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caderno didático básico e disponível eletronicamente, voltado para a disciplina Sociologia do Trabalho. IFG - Goiania

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Sociologia e Trabalho: Uma Leitura Sociolgica Introdutria

Walmir Barbosa

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SUMRIOAPRESENTAO.................................................................................................................04 1. AS CINCIAS SOCIAIS...................................................................................................05 2. AS TEORIAS CLSSICAS ..............................................................................................11 2.1. O Pensamento Positivista................................................................................................11 2.2. O Pensamento de Marx...................................................................................................13 2.3. O Pensamento Liberal de Max Weber ..........................................................................27 3. O SENTIDO ONTOLGICO DO TRABALHO............................................................35 4. HISTRIA, SOCIEDADE E TRABALHO.....................................................................39 4.1. Sociedade Primitiva e Trabalho.....................................................................................39 4.2. Sociedade Escravista e Trabalho ...................................................................................41 4.3. Sociedade Feudal e Trabalho .........................................................................................43 4.4. Sociedade Moderna e Trabalho .....................................................................................50 4.5. Sociedade Contempornea e Trabalho .........................................................................60 5. CAPITALISMO, DINMICA DE REPRODUO E CRISE.....................................71 6. UMA ABORDAGEM CRTICA DO ESTADO..............................................................85 7. ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL107 8. PADRO DE ACUMULAO CAPITALISTA NO BRASIL DO SCULO XX .....119 8.1. Introduo........................................................................................................................119 8.2. Reorganizao da Cafeicultura e Industrializao ......................................................120 8.2.1. A Formao do Assalariado Urbano ..........................................................................122 8.2.2. Da Manufatura Indstria: A Difcil Transio ......................................................124 8.3. Estado, Classe Operria e Padro de Acumulao de 1930 a 54................................129 8.3.1. A Revoluo de 30 e o Surgimento do Estado Intervencionista...............................130 8.3.2. O Operariado no Conjunto das Transformaes do Perodo ..................................133 8.3.3. Industrializao e Padro de Acumulao.................................................................136 8.4. Padro de Acumulao Capitalista Internacionalizado ..............................................142 8.4.1. A Nova Fase de Expanso............................................................................................144 8.4.2. Contradies e Desequilbrios do Novo Padro de Acumulao e Financiamento Capitalista ...............................................................................................................................147 8.4.3. A Crise de 1962 a 1967.................................................................................................149

3 8.4.4. As Caractersticas do Ciclo Econmico do Milagre Econmico Brasileiro ........155 8.5. Contradies e Crise do Milagre Econmico Brasileiro..........................................160 8.6. O II Plano Nacional de Desenvolvimento......................................................................163 8.6.1. O II PND: O Prolongamento da Acumulao Precedente e a Postergao da Agonia......................................................................................................................................164 8.6.2. O II PND e as Contradies Burguesas......................................................................167 8.6.3. Contradies e Crise do II PND..................................................................................170 8.7. A Articulao do Modelo Econmico ............................................................................172 8.8. A Transio Para o Novo Padro de Acumulao Capitalista e de Financiamento .180 9. GLOBALIZAO E REESTRUTURAO PRODUTIVA........................................183 10. IMPRIO E DESTRUIO...........................................................................................207 Anexo 1

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APRESENTAOConvivemos com um perodo histrico particularmente difcil para o mundo do trabalho. A democracia liberal reduzida a um carter formal e a economia de mercado global acima da poltica de sentido pblico e das necessidades humanas, tm determinado fenmenos sociais como o acirramento das contradies e conflitos sociais, a busca pelas solues individuais, a desideologizao do debate poltico e o avano do relativismo, do irracionalismo e do niilismo na sociedade atual. O cinismo percorre o pensamento e a ao social de grande parte dos indivduos e grupos sociais que tm conservado o acesso privilegiado aos bens materiais e culturais. Legitimam e justificam, de forma ativa ou passiva, direta ou indireta, explcita ou implcita, a democracia liberal formal e a economia de mercado global, arquitetas do fascismo social em curso em todo o mundo. O presente texto pretende-se uma contribuio de carter introdutrio, no mbito de temas sociolgicos e histricos, no sentido de proporcionar uma instrumentao terica e metodolgica de abordagem crtica da realidade atual. O enfoque buscar uma abordagem de totalidade da realidade a partir do mundo do trabalho. O presente texto pretende-se constituir em um caderno didtico bsico e disponvel eletronicamente, voltado para a disciplina Sociologia do Trabalho. Enquanto material didtico concebido eletronicamente nos permitir a sua reapreciao e reestruturao continuada a partir da avaliao permanente conduzida por alunos e professores da disciplina. Em que pese os limites de um texto de carter introdutrio e do prprio autor necessrio que se registre as contribuies de Ana Paula O. S. Nunes e de Sebastio Cludio Barbosa. Estas contribuies ocorreram por meio de leituras crticas e debates pessoais, nem sempre assimiladas pelo autor.

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1. AS CINCIAS SOCIAISAs cincias sociais possuem como objeto de investigao e estudo o comportamento social humano. Comportamento este que pode assumir diversas expresses e formas sociais. medida que o conhecimento acerca do comportamento humano foi sendo ampliado, as cincias sociais foram se dividindo em diversas cincias particulares. Dessa forma se consolidaram na: a) Sociologia, que se ocupa do estudo das relaes sociais e das formas de associao dos diversos grupos sociais. So temas de investigao da sociologia a diviso social da sociedade, os conflitos scio-politicos, os processos de mudana social etc. b) Economia, que se ocupa do estudo do processo de produo, circulao, distribuio e consumo de bens e servios. So temas da investigao da economia o padro de acumulao capitalista vigente, as polticas pblicas sobre a esfera do mercado etc. c) Antropologia, que se ocupa do estudo das origens e desenvolvimento da cultura dos diversos grupos humanos (tnico, nao etc), bem como suas identidades culturais. So temas de investigao da antropologia a indstria cultural, mitos e ritos antigos reminiscentes na nossa contemporaneidade etc. d) Cincia Poltica, que se ocupa do estudo das relaes de poder no mbito das macro e micro estruturas sociais. So temas de investigao da Cincia Poltica o carter e o papel do Estado, as lutas e conflitos polticos etc. Surge a Sociologia Conforme disse certa vez um pensador no h raios em dia de cu azul. Os fenmenos, sejam eles naturais ou sociais, so fruto de condies e circunstncias que podem ser mais ou menos evidentes, mas que sero sempre determinantes para a sua materializao. A sociologia surge como o resultado de condies e circunstncias historicamente determinadas. A acumulao primitiva do capital, que transforma o trabalho em mercadoria e revoluciona a produo e a circulao das mercadorias, e a emergncia do urbanismo, antropocentrismo e do esprito crtico-investigativo, que dessacraliza a poltica e o Estado e coloca o pensamento liberal e contratual no centro das relaes sociais, desagrega

6 progressivamente o chamado Antigo Regime, isto , a sociedade de ordens, o absolutismo e o mercantilismo. Entre os sculos XV e XVIII transformaes progressivas nas esferas sociais econmicas, polticas e culturais esto, portanto, em curso. Como conseqncia, ocorrem as revolues industrial e burguesa, de forma a consolidar definitivamente a sociedade moderna e o projeto social burgus. A afirmao da nova sociedade intensifica as contradies e os conflitos sociais. Os conflitos de classes envolvendo as classes sociais tradicionais (aristocracia, artesos e camponeses) e as classes sociais emergentes (burguesia, camadas mdias e proletrios) e, principalmente, as novas classes sociais fundamentais, isto , a burguesia e o proletariado. A sociologia surge, portanto, para refletir sobre as transformaes, crises e antagonismos de classes que acompanham a afirmao da sociedade industrial e burguesa. A sociologia no surge para contestar e/ou criticar a nova sociedade em consolidao. A preocupao fundamental dos primeiros socilogos consiste na reorganizao e reestruturao da sociedade capitalista e burguesa, de forma a encontrar um padro social saudvel. O compromisso para com a preservao e manuteno da chamada nova ordem capitalista encontra-se explcita no pensamento dos primeiros socilogos. A objetividade cientfica na sociologia O conhecimento cientfico objetivo ou objetividade cientfica uma busca permanente de toda cincia e de todo pesquisador. Nas cincias sociais este objetivo no facilmente alcanvel. Os fatos sociais so singulares, no se repetem jamais. Tal singularidade priva as cincias humanas da possibilidade de formular sistemas explicativos causais, o que faz de qualquer fato social e de qualquer pesquisa sobre ele, processos sociais singulares e sujeitos arbitrariedade do sujeito que investiga o objeto. necessrio, portanto, reconhecer o quanto problemtica a questo da objetividade cientfica nas cincias sociais. De fato, podemos nos deixar conduzir, no estudo da sociedade ou de grupos sociais a que pertencemos ou com os quais nos identificamos, por um conjunto de idias, crenas e valores que apreendemos ao longo da nossa existncia. Hoje reconhecemos mais claramente que a imparcialidade e a neutralidade do sujeito que investiga frente ao objeto investigado uma iluso, uma miragem cada vez mais raramente no reconhecida. Este fato, todavia, no pode ser tranqilizador. A objetividade cientfica, que no

7 de forma alguma facilmente alcanvel, pode ser conquistada. Portanto, necessrio buscar o distanciamento ideolgico-poltico frente ao fenmeno investigado e a abertura para novas possibilidades tericas, metodolgicas e tcnicas na investigao do referido fenmeno. A sociologia no Brasil Transformaes profundas tm incio no Brasil a partir da lei Eusbio de Queiroz e da Lei de Terras, ambas de 1850. Por meio delas tem incio a transio do trabalho escravo para o trabalho livre e a transformao do trabalho (no do trabalhador) em mercadoria, isto , tem incio a transio das relaes escravistas de produo para as relaes capitalistas de produo no pas. Transformaes so mais sentidas a partir de 1870. Observa-se uma rpida expanso demogrfica, um considervel processo de urbanizao, a formao de segmentos mdios urbanos, uma intensa imigrao europia, uma expanso inusitada da nova cafeicultura capitalista, o surgimento das primeiras indstrias, entre outros processos. Estas transformaes culminam no processo de afirmao do projeto liberal republicano por meio da abolio da escravido, da Proclamao da Repblica e da constituio promulgada de 1891. Surge nesse processo, o Estado burgus no Brasil. Estas transformaes tambm esto presentes no pensamento. No plano da criao literria, por exemplo, surge a reflexo e a crtica social, conforme demonstram as obras de Aluzio de Azevedo, de Machado de Assis e de Castro Alves. Mas, seguramente, ser com Euclides da Cunha, por meio da obra Os Sertes (1902), que a reflexo e a crtica social opera um grande passo no Brasil, seja para compreender o pas, seja para afirmar um pensamento que se ocupa do comportamento social humano. Os Sertes permite um olhar para o pas a partir dele mesmo, no qual se busca identificar as contradies entre o litoral e o interior, o urbano e o rural. Permite, ainda, um olhar para as classes sociais subalternas, e as mesmas so reconhecidas como possuidoras de capacidade e possibilidade de transformar a realidade. Nas primeiras dcadas do sculo XX o processo de urbanizao e de industrializao acentuar perspectivas nacionalistas, modernistas e desenvolvimentistas. So exemplo destas perspectivas o movimento tenentista, a Semana de Arte Moderna e a Revoluo de 1930. Definitivamente encontra-se despertada junto a setores da classe burguesa vinculada a indstria e s camadas mdias intelectualizadas a necessidade da compreenso dos conflitos sociais, das contradies entre modernizao e arcasmo, do aprimoramento das instituies

