Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

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OBRIGADO

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“O solo daquelas paragens – pela ocorrência simultânea de quartzitos e gnaissesgraníticos característicos –, arenoso e estéril, revestido, sobretudo nas épocas de seca, devegetação escassa e deprimida, é, talvez mais do que a horda dos fanatizados sequazes deAntônio Conselheiro, o mais sério inimigo das forças republicanas.” (Euclides da Cunha,discorrendo sobre “a região do extremo norte da Bahia determinada pelo vale do Itapirangaou Vaza-Barris, rio em cuja margem se alevanta a povoação que os últimos acontecimentostornaram histórica – Canudos”.)

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CANUDOS E OUTROS TEMAS

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Mesa Di re to raBiê nio 2003/2004

Se na dor José Sar neyPre si den te

Se na dor Pa u lo Paim1º Vice-Pre si den te

Se na dor Edu ar do Si que i ra Campos2º Vi ce-Presidente

Se na dor Ro meu Tuma1º Se cre tá rio

Se na dor Alber to Silva2º Se cre tá rio

Se na dor He rá cli to Fortes3º Se cre tá rio

Se na dor Sér gio Zam bi asi4º Se cre tá rio

Su plen tes de Se cre tá rio

Se na dor João Alber to Souza Se na dora Serys Slhessarenko

Se na dor Ge ral do Mes qui ta Jú ni or Se na dor Mar ce lo Crivella

Con se lho Edi to ri al

Se na dor José SarneyPre si den te

Jo a quim Cam pe lo Mar quesVi ce-Presidente

Con se lhe i rosCar los Hen ri que Car dim Carl yle Cou ti nho Ma dru ga

João Almino Ra i mun do Pon tes Cu nha Neto

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Edi ções do Se na do Fe de ral – Vol. 2

CANUDOS E

OUTROS TEMAS

Eu cli des da Cunha

Bra sí lia – 2003

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EDIÇÕES DOSENADO FEDERAL

Vol. 2O Con se lho Edi to ri al do Se na do Fe de ral, cri a do pela Mesa Di re to ra em 31 de ja ne i ro de 1997, bus ca rá edi tar, sem pre, obras de va lor his tó ri co

e cul tu ral e de im por tân cia re le van te para a com pre en são da his tó ria po lí ti ca, eco nô mi ca e so ci al do Bra sil e re fle xão so bre os des ti nos do país.

CANUDOS E OUTROS TEMAS

Edi ção co me mo ra ti va dos 100 anos de pu bli ca ção de Os Ser tões

4ª Edi ção – re vis ta e am pli a daEste li vro con tém as re por ta gens in ti tu la das “Ca nu dos – Diá rio de uma Expe di ção”,que de ram ori gem a Os Ser tões, de zes se is tra ba lhos e duas car tas.

Intro du ção ge ral, se le ção, cro no lo gia e apre sen ta ções de OLÍMPIO DE SOUSA ANDRADE

Esta be le ci men to do tex to da 1ª edi ção a car go de

DERMAL DE CAMARGO MONFRÊApre sen ta ção, no tas e

es ta be le ci men to do tex to das 2ª, 3ª e 4ª edi ções a car go deCYL GALLINDO

Capa: Re gi nal do Este ves

Pro je to Grá fi co: Achil les Mi lan Neto Se na do Fe de ral, 2003Con gres so Na ci o nalPra ça dos Três Po de res s/nº – CEP 70168-970 – Bra sí lia – DFCEDIT@ce graf.se na do.gov.br http://www.se na do.gov.br/web/con se lho/con se lho.htm

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Cu nha, Eu cli des da, 1866-1909. Ca nu dos e ou tros te mas / Eu cli des da Cu nha – Bra sí lia : Se na do Fe de ral, Con se lho Edi to ri al, 2003. LXXXVI + 260 p. – (Edi ções do Se na do Federal ; v. 2)

1. Gu er ra de Ca nu dos (1897). 2. Bra sil, his tó ria. I. Tí tu lo. II. Sé rie.

CDD 981.0521

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Su má rio

APRESENTAÇÃO À 2ª E 3 ª EDIÇÃOpor Cyl Gal lin do

pág. XV

APRESENTAÇÃO À 4ª EDIÇÃOpor Cyl Gal lin do

pág. XXIX

INTRODUÇÃOpor Olím pio de Sou sa Andra de

pág. XLV

Os 43 anos de Eu cli des – Cro no lo giapág. LXXXI

NOTAS DO REVISORpág. LXXXV

CANUDOS

A Nos sa Ven déia Ipág. 3

A Nos sa Ven déia IIpág. 9

A cam pa nha de Ca nu dos (Sé rie de re por ta gens pu bli ca das em O Esta do de S. Pa u lo, de agos to a ou tu bro de 1897,

en vi a das do te a tro de ope ra ções, no ser tão da Ba hia)pág. 15

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O bata lhão de São Pa u lo pág. 107

OUTROS TEMAS

Dis tri bu i ção dos ve ge ta is no Esta do de São Pa u lopág. 113

O 4º cen te ná rio do Bra silpág. 119

As se cas do Nor te (I-II-III)pág. 123

Re la tó rio so bre as ilhas dos Bú zi os e da Vi tó ria

pág. 137

Vi a jan do...pág. 155

Pos se no Insti tu to His tó ri copág. 161

Entre os se rin ga ispág. 165

O po vo a men to e a na ve ga bi li da de do rio Pu rus

pág. 169

Últi ma vi si tapág. 189

Numa vol ta do pas sa dopág. 193

Um atlas do Bra silpág. 199

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Duas car tas(a Jo a quim Na bu co, de Lo re na, em 18-10-1903;

a Oli ve i ra Lima, do Rio, em 10-1-1909)pág. 205

Qu a tro ar ti gos em 1892 – pág. 215

Dia a dia – 27 de abrilpág. 217

Dia a dia – 1º de maiopág. 221

Dia a dia – 22 de maiopág. 225

Insti tu to Po li téc ni co I – 24 de maiopág. 229

Insti tu to Po li téc ni co II – 1º de ju nhopág. 235

ANEXOS

De po i men tos so bre Ca nu dos e Ou tros Te maspág. 241

Da dos so bre o au tor da Apre sen ta çãode Ca nu dos e Ou tros Te mas

pág. 251

Da dos so bre o au tor da Capapág. 253

ÍNDICE ONOMÁSTICOpág. 255

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CANUDOS E OUTROS TEMAS, DE EUCLIDES DA CUNHA, MARCA A HOMENAGEM DO CONSELHO EDITORIAL DO SENADO FEDERAL AOS 100 ANOS DE PUBLICAÇÃO DE

OS SERTÕES, OBRA-MESTRA DE EUCLIDES DA CUNHA

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AosSe na do res Lú cio Alcân ta ra, Ma u ro Be ne vi des e Hum ber to Lu ce na (in me mo ri am).

AoPovo da ci da de de São José do Rio Par do – SP, pe losfes te jos da Se ma na Eu cli di a na, que re a li zam todo mêsde agos to, des de 1912.

AoJor nal O Esta do de S. Pa u lo que põe em ques tãoos so nhos de Eu cli des e os pe sa de los do nor des ti no.

C. G.

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Apre sen ta ção à 2ª e 3ª Edi ção

Cyl Gal lin do

C ANUDOS E OUTROS TEMAS,1 de Eu cli des da Cu nha,sa in do em 3ª edi ção pela Sub se cre ta ria de Edi ções Téc ni cas do Se na doFe de ral,2 visa, como obra ger mi na ti va, a mar car as co me mo ra ções dos 90anos de pu bli ca ção de Os Ser tões – de zem bro de 1902/1992.

Embo ra com atra so, aí está o li vro um pou co mais com ple todo que o que fora re a li za do por Olím pio de Sou sa Andra de e Der malde Ca mar go Mon frê: cons ta o ar ti go “Entre os Se rin ga is”, não lo ca li za -do à épo ca pelo or ga ni za dor, con for me no ti fi ca no fi nal da “in tro du ção”,e o tex to com pos to das car tas a Jo a quim Na bu co e Oli ve i ra Lima.

1 Tí tu lo da pri me i ra edi ção: Ca nu dos e Iné di tos – Edi ções Me lho ra men tos. Su pri mi das a ore lha, es cri ta por Pa u lo Dan tas, e a capa de Te re sa Na zar. C. G.

2 O Pre si den te do Se na do, Se na dor Hum ber to Lu ce na, au to ri zou esta 3ª edi ção,re vis ta e me lho ra da no as pec to grá fi co, ten do em vis ta a es tron do sa re per cus sãono pró prio Se na do, na Câ ma ra dos De pu ta dos, na im pren sa e nos me i os in te lec -tu a is do Bra sil e do ex te ri or, mes mo an tes do lan ça men to da 2ª edi ção, elo qüen tetes te mu nho vivo da im por tân cia de Eu cli des da Cu nha e da sua obra. C. G.

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O tra ba lho con ti nua ofe re ci do à ju ven tu de, para que pos sato mar co nhe ci men to do que de mais puro e for te exis te na li te ra tu ra bra si -le i ra, em bo ra já não haja dú vi da do gran de in te res se pela obra de mons tra -do por gen tes de to das as fa i xas etá ri as, de to dos os ní ve is e de to dos ospon tos, don de nem se po de ria ima gi nar. As “opi niões”, sin te ti za das e re du -zi das ao má xi mo pos sí vel, são re tra to co lo ri do sem re to que da gran de re a li -da de eu cli di a na. Ates ta do de que não há po der que afo gue a re a li da de.

Ao ser pro cu ra do por emis sá rio de Vir gí lio Mo retz sohn, para sa -ber se te ria me i os de in ter ce der jun to a al guém ca paz de re e di tar o vo lu me, de ime di a to aflo rou-me à me mó ria um nome: Se na dor Ma u ro Be ne vi des,en tão Pre si den te do Se na do Fe de ral. A lem bran ça não veio por aca so. É que, não obs tan te o alto pos to em que es ta va in ves ti do, como es ta dis ta depri me i ra gran de za, o se na dor sem pre me de sar ma ra de for ma li da des comsin gu lar aten ção e, além da con di ção de in te lec tu al, re cém-ele i to para aAca de mia Ce a ren se de Le tras, é con ter râ neo do Con se lhe i ro, per so na gem cen tral da obra-pri ma eu cli di a na.

A con fi an ça con fir ma-se: o Se na dor Be ne vi des ou viu o ple i to eori en tou-me a for ma li zá-lo, en ca mi nhan do-o ao Di re tor-Ge ral do Se na -do, Sr. Ma nuel Vi le la de Ma ga lhães, o que foi fe i to por meio da Casade Per nam bu co, com o se guin te ar gu men to:

“Move-nos tão-so men te o in te res se úni co de não se per mi tirque su cum ba ao peso do es que ci men to e da in di fe ren ça uma das mais im -por tan tes obras, tan to pela te má ti ca como pela es tru tu ra e es ti lo, es cri taem lín gua por tu gue sa, por um bra si le i ro. Como, so bre qua is quer obs tá cu los,man tém a Itá lia com pro mis so com Dan te Alig hi e ri; a Ingla ter ra, comSha kes pe a re; a Ale ma nha, com Go et he; Por tu gal, com Ca mões, e tan tas ou tras na ções com seus fi lhos mais ilus tres, é igual men te de ver do Bra silcon du zir ace sa a cha ma Eu cli des da Cu nha.”3

XVI Eu cli des da Cunha

3 Ofí cio C. PE. 012/92, en vi a do ao di re tor-ge ral do Se na do, em 26-5-92.

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No pe río do do va ga ro so cur so da bu ro cra cia, de pen den te depa re cer de co mis são, or ça men to e ou tros de ta lhes, hou ve re ces so do Con gres soNa ci o nal e ele i ção para a Mesa Di re to ra. Ele i to Pre si den te, o Se na dorHum ber to Lu ce na, pa ra i ba no, gran de in cen ti va dor da cul tu ra, do quedou tes te mu nho com li vros cuja edi ção foi de sua res pon sa bi li da de,4 ocom pro mis so foi man ti do com a mes ma gran de za de es pí ri to.

Nes se ín te rim, tra vei con ta to com o Sr. Joel Bi ca lho Tos tes, re pre -sen tan te da fa mí lia Eu cli des da Cu nha, que en ca mi nhou do cu men to ao Se -na do, es cla re cen do: “Não cabe mais aos des cen den tes do es cri tor pa ga men tode ne nhu ma es pé cie pela uti li za ção de qua is quer obras ou tra ba lhos li te rá ri os por ele pro du zi dos, pois to dos ca í ram em do mí nio pú bli co.”5 E em cor res -pon dên cia, num ex ces so de ge ne ro si da de, dis se: “Oxa lá a sua idéia (que nãofora mi nha, mas do Vir gí lio) de es cre ver a ore lha da obra a ser edi ta da sobpa tro cí nio do Se na do pos sa ser con cre ti za da. Hon ra ria Eu cli des.”6

Hon rar Eu cli des da Cu nha com a mi nha in sig ni fi cân cia?Adi ci o nar uma úni ca le tra ao que pro du ziu? Ne nhu ma pre ten são. Hon -ra-me so bre ma ne i ra a luta de al can çar o sen ti do de sua mo nu men talobra, de ma jes to so es ti lo har mo ni o so e belo, cujo de fe i to, apon ta do porPa u lo Dan tas, é ser “bri lhan te ou clás si co de ma is”.7

“Edu ca do numa rude es co la de di fi cul da des e pe ri gos”,8 jus ti -fi co-me: meu pri me i ro con ta to com a obra eu cli di a na foi quan do fa zia,tar di a men te, o cur so gi na si al no tur no, no Re ci fe. O Pro fes sor Au gus toWan der ley deu-me um ve lho exem plar de Os Ser tões, pro fe ti zan do:

Ca nu dos e Ou tros Temas XVII

4 Uma Vida Vi vi da em Po e sia – Jan sen Fi lho – Bra sí lia – Se na do Fe de ral – Grá fi ca do Se na do, 1989.

5 TOSTES, Joel Bi ca lho. Cor res pon dên cia en de re ça da ao Sr. Ma nu el Vi le la deMa ga lhães, da ta da de 8-2-93.

6 TOSTES, Joel Bi ca lho. Cor res pon dên cia en de re ça da a Cyl Gal lin do, da ta da de9-2-93.

7 DANTAS. Pa u lo. Ca nu dos e iné di tos – Ore lha – Ed. Me lho ra men tos, 1967. 8 CUNHA, Eu cli des da. “A Nos sa Ven déia”. In: O Esta do de São Pa u lo – São Pa u lo, 14

de mar ço de 1897. Inclu í do nes te vo lu me, p. 48

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“No dia em que você en ten der toda a ver da de aqui ex pos ta, con si de re-seum ci da dão.” Como a gran de ma i o ria do povo bra si le i ro, po rém, ain danão atin gi essa ci da da nia, em bo ra a per si ga como um cão da na do. E sóDeus sabe quan to me é ne ga da.

Dis pus-me a es cre ver esta nota por duas ra zões. A pri me i ra,como ato de jus ti ça, para es cla re cer don de veio a idéia e o mo ti vo da pu -bli ca ção des te li vro bem como os ver da de i ros res pon sá ve is pela sua con cre -ti za ção. É o que está es cri to aci ma.

A se gun da, mu i to mais na qua li da de de ja gun ço do que de in -te lec tu al, vis to que sou cons ci en te da mi nha “or to gra fia bár ba ra”,9 da“es cri ta ir re gu lar e feia”10 como se pode ob ser var nes te “des gra ci o so”11

tex to, tem como fi na li da de pri mor di al fa zer ver ao es pí ri to de Eu cli desda Cu nha que, em con tra par ti da às suas ver da des, ocul ta das ou es que ci -da men te lem bra das, o en go do e a men ti ra con ti nu am mas sa cran do, es pe -zi nhan do, se gre gan do e mar gi na li zan do o povo nor des ti no. A Ca nu dosque fal sa men te afron ta o po der, en ver go nhan do a bur gue sia, não é maisum ar ra i al fin ca do no ser tão ba i a no, é toda a re gião, com for mi dá ve is ra mi fi ca ções no Bra sil in te i ro.

A Re pú bli ca até o pre sen te ain da não se es tru tu rou de fi ni ti va -men te. A de mo cra cia, e con se qüen te men te a li ber da de, ja ma is al can ça rample ni tu de. Con ti nu am pa la vras pe ri go sas e si mul ta ne a men te frá ge is. Tão frá -ge is que um mem bro do pró prio Con gres so, égi de des sa de mo cra cia/li ber da de,pro pôs re cen te men te o seu fe cha men to e a re im plan ta ção do re gi me de for ça no país.

O Esta do, for te de ma is para os fra cos e fra co de ma is pe ran teos for tes, nun ca con se guiu, não digo se eri gir no pla tô ni co ser per fe i to, pelo

XVIII Eu cli des da Cunha

9 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção di dá ti ca pre pa ra da pelo Prof. Alfre doBosi, 2ª edi ção. São Pa u lo: Edi to ra Cul trix, 1975, Pág. 154. CALASANS, José. Ca nu dosna li te ra tu ra de cor del. São Pa u lo: Edi to ra Áti ca, 1984. (Ensa io: 110), p. 2.

10 Vide item 9.11 Vide item 9.

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me nos fa zer do Bra sil um país à al tu ra do seu povo e das suas po ten ci a -li da des. A re for ma agrá ria,12 que de ve ria ter sido exe cu ta da quan do dali ber ta ção dos es cra vos, para que es ses con ti nu as sem, na qua li da de depro pri e tá ri os, a cul ti var a ter ra, como sem pre o fi ze ram, per ma ne ce tabu. Aque las “abu si vas con ces sões de ses ma ri as à pos se de uma só fa mí lia”13

per ma ne cem in to cá ve is. As fa mí li as, sem ne nhu ma vo ca ção agrí co la, vi -vem nas gran des ci da des, como cons tru to ras, ban que i ras, in dus tri a is.Cul ti var a ter ra só com al guns pro du tos para ex por ta ção: soja,14 café,car ne. Enquan to isto, o ru rí co la vive en tre a cer ca e a es tra da de ro da gem e ai de quem ou sar cru zar o ara me. Pe ri go, aliás, já nem tão pre o cu pan te:a po pu la ção ru ral bra si le i ra mi grou para os gran des cen tros, em bus catam bém de vida me lhor. Infe liz men te, a ma i o ria es ma ga do ra so bre vi veali men tan do-se de lixo, sem mo ra dia, em pre go, es co la para os fi lhos equal quer tipo de as sis tên cia. Tão exa us ti va men te ra quí ti ca, con fun de-sehoje com os “mes ti ços ne u ras tê ni cos do li to ral”.15

Um dos mais sé ri os e co mo ven tes de po i men tos so bre o as sun to, por quan to di ta do pe las pró pri as vís ce ras, foi pres ta do por Ca ro li naMa ria de Je sus, no seu diá rio, com con tun den te re co men da ção: “O Bra silpre ci sa ser di ri gi do por uma pes soa que te nha pas sa do fome. A fometam bém é pro fes so ra.”16

Ca nu dos e Ou tros Temas XIX

12 A ques tão agrá ria já pro mo veu inú me ras cri ses nes te país. De um lado os sem-ter ra, o povo fa min to – acen de ram es pe ran ças na Cons ti tu in te, car ra das de as si na tu ras fo ram des pe ja das no Con gres so pe din do a Re for ma Agrá ria –; do ou tro lado o la ti -fún dio di zen do não. Aí está o re sul ta do: ape nas um quin to das ter ras dis po ní ve is éapro ve i ta do para a agri cul tu ra e 70% da po pu la ção bra si le i ra con ti nu am sem seali men tar re gu lar men te, cri an do a ge ra ção de na ni cos com a fome en dê mi ca. C. G.

13 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção ci ta da, p. 92.14 37 a 38% da pro du ção de grãos no Bra sil são de soja, para ex por ta ção e pro du ção

de óleo, se gun do a Con fe de ra ção Na ci o nal da Agri cul tu ra. C. G.15 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção ci ta da, p. 99.16 JESUS, Ca ro li na Ma ria de. Qu ar to de Des pe jo – Diá rio de uma fa ve la da. São Pa u lo:

Li vra ria Fran cis co Alves, 1960, p. 31.

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Cor ro bo ran do-se mi nha má goa com a re a li da de de Ca ro li na,faço uma ad ver tên cia: fome não se con fun de com von ta de de co mer!Fome pas sa por es tô ma gos de Bi a fra, do Nor des te bra si le i ro, dos li xõesdas gran des ci da des, das fa ve las e dos man gues. Fome pas sa tam bémpela cons ciên cia de quem tem dig ni da de hu ma na. A exem plo do pró -prio Eu cli des da Cu nha, de Jo sué de Cas tro, de Nel son Cha ves.

Como “a nos sa evo lu ção bi o ló gi ca re cla ma a ga ran tia da evo -lu ção so ci al”17 con tra ri an do tam bém Gil ber to Frei re, o “tipo abs tra -to”18 do bra si le i ro está de fi ni do; é des cen den te do dono das ses ma ri as,alto, lo i ro, olhos azu is, en fim, é ari a no;19 ha bi ta o Cen tro-Sul do país,tem nome de ori gem es tran ge i ra, usa ca mi sas de ma lha le gen da das em in -glês, lín gua da qual fala al gu mas ex pres sões, mas ca chi cle tes e só ouverock and roll, rit mo já ci ta do pe los me i os de co mu ni ca ção como daMPB. A ma i o ria pre fe re mo rar em pa í ses do Pri me i ro Mun do, masaque les que não o con se guem co me çam a pro mo ver a di vi são ter ri to ri al do Bra sil e a es cre ver nos mu ros de suas ci da des: “fora os pa ra í bas sa fa -

XX Eu cli des da Cunha

17 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção ci ta da, p. 72.18 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção ci ta da, p. 71.19 Tan to Eu cli des da Cu nha como Gil ber to Fre i re ja ma is ima gi na ri am a do mi na ção

da na ção bra si le i ra pela raça ari a na, apon ta da como pro tó ti po das clas ses so ci a isdo Sul do Bra sil, o que ab so lu ta men te não é ver da de. Eles acre di ta ram na pos si bi -li da de da for ma ção de um tipo bra si le i ro, ge ne ti ca men te mis ci ge na do com as trêsra ças pre do mi nan tes: bran ca, ne gra e in dí ge na. Não é que o tipo ari a no não exis taou que isto por si só cons ti tua cri me ou di re i to na tu ral so bre qua is quer co i sas. Ele exis te dis se mi na do por todo o país e com im por tan tes con cen tra ções no Sul,como os mu ni cí pi os de Blu me nau, Ca ne la, Gra ma do. Quem, po rém, como eumes mo, co nhe ce o Bra sil de um ex tre mo a ou tro pri vou da con vi vên cia de fa mí li ascomo Dja ir Ceza e Ro ber to Cla uhs, Cri ci ú ma – SC; Ave li no Ga i ar do, To maz zo nie He in rich Gers tner, Ca xi as do Sul – RS, sabe que es sas gen tes exis tem com mu i -ta dig ni da de, vi vem pa drão de pri me i ro mun do e têm mu i to mais sen ti men to debra si li da de do que to dos es ses ca fu çus que pre gam “mor te aos nor des ti nos” e se -pa ra tis mo, sim ples men te por que não têm pers pec ti va de vida no pla no pes so al eque rem atri bu ir a cul pa a ou trem. Se al gu ma re gião se be ne fi ci as se com a di vi sãoter ri to ri al do Bra sil, essa re gião se ria o Nor des te, por se li vrar da im po si ção demer ca do obri ga tó rio de pro du tos de te ri o ra dos e de se gun da ca te go ria. O Nor des teex por ta para o ex te ri or, mas só im por ta do Cen tro-Sul. C. G.

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dos”.20 Pa ra í bas ou ba i a nos são nor des ti nos, nor tis tas, ne gros, mes ti çose mi se rá ve is de ma ne i ra ge ral, a quem aque la gen te está “can sa da de sus -ten tar ou aju dar”.21

Como es ta va es cri to: “Ou pro gre di mos, ou de sa pa re ce mos”,22

o pro gres so foi pro mo vi do, mas ape nas num Esta do do Cen tro-Sul, ondejá se ha via de sen vol vi do a la vou ra do café, er ra di can do-a do res tan te dopaís.23 Aí tam bém a cana-de-açú car foi me ca ni za da. Nos de ma isEsta dos per ma ne ceu o pro ces so pri mi ti vo. Duas im por tan tes re par ti çõesfo ram cri a das para fi nan ci ar a ju ros ba i xos ou a fun do per di do todo opro ces so, do plan tio à ex por ta ção, da cana e do café.24Como se não bas -tas se, to das as gran des re par ti ções são aí se di a das, pa gan do al tos sa lá ri os a um exa ge ra do con tin gen te de fun ci o ná ri os, que as se gu ra o con su mo dapro du ção da in dús tria nas cen te.

Com do a ção de ter re nos com in fra-es tru tu ra, in cen ti vos fis ca is,isen ção de im pos tos, mão-de-obra ba ra ta, as mul ti na ci o na is não va ci la -ram em trans fe rir as ob so le tas fá bri cas de “car ro ças”25 e ou tros pro du tos para o nos so País, até en tão con si de ra do emi nen te men te agrí co la. Elas já dis pu nham de tec no lo gia de pon ta. As fá bri cas, por tan to, em nadamu da ri am nos sa con di ção de sub de sen vol vi dos e de pen den tes.

Ca nu dos e Ou tros Temas XXI

20 Expres são pi cha da num muro da ca pi tal pa u lis ta, ini ci al men te en ten di da comofor ma de opo si ção à Sra. Lu í sa Erun di na, pa ra i ba na de nas ci men to, e à épo ca pre -fe i ta de São Pa u lo. Mais tar de, com a re por ta gem “Po lí cia ne les”, re vis ta Veja, edi ção1256, de 7-10-92, quan do foi pi cha da a pa re de da Rá dio Atu al com a ex pres são“mor te aos nor des ti nos” fi ca ram cla ras as ra í zes da ques tão, pois a cor ja ne o na zis tapre ga tam bém o ex ter mí nio de ne gros, ho mos se xu a is e ju de us. C. G.

21 De cla ra ção de um co lu nis ta so ci al do Rio de Ja ne i ro. C. G.22 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões, Edi ção ci ta da, p. 72.23 Ga ra nhuns e Bu í que, no Esta do de Per nam bu co, eram bons pro du to res de café e

fo ram for ça dos a er ra di car a plan ta ção, aten den do po lí ti ca do IBC. C. G. 24 Insti tu to do Açú car e do Álco ol – IAA, e Insti tu to Bra si le i ro do Café – IBC, este

in clu si ve com im por tan tes es cri tó ri os no ex te ri or. C. G.25 De no mi na ção dada aos au to mó ve is fa bri ca dos no Bra sil, em com pa ra ção aos

fa bri ca dos na Eu ro pa, por uma au to ri da de bra si le i ra. C. G.

Page 19: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Inter na men te, po rém, o novo pa no ra ma trou xe inú me ras mu -dan ças. O Cen tro-Sul, con cen tran do mais for te ain da toda a ri que za na -ci o nal, con ver teu-se no Eldo ra do do “pa ra í ba” que para lá se mu dou.Em face de tan ta dis po si ção para o tra ba lho pe sa do, sem ne nhu ma exi -gên cia nem as sis tên cia, sa lá rio con dig no, mo ra dia, es co la, não tar dou aser re co nhe ci do como “an tes de tudo um for te”.26

Para os que per ma ne ce ram no seu tor rão, hou ve uma im pos tu rano tá vel: cri a ram uma agên cia de de sen vol vi men to re gi o nal, que ain da so bre -vi ve fa li da e de sa cre di ta da. Mas tam bém vi veu seus tem pos áu re os. Alar de a -va: as ta xas do cres ci men to nor des ti no são ma i o res do que as do res tan te dopaís. Se gui am-se as es ta tís ti cas: dez fá bri cas im plan ta das no Nor des te,con tra três nas de ma is re giões. Exa mi na dos os da dos, ve ri fi ca va-se que asdez fá bri cas eram de ca i xas de fós fo ro, sor ve tes, cer ve jas, al par ga tas, re fri ge -ran tes, sa bão em bar ra, cur tu me, ca mi sas, sa co las para su per mer ca dos e uma de ge la de i ra. Esta, por aten der o mer ca do de uma re gião cuja tem pe ra tu ra éde 29° a 30°, de ja ne i ro a ja ne i ro, só não as cen deu ao pos to de pro tó ti po dode sen vol vi men to por que não ha via mão-de-obra es pe ci a li za da lo cal. Arre gi -men tou-se na ma triz mais da me ta de do seu pes so al. Ofe re cen do, como nãopo de ria de i xar de ser, al tís si mos sa lá ri os, casa, co mi da e rou pa la va da, essepes so al ame a lhou gor da pou pan ça no Esta do de ori gem. A fá bri ca foi àfa lên cia, não sem an tes re ce ber da re fe ri da agên cia inú me ras in je ções fi nan ce i -ras. Já as três fá bri cas das de ma is re giões, com pre en da-se Cen tro-Sul, eramsim ples men te in dús tri as au to mo bi lís ti ca, na val e ae ro náu ti ca. Se cun da daspor si de rur gi as, re fi na ri as, pe tro quí mi cas, fer ro via do aço, ae ro por to su per sô -ni co, mais as se des de quan tas re par ti ções, al gu mas das qua is com atu a çãoes pe cí fi ca nou tras re giões, como a Chesf,27 afo ra ban cos pri va dos e pú bli cos,para as se gu ra rem o for ta le ci men to da em pre sa na ci o nal, que ha ve ria de fa zer fren te aos pa í ses de sen vol vi dos.

XXII Eu cli des da Cunha

26 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção ci ta da, p. 99.27 CHESF – Com pa nhia Hi dro-Elé tri ca do São Fran cis co, se di a da no Rio de Ja ne i ro

até fins de 1973.

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Por ou tro lado, os cen tros fi nan ce i ros in ter na ci o na is abar ro ta dos de pe tro dó la res, por que seus do nos não ti nham como apli cá-los no de ser to,ofe re ci am em prés ti mos à man che ia. Com tan ta ri que za, gran de par te dos pre ca vi dos em pre sá ri os abriu suas con ti nhas no ex te ri or, nu me ra das epro te gi das pelo si gi lo ban cá rio.

Vi vía mos o mi la gre. Não do Con se lhe i ro ou do Pa dre Cí ce ro. Omi la gre in dus tri al. Infe liz men te du rou pou co. A cri se do pe tró leo der ru bou amás ca ra e a cor ti na da far sa des pen cou. Ain da ten ta ram sal var as apa rên ci ascom a cri a ção da tec no lo gia do ál co ol. E as ha ve ri am sal va do se o pro gra ma ti -ves se sido em ní vel mu ni ci pal, sa ben do-se que a cana-de-açú car pode sercul ti va da até em quin ta is. Com o pro gra ma cen tra li za do, no en tan to, alémde in cen ti vos para usi ne i ros, per dão de dí vi das as tro nô mi cas, o ál co ol dis pu tapre ço com a ga so li na e ame a ça co lap so, nos trans por tes e no abas te ci men to.

Os es co lhi dos fo ram com tan ta sede ao pote que as fon tes se es -go ta ram. É che ga do o mo men to de co me çar a pa gar a dí vi da ex ter na. Epaga-se uma mé dia de 10 bi lhões de dó la res, só de ju ros, por ano. Oprin ci pal é ro la do, em di re ção aos nos sos fi lhos e ne tos. Inter na men te, aso lu ção en con tra da foi a so ci a li za ção dos pre ju í zos, cri an do-se im pos tos.Sem pre ouvi di zer que não se ris ca um pa li to de fós fo ro sem que o im pos -to es te ja pago, daí não en ten der como 58 im pos tos não abar ro tam os co -fres do Go ver no. Aliás, en ten do: da mais in sig ni fi can te à mais im por tan -te, as em pre sas in clu em nas suas pla ni lhas o item im pos tos e os co bramdo povo, mas os so mam aos lu cros ilí ci tos. O Go ver no sabe dis so, masnun ca pen sou em cri ar ou tra sis te má ti ca e pre fe re pro mo ver um car na valde pu bli ci da de, pago a pre ço de ouro, di zen do: “Peça a nota fis cal.” 28

Ca nu dos e Ou tros Temas XXIII

28 As cam pa nhas cí cli cas vi san do au men tar a ar re ca da ção de im pos tos são fa mo saspe las ofer tas de brin des va li o sos, como se isso não fos se uma for ma cí ni ca decum prir a lei. Empre sas, mu i tas com pu ta do ri za das, man têm rí gi do con tro le deven da das suas mer ca do ri as, mas sem re co lhi men to do im pos to. Se o fre guêspede a nota fis cal, per de pos si bi li da de de aba ti men to no pre ço e as sis te a umma çan te exer cí cio bu ro crá ti co. C. G.

Page 21: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Uma boa lem bran ça: car na val e fu te bol. O pri me i ro já é per -mi ti do por mais de 30 dias em al guns Es ta dos, com be bi das, sexo e dro -gas. O ou tro, como re i na do in de pen den te, atua o ano todo. Ne nhu maou tra ati vi da de nes te país en vol ve tan tos re cur sos nem me re ce tan to es pa çona mí dia. Além de pro gra mas es pe cí fi cos e ca der nos es pe ci a is, é no ti ci a do pela ma nhã, à tar de e à no i te. Um gol é en fo ca do de fren te, pela di re i ta,es quer da, por trás, com duas, três re pri ses. É o úni co mo ti vo que levami lhões de bra si le i ros numa fre qüên cia acu mu la da às ruas, de ban de i raem pu nho, gri tan do: Bra sil, sil, sil, sil, sil...

Argu men tei cer ta vez para Gil ber to Fre i re que o nor des ti no já não mais se ali men ta va da man di o ca:29 fa ri nha, be i ju, ta pi o ca, cus cuz,pa pas e bo los. Ago ra come pães, bo la chas e bis co i tos fi nos, com bro ma tode po tás sio ou, no mí ni mo, com uma das vin te adul te ra ções apon ta daspor Marx, como pra ti ca das na Fran ça do sé cu lo pas sa do.30Sen do que ama i or gra vi da de não está na subs ti tu i ção do ali men to, mas da man di o capelo tri go que é im por ta do. O mes tre mos trou-se tão im pres si o na do queme pro me teu a co or de na ção de uma pes qui sa so bre o as sun to, que não sere a li zou.

No pla no cul tu ral, não há nada di fe ren te. Se hou ves se, pu bli -car um li vro de Eu cli des da Cu nha não se ria qua se um ato de bra vu ra

XXIV Eu cli des da Cunha

29 O gran de pro du tor na ci o nal hoje é o Pa ra ná, ex por tan do fa ri nha in clu si ve para oNor des te, es pe ci al men te nos pe río dos de fla ge los. Ain da man te nho có pia da pro -pos ta de pes qui sa apre sen ta da à Fun da ção Jo a quim Na bu co. C. G.

30 MARX, Karl. O Ca pi tal – Li vro 1 – Vol. 1 – 2ª edi ção. Rio de Ja ne i ro, Edi to ra Ci -vi li za ção Bra si le i ra, 1971. Pág. 282. Iro ni zan do os ele a tas, que afir ma vam que“toda a re a li da de é mera apa rên cia”, Marx as se gu ra que a “so fis ti ca ria” dos fal si fi -ca do res é mu i to mais ca paz e exem pli fi ca com o tra ba lho do quí mi co fran cêsChe va li er que, “tra tan do das adul te ra ções das mer ca do ri as, pas sa em re vis ta maisde 600 ar ti gos e apre sen ta para mu i tos de les, 10, 20, 30 di fe ren tes pro ces sos defal si fi ca ção... Para o açú car há 6 mé to dos de fal si fi ca ção; para o aze i te de oli va, 9;para a man te i ga, 10; para o sal, 12; para o le i te, 19; para o pão, 20; para a aguar -den te, 23; para a fa ri nha, 24; para o cho co la te, 28; para o vi nho, 30; para o café,32, etc. Nem mes mo o bom Deus es ca pa dos fal si fi ca do res. Vide Ro nard de Card so bre as fal si fi ca ções das subs tân ci as do sa cra men to. – Pa ris, 1856”.

Page 22: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

ou he ro ís mo. Mas bas ta di men si o nar na mí dia o es pa ço que o au tor bra si le -i ro ga nha, es pe ci al men te os no vos, para quem so mos mu i to len tos em re -co nhe cer na fi si o no mia par ti cu lar de um novo es cri tor o mo de lo que trazo nome de “gran de ta len to”,31 se gun do Proust, e cer ti fi car mo-nos de queestá se apa gan do a luz no fim do tú nel. Não se tra ta de fato iso la do. Ades pe i to de von Mar ti us e Lang ga ard,32 os la bo ra tó ri os subs ti tu í ram ame di ci na na tu ral pela alo pa tia e re mé di os são ven di dos até em bar ra casde fe i ras; os te ci dos de li nho ou al go dão fo ram tro ca dos pe los sin té ti cos,mes mo que no Nor des te se pro du zis se um al go dão so men te com pa ra do ao do Egi to;33 a mú si ca, com sua pro fu são de rit mos, como sam ba, cho ro,ba ião, fre vo, apon ta dos como dos mais har mo ni o sos do mun do, vi rou“bre ga”. Che gou a vez da Li te ra tu ra. As li vra ri as es tão em pi lha das depés si mos li vros de au to res me dío cres em pés si mas tra du ções, mas é isto oque a nos sa im pren sa di vul ga e re co men da, como si nal de que nos sa bur ri cege ne ra li zou-se.

Mes mo as sim, o Nor des te con ti nua “o cer ne vi go ro so da nos sana ci o na li da de”.34 Nes sa re gião, por ser Bra sil com li mi tes ex clu si vos deBra sil, a cul tu ra no cor rer dos sé cu los tor nou-se tão ar ra i ga da às con di -ções ser ta nis tas e ru ra lis tas em ge ral, onde pre do mi nam o pa tri ar ca lis mo,

Ca nu dos e Ou tros Temas XXV

31 PROUST, Mar cel. Em Bus ca do Tem po Per di do – No Ca mi nho de Swann. Tra du ção deMá rio Qu in ta na, 2ª edi ção, 3ª im pres são. POA – Edi to ra Glo bo, 1972, p. 89.

32 von MARTIUS. Bo tâ ni co ale mão. Au tor de im por tan tís si mos tra ba lhos so bre aflo ra bra si le i ra, por isso mes mo mu i to co nhe ci do em todo o país. Par te das in for -ma ções do Dr. von Mar ti us fo ram co lhi das no Tra ta do Des cri ti vo do Bra sil, de Ga -bri el So a res de Sou sa – 1587 – no qual foi dado gran de des ta que à flo ra e suaspro pri e da des me di ci na is. LANGGAARD, The o do ro J. H. Dou tor em me di ci napela Uni ver si da de de Co pe nha gen e Kiel. Dele guar do com zelo o Di ci o ná rio deMe di ci na Do més ti ca e Po pu lar. Três vo lu mes: 707 p.; 724 p.; 732 p. mais 236 fi gu rasin ter ca la das no tex to. Rio de ja ne i ro. Edi to ra E. & H. La em mert, 1865. C. G.

33 No tem po de re pór ter, co brin do o se tor agro pe cuá rio, to mei co nhe ci men to de que“so men te o Nor des te bra si le i ro pro duz al go dão com pa rá vel ao do Egi to, com fi bra de11mm”. Esse or gu lho se des fez: o bi cu do, uma pra ga im por ta da, in fes tou os cam pos, o al go do e i ro foi al can ça do e mu i tas usi nas de be ne fi ci a men to de al go dão fa li ram. C. G.

34 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção cit., p. 91.

Page 23: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

o se mi fe u da lis mo, a mo no cul tu ra, es tri ba dos numa so ci e da de tri con ti nen tale ca u sa do ra do sur gi men to de um mis ti cis mo exa ge ra do, um can ga ce i ris momi li tan te e mu i tos ou tros as pec tos não me nos for tes, prin ci pal men te ospo lí ti cos, qua se ex tre mis tas, pas san do por esse tipo bra si le i ro, se não ge -ne ti ca men te, pelo me nos ar te são dos seus pró pri os sen ti men tos, que re sul -tou numa gama enor me de cri a ção ar tís ti co-li te rá ria, da qual não pode ana ção ar re dar-se. Sem ma i or di gres são, em bo ra haja mo ti vos es tru tu ra isnes ta na ci o na li da de, a par tir da ex pul são dos ho lan de ses, o mis ti cis moatin giu o ápi ce na fi gu ra de Antô nio Con se lhe i ro, tão bem re tra ta do porEu cli des da Cu nha, em Os Ser tões, e cri ou uma qua se di nas tia mís ti -ca ao trans mi tir a li de ran ça à fi gu ra do Pa dre Cí ce ro Ro mão Ba tis ta,tam bém de atu a ção be li co sa, ao lado de Flo ro Bar to lo meu, no Ce a rá,como de mons trou Rui Facó, em Can ga ce i ros e Fa ná ti cos e, comacen tu a da que da de au to ri da de, po rém com gran de sig ni fi ca do no ter re nomís ti co-re li gi o so, ain da vive o Frei Da mião, pro me ten do o fogo do Infer nopara os aman ce ba dos e de so be di en tes das leis de Deus.35

Com cla ri vi dên cia ple na des te con tex to, es cre ve Eu cli des daCu nha, Os Ser tões, e Gil ber to Fre i re, Casa Gran de & Sen za la.Des tas ra í zes tam bém vi e ram Gon çal ves Dias, Cas tro Alves, José deAlen car, Artur e Alu í sio Aze ve do, Jo a quim Na bu co, Au gus to dos Anjos,Jor ge de Lima, José Amé ri co de Alme i da, José Lins do Rego, Ra quel deQu e i rós, Gra ci li a no Ra mos, Ma nu el Ban de i ra, Osman Lins, Álva roLins, João Ca bral de Melo Neto, Ari a no Su as su na, Nel son Ro dri gues,José Con dé, Agui nal do Sil va, Gil van Le mos e mais uma lis ta imen sa deou tros no mes. Até Gu i ma rães Rosa, com sua sub ver são joy ci a na, em vezde pro mo ver uma tra ma di plo má ti ca, sob re fle xos de um rio São Fran cis co, a lhe de sa guar na me du la a uni da de na ci o nal, re a li zou Gran de Ser tão:Ve re das. E, ain da hoje, li te ra tu ra, te a tro, ci ne ma, mú si ca, ar tes plás ti cas,

XXVI Eu cli des da Cunha

35 GALLINDO, Cyl. O Urba nis mo na Li te ra tu ra. Edi to ra Li vros do Mun do Inte i ro.Con se lho Mu ni ci pal de Cul tu ra do Re ci fe. Rio de Ja ne i ro, 1976.

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rá dio, te le vi são, en fim, qua is quer ati vi da des in te lec tu a is, nes te país, so men -te evi den ci am tra ços de bra si li da de se des ce rem às ra í zes do Nor des te.

O cer ne des ta na ci o na li da de, não obs tan te o bom bar de io sis te -má ti co do po de ro so pro ces so do mi na dor, per ma ne ce vivo, im pe ra ti vo,va len te, como o de mons trou re cen te men te na de fe sa da mú si ca Águas de Mar ço, cu jas le tra e me lo dia, como inú me ras ou tras da MPB, vêm dopovo nor des ti no, para que não ser vis se de fun do mu si cal numa pu bli ci da dede um re fri ge ran te que não é nos so. Fe liz men te o bri lhan te ar ran ja dorsou be re cu ar em tem po, com medo de cair no os tra cis mo em que mu i tos já ca í ram, por tra í rem “a gê ne se das ra ças mes ti ças do Bra sil”.36

E o que se fez para en fren tar “o ter ror má xi mo dos ru despa trí ci os que por ali se agi tam, a seca”?37 Numa só pa la vra: nada!Escla re cen do: nada dos na das! Não ima gi no um tra ba lho como o re a li -za do no Esta do de Isra el, onde se cul ti vam flo res e fru tos no de ser to.Cul ti va das no Nor des te “são as flo res dos es go tos”,38 de Cruz e Sou sa, que, des de o tem po do Impé rio, quan do hou ve ju ras de se gas tar até aúl ti ma jóia da Co roa para aca bar com a mi sé ria na re gião, en fe i tam es -ta tís ti cas, re la tó ri os, pe di dos de em prés ti mos, dis cur sos, co mí ci os e man -che tes de jor na is.39 Nem o exem plo de José do Egi to, apro ve i tan do ospe río dos em que “o Ser tão é um pa ra í so...40 um vale fér til”,41 é se gui do.

