do chão.Num“paísfeitodebocados”quenemaidadeconsegueunir.

Maria Mendes Costa: pauzi-nho de cima a baixo, menina

de mochila às costas, o cabelobranco(riscoàdireita),fiozinhode trança (de criança), camisaesbatida, cintura fina, calçasdeganga,botascastanhas.Osolhoshabitamo sorrisodoslábiosfinos,comumbrilhozinhonos olhos, é que hoje fez umamigo.Comofizeranavéspera,de véspera ou até de quem jáesqueceuonome.Mashoje fezumamigo e sem-pre ali a imagemdameninademochilaàscostasnafiladascan-tinas.Haverásemprealguémcomquempossaconversaraojantar.Hoje, foi carapau com batatascozidasesalada,depoisdeumasopaquentebemservida.O andar é ligeiro, desenvolto,rápido, sincopado, tão ágilqueultrapassaria– se competisse–oponteirodossegundosdeumrelógio apressado. Esse fora odesafio,comotantos,deoutrora.Agora,temtempoparasedarasi.Paraos livros,para as aulas,para o teatro, para a ginástica,paraamissa,parao jornal.Dizqueéumadinossaura,cujaidadenão revela. “Sou uma dinos-saura”.Setemmaisde70anos?“Oh, osdinossauros têm tantaidade”. Mais de 80? “Ai, têmmuito mais… Os dinossaurostêmmuitaidade”.Dinossauros como ela: os avósqueaossetentaetalsevãodaleidaforçadilatando;asenhoraqueteveamãeatéaos89anosequehoje é tambémelao corpoquenuncapára;aprofessoraachegar

aos90queaindatemcabeçaparaensinar o português e a mate-mática;olojistade78anoscujoimpériocomercialésinónimodetrabalhardesegundaasexta-feira.SãooPortugalde agora– “umpaís feitodebocadosquenadaconsegue unir”, assim caracte-rizouumdiaohistoriador JoséMattoso– e os sinais estão aí,contando os desafios que vêmdefora.Há20 anos, asNaçõesUnidasproclamaram o primeiro deOutubro como o Dia Interna-cionaldoEnvelhecimento.Desdeentão,aOrganizaçãoMundialdeSaúde(OMS)definiuoenvelhe-cimento activo como propostadoutrinária–quantomaisactivasfísica ementalmente aspessoasforemdurante a vida emgeral,maiorprobabilidadetêmde,noseu envelhecimento, semante-remactivasdessepontodevista,mesmo quando já se tenhamtornadoportadorasde algumasdoenças.Actualmente, o tema é, a parcomas alterações climáticas, agrandepreocupaçãodoséculo.EàpropostadaOMS,osgovernosdomundodesenvolvidoacrescen-taramumadimensãoideológica.Faceàstendênciasdediminuiçãodapopulaçãoeuropeia,oschefesdeEstadoedegovernodeumaUniãoque, em2005, era aindaa Vinte e Cinco assumiram oenvelhecimento como um dosmais importantes desafios quea Europa teria de enfrentar: a

sustentabilidade ameaçada dossistemasdeSegurançaSocial,oaumentodadependênciadosido-sosfaceaterceirosouarespostadosectordasaúde.MariaMendesCosta, a dinos-saura em corpo de menina,parece serorostodessemodelodeenvelhecimentoactivoqueasprojecçõesdemográficasnãomos-tramnosnúmerosenosgráficos.Aliestá,reformada,demochilaàscostas,nafiladascantinasdauni-versidade,emCoimbra,ondeseformouem1955nomesmodiaqueomarido.Deveráestarentreos 75 e os 80 anos.O aspectomagrodafaceedasmãosdá-lheumar frágil, compensadopelaprecisãodaspalavras enquantoconta estórias de alguém cujotempo éuma jóiapreciosaquecontrolanashoras enosminu-tos. Foi professora de Física eQuímicadurante18anos.Estáporvezes“esquecida”–“Nãocontei?Pensavaquejátinhacon-tado”–mastemomapadassuasactividadesdiáriasbemesquema-tizado.Quatromanhãssãoparaaginástica.Sehouverconferências,aulasabertas,colóquios,debates,tertúlias ou teatro, é apontar adata,ahoraeo local.Se foremàtarde,éamesmacoisa.Depois,é a missa: “à segunda, quarta,quintaedomingo;àterçanão”.Quantoàsmanhãs,explicanumaexpressão que torna o sorrisolargo eosolhosmiudinhos, sópor culpa do “desgraçado” doDiáriodeCoimbra éque falha