8 pblicas em face das novas necessidades. O ambiente histrico favorvel para o surgimento da sociologia enquanto uma cincia voltada para o conhecimento sistemtico e metdico da sociedade, culmina na fundao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras (1934) da Universidade de So Paulo, influenciada pela sociologia francesa de inspirao weberiana e marxista, e com a fundao da Escola Livre de Sociologia e Poltica (1933), influenciada pela sociologia norte-americana de inspirao neopositivista e funcionalista. O surgimento das faculdades de sociologia encontra-se profundamente influenciado por Caio Prado Jnior, Gilberto Freyre e Srgio Buarque de Holanda. Estes estudiosos influenciaram profundamente os anos 30 e 40. Caio Prado Jnior, lanando mo do mtodo marxista e partindo do referencial histrico, busca uma investigao de cunho social. Por meio de obras como Evoluo Poltica do Brasil (1933) e Formao do Brasil Contemporneo (1942), investiga o carter subalterno e dependente da sociedade brasileira, desde a sua origem at o sculo XX, bem como as formas de opresso e explorao dos grupos sociais subalternos. Srgio Buarque de Holanda, lanando mo do mtodo weberiano e partindo do referencial histrico-cultural, busca uma investigao da trama estabelecida entre a ocupao do espao brasileiro e a construo da subjetividade destes grupos humanos. Por meio de obras como o Razes do Brasil (1936) e Viso de Paraso (1959), investiga a viso esteriotipada dos europeus acerca do Brasil. Gilberto Freyre, lanando mo do mtodo funcionalista e partindo do referencial antropolgico, busca uma investigao da cultura nacional. Por meio de obras como CasaGrande e Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos: decadncia do patriarcado rural no Brasil (1936), investiga a fuso de raas, regies e culturas e o papel do negro na formao da identidade cultural brasileira. Nos anos 50 o Pensamento social brasileiro amadurece definitivamente graas aos estudos de Florestan Fernandes e Celso Furtado. Florestan Fernandes busca, de um lado, uma sntese entre a formao terica e a formao prtica transformadora, isto , busca uma cincia da prxis; de outro, uma abordagem que combinasse a identificao das estruturas os fundamentos da organizao social com conjunturas histricas contradies geradas pela dinmica interna da estrutura. Florestan Fernades representa uma continuidade em relao a Caio Prado Jnior, visto que tambm busca compreender as razes do carter subalterno e dependente do Brasil, bem como dar voz aos grupos sociais subalternos por meio de obras como A organizao social dos tupinambs (1948) e A integrao do negro sociedade de classes (1964).

9 Celso Furtado busca construir uma interpretao histrica da formao e

desenvolvimento econmico do Brasil e da Amrica Latina no contexto das relaes internacionais, a partir de referencias weberianas e keynesianas. O seu objetivo principal compreender o subdesenvolvimento. Para Celso Furtado o subdesenvolvimento no seria uma etapa histrica necessria para os pases alcanarem o pleno desenvolvimento capitalista, e sim o fruto do prprio desenvolvimento do capitalismo, e que leva ao sacrifcio de povos, pases e continentes. Celso Furtado compreendia, ainda, que o subdesenvolvimento poderia ser superado nos marcos do prprio capitalismo por meio de intervencionismo e planificao estatal, da estratgia de industrializao por substituio de importaes, da defesa do mercado interno e da modernizao do setor agropecurio.Procura demonstrar estas teses por meio de obras como Formao Econmica do Brasil (1959) e Formao Econmica da Amrica Latina (1969). Nos anos 60 e 70 o pensamento social brasileiro profundamente marcado por pensadores como Darcy Ribeiro e Octvio Yanni. Darcy Ribeiro busca estudar a questo indigenista sob influncia do estruturalismo de Levi-straus e do marxismo. Dentre suas obras de maior destaque encontram-se O Processo Civilizatrio (1968) e Os Brasileiros (1969). Octvio Yanni busca estudar o desenvolvimento econmico brasileiro, a explorao e a resistncias dos grupos sociais do mundo do trabalho, referenciados nos clssicos marxistas e weberianos. Dentre suas obras de maior destaque encontram-se Estado e Planejamento Econmico no Brasil 1930 a 1970 (1971) e A sociedade global (1993). O pensamento social brasileiro encontra-se profundamente influenciado pela ofensiva liberal, tambm denominada neoliberal, em todo o mundo. Esta ofensiva teve incio com a ascenso dos conservadores e republicanos neoliberais, respectivamente, na Inglaterra (Thacher, 1979) e nos Estados Unidos (Reagan, 1980) e foi aprofundada com a queda do Muro de Berlim (1988) e com o fim da Unio Sovitica (1991). A ofensiva liberal culmina na campanha ideolgica neoliberal, ancorada em aspectos como na crtica do intervencionismo estatal, na defesa da privatizao e desregulamentao da economia, na ao poltica de desarticulao da rede pblica e previdenciria de proteo social, de um lado, e na campanha ideolgica globalitria, ancorada em aspectos como na crtica das barreiras alfandegrias, na livre movimentao de capital, mercadorias e servios, no novo impulso no processo de mundializao das empresas transnacionais. As conseqncias para o pensamento social brasileiro foram o refluxo dos estudos sociais, o abandono da teoria e

10 metodologia marxista por diversos intelectuais, o crescimento dos estudos de abordagem fragmentada, a revitalizao de estudos de mentalidade, cultura, identidade etc. Mais recentemente, observa-se a intensa retomada dos estudos dos fenmenos sociais, da teoria e metodologia marxista e de abordagens de totalidade. Isto porque, de um lado, a ordem mundial psguerra fria no proporciona uma distribuio mais justa dos bens materiais e culturais, muito pelo contrrio. De outro lado, o prprio agravamento da crise social, econmica, poltica e ideolgico-cultural do capitalismo e da sociedade burguesa, impe desafios e respostas inusitadas para as contradies e conflitos sociais. Enfim, a perspectiva de uma ordem social nacional e internacional de abastncia de bens e de paz e do fim das revolues, imortalizada na tese do fim da histria de Francys Fukuyama, d lugar a bruta realidade. Neste contexto cabe sociologia, em especial na sua concepo crtico-transformadora, contribuir para a interpretao dessa realidade.

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2. AS TEORIAS CLSSICASA sociologia, j na sua origem, se ocupa das contradies e conflitos que percorrem a sociedade. Todavia, a abordagem das contradies e conflitos assumem perspectivas e compromissos sociais e polticos profundamente diferenciados. O pensamento positivista, o pensamento de Marx e o pensamento de Weber expressam o prolongamento das contradies e conflitos sociais para o prprio pensamento social. 2.1. O Pensamento Positivista O Positivismo nasce de pensadores como Saint-Simon, August Comte e mile Durkeim. Para os positivistas a sociedade, tal qual o mundo natural, seria regida por leis naturais, invariveis, independentes da ao e da vontade dos indivduos. O papel da cincia positiva seria observar e descrever, sob neutralidade e objetividade cientfica, estas leis de forma que os homens pudessem agir de acordo com elas. A concepo positivista concebe a sociedade como um organismo composto por partes diferentes e interdependentes. A existncia saudvel desta sociedade depende da integrao entre as partes e do desempenho da funo especfica de cada uma das mesmas. Assegurar integrao e desempenho de funo proporcionaria um padro de sade social cuja expresso seria o consenso, a conciliao e a coeso social. Assegurar a harmonia entre as partes, dentro da ordem natural do mundo social, tornaria possvel a sociedade evoluir crescentemente, isto , atingir o progresso. Contudo, em uma sociedade em que cada indivduo ou grupo a parte contestasse o seu lugar natural no interior da sociedade, desconhecendo o seu papel e funo especfica, teria incio a desintegrao e a crise de desempenho de funo. Estabeleceria um estado de patologia social, cuja evidncia seria o conflito. Neste contexto, o progresso tcnico, econmico, social, poltico, cultural, escolar etc, estaria comprometido. Para os positivistas a prpria dinmica acelerada das sociedades industriais contemporneas geraria um ambiente social permissivo a conflitos. A dinmica acelerada de criao de novas relaes sociais proporcionada pela sociedade industrial, por exemplo, no permitiria o tempo necessrio para sedimentar usos e costumes que gerariam uma regulamentao legal adequada sobre os direitos e deveres das partes que compem o todo social. Estabeleceria estados de anomia social, isto , de ausncia de leis claramente

12 estabelecidas para dirigir a conduta dos indivduos. A perpetuao do estado de anomia geraria o caos e a desordem social de forma a colocar sob risco a sociedade e o progresso social. A investigao das relaes entre capital e trabalho sob uma conjuntura de transformaes capitalistas mergulhadas em estado de anomia social cumpriria, por exemplo, o papel de proporcionar ao poder pblico e empresrios as condies para formular e estabelecer a legislao trabalhista adequada aos novos tempos. Como resultado ocorreria a superao do conflito entre capital e trabalho. Estado e Poltica Cientfica Para a concepo positivista o cientista social, em especial o socilogo, possui o instrumental cientfico para detectar os estados de normalidade e de patologia social. Todavia, no dispe do instrumental poltico para materializar as suas concluses cientficas. A materializao das concluses cientficas caberia a outro grupo social, os polticos. Isto porque os polticos integrariam o Estado, instituio concebida por eles como sendo superior a todas as outras instituies e acima dos indivduos e dos grupos sociais, cuja funo seria coordenar as funes das diversas partes da sociedade, de forma a assegurar o bem comum, a harmonia, a ordem e o progresso social. Assim, o Estado seria o crebro social, o lugar da poltica que zela pelo bem comum (Ridenti, 1992, p. 9). A concepo positivista concebe a poltica como instrumento para o tratamento das patologias identificadas e descritas pela sociologia, isto , como a instituio necessria entre a descoberta cientfica da cincia sociolgica e a realidade a ser tratada. A atuao poltica no poderia, portanto, encontrar-se ao sabor irresponsvel e inconstante dos operadores polticos. Poderia e deveria ser conduzida cientificamente pelos operadores polticos para combater os conflitos, gerar a ordem social e promover o progresso econmico. Nesta perspectiva, quando a atuao dos operadores polticos for igualmente cientfica, o futuro poltico ser previsvel. Isto porque o futuro, ainda que sujeito a anomia social, seria o desenvolvimento natural do presente racionalizado e planejado. Sociedade e Vontade Poltica Para a concepo positivista a sociedade, por meio de instrumentos ou espaos sociais como a educao, a famlia, a igreja, a empresa etc, impe um processo de sociabilizao dos indivduos. O indivduo incorporaria como seus valores prprios as regras de conduta social

