café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. ·...

15
1 Demografia e mobilidade indígenas no Rio de Janeiro oitocentista: novas fontes de tratamento e identificação. Cesar de Miranda e Lemos A historicidade da presença das sociedades indígenas no território do Rio de Janeiro vem sendo observada por muitos meios, comumente por meio da geografia espacial das Aldeias e dos Aldeamentos, compreendendo a primeira como uma manifestação da territorialidade dos índios e a segunda como uma expressão da territorialização colonial da sociedade envolvente. Neste primeiro aspecto, do ponto de vista historiográfico, essa presença, ainda que representativa constituiu uma miragem parcial da demografia indígena após o evento colonial, e no caso do território fluminense e da cidade capital do Rio de Janeiro, na Colônia ou no Império, ao longo do oitocentos, essa miragem tornou-se ainda mais significativa em virtude dos intensos deslocamentos de índios causados pelas fronteiras do café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste período histórico. Um segundo aspecto, de matriz metodológica, diz respeito a crítica a uma determinada naturalização pela historiografia da temática dos registros coloniais sobre os índios voltados quase exclusivamente aos aldeamentos, e que por essa aceitação acabou por desconsiderar outros horizontes de fontes para a observação da temática. Buscarei aqui, por esta razão, apresentar outras espacialidades sociais constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas no oitocentos para o caso em tela, o Rio de Janeiro. Sendo assim, reconheceremos de um ponto de vista teórico a dimensão social do tempo e da pluralidade das durações numa determinada conjuntura histórica, em outros termos trataremos o oitocentos com suas especificidades numa região de antiga Professor Adjunto de História Regional e Populações Indígenas da Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS – Campus Cerro Largo/RS.

Transcript of café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. ·...

Page 1: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

1

Demografia e mobilidade indígenas no Rio de Janeiro oitocentista: novas fontes de tratamento

e identificação.

Cesar de Miranda e Lemos

A historicidade da presença das sociedades indígenas no território do Rio de

Janeiro vem sendo observada por muitos meios, comumente por meio da geografia espacial

das Aldeias e dos Aldeamentos, compreendendo a primeira como uma manifestação da

territorialidade dos índios e a segunda como uma expressão da territorialização colonial da

sociedade envolvente.

Neste primeiro aspecto, do ponto de vista historiográfico, essa presença,

ainda que representativa constituiu uma miragem parcial da demografia indígena após o

evento colonial, e no caso do território fluminense e da cidade capital do Rio de Janeiro, na

Colônia ou no Império, ao longo do oitocentos, essa miragem tornou-se ainda mais

significativa em virtude dos intensos deslocamentos de índios causados pelas fronteiras do

café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste período histórico.

Um segundo aspecto, de matriz metodológica, diz respeito a crítica a uma

determinada naturalização pela historiografia da temática dos registros coloniais sobre os

índios voltados quase exclusivamente aos aldeamentos, e que por essa aceitação acabou por

desconsiderar outros horizontes de fontes para a observação da temática.

Buscarei aqui, por esta razão, apresentar outras espacialidades sociais

constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas no

oitocentos para o caso em tela, o Rio de Janeiro.

Sendo assim, reconheceremos de um ponto de vista teórico a dimensão

social do tempo e da pluralidade das durações numa determinada conjuntura histórica, em

outros termos – trataremos o oitocentos com suas especificidades numa região de antiga

Professor Adjunto de História Regional e Populações Indígenas da Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS – Campus Cerro Largo/RS.

Page 2: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

2

ocupação colonial elevada a condição de capital reinol e do império em uma quadra histórica

singular.