Den tro da mi nha hi pó te se de que a vida é com pa ra ções, eisduas sig ni fi ca ti vas: o Rio Gran de do Sul tem um sis te ma de ir ri ga ção

Ca nu dos e Ou tros Temas XXVII

36 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção cit., p. 69.37 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção cit., p. 49.38 CRUZ e SOUSA, João. Obras Com ple tas. In “Li ta nia dos Po bres”. “Os mi se rá ve is,

os ro tos/ são as flo res dos es go tos.” Edi to ra José Agui lar – Rio de Ja ne i ro, 1961,p. 147.

39 Se o Nor des te re ce bes se os re cur sos que os go ver nan tes anun ci am e a im pren sadi vul ga, sem dú vi da se ria o cen tro mais de sen vol vi do das Amé ri cas. A re a li da de éou tra, in clu si ve su ge re pes qui sa cri te ri o sa nes te sen ti do. C. G.

40 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção cit., p. 49.41 Idem, idem.

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ma i or do que o dos dez Es ta dos que com põem o Po lí go no das Se cas;42

na cons tru ção da pon te Ri o –Ni te rói43 foi gas to um mon tan te su pe ri orao apli ca do du ran te nove anos no Nor des te.

Subs ti tu in do a apre sen ta ção de Ca nu dos e Ou tros Te mas,já fe i ta em alto es ti lo pe los seus or ga ni za do res, este é meu re ca do a Eu cli desda Cu nha; e, as se gu ro, tra ta-se ape nas do que está na su per fí cie de umare a li da de ma i or. O que cor re nos sub ter râ ne os é mu i to mais te ne bro so.44

Nin guém me ta che, po rém, de pes si mis ta. Os pes si mis tas ti ra -ram o rabo e me te ram a cara en tre as per nas: têm ver go nha de se rembra si le i ros, as sim como os do Nor des te ne gam a na tu ra li da de nor des ti na.

Os que ad mi tem que na ci o na li da de é a pró pria iden ti da de comdi gi tal apos ta no es pí ri to; os que lu tam pela pu bli ca ção de obras como a deEu cli des da Cu nha que tan to quan to o rio São Fran cis co cos tu ram essauni da de na ci o nal, ba ten do for te na em pá fia dos po de ro sos e enal te cen do a pu re za dos hu mil des, com a dig ni da de de quem ana li sa sob “a luz crua”45

da ver da de, es tes são oti mis tas. E va mos per ma ne cer as sim: “O mes modes pren di men to pela vida e a mes ma in di fe ren ça pela mor te.”46

Bra sí lia – DF, maio de 1994.

XXVIII Eu cli des da Cunha

42 Re vis ta do Inte ri or – nº 2, p. 18. Mi nis té rio do Inte ri or, Bra sí lia fev./1975. In: Idéi as e Po si ções , de Se bas tião Bar re to Cam pe lo. 2ª edi ção. Re ci fe. Cír cu lo Ca tó li co dePer nam bu co, 1978.

43 CAMPELO, Se bas tião Bar re to. Obra ci ta da, item 42, p. 7.44 A CPI do Orça men to, ins ta la da no Con gres so Na ci o nal, em 1993, após a ela bo ra -

ção da apre sen ta ção para a 2ª edi ção des ta obra, re ve lou ân gu los do que con si de -rei “te ne bro so”, ao mos trar o des ti no de par te de 3% do Orça men to da União.Não se fa lou, po rém, até o pre sen te mo men to, do que foi fe i to dos 97% res tan tes do Orça men to. O que se sabe é que a sa ú de, edu ca ção, trans por tes, mo ra dia,abas te ci men to, en fim, tudo está de fi ci tá rio e a cada dia “os rom bos” são anun ci a -dos, em qua se to dos os se to res do Go ver no. C. G.

45 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões. Edi ção cit., pp. 41 e 317. Esta ex pres são foi tam bémusa da por Ma nu el Ban de i ra no po e ma “Ple ni tu de”. In: A Cin za das Ho ras – Po e si asCom ple tas, vo lu me úni co, p. 177. Rio de Ja ne i ro. Edi to ra Nova Agui lar. 1977.

46 CUNHA, Eu cli des da. II “A Nos sa Ven déia”. In: O Esta do de S. Pa u lo. São Pa u lo,17-7-1897. Inclu í do nes te vo lu me, p. 53.

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Apre sen ta ção à 4ª edi ção

COMEMORAM-SE os 100 anos de pu bli ca ção de Os Ser -tões, de Eu cli des da Cu nha. Não exis te li vro mais dis cu ti do do queeste, no Bra sil. Para uns, tra ta-se de obra im pe ne trá vel, de di fí cil en ten -di men to ou de lin gua gem ás pe ra. Para ou tros, é uma obra cris ta li na,fun da men tal para o bom en ten di men to do Bra sil, en tre la ça do de po e sialí ri ca e de le i tu ra ame na ou agra dá vel.

Veja-se pelo ân gu lo que se que i ra ver, aí está Os Ser tõescen te ná rio. Mais vivo do que nun ca. Mais atu al do que mi lha res de li vrosre cém-pu bli ca dos. E no seu ras tro cen te nas de au to res a se pro je ta rem emi lha res de li vros o se gui rem, na ten ta ti va de con tes tá-lo ou ex pli cá-lo.Entre eles, este Ca nu dos e Ou tros Te mas, do pró prio Eu cli des, or -ga ni za do por Olím pio de Sou sa Andra de e Der mal de Ca mar go Mon frê,pu bli ca do em 1967, sob o tí tu lo de Ca nu dos e Iné di tos, Edi çõesMe lho ra men tos, com ore lha de Pa u lo Dan tas47 e capa de Te re sa Na zar.

47 Tex to in clu í do nes te li vro, em De po i men tos.

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Após 27 anos da pri me i ra edi ção, che gou a Bra sí lia – DFum emis sá rio da fa mí lia de Eu cli des, à pro cu ra de al guém que pu des sepro pi ci ar a re im pres são des ta obra, para co me mo rar os 90 anos de pu bli -ca ção de Os Ser tões. No ga bi ne te do en tão De pu ta do Artur da Tá vo la,in di ca ram-me como a pes soa ca paz de cum prir essa mis são. Não en ten di a es co lha do meu nome, mas fui à luta. Dias de po is, o Se na dor Ma u roBe ne vi des au to ri za va a edi ção da obra pelo CEGRAF. No en tre tan to,vi e ram as fé ri as par la men ta res, ele i ções no País e no Se na do. Ao re a brira le gis la tu ra, a pre si dên cia da Casa es ta va com o sa u do so Se na dorHum ber to Lu ce na, que man te ve o com pro mis so do co le ga e, em 1993, aobra foi en tre gue ao pú bli co sob o tí tu lo de Ca nu dos e Ou tros Te mas.

A re per cus são da que la edi ção foi “re tum ban te”, no di zer dopró prio Hum ber to Lu ce na, a com ple tar: “E, evi den te men te, não ape nas noâm bi to do Con gres so Na ci o nal.” Com efe i to, o que che gou ao Con gres soe à mi nha pró pria casa de car tas, te le gra mas, te le fo ne mas do Bra sil e doex te ri or, me re ce a ad je ti va ção de re tum ban te. Se na do res, de pu ta dos,mi nis tros, em ba i xa do res, pro fes so res, es tu dan tes, es pe ci a lis tas, le i to resco muns, em di fe ren tes idi o mas, so li ci ta vam, a qual quer cus to, um exem -plar do li vro de Eu cli des da Cu nha. Sen ti-me no cen tro de Ca nu dos aou vir to dos os ca nhões da 4ª Expe di ção ri bom ban do de uma só vez, emho me na gem à obra e à His tó ria.

No ano se guin te, 1994, saía a 3ª edi ção, re vis ta e am pli a da,com ore lha do Se na dor Hum ber to Lu ce na.48 O li vro, se gun do fun ci o ná -ri os da Sub se cre ta ria de Edi ções Téc ni cas, trans for mou-se na ve de te deven das em to das as fe i ras de li vros, que con ta ram com a par ti ci pa ção doSe na do Fe de ral.

Por tudo isso, jul guei-me au to ri za do a ape lar para que fos sefe i ta esta 4ª edi ção, em co me mo ra ção aos 100 anos de pu bli ca ção de OsSer tões. Fe liz men te, o ape lo caiu nas mãos do Se na dor Lú cio Alcân ta ra,

XXX Eu cli des da Cunha

48 Tex to in clu í do nes te li vro, em De po i men tos.

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Pre si den te do Con se lho Edi to ri al do Se na do e au tor da ore lha des ta edi -ção. Lú cio Alcân ta ra e sua es po sa, a es cri to ra Be a triz Alcân ta ra,es tão na van guar da da Cul tu ra Bra si le i ra, pela con tri bu i ção dada àLi te ra tu ra e às Artes, in clu in do pu bli ca ções de li vros e de re vis tas. Foiele quem le vou o Se na do a par ti ci par dos mo vi men tos li te rá ri os bra si le i -ros, das fe i ras de li vros, das bi e na is, como a 17ª Bi e nal Inter na ci o nal doLi vro de São Pa u lo, onde re ce beu uma pla ca do Se na dor Car los Wil son, 1º Se cre tá rio da Mesa do Se na do, e de Pa u lo Afon so Lus to sa, da Co -mis são de Fe i ras de Li vros, “em ho me na gem ao seu apo io à par ti ci pa -ção do Se na do Fe de ral em even tos li te rá ri os pelo país”.

De to dos es ses acon te ci men tos, me re cem des ta que tam bém osla ços de ami za de que an ga ri ei com fa mi li a res de Eu cli des da Cu nha, es -pe ci al men te o es cri tor Joel Bi ca lho Tos tes,49 sem pre aten to a in cen ti var,ori en tar e de fen der tudo que diz res pe i to à obra e ao nome de Eu cli desda Cu nha; o con ví vio com o povo de São José do Rio Par do – SP, quehá 90 anos, sob pa tro cí nio da Casa de Cul tu ra Eu cli des da Cu nha, fes -te ja a me mó ria do es cri tor e a sua obra má xi ma, es cri ta na que la ci da de,à be i ra do rio Par do; e o re la ci o na men to com cen te nas de eu cli di a nis tases pa lha dos por este mun do fora.

Antes mes mo de sair o li vro, Joel Bi ca lho dis se-me que o meutex to “hon ra ria Eu cli des”. Hon rar Eu cli des da Cu nha com a mi nha in -sig ni fi cân cia? Adi ci o nar uma úni ca le tra ao que pro du ziu? Ne nhu ma pre -ten são. Hon ra-me so bre ma ne i ra a luta para al can çar o sen ti do de sua mo -nu men tal obra, de ma jes to so es ti lo har mo ni o so e belo, cujo de fe i to, apon ta -do por Pa u lo Dan tas, é ser “bri lhan te ou clás si co de ma is”. “Edu ca donuma rude es co la de di fi cul da des e pe ri gos”50 jus ti fi co-me: meu pri me i rocon ta to com a obra eu cli di a na foi quan do fa zia, tar di a men te, o cur so gi na -si al no tur no, no Re ci fe. O Pro fes sor Au gus to Wan der ley deu-me um ve lho

Ca nu dos e Ou tros Temas XXXI

49 Joel Bi ca lho Tos tes é o res pon sá vel pelo es pó lio de Eu cli des da Cu nha.50 CUNHA, Eu cli des da: “A Nos sa Ven déia!”, in O Esta do de S. Pa u lo – São Pa u lo 14

de mar ço de 1887. Faz par te des te Li vro.

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exem plar de Os Ser tões, pro fe ti zan do: “No dia em que você en ten dertoda a ver da de aqui ex pos ta, con si de re-se um ci da dão.” Como a gran dema i o ria do povo bra si le i ro, po rém, ain da não atin gi essa ci da da nia, em bo raa per si ga como um cão da na do. E só Deus sabe o quan to me é ne ga da.

De São José do Rio Par do, deve-se ano tar que tal vez seja aúni ca ci da de bra si le i ra a fes te jar, com fe ri a do mu ni ci pal, uma obra li te -rá ria, com as mes mas pom pas com que as de ma is ci da des fes te jam ain de pen dên cia do Bra sil, ou a pró pria eman ci pa ção.51 Nes sa ci da de, he -róis não são os que bom bar de i am, bri gam, ma tam. São aque les quelêem, es tu dam, pes qui sam, en si nam, e dão con ti nu i da de ao exem plo doPro fes sor Oswal do Ga lot ti, ide a li za dor da Se ma na, e seus in con tá ve is se -gui do res, como Álva ro Ri be i ro de Oli ve i ra Neto, Ade li no Bran dão, José San ti a go Naud, as ir mãs Ma ria Au gus ta e Ro sa u ra Esco bar.

Falo com a se gu ran ça de quem já par ti ci pou de qua tro Se ma -nas Eu cli di a nas e que lá es ta rá no va men te nes te 2002, con ta mi na dopelo en tu si as mo de mes tres, cri an ças e jo vens a es tu da rem Eu cli des daCu nha. Este não é um dado tolo. Num País de anal fa be tos, onde qua se não lê; em o grau es co lar, se gun do re sul ta do de pes qui sa re a li za da pelaONU, em 36 pa í ses,52 é ver go nho sa men te o mais ba i xo; em que dou to -res pro cu ram des clas si fi car uma obra como Os Ser tões, es tru tu ral sob o pon to de vis ta his tó ri co, ge o grá fi co, lin güís ti co, ci en tí fi co e li te rá rio, SãoJosé do Rio Par do é úni ca a des men tir a far sa de que “es ta mos no ca mi -nho cer to, rumo ao fu tu ro”. No rumo cer to está São José do Rio Par do.Ali se com pro va que, dan do as con di ções, o povo quer, ace i ta e vive umpa drão cul tu ral ele va do, sem ne nhum mis té rio; que “a cara do Bra sil”53

XXXII Eu cli des da Cunha

51 Os fes te jos da Se ma na Eu cli di a na, em São José do Rio Par do, des de 1912, vão de9 a 15 de agos to.

52 Da dos pu bli ca dos na im pren sa fa la da e es cri ta de todo o país, nes te ano de 2002.53 Essa de ter mi na ção foi atri bu í da a um jo vem, par ti ci pan te de um pro gra ma da TV

Glo bo, que, após dar es cân da lo por ca u sa de uma bo ne ca, re sul tou vi to ri o so.Ju s ti fi can do a vi tó ria, o apre sen ta dor dis se que o moço “é a cara do Bra sil”. Peloque ouvi de po is, mu i tos te les pec ta do res re pro va ram aque la de sig na ção.

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não é de de bi lói de ou ali e na do, mas de jo vens lú ci dos, es tu di o sos e bemin for ma dos. Não se diz que Os Ser tões é um li vro ina ces sí vel. Dis cu te-se,in ter ro ga-se por quê, cem anos de po is, to das as in jus ti ças pra ti ca das pe los po de res pú bli cos des te País, e en tão de nun ci a das, con ti nu am vi vas,atu an tes e a ata car im pu ne men te as clas ses me nos fa vo re ci das; e, ain da,por que e como as di fe ren ças re gi o na is per sis tem e se am pli am, mu i tomais vo ra zes. Intri ga, sim, o fato de os pro ble mas es tru tu ra is do Bra silper ma ne ce rem in so lú ve is.

A pri me i ra agres são veio con tra a Ge o gra fia, com a di vi são ter ri -to ri al do País em cin co re giões, como apa re ce nos ma pas, pro je ta das nos ga bi -ne tes, exa ta men te para de mar car fron te i ras en tre o lado rico e o po bre. Umare gião é de ter mi na da pela fa u na e flo ra que a com põem. Des ta for ma, par -tin do da ser ra da Man ti que i ra em di re ção ao Sul, te mos a ba cia do Pra ta,per cor ren do a ba cia do São Fran cis co, te mos a re gião Nor des te, que che ga atéa me ta de do Ma ra nhão, daí em di an te, te mos a ba cia ama zô ni ca, na re giãoNor te. Den tro des tes li mi tes, po dem exis tir sub-re giões, nun ca re giões.

Esta di vi são é tão de fi ni da, em si mes ma, que me tem le va doa de cla rar que se Gu i ma rães Rosa, ou tra ex pres são li te rá ria in con fun dí -vel, hou ves se des ci do a Ser ra em di re ção aos pam pas, por cer to te ria es cri toum li vro tipo Ulysses, de Ja mes Joy ce. Como, po rém, des ceu para a ban dade cá, o re sul ta do foi Gran de Ser tão: Ve re das, que om bre ia, em mu i -tos as pec tos, com Os Ser tões, de Eu cli des da Cu nha. Este as sun to,evi den te men te, é uma tese, que po de rá, um dia, vir a pú bli co.

A Joel Bi ca lho, na re cep ção à Apre sen ta ção des te li vro, en tremu i tos ou tros, jun ta ram-se o bió gra fo de Eu cli des da Cu nha, Ade li noBran dão, apon tan do-a como “Uma das mais su cin tas e subs tan ci o sas ‘apre -sen ta ções de E. C. de nos sos dias”,54 e o Pro fes sor José San ti a go Naud,ca te drá ti co fun da dor da UnB e eu cli di a nis ta dos mais no tá ve is, que de cla rou:

Ca nu dos e Ou tros Temas XXXIII

54 BRANDÃO, Ade li no. Eu cli des da Cu nha – Bi o bli o gra fia Co men ta da – Edi to ra Li te -rart, SP/2001. Págs. 177 e 477.

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“O Gal lin do jo gou ali o mu i to que sabe: lim pe za de in for ma çãose gu ra e ade são ao as sun to. Com o mé ri to ma i or. Não se en re dou naeru di ção, nem se de i xou le var pela fri e za das le tras. O pro tes to que la vra é a atu a li za ção de Os Ser tões.”55

A este, res pon di que “não ade ri ao as sun to: eu sou o as sun to”,uma vez que as su mo de pe i to es tu fa do a con di ção de nor des ti no, cons ci en teda mi nha “or to gra fia bár ba ra”,56 da “es cri ta ir re gu lar e feia”57 como se pode ob ser var nes te “des gra ci o so”58 tex to, que tem como fi na li da de pri -mor di al fa zer ver ao es pí ri to de Eu cli des da Cu nha que, em con tra par ti daàs suas ver da des, ocul ta das ou es que ci da men te lem bra das, o en go do e amen ti ra con ti nu am mas sa cran do, es pe zi nhan do, se gre gan do e mar gi na li -zan do o povo nor des ti no. Lu tan do até onde pos so con tra essa dis cri mi na -ção vi o len ta e ar ra sa do ra que se im põe so bre o Nor des te e seus ha bi tan -tes, sen do eu um de les, é que, mes mo sem ta len to, me cur vo à pre men tene ces si da de de es cre ver, sem qua is quer re com pen sas.

Os im pac tos com a Apre sen ta ção de vem-se aos re la tos nelacon ti dos, que fo gem do co nhe ci men to pú bli co, como, por exem plo:

Que a ir ri ga ção, exe cu ta da nos nove Esta dos nor des ti nos,ci cli ca men te de vo ra dos pela seca, é in fe ri or à pra ti ca da no Rio Gran dedo Sul. Que a Agên cia de De sen vol vi men to do Nor des te, cri a da porJus ce li no Ku bits chek e Cel so Fur ta do, foi um en go do: pa ga va para asmul ti na ci o na is trans fe ri rem fá bri cas ob so le tas do Cen tro-Sul do Paíspara o Nor des te, ofe re cen do-lhes ter re nos com in fra-es tru tu ra para assuas ins ta la ções, fi nan ci a men tos de até 70% dos re cur sos a se rem apli ca dos e a dis pen sa do pa ga men to de pra ti ca men te to dos os im pos tos por umpe río do de dez anos.

XXXIV Eu cli des da Cunha

55 TOSTES, Joel Bi ca lho. Car ta a Cyl Gal lin do, in clu í da nes te li vro, em De po i men tos.56 CUNHA, Eu cli des da. Ter mo usa do por E. C. para de fi nir o ní vel cul tu ral do

Con se lhe i ro. Os Ser tões, 2ª edi ção, Edi to ra Cul trix/MEC, 1975. Pág. 154.57 Idem. Pág. 154.58 Idem. Pág. 154.

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Tan to isto é ver da de i ro que ain da hoje não exis te uma úni cain dús tria de por te na ci o nal na re gião. Era o go ver no ces sar a li be ra ção de ver bas, as tais em pre sas fe cha vam as por tas, aban do na vam as su ca tas àfer ru gem e su mi am. Nem se quer uma fá bri ca de ge la de i ras, numa áreaem que a tem pe ra tu ra mé dia é de 30º C, per ma ne ceu. Não va mos es que ceras es ta tís ti cas alar de a das pela Agên cia, a pro cla mar a efi cá cia de suaatu a ção, que in for ma vam que “en quan to no Cen tro-Sul do País fo ramim plan ta das três fá bri cas, dez em pre sas op ta ram pelo Nor des te”. Só que as três fá bri cas do Cen tro-Sul eram de aviões, na vi os e au to mó ve is, as doNor des te, de sor ve te, cer ve ja, ca i xas de fós fo ros, al par ga tas e sa qui nhosde pa pel para su per mer ca dos.

A cada ca la mi da de, com a po pu la ção atin gi da ali men tan do-se de cac tos e de ra tos, vêm pre si den tes e mi nis tros para abri rem “fren tes detra ba lho” e anun ci a rem a li be ra ção de mi lhões e mi lhões para mi no rar oso fri men to des sas gen tes. Se as ver bas anun ci a das nas man che tes daim pren sa fos sem li be ra das in te gral e cri te ri o sa men te, o Nor des te se ria oes pa ço mais rico da face da ter ra. Os con vê ni os as si na dos têm tor ne i rasque se fe cham dia a dia, à pro por ção que o as sun to sai dos jor na is e apo pu la ção es que ce que no Nor des te mor re-se de ina ni ção. Fa mí li as in te i ras,ví ti mas de fome en dê mi ca de nun ci a da por Jo sué de Cas tro e Nel sonCha ves, ao che gar a seca, aca bam-se pe las ca a tin gas, como ani ma is in fe -ri o res, tí si cas. Os óbi tos não acu sam a fome como ca u sa mor tis, re gis tramtu ber cu lo se, di ar réia, den gue, gri pe, do en ça de cha gas ou ou tras. O des ti nodo res tan te das ver bas dos “pro gra mas de com ba te às es ti a gens”59 não se sabe. Des cem pe los ra los dos po de res. Como des cem os re sul ta dos dascam pa nhas fi lan tró pi cas: de nun cia-se que de cada R$100,00 ar re ca da -dos para com ba te à fome e à mi sé ria, para aju da à cri an ça e à ve lhi ceaban do na das, ape nas R$15,00 che gam ao ob je ti vo fi nal. Por aca so,

Ca nu dos e Ou tros Temas XXXV

59 O ter mo “es ti a gem” exis te, mas não pode ser con fun di do com seca. Entre tan toele é em pre ga do para con fun dir. Como usam “país em de sen vol vi men to” emlu gar de “sub de sen vol vi do”.

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al gum bra si le i ro sabe o que é fe i to dos mi lhões ar re ca da dos, se ma nal men te,em todo o país, atra vés dos jo gos de lo te ria, da sena, da mãe da sena, dafi lha da sena? A tá ti ca dos res pon sá ve is é a cri a ção de pro gra mas comor ça men tos pró pri os para, no meio do per cur so, es va ziá-los, mu dar suasde no mi na ção, ou sim ples men te ex tin gui-los.

A pon te Rio–Ni te rói ilus tra mu i to bem o as sun to: cus tou maisaos co fres pú bli cos do que o que o go ver no apli cou, du ran te nove anos, noNor des te.60 E um co lu nis ta so ci al do Rio de Ja ne i ro ain da teve a pe tu lân cia de di zer que sua re gião “está can sa da de sus ten tar ou aju dar o Nor des te”.

O Esta do, for te de ma is pe ran te os fra cos, e fra co de ma is pe ran te os for tes, per ma ne ce sem con se guir fa zer do Bra sil um país à al tu ra do seupovo e das suas po ten ci a li da des. So fre de uma crô ni ca vo ca ção co lo ni al.

A re for ma agrá ria, que de ve ria ter sido exe cu ta da quan do dali ber ta ção dos es cra vos, para que es ses con ti nu as sem, na con di ção de pro -pri e tá ri os, a cul ti var a ter ra, como sem pre o fi ze ram, per ma ne ce tabu.Aque las “abu si vas con ces sões de ses ma ri as à pos se de uma só fa mí lia”61

per sis tem in to cá ve is. As fa mí li as, sem ne nhu ma vo ca ção agrí co la, vi vemnas gran des ci da des, como cons tru to ras, ban que i ras, in dus tri a is. Cul ti var a ter ra, só com al guns pro du tos para ex por ta ção: soja,62 café, car ne.Enquan to isso, o ru rí co la vive en tre a cer ca e a es tra da de ro da gem, e aide quem ou sar cru zar o ara me! Pe ri go, aliás, já nem tão pre o cu pan te: apo pu la ção ru ral bra si le i ra mi grou para os gran des cen tros, mo ti va da

XXXVI Eu cli des da Cunha

60 CAMPELLO, Se bas tião Bar re to. Re vis ta do Inte ri or, nº 2, pág. 18. Mi nis té rio doInte ri or, Bra sí lia – DF. fev. 1975.

61 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões – edi ção ci ta da. 62 37 a 38% da pro du ção de grãos no Bra sil são de soja, para ex por ta ção e pro du ção

de óleo, se gun do a Con fe de ra ção Na ci o nal da Agri cul tu ra. Até aí, tudo bem, sãodi vi sas para o País. O que nos so bra des se fato é que cons ti tui um gran de pro ble -ma para o fu tu ro: o plan tio da soja re quer enor mes áre as, que são usa das ape naspor um pe río do de 5 a 6 anos, após o que deve ser aban do na da em vir tu de daenor me car ga de adu bos quí mi cos e agro tó xi cos usa dos na pro du ção da soja. Istoestá de ser ti fi can do todo o in te ri or do Bra sil, numa área que se es ten de do Pa ra náao Ma ra nhão, pas san do pelo Pla nal to Cen tral. C. G.

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pe los pró pri os po de res, com a pro mes sa de vida me lhor, para eli mi nar apres são so bre o la ti fún dio, cujo po der veio à tona, re cen te men te, no epi só -dio de no mi na do de “mas sa cre de Ca ra jás”

O pas so ini ci al foi dado pelo go ver no, apo sen tan do os ma i o resde 60 anos de ida de, atra vés do Fun ru ral.

Como no in te ri or nin guém ti nha ter ra para tra ba lhar, nempo dia plan tar nas ter ras alhe i as, com os apo sen ta dos vi e ram fi lhos, ne tose suas res pec ti vas fa mí li as.

Nas ci da des, vi ra ram pá ri as ou ban di dos, até mes mo pelasim ples apa rên cia. Não é di fí cil ima gi nar do que é ca paz um in di ví duosem em pre go, sem qual quer com pro mis so com o Esta do ou com a so ci e da de,sem bens de qual quer na tu re za, que, para todo can to que se vira, en con traas por tas fe cha das, e que se sen te dis cri mi na do, de so la do, per di do.

Infe liz men te, uma gran de ma i o ria, em dis pu ta com por cos, ra tose uru bus, so bre vi ve ali men tan do-se de lixo, sem mo ra dia, em pre go, es co la para os fi lhos e qual quer tipo de as sis tên cia. Tão exa us ti va men te ra quí -ti ca, con fun de-se hoje com os “mes ti ços ne u ras tê ni cos do li to ral”.63

Ain da ago ra, um dos mais sé ri os e co mo ven tes de po i men tosso bre o as sun to, por quan to di ta do pe las pró pri as vís ce ras, foi pres ta dopela fa ve la da pa u lis ta Ca ro li na Ma ria de Je sus, no seu diá rio/ro man ce,Qu ar to de Des pe jo64 com con tun den te re co men da ção: “O Bra sil pre ci saser di ri gi do por uma pes soa que te nha pas sa do fome. A fome tam bém épro fes so ra.” Cor ro bo ran do-se mi nha má goa com a re a li da de de Ca ro li na,faço uma ad ver tên cia: Fome não se con fun de com von ta de de co mer!Fome pas sa por es tô ma gos de Bi a fra, do Nor des te bra si le i ro, dos li xõesdas gran des ci da des, das fa ve las e dos man gues. Fome pas sa tam bémpela cons ciên cia de quem tem dig ni da de hu ma na. A exem plo do pró prioEu cli des da Cu nha, de Jo sué de Cas tro, de Nel son Cha ves.

Ca nu dos e Ou tros Temas XXXVII

63 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões, edi ção ci ta da, pág. 92.64 JESUS, Ca ro li na Ma ria de. Qu ar to de Des pe jo – Diá rio de Uma Fa ve la da, Li vra ria

Fran cis co Alves, São Pa u lo/1960.

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De al gum tem po para cá, nas fa ve las, esse pes so al pres ta-semu i to bem à pros ti tu i ção, à fun ção de “mula” para le var pa pe lo tes denar có ti cos. Após a adap ta ção ao meio am bi en te, tam bém pe gam emar mas para de fen der seus ter ri tó ri os, como fi ze ram em Ca nu dos.65

Luiz Gon za ga ad ver tiu, numa de suas to a das: “Mas dou tor,uma es mo la, – a um ho mem que é são – ou lhe mata de ver go nha – ouvi cia o ci da dão.”66 Vi ci a ram a gran de ma i o ria dos nor des ti nos.

No cam po, mais nin guém plan ta man di o ca, je ri mum, ma ca -xe i ra. To dos es pe ram por um car ro-pipa, uma “ces ta bá si ca”, uma “bol saes co la”, por qual quer im por tân cia que o go ver no de ci da lhes man dar oupe las cam pa nhas fi lan tró pi cas. Há po lí ti cos que con si de ram as se cas osmais efi ci en tes ca bos ele i to ra is de suas cam pa nhas.

De re pen te, apa re ce um gru po que dá di nhe i ro ao mi se rá vel,mu i to di nhe i ro, para le var de táxi um pa co ti nho no ou tro ba ir ro ou naou tra rua. Que es co lha faz esse in di ví duo? A fa vor de quem ele deve sepo si ci o nar, do Esta do ou dos tra fi can tes?

A Ca nu dos que fal sa men te afron tou o po der, en ver go nhan do a bur gue sia, não é mais um ar ra i al fin ca do no ser tão ba i a no, é todo o Bra sil,es pe ci al men te, as fa ve las das gran des ci da des. Quem não as sis tiu a umti ro te io en tre mor ros, no Rio de Ja ne i ro? Mais uma vez a ir res pon sa bi li -da de dos po de res é gri tan te.

Um de le ga do sobe num mor ro, mata dez, quin ze pes so as,apre en de U$ 3 ou 4 mi lhões de en tor pe cen tes e ar mas mo der nís si mas,anun cia ha ver des man te la do um gran de es que ma do trá fe go de dro gas.Com isto, jus ti fi ca-se tudo. Em ne nhum mo men to, po rém, foi ques ti o na do

XXXVIII Eu cli des da Cunha

65 A bra vu ra do ho mem do Nor des te em Ca nu dos foi as sus ta do ra para as for ças doExér ci to que lá com ba te ram. Tal vez seja gen te des sa mes ma têm pe ra que es te jacom ba ten do nas fa ve las dos mor ros e dos man gues das gran des ci da des. Comoad ver tên cia, que ro lem brar uma fra se que es cre vi num dos meus con tos: “Nomo men to em que o Esta do opri me o ci da dão a pon to de tor ná-lo des cren te dapró pria pá tria, já não há mais pá tria nem ci da dão.”

66 DANTAS, Zé e GONZAGA, Luiz. To a da.

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que de ze nas de pes so as fo ram mor tas sob a sim ples acu sa ção de “tra fi -can te”, e que se uma fa ve la dis pu ses se de 3 ou 4 mi lhões de dó la res, nãose ria fa ve la, se ria uma Wall Stre et. De le ga do al gum se dis pôs a in ves ti garas ver da de i ras ori gens de ta ma nha for tu na. Que ban co ou casa de câm bio for ne ce essa fá bu la aos “tra fi can tes”?

Ja ma is, po rém, pas sou pela cons ciên cia da bur gue sia a idéia de pro mo ver uma dis tri bu i ção de ren da jus ta e ho nes ta, que tire o Bra sil dacon de ná vel li de ran ça de pra ti car um dos mais ba i xos sa lá ri os do mun do,os ten tan do taxa de de sem pre go as sus ta do ra. Pro mo veu-se a re vo ga ção das leis que bem ou mal de fen di am o tra ba lha dor. O rico pre fe re ins ta largra des de fer ro nas por tas e ja ne las das re si dên ci as, re si dir em con do mí ni osfe cha dos, e se des lo car em car ro blin da do ou he li cóp te ro, des de que assuas con tas nos ban cos da Su í ça se jam man ti das in to cá ve is.

Como es ta va es cri to: “Ou pro gre di mos, ou de sa pa re ce mos”67 o pro gres so foi pro mo vi do, mas ape nas num Esta do, do Cen tro-Sul, ondejá se ha via de sen vol vi do a la vou ra do café, er ra di can do-a do res tan te doPaís.68 Aí tam bém a cana-de-açú car foi me ca ni za da. Nos de ma isEsta dos, per ma ne ceu o pro ces so pri mi ti vo. Como se não bas tas se, to dasas gran des re par ti ções são aí se di a das, pa gan do al tos sa lá ri os a um exa -ge ra do con tin gen te de fun ci o ná ri os, o que as se gu ra o con su mo da pro du çãoda in dús tria aí ins ta la da.

Com isto, o re ca do foi dado em 1993. De lá para cá, po rém,o qua dro se trans for mou de gra ve para trá gi co.

O Bra sil, que em me a dos do sé cu lo pas sa do era emi nen te men te agrí co la, ti nha que se in dus tri a li zar. Indus tri a li zou-se. O ru rí co la pas -sou a ser ope rá rio. Mi lha res de in dús tri as fo ram im plan ta das em SãoPa u lo, que se trans for mou no Esta do que “não pode pa rar”. Pa re ce ra

Ca nu dos e Ou tros Temas XXXIX

67 CUNHA, Eu cli des da. Os Ser tões, obra ci ta da, pág. 72.68 Bu í que e Ga ra nhuns, in te ri or per nam bu ca no, fo ram bons pro du to res de café, mas,

obe de cen do de ter mi na ções do ex tin to IBC – Insti tu to Bra si le i ro do Café – er ra di -ca ram essa cul tu ra do seu solo, que hoje está co ber to de for ra ge i ra para gado.

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uma es co lha bra si le i ra, mas não fora. A de ci são vi e ra de fora. Atu al -men te, São Pa u lo está qua se pa ra do: as fá bri cas se trans for ma ram emmon ta do ras, im por tan do pra ti ca men te to dos os com po nen tes me câ ni cosdos seus pa í ses de ori gem. O meio am bi en te está po lu í do. O gran deEsta do está vi ran do um enor me pro ble ma para os pró pri os pa u lis tas. Do mes mo modo como não fora de ter mi na ção nos sa de par ti ci par da IIGran de Gu er ra, da qual nos res ta ram de gló ria 400 tú mu los em Pis -tóia. Se guiu o mes mo di a pa são o Gol pe de 1964, para “sal var Bra sil do co mu nis mo”. Fi nal men te, ca í mos nas mãos de um pre si den te que re ce beu a in cum bên cia de “pri va ti zar”, para glo ba li zar. O lema é le var o Paíspara o pri me i ro mun do. Nós so mos 3º mun do, sem con tu do ha ver se gun -do. Nin guém se ria con tra me lho rar o pa drão de vida da po pu la ção nem,mu i to me nos, exi gir que o Esta do per ma ne ça pro pri e tá rio de to dos osme i os de pro du ção. Mas o que es ta mos as sis tin do nos as sus ta. De ummo men to para ou tro, todo o pa tri mô nio do país, cons tru í do com o suor eo san gue do povo, é ven di do, sem uma cri te ri o sa ava li a ção, por um pre çoavil tan te. Lá se foi o par que si de rúr gi co na ci o nal, o pe tro quí mi co, os me i os de co mu ni ca ção, e até o sub so lo bra si le i ro, que foi do a do com a pri va ti za çãoda Com pa nhia Vale do Rio Doce. De sal do nos res tam de nún ci as nãoapu ra das de que ro la ram mi lhões de pro pi nas na tran sa ção.

Quem não se lem bra das pro mes sas de que o mi né rio ex tra í doem Ca ra jás pa ga ria a dí vi da ex ter na em, no má xi mo, dois anos? Fazmais de uma dé ca da que os trens cru zam di u tur na men te do Pará aoMa ra nhão, trans por tan do me ta is no bres, e nin guém vê a cor des se di nhe i ro.Na épo ca a dí vi da ex ter na era de U$103 bi lhões, hoje está ava li a da em U$580 bi lhões.69 Que país no mun do po de rá se equi li brar pa gan do, so men te de ju ros, U$100 bi lhões, por ano?70 Sem con tar com a dí vi dain ter na, que mon ta igual va lor.

XL Eu cli des da Cunha

69 Jor nal do Se na do.70 GALLINDO, Cyl: Con fe rên cia pre pa ra da para a Se ma na Eu cli di a na de 2002.

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Com isto, a edu ca ção caiu para o pa drão mais ba i xo pos sí vel;a sa ú de saiu da res pon sa bi li da de do go ver no e está nas mãos de mul ti na -ci o na is, com pla nos a pre ços exor bi tan tes. Os hos pi ta is pú bli cos es tãoamon to an do do en tes pelo chão. Os re mé di os... ah! te mos os la bo ra tó ri osfa bri can do com pri mi dos de fa ri nha. Um de les, ao ser des co ber to, con fes -sou que a pro du ção das 600 mil car te las, den tro de to dos os cri té ri os nor -ma is de pro du ção, com bula e ca i xa, ha via sido ape nas uma ex pe riên ciacom um ma qui ná rio novo,71 e fi cou por isso mes mo.

Em Con se lhe i ros, pelo in te ri or, nin guém acre di ta mais:gra ças às fan tás ti cas re des de te le vi são im plan ta das nes te País, qual -quer lu ga re jo tem um apa re lho de TV, ins ta la do pela pre fe i tu ra, nocen tro do ar ru a do. Da ma nhã à no i te, a po pu la ção iner te as sis te àcu i da do sa pro gra ma ção. Des ta for ma, os ído los são ar tis tas, jo ga do resde fu te bol, os mo ci nhos dos en la ta dos, ca pa zes de ar ma rem as pi o resci la das con tra seus ad ver sá ri os e de ven ce rem exér ci tos, pra ti ca men teso zi nhos. Esti mu la-se a oci o si da de, no lu gar da pro du ção. Des ta cu i -dam os pa í ses de sen vol vi dos. No lu gar das ta pi o cas, be i jus, cus cuz,bo los e mil igua ri as fe i tas de mi lho e man di o ca, co mem-se bis co i tos ebo la chas, fe i tos de tri go im por ta do. Con tes ta das, as emis so ras ale gam des co nhe cer ou não acre di tar no po der de in fluên cia de sua pro gra ma ção.Mas, ao ven de rem o es pa ço para a pro pa gan da, elas sa bem ava li aresse po der.

O pro ces so de glo ba li za ção teve iní cio há uns dez anos, mas os da nos ca u sa dos à hu ma ni da de são su pe ri o res aos be ne fí ci os apre go a dos.

Pes so as de bom sen so, na tu ral men te, são con tra um Esta doque con tro le to dos os bens de pro du ção e os ser vi ços de uma so ci e da de,como ho téis, fá bri cas, si de rúr gi cas.

Ca nu dos e Ou tros Temas XLI

71 Este fato foi am pla men te no ti ci a do pela im pren sa. Os com pri mi dos de fa ri nhades ti na vam-se para fins an ti con cep ci o na is. As de nún ci as vi e ram à tona pe las cen -te nas de mu lhe res que en gra vi da ram. Ima gi ne re mé di os para ou tros fins, cujo efe i to não vi vi fi ca, mata?

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Isso, po rém, não quer di zer que esse pa tri mô nio deva seren tre gue de qual quer ma ne i ra e a pre ços avil tan tes, para em pre sas mul -ti na ci o na is ou mes mo go ver nos de ou tros pa í ses, como vem acon te cen dono Bra sil.

Nes sa ân sia de aten der às de ter mi na ções do Fun do Mo ne tá -rio Inter na ci o nal, do Ban co Mun di al e da Orga ni za ção Mun di al doCo mér cio, es ta mos hoje nas mãos dos es tran ge i ros, cujo lema é lu cro. A ar ro gan te do mi na ção che ga a tal pon to que já se dis cu te, aber ta men te, a in ter na ci o na li za ção da Ama zô nia. Ci en tis tas es tão in va din do nos soter ri tó rio, es tu dan do nos sa flo ra e pa ten te an do seus re sul ta dos. Bre ve -men te che ga rá o dia em que, para to mar um chá de ci dre i ra, te re mosque pa gar “di vi den dos” a ou tro país. Impos sí vel? Des de quan do a Su í çaplan ta e co lhe café? Mas nós pa ga mos para usar o Nes ca fé. Alguém já pa rou para ava li ar o vo lu me de di vi sas que re me te mos para a Mi cro -soft?

No en tan to, um bra si le i ro in ven tou um sis te ma, de no mi na do BINA, pelo qual de tec ta-se o nú me ro do te le fo ne que faz uma li ga çãopara ou tro – algo tão im por tan te quan to a Inter net. Esse sis te ma caiunas mãos das mul ti na ci o na is, sem que as au to ri da des bra si le i ras fi zes -sem nada para pro te gê-lo, e nem o au tor nem o Bra sil lu cram com ele,a exem plo da Mi cro soft, cujo in ven tor os ten ta o tí tu lo de ho mem maisrico do mun do.

Em de fe sa da Ama zô nia sur ge, aqui e aco lá, uma voz paradi zer que “a Ama zô nia é nos sa”, mas ação con cre ta de ocu pa ção doter ri tó rio não sai. O ca bo clo está lá iso la do e só. As ma de i re i ras e mi ne -ra do ras pro mo vem im pu ne men te o des ma ta men to.

Re cen te men te, numa uni ver si da de dos Esta dos Uni dos, um jo -vem in da gou ao es cri tor Cris tó vão Bu ar que se ele era con tra ou a fa vorda in ter na ci o na li za ção da Ama zô nia. O Pro fes sor Cris tó vão Bu ar queres pon deu que se ria a fa vor se in ter na ci o na li zas sem Nova Ior que, comosede da ONU – Orga ni za ção das Na ções Uni das – se in ter na ci o na li -zas sem as cri an ças po bres do mun do, que mor rem mi lhões de fome a

XLII Eu cli des da Cunha

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cada ano, se in ter na ci o na li zas sem o Mu seu do Lou vre, as fon tes dope tró leo e tan tos ou tros bens que es tão nas mãos de meia dú zia de pa í ses, mas que de ve ri am per ten cer a toda a hu ma ni da de.

Qu an tos le van tam a ban de i ra do Pro fes sor Cris tó vão Bu ar -que? Qu an tos vão às ruas com ban de i ras do Bra sil em pu nho, emde fe sa dos nos sos ver da de i ros in te res ses, como o fa zem nos jo gos defu te bol?

O que se vê é a nos sa ju ven tu de mi gran do para ou tros pa í ses.Ra pa zes e mo ças de ten to res de cur sos uni ver si tá ri os que pre fe rem la varcar ros ou pra tos no ex te ri or a per ma ne ce rem aqui sem opor tu ni da de esem es pe ran ça.