13 impostas pela sociedade, a exemplo do uso da linguagem, do amor ptria, do respeito s instituies, e assim por diante. Na sociedade contempornea os indivduos teriam realado o seu papel. Isto porque ocorreria uma intensa diviso social e tcnica do trabalho, respectivamente, na sociedade e no local de trabalho. O fortalecimento das individualidades se articularia com a extrema interdependncia e solidariedade dos indivduos, isto , quanto mais o progresso tcnico individualizasse o indivduo mais o tornaria interdependente. Nesta perspectiva, progresso social e liberdade individual caminhariam na mesma direo quando a sociedade se encontrasse sob um estado de ordem social. Do ponto de vista poltico caberia aos indivduos declinar de realizar mudanas nas leis que regem o desenvolvimento social e que esto fora e acima das vontades particulares. Caberia aos indivduos concorrer para que estas leis atuassem livremente, somente possvel com o desenvolvimento da sociedade sob um estado de ordem social. 2.2. O Pensamento de Marx Marx, por meio do dilogo crtico com os pensadores que o precedem e do compromisso com o mundo do trabalho, formula um novo mtodo de anlise. Mtodo este que proporciona uma nova concepo de homem e de sociedade, uma interpretao dialtica da histria e uma crtica da economia poltica burguesa. Sociedade e Totalidade em Marx Identificar o mtodo de anlise de Marx nos impe, de incio, expor o seu conceito de sociedade. Para Marx, a sociedade, articulada por meio de uma formao social concreta e especfica, seria produto do desenvolvimento individual e da ao recproca dos homens, tenham eles conscincia disso ou no. Entretanto, no poderiam eleger a formao social em que se encontram, nem tampouco arbitrar livremente sobre suas foras produtivas. A formao social e as foras produtivas seriam o resultado, respectivamente, das lutas sociais e da ao sobre a natureza conduzidos por parte dos homens que os precederam. A sociedade se conformaria em um todo complexo e interdependente, sujeita a mltiplas determinaes. A um determinado nvel do desenvolvimento das foras produtivas, corresponderia um determinado desenvolvimento da produo, do comrcio e do consumo. Um determinado nvel do desenvolvimento da produo, do comrcio e do consumo, corresponderia

14 a um determinado desenvolvimento das formas de organizao social organizao da famlia, das classes sociais etc. Um determinado nvel de desenvolvimento das formas de organizao social, corresponderia a um determinado Estado. Um determinado desenvolvimento das foras produtivas e das relaes de produo, corresponderia a determinadas expresses ideolgicoculturais (Marx e Engels, 1952, p. 414-424). A sociedade, articulada por meio de uma formao social concreta e especfica, encontrar-se-ia em constante movimento. Portanto, qualquer formao social seria sempre transitria e histrica. Este conceito de sociedade uma construo proporcionada pelo mtodo dialtico e compe a concepo materialista da histria. A compreenso das sociedades de classes, por exemplo, no pode ocorrer, portanto, abstraindo a gnese da sociedade, o modo como ela produzida e o modo como ela opera em funo da sua prpria gnese. O Mtodo Dialtico Para Marx, a idia no pr-existiria ao real, ao material. A idia seria o prprio real transposto e traduzido no pensamento do homem. Marx exclua o sublime, o fantstico do existente, do real. Essa leitura dialtica e materialista da relao entre idia e real determinaria o mtodo de anlise de Marx, de modo que este partiria sempre da investigao preliminar do real e do concreto. No do real e do concreto idealizado, como poderia sugerir o termo populao, quando abstrado das suas classes sociais, das relaes de produo sobre as quais se apoia etc, que, segundo Marx, somente poderia permitir atingir abstraes frgeis e progressivamente mais simples. Mas do real e do concreto enquanto uma rica totalidade de determinaes e diversas relaes. Para Marx 1982, p. 14),

(...) o concreto aparece no pensamento como o processo da sntese, como resultado, no como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida tambm da intuio e da representao. No primeiro mtodo, a representao plena volatiliza-se em determinaes abstratas, no segundo, as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto por meio do pensamento. Por isso que Hegel caiu na iluso de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o mtodo que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto no seno a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzilo como concreto pensado. Mas este no de modo nenhum o processo da gnese do prprio concreto.

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Partir do real e do concreto permitiria, segundo Marx, apreender dinmicas1 e formular conceitos, enquanto expresso de mltiplas determinaes do real captado e (re)construdo no pensamento. Para Marx, expressaria o curso do pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao complexo e que corresponderia, efetivamente, ao prprio processo histrico (Marx, 1982, p. 15). Encerrado esse momento retornar-se-ia ao real, mas agora enquanto real reconstrudo e conhecido. O real se apresentaria enquanto um fluxo permanente de movimento e de contradio. Movimento e contradio seriam dados objetivos do real, visto que emergiriam das prprias bases sobre as quais historicamente se configuraria o real. Portanto, independentemente da prpria compreenso da idia de movimento e de contradio (ou das representaes construdas no mbito do pensamento, tendo em vista express-las), elas percorreriam o pensamento e a prtica do homem. Movimento e contradio expressar-se-iam em um perodo ou etapa histrica dominado por um modo de produo. Esse, por sua vez, se manifestaria por meio de formaes sociais concretas e especficas. O modo de produo, bem como as formaes sociais concretas e especficas, seriam estruturas sociais historicamente determinadas. Marx concebe o real (a sociedade concreta em seu movimento e sob contradies) como um processo histrico. Esse real estaria regido por dinmicas histricas. No dinmicas gerais, ahistricas que, emergidas de leis naturais, regeriam para todo o sempre o real, mas dinmicas especficas a cada perodo ou etapa histrica e que se expressariam por meio de modos de produo e de formaes sociais concretas e especficas. Essas dinmicas regeriam o movimento social, por um lado, como um processo, em grande medida, independente da vontade, conscincia e inteno dos homens; mas, por outro, capazes, ao mesmo tempo, de determinar concretamente a vontade, a conscincia e as intenes dos homens como agentes sociais diferenciados. Esgotado historicamente um modo de produo, novas dinmicas se conformariam ao longo do processo de surgimento de um novo modo de produo. Assim, por exemplo, as dinmicas que regulamentariam o comrcio, a populao, a moeda, no mundo medievalMarx em diversas passagens utilizou o termo lei para retratar a dinmica de um modo de produo ou uma formao social concreta e especfica, provavelmente influenciado pelo cientificismo do sculo XIX. Lei no no sentido que o positivismo atribua a essa palavra, ou seja, algo constante, necessrio e determinado pela coisa em si, que poderia ser reconhecido pelo homem atravs da observao direta dos fenmenos sociais e naturais. Para o positivismo, as leis naturais e sociais seriam idnticas. J para Marx, as leis ou dinmicas sociais seriam histricas e transitrias, expressando movimentos passveis de transformao pela ao humana, no possuindo um sentido de1

16 ocidental, no poderiam ser transpostas para compreender o comrcio, a populao e a moeda, no mundo capitalista ocidental. Categorias que encerram sentidos genricos, como comrcio, por exemplo, deveriam, por sua vez, ser investigadas dentro da especificidade que assumiriam em cada modo de produo. Para Marx, o fundamental na pesquisa cientfica seria, portanto, descobrir as dinmicas que regeriam e modificariam os fenmenos estudados. Para ele essas dinmicas atuariam nas condies e interesses materiais, inclusive no mbito do prprio pensamento. Assim, a crtica do prprio pensamento, idia, cultura, da sociedade moderna, somente poderia surgir do real, do material que o determina e no do pensamento refletindo diretamente sobre si mesmo. da sua base material, o real, desvendado pela pesquisa, que o pensamento poderia auto-criticar-se e desalienar-se. Assim, o pensamento, a idia, a cultura, em princpio fora de lugar, poderiam ser colocadas em seus devidos lugares. Marx cuida de distinguir, ainda, o mtodo da pesquisa do mtodo de exposio. Para Marx, a pesquisa tem de captar detalhadamente a matria, analisar as suas vrias formas de evoluo e rastrear sua conexo ntima. S depois de concludo esse trabalho que se pode expor adequadamente o movimento real (Marx, 1988, p. 26). Marx d exemplo concreto desta prtica cientfica no estudo da economia poltica. Anteriormente confeco da obra O Capital, Marx conduz estudos amplos e profundos sobre a mercadoria, o valor, a mais-valia, a reproduo (simples e ampliada) do capital, o dinheiro, entre outros temas, como podemos confirmar nos esquemas de estudo pessoal que tomam a forma das obras Para a Crtica da Economia Poltica e Teorias da Mais-Valia. Elas culminam, por meio do mtodo dialtico, na apreenso das dinmicas que regem o capitalismo e que podem proporcionar condies sociais capazes de modific-lo. A conquista do conhecimento do real e a sua exposio ordenada no plano do pensamento, podem criar a iluso de uma construo a priori, de esquemas dedutivos. Mera iluso, se pensarmos que uma obra, quando finalizada, nada mais do que fruto de intensa pesquisa e exposio articulada por meio de uma coerncia discursiva interna. Marx, conforme observamos, apresenta o seu mtodo dialtico dentro de uma configurao racional, emprica e materialista. Movimenta suas pesquisas do particular para o geral e vice-versa, busca apreender dinmicas e formular conceitos por meio de estudos comparados dos fenmenos sociais, esfora para demonstrar a coeso entre o que anda nas

exatido matemtica, mas de coerncia geral determinada pelo todo interdependente dos elementos que compe a sociedade.