texto:Pedro Crisóstomo

RetratosdoenvelhecimentoactivoemPortugal

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algumas “actividades”. “Aqueledistribuidorfazperderapaciên-cia:nooutrodia,erameio-diaemeiaaindanãotinhavindo”.Sechegasse a tempodopequeno-almoço, Maria Mendes Costaaproveitariaodobro.Aprimeiracoisaque vê é a agenda. “Vêmaulas interessantes e depois…perderassimascoisas”.QuandoeraprofessoraemSantaClarajácontestava esta dança. Não hámuito,veioàuniversidade“umprofessor estrangeiro enão fuipor causadaqueledesgraçado”.Mágoaquenãodisfarça:“Fiqueitriste”.Emsabendo,tinhapegadonamochila, arrastado caneta epapeleláestariamisturadaentrealunos e professores atenta àspalavrasdooradorparano fimcolocarodedonoarainterpelaramesa.Indo“aestascoisas”,gostamaisquandocomechocolate.“Estoumaisalertaeocérebro trabalhamelhor”.Jáaconteceuestarcomdúvidas,quererperguntarenãosaber como colocar a questão.Aconselhaacomprardaquelequetemmaiscacau,que“comcho-colate apessoa ficamais seguradesi”.Ainda teve ideiade se inscrevernumcursodeestudosfeministas,mas era “muito caro”. Para seredimir,assisteaalgumasaulasdeFilosofia,naFaculdadedeLetras.Faztudocomosefossealunadeverdade.Nãodeixadeo ser; aúnicadiferençaestáemquenãofaz os exames.De resto, vai àsaulas, tira apontamentos,desceasescadasdafaculdadeparafazerfotocópias,consultabibliografia.Passa horas nas livrarias, indoàsprateleiras,comoaprenderaafazer enquanto viveunosEsta-dos Unidos. Um destes dias,disseram-lhe “que era amelhorfreguesa de uma Bertrand” dacidade.Apaixãopeloslivrosvem-lhedopai, homemdoDireito– idoparaLeiria –onde, a 70quilómetros, calculara sermais

fácilexerceraadvocacia.Écomoslivrosquefazamigostambém.Quandovãonamochila,cuidado,não são para estragar. E outracoisa:opaiensinaraquea“cali-grafiadeumapessoadizmuitosobreela”.Algumasestóriastêmpessoasdentroqueparecemper-sonagensdesseslivrosquelê.Esta é uma: o orientador dodoutoramento do marido, queconheceuemInglaterra,eraumjudeualemãoqueestiveraalgunsanos antesnosEstadosUnidosa investigar num descampado.“Iambuscá-loaeleeaosoutrosdemanhãe levavam-nos a casaànoite,nemas famílias sabiamo que estavam a fazer”. Essescientistas, conta,preparavamaprimeirabombanuclearque,em1945,detonariaemHiroshima.RudolfPeierls–“acategoriadosupervisordomeumarido”.Voltandoaoslivros,umautorquesegue:AnselmGrün,padrebene-ditino alemão.Umavez, soubequevinhaaPortugalporumdiadartrêsconferências,emFátima.“Ai,gostavatantodeir,masésóparapadres”, pensoudesolada.“Mas enchi-me de coragem etelefoneiparaFátima;expliqueiqueeraumaamantedeGrün;fuimuitodiplomática,muitodiplo-mática”. Foi, de resto, a únicamulherentreosqueescutavam.São estas “coisas” que partilhaaos ziguezagues comumaener-gia desmedida. E hoje fez umamigo.Coraçãodado,cruzandotemposepessoas.Etantas,tantas,quecarreganomesesquecidosnamochilaazul.Esquecimentosdestes–osdéficesdememória– sãoumdenomi-nador comum do processo deenvelhecimento.MariaMendesCostanãoéexcepção.“Àmedidaque envelhecemos, vamos terumadificuldadecadavezmaiornaaquisiçãodosconhecimentosenaretençãodememóriasrela-tivamenteafactosmaisrecentes.Aquelamemóriadosfactosmais

antigoseestruturadosmantém-semaistempo”,explicaaneurolo-gistaCatarinaOliveira,docentenaFaculdadedeMedicina, emCoimbra, onde investiga sobredoenças associadas ao envelhe-cimento.“Seimaginarmosque,derepente,deumdiaparaooutro esque-cemos tudo sobrenós, criamosumaextremaangústiaeissotemavercomasgrandesperturbaçõesmentais”, acrescentaMargaridaPedroso de Lima, docente namesmauniversidade,naáreadaPsicogerontologia–ciênciaqueestudaoenvelhecimentohumanodopontodevistadaPsicologia.Não há uma idade a partir daqualpodemosdizerquecomeça-mosa ficar velhos. “Envelhecertema ver como acumulardosanos, simplesmente”, continuaPedrosodeLima.Oque acon-tece,diz,équeapalavraéusadacomoumgrandeguarda-chuva,quandooqueexistesãoconstru-ções sociais. Segundodefiniu aOMS,aterceiraidadeteminícioentreos60eos65anos.No caso português, consideraCatarinaOliveira,quecoordenouumestudodeperfildoenvelheci-mentodapopulaçãoportuguesa,divulgado emMarçodeste anopeloAltoComissáriodaSaúde[ver caixa], “para nós, o idosoestámaisnafaixados70anos”.