Razão que tomaremos as diversas manifestações da presença dos índios

observando-a num diálogo plural com fontes variadas como os Fundos de Relatórios de

Presidente de Província e os Fundos de Polícia da Corte – disponíveis no Arquivo Nacional,

ou os fundos de Obras Raras e de Periódicos da Biblioteca Nacional. A comunicação trará

uma contribuição para os estudos sobre a demografia e mobilidade indígenas no Rio de

Janeiro oitocentista, oferecendo um cruzamento de fontes referentes a conjunturas históricas

dessa presença e as diferentes dimensões do protagonismo dos índios neste período histórico.

I – Como interpretar a presença indígena no século XIX.

[...] Tem sido destino quase immutavel dos Índios desapparecerem na presença da

raça branca, com a qual difficilmente se coadunão e confundem: conservando suas feições e característicos primitivos... O quadro, que ponho debaixo de vossos olhos, he melancólico; nada se há feito para catequisar e civilisar as raças dos indígenas, que tão úteis podem ser a um Império nascente, boldo de braços, desaproveitados os, que no paiz existem... Dispersos pelo corpo de nossa legislação podem colher-se idéias muito úteis, pensamentos magnânimos, com especialidade no Alvará de 3 de

Maio de 1757, que creou um Directorio [...].1

A conjuntura histórica de inserção dos índios no vocabulário oitocentista

está enfeixada nas premissas presentes no Relatório da Presidência de Província do Rio de

Janeiro apresentado a Assembléia Provincial em 1844. Terem um “destino quase immutavel”

de “desapparecerem na presença da raça branca”.

Tal presunção produziu uma refração de símbolos onde a ausência de índios

com a extinção de aldeias foi descrita e renomeada em diversos relatórios na Capitania e na

Província no oitocentos, descrita sempre como uma justificativa para a apropriação de terras

dos índios pela sociedade envolvente nas Vilas e Municípios.

Bem como, numa escala social de fabricação de representações a

documentação do século dezenove faz alusões aos caboclos ou indivíduos confundidos à

1 - Relatório da Presidência de Província do Rio de Janeiro apresentado a Assembléia Provincial sob o pretexto da CATHEQUESE E CIVILIZAÇÃO DOS INDIOS, E ESTADO DE SEUS BENS, p.21. – Livro 2, 1844. Fundo PP, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/APERJ.

Page 3: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

3

população local como um substrato da construção social da ausência, algo que o censo

demográfico do Império em 1872 tornou oficial.

E esta produção social do acaboclamento dos índios ou da classificação

como confundidos à população regional obteve escalas variadas nos relatórios estatais, como

o supracitado, coabitando com relatos elaborados por conviventes que traduziram a seus

modos as expectativas da “desaparição” dos índios no Rio de Janeiro.

Um exemplo dessa “tradução” encontramos numa carta publicada no Jornal

Aurora Fluminense, em 1827, no segmento Variedades, de um indivíduo autodenominado O

Eremita, dizendo:

Snr. Redactor Tendo-me, há alguns annos, retirado para aprasível chacrinha, que

possuo, na falta de uma montanha, próxima a Aldeia de S. Lourenço, alli entregue a

doces contemplações [...]. E como não sou egoísta, busco consagrar as horas de

descanço em alguma COIZA útil; e entre outras occupações me satisfaz muito o

ensinar a ler os Caboclos que habitão esta Aldeia; entre os quaes vivo como um pai

de família, cercado sempre de mil Benções [...]. (grifos meus)2

Esta sorte de percepção advogada pelo Eremita3 que reuniu ao mesmo

tempo a arte classificatória do acaboclamento e o conceito de Tutela – pai de família –

orfanológica sobre os índios oferece uma importante janela de observação das imagens

invertidas sobre a presença/ausência dos índios no território fluminense, como “os Caboclos

que habitão esta Aldeia”.

Neste caso, mesmo identificados pela territorialização colonial de um

aldeamento são classificados como caboclos com uma expressão cotidiana no jogo de

imagens que o oitocentos produziu sobre os índios, qual seja – sua desaparição étnica.

Numa escala crescente, diversos relatórios reunidos nos Fundos PP do

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/APERJ apresentam uma linguagem

classificatória similar a esta desenvolvida pelo filantropo Eremita.