17 cabeas e as bases materiais sobre as quais se localizam os ps e coloca a temporalidade dos fenmenos sociais no centro do seu pensamento. A Concepo Materialista da Histria Os debates sobre a destruio furtiva e o parcelamento da propriedade do solo, em curso na Provncia Renana, desperta em Marx uma preocupao com os chamados interesses materiais (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 300 e 301). O recolhimento de lenha por parte de um campons em uma propriedade, considerada furto pela Dieta Renana, conduz Marx tomada de conscincia de que o direito protegia a propriedade. Esse processo ocorre na sua experincia como redator da Gazeta Renana, entre os anos de 1842-43. Em 1844, por meio dos Anais Franco-Alemes, as investigaes desembocam na concluso (...) de que tanto as relaes jurdicas como as formas de Estado no podem ser compreendidas por si mesmas nem pela chamada evoluo geral do esprito humano (...). Segundo Marx, elas (...) se baseiam, pelo contrrio, nas condies materiais de vida (...). Ainda segundo Marx, (...) a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia poltica (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 301). A continuidade dos seus estudos permite a Marx concluir que (...) na produo social da sua vida, os homens contraem determinadas relaes necessrias e independentes da sua vontade, relaes de produo que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas foras produtivas materiais (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 301). As relaes de produo seriam as relaes concretas que os homens estabeleceriam em uma determinada sociedade, tendo em vista a produo e reproduo dos indivduos, das classes sociais e da sociedade. As relaes de produo se expressariam na forma de propriedade, na forma de produo e distribuio dos excedentes sociais e na forma de organizao das relaes de trabalho entre as classes sociais. As relaes de produo condicionariam profundamente as relaes sociais em geral. As relaes de produo encontrar-se-iam correlacionadas no seu desenvolvimento com as foras produtivas, que seriam os recursos tecnolgicos, o conhecimento cientfico, as estruturas de produo rural e urbana, o nvel de conscincia social2 etc. Para Marx, no seria

O conceito de conscincia social em Marx incorporaria as formas de expresso da subjetividade humana (expresses literrias e filosficas, romances, doutrinas religiosas, criaes artsticas etc), bem como o nvel de conscincia e conhecimento da relao homem/natureza e das relaes sociais. Essas manifestaes da conscincia social seriam ideolgicas e mais ou menos racionais, humanistas e crticas, segundo o grau de desenvolvimento da

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18 possvel foras produtivas desenvolvidas, a exemplo do nvel conquistado no capitalismo, coexistindo com relaes de produo atrasadas historicamente se comparadas a estas, a exemplo das relaes de produo feudais. Portanto, relaes de produo e foras produtivas determinar-se-iam no desenvolvimento da sociedade humana. As relaes de produo e as foras produtivas, em suas relaes concretas e socialmente estabelecidas, formariam a estrutura3 (ou base) econmica da sociedade. Sobre a estrutura (...) se levanta a superestrutura jurdica e poltica e qual correspondem determinadas formas de conscincia social (Marx, 1983, Volume 1, p. 301). Marx concebe uma interao e uma interdependncia profunda entre a estrutura, responsvel pela produo e reproduo da vida material, e a superestrutura, responsvel pela produo e reproduo da vida poltica e espiritual. A relao dialtica que Marx estabelece entre estrutura e superestrutura no exclui a ontologia. Neste ponto, Marx categrico quando afirma que (...) no a conscincia do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrrio, o seu ser social que determina a sua conscincia (Marx, 1983, Volume 1, p. 301). Dito de outra forma, Marx no reconhece nas leis, nas formas do Estado, nas expresses subjetivas dos indivduos, segmentos e classes sociais uma autonomia e independncia da estrutura, ou seja, das condies materiais de existncia da sociedade. Para Marx, a compreenso das superestruturas exige, necessariamente, um movimento de investigao que parta da estrutura. O Conceito de Modo de Produo Marx formula o conceito modo de produo para retratar a totalidade social representada pela estrutura e pela superestrutura. Marx integra, portanto, totalidade e estrutura para a compreenso, em grandes traos, dos longos perodos histricos de permanncia ou conservao entendidos como movimentos que no alterariam a essncia de uma estrutura, mas que coexistiriam com a acumulao quantitativa de condies materiais e espirituais, que levariam a um ponto de ruptura num futuro indeterminado ou breves perodos histricos deestrutura econmica, da experincia e de amadurecimento das classes sociais. Enfim, do estgio de desenvolvimento da sociedade humana. 3 O conceito de estrutura pode receber diversos sentidos e dimenses na teoria e metodologia marxista. Pode significar estrutura (base) econmica; superestrutura (estrutura fruto da materializao de instituies e formas de conscincia social); estrutura global e abstrata identificada com o conceito de modo de produo; estrutura global identificada com uma formao social (ou scio-econmica) especfica e concreta. O fundamental que o conceito de estrutura remete sempre para um conjunto complexo de elementos interdependentes e estveis (o que no significa eterno) no tempo; a estrutura pode ser pensada em si prpria ou em relao a outras estruturas.

19 transformaes bruscas ou revolucionrias entendidos como movimentos que alterariam a essncia de uma estrutura, ou seja, rupturas qualitativas das condies materiais e espirituais responsveis pela edificao de uma nova totalidade e estrutura. Marx indica que os grandes perodos histricos estariam estruturados a partir dos modos de produo comunal, asitico, antigo (escravo), feudal, e burgus. Modos de produo, social e historicamente determinados, mutveis, portanto, contrariando o ideal burgus da naturalizao das relaes sociais, da sociedade burguesa e capitalista etc.

Modo de Produo e Transformao Histrica

Marx identifica contradies e conflitos na estrutura econmica da sociedade. Para Marx, as foras produtivas tenderiam para o desenvolvimento, o que as faria colidir com as relaes de produo, que qualificaria e conservaria o modo de produo. Essa contradio, emergida da estrutura econmica, prolongar-se-ia para alm das condies materiais da sociedade, penetrando na superestrutura e se expressando no mbito jurdico, poltico e ideolgico. Isto porque Marx entende a sociedade como uma totalidade, na qual a estrutura econmica exerce um profundo condicionamento sobre a superestrutura. A contradio surgida entre as foras produtivas e as relaes de produo, responsveis pelo prolongamento da contradio para o todo social, criaria um ambiente propcio para transformaes. Nas palavras de Marx (1983, Volume 1, p. 302),(...) abre, assim, uma poca de revoluo social. Quando se estudam essas revolues, preciso distinguir sempre entre as mudanas materiais ocorridas nas condies econmicas de produo e que podem ser apreciadas com a exatido prpria das cincias naturais, e as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas ou filosficas, numa palavra, as formas ideolgicas em que os homens adquirem conscincia desse conflito e lutam para resolv-lo.

Assim, a contradio que nasceria no mbito da estrutura econmica e que se prolongaria para a superestrutura, no poderia ser superada por ela mesma. A contradio acima referida apenas criaria o espao e o ambiente propcio para as transformaes. A transformao dependeria da ao do sujeito social, de forma a dar um sentido e uma direo para a remoo dos obstculos que as relaes de produo (em um determinado nvel de desenvolvimento das foras produtivas) representariam no sentido do posterior desenvolvimento das foras produtivas. Para Marx, o termo sociedade expressaria um sujeito social genrico. Compreender a

20 histria a partir desse sujeito social como um todo indiferenciado seria idealismo. A sociedade se manifestaria, de fato, por meio de sujeitos sociais concretos, ou seja, das classes sociais antagonizadas pela propriedade privada e em conflitos explcitos revoltas, revolues, greves etc e ocultos inculcao de valores ideolgicos, remanejamentos poltico-institucionais etc. As lutas de classes seriam conduzidas pelas classes dominantes e dominadas. Expressariam a praxis, ou seja, aes sociais (polticas, culturais etc), intencionais ou no, sempre ideolgicas, com o propsito de conservar ou revolucionar as relaes de produo. Marx supera, por meio da sua interpretao dialtica do curso da histria, o economicismo, que atribui ao fator econmico a responsabilidade pelas transformaes, o evolucionismo, que reconhece uma dinmica evolutivo-natural comandando o curso das mudanas, e o voluntarismo, que personifica as mudanas por meio da ao de determinados personagens e pequenos grupos, desprezando as estruturas econmicas e os embates de classes. Modo de Produo e Formao Social A distino entre modo de produo e formao social no se apresenta clara para diversos cientistas sociais marxistas - incluindo historiadores. Alguns cientistas sociais marxistas reduzem o conceito de modo de produo a estrutura econmica. Reconhecem no conceito de superestrutura (formas de conscincia e instituies) uma dimenso que se encontraria fora do conceito de modo de produo. Para esses cientistas sociais, modo de produo (estrutura econmica) e superestrutura (formas de conscincia e instituies) se comporiam de forma interdependente em uma estrutura mais ampla denominada formao social - conjugao, portanto, do modo de produo e da superestrutura em uma realidade concreta e especfica (Gorender, 1985, p. 1-35). Na concepo de Marx, modo de produo englobaria de forma integrada a estrutura (ou base) econmica e a superestrutura. O modo de produo seria o objeto terico, genrico e abrangente. Uma elaborao terico-abstrata em nvel do pensamento que se prestaria a contribuir com os estudos de uma formao social (ou econmico-social) concreta e especfica. Enquanto conceito terico-abstrato estaria em constante construo, visto que os estudos sciohistricos permitiriam a descoberta de novos elementos e relaes no mbito do conceito de modo de produo (Vilar, 1988, p. 173 e 174). O conceito de formao social encerraria a realidade social concreta e especfica. Seria, portanto, um conceito menos abrangente e que nos remeteria a uma formao histrica concreta e especfica, a exemplo da formao social portuguesa do sculo XVI ou da formao