Aos setenta e a força quetrazem nos braços

PodiamviveremCoimbra,ondenãosedesfizeramdacasanaqualconstruíramumavidademuitaforçaparapoucodinheiro.Elecomomotoristadosbombeirosvoluntários.Elanadistribuiçãodepãopelacidade.Cidade“pesada”quedeixaramparaoutros.VivemnumaaldeiadePenacova,postaentreoAlvaeoMondego,“can-

tinho”ondeperdemashoras“aosbocaditos”.Emuita forçaparapoucodinheiro.São,comotantosoutros portugueses, gente quecomeçouatrabalharaos11e12anos eque seisdécadasdepois,nareforma,continuacomoespí-ritoemmovimento,trabalhandoparadaraosnetos.Avósdenetosque“nãoparecemsernetosdestetempo”:ele,Júlio,75anos;ela,Ermelinda,menosseis.Os avós Oliveira. Avós de umapelido que carrega as raízes ea força dos anos trabalhados“comdoresdeum ladoedoresdooutro”, asquehoje sentem.Árvores com o nome da famí-lia são130,num terrenoaunscincoquilómetrosdeFriúmes–aaldeia. “Aindavamospara cimadasoliveiras”, contaErmelindacomoentusiasmodequemdeixaasdoresnocolchãoeselevantaàsseisousetehoras,porqueéafazer coisas – fazendo coisas –que se sentemverdadeiramenteúteis.“Parecequeédeusquenosdá força e coragempara conti-nuar”,acreditaestamulher,queempequenaaprendeuarepartircomdoisou trêsuma sardinhaqueiasecandoemcimadeumacarqueja.Hoje, estão “um bocadinhomelhor”, reconhece falandoemfrenteaomarido,nasaladacasaestreitadetrêsandaresquecons-truíramnaterradele.“Fomosnósqueafomosconstruindo”.Júlio,dasuaparte–comodiz–traba-lhoudesdeos12anos. “Nuncativeumdiadedesempregonemdedoença”.Manue l Vi l l ave rde Cabra l ,sociólogo e historiador, desdeNovembrode2009coordenadordo recente criado Instituto doEnvelhecimento, na Universi-dadedeLisboa,parececonhecero caso. “Oqueégravenopro-blemadoenvelhecimentoéqueapopulaçãoportuguesaquehojetem70anoscomeçouatrabalharcom12,reformou-seaos60com

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50anosdeumaactividadepro-fissional pouco enriquecedorae gratificante.Essa pessoa temhorizontes socioculturais limi-tados e – importante –nodiaem que chega à reforma – oshomens,sobretudo–nãosabemoquefazer”.Júlioreformou-seháumadécada.Estácom60anosdeCaixa.Nãoédetabernanemdecafé.Sabebemoquefazer.Nolugardasmemó-rias,éumacabeçaqueguardaospormenorezinhostodos,estátudolá.Asdatasquefalhasãopoucas.Asquenãosabeéporque,numavidaquasenos76anos,ascoisasvãoacontecendo,acontecendoe“pronto”.Dizamulher,quasenumaoração:“Ele temagenica, aquela forçadevontade”.Nãoseriadeoutraforma, ora 75 anos “é como opardal, anda-se àvontade”, res-pondeelenumrisoprolongadoquechamaaatençãoparaapelequeimada do Sol. E continua:“Ninguémnosobrigaatrabalhar,masgosto.Gosto”.Regressamosdois à estóriadasoliveiras,essaquevaisendotam-bém a da família, que vem aofim-de-semana e assiste atentaaoquedizem:– Ainda subimos, é verdade –reviveErmelinda.–Umavez,trazíamostrêssacosnumcarrodemão.– O senhor sabe o que é? Umcarrodemão, assim…– inter-rompeamulher,quetomalogoavezdomarido–Íamosnocarrodemão,eleàfrenteasegurarossaquitos de azeitona por causadaladeira.E isto tendo ele uma pernadoente e reformada, depois deandarlásobreostroncoseanéisafazercairasazeitonas.– Apanhadas por mim e pelaminhamulher–repeteJúlio.Pior é acartaros sacosdebata-tas. Dores de um lado, doresdo outro. Mas batatas acarta-rão esquecendoo lamento,que