2 - Carta enviada pelo Eremita de S. Lourenço 24 de dezembro de 1827 , Nº 2, e publicada na seção de

Variedades do Jornal Aurora Fluminense. Biblioteca Nacional - setor de Obras Raras, Microfilme rolo Pr . 50r

36(1), Fotograma 347. 3 - O uso de pseudônimo foi uma prática cultural comum e tida como altruísta pelos adeptos de uma filosofia

filantrópica no oitocentos.

Page 4: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

4

Em 1835, o representante da “Villa São Francisco de Itagoahi” enviou ao

Presidente da Província, Joaquim Joze Rodrigues Torres, um relatório sobre a Portaria que a

Província emitiu a título de obter informações sobre os índios na região. Entre as informações

constavam o número de Aldeias, o número de índios nas existentes, seus patrimônios e

localização, e nos termos da época:

[...] se as terras que forem parte dos patrimônios se achão medidas, e demarcadas;

bem como se se achão livres, e dezembaraçadas, ou impedidas, letigiosas; e neste

cazo, qual a natureza do letigio, por quem promovido, sua origem, e estado dos

Processos; [...] o Balanço da Receita, e despeza do ultimo anno anterior ao

devolvimento da Tutella dos Indios da Conservatoria aos Juizes de Orfãos [...]4

O retorno da Villa São Francisco de Itagoahi foi sintomático:

Acerca dos quesitos [...] reporto-me ... que a única Aldeia que existia neste

Municipio se achava extinta da denominação de Aldeia, não possuindo bens alguns

próprios ... e fruto de huma pequena porção de terreno que obtiveram por graça

feita por S.Mag.e o Senhor D. João 6º [...].

Nessa conjuntura histórica de fabricação invertida da presença dos índios

pelo paradigma da ausência e da desaparição numa produção social do acaboclamento, em

1848, respondendo a demanda Provincial por informações sobre os índios e seus aldeamentos,

novamente o representante da Villa de Itagoahi reportou que:

Pela criação d’esta Villa, em 1819, S. M. o senhor D. João Sexto, de Gloriosa

Memoria, fez a Graça aos índios existentes náquella época então aldêados no lugar

em que existe hoje esta Villa, de conceder-lhes [...] légua de terras em terreno

pertinente a Imperial Fazenda de Santa Cruz, contigua a esta Villa.

Este terreno, existe hoje em poder de outros possuidores sem que sejão os índios,

com quem estes fiserão tranzação de suas casas e benfeitorais sem que o Juiz de

4 - Fundo PP 204 – Maço 06. Fl.01/APERJ.

Page 5: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

5

Orfãos nisso tomasse parte, auttorizando as mesmas transações, de modo que como

aldeias, haverá uma na outra fazenda que já não é contada como tal [...]5

Notamos nessa engenhara social que por diferentes meios os índios são tidos

como desaparecidos ou deslocados e as concessões de terras que originaram as sedes de Vilas

e/ou Municípios integraram um dos modus operandi desses deslocamentos.

As fontes administrativas sobre esses processos de apropriação de terras de

aldeamentos para a constituição de Municípios são abundantes para o oitocentos. Importa que,

em muitos casos, ainda que a extinção de aldeamentos tenha sido consumada e que a menção

aos índios praticamente desaparecesse, não é salutar crer que simplesmente tenham realmente

desaparecido, o que nos coloca o desafio de interpretar pelo menos duas dimensões dessa

“desaparição” – o acaboclamento e agregação dos índios em terras de outros proprietários

não-índios da região do extinto aldeamento e o deslocamento e migração dos índios para as

cidades e mesmo a cidade do Rio de Janeiro, pólo de atração vibrante neste período histórico.