21 social capitalista brasileira do sculo XX. O conceito de modo de produo seria, portanto, um instrumento operatrio, tendo em vista o estudo de uma formao social concreta e especfica. O Conceito de Classe Social O termo classe social no criado por Marx. Os enciclopedistas franceses e Adam Smith se referiam a estados ou ordens, enquanto que Babeuf e os socialistas franceses falam de classes de possuidores e laboriosas. A contribuio de Marx para a construo do conceito de classe social surge, primeiramente, da identificao e localizao social das classes sociais a partir das relaes de produo, ou seja, da forma de propriedade e das relaes que os homens estabeleceriam em torno dela, tendo em vista a gerao e apropriao dos excedentes sociais. As classes sociais seriam definidas, em primeira instncia, sobre as condies materiais em que se inseriam. Marx define as classes sociais tambm em termos polticos. As classes sociais, distribudas em termos de dominantes e dominadas, se relacionariam de uma determinada forma com o poder em cada perodo histrico. As classes sociais se expressariam por meio de partidos, estabeleceriam alianas, conformariam regimes polticos etc. A histria de todas as sociedades que existiram at nossos dias tem sido a histria das lutas de classes, diria Marx (Marx e Engels, Volume 1, p. 21, 1983). A partir das relaes de produo e das lutas polticas que lhes seriam inerentes, Marx identifica as classes em termos de classes sociais fundamentais, em torno das quais a qualidade das relaes de produo e dos conflitos seriam definidos, e classes sociais no fundamentais, perifricas no mbito das relaes de produo e incapazes de definir um projeto social alternativo s relaes sociais dominantes e conduzir um bloco de alianas em torno do mesmo. Portanto, as relaes de produo e a identidade e conscincia acumuladas por meio da experincia poltica definiriam a posio e a funo das classes sociais na formao social concreta e especfica. Marx no reconhece a existncia de classes sociais nas sociedades que no se apoiam na propriedade privada (comunidades tribais dos celtas, germnicos, eslavos; povos pastores do oriente; ndios da Amrica; sociedades despticas orientais etc). As sociedades despticas, embora coexistindo com a desigualdade social, no assumiria a forma completa de desigualdade social, na medida em que a unidade centralizadora Estado se ergueria sobre as pequenas comunidades concentrando a propriedade, mas estabelecendo relaes de

22 tributao/reciprocidade. Para Bourd e Martin, se Marx e Engels tivessem possudo mais informaes histricas teriam dissociado estados, ordens, castas etc, de classes sociais propriamente ditas nas formaes pr-capitalista de produo (Bourd e Martin, 1983, p. 159164). Como esboo de uma sociologia das classes a partir de Marx, possvel identificar que: a) a definio de uma classe social implica na referncia a aspectos sociais, econmicos, polticos e ideolgicos; b) seria pertinente considerar as classes em funo da estrutura de classes e no isoladamente; c) as lutas de classes determinam, em grande medida, os conflitos e dinmicas do nvel poltico e dos demais nveis da sociedade. Tais conflitos e dinmicas no podem, entretanto, ser interpretados como mero prolongamento das lutas de classes. O Conceito de Ideologia Marx parte da compreenso de que existiria um elo entre formas invertidas de conscincia e a existncia material dos homens. Essa compreenso nasce da crtica a Feuerbach e a Hegel. Marx apreende a tese materialista de Feuerbach de que os homens criam Deus e as religies, e no o contrrio. Distancia-se deste quando demonstra que tal inverso no uma pura construo do pensamento, mas que encontra-se no mundo real, que um blsamo criado pelos homens para compensar as contradies do mundo real. Marx submete o prprio pensamento de Hegel a esta crtica. Hegel sups que a Idia ou Razo Absoluta se manifestaria no mundo emprico e que o Estado prussiano seria a autorealizao da Idia objetivada. Marx busca demonstrar que a idia do Estado enquanto universal absoluto que determina a sociedade civil, no seria apenas uma iluso. Que havia um real sob aquela iluso e que somente poderia ser encontrada nas bases concretas de edificao da sociedade civil e de Estado prussianos. Entre 1845 e 1857 Marx formula o conceito de ideologia para demonstrar que a precariedade do desenvolvimento material e as contradies emergidas na vida prtica, levariam os homens a criar e a projetar formas ideolgicas de conscincia. Formas espirituais e discursivas que ocultariam ou disfarariam a existncia e o carter dessas contradies. E que concorreriam, nesta medida, para assegurar a reproduo das relaes sociais, de forma a servir aos interesses dominantes (Bottomore, 1988, p. 184). A partir dos estudos das relaes sociais capitalistas expressas nas obras Grundrisse e

23 O Capital, Marx chega a concluso de que a conscincia invertida fruto da realidade invertida. Assim, a ideologia burguesa expressaria essa inverso quando apregoa que (...) a igualdade e a liberdade so, assim, no apenas aperfeioadas na troca baseada em valores de troca, como tambm a troca dos valores de troca a base produtiva real de toda igualdade e liberdade (Marx, apud Bottomore, 1988, p. 185). Engels concorre tambm para a construo do conceito de ideologia por meio do estudo sobre a guerra camponesa da Alemanha. Demonstra que, sob a chama da guerra de religio no sculo XVI, encontram-se interesses materiais de classes e que(...) se as lutas de classes tinham, naquela poca, um carter religioso, se os interesses, as necessidades, as reivindicaes das diferentes classes se dissimulavam sob a mscara da religio, isso nada altera a questo (Engels, apud Bourd e Martin, 1983, p. 166).

Encontra-se implcita nessa passagem a compreenso de que o fenmeno ideolgico tambm poderia se expressar enquanto valores e concepes de resistncia das classes dominadas. Engels demonstra, ainda, a exemplo da ao crtica de Marx sobre a ideologia burguesa, que o fenmeno ideolgico no seria algo exterior s relaes sociais quando explica que na Idade Mdia(...) os padres receberam o monoplio da cultura intelectual e a prpria cultura tomou um carter essencialmente teolgico (...). Os dogmas da Igreja eram igualmente axiomas polticos e as passagens da Bblia tinham fora de lei perante os tribunais (...). Consequentemente, todas as doutrinas revolucionrias, sociais e polticas, deviam ser, ao mesmo tempo e principalmente, heresias teolgicas (Engels, apud Bourd e Martin, 1983, p. 167).

O conceito de ideologia conserva em Marx uma conotao crtica e negativa porque foi utilizado para a compreenso das distores relacionadas com o ocultamento de uma realidade contraditria e invertida. No seria correto, portanto, atribuir ao conceito de ideologia o sentido de falsa conscincia. Podemos chegar a trs definies de ideologia em Marx e Engels: a) ideologia enquanto parte ou conjunto das superestruturas: as formas ideolgicas enquanto a qualidade da conscincia social possvel dentro de uma determinada estrutura scioeconmica; uma determinada viso de conjunto de uma sociedade, poca ou classe determinada por suas condies materiais de existncia; b) a ideologia enquanto ocultamento da realidade: ora como imposio das classes

24 dominantes para criar, legitimar e justificar as relaes sociais dominantes (a exemplo das Cruzadas, do levante da Vendia etc), ora como forma de expresso de lutas de resistncia dos dominados enquanto conhecimento imperfeito (a exemplo da revolta camponesa da Alemanha); c) a ideologia enquanto um sistema de valores sociais impostos: seriam os valores sociais impostos, indiretamente, por meio das relaes sociais de produo, e, diretamente, por meio dos instrumentos ideolgicos pblicos e privados O conceito Estado O conceito Estado ocupa grande importncia no pensamento de Marx e Engels. O Estado concebido como uma instituio acima de todas as outras, com a funo de assegurar e conservar a dominao e a explorao de classe. Para Engels, o Estado um instrumento(...) da classe mais poderosa, economicamente dominante, que, por meio dele, torna-se igualmente a classe politicamente dominante, adquirindo com isso novos meios de dominar e explorar a classe oprimida (Marx e Engels, 1983, Volume 3, p. 137 ).

Essa concluso no impede que o prprio Engels a relativizasse por meio do estudo de uma realidade concreta, a guerra civil na Frana e as lutas polticas subsequentes que resultam no golpe do 18 Brumrio e no bonapartismo. Engels reconhece que(...) ocorrem perodos nos quais as classes em luta se equilibram to bem que o poder do Estado, como mediador ostensivo, adquire, por momentos, uma certa margem de independncia em relao a ambas (Marx e Engels, Volume 3, 1983, p. 137).

Marx, tambm estudando a realidade que redunda no bonapartismo, chega mesmo a atribuir interesses prprios ao Estado por meio da sua burocracia civil e militar. Marx reconhece no Estado bonapartista francs uma mquina de Estado engenhosa, de amplas bases, com um exrcito de funcionrios e soldados de 1 milho de homens. Uma mquina com determinados interesses e objetivos prprios, que conforma(...) um corpo parasitrio terrvel que cerca o corpo da sociedade francesa como um casulo e sufoca todos os seus poros (Marx e Engels, Volume 1, 1983, p. 234 e 235).

25 De fato, Marx e Engels no encerram o conceito Estado em uma camisa de fora dogmtica. Lnin, Gramsci, a Escola de Frankfurt, entre outros pensadores e vertentes marxistas, do continuidade ao estudo do Estado e ampliam o prprio conceito. Prxis e Poltica O conceito de Prxis representa um elemento central da filosofia marxista. Exprime o poder que o homem tem de transformar o ambiente externo, tanto natural como social. Marx define a prxis, primeiramente, como atividade prtico-crtica. a atividade humana por meio da qual se busca resolver o real concebido subjetivamente. O lugar da prxis o processo histrico como resposta contnua tirania das necessidades naturais e sociais. Para Marx a humanidade est em luta consigo mesma, isto , com as condies sociais e naturais, por ela criadas e/ou modificadas. Segundo Bobbio,(...) prxis a identificao da mudana ambiental com a atividade humana, ela surge como autotransformao ou como atividade que se modifica a si mesma ao modificar o ambiente. A terceira tese de Feuerbach oferece a este respeito algumas indicaes claras: verdade que os homens so condicionados pelo ambiente e pela educao, mas tambm verdade que so justamente eles que modificam as prprias condies ambientais (Bobbio, 1992, p. 987 e 988).