são para acompanhar a chan-fanaassadanofornodatraseirada casa. “Se trabalho é porquegosto”,frisaJúliomaisumavez.“Só não ando agarrado a umvolante [de pesados], porque,primeiro,tenho70porcentodeinvalideze,depois,sómedeixa-ramaBeB1[cartadeligeiros]”.Ermelindanãoconduzhá30anos(“aindaandeialgumtempoacon-duzir”),masnãová serpreciso,tratoudarenovação.Assuasvidassãodeumaorgani-zadaagitaçãodecoisasparafazer(entreidasaCoimbra,ondeman-têmaantigacasa,eaoutramaispequenanumterrenopróximo).Com a força que trazem nosbraços,sentirem-sevelhos?Ares-postasaifirme,resoluta:“Sinto…Opesodos75 jáos sintobemnascostas”,assumeJúlio.Continuar,continuaa levantar-sedemadrugada. “Para cavar aterra”.Ouparaaquelasestórias,asdivertidas.Àsvezes,aindadenoite,levanta-separaescrevernodiário.Assim:“sulfato,morreuoManel,aMaria,nomêstaltenhode pagar o seguro da casa, docarro,oselo”.Chegaaestar“umaouduashoras acordado”nisto,comentaamulher.Dormepouco,masoesforçoérecompensadonahorademaiorcalor.“Sonequinhaàtarde”–confessa–“uma,duashorasninguémmetira”.Voltandoaoqueforam,éErme-linda quem fala agora: “Comnove anosde idade, tiveque irtrabalhardescalçaecomosfarra-posquemedavamparaCoimbra,emSantoAntóniodosOlivais.Eratãopequenaqueolhavaparaomonteemfrenteepensavaqueera Paradela da Cortiça, ondeeu nasci, e gritava a chamar aminhamãe”.Aspalavrascorremnumrespiraremocionadoqueosolhostentamconter.“Quandofizacomunhão,andávamosdescal-ças.Ovestidofoifeitodepanodelençol;asoladassandáliasdeuma caixa de papelão daquele

castanho;e,porcima,umastirasdepano.Naigrejaaindatinhaassandálias;quandovimparafora,jánãoastinha”.Oarpesadosustémsegundosdetensãonasalaonde,àmesa,abreasgavetasdamemória.Maisumaabrirá,presaàrevoltalatente.Estava já casada. Vivia numacasinhanoBecodoFanado,noTerreirodaErva, emCoimbra,“divididacomcortinas–omeumarido deve estar lembrado –queatépareciaumacasinhadebonecas”.Recebeu,umdia,umpostalcomonomedosdoisparase apresentarem na assistênciasocial. Era o tempo em que,para vestir, “ia fazendo velho-novo”.Vestiufatodomingueiro.“A senhorada assistência socialmirou-medospés à cabeça”.Aajudafoiessarespostadoolhar.Ermelindanuncamaisquisnadacomaassistênciasocial.JúlioOliveiraestálembrado,sim.São estórias que não se esque-cemjamais.Numresgatebrusco,monologa ele a seguir as suas.Estafoiaseguira1957,depoisdeterfeitoatropaeentradonosbombeiros:“Veioumamobiliza-çãoparaSantaMargarida.Nãotinhadinheiro.Jánaalturahaviacrise.Levei60escudosnobolso.Andei lá 47dias. Sabe como équefaziaparamebarbear?Iaaosbalneários,apanhavaosrestosdesabãoeaslâminasqueosoutrosdeitavamforaeeraassim”.

Volver à terra, precisamos de imigrantes

NaBeira,subindoaTrancoso,éamesmaforçaquepoucodeixatombar.Naaldeiaquejánãotemportasondebater,PalmiraVarelasestáquase semprepara alémdaportadecasa.Trêshorasbastarãoparapercorreravinhaadireito, com16 litros

desulfatoàscostas,bonébranco-azul na cabeça, bolsa presa nacintura.Delonge,éumaformigademochilacarregadaacaminhoda escola.Sulfata, sulfata.Regacadapédevideirasemdeixarumparatrás.Vaivendoondenãohápegadaspara saber asqueestãoporcumprimentar.“Asfolhassãoospulmõesdavideira.Aspedrasosossosdavinha”.Chamarsul-fatoaoquelhespõe“nãoébem”.Maisbemdito: émirra,umpóbrancoquesemisturacomágua,omesmoquesedeitaàbatateiraeaotomateiro.PalmiraVarelas é o corpo quenuncapára.Setentaeseisanoseaquelecar-regopela espinhacimaabaixo,cima abaixo, apercorrer1600videiras.AmãeDomingas fariaem2010cemanos.Morreuaos89.Desaúde,lúcida,lúcida,comoandardabengala.Faziarendaecantava.SeagenicadePalmiraéde família? “Nunca vi aquelamulherparada.Trabalha,nãotemnecessidadedaquiloedepoisandacansada”, aponta uma amiga,Maria Arminda Almeida, umanomaisvelha.Seodizéporquesabe.“Estouvelhota”.Palmira:semprenavinha,semprenahorta.Batatas, alhos, favas,ervilhas, tomates, morangos,maçãs, ameixas,peras, frambo-esas,cerejas.AtéoPresidentedaRepública provou das suas naúltimavisita aTrancoso.Éesteumdos reinosmaravilhososdeMiguelTorga.EscreveassimemPortugal: “Cônscio dessa forçatelúrica, o homem beirão tiradela todooproveitopossível”.Nãoé,pois, sógenicade famí-lia.Hátambémali“ummundointeiroseuparasonhareparaserefugiar”,acentuaoescritor.Sonhar,Palmirasonha.Refugiar-seénavinha.Sehouverdiaemquenãoenfiaasbotasdemon-tanha, das duas uma: ou nãoestáemMoreiradeRei–éaquia sua terra – ou alguma coisa