Afinal, a mobilidade social dos indivíduos indígenas foi sendo constituída e

caracterizada por deslocamentos motivados pela apropriação de suas terras por indivíduos da

sociedade envolvente com a conivência e/ou omissão dos “Juizes de Orfãos” e pela própria

dinâmica étnica de algumas sociedades indígenas que fracionavam e geravam migrações para

as cidades onde a força de trabalho dos índios é registrada em diversas atividades e em várias

obras públicas como no caso da cidade do Rio de Janeiro (FREIRE & MALHEIROS, 1997).

Na segunda metade do século dezenove, as narrativas sobre a mobilidade

dos índios transfigurados ou não em caboclos foram intensas no território fluminense e na

cidade do Rio de Janeiro. No primeiro quadrante, vejamos a título de exemplificação a

correspondência de João Baptista d’ Araujo Leite, representante do Município de Valença que

em 27 de novembro de 1872, respondendo a uma demanda de informações sobre os índios

requerida pela Presidência da Província, informou que “[...] não existem actualmente

aldeamentos de Indios neste Município; os poucos que restão dos antigos aldeamentos não

excedem ao numero de vinte [...]”.

Entretanto, ao delinear esses “poucos” acaba por registrar a presença dos

índios e as formas dessa presença na representação dessas elites políticas da região, dizendo:

5 - Fundo PP – Maço 204, 06 fl. 04, APERJ.

Page 6: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

6

[...] dispersos pelas diversas Freguesias do Municipio, e confundidos com a

população de diversas origens do Municipio. [...] tudo quanto sei sobre essa raça

desgraçada que aqui existêo [...] já se acham entrelaçados e confundidos com outras

famílias [...] No tempo dos Ouvidores de Comarca, e depois dos Juiz de Orphãos,

forão dados em aforamento alguns “foros” deste terreno, acha se elle todo ocupado

por posseiros, e successores dos antigos foreiros [...].6

Não obstante, em outra longitude do registro da presença multifacetária dos

índios no Rio de janeiro, também em 1872, a Presidência da Assembléia Provincial do Rio de

Janeiro recebeu um ofício do Gabinete do Ministro dos Negócios de Agricultura, Commércio

e Obras Públicas, em 12 de julho, nos seguintes termos:

“Ilmº. e Exmº.,

Sendo repetidas as queixas que os Índios dirigem ao Governo Imperial contra as

violências de que são objeto suas pessoas e bens e tornando se cada vez mais

momentora a catechese e civilização dos indígenas, vistas as vantagens morais e

sociais que o Paiz auferirá de tão importante serviço... dei por muito recomendado

a VExª. Que,... dê providencias que julgar necessárias afim de que se não

reproduzão tais queixas e se consigão todos os benefícios derivados do

estabelecimento e prosperidade das Aldeãs, solicitando do Governo o emprego das

medidas que não couberem em sua alçada

Deus Grande guarde a VExª.,

Barão d’Itaúna. 7

6 - Fundo PP – 205, Maço 01, fl. 04. APERJ. 7 - Fundo PP, Notação 0081 – Maço 1, CX: 0030. Arquivo Público do Rio de Janeiro, APERJ.

Page 7: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

7

Quase 50 anos antes, um índio de nome Coloni interpelou um espaço de debate público

com uma carta-protesto denunciando os instrumentos dessa engenharia social nos seguintes

termos:

Drs. Redatores – Tenho a desgraça de pertencer á infeliz casta indígena, que não

sei por que fatos tem sido sempre a mais desprezada no nosso Brasil. Vivo net’a

Aldeia de S. Pedro, que he também minha Pátria, o como gosto de ver os papeis,

tenho aqui procurado nos que me chegão a mão alguma providencia ou

representação em favor dos pobres Índios; porem inultimente. A Augusta Câmara

occupada com objectos de mais elevada ponderação não lança os olhos sobre nós,

e os Jornalistas também pouco interessão na sorte destes Brasileiros, esquecidos

habitadores dos mais esquecidos lugares do Império. No em tanto a Conservatória,

que nos foi dada para nos proteger, protege-nos demais, e á Franceza; pois as

nossas terras, que ella administra, como tutora, são divididas por quem lhe appraz;