Para Marx no existe na realidade uma natureza pura, isto , no modificada pela histria humana. No existe, tambm, um nico campo de ao onde no se possa descobrir dinmicas. A prxis ao/investigao, fundamentada no movimento histrico. Marx define prxis como encontro entre razo e histria, isto , o lugar da construo da humanidade como obra de uma vontade expressa racionalmente. Construo suscitada por um pensamento historicamente determinado, acolhido pela grande maioria por responder s necessidades manifestadas em um contexto (natural e social) marcado pela interveno do homem e que se transforma por isso em instrumento de ao. Nesta definio, o conceito de Prxis se aproxima do conceito teoria, sendo a primeira uma prtica racionaltransformadora e a segunda um pensamento historicizado e realstico. Marx tambm define prxis como luta de classes, isto , um instrumento motor da histria da humanidade. A concepo de prxis como ao do gnero humano indiferenciado socialmente e transformador das condies naturais e sociais ao longo da histria da humanidade, conjuga-se tambm com a concepo de prxis como oriunda da humanidade como sujeito histrico diferenciado por meio das classes sociais em suas relaes conflitantes, na qual

26 ocorre uma ao de supresso por parte de uma delas das formas de organizao social que a outra instaura. Esses conflitos entre as classes se exprimem na tenso constante que existe entre as foras produtivas, tendentes ao desenvolvimento e as relaes de produo, tendentes a conservao. O conceito de prxis recebe outras abordagens no mbito da tradio marxista. Lukcs define prxis como a eliminao da indiferena da forma em relao ao contedo. Para o autor Marx teria desmistificado a lgica idealista da idia, isto , desenraizado socialmente o idealismo, e demonstrado que as classes subalternas so os sujeitos da histria, em especial o proletariado. Assim, teria-se estabelecido no pensamento uma nova lgica da totalidade, isto , da unidade do objeto (realidade natural e social) que posto e do sujeito (proletariado) que o pe. a totalidade no como idia que se faz esprito, mas como realidade do processo histrico (Bobbio, 1992, p. 989). Para Lukcs a Prxis em Marx seria o ato que realiza a unidade entre o sujeito e o objeto, na medida em que traduz em nova estrutura social e econmica a conscincia das relaes estabelecidas entre os homens. Nela coincidiriam as determinaes do pensamento e do desenvolvimento da histria. Por isso, a Prxis seria a conscincia da totalidade e sua realizao. Todavia, a conscincia no precederia a ao, mas fundaria-se no ato. O proletariado conheceria a prpria situao enquanto luta contra o capitalismo e agiria enquanto conhece a prpria situao (Bobbio, 1992, p. 989). Lukcs faz, enfim, o uso de trs temas: o pensamento socialmente determinado; a realidade em sua dinmica; e, o sujeito em sua ao. A Prxis seria o ato revolucionrio que realiza o sujeito (o proletariado) como conhecedor e agente ao mesmo tempo e que, simultaneamente, fundamenta a identidade do pensamento e da histria. Korsch define prxis como sendo a prpria teoria marxista. Para Korsch o marxismo a teoria da transio da sociedade capitalista para a sociedade socialista e assume aspectos diversos, como, por exemplo, a social-democracia e o leninismo, destinados a sucederem-se um ao outro, segundo a evoluo do movimento operrio (Bobbio, 1992, p. 989). A teoria marxista no seria apenas uma expresso das condies atuais das relaes entre as classes sociais, mas tambm a alavanca de uma futura ao revolucionria. Deste modo, a teoria Prxis, isto , luta social de classes. Se, por um lado, ela um aspecto da conscincia social da situao vigente, at o ponto de se identificar com a conscincia de classe, por outro, apenas uma teoria, no uma teoria positiva mas crtica, que resolve as representaes estticas em processos dinmicos e em conflitos sociais. Os elementos nela envolvidos, conquanto

27 aparentemente neutros, assumem uma especfica conotao de classe; o Estado o Estado burgus; o direito o direito burgus (Bobbio, 1992, p. 990). Para korsch a teoria marxista seria Prxis, no s por estar intimamente relacionada com os conflitos sociais, dos quais expresso, mas tambm por elaborar os meios de uma forma alternativa de sociedade. 2.3. O Pensamento Liberal de Max Weber

O pensamento de Max Weber reconhece a realidade como inesgotvel, fragmentada, catica e arbitrria. No haveria, por exemplo, um movimento estrutural lgico, nem uma totalidade construda a partir deste movimento estrutural. Os cientistas sociais podem apenas construir modelos explicativos ideais - tipos ideais a partir de alguns aspectos da realidade. Uma abordagem cientfica seria apenas uma aproximao da verdade, do que decorre a inexistncia de uma verdade cientfica e a relatividade do conhecimento. O que interessa mais a busca da objetividade - neutralidade - cientfica e menos a pretensa verdade. A busca de uma neutralidade cientfica leva Weber a estabelecer uma rigorosa fronteira entre o cientista, o homem do saber, das anlises frias e penetrantes, e o poltico, homem de ao e de deciso comprometido com as questes prticas da vida. O que a cincia tem a oferecer a este homem de ao, segundo Weber, um entendimento claro de sua conduta, das motivaes e das conseqncias de seus atos. As razes do mtodo de Weber O mtodo sociolgico de Weber influenciado enormemente pelo contexto intelectual alemo de sua poca. Incorpora em seus trabalhos algumas idias de Kant, como o entendimento de que todo ser humano dotado de capacidade e vontade para assumir uma posio consciente diante do mundo; de Nietzsche, como a viso pessimista e melanclica dos tempos modernos; de Sombart, como a preocupao de desvendar as origens do capitalismo; de Marx, como as teorias acerca do capitalismo ocidental nas perspectivas histrica, econmica, ideolgica e social. A originalidade de Weber est na capacidade de refinamento de conceitos e de idias debatidos na sua poca e no seu modo de interpretar o desenvolvimento histrico ocidental como sendo fruto da racionalidade. Para Weber no haveria por que admitir o princpio de que a economia determinasse as demais esferas da realidade social como, segundo ele, teria afirmado

28 Marx por meio da sua obra. Para Weber, somente a realizao de uma pesquisa detalhada sobre um determinado fato social poderia definir que dimenso (econmica, social, poltica, cultural) da realidade condicionaria mais profundamente as demais. Capitalismo e tica protestante Em uma das suas obras mais importantes, A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo, Weber coloca como uma de suas principais preocupaes compreender quais foram as especificidades que levaram algumas sociedades ocidentais ao desenvolvimento do capitalismo. Para ele, o fator responsvel pelo surgimento do capitalismo foi a razo humana ligada a certos valores calvinistas presentes na poca. O protestantismo calvinista acreditava que por meio do trabalho o homem alcanaria Deus, e como o trabalho gerava lucros, a riqueza tambm era uma forma de alcan-lo. Para Weber o moderno sistema de produo, eminentemente racional e capitalista, no se origina do avano das foras produtivas, nem das novas relaes de produo como teria afirmado Marx. Origina-se de um novo conjunto de normas sociais e morais, s quais denomina tica protestante: o trabalho duro e rduo, a poupana e o ascetismo. Este conjunto de normas sociais e morais teria proporcionado a reaplicao das rendas excedentes, em vez de seu dispndio e consumo em smbolos materiais e improdutivos de vaidade e prestgio, a exemplo do que ocorria na Idade Mdia. Para Weber o capitalismo, a organizao burocrtica e a cincia moderna constituem trs formas de racionalidade que surgiram a partir dessas mudanas religiosas ocorridas inicialmente em pases protestantes, a exemplo da Inglaterra e da Holanda. Pases catlicos, sob um conjunto de normas sociais e morais impregnadas de aspectos cristos - medievais, no teriam gerado esta racionalidade. Ao social e racionalidade Para Weber a ao social e o racionalidade seriam os fatores mais relevantes na anlise de uma sociedade, isto porque a dimenso racional da ao humana seria a parte racional do ser humano enquanto indivduo que iria produzir e criar as esferas e estruturas da sociedade, a exemplo da esfera econmica e da estrutura do Estado. Segundo ele,As condutas so tanto mais racionalizadas quanto menor for a submisso do agente aos costumes e afetos e

29quanto mais ele se oriente por um planejamento adequado situao. Pode-se dizer, portanto, que as aes sero tanto mais previsveis quanto mais racionais (Weber apud Quintaneiro, 1998, p. 107).

Caberia ao socilogo captar intelectualmente as aes sociais de sentido racional. No entanto, essa tarefa encontraria limites quando fossem os valores e afetos os norteadores das aes dos indivduos. A partir da, Weber construiria quatro tipos de ao social: a) Ao social racional com relao a fins: quando o agente imprimisse uma ao para alcanar um objetivo previamente definido e lanasse mo dos meios necessrios e adequados para tanto; b) Ao social racional com relao a valores: quando o agente imprimisse uma ao de acordo com suas prprias convices e levasse em conta somente a sua fidelidade a certos valores, isto , no levasse em conta os efeitos que poderiam advir de sua conduta e por isso, s vezes, agisse com certa irracionalidade; c) Ao social afetiva: quando o agente imprimisse uma ao inspirada em suas emoes imediatas e sem considerao aos meios ou fins a atingir; d) Ao social tradicional: quando o agente imprimisse uma ao em funo de hbitos e costumes arraigados. Sendo assim, a ao social base da sociologia de Weber seria fruto da conduta humana. Essa ao social poderia ser de ato, omisso ou permisso, sendo operada no passado, presente ou futuro. Classe social e estamento Para Weber, existiria diferena entre classe social e estamento. As classes seriam formadas quando as aes sociais fossem orientadas para o mercado. J os estamentos quando as aes sociais fossem orientadas com base em regras de grupos de status. Para Weber, segundo Quintaneiro,As classes se organizam segundo as relaes de produo e aquisio de bens, os estamentos, segundo princpios de seu consumo de bens nas diversas formas especficas de sua maneira de viver (Quintaneiro, 1998, p. 118).

Poltica e poder A concepo de ao social em Weber, cuja gnese encontra-se no indivduo, tem uma importante implicao: a continuidade das relaes sociais seria problemtica, porque no

30 existiria relao social sem poder e dominao, isto , sem uma dimenso conflitiva. Conforme Quintaneiro,Poder significa a probabilidade de impor a prpria vontade dentro de uma relao social, mesmo contra toda a resistncia e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade (Quintaneiro, 1998, p. 121).