A glo ba li za ção, pelo menos nos dis cur sos dos de fen so res, pa re -cia ir re cu sá vel. E o se ria des de que res pe i tas se as di fe ren ças de cada povo. Ima gi nem uma glo ba li za ção que con ce des se a cada in di ví duo uma iden ti -da de uni ver sal, tor nan do-o ci da dão do mun do, com a qual pu des se vi ver e tra ba lhar onde bem lhe aprou ves se! Mas a glo ba li za ção im plan ta da éape nas para o mer ca do, que tor na os ri cos cada vez mais ri cos e os po bres cada vez mais po bres e de pen den tes.

Para es ses po de ro sos lem bro as pa la vras de Ma hat maGhan di, que dis se: “To le rân cia mú tua é uma ne ces si da de em to dos ostem pos e para to das as ra ças. Mas to le rân cia não sig ni fi ca ace i tar oque se to le ra.”72

Eu cli des da Cu nha, em São Pa u lo, len do no tí ci as so breCa nu dos, apro va va to tal re pres são con tra o Con se lhe i ro e seus ja gun ços,mas à me di da que se apro xi ma va do cam po da guer ra, e ia se aper ce ben -do da re a li da de, mu da va de opi nião. O re sul ta do fi nal está no li vro OsSer tões. Mais que isto está na fra se: “O que aqui se fez foi um cri me.”

Di an te de Ghan di e de Eu cli des, con fes so que o que es pe ro dores tan te des te País é uma vi são eu cli di a na so bre o Nor des te, que se quer

Ca nu dos e Ou tros Temas XLIII

72 GHANDI, Ma hat ma. Fra se guar da da, mas in fe liz men te sem ano ta ção da fon te.

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con ta mais com a sua Agên cia de De sen vol vi men to. Ela foi fe cha da, não por re pre sen tar uma san gria dos nos sos re cur sos, mas por que se ria umacon tra di ção para o go ver no aten der à glo ba li za ção, pro mo ven do o de sen -vol vi men to de uma par te do país.

É um cri me o que es tão fa zen do com este País, mas eu ain dasou ca paz de fir mar, afir mar e re a fir mar a mi nha es pe ran ça no seu fu tu ro. O Bra sil é uma gran de Na ção à es pe ra de um gran de go ver no.

Re ci fe – PE, ju lho de 2002.

CYL GALLINDO

XLIV Eu cli des da Cunha

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Intro du ção

AQUI SE ENCONTRAM em li vro, além das re por ta -gens de guer ra sa í das do ca der ni nho de bol so de Eu cli des, os dois ar ti gosin ti tu la dos “A Nos sa Ven déia”, an te ri o res às ati vi da des do re pór ter,bem como uma sé rie de dez ou tros tra ba lhos, so bre ou tros as sun tos, que o es cri tor não quis ou não pôde re ti rar da pu bli ca ção ori gi nal. Da sua pro -sa vá li da, aque la que re a li zou após co lo car-se ao lar go da po lí ti ca maisou me nos mi li tan te que tan to o atra iu na ju ven tu de, des sa pro sa te mosaqui o prin cí pio e o fim: al guns ar ti gos pi o ne i ros, an te ri o res à ela bo ra çãode Os Ser tões, ou seus con tem po râ ne os, e ou tros pos te ri o res à pu bli ca -ção da obra-pri ma, in clu si ve o úl ti mo, não ter mi na do, in ter cep ta do pelamor te, pro va vel men te no mes mo dia em que o de i xa ra em inú til es pe ra.Além des ses ar ti gos, iné di tos em li vro, in clu í mos duas car tas igual men te des -co nhe ci das, uma de las, ad mi rá vel, a Jo a quim Na bu co, a ou tra a Oli ve i raLima.

Inclu í mos ain da, no fi nal do vo lu me, pe las ra zões ali ex pos tas,qua tro ar ti gos de 1892.

Va mos ten tar ver as pos sí ve is ra zões de Eu cli des para osaban do nar; va mos dar as nos sas ra zões de ha ver co lo ca do aqui al gunsde les, aban do nan do ou tros tan tos; va mos a ob ser va ções su má ri as so bre

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cada um, dan do as da tas, as cir cuns tân ci as, as re vis tas ou jor na is emque fo ram pu bli ca dos. Antes, en tre tan to, de se ja mos lem brar, ho me na ge -an do-os com in te i ra jus ti ça, os pro mo to res da pu bli ca ção da cor res pon -dên cia pela pri me i ra vez em li vro, si tu an do-a em se gui da, exa mi nan do-asob al guns as pec tos de ma i or im por tân cia.

As re por ta gens que a Me lho ra men tos está lan çan do fo rampu bli ca das em O Esta do de S. Pa u lo en tre agos to e ou tu bro de 1897.Orga ni za das por Antô nio Si mões dos Reis, fo ram lan ça das em li vro pelaEdi to ra José Olím pio em 1939, com ad mi rá vel in tro du ção de Gil ber toFre i re, tam bém apre sen ta da pela Re vis ta do Bra sil em ja ne i ro do mes -mo ano. Mas a sé rie, re pu bli ca da pelo jor nal para o qual foi es cri ta, poroca sião da pas sa gem do cin qüen te ná rio de Os Ser tões, ti nha sido an tes,em 1927, di vul ga da por uma re vis ta de pe que na cir cu la ção, a Re vis ta do Grê mio Eu cli des da Cu nha, do Rio. A obra, lan ça da em 1939, en -con tra-se des de há mu i to es go ta da, cons ti tu in do mes mo ra ri da de, e tem nopre sen te vo lu me a sua se gun da edi ção, a bem di zer um li vro novo, su pri -mi dos os te le gra mas, frag men tos de re du zi do in te res se, e acres cen ta dos ostra ba lhos par ci al ou to tal men te des co nhe ci dos em li vro, além das car tas.

Estes cons ti tu em par te ma i or e me lhor de um con jun to que ti ve -mos a sa tis fa ção de ir en con tran do nas lon gas pes qui sas que fi ze mos emjor na is e re vis tas do en tre-sé cu los, pre li mi nar de ela bo ra ção da His tó ria eInter pre ta ção de “Os Ser tões” como do vo lu me que é seu pros se gui -men to, so bre Eu cli des de po is de Os Ser tões, que es ta mos ter mi nan do.Pro va vel men te não se jam os úni cos. Mas não te mos ra zões para du vi darde que são os que ma i or in te res se apre sen tam nos vá ri os as pec tos sobos qua is pos sam ser ana li sa dos, den tre os não re u ni dos em vo lu me.

Ve re mos um por um, de po is de ob ser var mos, com as re por ta -gens, os dois ar ti gos que pre ce de ram as ati vi da des do re pór ter em suasan dan ças pelo ser tão da Ba hia, acom pa nhan do as for ças fe de ra is em luta con tra os ser ta ne jos, mas vol ven do para ver be rar por con ta pró pria, coma res pon sa bi li da de ex clu si va do seu nome, o tre men do equí vo co quepre sen ci a ra.

XLVI Eu cli des da Cunha

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A re a li da de pun gen te do que ali se pas sa ra, des vir tu a da pelamá-fé de al guns e a ig no rân cia de qua se to dos, a ver da de so bre aqui lotudo ca í ra de re pen te so bre o amon to a do de so fis mas com Os Ser tões,não há dú vi da. Mas a obra sin gu lar de arte e de co ra gem tem mes mo asua nas cen te nos dois ar ti gos e nas re por ta gens que va mos co nhe cer.

I – CANUDOS

Em ple no ser tão da Ba hia, num vi la re jo que cres ce ra ra pi da -men te dia e no i te, jun to ao rio Vaza-Bar ris, atin gia o seu auge, em 1897, a luta de ori gem apa ren te men te pró xi ma e sem im por tân cia mas que, naver da de, vi nha, em es ta do la ten te, cres cen do há três sé cu los, re vi go ran do-seno aban do no, na dis tân cia e no con se qüen te des co nhe ci men to re cí pro co deduas po pu la ções que não se in ter pe ne tra vam – a do li to ral e a do ser tão. O vi la re jo de Ca nu dos, onde se con cen tra vam os ser ta ne jos aguer ri dos, afe i tosàs du ras pe nas de vi ver jun to a uma na tu re za agres si va, era o alvo úni code mi lha res de sol da dos bem ar ma dos e mu ni ci a dos, mas que, não obs tan te,per di am su ces si va men te as ba ta lhas a que eram con du zi dos.

A ex pli ca ção para tais su ces sos ine xis tia. Os co men tá ri os dees qui na, cal ca dos nos co men tá ri os dos jor na is, só fa zi am ba ra lhar mais a si tu a ção já de si des fi gu ra da pelo ca lor das pa i xões: dos re pu bli ca nosre cém-in tro du zi dos no po der, e dos mo nar quis tas acu sa dos de es ta remali men tan do aque la luta com ob je ti vos de res ta u ra ção.

Em todo o país foi as sim. Em São Pa u lo, onde se en con tra vaEu cli des da Cu nha exer cen do a sua pro fis são de en ge nhe i ro e co la bo ran dono gran de jor nal a que es ta va li ga do des de as lu tas da ju ven tu de, pelaim plan ta ção da Re pú bli ca, tudo ar dia ao ca lor dos pa tri o tas exal ta dosque ju ra vam ha ver in tu i tos de res ta u ra ção mo nár qui ca na re be lião ser ta ne ja.Na fo gue i ra que ali tam bém se acen deu foi re du zi da a cin zas mu i ta

Ca nu dos e Ou tros Temas XLVII

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afir ma ção de fi de li da de ao re gi me der ru ba do, in clu si ve O Co mér cio deSão Pa u lo, man ti do por Edu ar do Pra do e di ri gi do por Afon so Ari nos.

Eu cli des, já re i ni ci an do suas co la bo ra ções, man ti nha-se ca la do di an te dos fa tos de que se fa la va com tão ní ti dos acen tos po lí ti cos, fa zen -do-o na tu ral men te por isso mes mo, em bo ra a essa al tu ra ain da se man ti -ves se pre so aos ve lhos ar do res re pu bli ca nos, em in du bi tá vel fase de abran -da men to. O ma i or de sas tre da que la guer ra para os sol da dos do li to ral –a der ro ta de Mo re i ra Cé sar – iria, en tre tan to, tirá-lo do mu tis mo a quese en tre ga va de pú bli co, não, po rém, in ti ma men te, como se ob ser va emcar tas a ami gos, nas qua is já per ce bia o novo fe i tio da guer ra que sede sen vol via no ser tão, nada im pres si o na do com as der ro tas, mas com “as der ro tas sem com ba te, em que o chão fica va zio de mor tos e o Exér ci to se trans for ma num ban do de fu gi dos”.

Foi exa ta men te uma se ma na de po is do no ti ciá rio so bre aque lede sas tre, 14 de mar ço de 1897, que O Esta do de S. Pa u lo trou xe,em suas pá gi nas, o pri me i ro ar ti go “A Nos sa Ven déia”.

O es cri to, que só em sua par te fi nal, e por meio de an ti gas le i -tu ras so bre a Fran ça, con ti nha alu sões di re tas às li ga ções dos ser ta ne joscom os pro pa gan dis tas do Impé rio, era, em es sên cia, vi são de con jun to da ge o gra fia fí si ca da re gião co ber ta pe los cho ques mi li ta res, de i xan do per ce -ber, mais que pre o cu pa ção com o as pec to po lí ti co do que se pas sa va, apre o cu pa ção com o mis té rio que era pre ci so des ven dar, com a ra zão doque se pas sa va, como e por que se pas sa va. Re du zi do, po rém den so, era,an tes de tudo, o ar ti go de um es tu di o so que se re ve la va às vol tas comCa mi nhoá, Mar ti us, Sa int-Hi la i re, for mu lan do hi pó te ses so bre cli mas,ven do a flo ra mal tra ta da, ano tan do in ter mi ten te emi grar de aves e deho mens, com pa ran do fa tos lo ca is com ob ser va ções de Li ving sto ne nas ba i -xas la ti tu des afri ca nas, su bli nhan do o seu já alar ma do de ter mi nis mo ge o -grá fi co, para fri sar lu ci da men te que, na que la luta, o ini mi go sé rio eraaci ma de tudo o solo ás pe ro, ori gi nal.

O se gun do ar ti go com igual tí tu lo, evi den ci an do o mes mo de se jode não se man ter na su per fí cie em que os co men ta ris tas se man ti nham, de

XLVIII Eu cli des da Cunha

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es tu dar o as sun to des co nhe ci do o quan to fos se pre ci so para tra zer al gu ma co i sa de novo so bre ele, só veio qua tro me ses de po is, a 17 de ju lho, que -bran do uma su ces são de ou tros, so bre ou tros as sun tos, vá li dos ape nascomo do cu men tos.

Vi nha con fir mar, re for çan do-a, a im pres são ini ci al: era a pri -me i ra ten ta ti va de ver cor re ta men te os su ces sos no ser tão, de apre sen tarra zões no vas e ace i tá ve is para as der ro tas do Exér ci to, em bo ra con ti -nu an do a su por em toda aque la cor re ria uma ou tra Ven déia onde ex pe -ri men ta das for ças mo nar quis tas es ta ri am lu tan do con tra a Re pú bli caain da jo vem...

O ar gu men to emo ci o nal não era, po rém, o que in te res sa va aoar ti cu lis ta. Ten do, no de cor rer de qua tro me ses, es tu da do os fa tos sob no -vos as pec tos, pro cu ra in fun dir âni mo nos que viam com pes si mis mo o de -sen ro lar dos acon te ci men tos, ci tan do exem plos de re ve ses co lhi dos na His -tó ria, de exér ci tos re gu la res aguer ri dos quan do em luta num meio des co -nhe ci do, indo di re to ao que mais o in te res sa: o per fil do ja gun ço, o per fildo ter re no. De pos se das duas pe dras es sen ci a is à com pre en são da que lexa drez – a fe i ção caó ti ca e aci den ta da da ter ra, a ca pa ci da de de ver semser vis to e de raro des pren di men to pela vida, do ho mem –, tece leve crí ti ca a er ros de es tra té gia que já en xer ga va no ser tão.

Viu com tal car ga de lu ci dez o vá cuo que se abria en tre afren te e a re ta guar da das tro pas, que an te ci pou de mu i to as co or de na dasdo pla no com que o Ma re chal Bit ten court con se gui ria ven cer, pon do fimàque la di fi cí li ma cam pa nha.

Nos dois ar ti gos, pon tos da ma i or im por tân cia para a iden ti fi -ca ção de Eu cli des: es tu da ra com tan to afin co o seu as sun to, àque la épo ca es qui vo, di fi cil men te en con tra do nos li vros, que, sem ex pe riên cia pes so al,nem com o ho mem nem com a ter ra, de am bos nos deu, cor re ta men te, osli ne a men tos ge ra is; ar re dan do na me di da do pos sí vel ar gu men tos emo ci o -na is, pre sen tes, às ve zes, se gun do to dos os in dí ci os, em ho me na gem à opi -nião ge ral num mo men to do lo ro so, o que fez mes mo foi ra ci o ci nar, abor -dar com ob je ti vi da de fa tos em tor no dos qua is só se ob ser va vam la mú ri as,

Ca nu dos e Ou tros Temas XLIX

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crí ti cas des pro vi das ou en tu si as mos in jus ti fi ca dos; for te no seu mé to do, jáde i xa va em am bos os tra ba lhos, com gran de ni ti dez, a sua veia de es cri -tor, a sua alma de ar tis ta, ima tu ro em bo ra, mas ca paz de con fe rir apru mo e ele gân cia vi ris, e du ra bi li da de, às suas idéi as e às suas fra ses, cons tru í -das com algo da sua po e sia, da sua ima gi na ção rica e po de ro sa, a pon tode mu i tas de las con ti nu a rem vi vi nhas, fa cil men te iden ti fi cá ve is peloco nhe ce dor de Os Ser tões...

O chão apre sen ta va-se como sob os efe i tos da “vi bra ção in te ri orde um ter re mo to”; as cac tá ce as “pa ten te i am a con for ma ção tí pi ca ebi zar ra de gran des can de la bros fir ma dos so bre o solo”; a ro cha gra ní ti ca “apru ma-se lar ga men te fen di da em di re ções qua se per pen di cu la res, dan do a ilu são de lan ços co los sa is e se mi der ru í dos de ci cló pi ca mu ra lha”; os ser -ta ne jos em luta, “in vi sí ve is como mis te ri o sas fa lan ges de du en des”, pra ti -ca vam como mes tres “a tá ti ca da fuga” após “com ba tes rá pi dos e in de ci -sos” nos qua is “os ba ta lhões sen tem a mor te ra re ar-lhes as fi le i ras e nãovêem o ini mi go”, in va ri a vel men te “bár ba ro, im pe tu o so, abrup to”, pois,no des pren di men to pela vida, “o ja gun ço é uma tra du ção jus ta li ne ar qua sedo ilu mi na do da Ida de Mé dia”.

E, en quan to de um lado era as sim, do ou tro, as co lu nas naple na ig no rân cia da re a li da de avan ça vam, de i xan do cla ros, des pro te gi -dos, os es pa ços cada vez ma i o res en tre elas e a re ta guar da cuja as sis tên -cia era in dis pen sá vel ao êxi to da sua mis são: “nes se in ves tir im pá vi dopara o des co nhe ci do, como se le vas sem a cer te za de uma vi tó ria in fa lí vel e pron ta, não se li ga ram por in ter mé dio de pon tos ge o grá fi cos es tra té gi -cos à lon gín qua base de ope ra ções em Mon te San to, de i xan do, por tan -to, que en tre elas e esta úl ti ma se in ter pu ses se ex ten sa re gião cri va da de ini mi gos”...

O ar ti cu lis ta que as sim se ex pri mia, de modo in te i ra men tenovo so bre aque les su ces sos que tra zi am o país em sus pen so, re ve lan doum ama du re ci men to im pre vis to na sua ca pa ci da de de ver e cri ti car, te riaque cair nas gra ças da di re ção do jor nal, que pas sou a as se diá-lo, in du -zin do-o a se guir como seu

L Eu cli des da Cunha

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CORRESPONDENTE DE GUERRA NA BAHIA

A de ci são do jor na lis ta, con quan to ti ves se que ser rá pi da, nãoveio se não após inú me ras re cu sas aos ar gu men tos de Jú lio de Mes qui ta,re for ça dos, a pe di do des te, por ami gos co muns aos dois: aque la era mis -são de alto ní vel jor na lís ti co, jun to à co mi ti va do pró prio mi nis tro daGu er ra que, di an te da gra vi da de da si tu a ção, iria as su mir pes so al men teo co man do das ope ra ções; exi gia ho mem cuja ca pa ci da de trans cen des se àde um mero no ti ci a ris ta, cu jas no tas se tor nas sem in con fun dí ve is naspá gi nas do jor nal; tra ta va-se de in ter pre tar um acon te ci men to da ma i orim por tân cia para o país, de tra var con tac to di re to com o ser tão, de as sun tocu jas di men sões exa tas nin guém es ta va mais ca pa ci ta do que ele, Eu cli des,para dá-las, quem sabe am pli an do-as, apon tan do-lhes a pro je ção so breos vá ri os ca mi nhos do nos so des ti no...

Re sis te da qui, re sis te dali, Eu cli des, afi nal, ce deu. A fa mí liaaco mo da da na casa do pai, em Des cal va do, in te res ses pos tos em or dem,co lhi dos com o ami go Te o do ro Sam pa io no vos in for mes so bre a re gião deCa nu dos, que este bem co nhe cia, lá foi para a Ba hia, em bar can do porvia ma rí ti ma com a co mi ti va do mi nis tro em 4 de agos to.

De bor do do va por Espí ri to San to, no dia 7, foi da ta da apri me i ra car ta para O Esta do de S. Pa u lo. De Sal va dor, no dia10, a se gun da. Ini ci a va a sé rie de trin ta re por ta gens pu bli ca das, mascuja ex tre ma ir re gu la ri da de de che ga da à re da ção, pa ten te no de sen con -tro de suas da tas com as do jor nal, em que ve mos tra ba lhos mais ve lhos só pu bli ca dos de po is de ou tros mais re cen tes, au to ri za a su po si ção de queal gu mas ali nem te nham che ga do, ex tra vi an do-se. Des sas trin ta, onze,en tre 7 e 23 de agos to, são da ta das da ca pi tal, apa re cen do a 31 a pri me i raen vi a da de Ala go i nhas, se gui da das de ma is, es cri tas su ces si va men te emQu e i ma das, Tan qui nho, Can san ção, Qu i rin qüin quá, Mon te San to e,fi nal men te Ca nu dos, de onde a úl ti ma foi ex pe di da em 1º de ou tu bro.

A ines pe ra da per ma nên cia em Sal va dor foi para o re pór termu i to mais do lo ro sa que a tra ves sia ma rí ti ma, di fi cil men te to le ra da, apon to de ele si len ci ar so bre o mar, só en tran do a es cre ver quan do deu com

Ca nu dos e Ou tros Temas LI

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“a en tra da be lís si ma e ar re ba ta do ra da Ba hia”, ven do o oce a no “tran -qüi lo como um lago”, di zen do-se “ho mem afe i to ao as pec to im po nen te doli to ral do Sul”, para sa li en tar o sen sí vel abran da men to da pa i sa gem aoNor te. Daí por di an te, dia a dia mais ir ri ta do com a de mo ra da en tra da no ser tão, de pen den te que se en con tra va das or dens mi li ta res, pro cu rou,en tre tan to, a no tí cia em to dos os can tos onde exis tis se, e até onde apa ren -te men te não exis tia, como se deu com as en tra das pe los ar qui vos, dosqua is lo grou sair como um vi to ri o so, bran din do do cu men tos so bre asra zões mais re mo tas da que la guer ra no ser tão.

Tais idas e vin das do jor na lis ta sin gu lar, o le i tor as tem aovivo nas pró pri as re por ta gens. Assim sen do, e da dos os pon tos es sen -ci a is, in dis pen sá ve is à exa ta co lo ca ção des tas no tem po e no es pa ço,va mos ape nas a umas tan tas ob ser va ções que po de rão ser úte is à suacom pre en são como jor na lis mo da me lhor ca te go ria, ca paz, in clu si ve,de cons ti tu ir-se, como se cons ti tu iu, em fon te de ins pi ra ção para ul tra -pas sar a si mes mo.

PROCURANDO VERDADE ENTRE SOFISMAS

Foi exa ta men te o que Eu cli des an dou fa zen do por lá, comocon vi nha a um re pór ter da sua es tir pe.

Os gran des olhos bem aber tos para tudo, os ou vi dos aten tos ato dos os ru mo res, a in te li gên cia no ple no exer cí cio de seus po de res, comoum fil tro des ti na do a re ter a men ti ra, de i xan do pas sar, quan do mu i to, osim ples men te ve ros sí mil, ele ia ti ran do de tudo as suas pró pri as con clu -sões, após con fe rir as pa la vras que ou via com os fa tos que pre sen ci a va.Ca paz, en tre tan to, de ir mu i to além des se sim ples re gis tro, pu nha emação, pa ra le la men te a essa ex tra or di ná ria ca pa ci da de de ope rar à su per -fí cie, os da dos da sua cul tu ra in co mum, dos co nhe ci men tos re gi o na is deque se en con tra va bem pro vi do, tudo su bor di nan do aos seus dons de po e sia, à sua in tu i ção pro di gi o sa, que o le va vam, se não a en xer gar cla ro, depron to, no mis té rio, pelo me nos a pres sen tir a ra zão de ser das co i sascomo as co i sas se pas sa vam... O po der de ex pres são do es cri tor, do ar tis ta

LII Eu cli des da Cunha

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con su ma do en co ber to em pele de re pór ter, trans mi tia, en tão, com a for ça de ori gem, o que na que le ins tan te era pos sí vel trans mi tir.

Que ou tra ra zão, se não esta de en ge nho e arte, exis ti ria parajus ti fi car a re e di ção, ain da hoje, da que las sim ples ano ta ções de re pór ter,que ja ma is su pôs que isso vi es se a acon te cer, ten tan do, ele mes mo, de i -xá-las de fi ni ti va men te no es que ci men to, com o su pe rá-las nas pá gi nasgran des e so ber bas de Os Ser tões?

Abso lu ta men te ne nhu ma. O me lhor jor na lis mo que se co nhe -ça ou que se pos sa ima gi nar tem na que las três de ze nas de no tas do fimdo sé cu lo to dos os ele men tos de que se hon re e que tim bre em cul ti var –ho nes ti da de, amor à ver da de, re sis tên cia aos em pe ci lhos, in te li gên cia,co nhe ci men to de ca u sa, co ra gem, ob je ti vi da de, au sên cia de pro vin ci a nis -mo, per me a bi li da de às do res hu ma nas...

São atri bu tos de qua se tudo quan to es cre veu, vi sí ve is tam bémem to dos os seus atos. Por tan to, con fe rin do-lhe a mis são, o “olho clí ni co”de Jú lio de Mes qui ta não fa lha ra, acer tan do, tam bém, em sua pre vi sãoOtá vio Man ga be i ra, en tão sim ples aca dê mi co de Me di ci na na Ba hia, aodi zer da que las re por ta gens, que “ga ran ti ri am um tri un fo li te rá rio” parao seu au tor.

Fa zen do a co ber tu ra dos acon te ci men tos já se en con tra vam emCa nu dos, quan do Eu cli des lá che gou, vá ri os re pre sen tan tes de ou tros jor -na is, mas, ain da que se aban do ne, por im pos sí vel, qual quer de se jo decom pa ra ção for mal en tre o que ele e os ou tros es cre ve ram, põe-se de ma ni -fes to a dis tân cia que os se pa ra va, como sim ples re la to res do que acon te -cia, como to ma da de po si ção di an te do que es tra nha men te acon te cia,como ob ser va do res do con jun to per tur ba dor que to dos ti nham di an te dosolhos. Foi o úl ti mo a che gar, mas o pri me i ro a ver tudo, ven do o que osou tros não viam no mais fun do da que la tra gé dia que, sem o seu con cur so de po e ta e de pro fe ta, te ria pas sa do em vão, já não di ga mos para aque laépo ca ata ran ta da que ele lo grou aba lar com o seu li vro de que as re por ta -gens eram o prin cí pio, mas para o fu tu ro, que mu i to apren deu e ain datem o que apren der na que le re la to de atro ci da des in cons ci en tes.

Ca nu dos e Ou tros Temas LIII

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Na ca pi tal ain da, via che gan do fe ri dos, em fran ga lhos, comose vis se “uma pro cis são dan tes ca de du en des”; logo mais, co nhe cen do por -me no res dos re ve ses, ob ser va va que a guer ra se fa zia er ra da men te, di zen -do que o que se es ta va exe cu tan do ali era “uma di li gên cia po li ci al comoito mil ho mens”; co nhe cen do de ta lhes, já era ca paz de en xer gar no Con se -lhe i ro “uma es pé cie bi zar ra de gran de ho mem pelo aves so” a exer cer oman do so bre “uma so ci e da de ve lha de re tar da tá ri os”. As suas eram cor -res pon dên ci as cur tas, in ci si vas, ca pa zes de, numa fra se, de fi nir um qua -dro, um ho mem, uma si tu a ção in te i ra, e, ain da as sim, che i as de des cul -pas do au tor pe las pos sí ve is in cor re ções for ma is que con ti ves sem... Ele ases cre via, pro va vel men te as re es cre via, sa in do em se gui da atrás das no vi da -des, como esta que não era pos sí vel per der: in ter ro ga tó rio de um ja gun çode 14 anos, o pró prio re pór ter po den do fa zer-lhe per gun tas, como fez,com gran de in te li gên cia, man dan do, ao fi nal, para O Esta do um ex ce -len te “furo”, a car ta ad mi rá vel de 19 de agos to, pre ce di da por ou tra fa mo sa, a do epi só dio dos fi lhos do Ma cam bi ra. Na que la tra zia ao co nhe ci men toge ral qua dros da vida in ter na do vi la re jo que aba la va todo o país, ní ti dosins tan tâ ne os do Aba de, do Pe drão, do Vi la no va, do Ta ra me la, do Ma nu elQu a dra do, do Con se lhe i ro, co lhi dos di re ta men te da boca do me ni no, naqual acre di ta va por que, di zia, “não men tem, não so fis mam, não ilu dem,na que la ida de, as al mas in gê nu as dos ru des fi lhos do ser tão”.

Mas o tem po cor ria, as no vi da des es cas se a vam e o re pór ter,va gan do pe las ruas da ve lha Ba hia “como um gre go an ti go pe las ruas deBi zân cio”, mos tra va-se cada vez mais pre o cu pa do com o re tar da men toda par ti da para o ser tão.

Vai pro cu rar no vi da des... nos ar qui vos. Sa bia o que ho nes ta -men te po dia e não po dia fa zer como re pór ter. Num ar qui vo des co bre car tare ve la do ra de que há anos o Con se lhe i ro já cons ti tu ía sé ria ame a ça antea ab so lu ta pas si vi da de do go ver no, e a trans cre ve na cor res pon dên cia as si -na da; nos co men tá ri os de es qui na e de al guns che fes mi li ta res per ce be umema ra nha do de con tra di ções, que pro cu ra evi tar, quan do mu i to pas san do-aspelo te lé gra fo, sem a sua as si na tu ra. Apro xi ma-se das fon tes pu ras, foge

LIV Eu cli des da Cunha

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das in ver da des e, quan do acon te ce tê-las aga sa lha do, apres sa-se, tão logoper ce be isso, em re ti fi car-se a si mes mo. O le i tor o verá mu i tas ve zesfa zen do isso que exa mi na mos por me no ri za da men te em nos so li vro so breOs Ser tões. Pu nha-se em guar da, lem bran do uma com pa ra ção de Foxpara as in for ma ções du vi do sas que ob ti nha: “Como que se for mam atra -vés de um fil tro in ver ti do, no qual os ele men tos en tram lím pi dos e pu ros e saem im pu ros e tur ba dos.”

Assim mes mo, pro cu ran do ape nas o en con tro com a ver da deque, fal tan do nas fon tes co muns, ele lo gra va en con trar le van tan do “apo e i ra dos ar qui vos de que mu i ta gen te fala sem nun ca ter vis to ou sen ti do”,é que o ve mos nos seus dias de ca pi tal ba i a na. Dias in cô mo dos, vi vi doscom mu i to es for ço, com mu i to pou co da ale gria ín ti ma e dos sen ti men toshu ma nos que ca rac te ri za vam aque le jor na lis ta, quan do em con ta to com a na tu re za e com as gen tes hu mil des e de ser da das, como pro va a pri me i racor res pon dên cia da ta da de Ala go i nhas em 3l de agos to – o re pór ter jáabo le ta do no tren zi nho “ru i do so e fes ti vo” que o le va va para o in te ri or,rumo ao vi la re jo inex pug ná vel de Ca nu dos.

A TERRA, O HOMEM, A VERDADE SOBRE OS FATOS

Então co me ça mos a sen tir em pro por ções cres cen tes nes te no ti -ciá rio do ta do de po de res ex cep ci o na is, que mais tar de, em li vro, atin gi riao seu clí max, a ver da de con ti da na apre sen ta ção da edi ção ita li a na des semes mo li vro, onde se ob ser va que no “Bra si le Igno to” tem-se “tut to vis tocon ani mo uma na men te do len te ed ec ce zi o nal men te obi et ti vo”.

Sim, por es tra nho que pos sa pa re cer. Obje ti vi da de: in ves ti ga -ção, ex po si ção, crí ti ca com olhos de ver, de ver só a ver da de, sem pre -ven ções. Do lên cia: má goa bem fun da, tris te za in fi ni ta, pro fun do sen ti -men to da dor alhe ia, ad vin da das in com pre en sões for ja das pela dis tân ciaenor me que se es ta be le ceu en tre os ho mens, ca u sa las ti ma da a mais nãopo der pelo re pór ter que, co me çan do a ver a re a li da de, pas sou a dizê-latão cru a men te quan to pos sí vel numa pá gi na de jor nal em mo men togra ve, tú mi do de in com pre en sões e re ce i os, de pre ven ção e in sen sa tez.

Ca nu dos e Ou tros Temas LV

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O mis té rio que en vol via aque la luta de gi gan tes ia fi can do cada vezmais cla ro aos seus olhos, à sua com pre en são, con fir man do o que dis se -ra, ba si ca men te, nos dois ar ti gos “A Nos sa Ven déia”, fa zen do-o pou -co a pou co des ven ci lhar-se dos pre con ce i tos po lí ti cos que es cu re ci am osra ci o cí ni os.

A ca u sa pro fun da da qui lo tudo é que pas sa va a in te res sá-lo, e não ape nas a ca u sa das ba ta lhas sem de ci são. Via-a ago ra com seus pró -pri os olhos, no es pa ço, ven do a ter ra e ven do o ho mem, e a via tam bém no tem po, ao re fe rir os três sé cu los de iso la men to ge ra do res do des ní velbru to en tre o ser tão e o li to ral, ad ver tin do ser de nos so de ver

“in cor po rar à ci vi li za ção es tes ru des pa trí ci os que – di ga mos com se gu ran ça – cons ti tu em o cer ne da nos sa na ci o na li da de”;

e indo além, mu i to além, sen do mais cla ro, ten tan do re ti rar da qui lo tudo o as pec to po lí ti co que não en xer ga va, de se jan do di zer o in di zí vel numapá gi na de jor nal em mo men tos pe ri go sos como aque le, de re pu bli ca nis moes cal dan te a en xer gar o que na qui lo tudo não exis tia: si na is de vida domo nar quis mo der ru ba do.

A pri me i ra ma ni fes ta ção des se pro pó si to nós a en con tra mossu til men te ex pres sa no tre cho re la ti vo à casa de Sa ra i va nos ar re do res dePo ju ca, a cuja fren te o re pór ter se des co bria des co brin do-se ante o pró priopas sa do que, como pro pa gan dis ta da Re pú bli ca, aju da ra a des tru ir:“Ain da não des ci à con cep ção es tre i ta de fa zer de um gran de dia, o 15de No vem bro, um valo en tre duas épo cas. Não há au tos-de-fé na His tó -ria. Pas se mos adi an te.”

A di gres são in ter rom pi da por esse brus co “pas se mos adi an te”era in ten ci o nal. Adver tia que ele já es ta va dis pos to a dar tra ta men to di -ver so ao as sun to ex plo si vo, cer ca do de pa i xões por to dos os la dos até oseu fi nal dan tes co, que pre sen ci ou.

A EXPRESSÃO

Eis aí al gu mas das ra zões que jus ti fi cam o in te res se cres cen t epe las re por ta gens de que es ta mos fa lan do, que de ram ori gem a Os

LVI Eu cli des da Cunha

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Ser tões. Mas, jun to à sua ho nes ti da de, à sua co ra gem, à sua lu ci dezcomo jus ti fi ca ti vas da que le in te res se pelo es cri tor cujo cen te ná rio de nas ci -men to es ta mos co me mo ran do, te mos que des ta car, ain da, os exem plosque já de mos da ou tra ra zão es sen ci al das re e di ções de seus li vros, e,de po is, da pro cu ra de pá gi nas que o es cri tor aban do nou, mas que va mosdes co brin do sur pre sos pelo mu i to que re pre sen tam, lan çan do-as sem a sua pré via li cen ça...

Fa la mos da sua in te li gên cia e da que le po der de ex pres são queDeus lhe deu, pre sen tes tam bém nes tas sim ples no tas de cam pa nha que o le i tor tem ago ra nas mãos.

Po der de ex pres são de que já vi mos al guns exem plos nas suascar tas de guer ra, nas que são sim ples tra ços ge ra is, de bu xos ape nas depor me no res do qua dro mais am plo e mais pro fun do que o es cri tor tra ça -ria em se gui da, em que se es me ra ria no de cor rer dos três anos de be i -ra-rio, em São José do Rio Par do, dan do con tor nos, co res e nu an ças de fi -ni ti vos às suas es tra nhas vi sões.

Nas re por ta gens, tam bém Gil ber to Fre i re viu com ra zão – ara zão que di fi cil men te não da mos por in te i ro à sua acu i da de, à sua lu ci -dez – esse po der ex pres si vo a ga ran tir a per ma nên cia da que le jor na lis mo sin gu lar. Eu cli des se ria, com as pa la vras, um El Gre co da pro sa bra si -le i ra a res sal tar os tra ços es cul tu ra is de tudo, de ho mens, de ár vo res,de mo men tos, a tudo, até ao sol do ser tão, qua se fa zen do pa rar para o“re tra to”, dan do di men sões es tra nhas a cor pos e ros tos, che gan do até,di ría mos, a lem brar o Gre co da tela so bre To le do, cu jas tin tas es tra nhasnão sa be mos se põem aos nos sos olhos o es plen dor do dia ou o su a ve mis -té rio da no i te... Com suas co res vi o len tas, por ou tro lado, po de ria noslem brar tam bém aque le ou tro “pin tor”, Ví tor Hugo, e atra vés dele,De la cro ix, mas mis tu ran do-as com ma es tria, sem se lam bu zar, prin ci -pal men te quan do des cre via, como no Qu a tre-Vingt-Tre i ze, as pa i xõesque de se ja va fa zer vi sí ve is: os sol da dos sem co man do, ao sa bor das cir -cuns tân ci as, lem bran do os ca nhões, do Hugo tão nos so co nhe ci do que, ar re ben tan do as amar ras, dan ça vam lou ca men te ao sa bor das os ci la ções

Ca nu dos e Ou tros Temas LVII

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vi o len tas que as on das im pri mi am ao bar co, es ma gan do lu ta do res, des -tru in do con vés, pre ci pi tan do-se... As ma nhãs ser ta ne jas, o to que da AveMa ria, o ho mem em luta com a su çu a ra na, o ca va lo do al fe res Wan der -ley, o pri me i ro com ba te de Uauá con du zi do por cru zes in cli na das emaríe te, o epi só dio dos fi lhos do Ma cam bi ra, aque la mas sa de sol da doses pa lha da como um pé-de-ven to so bre pa lhas ou como um rio imen sotrans bor dan do, ro lan do para to das as do bras de mon ta nhas...

Tudo re le vo e cor, e tam bém som, que, não se en con tran do nas re por ta gens, es tão nas pá gi nas de Os Ser tões, o que efe ti va men te já éuma ou tra his tó ria, mais pro fun da, mais am pla, onde os de bu xos ga nha -ram fe i ções de fi ni ti vas, os cro quis se com ple ta ram, as li nhas le ves vi ra ram tra ça dos for tes e per ma nen tes. Mas a nós nos pa re ce que aí, e não só nasre por ta gens, sal vo ra ras ex ce ções de dis ci pli na ri go ro sa no di zer, as pa la -vras tam bém con ti nu am sol tas, com a mes ma sem-ce ri mô nia que Gil ber tovê mais acen tu a da men te nos es cri tos do re pór ter.

Sim ou não, o caso é que, já nas suas re por ta gens, ele cul ti va vaos atri bu tos do jor na lis ta per fe i to e mais: re ve la va-se es cri tor, na acep çãodo ter mo.

É este re pór ter que o le i tor vai co nhe cer tra çan do os li ne a men -tos de um gran de li vro, dan do-nos o pres sen ti men to des se li vro, do seupro ces so an ti té ti co, da sua vi são, da sua téc ni ca de li dar com as pa la vras, dan do uma idéia das co lu nas-mes tras que sus ten ta ri am o con jun to, dasvi gas que o cru zam de pon ta a pon ta, tra ve jan do-o por in te i ro, de acor docom um pla no ge ral am plo, am bi ci o so como o do ma i or dos por tu gue sesno ter ce i ro can to de Os Lu sía das: “Além dis so, o que a tudo en fim meobri ga,/É não po der men tir no que dis ser;/Por que de fe i tos tais, pormais que diga,/Mais me há de fi car ain da por di zer./Mas por que nis toa or dem leve e siga,/Se gun do o que de se jas de sa ber,/

Pri me i ro tra ta rei da lar ga ter ra,De po is di rei da san gui no sa guer ra.” É o pla no pres sen ti do nas re por ta gens e que está bem cla ro na

obra-pri ma do es cri tor nato que se di zia “che fe de ope rá ri os e ho mem de

LVIII Eu cli des da Cunha

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le tras”, da qual, com acer to co nhe ci do o mes mo Gil ber to Fre i re nos diz“não pre ci sar da con des cen dên cia de crí ti co ne nhum” ao si tuá-la, nain tro du ção já alu di da, como obra-pri ma da li te ra tu ra, como obra-pri made sín te se so ci o ló gi ca na lín gua por tu gue sa que, indo como foi aos pro ble -mas da for ma ção ter ri to ri al, so ci al e po lí ti ca do Bra sil, es cla re ceu as pec tos im por tan tís si mos de nos sos an te ce den tes e da nos sa atu a li da de, ca rac te ri -zan do a pa i sa gem fí si ca e cul tu ral dos ser tões, ilu mi nan do-as com se gu rocri té rio eco ló gi co e pro fun do sen so dra má ti co dos an ta go nis mos que tur -vam a uni da de bra si le i ra.

II – OUTROS TEMAS

“Re al men te, cre io tan to no meu des ti no de ban de i ran te, quelevo esta car ta de pre go para o des co nhe ci do com o co ra ção li ge i ro. Te nhoa cren ça lar ga men te me ta fí si ca de que a nos sa vida é sem pre ga ran ti dapor um ide al, uma as pi ra ção su pe ri or a re a li zar-se. E eu te nho tan toque es cre ver ain da...”

Nes te tre cho de car ta de Eu cli des, en vi a da de Ma na us emmar ço de 1905 a Alber to Ran gel, te mos um bom co me ço de con ver sa ares pe i to dos iné di tos em li vro que aqui es ta mos pu bli can do, à pas sa gemdo cen te ná rio do seu nas ci men to. O frag men to está su bli nhan do o seudes ti no de ban de i ran te, a le var car ta de pre go para o des co nhe ci do, sa ben docomo con du zir a bom ter mo a sua mis são em face do mis té rio dos lu ga -res nun ca vis tos ou ra ra men te pi sa dos por al guém. E aqui está ele aabrir-se em con fis são so bre os seus ide a is, suas as pi ra ções sem pre su pe ri o -res, que re a li zou por que ia a elas com o co ra ção li ge i ro... E, prin ci pal -men te para o nos so caso, o es cri tor está aqui avan çan do ou tro dos seusco nhe ci dos de se jos, exa ta men te aque le em que iam ba ter to dos os de ma is:“E eu te nho tan to que es cre ver ain da...”

Ca nu dos e Ou tros Temas LIX

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Isto em 1905, quan do, na fase pro va vel men te mais ata ran ta -da da sua vida, já ha via es cri to qua se tudo o que vi ria a for mar o Con -tras tes e Con fron tos onde, de pos te ri or só há mes mo o dis cur so naAca de mia, no qual con fes sa va-se “es cri tor por aci den te”, em ba ra ça do dees tar sen do re ce bi do como es cri tor, em ba ra ça do en tre o sen ti do pri mi ti vo e o novo da pa la vra, sem en con trar o ter mo que o sa tis fa ria como sa tis fez a Ra ci ne, que se cha ma va po e ta, a La Fon ta i ne que se di zia fa bu lis ta, aMo liè re que se apre sen ta va só como co me di an te do rei...

Ti nha mu i to o que es cre ver. Mas não te ria ou tra vez as con di ções in dis pen sá ve is para isso.

De lá do ex tre mo Nor te, pre ci sa men te, é que tra ria, no seuca der no de ano ta ções, os da dos de que se mu ni ra, e, es te re o ti pa dos nare ti na, os qua dros ad mi rá ve is que es pe ra va ali nhar num li vro co e so,in te i ri ço como Os Ser tões – e que se cha ma ria Um Pa ra í so Per di do,con tra as bru ta li da des das “gen tes ado i da das”, ali, des de o sé cu lo XVIII. Tal vez por pres sen tir ser-lhe im pos sí vel re a li zá-lo é que te nha en tre gue ao seu edi tor por tu guês os ori gi na is in com ple tos des se li vro so bre as águascomo o ou tro fora so bre os sóis, frag men tos que, com aque le fa mo so es bo çode His tó ria Po lí ti ca que vai da Inde pen dên cia à Re pú bli ca, for mam asduas par tes es sen ci a is e mais com pac tas do seu me lhor li vro de po is do ou tro a pre tex to da cam pa nha de Ca nu dos.