ficando nós gemendo em pobreza. A Constituição do Estado affirma que a Lei he

IGUAL para todos; que o Direito da propriedade he sagrado e inviolável – as leis

dão a idade de 25 annos para a emancipação: põem quanto aos miseráveis Índios,

esse termo de 25 annos nunca chega: envelhecemos debaixo de huma intolerável

tutella: e será a Lei igual para todos, ou nesses todos não entrarão os Indígenas?

AH! Srs. Redactores, se Vmces. presenciassem todas as injustiças , que se nos

fazem, sem outra razão mais do que sermos Índios, havião de encher-se de

admiração, e de pezar. A miséria he a nossa partilha, quando dos nossos patronos

engordão a custa nossos bens, e nos opprimem. Levantem a voz em nossa defeza:

será em nós crime havermos nascidos no Brasil, e contarmos ahi nascidos todos os

nossos antepassados, até remotas gerações? Não; o patriotismo, que brilha na

fulgente Aurora, nos da esperança, de que por seu meio os nossos clamores

chegarão aos ouvidos da Augusta Assembléia, e do Governo. Se tiverem a

condescendência de inserir estas linhas, em outra occasião serei mais prolixo sobre

o mesmo objecto, que he de grande valor para hum vexado. 8 (grifos meus).

Coloni

Aldeia de S. Pedro 23 de agosto de 1828.

8 - Carta enviada pelo índio Coloni da Aldeia de São Pedro em 23 de agosto de 1828 e publicada em 19 de

setembro do mesmo ano na seção de Variedades do Jornal Aurora Fluminense. Biblioteca Nacional – setor de

Obras Raras, Microfilme rolo Pr – 50r 36(1), Fotograma 347. Mantive a redação original.

Page 8: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

8

Gerações de índios no oitocentos conviveram com as situações destacadas

por Coloni em sua carta, em meio século a mobilidade dos índios face a crescente apropriação

de suas terras na conjuntura histórica de consolidação no Império, nas décadas de 30, 40 e 50,

deflagrou uma crescente mobilidade social dos índios pelo território fluminense e, em

particular, na Cidade do Rio de Janeiro.

Assim, para além dos índios aldeados, a demografia indígena no oitocentos

deve ser considerada também em relação a presença dos índios nas cidades mesmo quando

denominados de caboclos e, mais tarde, de pardos. É o que veremos a seguir.

II – Mobilidade e demografia dos índios nas Cidades.

Em um conjunto documental reunindo presos enviados para a prisão do

Calabouço na Capital do Reino entre os anos de 1817 e 1819, de um universo expressivo de

africanos identificados por suas regiões de origem ou “grupos étnicos” (KARASCH, 2000),

sendo eles Benguella, Mafunbe, Ganguella, Congo, Moçambique, Angola, Manjolla, Cabinda,

Calundá, Cassange, Mina, Rebollo, Crioulo, entre outros, num total de mais de 100 presos

cativos e livres, encontrei dois presos identificados como índios.

Um deles foi Manoel Jose Francisco Índio, “Preso no dia 10 de junho

remettido... de Rezende por culpa, que ali tem, e se espera a remessa dela”. 9 Outro foi

Filippe de S. Tiago, Índio – “Remettido da Freg.ª de Irajá por constar que ali furtava cavallo,

e outros procedimentos, de q’trata o Processo, que se faz pelo Bairro de S. José.”10

Nos anos seguintes os casos envolvendo índios foram proporcionalmente

aumentando e em escala crescente como veremos a seguir. Expulsos das terras e dos

aldeamentos nesses anos de expansão das fronteiras do café e do capital tratista

(ALENCASTRO, 2000), os índios se deslocaram para as cidades, especialmente a Capital – a

cidade do Rio de Janeiro. Os índios destribalizados ingressavam num universo de relações e

convívios ainda mais complexos.