No entanto, enquanto o poder no for limitado por nenhuma circunstncia social porque a vontade de algum pode ocorrer em inmeras situaes a dominao basear-se-ia na obedincia a um certo mandato. Partindo do entendimento de que todas as relaes sociais estariam mediadas pelo elemento domnio, isto , que sempre ocorreria uma relao em que algum manda e outro obedece, Weber procura compreender as formas de dominao poltica legtimas. Para Weber em qualquer sociedade ocorre, o dominao poltica. Esta dominao poderia ser de trs tipos: a) A dominao legal: dominao que se caracterizaria por meio de convenes, isto , quando normas, elaboradas em comum acordo, regulamentariam o exerccio da dominao poltica. Nesta perspectiva, o Estado liberal moderno, cujas constituies seriam definidas por meio de assemblias nacionais constituintes, de representao indireta deputados eleitos por sufrgio universal de representao direta delegados da sociedade civil organizada ou de representao mista deputados e delegados da sociedade civil conformaria-se como exemplo desta forma de dominao. Assim, direitos e deveres seriam claramente definidos em face do poderes constitudos (executivo, legislativo e judicirio), da burocracia do Estado etc. b) A dominao tradicional: dominao que se caracterizaria por meio de crenas, isto , de concepes sedimentadas e reproduzidas de gerao para gerao e que configuraria uma manifestao cultural tradicional. A tradio representaria, portanto, uma manifestao de arcasmo poltico. c) A dominao carismtica: dominao que se caracterizaria por meio do carisma do lder, isto , a vontade e o poder de comando do lder refletiria os anseios dos seus seguidores. A dominao carismtica poderia assumir a forma dos demagogos construda sobre a capacidade de oratria e de convencimento do lder poltico - , dos heris-guerreiros construda sobre a capacidade de luta e das expectativas da guerra e dos profetas

31 construda sobre a capacidade de motivar espiritualmente e de assegurar a coerncia dos fiis aos mandamentos. Os tipos de dominao seriam tipos ideais, isto , no se apresentariam de forma pura na realidade concreta. Constituiriam-se em recursos metodolgicos, tendo em vista a anlise das formas de dominao. Seriam, enfim, modelos explicativos que poderiam contribuir com a compreenso das formas de dominao sem, contudo, dar conta do fenmeno em toda a sua plenitude (Ridenti, 1992, p. 45-49). Para Weber no ocorreria, no mbito das relaes sociais, uma relao de determinao do econmico sobre o social em sentido amplo, isto , nele includo a poltica. As classes sociais, definidas em termos econmicos, estariam fragmentadas na forma de grupos de status (estamentos). A condio de subalternidade econmica de um grupo de status, enquanto parte de uma classe social, poderia contrastar com um imenso prestgio poltico, cultural etc. Para Weber, embora no ocorresse determinao, ocorreria interao e condicionamento entre classe social e grupos de status. Classe social e grupo de status poderiam interferir na ordem legal ou poltica da sociedade. Esta interferncia tenderia a ser maior quando potencializada pela atuao de partidos polticos, isto , de estruturas organizativas de carter poltico voltadas para a disputa do poder, tendo em vista o exerccio da dominao poltica, seja no mbito da sociedade civil, seja no mbito da sociedade poltica (Estado). Para Weber, o Estado, na medida em que representaria um aparelho poltico e administrativo utilizado por grupos de status com o objetivo de materializar determinados fins e valores destes mesmos grupos, converteria-se no objeto central da disputa poltica (e da dominao poltica). Weber caracteriza a poltica como sendo a participao no poder, ou a luta para influir na distribuio dele, com a finalidade de desfrutar a sensao de prestgio causada por ele. Assim, o homem no almejaria o poder somente para enriquecer economicamente, mas para desfrutar das honras sociais que ele produz. Quando se diz que uma questo poltica, o que se entende que o critrio decisivo para sua resposta o interesse na distribuio, manuteno ou transferncia do poder. Dessa maneira, classes, estamentos, poltica, partidos etc., seriam fenmenos de distribuio do poder dentro da comunidade e manifestaes organizadas da luta cotidiana que caracteriza a existncia humana.

32 A burocracia Para Weber a burocracia seria uma forma de organizao humana que se basearia na racionalidade, isto , na adequao dos meios aos objetivos (fins) pretendidos, a fim de garantir a mxima eficincia possvel no alcance desses objetivos. Segundo ele, as origens da burocracia como forma de organizao humana remontariam poca da Antigidade, quando o ser humano elabora e registra seus primeiros cdigos de normatizao das relaes entre o Estado e as pessoas e entre as pessoas. Contudo, a burocracia tal como existe hoje - teve sua origem nas mudanas religiosas verificadas aps o Renascimento. Para Weber a burocracia no se limita organizao estatal. Weber nota a proliferao de organizaes de grande porte no domnio religioso (a Igreja), no educacional (a universidade), no econmico (as grandes empresas), e assim por diante. Para tanto, teria concorrido o desenvolvimento de uma economia monetria, que facilita e racionaliza as transaes econmicas; o crescimento quantitativo e qualitativo das tarefas administrativas do Estado Moderno, que reflete a enorme complexidade e dimenso das tarefas de organizao da sociedade moderna; a superioridade tcnica da administrao burocrtica, que permite uma fora autnoma prpria burocracia; e o desenvolvimento tecnolgico, que permite um progressivo aperfeioamento da administrao burocrtica Para Weber, a burocracia seria a organizao eficiente por excelncia. Ela perseguiria a racionalidade em relao ao alcance dos objetivos da organizao; a preciso na definio dos cargos e na operao das tarefas; a rapidez nas decises; a univocidade de interpretao garantida pela regulamentao especfica e escrita; a uniformidade de rotinas e procedimentos; a continuidade da organizao no contexto de renovao dos quadros; a reduo do atrito entre as pessoas; a constncia; a subordinao dos mais novos aos mais antigos; a confiabilidade; a existncia de benefcios sob o prisma das pessoas na organizao. Nessas condies, o trabalho seria profissionalizado, o nepotismo evitado e as condies de trabalho favoreceriam a moralidade econmica e dificultariam a corrupo. A eqidade das normas burocrticas teria a virtude de assegurar cooperao entre grande nmero de pessoas sem que essas pessoas se sentissem necessariamente cooperadoras. O termo burocratizao usado por Weber integraria, em alguma medida, com o conceito de racionalizao. Assim, a racionalizao, para Weber, tanto poderia referir-se aos meios racionais e sua adequao para se chegar a um fim, qualquer que fosse ele, como tambm poderia referir-se viso racional do mundo por meio de conceitos cada vez mais precisos e

33 abstratos, desenvolvidos inclusive pela cincia, de reforma a rejeitar toda religio e valores metafsicos ou tradicionais, desmistificando o prprio mundo. Weber temia a burocracia. Embora considerasse a burocracia como a mais eficiente forma de organizao criada, a concebia como uma enorme ameaa liberdade individual e s instituies democrticas das sociedades ocidentais. O prprio Weber notou que a estrutura burocrtica enfrentaria um dilema tpico: de um lado, existiriam presses constantes de foras exteriores para encorajar o burocrata a seguir normas diferentes quelas da organizao e, de outro lado, o compromisso dos subordinados com as regras burocrticas tenderia a se enfraquecer gradativamente. Neste quadro poderia ocorrer disfunes da burocracia, isto , anomalias e imperfeies no funcionamento da burocracia. Cada disfuno seria o resultado de algum desvio ou exagero em cada uma das caractersticas do modelo burocrtico. As disfunes da burocracia seriam a internacionalizao das normas; o excesso de formalismo e papelrio; a resistncia a mudanas; a despersonalizao do relacionamento; a categorizao do relacionamento; a super conformidade; a exibio de sinais de autoridade; a dificuldades com clientes e a imprevisibilidade do funcionamento. Liberalismo e Vontade Poltica Para Weber, como os homens construiram a sociedade a partir de uma ao social consciente, racional e motivados por vontade prpria, a sociedade se encontraria em constante transformao. Essa tenderia para a racionalizao, a modernizao e a organizao (burocracia) progressiva, isto , a histria da humanidade seria a materializao desta tendncia. O processo de transformao da sociedade no estaria determinado por um movimento estrutural lgico. Weber concebia a histria como um livro aberto; o seu curso dependeria da vontade e da atuao poltica dos indivduos e dos grupos de status, tendo em vista a conquista do poder, de forma a materializar seus objetivos e projetos. Para Weber, os indivduos livres e conscientes, ao articular razo e objetivos construiriam seus destinos materializados em estruturas sociais. As estruturas sociais (Estado, empresas, organizaes da sociedade civil etc.) criadas, que materializariam racionalidade, modernidade e organizao, tenderiam ao desvirtuamento. As estruturas da sociedade voltariam-se contra a liberdade do indivduo; a burocracia se sobreporia ao cidado. No tocante poltica, qualquer dos trs tipos ideais de dominao poltica legtima tenderia a conviver com o deslocamento da prtica de domnio poltico dos indivduos para os

34 quadros administrativos e burocrticos. As decises polticas tenderiam a materializar opresso ao invs de liberdade. Para Weber, sociedade e Estado, de carter liberal, democrtico e ocidental, possuiriam condies superiores s formas que sociedade e Estado assumiram no passado. A dominao poltica tenderia a ser legal e ocorreria situaes atenuantes do desvirtuamento burocrtico como partidos polticos fortes, parlamento representativo e independente. A ao empreendedora das elites econmicas buscando fugir ao controle da burocracia pblica. A existncia de lderes polticos carismticos que traduziriam as vontades autnomas dos indivduos abalando as normas rgidas de enquadramento social do poder institudo etc. Weber um pensador que se posiciona a favor do capitalismo e dos interesses nele dominantes. Pensador liberal, acreditava que o capitalismo era um sistema nacional e eficiente pois promovia a racionalizao por meio da burocracia fosse ela privada ou pblica.

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3. O SENTIDO ONTOLGICO DO TRABALHOOs homens transformam a natureza e se transformam na mesma medida. Isto porque os homens podem refletir acerca da sua forma de agir e porque se comunicam e sistematizam as suas experincias sociais na forma de cultura, o que os diferencia, obviamente, dos animais. Desta forma os homens fazem a histria humana, isto , transformam a realidade natural e social, conforme a poca e o lugar. Esta transformao tem sempre como ponto de partida a herana material e cultural das geraes anteriores, de maneira a incorporar (e/ou reformular), a recusar ou a criar novas prticas e conceitos medida em que avana o processo histrico. O domnio da fala e a sua materializao por meio da linguagem (escrita, pictrica, cnica etc.), ao permitir ao homem representar a realidade, o permite tambm registrar as suas diversas formas de experincia vivida. O registro transforma-se em herana das experincias de criao material e cultural, isto , transforma-se em cultura, o que possibilita ao homem avaliar as experincias vividas no passado em face do seu presente, bem como projetar novas formas materiais e culturais superiores quelas que se encontram no seu presente. No centro da existncia humana, que sempre e objetivamente a materializao de experincias de criao material e cultural, o homem age sobre a natureza de forma a transformla, tendo em vista obter os bens materiais e culturais necessrios sua existncia. Esta ao, que nos primrdios da humanidade assumiu formas como a domesticao de plantas e animais e a criao de cidades, e que atualmente assume formas como o domnio da tecnologia do silcio (e a conseqente revoluo tecnolgica representada pela informtica) e as estaes espaciais, representa a interao homem-natureza e a criao da paisagem humanizada. Representa, ainda, a otimizao da ao humana em termos quantitativos e qualitativos sobre a natureza por meio de diversos equipamentos para o desenvolvimento do trabalho, e de diversas formas de organizao do trabalho, isto , a criao dos equipamentos (foras produtivas) e a organizao do trabalho (relaes de produo) que so interdependentes e que se interdeterminam. O grau de desenvolvimento das foras produtivas e a forma de estruturao das relaes de produo fornecem as bases sobre as quais so criadas as superestruturas da sociedade. Assim, so criadas instituies como o Estado, a famlia, a igreja, a escola etc; o pensamento como o mito, a literatura, a cincia, a arte, a filosofia, a poltica etc; os valores, como a moral, a tica etc.