À mar gem da His tó ria é re al men te o seu úl ti mo li vro, or ga -ni za do por ele mas lan ça do quan do já não exis tia. À sua pró priamar gem, en tre tan to, se ria pos sí vel acres cen tar mu i ta co i sa. Mu i ta co i saem tor no da qual têm sido di vul ga dos vá ri os pla nos de pu bli ca ção, mas que,pos si vel men te, por não ter con ta do com ar gu men tos ca pa zes de des per tarin te res se edi to ri al em tor no do que efe ti va men te re pre sen ta, per ma ne ceudes co nhe ci da.

Por que não te ria Eu cli des jun ta do àque le li vro pelo me nosmais al guns pou cos dos seus es cri tos, que, ao con trá rio, co lhi do pela mor te,de i xou de fi ni ti va men te nas pá gi nas dos jor na is e das re vis tas onde fo rampu bli ca dos? Te ria jun ta do a tí tu lo pro vi só rio ape nas, no Con tras tes e

LX Eu cli des da Cunha

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Con fron tos, os es tu dos so bre Flo ri a no que lhe da ri am o li vro so brea re vol ta de se tem bro, do qual aque les es tu dos se ri am par te, como dera a en ten der em uma das suas car tas? Te ria tam bém só por an te ci pa çãoin clu í do em À mar gem da His tó ria aque las apre ci a ções fun da men ta is so bre a Ama zô nia que, in te i ra men te trans for ma das, lhe da ri am com ova gar que sem pre es pe ra va o seu “se gun do li vro vin ga dor”? E aque lasbe lís si mas pá gi nas que aqui nes te vo lu me es ta mos in clu in do em li vro pela pri me i ra vez – Numa Vol ta do Pas sa do – lem bran ças res ta u ra das“a todo po der da fan ta sia”, não se ri am um pro lon ga men to, um qua se fi nalde ro man ce, tal vez para Os Ho mens Bons, que es pe lha va es cre ver,fi xan do-se, de iní cio, no Rio de Ja ne i ro se is cen tis ta?

São per gun tas. Pa la vras ape nas. Que ja ma is se rão res pon di dascom pre ci são.

Mas que ad mi tem hi pó te ses, hi pó te ses di tas mu i to ra pi da men te,em ho me na gem ao le i tor que tam bém não gos te de cons tru ir so bre a are ia. Uma de las se ria esta: Eu cli des vol ta ria a re ver al guns da que les es tu dos,pu bli can do-os, como de se jas se. Ou tra pos sí vel ra zão do ine di tis mo emque lar gou uma por ção dos seus es cri tos: nas mu dan ças con tí nu as deca sas e de ci da des, ele os te ria per di do, de i xan do para mais tar de con se guirdos ami gos um re cor te que re le ria e mo di fi ca ria in te i ra men te. Ha ve riaain da a con si de rar o fato de, uma vez en vi a dos os ori gi na is ao edi tor,nada mais po der ser acres cen ta do, pois à épo ca os li vros bra si le i ros eram, em sua ma i o ria, im pres sos em Por tu gal ou na Fran ça, que na Eu ro pa se en con tra vam as ofi ci nas dos gran des edi to res. E mais uma: dos tra ba lhos da ple na ju ven tu de, como de ou tros tan tos, es cri tos à pres são da ne ces si -da de, ele ja ma is vol ta ria a fa lar.

Res pe i tan do-o na me di da em que nos sas su po si ções se jam vá li das, de i xa mos es tes úl ti mos de ban da. Não os in clu í mos aqui. Mas sen ti mos serne ces sá rio di zer por que in clu í mos os que aqui se en con tram, um de les tre chode Os Ser tões em pri me i ra re da ção, in te i ra men te mo di fi ca da no li vro;ou tro, pri me i ra re da ção tam bém in te i ra men te trans for ma da, in clu í da noCon tras tes e Con fron tos; os de ma is nun ca re vis tos pelo au tor.

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Sin ce ra men te, não cre mos que to dos eles ve nham acres cen taralgo de subs tan ci al à obra co nhe ci da. Mas cre mos que ne nhum de les a re duz no mais mí ni mo que se pos sa ima gi nar, e que, dada a gran de za de Eu cli des, não po di am per ma ne cer no es que ci men to. Se não ve ja mos, lo ca -li zan do cada um no seu tem po e dan do as nos sas ra zões de in clu são.

1 – DISTRIBUIÇÃO DOS VEGETAIS NO ESTADO DE SÃO PAULO

É o tí tu lo do pri me i ro dos iné di tos em li vro que in clu í mos nes te. A data de sua pu bli ca ção, 4 de mar ço de 1897, traz à lem bran ça aque laépo ca que ana li sa mos na His tó ria e Inter pre ta ção de “Os Ser tões”como sen do a dos es cri tos pi o ne i ros, da ida a Ca nu dos, e da con se qüen temu dan ça de des ti no do es cri tor. Mu dan ça de des ti no nes se sen ti do de setrans for mar, pas san do de ob ser va dor e co men ta ris ta tão-so men te in te res -sa do nos acon te ci men tos do dia, a le i tor e au tor de es tu dos bra si le i ros noseu sen ti do mais am plo e mais pro fun do. Exem plos sem pre ce den te des samu dan ça são o pri me i ro dos dois “A Nos sa Ven déia”, já exa mi na do, eeste de que es ta mos fa lan do, pu bli ca do exa ta men te dez dias de po is.

Este so bre os ve ge ta is, pro va vel men te, nun ca mais vis to porEu cli des, é im por tan te como o mais an ti go da sé rie que evi den ci a va neleaque la com ple ta mu dan ça nas pre o cu pa ções in te lec tu a is, mas tam bém por ou tras ra zões. Está, em es sên cia, co men tan do um tra ba lho de Lo ef gren a cu jas con clu sões não sa be mos que va lor se pos sa atri bu ir em nos sos dias,mas, qual quer que seja este, o que a nós nos in te res sa aqui é sen tir oes cri tor que des pon ta va ab so lu ta men te em dia com a me lhor ciên cia doseu tem po e ob ser vá-lo a ali nhar au to res que an da va len do, a avan çarex pres sões ca rac te rís ti cas da obra-pri ma que vi ria a pre ver pro dí gi os queo fu tu ro iria con fir mar. Os au to res re fe ri dos são mu i tos, mas, den tre eles, é de sa li en tar War ming, que es te ve no Bra sil e lan çou, em 1909, os fun -da men tos teó ri cos da Eco lo gia, “em pur ran do por ta aber ta”, no di zer deAfrâ nio Pe i xo to, pro va vel men te com al gu ma ra zão, pois, em Os Ser tões,

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es cri to en tre 1898 e 1901, Eu cli des já re ve la va am plo e se gu ro cri té rioeco ló gi co, ple no do mí nio das in ter-re la ções do meio am bi en te com as es pé -ci es ani ma is e ve ge ta is, da com ple xa de pen dên cia de uns com os ou tros,de to das es sas su ti le zas que for mam mes mo a tra ma da vida, cu jos de se -qui lí bri os pro vêm da ação ne fas ta do ho mem con tra a na tu re za, exa ta -men te o as sun to da Eco lo gia, lan ça da por War ming, cu jas obras em ale -mão são bá si cas, nes se par ti cu lar, ci ta dís si mas, pe los me lho res au to res em to das as lín guas. Ou tro men ci o na do no ar ti go se ria aque le Buck le a queele deu tan ta im por tân cia, que está bem jun to da ex pres são ma na ge a -bi lity of na tu re, co nhe ci da do le i tor de Os Ser tões”, como tan tas alitam bém co lo ca das: “ve ge ta ção in com pa rá vel e for te sob a adus tão pe re nedos dias tro pi ca is”, “bra ce jar de de ses pe ro, vi gor e re sis tên cia he rói ca naluta pela vida”.

Qu an to às suas pre vi sões nes se ar ti go, di zem res pe i to aoex tra or di ná rio sur to de pro gres so que por vol ta de 1920 se es pra i a vapor todo o oes te pa u lis ta abrin do cla re i ras nas ma tas, cor tan do es tra -das, er guen do ci da des, pu xan do tri lhos de aço ao sa bor das on das depros pe ri da de do “mar de café” que avas sa la va as me i as-en cos tas e oses pi gões com seu ver de-es cu ro, man cha do nos va les pe los cla ros de ou tras cul tu ras e pas ta gens, ve de tas da ar ran ca da que trans fi gu rou pa i sa gensin fin das ao re a li zar a ocu pa ção da que le solo no pla nal to oci den tal deSão Pa u lo.

Foi o que Eu cli des, em suas con tí nu as vi a gens pelo in te ri orpa u lis ta, ob ser vou e dis se nes te ar ti go de 1897, prin ci pal men te do meiopara o fim, a par tir do dé ci mo pa rá gra fo; e, ain da mais adi an te, no pa -rá gra fo an te pe núl ti mo:

...“pre pon de ram nes te Esta do as re giões cam pes tres, ge -ral men te con si de ra das es té re is e inap tas a qual quer cul tu rare gu lar – re giões des ti na das, en tre tan to, a no tá vel ação so -bre o nos so de sen vol vi men to eco nô mi co em pró xi mo fu tu ro,quan do...”

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“Exa us tas as re giões ubér ri mas nas qua is a de com po si -ção das ro chas erup ti vas ori gi na a ter ra roxa que está atu al -men te para o nos so de sen vol vi men to eco nô mi co como a ter rane gra da Ucrâ nia, a fe cun da tcher no i zem, para o daRús sia me ri di o nal, o apro ve i ta men to das ex ten sas re giõeshoje aban do na das tor nar-se-á ine vi tá vel...”

Note-se duas ve zes a ex pres são “de sen vol vi men to eco nô mi co”que cir cu la como no vi da de, ob ser ve-se o “pró xi mo fu tu ro” que se ria o dosar re do res da dé ca da de 1920 que ele pre via para a fa i xa triá di ca queabran ge todo o in te ri or pa u lis ta, da par te mé dia de seus rios até o sul co dorio Pa ra ná. São ter re nos de are ni to ver me lho e mole, de “ter ra roxa”, ori -gi na ri a men te re ves ti da de ma tas de gran de por te, mas onde pre do mi na ave ge ta ção cam pes tre de que fala o es cri tor, indo além das ob ser va ções de na tu re za ge o ló gi ca, to po grá fi ca, cli ma to ló gi ca, bo tâ ni ca ao re fe rir suas pro -je ções de na tu re za eco nô mi ca, ao pre ver o re cuo das ca po e i ras e das ma tasdi an te das cul tu ras que trans mu da ri am a pa i sa gem do far west pa u lis taque se es ten de en tre o rio Gran de, o Pa ra ná e o Pa ra na pa ne ma.

Esse cla ir vo yant que pre via o sur to da ex ten sa rede de “ci da des vi vas” no oes te, como logo mais, mu i to an tes de Lo ba to, se ria o Je re mi asdas “ci da des mor tas” do vale de ca den te do Pa ra í ba, já se apre sen ta vacom aque les tra ços prag má ti cos que tam bém o ca rac te ri zam, cha man do a aten ção para o por vir em ter mos de vi são e pre vi são dos pro ble mas emcon jun to, de re vo lu ção das men ta li da des di an te da co e xis tên cia de doisbra sis an ta gô ni cos, um mo der no e ou tro ar ca i co, um do pas sa do dis tan te, ou tro do fu tu ro que che ga va...

2 – O 4º CENTENÁRIO DO BRASIL

É tí tu lo do ar ti go se guin te, que o es cri tor, ape sar de mu i toso li ci ta do pe los jor na is da ca pi tal e ata re fa do com o pon to fi nal so bre OsSer tões, dera, em maio de 1900, para um jor nal zi nho de São José doRio Par do. Apre sen ta-se como ges to de cor te sia, de agra de ci men to doen ge nhe i ro que se re ti ra va da ci da de ao seu ór gão prin ci pal.

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Se ri am umas li nhas que ele – é lí ci to su por – re ti ra ra do ve lho ca der no em que, com Te o do ro Sam pa io, an da ra cer ta vez a ras cu nharco i sas para uma qua se His tó ria do Bra sil. Mas li nhas aqui aco lhi daspor que tam bém têm o seu va lor in trín se co, além do de ori gem: re ve -lam-nos um Eu cli des como que trans for ma do no nos so pro fes sor de Gru poEsco lar a nos tra zer uma sur pre sa bem agra dá vel com este tema, tra ta do com mais fi nu ra, mas nem por isso ti ran do de nós aque la im pres sãoamo rá vel dos tem pos fa gue i ros... Os ter mos usu a is, a es tru tu ra da fra se,nos mos tram o Eu cli des que co nhe ce mos, mas o “cli ma” es pe cí fi co doas sun to apre sen ta-nos um ou tro, aque le que num mis to de gran de za ehu mil da de, nuns ares de mu i ta ter nu ra, vai ba i xan do a voz à lem bran ça de um sim ples mar co, a cruz de ma de i ra aqui de i xa da pe los des co bri do -res “avul tan do nas so li dões do novo con ti nen te e do mi nan do o mar”.

3 – AS SECAS DO NORTE

“As Se cas do Nor te” é tí tu lo de ex ten sa par te co mum de es tu do pu bli ca do em três ve zes, mas sa í do de Os Ser tões que Eu cli des ain daes cre via e re es cre via quan do o deu à pu bli ci da de em ou tu bro e no vem bro de1900. Aqui está por nos pa re cer mu i to útil aos pro fes so res, aos es tu di o sosin te res sa dos numa com pa ra ção como a que pro ce de mos com as pá gi nasfa mo sas so bre o ser ta ne jo, o ja gun ço e o ga ú cho em His tó ria e Inter -pre ta ção de “Os Ser tões”. Quem se der a esse tra ba lho ve ri fi ca rámais uma vez os cor tes ex ten sos, e as acres cen ta ções, im pos tos por Eu cli -des à re da ção de fi ni ti va do seu tex to. A pri me i ra par te des te “As Se casdo Nor te” o le i tor a lo ca li za rá às pá gi nas 32, 33 e 34 da 12ª edi ção deOs Ser tões (to das as nos sas re fe rên ci as di zem res pe i to a essa edi ção),mas só a par tir do seu 26º pa rá gra fo, que os 25 an te ri o res, al guns lon gos,ou tros cur tos, mu i tos de uma só li nha, fo ram su ma ri a men te eli mi na dos,sen do re co nhe cí ve is ao le i tor aten to da obra-pri ma ape nas por meio decer tas pa la vras e fra ses en con tra di ças aqui e ali no li vro... Ou tro exem plo do ri gor, da se ve ri da de de tra ta men to sem pre dis pen sa da pelo es cri tor

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às suas pá gi nas, só se res pon sa bi li zan do, como é ób vio, pe las que fi ca ram na edi ção de fi ni ti va.

Essa eli mi na ção de qua se duas ter ças par tes do pri me i ro “AsSe cas do Nor te”, pu bli ca do evi den te men te com al gu ma for te ra zão, fos sea da re mu ne ra ção, a de não per der con ta to com o jor nal ou de ex pe ri -men tar a im pres são que pro du zi ria; esse tra ba lho de eli mi na ção de tãoex ten so frag men to, o le i tor o ob ser va rá igual men te na se gun da par te doar ti go aqui pu bli ca do, da qual o es cri tor só apro ve i tou uns pou cos pa rá -gra fos, quan do não ape nas li nhas, que uniu às de ou tros, de an tes ou de -po is, como pode ser vis to às pá gi nas 34 e 35 do li vro. Nas se guin tes, 36e 37, en con tra re mos, en tão, os pa rá gra fos fi na is do ar ti go, mas tam bémin te i ra men te mo di fi ca dos.

Para tais mo di fi ca ções de ex pres são é que jul ga mos mu i to im -por tan te cha mar a aten ção do le i tor. Elas não di zem res pe i to ape nas àspa la vras e fra ses subs ti tu í das em gran de nú me ro, mas, prin ci pal men te, às trans for ma ções de es tru tu ra des sas fra ses, com subs ti tu i ções sis te má ti casde con jun ções e por pon to fi nal, eli mi na ções su má ri as de tra ves sões e pon -to-e-vír gu las, tra ba lho de que te mos exem plo bem sig ni fi ca ti vo nos oitoúl ti mos pa rá gra fos da se gun da par te, da qual fo ram eli mi na dos os doisfi na is, en con tran do-se os res tan tes às pá gi nas 36 e 37 do li vro. Den trees tes, o que se ini cia “Se gun do nu me ro sos tes te mu nhos...” evi den cia nastrans for ma ções que so freu, o es cri tor per ce ben do o exa ge ro dos seus tra ves -sões e pon to-e-vír gu las, eli mi nan do-os a tem po no li vro, com o que deumais for ça e cla re za ao pe río do que, ape sar da in ter ca la ção de um pon tofi nal no iní cio, con ser vou-se – co i sa dig na de ob ser va ção em Eu cli des –ao lon go de qua se vin te li nhas... As subs ti tu i ções de pa la vras nos le va ri amlon ge, mas, ra pi da men te, po de ría mos ob ser var “ina bor dá vel” por “in so -lú vel”, “en ca cho e i ra dos” por “cor ren to sos”, “re pul sa das” por “re pe li -das”, “ga lha das” por “es ga lhos”...

A ter ce i ra par te des ta sé rie de três pu bli ca ções que es ta mosexa mi nan do foi a que – num pulo da pá gi na 37 para a 56 no li vro,ten do de per me io pas sa gens be lís si mas, so bre as ca a tin gas, o ju a ze i ro, a

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tor men ta, a res sur re i ção da flo ra, o um bu ze i ro, as ma nhãs ser ta ne jas –,essa ter ce i ra par te co lo ca da as sim tão dis tan te da se gun da, foi a queEu cli des, ape nas unin do pa rá gra fos a mais não po der, de i xou qua se que in tac ta na pu bli ca ção de fi ni ti va.

Das três, é, re al men te, a mais cla ra, a mais pre ci sa, a de cu nhomais pes so al e a mais bela, por mais en tre cor ta da de po e sia, as sim: “ten -das de te tos cur vos bran que an do nos ares como qui lhas en ca lha das”,“in cên dio sur do das se cas”, “mol du ra gem de con tor nos ás pe ros”...

Pros se guin do pela or dem de data da pri me i ra pu bli ca ção, oude con clu são, pas sa re mos ao exa me do

RELATÓRIO SOBRE AS ILHAS DOS BÚZIOS E DA VITÓRIA

Tra ba lho téc ni co que Eu cli des con si de rou ape nas como tal, mu i toem bo ra, à mar gem des se ca rac te rís ti co es sen ci al, con te nha be los tre chos e nosre ve le o do mí nio de uma ter mi no lo gia que não é fre qüen te na sua pro sa.

Esse re la tó rio de tra ba lhos des ti na dos a es co lher lo cal ade qua doao es ta be le ci men to de uma co lô nia pe nal, foi pu bli ca do pela pri me i ra vezem 1903, como par te de ou tro do en tão che fe de po lí cia de São Pa u lo.Eu cli des pro va vel men te pre fe ris se o que a sua gran de za de es cri tor nãoper mi tiu: que ele se man ti ves se en ter ra do na que la peça bu ro crá ti ca. Em1954, en tre tan to, O Esta do de S. Pa u lo o pu bli cou no va men te, e,não con se guin do lo ca li zar a pu bli ca ção ori gi nal, foi aí que o co lhe mos,des sa trans cri ção que bem pode apre sen tar al gu ma fa lha.

A peça, lon ga, es cri ta sem ou tros cu i da dos que os in dis pen sá -ve is ao seu gê ne ro, pos si bi li ta uma sé rie não pe que na de ob ser va ções. Em pri me i ro lu gar é tra ba lho que o en ge nhe i ro es que ceu mas que não me re cia esse des ti no; é dig no dele, do seu mé to do, fun da do no con ta to di re to comas co i sas que o in te res sa vam, na cla re za e pre ci são de lin gua gem que odis tin guem. De po is, cons ti tui ou tra pro va do es crú pu lo, da me ti cu lo si da de com que exe cu ta va to dos os en car gos, os que se im pu nha a si mes mo ouos que re ce bia, indo a de ta lhes, es mi u çan do-os, des ta can do suas pró pri as

Ca nu dos e Ou tros Temas LXVII

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dú vi das, lan çan do ad ver tên ci as so bre pon tos con tro ver ti dos, su bli nhan dome ras su po si ções, avan çan do con ce i tos, e, ain da por cima, in sis tin do nane ces si da de de no vas ope ra ções des ti na das a cor ri gir pos sí ve is en ga nos...Foi mu i to além do que nor mal men te se exi gia da sua mis são o en ge nhe i roen car re ga do de dar uma no tí cia ba se a da em re co nhe ci men to li ge i ro. Mer -gu lhou na ques tão, dan do da re a li da de que fora in ves ti gar ra pi da men teum am plo es tu do acom pa nha do de plan tas e cro quis em que fi ca mosco nhe cen do por meio de ex tra or di ná rio po der de sín te se o qua dro fí si co do ter ri tó rio in ves ti ga do, a sua po si ção his tó ri ca, os li ne a men tos dos as pec tos ge o ló gi cos e bo tâ ni cos que o dis tin guem, as re la ções, ali, dos ho mens en tresi, des tes com as co i sas, des tas con si go mes mas...

A pró pria his tó ria da sua pri me i ra vi a gem àque las ilhas,como no-la con ta Vi cen te de Car va lho, que o acom pa nhou, é dig na deser co nhe ci da. Mas é uma ou tra his tó ria que en com pri da ria mu i to es tascon si de ra ções e que con ta mos no li vro que es ta mos fi na li zan do, so breEu cli des de po is de Os Ser tões.

Aqui de se ja mos ob ser var, além do que já dis se mos, que noRe la tó rio so bre os Bú zi os te mos nada me nos que Eu cli des fa lan do de as -sun to raro, qua se ine xis ten te na sua obra, o mar, as ilhas aban do na das, os ho mens do mar afe i tos às du ras pe nas do seu tra ba lho, de fen di dosnuma lin gua gem de mu i ta ad mi ra ção e afe to que con tém o ple no do mí nio da ter mi no lo gia nova para o es cri tor.

É in te res san te ver o ex-re pór ter, que fi ze ra ca la do di an te domar a tra ves sia en tre Rio e Ba hia, mos trar-se qua se ale gre ago ra, di an teda imen si dão das águas que iso la vam ilhas e ho mens ne ces si ta dos de de fe -sa, que exi gi am da ex pres são ter mos no vos, di fí ce is para quem sem pre seapre sen ta ra in di fe ren te di an te de les como eu fó ri co di an te da ter ra, dos seusaci den tes. Apre sen ta-se les to nos seus tra ba lhos de “le van ta men tos à vela”, ro de an do a ter ra em ca noa para ava li ar as dis tân ci as a re ló gio, aten to a“to das as li nhas vi vas do re le vo” como às en se a das, aos abri gos se gu ros,aos fun de a dou ros no ta dos nas pro xi mi da des dos “dois ilho tes” cu jos con -tor nos re vol tos, per ce bi dos “na al vu ra dos cor dões de ro chas des man te la das

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que os de bru am, lhes pre nun ci a vam pe ri go sos par céis e de sem bar que pe no -sís si mo”. Obser va “cos tões vol vi dos para o sul”, re gis tra “as lu fa das di fe -ren tes e a mo vi men ta ção va riá vel das va gas”, mos tra-se par tin do “com mar re man sa do e chão” mas dan do adi an te com o avo lu mar-se das on das “aolon go do de sa bri ga do cos tão de su es te”, no tan do so bre um ou tro, des pro te gi -do, que “as va gas in ves tem-no de cha pa, per pen di cu lar men te, ba ti das pe losven tos pon te i ros”, mas que, con tor ne a da a pon ta de les te, vê-se “um an co -ra dou ro que con tra põe às tem pes ta des pe ri go sas dos qua dran tes do sul toda a mas sa do mi nan te da mon ta nha”, não ten do, além dis so, “ne nhum es co -lho ou re ci fe en co ber to”, sen do pra ti cá vel em to dos os sen ti dos e ten do pro -fun di da de para na vi os de ca la do re gu lar... Fala em “dias de mu i to mar” e su bli nha os “no tá ve is efe i tos da for ça ero si va do mar, exer ci ta da por meiodas ma rés e dos ven tos so bre uma cos ta rí gi da, de pe dra”.

O Re la tó rio so bre os Bú zi os apre sen ta-nos, em suma, o en ge -nhe i ro e es cri tor nato com a sua in dis far çá vel que da para a Ge o gra fia, con -ti nu an do a nos dar dela li ções que an tes não ti ve mos, a tra çar a his tó riada que les lu ga res aban do na dos, de fen den do-os jun to aos go ver nos, so li ci tan -do para eles, quan do me nos, uma es co la, des cen do lon ge no seu as sun to,mas di zen do que ape nas for ne cia uma no tí cia... Sin gu lar no tí cia, que vaiao fun do do ob je to e trans bor da dos seus li mi tes...

O tra ba lho se guin te, um ar ti go in ti tu la do

VIAJANDO...

Pu bli ca do em se tem bro de 1902 em O Esta do de S. Pa u lo, saiu pos te ri or men te em ou tros jor na is e teve a sua re da ção de fi ni ti vain cor po ra da por Eu cli des ao Con tras tes e Con fron tos sob o tí tu lo de “Entre as Ru í nas”, úni ca re da ção vá li da, por tan to, para o au tor. Aquiestá em pri me i ro lu gar por cons ti tu ir, em con fron to com a re da ção de fi ni -ti va, que não fica a de ver às me lho res pá gi nas do es cri tor, ex ce len te fon tede es tu do, re la ti va men te ao ri gor com que ele emen da va os seus tex tos.Mas está tam bém pela im por tân cia de que se re ves te como pro vá vel veio

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ori gi ná rio de gran de par te do “Uru pês”, de Mon te i ro Lo ba to, no qualWil son Mar tins en xer ga, com a ra zão que não lhe fal ta, um pri me i roma ni fes to mo der nis ta.

Exa mi ne mos as duas pro po si ções, ain da que com a bre vi da deexi gi da por esta in tro du ção que mu i to tem ain da pela fren te.

“Entre as ru í nas”, ca pí tu lo do Con tras tes e Con fron tos,do qual este “Vi a jan do” é a pri me i ra re da ção in te i ra men te al te ra da, éad mi rá vel tra ça do do de clí nio do Vale do Pa ra í ba no lado pa u lis ta, emcon fron to com a ri que za tam bém ex tin ta no lado flu mi nen se. A lin gua -gem re pas sa da de me lan co lia, ter nu ra e crí ti ca acer ba em ter mos de be le za,po e sia, pre ci são, con tém to dos os tra ços da crua re a li da de de um mo men to,mas en vol ta nas bru mas do pas sa do de gran de zas, que se fora. Um dosseus ca rac te rís ti cos, a ob je ti vi da de, nos apre sen ta o Eu cli des que bem co -nhe ce mos, mas o ou tro, a me mó ria, nos dá dele uma vi são bem rara emtoda a ex ten são da sua obra.

Os cor tes a que o es cri tor sub me teu a pri me i ra re da ção fo ramex ten sos, fo ram su má ri os, a pon to de re du zir-lhe nada me nos de no ven ta li nhas, apro xi ma da men te uma quar ta par te do con jun to. Além de darfor ça ao que ha via de mu i to vago no tí tu lo pri mi ti vo, subs ti tu in do-o, al te -rou por com ple to a pon tu a ção, tro cou pa la vras e ex pres sões em pro fu são,cor tou qua se todo o fi nal, do qual fi cou com duas li nhas ape nas, pro va -vel men te por que per ce be ra que re pe tia em ris cos bem mar ca dos o que jáfi ca ra em tra ços le ves no cor po mes mo do seu tra ba lho. Embo ra fa zen -do-nos per der al guns bons frag men tos da sua pro sa, é ine gá vel que asu pres são deu a ga nhar ao tex to, mos tran do-nos como era afi a da a au to -crí ti ca do es cri tor que, pa re ce, não re viu pro vas da re da ção de fi ni ti va.

Qu an to a este es cri to ter sido fon te ou ins pi ra ção do ar ti go“Uru pês” de Mon te i ro Lo ba to, de gran de im por tân cia para a eclo são do mo vi men to mo der nis ta em São Pa u lo, de se ja mos lem brar que a in di ca ção é de Bri to Bro ca, dono, como ra ros, da vo lú pia do fato li te rá rio, ex ce len te co nhe ce dor da re gião des cri ta por Eu cli des e Lo ba to, cuja obra co nhe ciamu i to bem. Ei-lo em “Pon tos de Re fe rên cia”, indo além, a ver no con -

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fran gi men to, no so fri men to do pri me i ro, em com pa ra ção com o me nos pre zo, o es cár nio do ou tro, di fe ren ça ape nas apa ren te: “tudo in di ca que o re a lis mo de Lo ba to de ri vou di re ta men te do de Eu cli des, de quem o es cri tor pa u lis tase mos trou, des de cedo, o mais fer vo ro so ad mi ra dor. Qu e ro crer mes moque gran de par te de “Uru pês” saiu de “Entre as Ru í nas”. E que o fa -mo so ar ti go “Ve lha Pra ga”, que cons ti tui o iní cio da car re i ra do es cri torMon te i ro Lo ba to, não é se não a re pro du ção, com ou tras pa la vras, dapá gi na de Eu cli des, “Fa ze do res de De ser tos”.

O DISCURSO DE POSSE NO INSTITUTO HISTÓRICO EGEOGRÁFICO BRASILEIRO,

em no vem bro de 1903, por cer to foi tam bém pu bli ca do sem a re vi são deEu cli des. Pro va-o a pon tu a ção es tra nha, pre sen te, sem dú vi da, nas suaspri me i ras re da ções, mas que ele mo di fi ca va pos te ri or men te; ates tam-notam bém pro vá ve is au sên ci as de cer tas pa la vras, como pre sen ças de ou tras, tal vez por de sin te li gên cia do co pi a dor dos seus ori gi na is, em le tra de di fí -cil de ci fra ção. A peça aqui está como do cu men to de um dos ins tan tesmais per tur ba dos da sua vida, e mais in ca rac te rís ti cos da vida na ci o nal,am bos re fle ti dos nas alu sões a “uns res tos de mo ci da de”, que es pe ra vaapro ve i tar, às “aven tu ras de an ti go ca ça dor de mi ra gens”, das qua isde se ja va fi car li ber to, às “fór mu las inex pres si vas e ar ti fi ci o sas dos par ti -dos”, que ata ca va, ata can do “o fe u da lis mo anár qui co dos go ver na do resque as ele i ções não ele gem” e a “agi ta ção tu mul tuá ria de onde raro sedes ta ca o ca rá ter so ci al dos acon te ci men tos”.

Os Ser tões es ta va nos co men tá ri os ge ra is como o ma i orsu ces so edi to ri al da que les tem pos e, a bem di zer, o dis cur so ape nas re a -fir ma va, em pa la vras mais di re tas, num tra ba lho de re du zi da ex ten são,al gu mas das suas pas sa gens con tun den tes, que logo mais o au tor alar ga -ria em ou tros sen ti dos, na sé rie de co men tá ri os que da ria ori gem aoCon tras tes e Con fron tos. Apro ve i tan do bem aque les “res tos de mo -ci da de”, ex pres são só jus ti fi ca da pelo seu es ta do de es pí ri to no mo men to,

Ca nu dos e Ou tros Temas LXXI

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ele, con si de ran do-se “exi la do no tem po”, isto é, exi la do do que cha ma va“o pre sen te abo mi ná vel em que es ta mos”, e que ana li sa va com umas tin -tas de iro nia, ain da iria es cre ver tudo o que lhe da ria este li vro, tudo oque es cre veu e aban do nou, e mais À mar gem da His tó ria. O dis cur soé im por tan te por que, pe las ver da des que avan ça, se ria a pri me i ra de fi ni -ção ex plí ci ta dele como um exi la do no tem po, mas não só as sim no seutem po, po rém, no fu tu ro, no por vir... Con tém em em brião o que dis se raan tes e di ria mais am pla men te de po is, adi an tan do-se mu i to aos pro gra -mas de re for mas que sur gi ri am logo mais e des fe cha ri am ves ti dos em fra -ses de Rui, no da Ali an ça Li be ral, em 1930.

O POVOAMENTO E A NAVEGABILIDADE DO RIO PURUS

É a se gun da par te das no tas com ple men ta res ao Re la tó rio daCo mis são de Re co nhe ci men to do Alto Pu rus, cuja pri me i ra é in ti tu la da“Obser va ções so bre a His tó ria da Ge o gra fia do Pu rus”. Ambas são deau to ria ex clu si va de Eu cli des, de se jo so de im pri mir ma i or den si da deàque le Re la tó rio. A pró pria re da ção da par te des cri ti va dos tra ba lhos dero ti na das Co mis sões bra si le i ra e pe ru a na, for ma das para fi xa ção dosli mi tes en tre os dois pa í ses no Alto Ju ruá e no Alto Pu rus, as si na da por ele e pelo de le ga do pe ru a no em de zem bro de 1905, pa re ce ser tam bém desua la vra ex clu si va.

A in clu são acen tua for te men te a pre sen ça de Eu cli des, mas apar te re la ti va ao re la tó rio pro pri a men te dito bas ta ria para dar àque lapeça o cu nho de do cu men to exem plar no seu gê ne ro, que re al men te é, pela res pon sa bi li da de que re ve la na exe cu ção da ta re fa exi gen te de in te li gên -cia, de in for ma ção se gu ra so bre a Ama zô nia em ge ral, de re da ção cla ra e ob je ti va, co i sas de que o che fe da Co mis são bra si le i ra dis pu nha comopou cos, e de que deu exem plos a mais não po der. A luta de ses pe ra da nasu bi da, acam pan do às no i tes, des cam pan do pe las ma dru ga das, à mar gem de “um rio tão mo nó to no, tão sem pre o mes mo” a pon to de dar a ilu sãode uma vi a gem cir cu lar, ali está de fi ni da, des cri ta numa lin gua gem sol ta,

LXXII Eu cli des da Cunha

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que re ve la os mil e um as pec tos do que foi re a li za do: de ter mi na ção deco or de na das, le van ta men to hi dro grá fi co do Pu rus e seus aflu en tes, co le tade da dos so bre o cli ma da re gião, os seus ca rac te res fí si cos, os atri bu tosdas duas so ci e da des ori gi na is que ali re sis tem, a dos se rin gue i ros e a dosca u che i ros.

Com efe i to, não se ria mes mo pre ci so mais para a per fe i ção de um re la tó rio. To da via, Eu cli des, sem pre ri go ro so con si go mes mo e comos seus de se jos nun ca so fre a dos de pe ne trar o fun do das co i sas que oin te res sa vam, foi além, dan do o com ple men to, os dois ex ce len tes es tu dos que, com a par te ge ral, no-lo mos tram vol tan do do Ama zo nas comaque la ba ga gem im pres si o nan te de co nhe ci men tos da re gião que es pe ra -va trans for mar num gran de li vro com pac to como Os Ser tões, ba ga -gem de que cons ti tu em exem plos os vá ri os es tu dos que abran gem qua sea me ta de de À mar gem da His tó ria, ape nas ali nha va dos a pon toslar gos e as sim mes mo su fi ci en tes para se eri gi rem em re fe rên ci as in fa lí -ve is, em pon to de par ti da até, para os gran des au to res que se aven tu ra -ram na que las águas. É que de lá ele veio, tra zen do algo de que nãonos fa la ram, ou não nos fa la ram com a sua for ça, nem mes mo umHum boldt, um Wal la ce, um Agas siz, um Chand less, um Sil va Cou ti -nho ou um Ta va res Bas tos.

As pá gi nas in clu í das na que le fa mo so re la tó rio, e que es ta mosin clu in do aqui, sim ples men te ex po si ti vas, cum prem a fun ção com ple men -tar que o es cri tor lhes atri bu iu, não nos dan do, por tan to, em ter mos depro sa de alto ní vel, a me di da de Eu cli des fa lan do da Ama zô nia, comoacon te ce com aque las “con si de ra ções ge ra is” que abrem o seu li vro já re fe -ri do, e as pá gi nas sin gu la res so bre “Os Ca u che i ros”, o “Ju das-Ashve -rus”. O re la tó rio so bre o Pu rus em sua to ta li da de é, as sim, ex ce len te in -tro du ção ao que de me lhor o es cri tor nos deu so bre a Ama zô nia, é ex po -si ção sin ge la, e di re ta, do que seus olhos vi ram, evi den ci an do, ain da,como ele foi para lá bem in for ma do. E é tam bém um hino à atu a ção,na que las ca lhas re ten to ras do Di lú vio, de três ho mens tão di fe ren tes emtudo, um in glês cul to, Chand less, um ser ta ne jo de sas som bra do, Ma nu el

Ca nu dos e Ou tros Temas LXXIII

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Urba no, e um fun da dor de ci da des, do ta do do mes mo es pí ri to aven tu ro so e des bra va dor, Ma nu el Ro dri gues Pe re i ra La bre.

Dos le van ta men tos efe tu a dos por Eu cli des, re ve lan do, numadis tân cia de ape nas 40 anos, ex tre ma di va ga ção do rio, Ro que te Pin todis se ser um dos mais im por tan tes fa tos ge o ló gi cos ad qui ri dos pela ciên cia bra si le i ra.

O tre cho des tas pá gi nas foi in clu í do aqui por que, pu bli ca do na Re vis ta Ame ri ca na um ano de po is da mor te do es cri tor, apre sen taal gu mas pe que nas dis cre pân ci as com a pu bli ca ção do re la tó rio in te i ro por par te da Su pe rin ten dên cia do Pla no de Va lo ri za ção Eco nô mi ca daAma zô nia há al guns anos.

ÚLTIMA VISITA

Pu bli ca do no dia se guin te ao da mor te do au tor de D. Cas mur ro,é Eu cli des fa lan do so bre Ma cha do de Assis... O ar ti go, sem pre re fe ri domas di fi cil men te vis to pela ma i o ria dos le i to res, por que até ago ra per di doem pu bli ca ções ina ces sí ve is, dá bem a me di da da com pre en são do au tor deOs Ser tões pela “in fi ni ta de li ca de za de pen sar, de sen tir e de agir” da -que le que, como ele pró prio, foi uma “for ta le za”, pro va vel men te de ou tros ma te ri a is, cer ta men te er gui da em ou tra re gião. Sabe-se que Ma cha do,como sím bo lo de ho nes ti da de in te lec tu al, foi ad mi ra ção cons tan te de Eu cli -des e que este foi para a Aca de mia la de a do por ele e por Rio Bran co.

O ar ti go que aqui re pro du zi mos, re ve lan do em di mi nu taex ten são o seu en ten di men to do sen ti do da obra de Ma cha do quan doain da, e na tu ral men te, não se ria pro fun da a sua bi bli o gra fia, é tam bémex ce len te de po i men to so bre a mor te do gran de cri a dor, a que Eu cli desas sis tiu, de que fala no tra ba lho, à qual, por mais um lan ce de rara be le za – co i sa cu ri o sa –, li gou o seu nome de fi ni ti va men te: Au gus to Me yer noscon ta que, “quan do se ve la va o cor po no Si lo geu, um po pu lar pro cu rouEu cli des da Cu nha e lhe fez en tre ga de uma ban de ja de flo res na tu ra isen vi a da para Ma cha do de Assis”, acres cen tan do que o des co nhe ci do

LXXIV Eu cli des da Cunha

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ne ga ra iden ti fi car-se, di zen do ape nas que re ce be ra a mis são de um moçono Lar go de São Fran cis co... Eu cli des, sem pre Eu cli des – Ma cha do pela ho nes ti da de e pela gran de za, não Ma cha do pe las pre o cu pa ções in te lec tu a is –, sem pre ele em po si ção des ta ca da nes ses epi só di os ad mi rá ve is de que eracen tro aque le ou tro ar tis ta, como ele pró prio, por ra zões di ver sas, e atéin ver sas, sin gu lar em nos sas le tras...

NUMA VOLTA DO PASSADO

É in vo ca ção, em 1903, numa vi ven da de be i ra de es tra da que ser vi ra de pou so ao en ge nhe i ro em ati vi da de no Vale do Pa ra í ba, do que ali se pas sa ra numa no i te qual quer de se tem bro de 1822, se gun do o re la tosin ge lo do seu qua se cen te ná rio hos pe de i ro. O es cri to, de cin co anos de po is,com põe-se de duas par tes, uma de me mó ria de vi a gem em lom bo de bur ropor ser ras e va les de ca mi nhos aban do na dos, ou tra de trans po si ção da re a -li da de que o vi a jan te fi ca ra co nhe cen do.

Empa re lha-se com “Entre as Ru í nas” no qua dro ge o grá fi coque des cre ve como na be le za de que se re ves te, mas so bres sa in do pelopo der de fan ta sia do au tor, e até pelo tom de “sus pen se” em que estecon se gue man ter o por me nor de epi só dio im por tan te da nos sa his tó ria.

E – por que não? – pelo em ba ra ço em que nos de i xa di an teda li ção de que, na dú vi da en tre dois ad je ti vos, o me lhor será aban do -ná-los, fi can do só com o subs tan ti vo... Pa re ce que aqui o con jun to per de -ria com a au sên cia de de ta lhes, até de pa la vras, mí ni mos. O mes mo epi -só dio, fo ca li za do em “Da Inde pen dên cia à Re pú bli ca”, em sua ge ne ra li -da de, com ex tre ma eco no mia de pa la vras, não acres cen ta a nós mais doque este, nem fi ca rá como este em nos sa me mó ria. O es cri tor aqui seapre sen ta li ber to do po li ci a men to a que sem pre pro cu rou sub me ter a suaima gi na ção rica e po de ro sa, e sem cor tar lar go do lado dos ad je ti vos... Éape nas uma ob ser va ção, jun to da qual lem bra mos o que fi cou dito no nos soli vro so bre Os Ser tões , no sen ti do de que Eu cli des pa gou tri bu to àima gi na ção cri a do ra, e não ne gou, em cer ta oca sião, o de se jo de vir

Ca nu dos e Ou tros Temas LXXV

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um dia a es cre ver um ro man ce, que te ria seu pon to de apo io no Rio de Ja ne i ro do sé cu lo XVI...

O re la to – de ta lhe de mo men to cul mi nan te na vida do jo vemrei va ro nil – é des tes que, uma vez li dos, ja ma is nos aban do na rão.

UM ATLAS DO BRASIL

O úl ti mo dos iné di tos em li vro ora co men ta dos é tam bém oúl ti mo ar ti go es cri to por Eu cli des, o úl ti mo dos seus es cri tos, que ele se querche gou a ter mi nar, de i xan do-o para ir ao en con tro da mor te, com a pa la -vra “des cri ção”, pro va vel men te, par ti da ao meio: des cri-. Como sem preacon te cia, vol ta ria a lê-lo, emen dan do-o aqui e ali, cor tan do ou acres cen -tan do co i sas. Aqui está como foi en con tra do dias de po is en tre seus pa péis e pu bli ca do pelo Jor nal do Co mér cio, em 29 de agos to de 1909.

Não sin gu la ri za este tra ba lho ape nas o fato de ter sido o úl ti mo do es cri tor, ou o tra ço de cu ri o si da de ou mis té rio que al guns po de rãoen xer gar na que la pa la vra ina ca ba da. Sin gu la ri zam-no o fato de aí elees tar ex pon do, com opor tu ni da de, seus ex cep ci o na is co nhe ci men tos de his -tó ria da Ge o gra fia, es pe ci al men te a bra si le i ra, e, prin ci pal men te, o de,num úl ti mo ar ti go, ter-se vol ta do exa ta men te para um ba lan ço do queaté en tão se fi ze ra no Bra sil com a dis ci pli na que o fas ci na va.