9 - Fundo Polícia da Corte – Notação: Códice 403, vol. 02 – Código OE, 1817 – 1819, Arquivo Nacional. 10 - Idem.

Page 9: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

9

Quando presos e recolhidos ao sistema prisional na Capital eram

empregados em obras públicas (SOUZA, 1998), o que torna as fontes de Política da Corte e

de Obras Públicas dois mananciais de informações sobre a mobilidade e a demografia dos

índios no Rio de Janeiro.

A combinação do fluxo escravista atlântico demandado pela expansão do

café no território fluminense na primeira metade do século XIX, com a resultante ampliação

das fronteiras étnicas nessa conjuntura, colocou as sociedades indígenas desta territorialidade

de em “pé de guerra” com a civilização, o que os fundos de Polícia da Corte “capturam” num

duplo sentido, vejamos.

Em 1816, Manoel Jose, Índio, foi preso junto com Manoel de Freitas, pardo

forro, [...] remettidos dos Campos dos Goitacazes, s. 1º por furtar huma escrava de Ignácio

Penha, e varias roupas, e o 2º por ser encontrado na Casa de Manoel Joaquim, e suspeitar-se

que hia roubar. Em novembro do mesmo ano, Sebastião Joze, Indio, foi Remettido da

(incompreensível) por não ter occupação alguma e andar bêbado. Joaquim Joze Indio foi

preso “por achar, elle huma navalha de barba tijuca” e Luiz de França Indio “ Por furtar huma

porção de roupas a João Joze Tijuca.” 11.

Essa tônica de capturas de índios continuou nos anos seguintes e as fontes

demonstram a complexidade das relações interétnicas e das condições sociais da mobilidade

espacial dos índios pelo território fluminense e na cidade do Rio de Janeiro.

Em maio de 1824, João Baptista Indio foi “Remettido da Villa de S. Joze de

[...] pelo Comandante daquele Districto – Bento de Araújo Freitas. Prezo por ser argudo da

desfloração de huma criança naquele districto, em processo [...]”. Dionizio Jorge, Indio, “Por

dar duas facadas no braço de hum preto, e veio remettido de Jaguary” e “Salvador Roiz,

Indio”, não informando mais nada sobre o caso.12

O número de índios recolhidos ao sistema prisional da Capital foi

significativo e as fontes narram a perenidade desse fluxo até o fim do Império, o que

representa uma dupla captura a informar sobre a mobilidade e a demografia indígena no

século XIX, primeiro pelo registro das origens dos índios presos – Campos dos Goitacazes, da

11 - Fundo Polícia da Corte, Códice 404, Vol. 1 – Notação OE – CODE – 1. Arquivo Nacional. 12 - Fundo Polícia da Corte, Códice 404, Vol. 1 – Notação OE – CODE – 1. Arquivo Nacional.

Page 10: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

10

Villa de S. Joze, de Jaguary e assim por diante – numa espacialidade ampla e diversa, ao

mesmo tempo por representar uma crescente inserção desses índios presos como força de

trabalho na Cidade, significando por vezes uma sedentarização dessa “estadia” nas Freguesias

do Rio de Janeiro.

Antes do primeiro Censo Populacional do Império, em 1872, como prática

do antigo regime, foram produzidos na primeira e na segunda metade do século dezenove

inúmeros levantamentos de foros nas Freguesias da Cidade do Rio de janeiro. No Arquivo

Nacional existem séries importantes desses levantamentos populacionais onde são

identificados diversos índios residentes nessas Freguesias.

Entrelaçados os fluxos de índios enviados à Capital do Império por meio

dos Fundos de Polícia da Corte com os levantamentos populacionais a que me referi a pouco,

a plasticidade da demografia dos índios no oitocentos tornar-se-á mais complexa do que uma

mera identificação dos aldeamentos ou aldeias de índios no período.