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aconteceu.Setedamanhãeláfoiàvinha.Deixouonetoadormir,“coitadinho”. “O Pantufa é onetodaPalmira”,diziano cafédaaldeia,navéspera,umaprimade89 anos.Neta,Palmira temuma,masestálongecomamãe.Eele,“coitadinho,estásempreadormir”.Umcãodepêlopretocompridoeencaracolado,agoratosquiadoecomfrio.Umespec-tadordaficçãonacional,ànoite.Umcompanheiroparaocafé,demanhãeàtarde.Oalmoçoéporvoltadomeio-dia.Acasacheiraamaçãselenhaqueimada.A seguir ao almoço,voltaráàvinha.Sãovinteminu-tos/meia hora de caminho noritmoque leva.Uma ida eumregresso de manhã, mais doisà tarde – quase duas horas deexercícioacadadia.Atrabalharodiainteiro.Foi assimnos32 anos emqueesteve emigrada em França.Haviaenviuvadoaos27.Cabelolouro, olhos azuis, pele muitolímpida.Euma f ilhade cincoanosnosbraços.Seisanosdepois,nesse f im de Janeiro de 1968,foiasaltoparaParis.Porcincocontos,pagouaumapassadora.“Deixeiafrogonete,tudo”.Atra-vessouumavinhaapé,naraia,em Vilar Formoso, com maiscincomulheres.EmMaio,tremeucoma“granderevoluçãodosestudantes”,alturaemqueopoucofrancêsquesabiaaobrigavaafalaremlínguages-tual.Foiaprendendo.Estevenacasadeumamarquesa, depoisnadeumaargentina.Quiseramlevá-laparaItália.Até2000,foiempregadadelimpezanacasadeumacondessabelga.Vivia(dor-mia)numquartonoprédiodospatrões.“Passeimuito,homem”.Orestoéoquesesabe.

Quarentaanosvolvidos,omelhorquePortugalpodefazer,entendeManuelVillaverdeCabral,érece-berimigrantes.“Há10anosqueentrámosemestagnaçãoeconó-mica e não temos imigrantes;antespelo contrário, estamos ateremigrantes,oqueéumfactorde envelhecimento conhecido.Portugaltevesempreumaatitudemuitopoucointeligenteeclari-videnteaesterespeito.Somososétimopaísmaisenvelhecidodomundoeprevejoquedaquia10anosvamosestardentrodoscincoprimeiros”.Em contrapartida, perspectivao sociólogo, aspessoasquevãoter60anosdaquia40“sãopes-soas com capital escolar, comuma informação euma forma-çãoquelhespermitepensarquese comportarãode formamaisinteligente do que nos temoscomportadoatéagoraperanteofenómeno”. “Provavelmente”, adensaCata-rina Oliveira, “vão ter maisautonomia,no sentido emquedominammuitomelhor a tec-nologiaesabemmanusearmuitobemumcomputador”.Éoidoso“capazdegerirtodososprocessosquetemosactualmente”.Porenquanto,sentenciaPalmiraVarelas,“nós,morrendo,acabou,éumcanudo”.Por isso, reza ecantaaMaria:“Enquantohouverportugueses,tuserásoseuamor”,entoa com as 13 senhoras quevãonessemeiodeMaio,mêsdeMaria,aoterçodasoitodanoiteàigrejadeMoreiradeRei.Se Maria Mendes Costa a l iestivesse, rezaria. Em Coim-bra, também é em actividadesreligiosasqueprocuraocuparotempo,percorrendooscantosàsuacidadedesempre.Enquantoaponta o dedo indicador para

cima, como se falasse ao céu,revelaquealgumasdasactivida-desnasIrmãsdoSagradoCoraçãode Jesus são sóparaquem temmenosde25anos.Compreendequeassimseja–“osJesuítasapos-tam nos novos” –, mas é umapenaquelhevaificandocravada.Hádois, três anos,decidiu ir aFátimaapé.Terminoua cami-nhada de carro, não que lhedoessem as pernas ou os pés.“Não, não foi por razões físi-cas”,atalha,passandoaexplicar:“Ia a caminhar.Não tinhapro-messa.Sóqueria ver comoera.Acerta altura, comecei a inter-rogar-meque sentido fazia ir aFátimaapé.AspessoasadoramanossasenhoradeFátimacomose fosse deus, mas, para mim,nossasenhoraéumacoisaedeusé outra”. Chegou ao santuáriodando“aágua,a frutaeopão”aosperegrinos.