36 Da mesma forma como no possvel surgir foras produtivas altamente desenvolvidas, como a robtica e a rede de comunicao, coexistindo com relaes de produes superadas historicamente, como o escravismo e o feudalismo, tambm no possvel a manifestao da superestrutura igualmente inadequada ou inadaptada s foras produtivas e s relaes de produo. No poderia, por exemplo, vigorar o direito escravista sob a vigncia das foras produtivas e relaes de produo capitalistas. A ao do homem na natureza no uma ao puramente exterior, conforme podemos averiguar empiricamente. A sua ao na natureza demanda um tipo de organizao dele mesmo, de forma que o homem constri estruturas sociais, pensamentos e valores que so, em ltima instncia, materializaes da construo da sua prpria subjetividade. O trabalho possui uma trajetria, uma progressividade histrica. possvel, portanto, falarmos de uma histria do trabalho, enquanto uma delimitao temtica da histria da humanidade. Histria do trabalho que expressa o fundamento ltimo do ser social, que a sua capacidade de transformar e criar o mundo natural e o mundo social, em direo da sua plena humanizao. Assim, medida que o trabalho muda o jeito de ser, de pensar e de agir de cada ser humano e de cada cultura, torna-se condio de humanizao e instrumento da liberdade, porque pelo trabalho que o homem viabiliza a realizao de seus projetos (desejos) no mundo, ao mesmo tempo em que se torna propriamente humano (Aranha,1997, p. 23).

medida que a sociedade humana se complexifica, a integrao plena entre trabalho terico (intelectual, no-material) e trabalho prtico (manual e material) termina por ser rompido. Evidentemente, o trabalho terico (intelectual, no-material) demanda atividade prtica (manual e material) e o trabalho prtico (manual e material) demanda atividade terica (intelectual, nomaterial). Todavia, em cada tipo de trabalho passa a haver o predomnio das caractersticas que lhe impe a sua peculiaridade e condio. Essa ruptura, provavelmente decorrente da complexidade adquirida pela sociedade humana, foi agravada por meio do surgimento da propriedade privada e da desigualdade social. De tal forma, que o trabalho terico (intelectual, no-material) foi progressivamente se desvinculando do trabalho prtico (manual e material), embora esta desvinculao raramente fosse completa. Nas sociedades organizadas a partir da distribuio hierrquica das classes sociais, os trabalhadores foram, ou excludos do acesso educao formal a exemplo do escravismo e do

37 feudalismo -, ou este acesso cumpria uma necessidade imposta pelo padro tecnolgico e pelo padro de gesto da produo, mas submetido a certos limites a exemplo da transio do feudalismo para o capitalismo, com a escola de ofcios; do capitalismo concorrencial e monopolista, com a escola tcnica; e do capitalismo oligopolista ps-fordista, com os centros de formao tecnolgica. Os segmentos mais pobres dos trabalhadores em termos materiais e culturais, sem clareza quanto s relaes de poder e de domnio subjacente s relaes sociais como um todo, e das relaes de trabalho em particular, terminam mais facilmente excludos do acesso ao conhecimento e da formao institucionalizada voltada para o trabalho terico (intelectual e no-material). J os segmentos no to pobres dos trabalhadores em termos materiais e culturais possuem acesso a este conhecimento, de forma a disputar espaos com os diversos segmentos das classes mdias nos centros de formao tecnolgica e nas universidades, de padro de qualidade baixo e intermedirio. O modo de produo capitalista o modo de produo que mais intensamente premido pela necessidade de ampliar a formao do trabalhador por meio da educao formal, isto , de ampliar a virtuosidade do trabalhador. Todavia, a virtuosidade, materializada no poder de reflexo, crtica, discernimento, iniciativa e domnios, pode criar o espao para a organizao objetiva e criao subjetiva da razo crtica radical, revolucionria em relao s relaes sociais erguidas a partir das relaes capitalistas de produo. possvel duas concluses a este respeito. A primeira, que o capitalismo lana mo de meios curriculares, comportamentais, psicolgicos, publicitrios etc, para impedir que a ampliao da educao formal que se lhe impe por sua prpria dinmica interna, proporcione o pleno encontro entre o trabalho terico (intelectual e no material) e o espao para a criao da razo crtica radical.A segunda que o processo de pleno encontro entre o trabalho terico (intelectual e no material) e o espao para a criao da razo crtica radical no poder ocorrer como decorrncia do avano natural do pensamento ou das exigncias da dinmica de expanso (tecnolgica e gestionria) do capital. A camisa de fora intelectual e prtica a que os trabalhadores esto submetidos no poder ser alterada seno por eles mesmos. Para tanto, ser necessrio conduzir disputas como os projetos curriculares de educao formal e o espao do local de trabalho, isto , disputar as relaes sociais.

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4. HISTRIA, SOCIEDADE E TRABALHOO trabalho existe para satisfazer as necessidades humanas. Desde as mais simples necessidades, como as de alimento e de abrigo, at as mais complexas, como as de lazer e de crena. O trabalho se volta, enfim, para satisfazer as necessidades humanas, materiais e culturais. Ao se analisar as diversas formas de sociedade, encontram-se os mais variados modos de organizao do trabalho, como tambm maneiras muito diferentes de se valorizar essa atividade. Encontram-se, ainda, diferentes formas de relao do trabalho com as demais esferas da vida social. 4.1. Sociedade Primitiva e Trabalho Ao colocar a palavra trabalho entre aspas quando se estuda as sociedades tribais procura-se destacar o fato de que a idia de trabalho, como algo separado das outras atividades, no existe nessas sociedades. Ao se analisar a questo das atividades, entre ns entendidas como trabalho, nas sociedades tribais (sociedades de caadores e coletores ou mesmo aquelas pr-agrcolas e prpastoras), no se pode partir do mesmo ponto de vista que se adota para analisar o trabalho nas sociedades modernas. Isso porque as atividades vinculadas produo nas sociedades tribais esto associadas aos ritos e mitos, ao sistema de parentesco, s festas, s artes, enfim, a toda a vida social do grupo tribal. O trabalho no tem um valor em si (do tipo o trabalho dignifica o homem), separado de todos os demais aspectos da vida social. Ele s pode ser entendido como parte do conjunto de atividades que caracterizam essas sociedades como tais (Tomazi, 2000, p. 35). Quando se fala em sociedades tribais necessrio esclarecer que elas no so todas iguais. Diferenciam-se tanto no tempo, como no espao. Por exemplo, os guaranis, que viveram e vivem no sul do Brasil, alm de diferentes entre si quanto ao processo histrico de cada grupo, vo se transformando gradativamente a partir das suas prprias caractersticas particulares. Outra advertncia ter em mente que esses povos, cujos membros contemporneos vivem quase sempre em condies precrias, isolados e em reas restritas, guardam poucas semelhanas com os seus antepassados que, de modo geral, viviam em regies ricas em caa e pesca e em alimentos de toda a sorte (Tomazi, 2000, p. 35 e 36).

40 As sociedades tribais distribudas pelos mais diferentes pontos da terra e com as mais diferentes estruturas sociais possuiam, e algumas ainda possuem, uma organizao do trabalho em geral baseada na diviso por sexo, em que homens e mulheres executavam atividades diferentes. Os seus equipamentos e instrumentos so, aos olhos dos estrangeiros, muito simples e rudimentares, ainda que sejam eficazes para o que deles se exige. Guiados por tal concepo, muitos analistas, durante muito tempo, classificaram essas sociedades como de economia de subsistncia e de tcnica primitiva. Passava-se a idia de que esses povos viveriam em estado de pobreza, com o mnimo necessrio sobrevivncia. Marshall Sahlins, antroplogo norte-americano, chama essas sociedades de sociedades do lazer, ou as primeiras sociedades de abundncia, pois, ao analis-las, percebeu que elas no s tinham todas as suas necessidades materiais e sociais satisfeitas, como tambm dispunham de um mnimo de horas dirias vinculadas a atividades de produo (cerca de trs ou quatro horas e nem sempre todos os dias). Como exemplo podemos registrar a experincia atual dos yanomamis, que dedicam pouco mais de trs horas dirias s atividades produtivas (Tomazi, 2000, p. 36). Por se dedicarem menos tempo as atividades produtivas e por no se constituirem em sociedades de gerao de excedentes, no significa que tivessem uma vida de privaes. Ao contrrio, essas sociedades viviam muito bem alimentadas, demonstrando vitalidade em seus membros. O modo como se relacionam com a natureza a explicao para o fato de trabalharem muito menos do que ns. A terra , alm do lugar onde se vive, um valor cultural, pois ela que d aos homens os seus frutos; a floresta presenteia os caadores com os animais de que necessitam para a sobrevivncia. No so os homens que produzem ou caam, mas que recebem aquilo de que necessitam da me natureza. H um profundo conhecimento do meio em que vivem, o que faz com que conheam as plantas, os animais, a forma como crescem e se reproduzem, o que bom e o que ruim para se alimentar, e quando podem utilizar certas plantas e determinados animais para a sua alimentao, para a sua cura ou para os seus ritos. O mundo do trabalho nas sociedades tribais algo que tem relao com todos os outros elementos de suas sociedades e com todo meio ambiente em que vivem. Nelas no se encontra a idia de que se deve produzir mais para acumular riqueza. A sua riqueza est na vida e como passam os dias. As atividades produtivas limitam-se a conseguir os meios necessrios sobrevivncia, sendo executadas em conjunto com outras atividades. O tempo utilizado para descansar, danar, caar, pescar, plantar, colher e para o cumprimento dos rituais, que na maioria dos casos envolvem todas as outras atividades. Quando

41 os machados de pedra foram substitudos por ferramentas de ferro entre os sianes da Nova Guin, de forma a permitir diminuir o tempo de trabalho para conseguir os alimentos necessrios subsistncia, eles no se preocuparam em produzir mais, mas passaram a utilizar o tempo de que dispunham para se divertir, descansar, ou para outras atividades que lhes proporcionavam mais prazer. H um contnuo de atividades sociais interligadas, que dificilmente podem ser entendidas e explicadas separadamente (Tomazi, 2000, p. 36 e 37). O aspecto mais importante das sociedades tribais o sentido de unidade existente no cotidiano dessas sociedades. Segundo o antroplogo francs Pierre Clastres, quando a atividade produtiva