Inclusive, de índios que se deslocavam de diversas regiões da Província e do

país para peticionarem na cidade Capital para requerer direitos, como fez, em 1846, a índia

Eva perante o poder imperial, denunciando o grau de exclusão vivenciada pelos índios no

período:

Tendo sido remetido a este Ministério(...) o requerimento da índia Eva Maria Dias

do Nascimento, em que pede huma esmola dos dinheiros recolhidos pertencentes

aos Índios: Há por bem sua Magestade o Imperador que V.Excia. ordene ao

Diretor Geral dos Índios que(...) procure indagar e remover as causas que tenhão

concorrido para reduzil-a a tão deplorável estado(...) 13(Grifos meus)

Na segunda metade do século dezenove a dinâmica de identificação dos

índios permaneceu sendo a de submetidos a condições de vulnerabilidades sociais na cidade

do Rio de Janeiro, como registrou a Guarda Urbana da Cidade:

Guarda Urbana 1º Districto.

Forão distribuídos á seus respectivos postos, os guardas deste districto, as quaes

recolhendo-se as horas determinadas derão parte do que occorrêo. Foi recolhido ao

13 - Ofício do Ministro de Negócios do Império ao Presidente da Província do Rio de Janeiro, 15 de dezembro de

1846 – APERJ, Fundo PP-2, Col.4, Pasta 5, Maço 1, citado por FREIRE, José Ribamar Bessa. Os Índios em

Arquivos do Rio de Janeiro – Vol. I – 1995. p. 7

Page 11: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

11

Depozito Geral, a Ordem do Snr. Dºr. Delegado de Polícia, o ... (inelegível) nº.

266, por se achar abandonado no Largo de São Francisco de Paila, as 7 horas da

noite, como consta da parte nº 1. Foi recolhido ao xadrez desta Estação o Indio

João Francisco, por ser encontrado na rua da Carioca, as 10 horas do dia, ébrio, o

qual foi posto em liberdade as 71/2 horas da noite. ...

Remetto a relação dos postos desguarnecidos e o Mappa diário.

Quartel no Largo da Sé em 9 de maio de 1972.

Thomas Abram ... Comandante.14

Olhando em perspectiva temporal esses casos reúnem alguns significados

donde são destacáveis a intensa mobilidade social e a densa demografia indígena para um

universo social muito além da geografia dos aldeamentos.

Na primeira metade do século XIX, tempos de uma conjuntura de entrada

de centenas de milhares de cativos africanos no Rio de Janeiro, o universo da presença

indígena deve ser observado em meio a interações sócio étnicas complexas.

O índio Manoel Jose preso no norte fluminense em 1816, preso por disputar

espaço com huma escrava de Ignácio Penha e por furtar-lhe algo, principalmente roupas. A

Índia Eva peticionando ao poder Imperial pelos seus “direitos”. Sebastião Joze, índio -

“desocupado e bêbado”, e os índios Joaquim Joze e Luiz de França, “armados” e “cometendo

furtos”.

Todos personagens de um enredo demográfico novo, os índios em contexto

urbano no oitocentos vivenciando experiências em fronteiras sociais muito distantes da

geografia dos aldeamentos e isso importa para a compreensão das imagens invertidas da

presença indígena quando os identificamos onde narrativas tradicionais os classificam como

caboclos, pardos ou confundidos à população.

Dionizio Jorge, índio preso e remettido de Jaguary viveu conflitos de um

mundo de rivalidades em que as condições de disputa por recursos capazes de garantir a

reprodução e a manutenção da vida estreitavam-se a cada dia e em ritmo cada vez mais

acelerado, e esfaqueou hum preto.

14 - Fundo Polícia da Corte/Guarda Urbana, Pac 1 – Cx. 990. Notação OE – CODE – 1. Arquivo Nacional.