Fas ci na va. É o ter mo. E se ria pre ci so re pe ti-lo? A Ge o gra fiafí si ca e a hu ma na es tão tam bém na base da sua obra de es cri tor queama va, sem ido la tria, a ciên cia; que dava a esta o tra ta men to mais de li -ca do, dan do, sem pre que fos se o caso, a no ção ci en tí fi ca da im pres sãoar tís ti ca que ti ve ra an tes... A His tó ria mes ma, que no seu con ce i toen glo ba va as ciên ci as so ci a is, e, mais ain da, num todo que pa re cia con ter a gama in fi ni ta dos pro ble mas hu ma nos, a His tó ria mes ma ele ra ra men -te a tra tou sem as suas ra zões ge o grá fi cas, e as ou tras, como se ti ves sepre sen te a sa be do ria de Ala in que, a pro pó si to das ex pli ca ções “his tó ri cas” so bre os te lha dos pon ti a gu dos das ca sas da Nor man dia, lem bra va asfo lhas da tre pa de i ra, fi lhas de um mes mo ar bus to mas de for ma tos di ver sos

LXXVI Eu cli des da Cunha

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ao alto e em ba i xo, por ra zões im pos tas pelo lu gar que ocu pam, as se ve -ran do: “L’historien dit: nous avons des to its po in tus par ce que nos an cê -tres en ava i ent; mais le géo grap he dit: nous avons des to its po in tus par cequ’il ple ut be a u coup en Nor man die.”

Mas é tão lí ci to ima gi ná-lo con si de ran do as sim o as sun to,como se ria ilí ci to vê-lo fa zen do sua, ape sar de mu i to fina, a con clu são deAla in: “Fer mons no tre li vre d’histoire, et al lons voir des fe u il les de li er -re”... Não o fa ria por que a “sua” his tó ria ele a pra ti ca va em fun ção deto dos os me i os ade qua dos de que dis pu nha a sua imen sa cul tu ra, que semo vi men ta va em to dos os sen ti dos, que se fir ma va na base só li da de queum dos com po nen tes era pre ci sa men te a Ge o gra fia, ca paz de “pen ser lemon de réel au lieu de son fan tô me”, e que, as sim, tam bém Va léry so bre -pu nha à his tó ria con ven ci o nal, fe i ta de da tas exa tas, fal sas lem bran ças efal sas pa i xões.

Estas ob ser va ções a pro pó si to do ex cep ci o nal des ta que queEu cli des sem pre deu à Ge o gra fia tor nam evi den te a im por tân cia do ar ti -go que en cer ra esta par te, e que é o úl ti mo de to dos os que es cre veu, quenão che gou a ter mi nar, o úni co dos seus, tal vez, que con tém, as sim jun -tas, ob ser va ções dis per sas na sua obra a res pe i to de his tó ria da Ge o gra -fia, da qual, re la ti va men te à re gião do Pu rus, ti nha nos dado an tes umca pí tu lo in te i ro do re la tó rio ao qual já nos re fe ri mos.

Este ba lan ço que o es cri tor apre sen tou em 1909 dá-nos bem a me di da das suas di fi cul da des para tra çar o imen so pa i nel de Os Ser tõesno en tres sé cu lo com a cor re ção exem plar no mé to do e sin gu lar nas pers -pec ti vas que abriu e que, como já o de mons tra mos em ou tra par te, nãotem sido, tan to quan to pode pa re cer, si len ci a da por es pe ci a lis tas den tre os que mais se re co men dam no se tor da Ge o gra fia, como nos de ma is ra mosde que tra tou. Nes tes úl ti mos anos a Ge o gra fia vem se en ri que cen doex tra or di na ri a men te no Bra sil. Mas, em 1909, quan do Eu cli des játi nha dado mu i tís si mo de si mes mo para ela, com re la ção a este país que é qua se um con ti nen te, ele po dia di zer: “Di la ta-se no des co nhe ci do. Estáem ple na ida de he rói ca das ex plo ra ções ou lon gín quas ba ti das no de ser to.”

Ca nu dos e Ou tros Temas LXXVII

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E re cla mar “as re la ções en tre a cons ti tu i ção dos ter re nos e as for mas to po -grá fi cas que dão à ge o gra fia mo der na nou tros pa í ses o ca rá ter de du ti vo deciên cia in te i ra men te or ga ni za da.” E sa ti ri zar qua se, como fez mu i to emPeru ver sus Bo lí via, com os pre con ce i tos dos que “per tur ba ram por maisde um sé cu lo toda a ge o gra fia eu ro péia”. E re co nhe cer, cri ti can do os de se josde clas si fi ca ção de mon ta nhas por par te dos au to res em exa me, que “du ran te lar go tem po as nos sas idéi as a este res pe i to se rão for ça da men te pro vi só ri as”...

∗ ∗ ∗Pelo que ve mos, os es cri tos aqui re u ni dos não me re ci am o

des ti no de ig no ra dos a que o ri gor de Eu cli des os con de nou, sem queti ves se de i xa do pro vas de que as sim os de se ja va para sem pre. Re fe ri -mo-nos, é ób vio, aos que só co nhe ce mos em re da ção úni ca. De vi da men tere vis tos, al guns até sem essa re vi são, não des me re ce ri am as pá gi nas doli vro em que ti ves sem sido in clu í dos.

Em es sên cia, é cer to, não acres cen tam algo de novo à obra ela bo -ra da no de cor rer de pou co mais de dez anos de ati vi da de. Fun da men tal -men te fa lan do, não; mas em ter mos de de ta lhe, de uma vis ta ou ex pres sãonova so bre pon tos im por tan tes des sa obra, em ter mos de es cla re ci men toso bre as ati vi da des do es cri tor, es tes tra ba lhos aqui re u ni dos va lem, eva lem enor me men te, sob um sem-nú me ro de as pec tos. Va lem pelo mes momo ti vo que, ape sar de Os Ser tões, man tém des per to o nos so in te res se emtor no das re por ta gens de guer ra; va lem por to das as ra zões es pe cí fi cas decada um, que já ali nha mos nos co men tá ri os que es ta mos ul ti man do, e quevão do ca rá ter de pi o ne i ris mo in te lec tu al que ca rac te ri za o nos so gran de“co me dor” de ho ri zon tes, ao de do mí nio da ex pres são, do ri gor para comela, vis to nos que emen dou, prin ci pal men te, al guns ex ce len tes para con fron tode tex tos e, pelo me nos um – Numa Vol ta do Pas sa do – para nos dar da sua ima gi na ção rica e po de ro sa um dos exem plos mais no tá ve is.

Rio, 16 de agos to de 1965.

OLÍMPIO DE SOUSA ANDRADE

LXXVIII Eu cli des da Cunha

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Di an te das pro vas fi na is, de se ja mos es cla re cer que era nos so pro pó si to acres cen tar aosiné di tos em li vro, se le ci o na dos den tre mu i tos, pelo me nos mais um – Entre os Se rin ga is –, pá gi nas

ad mi rá ve is como de fi ni ção de mu i ta co i sa da Ama zô nia. Não o fi ze mos ago ra por que só con se gui mosa pu bli ca ção ori gi nal, não exis ten te na Bi bli o te ca Na ci o nal, quan do este li vro já se en con tra va pa gi na -

do. E de se ja mos des ta car a pre sen ça, aqui, do Prof. Der mal de Ca mar go Mon frê, in di ca do pe los edi -

to res para o con fron to das pri me i ras pro vas com as pu bli ca ções ori gi na is dos tex tos d e Eu cli des, já que não é pos sí vel fazê-lo com os seus pró pri os ma nus cri tos. Tra ba lho in dis pen sá vel, mas de mo ra do, para

o qual, não dis pon do de tem po, aler ta mos os edi to res. Indis pen sá vel, por exem plo, por que no tex to da

edi ção an te ri or das re por ta gens nós mes mos, em an ti gas le i tu ras com ou tro ob je ti vo, já en con trá ra mos

dis cor dân ci as com o tex to do jor nal onde sa í ram pela pri me i ra vez, o que cons ta da 1 ª edi ção do nos soli vro so bre Os Ser tões. Fa zen do aque le con fron to, o Prof. Der mal de Ca mar go Monfrê, além de des -

co brir a car ta de 6 de se tem bro, não cons tan te da edi ção an te ri or, de li be rou re di gir umas tan tas cha -

ma das, qua se sem pre in dis pen sá ve is, aos tex tos que exa mi na va.

São suas, por tan to, as re fe ri das cha ma das (N. do R.) que o cri té rio da re pa gi na ção faz

apa re cer às ve zes jun to a ou tras (N. do Au tor), ob vi a men te de Eu cli des.O. S. A.

Ca nu dos e Ou tros Temas LXXIX

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Os 43 Anos de Eu cli des

1866Ja ne i ro, 20

Nas ci men to em San ta Rita do Rio Ne gro, Mu ni cí pio de Can ta -ga lo, Esta do do Rio.

1869 Mor te de sua mãe, Eu dó xia Mo re i ra da Cu nha.1869–1879 Em Te re só po lis, com uma tia, Ro sin da; em São Fi dé lis, com ou tra

tia, La u ra (71–76); na Ba hia, com os avós pa ter nos (77–78); no Rio, com o tio Antô nio Pi men ta da Cu nha. Pri me i ros es tu -dos: Co lé gio Cal de i ra, (São Fi dé lis – 74), co lé gio na Ba hia, eCo lé gio Anglo-Ame ri ca no (Rio).

1880–1884 Pros se gui men to, no Rio, dos es tu dos ini ci a is: Co lé gi os Vi tó rioda Cos ta e Me ne ses Vi e i ra (80-82); Co lé gio Aqui no onde, nojor nal zi nho O De mo cra ta, im pri miu-se o seu pri me i ro ar ti go.

1884–1885 Exa mes e ma trí cu la na Po li téc ni ca, onde só cur sou um ano.1886 Na Esco la Mi li tar, ca de te 308.1888 Fiel à pa la vra em pe nha da, à sua co ra gem, às suas pa i xões, pro -

vo ca in ci den te di an te do mi nis tro da Gu er ra, de i xan do cair o sa -bre, sen do pre so e ex clu í do do Exér ci to. Con fes san do-se pro pa -gan dis ta re pu bli ca no, vai ser sub me ti do a Con se lho de Gu er ra,mas é per do a do pelo pró prio Impe ra dor, se guin do para São Pa u lo onde, em O Esta do, ini cia sé rie de ar ti gos de “re van che”.

1889 Re gres so ao Rio. No vos exa mes para a Po li téc ni ca que, ou travez, não cur sou. Pro cla ma ção da Re pú bli ca. Re ver são ao Exér -ci to, pro mo vi do a al fe res-alu no.

1890 Ma trí cu la na Esco la Su pe ri or de Gu er ra. Ter mi na o cur so deArti lha ria, en quan to, meio des con ten te com a Re pú bli ca, es cre ve no jor nal De mo cra cia. É pro mo vi do a 2º-te nen te. Casa-se.

1891–1892 Ter mi na na Esco la Su pe ri or de Gu er ra os cur sos de Esta -do-Ma i or e Enge nha ria Mi li tar (91) e de Ba cha rel em Ma te -má ti ca, Ciên ci as Fí si cas e Na tu ra is, quan do é pro mo vi do a1º-te nen te (92). Nes te mes mo ano es cre ve ou tra sé rie de ar ti gospara O Esta do de S. Pa u lo, de fen den do a si tu a ção cri a dapelo con tra gol pe de Flo ri a no, no qual ti ve ra a sua par ti ci pa ção.É co ad ju van te de en si no na Esco la Mi li tar.

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1893 Flo ri a no ofe re ce-lhe po si ções, mas ele só de se ja o que a lei pre vê para mi li ta res do seu pos to... Enge nhe i ro pra ti can te na E. F. C. B., de -po is na Di re to ria de Obras Mi li ta res. Re vol ta da Esqua dra. AEsfin ge.

1894 Car tas à Ga ze ta de No tí ci as con tra um se na dor, em de fe sade pre sos po lí ti cos, cri an do em ba ra ços para Flo ri a no, que oman dou para Cam pa nha, Mi nas Ge ra is. No “exí lio”, aos 28anos de ida de, viu ina u gu rar-se na ci da de uma pra ça com o seunome, co me çou a de di car-se se ri a men te aos es tu dos bra si le i ros eàs te o ri as so ci a lis tas. Assim de ci di do a mu dar o cur so da suavida, vai, de li cen ça, a São Pa u lo: ten ta ti va de aban do nar emde fi ni ti vo a car re i ra das ar mas e ini ci ar-se na En ge nha ria Ci vil.

1895 De i xa Cam pa nha, indo para a fa zen di nha do pai, em Des cal -va do, São Pa u lo. Ofi ci al men te agre ga do ao cor po do Esta -do-Ma i or, tra ba lha em ca rá ter pre cá rio como en ge nhe i ro daSu pe rin ten dên cia de Obras de São Pa u lo, es tu dan do e fis ca li -zan do obras no in te ri or.

1896 Sa í da de fi ni ti va do Exér ci to. No me a ção para a Su pe rin ten dên -cia de Obras e pros se gui men to das ati vi da des aí. Re la tó rio so bre ex plo ra ção de um tre cho do rio Gran de.

1897 Ou tra vez na re da ção de O Esta do: ati vi da des in ter nas e co -la bo ra ções as si na das, den tre as qua is so bres sa em as re la ti vas à dis tri bu i ção dos ve ge ta is, a Anchi e ta e os dois ar ti gos “ANos sa Ven déia”, re ve lan do ex ce len tes co nhe ci men tos dos as -sun tos bra si le i ros e de ter mi nan do a ida a Ca nu dos como cor -res pon den te de guer ra. Vai em prin cí pi os de agos to, vol ta emfins de ou tu bro, para a fa zen di nha do pai, co me çan do a es cre -ver Os Ser tões.

1898–1901 Pu bli ca o Excer to de um Li vro Iné di to (1–98).Muda-se para São José do Rio Par do para re cons tru ir umagran de pon te, a ser vi ço da Su pe rin ten dên cia (3–98); aí cor re ramos três anos mais cal mos e pro ve i to sos de sua vida, du ran te osqua is es cre veu a qua se to ta li da de de Os Ser tões e exe cu toucom ab so lu ta cor re ção a obra de en ge nha ria. Saiu da ci da de emmaio para São Car los do Pi nhal, com pro mo ção, sen do, emse gui da, trans fe ri do para o Dis tri to de Gu a ra tin gue tá, comre si dên cia em Lo re na.

LXXXII Eu cli des da Cunha

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1902 Re vi são de pro vas e lan ça men to de Os Ser tões (12–1902).Re la tó rio so bre as ilhas dos Bú zi os e da Vi tó ria, após re co nhe -ci men tos in loco, tão tra ba lho sos como as con tí nu as vi a genspe las ser ras e pe los va les da re gião do Pa ra í ba, na mes ma épo ca, e a cujo res pe i to pu bli ca um ar ti go fa mo so com o tí tu lo “Vi a -jan do”, mais tar de mu da do para “Entre as Ru í nas”.

1903 Acla ma do mem bro do Insti tu to His tó ri co e Ge o grá fi co Bra si le i -ro e em pos sa do com um dis cur so co ra jo so que pro vo cou mu i tosru mo res. Ele i to para a ca de i ra 7 da Aca de mia Bra si le i ra deLe tras, da qual só to ma ria pos se 3 anos de po is. Com ven ci men -tos re du zi dos, so li ci ta de mis são da Su pe rin ten dên cia de Obras.

1904 Enge nhe i ro da Co mis são de Sa ne a men to de San tos, com re si dên ciano Gu a ru já. De sem pre ga do em vir tu de de in ci den te com a che fia.Escre ve para a im pren sa a ma i or par te dos ar ti gos que vi ri am a for -mar o Con tras tes e Con fron tos. Che fe da Co mis são de Re co nhe -ci men to do Alto Pu rus, par te para Ma na us a ser vi ço do Ita ma ra ti.

1905 Todo o ano no Ama zo nas, em aven tu ras no des co nhe ci do.1906 No Rio, adi do ao ga bi ne te do Ba rão do Rio Bran co. Pu bli ca ção

do Re la tó rio so bre o Alto Pu rus. Pos se na Aca de mia. Pu bli ca -ção do Con tras tes e Con fron tos.

1907 Arti gos no Jor nal do Co mér cio, pu bli ca dos em li vro no mes -mo ano: Peru ver sus Bo lí via, Con fe rên cia “Cas tro Alves eseu tem po” no Cen tro Aca dê mi co 11 de Agos to.

1908 Con ti nua no Ita ma ra ti re ti fi can do, es bo çan do, pro je tan do ma -pas em ge ral, vá ri os re gi o na is do Pu rus, do Ju ruá, do Acre, daLa goa Mi rim. Envol vi do num in ci den te di plo má ti co por Ze bal -los, des faz in tri gas pu bli can do to das as car tas que des te re ce beu, exi gin do-lhe a pu bli ca ção das suas.

1909 Con cur so de Ló gi ca. No me a ção. Pri me i ras au las. Mor to quan dojá ha via re vis to as pro vas de À mar gem da His tó ria , massem ter ter mi na do o seu úl ti mo ar ti go para o Jor nal do Co -mér cio: “Um Atlas do Bra sil”. Mor reu a 15 de agos to.

Esta cro no lo gia ten ta ser mais com ple ta e exa ta que as an te ri o -res, in clu in do os da dos no vos cons tan tes da His tó ria e Inter pre ta ção de“Os Ser tões”, bem como os que apa re ce rão no novo vo lu me, que es ta moscon clu in do, so bre os ou tros li vros de Eu cli des. – O. S. A.

Ca nu dos e Ou tros Temas LXXXIII

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No tas do Re vi sor

A) Não ten do sido pos sí vel lo ca li zar os ori gi na is do au tor, aoes ta be le cer o tex to para a pre sen te edi ção, de i xa mos de su pri mir os re al -ces, por meio de gri fo e as pas, das pri me i ras edi ções, se bem que exis -tam gran des va ri a ções nes se as pec to, sem que se pos sa de ter mi nar atéonde iria a res pon sa bi li da de de Eu cli des da Cu nha, dos re vi so res oudos ti pó gra fos na su bli nha, mu i tas ve zes in jus ti fi cá vel, de inú me rasex pres sões.

B) A gran de ma i o ria dos to pô ni mos apa re ce, em to das asobras de Eu cli des, com par tes abre vi a das, as sim: S. Pa u lo, R. de Ja ne i ro,etc. Não nos pre o cu pa mos em al te rá-los, a me nos que hou ves se di fi cul -da des de iden ti fi ca ção. Qu an to à gra fia, con ser va mos a tra di ci o nal sem -pre que, mo der na men te, es te ja con sa gra da pelo uso uni for me; caso con -trá rio, pre fe ri mos a pre co ni za da pela lin güís ti ca.

Der mal de Ca mar go Mon frê

Trans fe rin do de pá gi na e su pri min do ex pli ca ções, man te nhoos agra de ci men tos de O. S. A. a D. Noê mia, sua es po sa; mais a JoelBi ca lho Tos tes, aos fun ci o ná ri os da Se ção de Mi cro fil mes da Bi bli o te caNa ci o nal, ao Emba i xa dor Ma u rí cio Na bu co, ao Pro fes sor Ma nu el Car -do so e Ale xan dre Eu lá lio, que con tri bu í ram na com pi la ção do li vro para a pri me i ra edi ção.

C. G.

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CANUDOS

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A nos sa Ven déia I1

14 de mar ço de 1897O Esta do de S. Pa u lo – São Pa u lo

ORELATÓRIO APRESENTADO em 1888 pelo Sr. José C. deCar va lho so bre o trans por te do me te o ri to de Ben de gó, os tra ba lhos doilus tre Pro fes sor Ca mi nhoá e al gu mas ob ser va ções de Mar ti us e Sa int-Hi la i re fa zem com que não seja de todo des co nhe ci da a re gião do ex tre mo nor -te da Ba hia de ter mi na da pelo vale do Ira pi ran ga ou Vaza-Bar ris, rio emcuja mar gem se ale van ta a po vo a ção que os úl ti mos acon te ci men tos tor -na ram his tó ri ca – Ca nu dos.

Per ten cen te ao sis te ma hu ro ni a no ou an tes eri gin do-se comoum ter re no pri mor di al in de fi ni do en tre aque le sis te ma e o la u ren ci a no,pela ocor rên cia si mul tâ nea de quart zi tos e gna is ses gra ní ti cos ca rac te rís -ti cos, o solo da que las pa ra gens, are no so e es té ril, re ves ti do, so bre tu donas épo cas de seca, de ve ge ta ção es cas sa e de pri mi da, é, tal vez mais do

1 O Esta do de S. Pa u lo pu bli cou, em suas edi ções de 14 de mar ço e 17 de ju lho de1897, os dois ar ti gos aqui re pro du zi dos – págs. 45 a 55 –, am bos sob o tí tu lo ANos sa Ven déa. Enten de mos que a for ma por tu gue sa de ve ra ser Van déia; con tu do,man ti ve mos a mais usa da e ele i ta pelo or ga ni za dor des ta edi ção. N. do R.

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que a hor da dos fa na ti za dos se qua zes de Antô nio Con se lhe i ro, o maissé rio ini mi go das for ças re pu bli ca nas.

Embo ra com a re gu la ri da de que lhes é ine ren te pas sem so breele im preg na das de umi da de ad qui ri da em lon ga tra ves sia do Atlân ti co,na di re ção de no ro es te, os ven tos alí si os – a ação be né fi ca des tes é emgran de par te des tru í da, si mul ta ne a men te, pela dis po si ção to po grá fi ca epela es tru tu ra ge og nós ti ca da re gião.

Assim é que fal ta a esta, tal vez, cor ren do em di re ção pa ra le laà cos ta, uma alta ca de ia de mon ta nhas – des ti na das na fí si ca do glo bo ain di vi du a li zar os cli mas, se gun do a ex pres são sem pre ele gan te de Hum -boldt – na qual re fle tin do as cen dam aque las cor ren tes às al tas re giõesonde um brus co aba i xa men to de tem pe ra tu ra, de ter mi na do pela di la ta -ção num meio ra re fe i to, ori gi ne a con den sa ção dos va po res e a chu va.

A ob ser va ção do re le vo da nos sa cos ta jus ti fi ca em gran depar te esta hi pó te se des pre ten si o sa men te for mu la da. De fato, ter mi na daa ma jes to sa es car pa ori en tal do pla nal to cen tral do Bra sil, a ser ra doMar, que de sa pa re ce na Ba hia, di fe ren ci a da em ser ras se cun dá ri as, acen -tua-se de modo no tá vel para o nor te a de pres são ge ral do solo de on du -la ções su a ves, pa ten te an do num ou nou tro pon to ape nas, sem con ti nu i da -de, as mas sas ele va das do in te ri or.

Por ou tro lado, a es tru tu ra ge og nós ti ca da que la re gião com pos ta em gran de par te de ro chas do ta das de alto po der ab sor ven te para o ca lor,de ter mi na na tu ral men te a as cen são qua se per sis ten te de gran des co lu nas de ar, ar den tís si mas, que dis si pam os va po res ou afas tam as nu vens queen con tram.

Da de cor rên cia de tais fa tos, acre di ta mo-lo, re sul ta pro va -vel men te a ca u sa pre do mi nan te das se cas que pe ri o di ca men te as so lamaque las pa ra gens, es ten den do-se com ma i or in ten si da de aos Es ta dosli mí tro fes do in te ri or.

Daí a ari dez ca rac te rís ti ca, em cer tos me ses, dos ser tões doNor te.

Nes sas qua dras a rel va re que i ma da, por meio da qual, comoúni ca ve ge ta ção re sis ten te, co le i am cac tos fla ge li for mes rep tan tes e ás pe ros, dá aos cam pos, re ves ti dos de uma cor par da in ten sa, a nota lú gu bre damá xi ma de so la ção; o solo fen de-se pro fun da men te, como se su por tas se

4 Eu cli des da Cunha

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a vi bra ção in te ri or de um ter re mo to; as ár vo res des nu dam-se, des pi dasdas fo lha gens, com ex ce ção do ju a ze i ro de fo lhas elíp ti cas e co riá ce as – e os ga lhos que mor re ram fi cam por tal modo se cos que, em al gu mases pé ci es, bas ta o atri to de um so bre o ou tro para pro du zir-se o fogo e oin cên dio sub se qüen te de gran des áre as.

E so bre as cha pa das de ser tas e de so la das ale van tam-se qua seque ex clu si va men te os man da ca rus (ce re us) si len tes e ma jes to sos; ár vo respro vi den ci a is em cu jos ga lhos e ra í zes ar ma ze nam-se os úl ti mos re cur sospara a sa tis fa ção da sede e da fome ao vi a jan te re tar da tá rio – cac tá ce asgi gan tes que, re ves ti das de gran des fru tos de um ver me lho ru ti lan te esub di vi din do-se com ad mi rá vel si me tria em ga lhos as cen den tes, igual -men te afas ta dos, pa ten te i am a con for ma ção tí pi ca e bi zar ra de gran descan de la bros fir ma dos so bre o solo... “Então”, diz Sa int-Hi la i re, “umca lor ir ri tan te aca bru nha o vi a jan te, uma po e i ra in cô mo da ale van ta-seso bre seus pas sos e al gu mas ve zes mes mo não se en con tra água parami ti gar a sede. Há toda a tris te za de nos sos in ver nos com um céu bri -lhan te e os ca lo res do ve rão.”

Sem tran si ção apre ciá vel, en tre tan to, a es tas se cas in ten sas ene fas tas, su ce dem, brus ca men te às ve zes, as qua dras chu vo sas e be né fi cas:im pe tu o sas cor ren tes ro lam so bre o le i to de rios que dias an tes ain dacom ple ta men te se cos da vam idéia de lar gas es tra das tor tu o sas, las tra dasde quart zo frag men ta do e grés du rís si mos, con du zin do a lu ga res re mo tosdo ser tão.

E so bre os cam pos, em cujo solo de pa u pe ra do vin ga vam ape -nas bro mé li as re sis ten tes e cac tos es gui os e des nu dos, flo res cem o im bu -ze i ro (Spon dia tu be ro sa) de sa bo ro so fru to e fo lhas dis pos tas em pal mas; aju re ma (acácia) pre di le ta dos ca bo clos e os mu run gus in te res san tís si mos em cu jos ra mos tos ta dos e sem fo lhas des do bram-se como flâ mu las fes ti vas gran des flo res de um es car la te vi vís si mo e des lum bran te.

“O ar que en tão se res pi ra”, diz o ilus tre Pro fes sor Ca mi nhoá, “tem um aro ma dos mais agra dá ve is e es qui si tos. Uma tem pe ra tu ra de16º a 18º à no i te e pela ma nhã obri ga a pro cu rar aga sa lho aos que pou cosdias an tes dor mi am ao re len to e com ca lor. As aves que ti nham emi gra dopara as mar gens e lu ga res pró xi mos dos rios e ma nan ci a is vol tam a suasha bi ta ções. Foi ali que com pre en de mos quan to é bem dado aos pa pa ga i os o nome es pe cí fi co de fes ti vus. Com efe i to, quan do che gam os ban dos

Ca nu dos e Ou tros Temas 5

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des tas aves a gri ta rem ale gre men te, acom pa nha das de um sem-nú me rode ou tras, co me çam logo a se ani mar aque las pa ra gens e como que ana tu re za des per ta.

“Então, o ser ta ne jo é fe liz e não in ve ja nem mes mo os reis da Ter ra!”

Como se vê na que la re gião, in ter mi ten te men te, a na tu re zapa re ce os ci lar en tre os dois ex tre mos – da ma ra vi lho sa exu be rân cia àcom ple ta es te ri li da de. Este úl ti mo as pec to, po rém, in fe liz men te, pa re cepre do mi nar.

A este in con ve ni en te alia-se um ou tro, de ri va do da dis po si ção ge ral do ter re no. Assim é que de todo con tra pos ta à to po gra fia ha bi tu aldos nos sos cam pos do Sul – li ge i ra men te on du la dos e des cam ban do em su a ves de cli ves para os inú me ros va les que os ren di lham –, ca rac te ri -zam-se aque les pe las li nhas du ras e in ci si vas das fun das de pres sões,ter mi nan do os ta bu le i ros brus ca men te es car pas abrup tas, se pa ran do oscer ros2 por des fi la de i ros es tre i tos, flan que a dos de gro tas ca va das a pi que...

Com mu i to ma i or in ten si da de que o Sul ob ser va-se ali a açãomo di fi ca do ra dos ele men tos so bre a ter ra.

Nos lu ga res em que a ação me câ ni ca das águas de ter mi nan douma ero são mais enérg ica faz des pon tar a ro cha gra ní ti ca sub ja cen te,ob ser va-se qua se sem pre um fe nô me no in te res san te. Esta úl ti ma apru -ma-se, lar ga men te fen di da em di re ções qua se per pen di cu la res dan do ailu são de lan ços co los sa is e se mi der ru í dos de ci cló pi ca mu ra lha, nosqua is as la jes enor mes dis põem-se às ve zes umas so bre ou tras, comad mi rá vel re gu la ri da de. Este fato, lar ga men te ob ser va do por Li ving sto nenas ba i xas la ti tu des afri ca nas, tra duz a in cle mên cia do meio.

Pa ten te ia a al ter na ti va per sis ten te do ca lor dos dias ar den tís si mos e o frio da ir ra di a ção no tur na de onde re sul ta a dis jun ção da ro cha emvir tu de des te jogo pe re ne de di la ta ções e con tra ções.

Estes ru des mo nu men tos, aos qua is não se equi pa ram tal vezos dólmenes da Bre ta nha, que bram em gran de par te a mo no to nia dapa i sa gem avul tan do, so le nes, so bre o pla no das cha pa das...

6 Eu cli des da Cunha

2 No jor nal está ser ros. Pa re ce-nos que é en ga no ti po grá fi co, pois, como se pode ver n’Os Ser tões , Eu cli des dis tin guia mu i to bem os dois ter mos. N. do R.

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∗ ∗ ∗É so bre es tes ta bu le i ros, re cor ta dos por inú me ros va les de

ero são, que se agi tam nos tem pos de paz e du ran te as es ta ções daságuas, na azá fa ma ru i do sa e ála cre das va que ja das, os ru des ser ta ne joscom ple ta men te ves ti dos de cou ro cur ti do – das am plas per ne i ras ao cha péude abas lar gas –, ten do a ti ra co lo o laço li ge i ro a que não es ca pa o gar ro -te mais aris co ou rês ale van ta da, e pen den te, à cin ta, a com pri dafaca-de-ar ras to, com que in ves te e rom pe in trin ca dos ci po a is.

Iden ti fi ca dos à pró pria as pe re za do solo em que nas ce ram,edu ca dos numa rude es co la de di fi cul da des e pe ri gos, es ses nos sos pa trí -ci os do ser tão, de tipo et no lo gi ca men te in de fi ni do ain da, re fle tem na tu -ral men te toda a in cons tân cia e toda a ru de za do meio em que se agi tam.

O ho mem e o solo jus ti fi cam as sim de al gum modo, sob umpon to de vis ta ge ral, a apro xi ma ção his tó ri ca ex pres sa no tí tu lo des te ar ti go. Como na Ven déia o fa na tis mo re li gi o so que do mi na as suas al mas in gê nu as e sim ples é ha bil men te apro ve i ta do pe los pro pa gan dis tas do Impé rio.

A mes ma co ra gem bár ba ra e sin gu lar e o mes mo ter re noim pra ti cá vel ali am-se, com ple tam-se. O chou an fer vo ro sa men te cren teou o ta ba réu fa ná ti co3, pre ci pi tan do-se im pá vi do à boca dos ca nhõesque to mam a pul so, pa ten te i am o mes mo he ro ís mo mór bi do di fun di donuma agi ta ção de sor de na da e im pul si va de hip no ti za dos.

A jus te za do pa ra le lo es ten de-se aos pró pri os re ve ses so fri dos.A Re vo lu ção Fran ce sa, que se apa re lha va para lu tar com a Eu ro pa, qua -se sen tiu-se im po ten te para com ba ter os ad ver sá ri os im pal pá ve is daVen déia – he róis in tan gí ve is que se es co an do cé le res por meio das char -ne cas pren di am as for ças re pu bli ca nas em inex trin cá vel rede de ci la das...

Entre nós o ter re no, como vi mos, sob um ou tro as pec to em bo ra, pres ta-se aos mes mos fins.

Este pa ra le lo será, po rém, le va do às úl ti mas con se qüên ci as. ARe pú bli ca sa i rá tri un fan te des ta úl ti ma pro va.

Ca nu dos e Ou tros Temas 7

3 Chou an foi a de sig na ção dada, na Fran ça, ao cam po nês fa ná ti co e que, por di fi cul -da des de adap ta ção, não ace i tou a Re vo lu ção nem o Impé rio. Eu cli des, como aqua se to ta li da de dos his to ri a do res da épo ca, en glo ba num só os dois mo vi men tos, na re a li da de dis tin tos, da Chou an ne rie e da Gu er ra da Ven déia. N. do R.

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A nos sa Ven déia II

17 de ju lho de 1897O Esta do de S. Pa u lo – São Pa u lo

SOB ESTE TÍTULO, há tem pos, ao che gar a no tí cia de la men tá vel de sas tre, des cre ve mos pa li da men te a re gião onde nes ta hora, com ex tra -or di ná rio de vo ta men to, ba tem-se as for ças re pu bli ca nas.

Ado te mo-lo de novo.Infe liz men te pre vía mos os pe ri gos fu tu ros e aque la apro xi ma ção

his tó ri ca, en tão ape nas es bo ça da, acen tua-se de fi ni ti va men te.A si tu a ção não pode, en tre tan to, sur pre en der a nin guém.Os tro pe ços que se an to lham às for ças da Re pú bli ca, a mo ro -

si da de das ope ra ções de guer ra e os com ba tes mor tí fe ros re a li za dos,sur gem na tu ral men te das pró pri as con di ções da luta, como um co ro lá rio ine vi tá vel.

O nos so oti mis mo im pe ni ten te, po rém, que pre es ta be le ce raàs mar chas das co lu nas do Ge ne ral Artur Oscar a ce le ri da de e o des ti nofe liz das le giões de Cé sar, mal so fre ia uma nova de si lu são e ca rac te ri za

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como um in su ces so, como um pre nún cio ine quí vo co de der ro ta, o quenada mais é do que um pro gre dir len to para a vi tó ria.

Esque ce mo-nos de exem plos mo der nos elo qüen tís si mos. AIngla ter ra en fren tan do os zu lus e os afe gãs, a Fran ça, em Ma da gas car, ea Itá lia, re cen te men te, às ar ran ca das com os abis sí ni os, pa ten te i am-nosen tre tan to re ve ses no tá ve is de exér ci tos re gu la res aguer ri dos e bra vos esu bor di na dos a uma dis ci pli na in co er cí vel, ante os guer ri lhe i ros inex per -tos e atre vi dos, as sal tan do-os em tu mul to, de sor de na da men te e de sa pa -re cen do, in tan gí ve is qua se, num dé da lo im pe ne trá vel de em bos ca das.

A pro fun da es tra té gia eu ro péia na que las pa ra gens des co nhe ci das é aba la da por uma tá ti ca ru di men tar pior do que a tá ti ca rus sa do de ser to.

De fato, nada pode per tur bar com ma i or in ten si da de o maisse gu ro pla no de cam pa nha do que esse sis te ma de guer ra que sem exa -ge ro de fra se se pode de no mi nar – a tá ti ca da fuga –, na qual, adap ta dasde um modo sin gu lar ao ter re no e in vi sí ve is como mis te ri o sas fa lan gesde du en des, as for ças an ta go nis tas ir rom pem ino pi na da men te de to dasas que bra das, sur gem de modo ines pe ra do nas an frac tu o si da des das ser -ras, nas or las ou nas cla re i ras das ma tas e, fu gin do sis te ma ti ca men te àba ta lha de ci si va, di fe ren ci am e pro lon gam a luta, numa su ces são inin ter -rup ta de com ba tes rá pi dos e in de ci sos.

A or ga ni za ção mais po ten te de um exér ci to, que é um or ga -nis mo su pe ri or com ór gãos e fun ções per fe i ta men te es pe ci a li za das,vai-se, as sim, em su ces si vas san gri as, de sa pa re cen do até a adi na miacom ple ta, ante as hos tes ad ver sá ri as, de uma or ga ni za ção ru di men tar,cuja for ça está na pró pria in con sis tên cia, cu jas van ta gens es tão na pró priain fe ri o ri da de e que, des ba ra ta dos hoje, re vi vem ama nhã, dos pró pri osdes tro ços, como pó li pos.

∗ ∗ ∗Ora, quem ob ser va, es cla re ci do em bo ra por es cas sas in for -

ma ções, a dis po si ção to po grá fi ca des se tre cho dos ser tões da Ba hia,para o qual se di ri ge ago ra toda a aten ção do nos so país, re co nhe ce, depron to, que ele se pres ta de modo no tá vel à guer ra de re cur sos comtodo o seu cor te jo de re ve ses.

Sem um sis te ma oro grá fi co de fi ni do, na sig ni fi ca ção ri go ro -sa do ter mo, a re gião ca rac te ri za-se, de um modo ge ral, pela fe i ção

10 Eu cli des da Cunha

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caó ti ca e aci den tal que lhe im pri miu o tu mul to das águas nas épo casre mo tas em que a ação vi o len ta des tas, ar ras tan do as ca ma das de grésque a re ves ti am, des nu dou-a em mu i tos pon tos, apro fun dan do-se emou tros, se gun do a re sis tên cia va riá vel das ro chas até aos ter re nos maisan ti gos.

Daí o seu as pec to bi zar ro e sel va gem.Em que pese à sua imo bi li da de apa ren te, a na tu re za, ali, nas

li nhas vi vas dos pla te a ux que ter mi nam brus ca men te em pa re dões a pru -mo, se pa ra dos pe los va les pro fun dos a que la de i am es car pas abrup tas ea pi que, cin di da pe las que bra das ou pe los des fi la de i ros que re cor tam asser ras, apru man do-se mais lon ge em aflo ra men tos imen sos de gna is ses“cu jas for mas fan tás ti cas re cor dam ru í nas ci cló pi cas” – pa re ce ha ver es -te re o gra fa do toda a de sor dem, toda a ação vi o len ta e atu mul tu a da, dosele men tos que a as sal ta ram.

A ser ra do Ara ca ti, agre mi a ção in co e ren te de ser ro tes con tor -nan do as ca a tin gas que se des do bram até o Ira pi ran ga, na di re ção mé dia de NE, in fle te vi va men te an tes de che gar a Mon te San to, numa di re çãoper pen di cu lar à an te ri or e sub di vi din do-se em mor ros iso la dos, maspró xi mos, de ter mi na en tre aque la lo ca li da de e a de Ca nu dos a li nha mais aci den ta da, tal vez, de toda a zona.

Pro lon gan do-se para o nor te, ao atin gir o mor ro da Fa ve la,eixo das ope ra ções do nos so Exér ci to, os gran des aci den tes de ter re no de ri vam para les te e de po is para o nor te e sub se qüen te men te para no -ro es te, como que es ta be le cen do em tor no de Ca nu dos um cír cu lo decu me a das, cor ta do pelo Vaza-Bar ris em Co co ro bó.

A mar cha do Exér ci to re pu bli ca no ope ra-se nes se la bi rin to de mon ta nhas.

Não é di fí cil aqui la tar-se a imen sa sé rie de obs tá cu los que aper tur ba.

Por ou tro lado, na qua dra atu al, sob o in flu xo das chu vas, re -ves tem-se os am plos ta bu le i ros, as en cos tas das ser ras e o fun do dosva les, de uma ve ge ta ção exu be ran te e for te, ve ge ta ção in ten sa men tetro pi cal, cer ra dos ex ten sos im pe ne trá ve is, em cujo seio a tra ma inex -trin cá vel das li a nas se alia aos acú le os lon gos e di la ce ran tes dos cac tosagres tes.

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Ves ti do de cou ro cur ti do, das al par ca tas só li das ao des gra ci o so cha péu de abas lar gas e afe i ço a do aos ar ris ca dos lan ces da vida pas to ril,o ja gun ço, tra i ço e i ro e ou sa do, rom pe-os, atra ves sa-os, en tre tan to, emto dos os sen ti dos, fa cil men te, zom ban do dos es pi nhos que não lheras gam se quer a ves ti men ta rús ti ca, vin gan do cé le re como um acro -ba ta as mais al tas ár vo res, des tra man do, des tro, o ema ra nha do dosci po a is.

Não há como per se gui-lo no seio de uma na tu re za que o cri ouà sua ima gem – bár ba ro, im pe tu o so e abrup to.

Ca in do ino pi na da men te numa em bos ca da, ao atra ves sa remuma gar gan ta es tre i ta ou um ca pão de mato, os ba ta lhões sen tem a mor tera re ar-lhes as fi le i ras e não vêem o ini mi go – ful mi nan do-os do re ces sodas bre nhas ou abri ga dos pe los imen sos blo cos de gra ni to que dão acer tos tre chos da que las pa ra gens uma fe i ção pi to res ca e bi zar ra, amon -to a dos no alto dos cer ros al can ti la dos, como for mas eva nes cen tes dean ti gas for ta le zas der ru í das...

Com pre en dem-se as di fi cul da des da luta nes se solo im pra ti -cá vel qua se.

A Espa nha não o teve me lhor para aba lar o Exér ci to na po -leô ni co que nela se exa u riu de po is de atra ves sar numa mar cha tri un falqua se que a Eu ro pa in te i ra; não o tem mais apro pri a do a ilha de Cuba,hoje, re vi ven do, um sé cu lo de po is, numa in ver são com ple ta de pa péis,con tra a Espa nha, o mes mo pro ces so de guer ra pe ri go sís si mo e for mi -dá vel.

Ora, a es tes obs tá cu los de or dem fí si ca ali am-se ou tros igual -men te sé ri os.

O ja gun ço é uma tra du ção jus ta li ne ar qua se do ilu mi na do daIda de Mé dia. O mes mo des pren di men to pela vida e a mes ma in di fe ren çapela mor te dão-lhe o mes mo he ro ís mo mór bi do e in cons ci en te dehip no ti za do e im pul si vo.

Uma so bri e da de ex tra or di ná ria ga ran te-lhe a exis tên cia nomeio das ma i o res mi sé ri as.

Por ou tro lado, as pró pri as ar mas in fe ri o res que usam, nama i o ria, cons ti tu em um re cur so ex tra or di ná rio: não lhes fal ta nun ca amu ni ção para os ba ca mar tes gros se i ros ou para as ru des es pin gar das

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de pe der ne i ra. A na tu re za que lhes ale van tou trin che i ras na mo vi men ta -ção ir re gu lar do solo – es tra nhos ba lu ar tes para cuja ex pug na ção Va u bannão tra çou re gras – for ne ce-lhes ain da a car ga para as ar mas: as ca ver -nas nu me ro sas que se abrem nas ca ma das cal cá ri as dão-lhes o sa li trepara a com po si ção da pól vo ra, e os le i tos dos cór re gos, las tra dos degrãos de quart zo du rís si mos e ro la dos, são de pó si tos ine xa u rí ve is deba las.

∗ ∗ ∗A mar cha do Exér ci to Na ci o nal, a par tir de Je re mo a bo e

Mon te San to até Ca nu dos, já cons ti tui por isto um fato pro e mi nen te nanos sa his tó ria mi li tar.

É uma pá gi na vi bran te de ab ne ga ção e he ro ís mo. E se con si de rar mos que, a par tir da que les pon tos, con ver gin -

do para o ob je ti vo da cam pa nha, as co lu nas, nes se in ves tir im pá vi dopara o des co nhe ci do, como se le vas sem a cer te za de uma vi tó ria in fa lí vele pron ta, não se li ga ram por in ter mé dio de pon tos ge o grá fi cos es tra té -gi cos à lon gín qua base de ope ra ções em Mon te San to, de i xan do, por -tan to, que en tre elas e esta úl ti ma se in ter pu ses se ex ten sa re gião cri va -da de ini mi gos, so mos for ça dos a ad mi tir que a arte, esta som bria arteda guer ra que obe de ce a leis ine xo rá ve is, foi ofus ca da num ad mi rá vellan ce de co ra gem.