Aos noventa, descascando palavras

Ocaminhode IdalinaSantiagotemsidooutro,aos89anos,maisfeitoemcasadoquenaestrada.Na noite anterior, antes deadormecer, jánoquarto, seguiainteressada um artigo de umaviagemdeGonçaloM.TavaresaMoscovoeS.Petersburgo.Tinhalidometade e eisque lhe surgeumadúvidacolossalnaconstru-çãodeuma frase.Pegano lápisque temo cuidadodepôr “nocabeceiro”para situações seme-lhantes(acontecenãorarasvezes,confessa)e,numafolhapautada,decompõesintacticamente,umaauma,aspalavrasdafrase.«Foiemcadernoscomooquetrazagoraquecomeçouaescreverpequenos

textosque,depois,abandonava».“Querodizer,leioe,semquerer,analiso”. Andou intrigada semsaberoque era aquele segundo«que» atémeioda tardedodiaseguinte.IdalinaSantiagoensinoudurante40anos.VinteemtrêsescolasdePataias, concelhodeAlcobaça,outrasduasdécadasnaNazaré.Continua a ensinar, em Peni-che,ondevive,aquemlhebateà porta por afinidade. Ensinalínguaportuguesa,matemática,históriaououtrasmatériasquetiverdeaprenderparaensinar.Enquantoas sobrinhas sepren-demàtelevisão,vaiaocorredorbuscaroscadernosdaescola,de1931e1932,dequandoandavanas terceira equarta classes.Asrelíquiasencerramcadaumasuaestória. Nas páginas dos livrosestão desenhos coloridos seusdequandoera alunadamãe:oaçucareiro em estanho do lar,o chapéu do padrasto, a caixamétricadaescola,ondeestavamguardadosos sólidos, ospesos,a balança. E está lembrada detodosessesobjectos?“Detodos.Estou tão satisfeitade terguar-dadoisto”.Margarida Pedroso de Limalembra que “se tivermos umadeterminada actividade inte-lectual – se fizermos Sudokuou exercícios semelhantes – éóptimoparaprevenirodeclíniodamemória”.Idalina deixou, agora, de assi-naro Jornal de Letras.As letras–nãoasdavida,masasdojor-nal–parecem-lhetãopequenas,ao contráriodasoutras,queosolhoscansamsódefolhear.MasaVisãoaindavemtodasassemanas.Hoje,foiasobrinhade14anosquelhatrouxe.Poupou-lheumadescidaaocorreio,noandarde

Aos noventa, descascando palavras

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baixo,que jádemanhã saíraàscompras,eaindaasvaidesceresubirporumavezparapedirumabica cheiano caféquedobra aesquina.Ésóatravessararuadeseguida e andarunspassosquenãochegaadoisminutos.Bica:écheia,pois,ecomaçúcar.Quandoeranovaerasemaçúcar,mas foi só descobrir como eramelhor assimepassou adeitá-lo sempre. O pão, ao lanche,trocou-o por pequenas tostas.Tomadascomleiteachocolatado.Depacote.Masdeitadonachá-vena,comosebebeochá.Quando é para ter a televisãoligada,énaSICNotícias.NestemomentoestánaMTV,mudaramas sobrinhas de canal, mas seIdalinaSantiagofossemãedelasnãoasdeixavaestarassimavera pop com o volume tão alto.QuempassassenaruadoSolealientrasseporunssegundos,diriaqueatiaouvemelhordoqueassobrinhas.Para elas, faz uma panela desopacheiatodososdias,mesmoquando,noVerão,vaiàpraiadoismeses seguidos.Elas adoram adenabiças,quelevaarroz,umasvezes com cenoura, outras sócombatata.Dacozinhaàsalachegaemcincosegundos.QuandooParlamentoainda “eram tempos”, acompa-nhava tudo. Hoje, acompanhapelatelevisãoediscute.Ocora-çãobatemaisdoladoesquerdo.GuardaumrecortedoDiário de Lisboadosanos80deumanotí-ciaemqueerarelatadoocélebreepisódioemqueNatáliaCorreiaproferiuopoemado“trucatruca”aodeputadoJoãoMorgado.Istofoijámuitodepoisdecomeçaralerjornais,porquenosprimeirosanos de casada empenhava-semaisnosromances.

Na literatura, venera JoséSara-mago, de quem tem todos oslivros.Jangada de Pedrafoiopri-meiroqueleu;Caimjáoarrumouno armário pesado da sala, aoladodosoutros.DonovoacordoortográficodaLínguaPortuguesa,nãofazcontadeaprender.Poucoaincomoda:àhoraquedizestaspalavrasjáhaviadescobertoqueotal«que»doescritorsetratavadeumsujeitosubentendido.

Esquecer-se da idade da reforma

Ideias:sempretevemuitasideias.“Comoemqualqueridade,pen-samosemfazercoisas”.Portealtoemagro,écomumavozcalmaeponderadaque JorgeManuelMendesdescreveosdiasdetra-balho,aos78anos,nagerênciado negócio que nasceu pelamãodopai e que ele fez cres-cer somando lojasnaPraçadoComércio, emCoimbra.Só alitemquatro.“Digoqueaquintaé adomeu sobrinho”, tambémnapraça.Entra àsdez e sai àuma;voltaàs quatro e sai às sete. Atentetelefonemas de clientes, reúnecomfornecedores,conferepapéis–estáapardetudo.Temaajudadofilho,Jorgecomoele,jáopaise chamava assim e um sobri-nhoamesmacoisa.Éo«SenhorManuel»,paraevitarquetrope-cemnooutronome.Chega do lanche com tecidosnasmãos.Circulaverticalentreosfuncionáriosdaloja–“todosdequarentaepoucosanosparabaixo”–equipadedicadaenaqua l sente conf iança. Segueparaoescritório,ondesecon-centra a conferir papéis com