Page 12: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

12

João Baptista, índio argudo da desfloração de huma criança, confirmou o

conflito sócio étnico em tela, valores de primitivismo e selvageria são imputados aos índios

mesmo em contato permanente com a sociedade envolvente. Salvador Roiz, Índio, não se

“salvou” de ser preso sem motivo aparente, ou como se pode sugerir – preso por ser índio.

E, em 1872, a presença indígena no Rio de Janeiro seguiu seus enlaces e a

Guarda Urbana” do “1º Districto na Capital recolheu ao xadrez o Indio João Francisco, por

ser encontrado na rua da Carioca, as 10 horas do dia, ébrio, o qual foi posto em liberdade em

9 de maio de 1972.

Esse quadro resumido de combinações sobre a presença dos índios na

urbanidade do Rio de Janeiro é uma injeção de imagens que confirmam a importância de

novas fontes para o estudo da demografia indígena no oitocentos.

III - Fontes e bases interpretativas: diálogos em construção.

Houve época em que os estudos sobre a escravidão no Brasil sofriam de

uma síndrome do “apagão”. Não havia fontes, para o estudo das relações sociais entre os

cativos, diziam uns. Quando foi verificado que esta presunção não correspondia à realidade e

um giro metodológico nas pesquisas sobre a temática revigorou o campo de estudo com novas

abordagens e novas fontes – livros de batismo, documentação cartorial, anúncios em jornais

etc. – a história social da escravidão encontrou outro espaço de reflexão e conquistou enorme

reconhecimento acadêmico e institucional, angariando luz própria.

A história indígena foi um pouco refém deste tipo de síndrome. Tanto em

termos de marcos temporais como em relação as suas fontes. Até pouco tempo a história

indígena era razoavelmente aceita como válida para os estudos societários até meados do

século XVIII. Ainda assim, quase sempre associada à história dos aldeamentos e das

experiências jesuíticas ou de outras ordens religiosas.

Sobre o oitocentos resumia-se a história da extinção dos aldeamentos, afinal

as sociedades indígenas já não significariam demográfica e economicamente papel relevante

na vida material e social luso-brasileira e mais adiante brasileira.

Page 13: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

13

Entretanto, ontem ou hoje, aldeados ou não, os índios nunca desapareceram

do território fluminense e carioca, mas foram apagados e submetidos a um luto simbólico.

Cabe aos trabalhos com novas fontes sobre as temáticas envolvendo as sociedades indígenas

como os Fundos de Polícia da Corte ou os Fundos de Obras Públicas do Império,

evidenciarem a identificação dos índios de uma forma multifacetária no oitocentos,

interrogando as fontes “tradicionais” para a história indígena sob uma perspectiva crítica e

uma ótica nova, dialeticamente compondo um esboço criativo do metabolismo simbólico da

relação ausência/presença indígena num contexto de produção social do acaboclamento dos

índios no oitocentos.

Assim, com essas considerações finais, encerramos esse ensaio sobre a

Demografia e mobilidade indígenas no Rio de Janeiro oitocentista: novas fontes de tratamento

e identificação.

Page 14: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

14

IV – Referências.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:

Cia. Das Letras, 2000.

CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios do Brasil. São Paulo : Cia. das Letras:

Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992.

DONISETE, Luis & BENZI, Grupioni (Orgs.). Índios do Brasil. 3ªed. São Paulo: Global; Brasília:

MEC, 1998.

FREIRE, José Ribamar Bessa & MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos Indígenas no Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 1997.

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras,

2000.

Page 15: café e a progressiva “extinção” de aldeamentos observados neste … · 2016. 8. 3. · constitutivas de uma demografia dos índios num terreno de mobilidades sociais intensas

15

SOUZA, Jorge Prata. (Org.). Escravidão: Ofícios e liberdade. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado

do Rio de Janeiro/APERJ, 1998.