As suas re gras, en tre tan to, de vem pre va le cer. Um exér ci to não pode dis pen sar uma li nha de ope ra ções, se gu ra

e fran ca men te pra ti cá vel, li gan do-o à base prin ci pal afas ta da, atra vés depon tos de re fú gio in ter me diá ri os ou ba ses de ope ra ções se cun dá ri as,para as qua is re flu em as for ças em caso de re vés ou se guem facil men teos re cur sos que se tor nam ne ces sá ri os.

A vi a gem re cen te, de Ca nu dos a Mon te San to, das for ças sobo co man do do Co ro nel Me de i ros, é um exem plo fri san te.

Toda a cam pa nha fi cou em fun ção da que la for ça ex pe di ci o ná -ria; a sor te de um exér ci to fi cou en tre gue a uma bri ga da di mi nu ta.Entre tan to tal não su ce de ria se a li nha de ope ra ções ti ves se como pon tosde ter mi nan tes duas ou três po si ções es tra té gi cas, onde for ças em nú me rore la ti va men te di mi nu to se fir mem, au xi li an do efi caz men te as co mu ni ca -ções en tre a base de ope ra ções e o Exér ci to.

Ca nu dos e Ou tros Temas 13

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As for ças au xi li a res que par tem hoje do Rio de Ja ne i ro irão, cer -to, ini ci ar es tas me di das ur gen tes, cor ri gin do uma si tu a ção anor ma lís si ma.

Não bas ta ga ran tir Mon te San to – é in dis pen sá vel ligá-lo omais es tre i ta men te pos sí vel ao Exér ci to, cujo eixo de ope ra ções ale van -ta-se nes te mo men to, em fren te de Ca nu dos.

To ma das es tas pro vi dên ci as, a cam pa nha que pode ter mi narama nhã re pen ti na men te por um gol pe de au dá cia, mas que pode tam -bém pro lon gar-se ain da, será ine vi tavel men te co ro a da de su ces so.

A mo ro si da de das ope ra ções é ine vi tá vel, pe los mo ti vos rá pi -da men te ex pos tos.

As tro pas da Re pú bli ca se guem len ta men te, mas com se gu -ran ça, para a vi tó ria. Fora um ab sur do exi gir-lhes mais pres te za.

Quem, ain da hoje, ob ser va es sas mo nu men ta is es tra das ro -ma nas, lar gas e só li das, ina ces sí ve is à ação do tem po, lem bran do ain da aépo ca glo ri o sa em que so bre elas res so a va a mar cha das le giões in ven -cí ve is, ir ra di an do pe los qua tro pon tos do ho ri zon te, para a Gá lia, paraa Ibé ria, para a Ger mâ nia, com pre en de a tá ti ca ful mi nan te de Cé sar...

Mas, ama nhã, quan do fo rem des ba ra ta das as hos tes fa ná ti casdo Con se lhe i ro e des cer a pri mi ti va qui e tu de so bre os ser tões ba i a nos,nin guém con se gui rá per ce ber, tal vez, atra vés das ma tas im pe ne trá ve -is, co le an do pelo fun do dos va les, de ri van do pe las es car pas ín gre mesdas ser ras, os tri lhos, as ve re das es tre i tas por onde pas sam, nes tahora, ad mi rá ve is de bra vu ra e ab ne ga ção – os sol da dos da Re pú bli ca.

14 Eu cli des da Cunha

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A cam pa nha de Ca nu dos(Sé rie de re por ta gens pu bli ca das em

O Esta do de S. Pa u lo, de agos to a ou tu bro de 1897,en vi a das do te a tro de ope ra ções, no ser tão da Ba hia)

O Esta do de S. Pa u lo, 7 de agos to de 1897 – São Pa u lo

DEPOIS DE QUATRO lon gos dias de ver da de i ra tor tu rasubo pela úl ti ma vez à tol da do va por na en tra da be lís si ma e ar re ba ta do -ra da Ba hia.

Não des cre ve rei os in ci den tes da vi a gem, vis tos to dos pormeio de in con ce bí vel mal-es tar, des de o mo men to emo ci o nan te dapar ti da em que Bu e no de Andra de e Te i xe i ra de Sou sa – um tem pe ra -men to fe liz, enér gi co e bom, e uma alma aus te ra de fi ló so fo – re pre -sen ta ram em dois abra ços to dos os meus ami gos de S. Pa u lo e do Rio,até o seu ter mo fi nal, nas águas des ta his tó ri ca pa ra gem.

BORDO DO ESPÍRITO SANTO – 7 de agos to de 18974

4 A cor res pon dên cia, aqui es tam pa da na or dem cro no ló gi ca da ela bo ra ção, foi pu -bli ca da pelo O Esta do de S. Pa u lo à me di da que era re ce bi da. A sé rie ini ci ou-se nodia 18 de agos to de 1897, com o re la to da ta do de 10 des se mês, se guin do-se, a 22, car ta da ta da do dia 15, e a 23, esta, evi den te men te a pri me i ra, es cri ta ain da a bor -do do na vio que trans por tou o Esta do-Ma i or do Mi nis tro da Gu er ra para a Ba hia. N. do R.

4 A cor res pon dên cia, aqui es tam pa da na or dem cro no ló gi ca da ela bo ra ção, foi pu -bli ca da pelo O Esta do de S. Pa u lo à me di da que era re ce bi da. A sé rie ini ci ou-se nodia 18 de agos to de 1897, com o re la to da ta do de 10 des se mês, se guin do-se, a 22, car ta da ta da do dia 15, e a 23, esta, evi den te men te a pri me i ra, es cri ta ain da a bor -do do na vio que trans por tou o Esta do-Ma i or do Mi nis tro da Gu er ra para a Ba hia. N. do R.

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Escre vo rapi da men te, di rei mes mo ver ti gi no sa men te, aco to -ve la do a todo o ins tan te por pas sa ge i ros que ir ra di am em todas as di re -ções sobre o tom ba di lho, na azá fa ma ru i do sa da che ga da, por meio deum coro de in ter je i ções fes ti vas, no qual meia dú zia de lín guas se amol -dam ao mes mo en tu si as mo. É a ad mi ra ção pe re ne e in ten sa pela nos sana tu re za olím pi ca e ful gu ran te, pre fi gu ran do na es tra nha ma jes ta de agran de za da nos sa na ci o na li da de fu tu ra.

E, re al men te, o qua dro é sur pre en de dor.Afe i to ao as pec to im po nen te do li to ral do Sul onde as ser ras

al tís si mas e den te a das de gna is se re cor tam vi va men te o es pa ço in ves tin dode um modo so be ra no as al tu ras, é sin gu lar que o ob ser va dor en con treaqui a mes ma ma jes ta de e a mes ma pers pec ti va sob as pec tos mais bran -dos, as ser ras ar re don dan do-se em li nhas que re cor dam as vol tas su a vís si -mas das vo lu tas e afo gan do-se, per den do-se no es pa ço, sem tran si çõesbrus cas numa di fu são lon gín qua de cores em que o ver de-gla u co das ma -tas se es vai len ta men te no azul pu rís si mo dos céus...

A ilha de Ita pa ri ca, à nos sa es quer da e na fren te, ri den te e en -vol ta na onda ilu mi na da e to ni fi ca do ra da ma nhã, des do bra-se pelo seioda Ba hia, re ves ti da de ve ge ta ção opu len ta e in dis tin ta pela dis tân cia.

O mar tran qüi lo, como um lago, ba nha, à di re i ta, o ás pe ropro mon tó rio sobre o qual se ale van ta o fa rol da Bar ra, cin gin do-o deum sen dal de es pu mas. Em fren te avul ta a ci da de, der ra man do-se, com -pac ta, sobre imen sa co li na, cu jos pen dores abrup tos re ves te, co brin do aes tre i ta cin ta do li to ral e des do bran do-se, imen sa, do For te da Gam boaa Ita pa gi pe, no fun do da en se a da.

Ven do-a des te pon to, com as suas ca sas ou sa da men te apru -ma das, ar ri man do-se na mon ta nha em cer tos pon tos, vin gan do-a emou tros e er guen do-se a ex tra or di ná ria al tu ra, com as suas nu me ro sasigre jas de tor res es gui as e al tas ou am plos e pe sa dos zim bó ri os, que re -cor dam ba sí li cas de Bi zân cio – ven do-a des te pon to, sob a ir ra di a çãocla rís si ma do nas cen te que sobre ela se re fle te dis per san do-se em cin ti la -ções ofus can tes, tem-se a mais per fe i ta ilu são de vas ta e opu len tís si maci da de.

O Espí ri to San to cin de va ga ro sa men te as on das e no vos qua -dros apa re cem. O For te do Mar – ve lha tes te mu nha his tó ri ca de ex tra -or di ná ri os fe i tos – sur ge à di re i ta, brus ca men te, das águas, im po nen te

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ain da mas ino fen si vo, de sar ti lha do qua se, mal re cor dan do a qua dra glo -ri o sa em que ru gi am nas suas ca nho ne i ras, na re pul sa do ho lan dês, aslon gas co lu bri nas de bron ze.

Cor ro os olhos pelo va por. Na proa os sol da dos que tra ze mos acu mu lam-se, sa u dan do,

en tu si as tas, os com pa nhe i ros de S. Pa u lo, vin dos on tem, en chen do li te -ral men te o Itu pe va, já an co ra do.

A um lado, ale van ta-se, fir me men te li ga do ao re pa ro só li do,um si nis tro com pa nhe i ro de vi a gem – o mor te i ro Ca net, um belo es pé ci -me da ar ti lhe ria mo der na. Des ti na-se a con tra mi nar as mi nas tra i do rasque exis tem no solo de Ca nu dos.

Embo ra sem a pól vo ra apro pri a da e le van do ape nas ses sen tae nove pro jé te is (gra na das de du plo efe i to e shrap nels), o efe i to dos seusti ros será efi ca cís si mo. Lan ça em al can ce má xi mo útil trin ta e dois qui los de fer ro, a seis qui lô me tros de dis tân cia. Acre di to, en tre tan to, di fi cí li moo seu trans por te pe las ve re das qua se im pra ti cá ve is dos ser tões. São duasto ne la das de aço que só atin gi rão as cer ca ni as da Meca dos ja gun ços atra -vés de es for ços in con ce bí ve is.

Ma i o res mi la gres, po rém, têm re a li za do o Exér ci to Na ci o nal e a fé re pu bli ca na.

A dis po si ção en tre os ofi ci a is é a me lhor pos sí vel. A sa u da de, imen sa e in de fi ní vel sa u da de dos en tes que ri dos

au sen tes, des ce, às vezes, pro fun da, do lo ro sís si ma e es ma ga do ra sobreos co ra ções: as fron tes anu vi am-se; ces sam brus ca men te as pa les tras em que se pro cu ra afu gen tar tris te zas numa guer ri lha ado i da da de ane do tas; um pe sa do si lên cio pa i ra re pen ti na men te sobre os gru pos es par sos; oco ra ção, ba ten do fe bril men te nos pe i tos, per tur ba o rit mo isó cro no davida – e os olha res, ve la dos de lá gri mas, di ri gem-se an si o sa men te para oSul... Ao mes mo tem po, po rém, como um an tí do to enér gi co, um re a -gen te in fa lí vel, ale van ta-se, ao Nor te, o nos so gran de ide al – a Re pú bli ca – pro fun da men te con so la dor e for te, am pa ran do vi go ro sa men te os quece dem às má go as, im pe lin do-os à li nha reta no bi li ta do ra do de ver.

E re a gem. Eu nun ca pen sei que esta no ção abs tra ta da Pá tria fos se tão

am pla que, tra du zin do em sín te se ad mi rá vel to das as nos sas afe i ções, pu -

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Page 96: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

des se ani mar e con so lar tan to aos que se afas tam dos la res tran qüi los de -man dan do a agi ta ção das lu tas e dos pe ri gos. Com pre en do-o, ago ra. Embre ve pi sa re mos o solo onde a Re pú bli ca vai dar com se gu ran ça o úl ti moem ba te aos que a per tur bam. Além, para as ban das do oci den te, em con -tras te com o dia bri lhan te que nos ro de ia, er guem-se, ago ra, por umaco in ci dên cia bi zar ra, cú mu los pe sa dos, como que tra du zin do fi si ca men teuma si tu a ção so ci al tem pes tu o sa. Sur gem, er guem-se, pre ci sa men te nes temo men to, do lado do ser tão, pe sa dos, lú gu bres, ame a ça do res...

Este fato oca si o nal e su ges ti vo pren de a aten ção de to dos. Eob ser van do, como toda a gen te, as gran des nu vens si len ci o sas que sede sen ro lam lon gín quas, os que se des ti nam àque las pa ra gens pe ri go sassen tem com ma i or vi gor o peso da sa u da de e com ma i or vi gor a im po si -ção aus te ra do de ver.

Nem uma fron te se per tur ba, po rém. Que a nos sa Ven déia se em bu ce num lar go man to te ne bro so

de nu vens, avul tan do além como a som bra de uma em bos ca da en tre osdes lum bra men tos do gran de dia tro pi cal que nos alen ta. Rom pê-lo-á,bre ve, a ful gu ra ção da me tra lha, de en vol ta num cin ti lar vi vís si mo de es -pa das...

A Re pú bli ca é imor tal!

BAHIA – 10 DE AGOSTO

Di zem os mais an ti gos ha bi tan tes da Ba hia que nun ca ela sere ves tiu na fe i ção as su mi da nes tes úl ti mos dias.

Ve lha ci da de tra di ci o nal, con ser van do me lhor do que qual -quer ou tra os mais re mo tos cos tu mes, a sua qui e tu de im per tur bá vel de -sa pa re ceu de todo. Mo di fi ca ram-se há bi tos ar ra i ga dos e, vi o lenta men tesa cu di da na onda guer re i ra que ir rom pe do Sul, trans fi gu rou-se.

Ani ma-a uma po pu la ção ad ven tí cia de he róis: sol da dos quevol tam mu ti la dos e com ba li dos da luta, sol da dos que se guem en tu si as tas e for tes para a cam pa nha. E pre sa nes se flu xo e re flu xo de már ti res queche gam e de va len tes que avan çam, sob o con tá gio do mi na dor da fe breque la vra nas al mas dos com ba ten tes, gal va ni za da pelo mes mo en tu si as -

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mo, ela pa re ce li gar, por meio de lon gos anos de apa tia, os dias atu a isaos dias agi ta dos das lu tas da Inde pen dên cia.

As ve lhas for ta le zas de há mu i to aban do na das e em cu jas mu -ra lhas dis jun gi das ve ge ta vam, numa exu be rân cia sin gu lar, ár vo res enor -mes pron ta men te re pa ra das, aflo ram no va men te à luz, im po nen tes efor mi dá ve is como se – vol ta da atrás uma pá gi na da His tó ria – des pon -tas se re pen ti na men te, ago ra, a qua dra glo ri o sa de há cem anos.

O For te de São Pe dro, onde aquar te lou o Ba ta lhão Pa u lis ta,tem, ain da, sul can do-lhe em to dos os sen ti dos os lar gos mu ros, as gros -sas ra í zes de ár vo res re cen te men te cor ta das, e apa re ce, de ne gri do pelotem po, la de an do a rua que vai ao Cam po Gran de, como um re tar da tá rio si nis tro des per tan do do sono se cu lar pela vi bra ção al tís si ma dos cla rinsde guer ra que lhe ani mam a esta hora o seio enor me.

A ca va le i ro da ci da de, do mi nan do-a e ao mar, a Acró po leba i a na, o For te de Bar ba lho, em cujo re cin to se agi ta ram5 mu i tas ve zesos des ti nos da nos sa ter ra, com par te igual men te des ta re vi ves cên ciaines pe ra da e he rói ca.

E por toda a par te, lar ga men te des do bra da so bre a len dá riaci da de, pas sa uma aura guer re i ra im pe tu o sa e ar re ba ta do ra...

O as pec to das ruas co mo ve, po rém, às ve zes, mu i tís si mo. Pas sam sol da dos que tor nam dos ser tões, fe ri dos e con va les -

cen tes, trô pe gos e al que bra dos, fi si o no mi as pá li das e aba ti das das qua isres sum bra uma re sig na ção es tói ca; – acur va dos al guns em ben ga las tos -cas, ca mi nhan do ou tros am pa ra dos nas mu le tas ou pelo bra ço de com pa -nhe i ros mais ro bus tos... E em to das as fron tes e em to dos os olha res o re -fle xo de uma dor in de fi ni da e com ple xa, em que se pres sen te um mis to deagru ras fí si cas e mo ra is – o la te jar do lo ri do das cha gas e a an si e da de do lo -ro sa das sa u da des.

A po pu la ção, vi va men te emo ci o na da, ro de ia-os de uma sim -pa tia res pe i to sa e es pon tâ nea.

Ca nu dos e Ou tros Temas 19

5 Lê-se, no jor nal: “...se agi tou mu i tas ve zes os des ti nos...” Alte ra mos por que, aquem quer que seja atri bu í vel, foi co chi lo que Eu cli des te ria cor ri gi do. N. do R.

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Se es ta ca, an tes de des cer uma cal ça da mais alta – vin te bra -ços es ten dem-se, so lí ci tos, am pa ran do o bra vo en fra que ci do; os bon deses va zi am-se ante um ges to len to, cada pas sa ge i ro pro cu ran do ce der olu gar ao de fen sor obs cu ro da Re pú bli ca.

Nos hos pi ta is, re ple tos, um as se io e ca ri nho ad mi rá ve is. Per cor ri-os to dos e em to dos sur pre en deu-me a or dem no tá -

vel que re ves te a ge ne ro si da de sem par de um povo que se vai tor narcre dor do Bra sil in te i ro. Daí, tal vez, a ani ma ção que re vi go ra e alen taaos mal fe ri dos mes mo; so bre o ani qui la men to fí si co, a es pe ran ça res sur -ge-lhes am pa ra da pelo amor de uma so ci e da de in te i ra e, avi ven ta das noín ti mo acon che go des sa pro te ção no bi li ta do ra, as al mas pal pi tam vi go -ro sas den tro dos pe i tos exa us tos e ina ni dos.

Qu an do o Ge ne ral Sa va get, on tem, vi si tou aos seus bra voscom pa nhe i ros da 2ª co lu na – a Co lu na Ta len to sa, se gun do a de no mi na -ção in sus pe i ta dos ja gun ços, ob ser vei uma cena que fi xa rei, in de lé vel, na me mó ria: quan do ele atra ves sa va len ta men te a en fer ma ria – ho mensqua se que ab so lu ta men te de pa u pe ra dos e exan gues, nas fron te i ras damor te, agi ta ram-se nos le i tos; er gue ram-se al guns, qua se; os bra ços, até en tão imó ve is, ale van ta ram-se con vul si va men te, em ges tos en tu siás ti -cos; bo cas que não fa la vam ru gi ram sa u da ções vi ris; afo ga ram-se emlá gri mas olhos in cen di a dos de fe bre e re lam pa gue a ram, fu ga zes, numre pen ti no ru ti lar de lâm pa das que se apa gam, olhos amor te ci dos demo ri bun dos...

Um qua dro so bre-hu ma no, que não exa ge ro. Como re ver so da me da lha, sur gem, por ou tro lado, for tes e

im pá vi dos, numa ala cri da de ru i do sa de va len tes, os que se apres tam àluta. O Ba ta lhão de São Pa u lo, que de i xou be lís si ma im pres são, já estáem Qu e i ma das; o 37º e o 39º da Infan ta ria se gui rão tal vez ama nhã e, àca dên cia re tum ban te dos tam bo res, aca ba de de sem bar car, atra ves san doa ci da de em di re ção ao For te São Pe dro, onde aquar te la rá, o 29º Ba ta -lhão de Infan ta ria.

E aguar dam-se ou tros. Como uma pra ça enor me de guer ra, a Ba hia tem, nes ta hora,

res so an do em sua at mos fe ra, a vi bra ção das mar chas mar ci a is, no tas al tasde cla rins, bra dos de ar mas in ces san tes e in ces san te re ti nir de es pa das.

20 Eu cli des da Cunha

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∗ ∗ ∗Não são mais se gre do para nin guém as ca u sas de ter mi nan tes

do in su ces so da quar ta ex pe di ção. To dos os ofi ci a is que in qui ri acor dam con fir man do dois gra ves

er ros de que se apro ve i ta ram ha bil men te os ja gun ços – du pla men te ar ma dosde po is do fra cas so da ex pe di ção Mo re i ra Cé sar –, pela for ça mo ral davi tó ria e pe las ar mas to ma das.

O pri me i ro apon ta do com ple ta ou tros que per tur ba ram al ta -men te a mar cha da pri me i ra co lu na: es tan do na vés pe ra de al can çar omor ro da Fa ve la, a pou co mais de uma lé gua do com bo io das mu ni çõesde boca e de guer ra, aque la co lu na, como se mar chas se fa tal men te parauma vi tó ria in fa lí vel re sul tan do de um rá pi do com ba te, de i xou-o des -guar ne ci do, com ple ta men te iso la do. Tra va do o com ba te e es go ta das, afi -nal, di an te de ines pe ra da e te naz re sis tên cia, as mu ni ções de guer ra quea tro pa le va ra nas car tu che i ras, fi cou esta iner me, com ple ta men te de sar -ma da, de ba i xo das ba las do ini mi go, ful mi na da, pre sa num cír cu lo defer ro e de fogo – e sem po der re a gir com um só tiro! Nes sa mes ma oca -sião, o com bo io, por as sim di zer aban do na do, à re ta guar da, era as sal ta do e fa cil men te to ma do.

O res to é co nhe ci do – a se gun da co lu na, aban do nan doad mi rá vel po si ção es tra té gi ca ar du a men te con quis ta da, anu lan dotodo o es for ço des pen di do na tra ves sia he rói ca de Co co ro bó, re flu iuvi go ro sa men te so bre os bár ba ros e sal vou a pri me i ra.

A este erro ali ou-se um ou tro. Na in ves ti da de fi ni ti va a Ca nu dos a dis po si ção ge ral dada

ao ata que foi de tal na tu re za que, logo à en tra da da gran de al de ia, ba -ra lha ram-se ba ta lhões e bri ga das, con fun di ram-se, en re da ram-se,anu la ram-se as fi le i ras – e sem or dem, atu mul tu a da men te avan çan do,rota a dis ci pli na e li ga do ape nas pela bra vu ra e en tu si as mo de to dos,o exér ci to ro lou so bre ela, sem ori en ta ção, como o ex tra va sa men tode uma onda im pe tu o sa e enor me – alvo am plís si mo so bre o qual ba -tia, caía em che io a sa ra i va da de ba las dos ja gun ços, sem per der umtiro.

Ca nu dos e Ou tros Temas 21

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Foi ocu pa da ape nas a me ta de da pra ça e as ba i xas fo ram ex -tra or di ná ri as. A bra vu ra pes so al do sol da do cor ri giu em gran de par te ode sas tra do pla no de ata que.

Não an te ci pe mos, po rém, o ju í zo do fu tu ro; pas se mos ra pi da -men te so bre es tes fa tos la men tá ve is.

∗ ∗ ∗A opi nião ge ral, en tre os com ba ten tes que vol tam, é que es ta -

mos no epí lo go da luta. Em gran de par te as se di a do, Ca nu dos liga-se ago ra aos ser -

tões que o avi ven tam ape nas pela es tra da do Cam ba io; fe cha da estaúl ti ma pe las for ças que se guem, os si ti a dos ce de rão pela fome. E esta úl ti ma já se faz sen tir en tre eles, em que pese à so bri e da de es par ta naque os ga ran te. Vi vem, ina ni dos qua se. Di ver sos sol da dos que in qui ri afir mam, sur pre en di dos, que o ja gun ço de go la do não ver te uma xí ca rade san gue.

Rude hi pér bo le, tal vez, esta fra se é sin gu lar men te ex pres si va. Afir mam ain da que o fa ná ti co mor to não pesa mais que

uma cri an ça. Acre di ta-se qua se numa in ver são com ple ta das leis fi si o ló gi cas

para a com pre en são de tais se res nos qua is a for ça fí si ca é subs ti tu í dapor uma agi li da de de sí mi os, des li zan do pe las ca a tin gas como co bras,res va lan do cé le res, des cen do pe las que bra das, como es pec tros, ar ras tan -do uma es pin gar da que pesa qua se tan to como eles – ma gros, se cos,fan tás ti cos, com as pe les bron ze a das co la das so bre os os sos, ás pe rascomo pe les de mú mi as...

Afir mam tam bém um fato que eu já pre vi ra: qua tro ou seis ja -gun ços fa zi am es ta car per tur ba do um ba ta lhão in te i ro. Ao atra ves sa rem a es -tra da la de a da de ca a tin gas, em cujo seio fer vi lham es pi nhos de man da ca ruse xi que xi que, as sal ta das por ti ros cer te i ros e rá pi dos, e sem po de rem sa berse quer qual a di re ção do ata que, por que a pól vo ra sem fu ma ça não o re ve la, as tro pas sen tem-se in va di das de um de sâ ni mo sin gu lar e ati ram ao aca so,em ine vi tá vel in dis ci pli na de fogo.

No prin cí pio da luta eram ce nas co ti di a nas es tas – o que ex -pli ca cla ra men te o gran de nú me ro de fe ri dos e mor tos.

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A si tu a ção é, po rém, hoje mu i to di ver sa. As ime di a ções deCa nu dos mes mo são fran ca men te pra ti cá ve is e já têm vin do, sós, sempe ri go, dali a Mon te San to mu i tas pes so as. Está pres tes a fin dar a do lo -ro sís si ma cam pa nha.

BAHIA – 12 DE AGOSTO

Aca bo de as sis tir na es ta ção da Cal ça da ao de sem bar car decer ca de oi ten ta fe ri dos que che gam de Ca nu dos e não pos so, nes tas no -tas li ge i ras, es bo çar um qua dro in de fi ní vel com o qual se har mo ni za ri am ad mi ra vel men te o gê nio som brio e o pin cel fu né reo de Rem brandt.

Ao apon tar, vin gan do a úl ti ma cur va da es tra da, o lú gu brecom bo io, a mul ti dão, es ta ci o na da na gare, emu de ce, ter mi nan do brus ca -men te o vo ze ar in dis tin to, e olha res cu ri o sos con ver gem para a lo co mo -ti va que se apro xi ma, len ta men te, ar fan do. Esta pára, afi nal, e, aber tas as por ti nho las, co me çam a sair – gol pe a dos, mu ti la dos, ba le a dos –, ar ras -tan do-se va ga ro sa men te uns, am pa ra dos ou tros e car re ga dos al guns, asgran des ví ti mas obs cu ras do de ver.

O frê mi to de uma emo ção ex tra or di ná ria vi bra lon ga men teem to dos os pe i tos, qua se to das as fron tes em pa li de cem e é sob um si -lên cio pro fun do que a mul ti dão se cin de, es pon ta ne a men te, abrin do alas à pas sa gem do he ro ís mo in fe liz.

Os fe ri dos che gam num es ta do mi se ran do – re lem bran doan tes tur mas ex te nu a das de re ti ran tes do que res tos, des man te la dosem bo ra, de um exér ci to. Di fi cil men te se dis tin gue uma far da des pe -da ça da e in co lor: cal ças que não des cem além dos jo e lhos, re du zi dasa tan gas, ro tas, es bu ra ca das, ren di lha das pela mi sé ria; ca mi sas em far -ra pos mal re ves tin do cor pos nos qua is ab so lu to de pa u pe ra men to fazcom que apon tem, vi vís si mas, to das as apó fi ses dos os sos.

É como uma pro cis são dan tes ca de du en des; con tem plo-apor meio de uma ver ti gem, qua se.

Con si de ro-os, à me di da que pas sam – co xe an do, ar ras tan -do-se pe no sa men te, trô pe gos, com ba li dos, ti tu be an tes, im pres tá ve is –,trá gi cos can di da tos à in va li dez e à mor te...

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Uns tra zem ao pe i to, sus pen sos em ti pói as gros se i ras, os bra çospar ti dos ou de sar ti cu la dos; ar ras tam ou tros pe no sa men te as per nas in cha -das en le a das em ti ras en san güen ta das; e os pés dis for mes de qua se to dos,sal pi ca dos de pla cas cir cu la res de ne gri das, pa ten te i am, tra zem ain da pro fun -da men te cra va dos os lon gos es pi nhos di la ce ran tes do ser tão.6 La de a do eam pa ra do por dois ho mens ro bus tos, pas sa um belo tipo de ca bo clo doNor te, om bros lar gos e ar ca bou ço de atle ta bron ze a do e for te, onde asagru ras fí si cas não apa gam a ener gia sel va gem do olhar; e, mais lon ge, umpa trí cio do Sul, tal vez, fi gu ra va ro nil ir rom pen do ele gan te en tre os an dra jos, ale van ta, numa tris te za al ti va, a ca be ça, como se fos se uma au réo la o tra poen san güen ta do que lhe cir cun da a fron te ba le a da.

E mal ca mi nham, mu i tos; e vêm, nes te es ta do, de lon ga tra -ves sia pe las es tra das, pe las ser ras as pér ri mas do ser tão, sob a adus tãoca us ti can te do sol.

Alguns tra zem à ca be ça um pa u pér ri mo tro féu – o cha péu decou ro dos ja gun ços .

A mul ti dão con tem pla-os em si lên cio; nem um bra do de en -tu si as mo per tur ba a elo qüên cia de uma mu dez re li gi o sa qua se e imen sa.Ape nas num ou nou tro pon to, um ami go, um ir mão, um pai, uma mãere co nhe ce, di vi sa ino pi na da men te um ros to ido la tra do e ouve-se um gri -to in de fi ní vel afo gan do-se num so lu ço... Des vio o olhar do qua dro so -bre-hu ma no e pas sa en fim o úl ti mo sa cri fi ca do.

∗ ∗ ∗Estas ir rup ções in ter mi ten tes de fe ri dos im pri mem em toda

ci da de, sem pre, uma tris te za lú gu bre e aca bru nha do ra.Se rão as úl ti mas, po rém; o sa cri fí cio fe i to pela Re pú bli ca não irá

além.Para os que co nhe cem a si tu a ção, a cam pa nha, pres tes a fin -

dar, não fará mais ví ti mas.

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6 Trans cri ção fiel do jor nal, onde pa re ce ter ha vi do in ter po la ção de li nhas. Pen sa -mos que a for ma cor re ta se ria: “e os pés dis for mes de qua se to dos, sal pi ca dos depla cas cir cu la res de ne gri das, pa ten te i am, ain da pro fun da men te cra va dos, os lon -gos es pi nhos di la ce ran tes que tra zem do ser tão”. N. do R.

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Em car ta an te ri or ex pus já, fir me men te ba se a do, as ca u sasde ter mi na das da he ca tom be.

Não se fez uma guer ra, su bor di na da a pre ce i tos in vi o lá ve is –fez-se uma di li gên cia po li ci al com oito mil ho mens.

Daí as con se qüên ci as fu nes tas co nhe ci das.Per di do no de ser to, jun gi do a pro va ções imen sas, mu i tas ve zes

sem os mais ele men ta res re cur sos e sob o ata que per sis ten te e tra i ço e i rodo ini mi go, o sol da do bra si le i ro ja ma is pa ten te a rá ab ne ga ção ma i or. Di fi -cil men te se en con tra, fo lhe an do a His tó ria in te i ra, um exér ci to que, jáqua se fa min to de vés pe ra e ex te nu a do de com ba tes, se bata du ran te qua -tor ze ho ras, da ma dru ga da à no i te, sem to mar se quer uma gota d’água.

E isto deu-se ao in ves ti rem con tra Ca nu dos; afir mam-no,con tes tes, tes te mu nhas in sus pe i tas: a as pi ra ção pre do mi nan te no mo -men to, dos ven ce do res, ao pe ne tra rem as ca sas da zona con quis ta da, in -di fe ren tes ao ini mi go que aca so den tro de las ar mas se as úl ti mas trin che i ras,era en con trar uma bi lha d’água e um pu nha do de fa ri nha!

É in ve ros sí mil que o nos so sol da do, ba ten do-se den tro dapró pria pá tria, che gas se ao ex tre mo de con si de rar uma raiz de imbucomo um re ga lo raro, de epi cu ris ta.

Que ma i or ab ne ga ção se pode exi gir des ses que, ape sar detudo isto, ain da a esta hora lá es tão, fir mes, ina ba lá ve is, om bro a om broqua se com o ad ver sá rio tra i ço e i ro, sob as ten das de com ba te er gui dasden tro da que la po vo a ção mal di ta?

∗ ∗ ∗As pro vi dên ci as inú me ras, ur gen tes e se gu ras do mi nis tro da

Gu er ra têm ten di do to das para a re mo ção de in con ve ni en tes sé ri os.À pro por ção que se guem para Mon te San to e Ca nu dos as

tro pas, se guem as mu ni ções que lhes ga ran tem a sub sis tên cia na que laspa ra gens sel va gens. Por ou tro lado, uma li nha con tínua de pi que tes li ga -rá per ma nen te men te aque les pon tos, per mi tin do a mar cha se gu ra doscom bo i os de ví ve res e mu ni ções e a trans mis são rá pi da de cor res pon -dên ci as – li gan do, em suma, o exér ci to dis tan te à zona pro te to ra dos re -cur sos.

A cam pa nha, em seu ter mo em bo ra, as su me uma fe i ção ra ci o -nal, re gu la rís si ma – de re sul ta dos po si ti vos, que se tra du zi rão em pró xi -

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ma vi tó ria ain da quan do, o que não é pro vá vel, re vi ves se o ini mi go coma pri mi ti va pu jan ça.

Fora lon go enu me rar a vas ta sé rie de obs tá cu los re mo vi dos epro vi dên ci as pron ta men te da das nes tes úl ti mos dias – no pre pa rar, equi -par e ar mar mes mo, às ve zes, ba ta lhões que che gam des pro vi dos de re -cur sos e al guns com as ar mas im pres tá ve is.

E não são exa ge ra das tais me di das – ou in jus ti fi cá ve is pelapró pria con si de ra ção de es tar qua se ter mi na da a cru en ta em pre sa. Ru de -men te pro va das, as for ças que as se di am a Meca dos ja gun ços de vem ser,em par te, quan to an tes, subs ti tu í das e re for ça das.

Além dis to – por que não o di zer? – o im pre vis to tem exer ci -do so bre a nos sa exis tên cia po lí ti ca uma ação tão per sis ten te que deveen trar como ele men to pre pon de ran te em to das as com bi na ções; é pre ci -so con tar com ele; é pre ci so es pe rar – o ines pe ra do...

BAHIA – 13 DE AGOSTO

Ontem, na Ci da de Ba i xa, ao atra ves sar em pas se io uma rua, oGe ne ral Sa va get teve brus ca men te to lhi da a sua mar cha ca u te lo sa decon va les cen te.

Um ci da dão qual quer re co nhe ceu-o e pro nun ci ou-lhe onome, e, cé le re como um re lâm pa go, este nome imor tal abran geu nummo men to aque la zona co mer ci al da ci da de.

Esta ca ram, de sú bi to, ne go ci an tes que se gui am – pas sos es tu -ga dos, aza fa ma dos, ru mi nan do ci fras, ar qui te tan do tran sa ções – ca mi nhodos ban cos e da Bol sa; pa ra li sou-se du ran te al guns mi nu tos a mo vi men -ta ção com pli ca dís si ma de um mer ca do enor me e num dia co mum, de tra -ba lho, abriu-se re pen ti na men te, como um pa rên te se, vi bran te e fes ti vo,um quar to de hora de ver da de i ra fes ta na ci o nal.

A lin gua gem seca dos te le gra mas trans mi tiu para aí o fato,mas não o pôde de fi nir.

O ve lho com ba ten te, que re vi veu em Co co ro bó o he ro ís molen dá rio de Leô ni das, teve, tal vez, a mais bela con sa gra ção da sua gló riaim pe re cí vel.

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Com pre en de-se a ma jes ta de do tri un fo dos he róis que che -gam, lon ga men te es pe ra dos, en tran do nas ci da des or na men ta das, sobar cos tri un fa is ar tis ti ca men te cons ti tu í dos, emer gin do au re o la dos doseio de um povo que veio à pra ça pú bli ca com o pro pó si to, a in ten çãopre es ta be le ci da de sa u dá-lo ar den te men te.

For ra-se, po rém, à com pre en são vul gar, a cena ex tra or di ná riades sa ova ção pla ne a da num se gun do, sem ban das mar ci a is, sem hi nosvi bran tes, sem es tan dar tes mul ti co res pal pi tan do nos ares, sem che fes,sem a mise-en-scène ba nal de sar ra fos pin ta dos – fe i ta re pen ti na men te, aoaca so, no ân gu lo de uma rua e fun din do as al mas to das em um bra doúni co de ad mi ra ção, sur gin do de cho fre e sur pre en den do mais aosma ni fes tan tes do que ao vi to ri a do.

E num ba ir ro ex clu si va men te co mer ci al, ex plo din do de den -tro da fri e za cal cu lis ta e sis te má ti ca do ego ís mo hu ma no...

Como ver da de i ro he rói, ven ci do pela ex pan são afe ti va dosco ra ções, fra gí li mo ante as sa u da ções ca ri nho sas,

De ver re pour ge mir, d’airain pour re sis ter

o ve lho li da dor que atra ves sa va, sob um chu ve i ro de ba las, as gar gan tasdas Ter mó pi las do ser tão, ani man do com um sor ri so pe re ne o sol da do,co mo veu-se pro fun da men te.

Este fato, al ta men te ex pres si vo, deve ser me mo ra do; o povoaqui la ta com ins tin to ad mi rá vel o va lor des ses ho mens e não erra nun ca.

∗ ∗ ∗Eu co nhe cia de há mu i to, ir ra di an do da His tó ria, de fi ni da em

pá gi nas no tá ve is, essa mo dés tia ca rac te rís ti ca dos va len tes e dos for tes.Vi-a de per to, ago ra, ao vi si tar o Ge ne ral Sa va get e o Co ro nel

Car los Te les.Encon trei este úl ti mo no quar tel da Pal ma.Almo ça va, ro de a do de ami gos, con va les cen te ain da de dois

fe ri men tos, ten do so bre os om bros o pala rio-gran den se, ves te tra di ci o -nal e in se pa rá vel do sol da do do Sul.

Afe i to, de há mu i to, como tes te mu nha das mais agi ta das qua dras da exis tên cia da Re pú bli ca, a pre sen ci ar afo gue a das ex pan sões de bra vu raem que os va len tes se re ves tem de uma fe i ção te a tral, que é como o char la -

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ta nis mo da co ra gem – as som brou-me a pla ci dez mo des ta de um ho mem,cujo nome é, hoje, na boca do nos so sol da do, a pa la vra sa gra da da vi tó ria.

Inqui riu-me, so lí ci to, pe los pa ren tes au sen tes, e ao re fe rir-sede po is, res pon den do a per gun tas dos cir cuns tan tes, aos epi só di os ca pi -ta is da guer ra, ob ser vei a pre o cu pa ção de ocul tar os pró pri os fe i tos,anu lan do-se vo lun ta ri a men te, pelo pa ten te ar ex clu si vo de alhe i os ras gosde bra vu ra.

Por ou tro lado, quem vi si tas se o Ge ne ral Sa va get, no For te de Je qui ta ia, pro cu ran do o che fe im pá vi do da 2ª Co lu na e pre fi gu ran douma fe i ção ex pres si va e enér gi ca de li da dor es trê nuo, te ria po si ti va men te uma de cep ção, ante um ho mem de as pec to mo des to e dig no, con ver -san do cal mo, com uma dic ção cor re tís si ma e ges tos co me di dos, re ves ti -do de uma ado rá vel pla ci dez bur gue sa, de todo con tras tan do ao re no me guer re i ro que o cir cun da.

Ao des pe dir-me, em ín ti ma evo ca ção de an ti qüís si ma le i tu ra,ilu mi nou-me o pen sa men to a fra se de French ao de i xar John Stir ling:sen ti-me de al gum modo eno bre ci do e ele va do a uma es fe ra su pe ri oràque la em que de or di ná rio nos de i xa mos vo lun ta ri a men te fi car.

E de po is dis to sin to uma pi e da de es tra nha pe los bra vos – esão tan tos em toda a par te! – que fer vi lham em to dos os lu ga res, depos tu ra de sem pe na da como se ves tis sem far das sob es par ti lhos jus tos,de olhar do mi na dor e ges tos sa cu di dos, es pan tan do a bur gue sia tí mi dacom o re la tar de es tre pi to sas fa ça nhas, ar ras tan do es tri du la men te, re ti -nin do nas pe dras das cal ça das, os glá di os cin ti lan tes...

BAHIA – 15 DE AGOSTO

Há dias era o Ba ta lhão Pa u lis ta que aqui sal ta va, de fi nin douma res sur re i ção his tó ri ca – a apa ri ção tri un fal dos ban de i ran tes re no -van do as in ves ti das ou sa das no ser tão; de po is os ba ta lhões do Sul, ne tos e fi lhos de far ra pos, tro can do aque les pam pas vas tís si mos, al te ra dos,ape nas, num ou nou tro pon to, pe las co li nas le ve men te ar re don da das,por um país di ver so em que os ho ri zon tes se abre vi am den tro de va leses tre i tos e as mon ta nhas apru ma das pa ra li sam as mar chas; ago ra, do ex -

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tre mo nor te, da Ama zô nia, tos ta dos pe los ra i os ver ti ca is dos sóis doEqua dor, são os fi lhos do Pará que aqui che gam.

Vêm, su ces si va men te, pro ma nan do de to dos os pon tos danos sa ter ra, con ver gin do to dos para o seio da an ti ga me tró po le, re u nin -do-se pre ci sa men te no solo onde pela pri me i ra vez apa re ce mos na His -tó ria, o pa u lis ta em pre en de dor e al ti vo, o rio-gran den se im pe tu o so ebra vo e o fi lho do Nor te ro bus to e re sis ten te. E a an ti ga ca pi talabre-lhes o seio, aga sa lha-os no re cin to sa gra do de seus ba lu ar tes, des -per tan do, trans fi gu ra da da qui e tu de an te ri or, como que en vol ven do nomes mo afa go, ca ri nho so e ar den te, a nu me ro sa pro le há sé cu los er ra dia,es par sa.

Índo les di ver sas, ho mens nas ci dos em cli mas dis tin tos pormu i tos gra us de la ti tu de, con tras tan do nos há bi tos e ten dên ci as ét ni cas,va ri an do nas apa rên ci as; fron tes de to das as co res – do mes ti ço tri gue i ro ao ca bo clo aco bre a do e ao bran co – aqui che gam e se uni fi cam sob oin flu xo de uma as pi ra ção úni ca.

Pa re ce um re flu xo pro di gi o so da nos sa His tó ria. De po is delon ga men te afas ta dos, to dos os ele men tos da nos sa na ci o na li da de vol -vem brus ca men te ao pon to de onde ir ra di a ram, ten den do ir re sis ti vel -men te para um en tre la ça men to be lís si mo.

∗ ∗ ∗Este es pe tá cu lo é elo qüen tís si mo e jus ti fi ca de al gu ma sor te

os que – oti mis tas nes ta épo ca tor men to sa – vêem nele a fe i ção útil eboa, se é pos sí vel, des ta cam pa nha in gló ria.

Não é, cer to, a pri me i ra vez, esta, em que se ope ra uma ar re -gi men ta ção ge ral de for ças e se unem os bra si le i ros es par sos.

O caso atu al, po rém, é, sob mu i tos as pec tos, o mais ex pres si -vo de to dos. Não se tra ta de de fen der o solo da pá tria do ini mi go es -tran ge i ro; a luta tem uma sig ni fi ca ção mais alta e terá re sul ta dos maisdu ra dou ros.