umacanetapretaeoutraverme-lha.“Avancecomistorápido”,apeladevagarparaumfuncio-nário.“Veja-meaíotelefone”,pedeaoutra.Antigamente, entrava às oitohoras.Agora,mesmochegandomaistarde,trabalharéumaneces-sidade.Eéumacoisacuriosa,diz,“quando chegamos ao fim-de-semana,essesdoisdiastornam-semuito mais atractivos, porqueprecisamosdedescansarouque-remospassear”.Comenta o sociólogo ManuelVillaverdeCabralaestepropó-sito:“Nospaísesdesenvolvidos,os idosos sãoummercado fan-tá st ico. No nosso, têm estacondição socia l acumulada,reformas muito baixas, e nemsequerbenef iciamdo interessequeomercadopudesse ter: sãovotadosaumaespéciedeesque-cimento”.OsenhorManuel,odaloja,nãoseimaginaaestaremcasafrenteà televisão. “Infelizmente, tiveum período em que deixei detrabalharpor estar adoentado”.Logoquepôde, voltou àPraçaVelha.Foi quando o pai faleceu quetomouagerênciadafirma,como irmão Júlio. “Ora, eu tinha33anos”,atira semumapontadeincerteza.E,pegandonumafolharosaporestrear, fazumacontarápidaparaconfirmarnopapelquantosanospassaramatéchegara2010.Impressionamosquatrosegundosdoraciocínio,quasedecabeça,sórecorrendoàcanetaparaconfirmaraconta.“Ora, 78, 33, cinco, quatro: omeupaifaleceuhá45anos”.Odiaemquesereformouofi-cialmentenopapelnãorecorda.“Aconteceuatéumacoisaengra-çada. Andei a pagar o bilhete

inteiro dos comboios sem terconhecimento de que já tinhadescontodereformado”.Nuncasentiu essa passagem formal,porque “na altura trabalhava a100 por cento”, dez horas pordia.Conduz“perfeitamente”.Perdeuacarta,esquecidodequetinhaumadatalimitepararenovarotítulo.Deixoupassarodia,umacargadetrabalhosquelhevaleudoismesessemdocumentos.Eumexamede condução. “Tiveasortedefazerduasaulasparaperderosvícios.Estouconven-cidodequereprovavasenãoastivesse feito”.Senão lhe tives-semrenovadoacarta,nãohaviapercorridoos250quilómetrosao volante atéTrás-os-Montesnof im-de-semanaanterior.Oshábitos do café da manhã e aseguiraoalmoçomantém.“Quandoeranovito,erabastantefrágil”,masosanosdedicadosaodesporto,sobretudoaobasque-tebol,favoreceramimenso.Eraummauatleta,ajuízaemnomepróprio, mas uma dedicaçãoenorme. Osgrandes amigosdehoje sãoosda escola comercialeosdodesporto.Mas tambémosque, aopassaremàportadaloja,batendoachuvanacalçadadaPraçaVelha, sobemodegraudaentradaparaocumprimentar.“Este”,oamigoMário,“tem92anos.Aindaconduze,noVerão,vaiparaoAlgarvepassarfériasdecarrosozinho”, resumeosenhorManuel. Agora, sentar-se paraconversar assimdonada sobreuma vida? Responde o amigoMárioquenão.Chove.Mesmoseestivessebomtempo.E, agora, vai jantar.No fundo,aos 92, é comoos outros: temmaisquefazer.

Aos noventa, descascando palavras

56 cadernosdejornalismo 05 Reportagem

O QUE É O ENVELHECIMENTO ACTIVO?

Paraalémdasrecomendaçõesdeactividadefísicaeintelectualmáximaao longoda vida,propostaspelaOrganizaçãoMundialdeSaúde(OMS),oenvelhecimentoactivoétambémumadoutrinacomumadimensãoideológicaeeconómica.NaspalavrasdosociólogoManuelVillaverdeCabral,“ofactodeoenvelhecimentoactivosurgirnomomentoemqueosfactoresdemo-gráficoseeconómicoscolocamsobrepressãoa sustentabilidadedosistemadesaúdeedasegurançasocial”evidenciaqueadoutrinavemideologicamenteemapoiodaspropostasliberaisdeprolongamentoda idadeda reforma”.Naverdade, “quantomais saudável e activaforavidadeumapessoa,oscustoseconómicosacabamsempreporserreduzidos”,peladiminuiçãodosencargosdesaúdeaoEstado.Numolharbalançado entre asduasdimensões,VillaverdeCabralatira:“Fazeraspessoaslevantarorabodacadeira,desligaratelevisãoeirparaaruaéclaroquenãosedecretaporlei”.