Obser vo-a de per to, sin to de per to a co mo ção ex tra or di ná riaque aba la, aqui, to dos os nos sos pa trí ci os; e in ter pre tan do com se gu ran -ça essa uni for mi da de ex tra or di ná ria de vis tas que iden ti fi ca na mes maca u sa ele men tos tão he te ro gê ne os, cre io que a or ga ni za ção su pe ri or danos sa na ci o na li da de, em vir tu de da ener gia ci vi li za do ra acres ci da, re pe le,

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pela pri me i ra vez, es pon ta ne a men te, ve lhos ví ci os or gâ ni cos e he re di tá -ri os to le ra dos pela po lí ti ca ex pec tan te do Impé rio.

Por que, re al men te, este in ci den te de Ca nu dos é ape nas sin to -má ti co; er ra mos se o con si de rar mos re su mi do numa al de ia per di da nosser tões. Antô nio Con se lhe i ro, es pé cie bi zar ra de gran de ho mem peloaves so, tem o gran de va lor de sin te ti zar ad mi ra vel men te to dos os ele -men tos ne ga ti vos, to dos os agen tes de re du ção do nos so povo.

Vem de lon ge – re pe li do aqui, con ven cen do mais adi an te,num rude pe re gri nar por es tra das as pér ri mas – e não men te quan do dizque é um res sus ci ta do por que é um no tá vel exem plo de re tro a ti vi da deatá vi ca, e no seu mis ti cis mo in te res san te de do en te gra ve res sur gem, in -tac tos, to dos os er ros e su pers ti ções dos que o pre ce de ram, de i xan -do-lhe o es pan to so le ga do.

Acre di ta que não mor re por que pres sen te, por uma in tu i çãoins tin ti va, que em seu cor po fra gí li mo de evan ge li za dor exa us to dos ser -tões, se con cen tram as al mas to das de uma so ci e da de obs cu ra, que temre pre sen tan tes em to dos os pon tos da nos sa ter ra.

Arras ta a mul ti dão, con tri ta e do mi na da, não por que a do mi -ne, mas por que é o seu pro du to na tu ral mais com ple to.

É ini mi go da Re pú bli ca não por que lhe ex plo rem a ima gi na -ção mór bi da e ex tra va gan te de gran de trans vi a do, mas por que o en cal -çam o fa na tis mo e o erro.

E sur ge ago ra; – per ma ne ceu em vida la ten te lon go tem po ede via apa re cer na tu ral men te, lo gi ca men te qua se, ante uma si tu a ção so ci almais ele va da e bri lhan te, de fi ni da pela nova for ma po lí ti ca como es sasse men tes guar da das há qua tro mil anos no seio som brio das pi râ mi des,des de os tem pos fa raô ni cos, e ger mi nan do es pon ta ne a men te ago ra,quan do ex pos tas à luz.

Daí a sig ni fi ca ção su pe ri or de uma luta que tem nes ta hora avan ta gem de con gre gar os ele men tos sãos da nos sa ter ra e de ter mi narum lar go mo vi men to na ci o nal to ni fi can te e for te.

Por que – con si de re mos o fato sob o seu as pec to real – o quese está des tru in do nes te mo men to não é o ar ra i al si nis tro de Ca nu dos: éa nos sa apa tia ener van te, a nos sa in di fe ren ça mór bi da pelo fu tu ro, anos sa re li gi o si da de in de fi ní vel di fun di da em su pers ti ções es tra nhas, a

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nos sa com pre en são es tre i ta da pá tria, mal es bo ça da na in con sis tên cia de uma po pu la ção es pa lha da em país vas to e mal co nhe ci do; são os res tosde uma so ci e da de ve lha de re tar da tá ri os ten do como ca pi tal a ci da de deta i pa dos ja gun ços...

Escre vo no meio agi ta do dos que se apres tam ra pi da men tepara a cam pa nha; ob ser vo-lhes o sen ti men to uni for me ir rom pen do detem pe ra men tos di ver sos e pre ve jo os re sul ta dos po si ti vos des se mo vi -men to cuja fe i ção des tru i do ra é um in ci den te tran si tó rio.

E por uma co in ci dên cia no tá vel é den tro da an ti ga me tró po leque ele se re a li za; aqui se ali am hoje com pa tri o tas que che gam dos maisafas ta dos pon tos. Vão su por tar jun tos os mes mos dias pe no sos, li ga dosma te ri al men te pe los mes mos tra ba lhos e pe los mes mos pe ri gos nasmar chas di fí ce is e na ba ta lha, li ga dos es pi ri tu al men te pela mes ma as pi ra -ção, co mun gan do sob o mes mo ide al – e ao vol ta rem ama nhã, uma ali -an ça mo ral mais fir me di ri mi rá tal vez a dis tân cia en tre o Sul e o Nor -te, tor na rá com cer te za mais har mô ni cos os va ri a dos fa to res da nos sa na ci o na li da de.

Esta qua dra di fí cil tra du zi rá en tão, so men te, um rude tra ba lho de adap ta ção a con di ções mais ele va das de exis tên cia; evolvemos.

Além dis to re ce be mos uma li ção pro ve i to sa e inol vi dá vel. Os que go ver nam re co nhe ce rão os in con ve ni en tes gra ves que

re sul tam, de um lado des sa ins ciên cia de plo rá vel em que vi ve mos acer ca das re giões do in te ri or, de todo des co nhe ci das mu i tas, e, de ou tro, oaba ti men to in te lec tu al em que ja zem os que as ha bi tam.

So bre tu do este úl ti mo é um ini mi go per ma nen te.Qu an do vol ta rem vi to ri o sas as for ças que ora con ver gem

aqui, com ple te mos a vi tó ria.Que pe las es tra das, ora aber tas à pas sa gem dos ba ta lhões glo -

ri o sos, que por es sas es tra das ama nhã si len ci o sas e de ser tas, siga, de po is da luta, mo des ta men te, um he rói anô ni mo sem tri un fos ru i do sos, masque será, no caso ver ten te, o ver da de i ro ven ce dor: o mes tre-es co la.

∗ ∗ ∗Aguar dan do ain da, aqui, a pró xi ma par ti da para os ser tões, e

sob a su ges tão pe re ne dos qua dros que te nho ex pos to, mal re le io as li -

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nhas que es cre vo, lon ge da tran qüi li da de de um ga bi ne te de es tu do e dains pi ra ção se re na dos li vros pre di le tos.

É pos sí vel que das no tas rá pi das de um diá rio, em que os pe -río dos não se ali nham cor re tos, dis ci pli na dos e cal ma men te me di ta dos,res sum brem exa ge ros; é pos sí vel mes mo que eu os re le ia mais tar de comsur pre sa. Mas nes sa oca sião es ta rei como os que ago ra as lêem – fora docír cu lo hip nó ti co de um en tu si as mo sin ce ro e não te rei, como ago ra te -nho, di an te de mim a vi são des lum bran te de uma pá tria re ge ne ra da –, aover pas sar, ao rit mo re tum ban te dos tam bo res, os ti tãs bron ze a dos queche gam do Nor te numa re vi ves cên cia ani ma do ra de ener gi as...

BAHIA – 16 DE AGOSTO

Ao che gar aqui e as sal ta do logo por im pres sões no vas e va ri a -das, per tur ba do ras de um ju í zo se gu ro, acre di to, às ve zes, que ava li ei im -per fe i ta men te a si tu a ção e do mi na do tal vez pela opi nião ge ral en tre osque vol ta vam de Ca nu dos dis se tam bém com eles:

– Está qua se ter mi na da a luta e não fará mais ví ti mas.Ho mens da ma i or res pe i ta bi li da de, que por es cu sa do me per -

mi to não ci tar, afir ma ram-me ca te go ri ca men te, con vic tos, que na po vo a -ção si ti a da não exis ti am, tal vez, du zen tos re bel des, di mi nu í dos além dis toco ti di a na men te pela fuga to das as no i tes, por meio da es tra da fran ca doCam ba io e pe los es tra gos de um bom bar de io per sis ten te. Ou tras tes te -mu nhas de vis ta ga ran ti ram, con tes tes, que, nos com ba tes sub se qüen tesà gran de ba ta lha de 18 de ju lho, fo ram vis tos, os ja gun ços, des mo ra li za dos e aco bar da dos, a pon to de pe le ja rem en tre dois ad ver sá ri os – os sol da -dos pela fren te e os che fes pela re ta guar da le van do-os, tan gi dos a bas to -na das, ao com ba te não de se ja do.

Há mu i tas tes te mu nhas ocu la res des te fato, de fi ni dor do má -xi mo de sâ ni mo en tre os fa ná ti cos.

Por ou tro lado, pri si o ne i ros de am bos os se xos con cor dam emafir mar um fato que pa ten te ia um co me ço de dis cór dia: o Con se lhe i roquis ce der ren den do-se e foi te naz men te im pe di do por Vi la no va, es pé -cie de che fe tem po ral da grei re be la da.

32 Eu cli des da Cunha

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– Fica; faze os teus mi la gres! foi a in ti ma ti va enér gi ca e do mi -na do ra do ca be ci lha. E o pro fe ta cla u di can te que ga ran ti ra que as tro pasdo go ver no do Di a bo des ta vez não ve ri am se quer as tor res sa gra das dasigre jas de Belo Mon te (Ca nu dos), que bra do o pri mi ti vo en can to, ce deu.

Além de tudo isto, a mi sé ria a mais pro fun da e a fome re fle ti -das nos cor pos qua se ina ni dos, car ca ças qua se va zi as dos pri si o ne i rosfe i tos – e dos mor tos cuja es tra nha ma gre za é a nota cons tan te das nar -ra ti vas que fa zem os sol da dos –, iam, cer to, len ta men te, com ple tan do ades tru i ção.

As es tra das in te i ra men te fran cas e pra ti cá ve is, li vres dasem bos ca das pri mi ti vas, atra ves sa das cal ma men te pe los que aqui têmche ga do, in di cam que a re gião em tor no está de todo ex pur ga da deini mi gos.

Ora, to das es sas ver sões já são ve lhas nes ta qua dra tor men to saem que uma hora tem um va lor imen so; já têm quin ze dias.

Há quin ze dias que se aguar da a to dos os mi nu tos a ren di çãodo ar ra i al, já ocu pa do, em par te, pe las nos sas for ças e ten do ape nas du -zen tos ini mi gos com ba li dos pe las fa di gas e pela fome, cin di dos pela dis -cór dia e de sa len ta dos a pon to de irem para a ba ta lha – a pau...

E se con si de rar mos que eles sa bem dos re for ços que se gueme dos que hoje, nes te mo men to, de vem es tar che gan do a Ca nu dos, paracom ple tar o cer co, tran can do-lhes de fi ni ti va men te a úni ca es tra da li vre – e da qual não se apro ve i tam, em tem po, fu gin do à mor te ine vi tá vel –,so mos ir re sis ti vel men te le va dos a con si de rar a cam pa nha, em vez depró xi ma ao seu ter mo, sob a sua fe i ção pri mi ti va, in com pre en sí vel, mis -te ri o sa.

Ela tem-no sido des de o co me ço; des de o prin cí pio que osde sas tres so bre vêm – sur pre en den do a toda a gen te, ines pe ra da men te,ca in do de cho fre no mo men to em que se es pe ra a vi tó ria e se an te ci pam ova ções tri un fa is.

Por que ra zão os ja gun ços, des mo ra li za dos, em nú me ro re du zi -do, ten do ain da fran ca a fuga para o ser tão in de fi ni do e im pér vio ondenão há des co bri-los, no seio de uma na tu re za que é a sua me lhor armade guer ra, es pe ram que lhes fe chem a úni ca es tra da para a sal va ção,

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aguar dam que se com ple te o sí tio do qual re sul ta rão a ren di ção e to dasas suas fu nes tas con se qüên ci as?

Afas ta da a hi pó te se de um de vo ta men to so bre-hu ma no quelhes im po nha o su cum bir sob os mu ros des man te la dos dos tem plos que ale van ta ram, qua se que se é ir re sis ti vel men te in cli na do a pen sar numanova ci la da ca in do ex abrup to, ba ra lhan do mais uma vez os pla nos dacam pa nha.

Do mes mo modo que as nos sas tro pas an se i am por no vos re -for ços que che gam, não es pe ra rão eles, aca so, dos ser tões des co nhe ci -dos que se des do bram ao nor te e no ro es te de Ca nu dos, for tes con tin -gen tes que po nham a nos sa gen te en tre dois fo gos?

Não será tam bém lí ci to con je tu rar, afas ta da esta su po si ção,que o nú me ro re la ti va men te pe que no dos que per ma ne ce rem no ar ra i al, ar ros tan do to dos os pe ri gos, te nha como ob je ti vo atra ir ex clu si va men tepara ali o Exér ci to e ali de mo rá-lo, ilu di do du ran te al gum tem po, até que se re vi go rem os fa ná ti cos e se re ú nam e se re for cem em ou tro qual querpon to de mais di fí cil aces so, mais pro fun da men te en cra va do no ser tão?

Estas in ter ro ga ti vas avul tam em meu es pí ri to des de o dia emque pro cu ran do ti rar uma mé dia das opi niões que aqui cir cu lam não ocon se gui e com pre en di que, gran de par te dos que vol tam da que las pa ra -gens, des co nhe cem a si tu a ção tan to quan to os que lá não fo ram.

Acres ce mais que se ain da on tem, unâ ni mes, ofi ci a is dis tin tís -si mos afir ma vam-me que a po vo a ção es ta va qua se que toda aban do na da e des tru í da, hoje dis tin tís si mos ofi ci a is, re cém-vin dos, cu jos no mespo de rei ci tar, afir mam que ela ain da tem mu i ta gen te, per fe i ta men temu ni ci a da e apta para lon ga e te naz re sis tên cia.

Pro cu rar-se a ver da de nes te tor ve li nho é im por-se a ta re faes té ril e fa ti gan te de Sí si fo.

O es pí ri to mais ro bus to e dis ci pli na do es go ta-se em con je tu rasvãs; nada de duz – os ci la in de fi ni da men te, in ter mi ten te men te, num agi tar inú til de dú vi das, en tre con clu sões opos tas, do de sâ ni mo com ple to àes pe ran ça mais alta.

Os pró pri os sol da dos, ru des ho mens sin ce ros, des pe a dos daspa i xões que en la çam os que atu am num pla no su pe ri or da vida, nãoacor dam mu i tas ve zes no que afir mam. Mu i tos lá es ti ve ram des de as pri -

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me i ras ex pe di ções e con fes sam in ge nu a men te, le al men te, que nada sa -bem, nun ca vi ram o ini mi go se não de po is de mor to, nun ca o vi ramfren te a fren te, bra ço a bra ço, na re fre ga do com ba te, não o co nhe cemab so lu ta men te, não sa bem quan tos exis tem.

Como se tudo isto não bas tas se para im pres si o nar vi va men tee fa zer va ci lar o es pí ri to mais enér gi co, aí es tão es tas ir rup ções diá ri as,cuja des cri ção te nho fe i to sem exa ge ro, de fe ri dos, cujo nú me ro as som -bra – che gan do in va ri a vel men te to dos os dias, en chen do in te i ra men teto dos os hos pi ta is e trans bor dan do ago ra de les e de ri van do ago ra para o seio dos con ven tos. E aí es tão mais tris tes ain da se é pos sí vel, mais do -lo ro sos e de plo rá ve is – es tes in qua li fi cá ve is pe di dos de re for ma fe i tosdi an te do ini mi go, sob a ban de i ra da Pá tria va ra da de ba las; três ou qua -tro tal vez que doem mais do que a der ro ta de uma bri ga da e cuja no tí cia che ga de um modo lú gu bre no seio dos que se apres tam para a luta.

E di an te de tudo isto, di an te de tan tas opi niões de sen con tra das acer ca de um ini mi go que per ma ne ce ina ba lá vel den tro de um cír cu lo defer ro, e que gera tan tos ma les pro du zin do es tas mul ti dões de már ti res he -rói cos me nos tris tes, di ga mo-lo de pas sa gem, do que a meia dú zia dosque têm a co ra gem so bre-hu ma na de di zer ao país in te i ro que são co bar -des di an te des ta si tu a ção re al men te in de fi ní vel, jus ti fi cam-se am pla men teto das as dú vi das, com pre en dem-se as in ter ro ga ções que fi ze mos.

E se con si de rar mos ain da que, re al men te, con for me on temde cla ra mos, este in ci den te de Ca nu dos é ape nas sin to má ti co, fal se an do a ver da de quem o con si de rar re su mi do nas agi ta ções de um ar ra i al ser ta -ne jo por que, nes ta hora mes mo, falo com in te i ro co nhe ci men to de ca u -sa, nes ta gran de Ca pi tal – cuja po pu la ção, em sua ma i o ria, é de uma no -bre za ad mi rá vel e tem-se re ve la do de uma ge ne ro si da de sem par nes taemer gên cia –, nes ta hora mes ma, aqui, há ve las que se acen dem em re -côn di tos al ta res e pre ces fer vo ro sa men te mur mu ra das em prol do si nis -tro evan ge li za dor dos ser tões, cu jos pro sé li tos não es tão to dos lá – secon si de rar mos isto, en tão, não há con je tu ras que se não jus ti fi quem, por mais ou sa das que se jam.

Re al men te, quem quer que no mo men to atu al, su bor di na do auma lei ru di men tar de fi lo so fia, pro cu re, nes te meio, cal car as con cep -ções sub je ti vas so bre os ma te ri a is ob je ti vos, não as terá se gu ras e ani ma -do ras quan do es tes são tão in co e ren tes e des co ne xos.

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Eu de se jo, po rém, es tar em erro; de se jo ar den te men te que se -jam es tas li nhas divagações exa ge ra das e que o fu tu ro fi que eter na men te mudo di an te da que las in ter ro ga ções. Que ao che gar aí esta car ta – alar -man te, tal vez, sin ce ra com cer te za – che gue tam bém a nova da vi tó ria,des tru in do-a e im pe din do a sua pu bli ca ção.

Nun ca de se jei tan to re ce ber uma ré pli ca es ma ga do ra, umacon tra di ta vi to ri o sa.

BAHIA – 18 DE AGOSTO

Um Epi só dio da LutaEm dias de ju nho úl ti mo um dos fi lhos de Ma cam bi ra, ado -

les cen te de quin ze anos, abe i rou-se do rude che fe ser ta ne jo:– Pai, que ro des tru ir a ma ta de i ra. (Sob tal de no mi na ção in di -

cam os ja gun ços o ca nhão Krupp, 32, que tem fe i to en tre eles es tra goscon si de rá ve is.)

O si nis tro ca be ci lha, es pé cie gros se i ra de Ima nus aco bre a do e bron co, fi tou-o im pas sí vel:

– Con sul ta o Con se lhe i ro – e vai.E o ra paz se guiu acom pa nha do de onze com pa nhe i ros atre -

vi dos.Atra ves sa ram o Vaza-Bar ris seco e fra ci o na do em ca cim bas,

in ves ti ram con tra a pri me i ra en cos ta à mar gem di re i ta, em bre nha ram-se, num des li zar ma cio e si len ci o so de co bras, pe las ca a tin gas pró xi mas.

Ia em meio o dia.O sol, num fir ma men to sem nu vens, dar de ja va a pino so bre

os lar gos ta bu le i ros, lan çan do, sem fa zer som bra, até ao fun do das que -bra das mais fun das, os ra i os ver ti ca is ar den tes.

Na que las pa ra gens lon gín quas e in gra tas, o meio-dia é maissi len ci o so e lú gu bre do que as mais tar di as ho ras da no i te. Re ver be ran donas ro chas ex pos tas, lar ga men te re fle ti dos nas cha pa das des nu da das, semve ge ta ção, ou ab sor vi dos por um solo seco e ás pe ro de grés, os ra i os so la -

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res au men tam de ar dor; e o ca lor emi ti do para a ter ra re flui para o es pa ço nas co lu nas as cen den tes do ar di la ta do, mor no, ir res pi rá vel qua se.

A na tu re za que da-se si len ci o sa num ani qui la men to ab so lu to; não sul ca a vi ra ção mais leve os ares, cuja trans pa rên cia per to do solo se per tur -ba em on du la ções rá pi das, can den tes; re pou sa dor mi tan do a fa u na re sis ten -te das ca a tin gas; mur cham as fo lhas, ex si ca das, nas ár vo res cres ta das.

O Exér ci to re pou sa va es ma ga do pela ca ní cu la.De i ta dos e es par sos pe las en cos tas, bo nés pos tos aos ros tos

para res guar dá-los, dor mi tan do, ou pen san do nos la res dis tan tes, os sol -da dos apro ve i ta vam al guns mo men tos de tré guas, res ta be le cen do for çaspara a afa no sa lide.

Em fren te, enor me, der ra ma da sem or dem so bre a lar ga en -cos ta em que se eri ge, com as suas exí guas ha bi ta ções de sor de na da men tees pa lha das, sem ruas e sem pra ças, acer vo in co e ren te de ca sas, apa re ciaCa nu dos, de ser ta e muda, como uma ta pe ra imen sa, aban do na da.

Cir cun va lan do-a, em par te, como um fos so ir re gu lar e fun do,o Vaza-Bar ris pro lon ga-se à di re i ta, si nu o so, de sa pa re cen do, lon ge, en tre as gar gan tas abrup tas de Co co ro bó. No fun do, fe chan do o ho ri zon te,des do bra-se a lom ba da ex ten sa da ser ra da Ca na bra va...

O Exér ci to re pou sa va... Nis to des pon tam, emer gin do ca u -tos, à bor da do mato ras te i ro e tran ça do de ár vo res ba i xas e es ga lha -das, na cla re i ra em que es ta ci o na a ar ti lha ria, doze ros tos es pan ta dos– olha res rá pi dos pers cru tan do to dos os pon tos –, doze ros tos ape -nas de ho mens ain da mer gu lha dos, de ras tos, no seio tran ça do dasma cam bi ras.

E sur gem len ta men te; nin guém os vê; nin guém os podever; – dá-lhes as cos tas, numa in di fe ren ça so be ra na, o Exér ci to quere pou sa.

Em fren te, a cin qüen ta me tros ape nas, eles di vi sam o ob je ti vo da em pre sa.

Como um ani mal fan tás ti co e mons tru o so, o ca nhão Krupp, ama ta de i ra, as so ma so bre o re pa ro re sis ten te, vol ta da para Belo Mon te aboca tru cu len ta e fla mí vo ma – ali – so bre a ci da de sa gra da, so bre as igre -jas, pres tes a ru gir gol fan do as gra na das for mi dá ve is – si len ci o sa ago ra,

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iso la da e imó vel – bri lhan te o dor so lu zi dio e es cu ro, onde os ra i os do sol caem, re fle tem, dis per sam-se em cin ti la ções ofus can tes.

Os fa ná ti cos au da zes apru mam-se à bor da da cla re i ra e ar ro -jam-se im pá vi dos so bre a peça odi a da.

Vin gam a dis tân cia de um sal to e cir cun dam o mons tro deaço, si len ci o sos, ter rí ve is – res fo le gan do sur da men te.

Um dos mais ro bus tos traz uma ala van ca pe sa da; er gue-a e apan ca da des ce vi o len ta men te, re ti nin do.

E um bra do de alar me al tís si mo e vi ril, par tin do brus ca men teo si lên cio uni ver sal das co i sas, mul ti pli can do-se nas que bra das, en chen -do o es pa ço todo, des do bra do em ecos que as cen dem de to dos os va les, re flu em rá pi dos nas mon ta nhas, um bra do de alar me al te ia-se, numavi bra ção tri un fal, es tru gi dor e imen so.

For mam-se ra pi da men te os ba ta lhões; num mo men to os ata -can tes ou sa dos vêem-se, pre sos, num cír cu lo in trans po ní vel de ba i o ne tase caem sob os gol pes e sob as ba las.

Um ape nas se sal va, gol pe a do, ba le a do, sal tan do, cor ren do, ro -lan do, in tan gí vel en tre os sol da dos, atra ves san do uma rede de ba las, vin -gan do as pon tas das ba i o ne tas, ca in do em che io nas ca a tin gas que atra -ves sa ve loz men te e des pe nhan do-se, li vre afi nal, al can do ra do so bre abis -mos, pe los pen do res apru ma dos da mon ta nha...

∗ ∗ ∗Estas e ou tras his tó ri as, con tam-nas, aqui, os sol da dos, co la -

bo ra do res in cons ci en tes das len das que en vol ve rão mais tar de esta cam -pa nha cru de lís si ma.

BAHIA – 19 DE AGOSTO

O Co ro nel Car los Te les trou xe de Ca nu dos um ja gun çoado les cen te.

Cha ma-se Agos ti nho – 14 anos, cor exa tís si ma de bron ze; fra -gí li mo e ágil; olhos par dos, sem bri lho; ca be ça cha ta e fron te de pri mi da;

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lá bi os fi nos, in co lo res, en tre a ber tos num leve sor ri so pe re ne, de i xan doper ce ber os den tes pe que ni nos e al vos.

Res pon de com vi va ci da de e se gu ran ça a to das as per gun tas.Des cre veu ni ti da men te as fi gu ras pre pon de ran tes que ro de i am

o Con se lhe i ro e, tan to quan to o pode per ce ber a sua in te li gên cia in fan til,a vida em Ca nu dos.

O bra ço di re i to do rude evan ge lis ta – já o sa bía mos – é JoãoAba de, ma me lu co qua se ne gro – im pe tu o so, bra vo e for te –, de vozre tum ban te e im pe ra ti va; bem ves ti do sem pre. Co man dou os fa ná ti cos no com ba te de Uauá. É o exe cu tor su pre mo das or dens do che fe. Cas ti ga apal ma to a das na pra ça, em fren te às igre jas, aos que rou bam ou ver gas ta as mu lhe res que pro ce dem mal. Exer ce es tra nho do mí nio so bre toda apo pu la ção.

Subs ti tu ía-o, em cer tas oca siões, Pa jeú, hoje mor to, ca bo cloalto e re for ça do, fi gu ra de sem pe na da de atle ta, in can sá vel e sem par noven cer ra pi da men te as ma i o res dis tân ci as, trans mi tin do or dens, apa re cen doem to dos os pon tos, vi o len to e ter rí vel na ba ta lha, ten do na mão di re i ta aes pin gar da con tra o sol da do e na es quer da lon go ca ce te para es ti mu larvi go ro sa men te os ja gun ços va ci lan tes na re fre ga. Bu lhen to, tem pes tu o so,mas de cos tu mes sim ples, sem am bi ções.

Vi la no va, co mer ci an te, dono das me lho res ca sas de ne gó cioque cons ti tu íam o co mér cio, ri quís si mo e pro cu ran do ago ra uma fun çãopre do mi nan te.

Pe drão, mes ti ço de por te gi gan tes co; atre vi do e for te. Co -man dou os fa ná ti cos na tra ves sia ad mi rá vel de Co co ro bó.

Ma cam bi ra, ve lho re bar ba ti vo e feio; in te li gen tís si mo e ar di lo so.Com sur pre sa ouvi: Ma cam bi ra é de uma co bar dia imen sa; as pró pri asmu lhe res não o te mem. Nin guém, po rém, pre pa ra me lhor uma ci la da; éo es pí ri to in fer nal da guer ra, sem pre fér til no ima gi nar em bos ca dassú bi tas, ines pe ra das.

O fi lho Jo a quim Ma cam bi ra era, pelo con trá rio, va len te; mor -reu ten tan do, em as sal to au da ci o so, inu ti li zar, acom pa nha do ape nas deonze com pa nhe i ros, o ca nhão Krupp, 32.

Ma nu el Qu a dra do, ho mem tran qüi lo e ino fen si vo; cu ran de i roex pe ri men ta do, de be lan do as mo lés ti as mer cê de uma far ma co péia ru di -

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men tar; co nhe ce dor de to das as fo lhas e ra í zes be né fi cas, vi ven do iso la donum in ves ti gar pe re ne, pe las dro ga ri as ine xa u rí ve is e pri mi ti vas das ma tas.

José Fé lix, o Ta ra me la, é o guar da do san tuá rio e das igre jas; équem abre as por tas à pas sa gem so le ne do Con se lhe i ro ou in tro duz osque o pro cu ram – o ape li do so bre ve io-lhe des ta úl ti ma fun ção. Tem sobas suas or dens oito be a tas, mo ças aca bo cla das, ser vas sub mis sas do evan -ge li za dor, ser vin do-lhe em pi res exí guos a re fe i ção fru gal, tra zen do-lhe oba nho diá rio, cu i dan do-lhe da rou pa, acen den do co ti di a na men te no vas toal pen dre das ora ções as fo gue i ras que ilu mi nam a mul ti dão ge nu fle xa, re -zan do o ter ço. Ves tem rou pas azu is, cin gi das as cin tu ras por cor das deli nho al vís si mo; não va ri am nun ca este uni for me con sa gra do.

Qu an to a Antô nio Con se lhe i ro, ao in vés da sor di dez ima gi na -da, dá o exem plo de no tá vel as se io nas ves tes e no cor po. Ao in vés de um ros to es quá li do, agra va do no as pec to re pug nan te por uma ca be le i ra maltra ta da onde fer vi lham ver mes, emol du ram-lhe a face ma gra e ma ce ra da,lon ga bar ba bran ca, lon gos ca be los ca í dos so bre os om bros, cor re di os ecu i da dos.

Raro aban do na o san tuá rio; não faz vi si tas. To dos, in clu si ve oJoão Aba de, de as pec to mi naz, di ri gem-se a ele, des co ber tos, olhos fi xos no chão. Nas ra ras ex cur sões que faz, en vol to na tú ni ca azul in se pa rá vel, co bre-se de am plo cha péu de abas lar gas e ca í das, de fi tas pre tas.

O seu do mí nio é de fato ab so lu to; não pe ne tra em Ca nu dosum só vi a jan te sem que ele o sa i ba e per mi ta. As or dens da das, cum pri -das re li gi o sa men te. Algu mas são cru de lís si mas e pa ten te i am a fe i çãobár ba ra do ma nía co cons tru tor de ce mi té ri os e igre jas.

De po is do com ba te de Uauá, he ro i ca men te sus ten ta do pelapri me i ra ex pe di ção do Te nen te Pi res Fer re i ra, pro pa lou-se no ar ra i al queum dos seus ha bi tan tes, um cer to Mota, ha via pre ve ni do a for ça ex pe di ci o -ná ria do gran de nú me ro de ini mi gos que a aguar da vam mais adi an te e que a di zi ma ri am7 fa tal men te. O Con se lhe i ro mur mu rou uma or dem a Pa jeú:no ou tro dia o tra i dor e toda a fa mí lia eram mor tos.

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7 Fre qüen te, em Eu cli des da Cu nha, a con cor dân cia no plu ral, em cons tru ções se -me lhan tes. O re la ti vo (que) re fe re-se à pa la vra ime di a ta men te an te ri or (ini mi gos),por isso os plu ra is aguar da vam e di zi ma ri am. N. do R.

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Ten do su cum bi do mu i tos ja gun ços na que le com ba te, al gu masvi ú vas es que ce ram-se, cedo, es can da lo sa men te, dos es po sos mor tos:amar ra das fir me men te em pos tes no lar go, em fren te a toda a po pu la çãocon vo ca da, fo ram ru de men te ver gas ta das por João Aba de e, de po is, ex -pul sas do ar ra i al.

É ab so lu ta men te in ter di to o uso da aguar den te, a ca ni nha, só -cia ami ga das ho ras de so cu pa das do ser ta ne jo do Sul. Uma vez apa re ceu,ines pe ra da, em Ca nu dos, uma tro pa pe que na – seis car gue i ros car re ga dosde aguar den te.

O tro pe i ro au daz, que ide a va tal vez al tos lu cros le van do-aàque le re can to lon gín quo, teve, po rém, a mais do lo ro sa de cep ção: osdoze bar ris fo ram es va zi a dos na pra ça pú bli ca, der ra man do-se pelo solo o lí qui do con de na do.

Por ou tro lado, uma to le rân cia inex pli cá vel. Afir ma o pe que -no ja gun ço que o ve lho vi gá rio de Cum be, ali apa re cia, de quin ze emquin ze dias di zen do mis sa nas igre jas di an te do pró prio Con se lhe i ro que lhe per mi tia ca sar e ba ti zar, obs tan do ape nas os ser mões.

Inda guei so bre a na tu re za dos tra ba lhos agrí co las – ru di men ta -res, qua se nu los. O tra ba lho sob a sua for ma mais ge ne ra li za da con sis te emga nhar em Mon te San to, Je re mo a bo e ou tras po vo a ções cir cun ja cen tes. Acri a ção mais nu me ro sa é a de bo des, em nú me ro qua se in cal cu lá vel, en -chen do, em tor no, os pla i nos di la ta dos das cha pa das, qua se sem do nos, sem tra to, aris cos, re tro gra dan do pelo aban do no ao es ta do sel va gem pri mi ti vo.

∗ ∗ ∗De po is des tas in for ma ções in ter ro guei-o so bre ques tões mais

sé ri as: – De onde pro vém todo o ar ma men to dos ja gun ços?A res pos ta foi pron ta. Antes da pri me i ra ex pe di ção con sis tia

em es pin gar das co muns, ba ca mar tes e bes tas, des ti na das, es tas úl ti mas,em cujo me ne io são in com pa rá ve is, não per den do uma seta, à ca ça dados mo cós ve lo zes e es qui vos. Seis ou sete es pin gar das mais pe sa das, debala – ca ra bi nas Com bla in, tal vez. De po is do en con tro de Uauá e dasex pe di ções que o su ce de ram é que apa re ce ram no vas ar mas, em gran denú me ro, no ar ra i al.

Ca nu dos e Ou tros Temas 41

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Os ca nhões de i xa dos pela Co lu na Mo re i ra Cé sar, cujo ma ne jo não pu de ram com pre en der, fo ram, de po is de inu ti li za dos a gol pes deala van ca e ma lhos, ati ra dos num es bar ron da de i ro pró xi mo.

Ter mi na mos o lon go in ter ro ga tó rio in qui rin do acer ca dos mi -la gres do Con se lhe i ro. Não os co nhe ce, não os viu nun ca, nun ca ou viudi zer que ele fa zia mi la gres. E, ao re pli car um dos cir cuns tan tes queaque le de cla ra va que o ja gun ço mor to em com ba te res sus ci ta ria, ne gouain da.

– Mas o que pro me te afi nal ele aos que mor rem?A res pos ta foi ab so lu ta men te ines pe ra da:– Sal var a alma.

∗ ∗ ∗Estas re ve la ções fe i tas di an te de mu i tas tes te mu nhas têm para

mim um va lor ines ti má vel; não men tem, não so fis mam e não ilu dem,na que la ida de, as al mas in gê nu as dos ru des fi lhos do ser tão.

BAHIA – 20 DE AGOSTO

Aguar dan do ain da, con tra fe i to, a pró xi ma par ti da para o ser -tão, per cor ro – des co nhe ci do e só – como um gre go an ti go nas ruas deBi zân cio as ve lhas ruas des ta gran de ca pi tal, num in da gar per sis ten teacer ca de suas be las tra di ções e ob ser van do a sua fe i ção in te res san te deci da de ve lha che gan do, in tac ta qua se, do pas sa do a es tes dias agi ta dos.

E la men to que o ob je ti vo ca pi tal e ex clu si vo des ta vi a gem meim pe ça es tu dá-la me lhor e trans mi tir as im pres sões re ce bi das.

Por que é re al men te ine vi tá vel esta in ter cor rên cia de sen sa ções es tra nhas e di ver sas, in va din do de modo ir re sis tí vel o as sun to e pro gra -mas pre es ta be le ci dos.

Numa hora as sal tam-me, às ve zes, as mais de sen con tra das im -pres sões.

Vi si tan do, há pou co, o Mos te i ro de São Ben to, por exem plo,onde se acu mu lam ago ra os fe ri dos que che gam, de po is de atra ves sar

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por en tre ex ten sos ren ques de le i tos con tris ta do res, des ci ao pa vi men toin fe ri or.

Atra ves sei as na ves ex ten sas, ca u te lo sa men te, a pas sos cal cu la -dos, olhos fi xos no chão, pro cu ran do não pi sar as la jes tu mu la res so breas qua is, in di fe ren tes, pi sam to dos os de vo tos e onde se lêem ain da,semi-apa ga das pelo atri to per sis ten te das bo tas, no mes en tre os mais ve -lhos da nos sa His tó ria. E des pe an do-me de todo o ob je ti vo que me le -va ra até ali, acur va do so bre as lou sas que apa re cem como pa limp ses tosde már mo re mal des co ber tos me mo ran do re mo tís si mos dias, per ma ne ci lar go tem po, ab sor to.

Que tran si ção enor me em cin co mi nu tos ape nas, nes se pas sar in sen sí vel e rá pi do, ao des cer uma es ca da, de um pre sen te agi ta do e ru i -do so à pe num bra si len ci o sa do pas sa do in de fi ni do...

Fe liz men te, pros se guin do atin gi in sen si vel men te a am pla por -ta da e, ao trans pô-la, vol vi, de cho fre, ao pre sen te.

∗ ∗ ∗Asso ma va, su bin do em mar cha for ça da ex ten sa la de i ra e atin -

gin do a Pra ça de Cas tro Alves, numa ir ra di a ção de ba i o ne tas cin ti lan tes,o 4º Ba ta lhão de Infan ta ria. Vem de lon ge, do Sul – é o úl ti mo queaguar da mos.

Com ple tam-se com ele vin te e cin co ba ta lhões de li nha, aosqua is se adi ci o nam os cor pos po li ci a is da qui, de São Pa u lo, do Pará, doAma zo nas e con tin gen tes de ar ti lha ria e ca va la ria.

Cal cu lo com apro xi ma ção ra zoá vel em dez mil ho mens, nomí ni mo, a tro pa que irá com ba ter a re bel dia no ser tão.

E di an te des sa mul ti dão ar ma da, as som bra-me, mais do queos pe ri gos na tu ra is da guer ra, a soma in cal cu lá vel de es for ços para ali -men tá-la por meio de re giões qua se im pra ti cá ve is pe los des ni ve la men tos brus cos das es tra das que se apru mam nas ser ras e se es tre i tam em des fi -la de i ros ex ten sos.

Um cál cu lo rá pi do mos tra-nos que aque le Mi no ta u ro de dezmil gar gan tas pas sa rá mal, je ju an do qua se, com cen to e cin qüen ta sa casde fa ri nhas e duas to ne la das de car ne, por dia!

E isto ex clu in do gê ne ros ali men tí ci os ele men ta res que cons ti -tu em um luxo ante as con di ções es tri tas da guer ra.

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Este fato ex pri me uma das con di ções mais sé ri as e di fí ce is dacam pa nha: é o com ba te te naz, in gló rio e as sus ta dor a um ini mi go quemor re e re vi ve to dos os dias, en vol ven do nos mes mos tran ses ami gos ead ver sá ri os – a fome.

As con di ções na tu ra is do ter re no, di fi cul tan do um trans por terá pi do, cri an do toda a sor te de tro pe ços, já de ter mi na ram mes mo, como é sa bi do, o apa re ci men to da que la no nos so Exér ci to. Já se pas sa ram dias cru éis num de sor de na do ape lar para to dos os re cur sos que pode for ne -cer a re gião – vi ven do as for ças à mer cê do aca so, de ra í zes de imbu, outa los tú mi dos de se i va de man da ca rus, ou ca çan do os bo des aris cos dascha pa das, em mon ta ri as ou sa das nas ca a tin gas.

Ora, essa si tu a ção la men tá vel está ape nas ate nu a da hoje ecada com bo io que che ga ilu de-a so men te por um dia.

Ima gi ne-se ago ra a sé rie de di fi cul da des que so bre vi rão comma i or acú mu lo de ho mens.

Além de de mo ra das as mar chas, a fal ta de car gue i ros tor na di mi -nu tís si mas as mu ni ções trans por ta das. Por que, de ve mos dizê-lo fran ca -men te, o que há além de Mon te San to, e mes mo além de Qu e i ma das, é ode ser to na sig ni fi ca ção ri go ro sa do ter mo – ári do, as pér ri mo, des po vo a do.

As po pu la ções cir cun vi zi nhas, dis per sas, per de ram-se lon ge,ocul tan do-se nas ma tas, po vo an do os mais afas ta dos ar ra i a is, aban do -nan do ca sas e ha ve res, es pa vo ri das ante o es pan ta lho ater ra dor da guer ra.E têm ra zão.

Impres si o na vi va men te a nar ra ti va de vi a gem dos que têmvin do, li vres no en tan to das pri mi ti vas em bos ca das, atra ves san do ases tra das que ir ra di am de Mon te San to. Des do bram-se pelo ser tão ab so -lu ta men te va zi as e mo nó to nas.

Ape nas num e nou tro pon to como va ri an te si nis tra: por umre quin te de per ver si da de sa tâ ni ca os ja gun ços dis pu se ram em sé rie nas duas bor das do ca mi nho as os sa das dos mor tos de an te ri o res ex pe di ções.

Dól mãs, bo nés, ga lões, ta lins, cal ças ver me lhas ru ti lan tes, am -plos ca po tes, ca mi sas em pe da ços, se lins e man tas, pen du ra dos nos ga -lhos das ár vo res, os ci lam lu gu bre men te so bre a ca be ça do vi a jan te quepas sa, ater ra do, atra ves san do en tre duas fi le i ras de ca ve i ras adre de dis -pos tas, en fi le i ra das aos la dos.

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É um qua dro pa vo ro so ca paz de per tur bar a alma mais ro bus ta.O ma lo gra do Co ro nel Ta ma rin do – um ve lho sol da do jo vi al

como ha via pou cos – foi re co nhe ci do pela far da nes se ce ná rio fan tás ti co;sem ca be ça, es pe ta do num ga lho seco de an gi co e ten do so bre os om -bros des car na dos, pen di do como num ca bi de, des cen do-lhe pelo es que -le to aba i xo, o dól mã.

Toda a Pri me i ra Co lu na pas sou, as som bra da, di an te do es pec -tro for mi dá vel do ve lho co man dan te.

To das es tas ca u sas jus ti fi cam o pâ ni co in des cri tí vel que la vraatu al men te no ser tão e o re flu ir de sor de na do de po pu la ções in te i raspara os mais re mo tos pon tos.

O Exér ci to agi ta-se ago ra num de ser to de trin ta lé guas de raio e é ab so lu ta men te ne ces sá rio que a ação des ta ex pe di ção – que será a úl -ti ma – seja rá pi da e ful mi nan te a des pe i to de to dos os sa cri fí ci os que setor nem ne ces sá ri os.

∗ ∗ ∗Cre io que par ti mos afi nal por es tes dias. Aju i za rei en tão, in

situ, acer ca do que até ago ra te nho sa bi do por meio de nar ra ti vas quenem sem pre se ajus tam nas mes mas con clu sões.

E que aque la na tu re za sel va gem, mas in te res san te, aque le re -can to bár ba ro de nos sa ter ra, sob a atra ção per sis ten te de seu as pec toain da des co nhe ci do, tor ne li ge i ras e rá pi das es tas ho ras de sa u da de quenão pos so de fi nir.

BAHIA – 21 DE AGOSTO

Em car ta an te ri or de cla rei que aqui atra ves sa va os dias aguar -dan do pró xi ma par ti da para o ser tão, sob o do mí nio de im pres sões vi -vís si mas e di ver sas, num in ves ti gar cons tan te acer ca do nos so pas sa do,vin do, in tac to qua se aos nos sos dias, den tro des ta ci da de tra di ci o nal,como numa re do ma imen sa.

E la men tei que o ob je ti vo ex clu si vo da vi a gem obs tas se a ma -ni fes ta ção de mu i tas co i sas in te res san tes que dele se afas tam.

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A po e i ra dos ar qui vos de que mu i ta gen te fala sem nun ca a tervis to ou sen ti do, sur gin do te nu ís si ma de pá gi nas que se es fa re lam ain daquan do de li ca da men te fo lhe a das, esta po e i ra clás si ca – ad je ti ve mos com fir me za –, que cai so bre te na zes in ves ti ga do res ao in ves ti rem con tra aslon gas ve re das do pas sa do, le van to-a di a ri a men te. E não tem sido im -pro fí cuo o es for ço.