O PERFIL DO ENVELHECIMENTO

Dadosdivulgados emMarçode2010peloAltoComissariadodaSaúdemostramque sãopoucas as pessoas commais de 55 anos(apenascercade1porcento)queprecisamdoapoiodeutensíliosoudeterceirosparaandarememcasaenarua,ouparasevestirem,despirem, levantarem ou sentarem. Realizado pela Faculdade deMedicinadaUniversidadedeCoimbraemcolaboraçãocomaFacul-dadedeCiênciasMédicasdaUniversidadeNovadeLisboa,oestudotraçaoperfildoenvelhecimentodapopulaçãoportuguesacentrandovariáveiscomoasaúdefísicaementaleaautonomiadosindivíduos.Fazercompras,usarotelefone,gerirodinheiro,tomarmedicamentos,conduzirouutilizartransportespúblicossãotarefasjáconsideradassituaçõesdesfavoráveispara20porcentodosavaliados.Noquetocaàlocomoção,oshomensapresentamumapercentagemdesituaçõesmenosdesfavoráveisdoqueasmulheres:meioporcentoparaeles,contradoisporcentoparaelas.Noentanto,comparandocomosexemplosdeautonomia instrumental (acimaenumerados),sãooshomensque estão associados aumapercentagemmaiordesituaçõesdesfavoráveis.Adiferença é superior a30por cento:38paraeles,7,7paraelas.

Reportagem cadernosdejornalismo 05 57

O PROBLEMA DO ENVELHECIMENTO É TAMBÉM O DA SEGURANÇA SOCIAL

OchanceleralemãoOttoBismarckfoi,em1889,oprimeiroadefinirumprogramadesegurançasocialparaaspessoasidosas,estabelecendoos70anoscomoa idadedareforma.Sóem1916équeessetectobaixouparaos65.Para apsicóloganaáreadoenvelhecimentoMargaridaPedrosodeLima, “uma idadeobrigatóriade reforma éuma coisa estranha”,quandodeveria“haverapossibilidadedealguémpoderdiminuirotempodetrabalhoouatédeixardetrabalhar”.Asperspectivas,noentanto, sãoparaqueoaumentodaesperançamédiadevidaconduzaaoadiamentodaidadedareforma,dosactuais65paraos70anos.Nasúltimasdécadas, a sustentabilidadedo sistemadeSegurançaSocialfoisendoameaçadapelastendênciasdemográficas.UmestudodaUniversidadeNovaperspectivaque,em2035,quemtiver40anosdecarreirapoderáterdetrabalharmais14mesesparaalémdos65anos,parareceberapensãonatotalidade.Poroutro lado,observao responsáveldo InstitutodoEnvelheci-mento,todososEstadosqueremquefaçamoseconomiasparaalémdasreformaseisso,acredita,“embrevevirá”,comaaplicaçãodeumpatamarnovalordareformaparatodososcidadãos.

Junhode2010

58 cadernosdejornalismo 05 Crónica

C o re s f r i a s

á muitoquenão vianuvens cor-de-rosa.O anunciar da trovoada em todoo seuesplendor enquantoo sol adormece.Cor-de-rosa éumapalavra estranha.Asnuvensque vejonão sãobrancas,muitomenos amarelas ou vermelhas (seráque inventaramestaspalavrasmais cedo?)Metáforas emaismetáfo-ras, descontextualizadasnesta esplanada entorpecidapelo frio cortante.Olhopara o restodo teu abatanado epergunto-mecomovaishojedormir,enquantotuterisapenascomoslábios.Sim,porquequandoterismesmoeles fecham-se.Os teusolhos fecham-se, cúmplicesdesse espasmogenuínoque te leva a inclinar a cabeçaparao céu e a soltares aquela gargalhadaque vale por qualquer outro som.Anoite cai, lentana suaperformance.O frio torna-se insuportável, jámal consigo sentir os dedos, jámal consigo acender o isqueiro.Olhopara asnuvens cor de alguma coisa enquanto passo distraidamente a chávena escaldada de uma mão para a outra.Tu levantas-te parapagar, impenetrável, fartado vento, dospombos, de tudo aquilodeque tambémeu estoufartaesótusabes.Fugimosdaruacompassadaslargas,tentandoconfundiroargélidoquenosconhecetãobem.Tu segues aomeu lado, irritada,maldizendo tudooque vaidesdeo inverno até aos trópicos.Euouço enadadigo.Tucontinuasenãoentendesaminhacalma.Euouçoenadadigo,rio-metambémcomosdentescerrados,sóparanãodarparte fraca.Balbucio algo incompreensívelpara tique abotoas furiosamenteo casaco até cima.Eunotoenadadigo,guardoaspalavrassussurradasparaasmuitascartasqueaindanãoteescrevi,enquantotucorresparachegarprimeiro.Numatentativademostrarqueapenasteinsurgescontraoquerealmentevaleapena.

Crónica cadernosdejornalismo 05 59

C o re s f r i a s Eliana Neves

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Cartoon cadernosdejornalismo 05 61

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A função das notícias

é sinalizar um acontecimento;

a função da verdade

é revelar os factos escondidos.

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