Te nho, ago ra, en tre duas bro chu ras an ti gas, um do cu men tore la ti va men te mo der no mas al ta men te ex pres si vo acer ca dos úl ti mosacon te ci men tos.

É um jor nal mo des tís si mo e mal im pres so, a Pá tria, de SãoFé lix de Pa ra gua çu – nº 38, de 20 de maio de 1894. Tem, por tan to, pou -co mais de três anos.

Na úl ti ma co lu na da pri me i ra pá gi na, en ci man do-a, avul ta um tí tu lo su ges ti vo: Ain da o Con se lhe i ro.

O ar ti go é lon go; a re da ção re fe re-se a uma car ta re ce bi da deum ne go ci an te fi lho de Mon te San to.

Trans cre vo os tre chos prin ci pa is: “Pes so as vin das dos Ca nu dos, hoje Im pé rio do Belo Mon te, ga -

ran ti ram a este nos so ami go que têm che ga do gru pos de as sas si nos emal fe i to res do Mun do Novo a fim de fa ze rem par te do “exér ci to ga ran -ti dor das ins ti tu i ções im pe ri a is”.

“As co i sas não vão boas, e nós não es ca pa re mos em caso deata que. Já o Con se lhe i ro, afo ra a ca na lha fa na ti za da e as sas si na, tem umba ta lhão de du zen tos e tan tos ho mens os qua is fa zem exer cí cio de fogoto dos os dias e vi gi am os ar re do res.

“Não sa be mos qual será a in ten ção des se ho mem tão ig no -ran te e cri mi no so, ar man do ba ta lhões e ali ci an do gen te para a luta.

“É for ço so re co nhe cer, seja como for, que o go ver no pa ga rábem caro esta sua ina ção e que todo o ser tão fi ca rá sob o mais de so la -dor e pun gen te de fi nha men to. O Dr. Ro dri gues Lima, fi lho dos be losser tões, deve com pa de cer-se dos seus ir mãos do cen tro e pe dir in for ma -ções so bre os des man dos de Ca nu dos. O com ba te imor tal de Ma ce té,que, para ex pe riên cia de des gra ça da der ro ta e co bar dia de ve mos re cor -dar, foi o iní cio de to dos es tes des va ri os.

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“Se, na que le tem po, as oi ten ta pra ças de li nha que vi e ram atéSer ri nha mar cham logo so bre o ho mem, cer ta men te o ti nham es ma ga -do, por que o seu gru po era de oi ten ta e cin co ho mens, mal-ar ma dos emalmu ni ci a dos.

“Hoje a co i sa é dez ve zes pior, por que além de es tar ele pro -te gi do pela po si ção es tra té gi ca dos Ca nu dos, cer ca do de mor ros e ca a -tin gas in cul tas e di fí ce is, tem ele men tos for tes, gen te su pe ri or e trin che i -ras pe ri go sas.

“O Ma re chal Flo ri a no, sá bio na sua ad mi nis tra ção, enér gi co eati vo nas suas me di das, deve em pe nhar-se para ser o sal va dor nes sa tor -men to sa ques tão que tan to pre ju í zo há de ca u sar à Ba hia.”

Ter mi na aqui o ar ti go.Não o co men te mos.Há três anos que da pena inex per ta de um ser ta ne jo in te li gen -

te sur gia a pri me i ra pá gi na des ta cam pa nha cru de lís si ma.

BAHIA – 23 DE AGOSTO

Há quin ze anos, em 1882, o Te nen te-Co ro nel Dur val Vi e i rade Agui ar foi in cum bi do pelo go ver no pro vin ci al da ins pe ção de to dosos des ta ca men tos po li ci a is da Ba hia.

Enér gi co e re so lu to, o dig no fun ci o ná rio atra ves sou de ex tre -mo a ex tre mo as pa ra gens pe ri go sas do ser tão, re ve lan do-se ob ser va dorpers pi caz e in te li gen tís si mo.

E fez um li vro no qual se con den sam da dos es ta tís ti cos va li o -sos so bre as po vo a ções vi si ta das e in te res san tes no tas acer ca da exis tên -cia pri mi ti va das mais afas ta das po vo a ções – emol du ra dos por um es ti lo flu en te e cla ro.

Extra to, res pe i tan do to dos os gri fos, da pá gi na 79 da que leli vro – Des cri ções Prá ti cas da Pro vín cia da Ba hia – um lon go tre cho cujasig ni fi ca ção é hoje ma i or do que na épo ca em que foi es cri to.

O au tor re fe re-se à sua pas sa gem por Mon te San to:

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“Qu an do por ali pas sa mos acha va-se na po vo a ção um cé le bre Con se lhe i ro, su je i to ba i xo, mo re no aca bo cla do, de bar bas e ca be los pre -tos e cres ci dos, ves ti do de ca mi so lão azul, mo ran do so zi nho em umades mo bi li a da casa, onde se api nha vam as be a tas e aflu íam os pre sen tes,com os qua is se ali men ta va. Este su je i to é mais um fa ná ti co do que umana co re ta e a sua ocu pa ção con sis te em pre gar uma in com ple ta mo ral,en si nar re zas, fa zer pré di cas ba na is, re zar ter ços e la da i nhas com o povo;ser vin do-se para isto das igre jas, onde, di an te do vi a jan te ci vi li za do, sedá a um ir ri só rio es pe tá cu lo, es pe ci al men te quan do re ci ta um la ti nó rioque nem ele nem os ou vin tes en ten dem. O povo cos tu ma aflu ir em mas sa aos atos re li gi o sos do Con se lhe i ro, a cujo ace no ce ga men teobe de ce e re sis ti rá ain da mes mo a qual quer or dem le gal, por cuja ra zãoos vi gá ri os o de i xam im pu ne men te pas sar por san to, tan to mais quan to elenada ga nha e ao con trá rio pro mo ve os ba ti za dos, ca sa men tos, de so bri gas, fes tas, no ve nas e tudo mais em que con sis tem os ren di men tos da Igre ja. Nes sa oca sião ha via o Con se lhe i ro con clu í do a edi fi ca ção de uma ele -gan te igre ja no Mu cam bo e es ta va cons tru in do uma ex ce len te Igre ja noCum be, onde, a par do mo vi men to do povo, man ti nha ele ad mi rá velpaz.”

∗ ∗ ∗Há quin ze anos...À me di da que nos avan ta ja mos no pas sa do apa re cem de um

modo al ta men te ex pres si vo as di ver sas fa ses da exis tên cia des se ho memex tra or di ná rio – fa ses di ver sas, mas cres cen tes e sem pre numa su ces sãohar mô ni ca, ló gi cas nas suas mais bi zar ras ma ni fes ta ções, como pe río dos su ces si vos da evo lu ção es pan to sa de um mons tro.

Di an te de tudo isto, é sin gu lar a te i mo sia dos que de al gummodo o que rem no bi li tar, al te an do-o ao ní vel de sim ples me di o cri da deagi ta da ou ma nía co im be cil, qua se ino fen si vo – ar ran can do-o, er guen -do-o da pro fun da de pres são em que jaz como ho mem fa tal, ten do, di a -me tral men te in ver ti dos, to dos os atri bu tos que ca rac te ri zam os ver da de i rosgran des ho mens.

Tudo é re la ti vo; con si de rá-lo um fa ná ti co vul gar é de al gummodo eno bre cê-lo.

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A ma te má ti ca ofe re ce-nos nes te sen ti do uma apre ci a ção per fe i -ta: Antô nio Con se lhe i ro não é um nulo, é ain da me nos, tem um va lor ne -ga ti vo que au men ta se gun do o va lor ab so lu to da sua in sâ nia for mi dá vel.

Cha mei-lhe por isto, em ar ti go an te ri or, gran de ho mem peloaves so.

Gra vi ta para o mi ni mum de uma cur va por onde pas sa ramto dos os gran des ale i jões de to das as so ci e da des. Mas está em evi dên cia; não se per de no ano ni ma to da me di o cri da de co le ti va de que nos falaStu art Mill, em bo ra seja in fe ri or ao mais in sig ni fi can te dos se res que acons ti tu em.

E en tra rá na His tó ria – pela por ta ba i xa e es cu ra por onde en -trou Man drin.

Além dis to, as con di ções me so ló gi cas nas qua is de ve mosacre di tar, ex clu í dos os exa ge ros de Mon tes qui eu e Buck le, fir man do umnexo ine gá vel en tre o tem pe ra men to mo ral dos ho mens e as con di çõesfí si cas am bi en tes, de vi am for mar, pro fun da men te obs cu ra e bár ba ra,uma alma que num ou tro meio tal vez vi bras se no li ris mo re li gi o so deSa vo na ro la, ou qual quer ou tro mís ti co ar re ba ta do numa ide a li za çãoimen sa. Por que, afi nal, im pres si o na re al men te essa te na ci da de in que -bran tá vel e essa es cra vi za ção a uma idéia fixa, per sis ten te, cons tan te,nun ca aban do na da.

Que di fe ren ça exis te en tre ele e os gran des me ne urs de pe u plesde que nos fala a His tó ria? Um meio mais re su mi do e um ce ná rio maises tre i to ape nas.

Do mi nan do há tan to tem po, ir re sis ti vel men te, as mas sas quece ga men te lhe obe de cem, a sua in fluên cia es tra nha avo lu mou-se, cres ceusem pre numa con ti nu i da de per fe i ta e veio ba ter de en con tro à ci vi li za ção.

Se re cuás se mos al guns sé cu los e o ser tão de Ca nu dos ti ves se aam pli tu de da Ará bia, por que ra zão não acre di tar que o seu nome pu des se apa re cer, hoje, den tro de um ca pí tu lo ful gu ran te de Tho mas Carl yle?

∗ ∗ ∗A car ta do Co ro nel Car los Te les tem sido di ver sa men te co -

men ta da. Co nhe cia de há mu i to e trans mi ti mes mo para aí, an tes da pu -bli ca ção da que le do cu men to, a ma ne i ra de pen sar do dig no co man dan te, cuja sin ce ri da de está a ca va le i ro de qua is quer dú vi das. Entre tan to, di an te

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de uma si tu a ção sob mu i tos as pec tos in de fi ní vel, va ci lo, ain da, con si de -ran do que os ho mens da que la es ta tu ra – fe i tos pelo mol de de Ba yard –têm uma ten dên cia ins tin ti va para re du zir di fi cul da des e pe ri gos.

Além dis to, são tão va ri a das as as ser ções, que, por ma i or que seja o peso de uma pa la vra, as dú vi das so bre vêm ine vi tá ve is, in cor ri gí -ve is.

Por ma i or que seja o va lor mo ral de uma opi nião, nes te tu mul tode im pres sões di ver sas e de idéi as que se en tre cho cam, a gen te in sen si -vel men te se re cor da da ori gi nal com pa ra ção de Fox: as con cep çõescomo que se for mam por meio de um fil tro in ver ti do no qual os ele -men tos en tram lím pi dos e pu ros e saem im pu ros e tur ba dos.

Eu sis te ma ti zo a dú vi da.Admi tin do mes mo que es te ja de todo des mo ra li za do e re -

du zi do o ini mi go há, ape sar dis to, di fi cul da des que não se pode8 di ri -mir.

Aque las mu ra lhas gra ní ti cas do Ro sá rio onde, es ca lo na das eas cen den tes num he mi ci clo mo nu men tal, como ba lu ar tes ci cló pi cos, sedis põem blo cos mons tru o sos de pe dra; aque las trin che i ras na tu ra is queco ro am a ser ra do Cam ba io, de en con tro às qua is em ba teu como umaonda ru gi do ra e for te a ex pe di ção Fe brô nio; a ser ra de Caipã, ina ces sí vel qua se, par ti da pelo meio a os sa tu ra de gna is se em duas mu ra lhas a pru -mo, en tre as qua is cor re o Vaza-Bar ris, fa zem com que o nú me ro de ad -ver sá ri os seja um fa tor in sig ni fi can te de su ces so, cada ho mem, em taiscon di ções, va len do por tan tos ho mens quan tos são os car tu chos quecar re ga na pa tro na.

∗ ∗ ∗Será esta a úl ti ma car ta que es cre ve rei des te pon to onde, in vo -

lun ta ri a men te, fi quei re ti do, lu tan do com uma fal ta de as sun to ex tra or di -ná ria, que já deve ter sido per ce bi da.

Ao che gar ela aí, já es ta re mos a ca mi nho do ser tão.

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8 Res pe i ta mos a cons tru ção que apa re ce no jor nal (de ve ra ser: “...não se po dem di -ri mir.”), pela im pos si bi li da de de ve ri fi car a ori gem do erro. N. do R.

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ALAGOINHAS – 31 DE AGOSTO

Ao to mar o trem na es ta ção da Cal ça da pre fi gu rei uma vi a gemin cô mo da, pre so em va gão es tre i to pu xa do por lo co mo ti va ron ce i ra, es -ma ga do por uma tem pe ra tu ra de 30º cen tí gra dos, mal res pi ran do numaat mos fe ra im preg na da de po e i ra. Ilu di-me. A vi a gem cor reu rá pi da numtrem ru i do so e fes ti vo, ve loz men te ar re ba ta do por uma lo co mo ti va pos -san te, e ao tra çar es tas no tas rá pi das do Diá rio não te nho so bre o dól mãuma par tí cu la de pó. Pude ob ser var com se gu ran ça a re gião atra ves sa da.Pelo que con se gui per ce ber, a par tir de Ca ma ça ri, os ter re nos an ti gos doli to ral de sa pa re cem pres tes so bre gran des ca ma das ter ciá ri as de grés – um solo clás si co de de ser to –, em que os ta bu le i ros am plos se des do bram aper der de vis ta, mal re ves ti dos, às ve zes, de uma ve ge ta ção tor tu ra da.

Em mu i tos pon tos, po rém, ilha dos como oá sis, uma po vo a -ção ri den te ou um en ge nho mo vi men ta do e de plan ta ção opu len ta, in di -cam um aflo ra men to de ro chas cre tá ce as sub ja cen tes, cuja de com po si -ção de ter mi na a for ma ção de um solo mais fér til. Em al guns cor tes daes tra da pa re ceu-me dis tin guir ni ti da men te a tran si ção en tre os dois ter -re nos: a mi nha ob ser va ção, po rém, já de si mes ma re su mi da aos bre vesho ri zon tes de im per fe i tís si mos co nhe ci men tos ge o ló gi cos, fez-se emcon di ções anor ma is na pas sa gem rá pi da de um trem. Mudo ca u te lo sa -men te de as sun to.

A flo ra é va ri a da e muda con ti nu a men te de as pec to – es par sae ra re fe i ta nos ta bu le i ros em que se ale van tam as ár vo res pe que nas dasman ga be i ras de fo lhas de li ca das e ca ju e i ros de ga lhos re tor ci dos, sal pi ca -da pe las flo res ru bras e ca pri cho sas das bro mé li as – ela os ten ta-se, noster re nos em que des pon tam as ro chas pri mi ti vas, exu be ran te, em gran -des cer ra dos im pe ne trá ve is, so bre os qua is os ci lam as co pas al tas dosden de ze i ros (Ela e is 9 gui ne en sis).

Nos pe que nos ba nha dos que em al guns pon tos mar ge i am osater ros da es tra da, vi, es pal ma das, ajus ta das como pla cas, na su per fí cielisa das águas, nin féi as de gran de za sur pre en den te.

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9 Está, no jor nal, Ele a sis, for ma que não en con tra jus ti fi ca ti va. N. do R.

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Uma su ces são inin ter rup ta de qua dros in te res san tes e no vosdes trói a mo no to nia da vi a gem.

A vi zi nhan ça de Po ju ca é re ve la da por ca na vi a is ex ten sos quese es ten dem pe los pla i nos dos ta bu le i ros – mi ría des de fo lhas re fle tin doao sol com um bri lho de aço an ti go, on du lan tes, va ci lan do em to dos ossen ti dos ao so pro da vi ra ção, um ci ci ar imen so e in de fi ni do. Além doen ge nho cen tral, uma casa apru ma-se numa co li na li ge i ra. Mal a ob ser -vo. É uma vi ven da his tó ri ca.

Re cor da um belo nome de po lí ti co ho nes to e in cor rup tí vel do pas sa do re gi me. O ide al de mo crá ti co me lhor do que qual quer ou tro fir -ma o cul to dos gran des ho mens, for ta le ce a so li da ri e da de hu ma na e ale -van ta a jus ti ça su pre ma da pos te ri da de: eu cur vei-me ante a me mó ria ve -ne ran da do Con se lhe i ro Sa ra i va. Ain da não des ci à con cep ção es tre i tade fa zer de um gran de dia, o 15 de No vem bro, um valo en tre duas épo -cas. Não há au tos-de-fé na His tó ria.

Pas se mos adi an te.O as pec to do en ge nho cen tral é ani ma dor, ape sar de uma

apa rên cia mo des ta. Tra ba lha va quan do che ga mos e, por meio da mo vi -men ta ção com pli ca da das má qui nas, ou vi mos a or ques tra ção so be ra nado tra ba lho, alen ta do ra e for te.

Inte res san tís si ma a vila de Catu, ca si nhas bran cas der ra man -do-se por uma co li na li ge i ra men te aci den ta da, en ci ma da pela igre ja ma triz que tem à es quer da o clás si co bar ra cão de fe i ra, in se pa rá vel de to das as ci -da des e po vo a ções ba i a nas.

Aqui che ga mos às cin co e meia. Ala go i nhas é re al men te uma boa ci da de, ex ten sa e cô mo da,

es ten den do-se so bre um solo are no so e pla no. Ruas lar gas, pra ças imen sas; não tem se quer uma vi e la es tre i -

ta, um beco tor tu o so. É tal vez a me lhor ci da de do in te ri or da Ba hia. Con ver gem para ela to dos os pro du tos das re giões em tor no,

im pri min do-lhe mo vi men to co mer ci al no tá vel. Isto, po rém, dá-se emcon di ções nor ma is.

Na qua dra atu al o ta ba réu anda es qui vo e fo ra gi do; a gran depra ça prin ci pal da ci da de em cujo cen tro se ale van ta o bar ra cão de fe i ra dehá mu i to não tem, aos sá ba dos, a ani ma ção an ti ga. Cada trem que vai para

52 Eu cli des da Cunha

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Qu e i ma das re ple to de sol da dos, cada trem que de lá vol ta re ple to de fe ri -dos, é um es pan ta lho as som bro so para as po pu la ções ser ta ne jas.

Esta si tu a ção la men tá vel re fle te-se re al men te so bre to das asci da des que se apro xi mam da zona agi ta da do ser tão. Em to das a mes ma apa tia de ri va da de uma si tu a ção anor mal e ame a ça do ra. Tan to quan tonós, a po pu la ção la bo ri o sa al me ja, por isso, o ter mo da cam pa nha.

∗ ∗ ∗Devo ter mi nar es tas no tas re gis tran do um fato que nos in te -

res sa mu i tís si mo. Há cer ca de dez dias fui as sal ta do por uma no tí cia ab -so lu ta men te ines pe ra da.

Afir ma va-se a de ser ção de gran de nú me ro de pra ças do Ba -ta lhão de São Pa u lo, al gu mas das qua is, em gru pos dis per sos, ha vi amsido pre sas na Fe i ra de San ta na. Fal tou-me o âni mo para trans mi tir ade plo rá vel nova; e foi bom. Trans mi to hoje a que a des trói in te i ra -men te.

O Ca pi tão Go mes Car ne i ro, do 15º de Infan ta ria – ir mão do es -trê nuo li da dor da Lapa –, aca ba de che gar de Ca nu dos e de cla rou-me ha ver en con tra do o Ba ta lhão Pa u lis ta nas pa ra gens pe ri go sas de Ro sá rio. De cla -rou-me que o im pres si o nou de um modo no tá vel a apa rên cia da for ça.

A des pe i to de lon gos dias de pe no sa mar cha ela se guia numaor dem ad mi rá vel – com ple ta, dis ci pli na da e ro bus ta –, con du zin do eguar dan do cer ca de se te cen tas re ses, des ti na das às for ças em ope ra ções. E – ga ran tiu-me o dig no sol da do – nos ros tos aba ti dos pe las fa di gas nãoha via a mais li ge i ra som bra de de sâ ni mo.

São 7½. Den tro de cin co mi nu tos re a ta re mos a mar cha paraQu e i ma das.

QUEIMADAS – 1º DE SETEMBRO

Encon tra mos esta lo ca li da de sem a agi ta ção dos úl ti mos me ses. Vol tou a pri mi ti va qui e tu de com a par ti da dos úl ti mos ba ta lhões, on temre a li za da.

Ca nu dos e Ou tros Temas 53

Page 132: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

É pe que no e atra sa do, vi ven do em fun ção da es ta ção da es tra -da de fer ro, este ar ra i al obs cu ro – úl ti mo elo que nos liga, hoje, às ter ras ci vi li za das.

A ca sa ria – po bre, de sa je i ta da e ve lha, agru pa-se em tor no daúni ca pra ça, gran de mas ir re gu lar, tran si to ri a men te ani ma da ago ra pelapas sa gem dos con tin gen tes que trou xe mos.

Em tor no, am plís si mas, des do bram-se as ca a tin gas. E não háa mais li ge i ra va ri an te, a mais bre ve co li na onde o olhar re pou se exa us to a di la tar-se pe los ho ri zon tes lon gín quos, can sa do da mo no to nia aca -bru nha do ra de ex ten sos ta bu le i ros co ber tos de ar bus tos re que i ma dos.

Obser var a po vo a ção é mais mo nó to no ain da. Não há umedi fí cio re gu lar, so frí vel se quer.

O quar tel-ge ne ral está numa ca si nha ba i xa, de com par ti men tosmi nús cu los; a re par ti ção te le grá fi ca, numa me lhor mas com a mes mafe i ção de pri mi da.

Mal apa re cem os ha bi tan tes, de sor te que a pra ça, ro de a da deedi fí ci os pe que nos e im pres tá ve is, tran si ta da ape nas pe los sol da dos, écomo o pá tio de um quar tel an ti go e ar ru i na do. Entre tan to, quan tare cor da ção, em tor no.

Ali, em con ti nu a ção à pra ça, acam pa ram su ces si va men te to dasas for ças que aqui têm che ga do e se gui do para o ser tão; um acer voin for me de far ra pos, tra pos mul ti co res de far da men to, bo ti nas ve lhas,can tis ar re ben ta dos, bo nés inu ti li za dos – es par sos, dis se mi na dos numaárea ex ten sa, in di ca a es ta dia10 das tro pas que des de a se gun da ex pe di -ção ali têm acam pa do. Na que le solo com pri mi do con fun di ram-se, mul ti -pli can do-se em pas sa das inú me ras, os ras tos de quin ze mil ho mens.Impres si o na a pas sa gem pelo lu gar onde se agi ta ram tan tas pa i xões e seaca len ta ram tan tas es pe ran ças ma lo gra das. Mais adi an te, quem sobepe que na on du la ção do ter re no, di vi sa, re ti lí neo, pro lon gan do-se numaex ten são de dois qui lô me tros, um sul co lar go de ro ça da, na ca a tin ga: ali nha de tiro em que se exer ci tou a di vi são do Ge ne ral Artur Oscar. Aum lado eri ge-se uma igre ja hu mil de com o as pec to aca ça pa do de bar ra -

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10 Em to das as obras de Eu cli des da Cu nha apa re ce a for ma es ta dia , onde de ve ria ser es ta da. N. do R.

Page 133: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

cão de fe i ra; nas pa re des bran cas, so bre a bran cu ra da cal, a tra ços de car -vão, numa ca li gra fia hi e ro glí fi ca, os ten ta-se a ver ve11 ás pe ra e ca rac te rís ti cados sol da dos; to dos os ba ta lhões co la bo ra ram na mes ma pá gi na. Umapá gi na de mo nía ca: pe río dos cur tos, in ci si vos, as som bro sos, ar re pi a do res,es pe ta dos em pon tos de ad mi ra ção ma i o res do que lan ças...

Mais aba i xo, ca in do para a di re i ta, uma ve re da es tre i ta e si nis tra– a es tra da para Mon te San to.

Per cor ri-a, hoje, pela ma nhã, até cer ta dis tân cia, a ca va lo, een trei pela pri me i ra vez nas ca a tin gas, sa tis fa zen do uma cu ri o si da dear den te, lon ga men te ali men ta da.

∗ ∗ ∗Um qua dro ab so lu ta men te novo; uma flo ra in te i ra men te

es tra nha e im pres si o na do ra ca paz de as som brar ao mais ex pe ri men ta dobo tâ ni co.

De um sei eu que ante ela fa ria pro dí gi os. Eu, po rém, per -di-me logo, per di-me de sas tra da men te no meio da mul ti pli ci da de das es -pé ci es e atra ves san do, su pli ci a do como Tân ta lo, o dé da lo das ve re das es -tre i tas, ig no ran te e des lum bra do – nun ca la men tei tan to a au sên cia deuma edu ca ção prá ti ca e só li da e nun ca re co nhe ci tan to a inu ti li da de dasma ra vi lhas teó ri cas com as qua is nos ilu di mos nos tem pos aca dê mi cos.

Per ce bi, en tre tan to, al guns tra ços ca rac te rís ti cos, fri san do osas pec tos prin ci pa is des ta ve ge ta ção in te res san te.

A cons ti tu i ção ge o ló gi ca do solo e as con di ções me te o ro ló gi cas ex pli cam-na de ma ne i ra no tá vel. O ter re no re su me-se numa ca ma da ter -ciá ria de grés, te nu ís si ma às ve zes, pos ta como uma capa li ge i ra e in con -sis ten te so bre as ro chas an ti gas que aflo ram em mu i tos pon tos, de fi ni daspor um gna is se de as pec to be lís si mo sul ca do ca pri cho sa men te pe lasli nhas de um feld spa to cor de car ne, li ge i ra men te des ma i a da. As chu vasem be bem du ran te al gum tem po este solo a um tem po po ro so e im per -meá vel an tes de des ce rem às ca ma das sub ja cen tes. Pro lon gam-se, po -rém, mu i tas ve zes, as se cas, e, en tre um chão in te i ra men te seco e uma

Ca nu dos e Ou tros Temas 55

11 Embo ra di ci o na ri za da, a pa la vra ver ve não é por tu gue sa. Man ti ve mos, por isso, ogri fo do ori gi nal. N. do R.

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at mos fe ra cuja umi da de é in sig ni fi can te, a ve ge ta ção re fle te sin gu lar -men te a in cle mên cia do meio.

E o que se sen te ob ser van do esta mul ti dão de ár vo res pe que -nas, di fe ren ci a das em ga lhos re tor ci dos e qua se se cos, de sor de na da men telan ça dos a to das as di re ções, cru zan do-se, tran ça dos, num acer vo caó ti code ra mos qua se des nu da dos – é como um bra ce jar de de ses pe ro, a pres -são de uma tor tu ra imen sa e ine xo rá vel.

A con ser va ção in di vi du al e a da es pé cie ad qui rem por istouma ca pa ci da de de re sis tên cia pro di gi o sa. A sub di vi são enor me do ca u le em ga lhos inú me ros, re ves ti dos de es pi nhos, ex pri me bem um tra ba lhode adap ta ção – a mul ti pli ca ção exa ge ra da dos ór gãos des ti na dos aoapro ve i ta men to de ele men tos de vida es cas sa men te dis se mi na dos no ar.Por ou tro lado, as se men tes ra ra men te apre sen tam-se des guar ne ci das etêm em si mes mas a fa cul da de de es pa lha rem-se na ter ra.

Na rá pi da tra ves sia que aca bo de fa zer ava li ei bem as di fi cul -da des da luta em tal meio.

A cada pas so uma cac tá cea, de que há nu me ro sas es pé ci es,além dos man da ca rus de as pec to im po nen te, dos xi que xi ques me no res e de es pi nhos en ve ne na dos que pro du zem a pa ra li sia, dos qui pás rep tan tes etra i ço e i ros, das pal ma tó ri as es pal ma das, de flo res ru bras e acú le os fi nís si -mos e pe ne tran tes. Expres si va e fe liz a de no mi na ção de ca be ça-de-fra dedada a uma es pé cie anã, cu jos go mos eri ça dos de es pi nhos não des tro ema for ma es fé ri ca ten den do li ge i ra men te para a de um elip sói de.

Pa re cem ca be ças de ce pa das es par sas à mar gem dos ca mi nhos. Enci ma-as uma úni ca flor, de um ver me lho ru ti lan te, como uma co roa,en san güen ta da, aber ta.

Este ve ge tal tú mi do de se i va pro cu ra de pre fe rên cia ter re nosab so lu ta men te ex si ca dos.

Nes te sen ti do fiz uma ob ser va ção que ja ma is de i xa rá de sercom pro va da: do mes mo modo que a ca ne la-de-ema (Vel lo zia), no nor te deSão Pa u lo, ca rac te ri za a re gião dos quart zi tos, a ca be ça-de-fra de, com umacons tân cia sin gu lar, apa re ce in va ri a vel men te quan do por meio das ca ma dasde grés des pon tam os ter re nos gra ní ti cos an ti gos.

E sur ge ora so bre a ca ma da pou co pro fun da que re ves te a ro -cha, ora so bre ela mes ma. A mais es tre i ta frin cha, na pe dra in te i ra men te

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Page 135: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

nua, que per mi ta a in tru são das ra í zes lon gas e fi nís si mas, de ter mi na-lhe o apa re ci men to.

Cer tos lu ga res são re al men te im pe ne trá ve is – as ma cam bi ras,com a fe i ção exa ta de ana na ses bra vos, for mam se bes com pac tas, in trans -po ní ve is, so bre tu do quan do ne las en re dam-se as fo lhas de es to maslon gos12 do can san ção ur ti can te, do lo ro sís si mo, que i man do como umca u té rio ou cáus ti co abra sa do.

É uma flo ra agres si va.As pró pri as um bu ra nas de cas ca lus tro sa e de ma de i ra com pac -

ta qua se sem fi bras, como uma mas sa ho mo gê nea e plás ti ca com a qualo ta ba réu ar di lo so faz até si ne tes ad mi rá ve is; as pró pri as qui xa bas defo lío los pe que nos e pe que nos fru tos pre tos e bri lhan tes como ônix – re ves tem-se de es pi nhos.

Agres si va para os que a des co nhe cem – ela é pro vi den ci alpara o ser ta ne jo.

O vi a jan te des gar ra do numa tra ves sia , atra ves sa em cer tas qua -dras, du ran te mu i tos dias, os vas tos ta bu le i ros, li vre de di fi cul da des.

Extin guem-lhe a sede as fo lhas áci das e as ra í zes úmi das doumbu, os ca u les re ple tos de se i va dos man da ca rus; ali men tam-nos far ta -men te os co cos de li cu ri, as pi nhas sil ves tres do ara ti cum, os fru tos da qui -xa ba, da mari ou das man ga be i ras de fo lhas de li ca das e ga lhos pen di doscomo os dos sal gue i ros.

As fo lhas gran des e re sis ten tes do icó co brem-lhe a ca ba napro vi só ria e sus ten tam-lhe o ca va lo; o ca roá de fi bras lon gas per mi te-lheob ter ra pi da men te cor das fle xí ve is e for tes. E se, à no i te, ao atra ves saruma pa ra gem des co nhe ci da hou ver ne ces si da de de acla rar o ca mi nhobas ta-lhe que brar e acen der pron ta men te um ga lho ver de de can dom bá, eagi tar logo de po is um fa cho ru ti lan te...

∗ ∗ ∗Por mais sin gu lar que seja a afir ma ti va, nada de novo vim aqui

sa ber so bre os ne gó ci os de Ca nu dos.

Ca nu dos e Ou tros Temas 57

12 Lê-se, no jor nal, es to mas lon gas, erro que não pode ser de Eu cli des. N. do R.

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No tei ape nas, tra tan do com os ve lhos ha bi tan tes de Qu e i ma das,que a in fluên cia do Con se lhe i ro é mais am pla do que su pu nha.

Di zem eles que há me ses, pro ma na das de mu i tos pon tos, pas -sa ram por esta po vo a ção ver da de i ras ro ma ri as em di re ção de Ca nu dos.Uma imi gra ção per fe i ta.

Lu ga res re mo tos, como o Mun do Novo e Entre Rios, fi ca -ram, por as sim di zer, de ser tos. As po vo a ções re la ti va men te mais pró xi -mas, como Inham bu pe, Tu ca no e Cum be, per de ram igual men te gran denú me ro de ha bi tan tes.

Ho mens, mu lhe res e cri an ças, ve lhos trô pe gos e ti tu be an tes,mo ços ro bus tos e de sem pe na dos – car re gan do ima gens de to dos os ta -ma nhos e de to dos os san tos, acur va dos sob an do res, pas sa ram, cru zesal ça das à fren te, en to an do la da i nhas, len ta men te, pe las es tra das. Teve,este fato, mu i tas tes te mu nhas que aqui es tão, con tes tes.

Sob uma atra ção ir re sis tí vel fa mí li as in te i ras mu da ram-se paraCa nu dos que cres ceu brus ca men te em pou cos me ses, por que a edi fi ca -ção ru di men tar per mi tia que a mul ti dão sem lar fi zes se uma mé dia dedoze ca sas por dia.

O fato é as som bro so mas acor dam, ex pon do-o, to dos os in for -man tes. Não é de es pan tar a nin guém a re sis tên cia es pan to sa des do bra da.

Além dis to o ho mem do ser tão tem, como é de pre ver, umaca pa ci da de de re sis tên cia pro di gi o sa e uma or ga ni za ção po ten te que im -pres si o na. Não o vi ain da exa us to pela luta; co nhe ço-o já, po rém, ago raem ple na exu be rân cia da vida. Di fi cil men te se en con tra um es pé ci meigual de ro bus tez so be ra na e ener gia in dô mi ta.

Pela ja ne la en tre a ber ta vejo nes te mo men to um de les, a ca va -lo, no meio da pra ça, todo ves ti do de cou ro. É um va que i ro ino fen si vo,pen de-lhe à mão di re i ta a lon ga vara ar po a da, o fer rão. Aca ba de con du -zir para Mon te San to cen to e tan tos bois des ti na dos ao exér ci to. É umnos so ali a do, por tan to.

Imó vel so bre a sela, todo ves ti do de cou ro, cal çan do bo tasque so bem até a cin tu ra, cha péu de abas lar gas meio in cli na do so bre afron te – a vés tia rús ti ca de um ver me lho es cu ro im pri me-lhe o as pec tode um ca va lhe i ro an ti go co ber to ain da da po e i ra da ba ta lha.

58 Eu cli des da Cunha

Page 137: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Con si de ran do-o pen so que a nos sa vi tó ria, ama nhã, não deveter ex clu si va men te um ca rá ter des tru i dor.

De po is da nos sa vi tó ria, ine vi tá vel e pró xi ma, res ta-nos o de -ver de in cor po rar à ci vi li za ção es tes ru des pa trí ci os que – di ga mos comse gu ran ça – cons ti tu em o cer ne da nos sa na ci o na li da de.

QUEIMADAS – 2 DE SETEMBRO

Aca bo de ob ter as se guin tes in for ma ções so bre as co i sas emCa nu dos; são in for ma ções se gu ras. As for ças con ti nu am nas mes maspo si ções aguar dan do o res to de re for ços para o ata que de fi ni ti vo, oucom ple men to do cer co.

De dois em dois dias os ja gun ços ata cam, à no i te, a ar ti lha riaes ta ci o na da den tro do ar ra i al; são ata ques te na zes e cons tan tes. Dis seum pri si o ne i ro que no es pa ço in ter mé dio exis tem mu ni ções en ter ra das,o que jus ti fi ca o aço da men to e cons tân cia ma ni fes ta dos.

Têm-se dis tin gui do ex tra or di na ri a men te na luta os ba ta lhões 12º, 25º, 30º e 31º de Infan ta ria. O Te nen te-Co ro nel Tupi Cal das, co man dan tedo 30º, foi atin gi do por qua tro ba las de um modo in te res san te: uma atra -ves sou-lhe o cha péu, ou tra pas sou-lhe pelo flan co pro du zin do li ge i ra es co -ri a ção, uma ou tra, pas san do a uma li nha dos olhos, de ter mi nou li ge i ra ir ri -ta ção ape nas e a úl ti ma, ba ten do em che io, amol gou-se na cha pa do ta lim.O bra vo co man dan te não fra que ia, po rém, no ar ro jo e no ím pe to guer re i ro.

O Ba ta lhão Pa u lis ta foi ata ca do nas pro xi mi da des do ar ra i al.Re pe liu o ini mi go e não per deu um úni co sol da do. Foi re ce bi do comen tu si as mo pe las for ças em ope ra ções.

Não se to cam mais si nos nem se en to am re zas em Ca nu dos: àno i te não bri lha a me nor luz – o ar ra i al de sa pa re ce si len ci o sa men te nasom bra.

Não há epi de mi as; o es ta do sa ni tá rio das for ças é, até hoje, ome lhor pos sí vel.

Con fir ma-se a no tí cia de que Antô nio Con se lhe i ro está co a gi -do; quis en tre gar-se, no que foi im pe di do por um ex plo ra dor pe ri go so – Vi lan o va.

Ca nu dos e Ou tros Temas 59

Page 138: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Entram e saem di a ri a men te gru pos nu me ro sos na po vo a ção. De vem che gar, hoje à tar de ou ama nhã, aqui, al gu mas pri si o ne i ras.A água con ti nua rara e de ob ten ção di fí cil, ad qui ri da em ca -

cim bas aber tas no le i to seco do Vaza-Bar ris.

∗ ∗ ∗Qu a se que pos so ga ran tir que a luta não ter mi na rá pela exa us -

tão len ta do ini mi go, pre so nas ma lhas de fer ro de um as sé dio re gu lar. Este pla no, efi ca cís si mo em bo ra e apto para di mi nu ir o sa cri fí cio

das vi das, tem o in con ve ni en te de pro lon gar a cam pa nha por mu i to tem po– in con ve ni en te sé rio por que de ou tu bro em di an te co me ça na re gião deCa nu dos o re gi me das gran des tro vo a das e chu vas tor ren ci a is.

No le i to, seco ago ra, dos re ga tos cor rem en tão rios de águas ve -lo zes e bar ren tas e o Vaza-Bar ris, avo lu man do-se re pen ti na men te, trans mu -da-se todo ele numa onda imen sa e di la ta da, ro lan do im pe tu o sa men te en tre as gar gan tas das ser ras, ex pan din do-se nos pla i nos – in trans po ní vel, enor -me. E quan do as tor ren tes se ex tin guem brus ca men te, por que o tur bi lhãodas águas se es vai no São Fran cis co com a mes ma ce le ri da de com que apa -re ce, sur gem ou tros pe ri gos ain da mais sé ri os.

Sob a adus tão dos dias ar den tes, cada ba nha do, cada re ga to cor ta do, cada san ga ume de ci da, cada atas ca de i ro das es tra das, cada ca -cim ba aber ta na pe dra, cada poça de água é um la bo ra tó rio in fer nal,des ti lan do a fe bre que ir ra dia, la ten te, nos ger mes do im pa lu dis mo,pro fu sa men te dis se mi na dos nos ares, as cen den do em nú me ro in fi ni -to de cada pon to onde bata um raio de sol e des cen do de po is so breas tro pas, mul ti dão enor me, mi lha res de or ga nis mos nos qua is as fa -di gas de ter mi nam uma re cep ti vi da de mór bi da ex tra or di ná ria.

Ca nu dos ca i rá pelo as sal to. Assal to vi o len to, brus co e rá pi do,por que ven ci do o ini mi go que pode ser ven ci do, mor to o ini mi go quepode ser mor to, res tar-nos-á, eter na e in ven cí vel, en vol ven do-nos in te i -ra men te, num as sé dio mais pe ri go so, essa na tu re za an ta go nis ta, bár ba rae ne fas ta, em cujo seio atu al men te cada ja gun ço pa re ce re a li zar o mitoex tra or di ná rio de Anteu.

Tan to quan to for pos sí vel, logo após a que da do ar ra i al, astro pas re flu i rão brus ca men te para Mon te San to e Qu e i ma das.

60 Eu cli des da Cunha

Page 139: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

∗ ∗ ∗Ontem à tar de, novo pas se io, a ca va lo, pe las ca a tin gas. Estou

me exer ci tan do nas di fi cul da des de que es tão cri va das. Ontem, porexem plo, de po is de rom per mos ha bil men te por meio de inú me ras se bes agres tes, ei va das de es pi nhos, pa ra mos, es ta ca mos, eu e qua tro com pa -nhe i ros de ex cur são, ante uma bar re i ra im pe ne trá vel. Re al men te, o fa cãoja ca ré mais afi a do e mais des tra men te ma ne ja do não abre um ata lho nocer ra do tran ça do das ju re mas.

Vol ta mos. Encon trei na vol ta um novo es pé ci me des ta flo raagres si va, es pé ci me que não ci tei na car ta que on tem es cre vi da qui – afa ve la, cuja fo lha so bre a pele, ao mí ni mo con ta to, é um cáus ti co in fer nal, do lo ro sís si mo e de efe i tos pro lon ga dos.

Fo mos até o Ita pi cu ru de mar gens ri den tes e pi to res cas, emcujo seio aflo ram ilhas de be lís si mos gna is ses a que me re fe ri on tem.Re co lhi um pou co de are ia cla rís si ma, des ti na da ao exa me fu tu ro depes soa mais com pe ten te.

Vol ta mos ao ano i te cer. O Cru ze i ro do Sul, mu i to alto, ir ra di a vase re na men te no es pa ço, en vol ven do nas mes mas cin ti la ções a mim e aos en tes que ri dos que aí es tão, tão lon ge...

QUEIMADAS – 3 DE SETEMBRO 13

A nos sa vi a gem foi trans fe ri da para ama nhã, sá ba do. Esti mei.Nes tas pa ra gens re mo tas to dos nós te mos uma re vi ves cên cia de ve lhoser ros: es ta va ven do já com maus olhos esse iní cio de vi a gem numa sex -ta-fe i ra. E nes te mo men to mes mo lem bro-me, com um li ge i ro so bres -sal to, que esta car ta é a l3ª que para aí en vio...

A Arcá dia viu-nos nas cer a to dos, dis se Schil ler; não há es -pí ri to eman ci pa do que não te nha, mes mo em vir tu de da lei ge ral da

Ca nu dos e Ou tros Temas 61

13 O mes mo exem plar d’O Esta do de S. Pa u lo (14 de se tem bro de 1897) es tam pa acor res pon dên cia dos dias 2, 3 e 4 des se mês. Ape nas na pri me i ra há in di ca ção dolo cal de ori gem (Qu e i ma das), em bo ra seja evi den te a pro ce dên cia co mum de to -das. N. do R.

Page 140: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

inér cia, de ce der, em mu i tas oca siões, à fan ta sia ca pri cho sa ou en ga na -do ras ide a li za ções.

Não di va gue mos, po rém. Aca bam de che gar, há meia hora, nove pri si o ne i ras; duas tra -

zem ao seio cri an ças de pou cos me ses, mir ra das como fe tos; acom pa -nham-nas qua tro pe que nos de três a cin co anos. O me nor de to dos,cha ma-se José. Assom bra: traz à ca be ça, des cen do-lhe até aos om bros,um boné de sol da do. O boné lar go e gran de de ma is os ci la a cada pas so;al guns cir cuns tan tes têm a co ra gem sin gu lar de rir – a cri an ça vol ve oros to, pro cu ran do vê-los e os ri sos ces sam: a boca é uma cha ga, foi atra -ves sa da por uma bala!

Das mu lhe res oito são mons tros en vol tos em tra pos re pug -nan tes; fi si o no mi as du ras de vi ra gos de olhos za na gas ou tra i ço e i ros.Uma, po rém, des ta ca-se. A mi sé ria e as fa di gas ca va ram-lhe o ros to masnão des tru í ram a mo ci da de; a for mo su ra res sur ge, imor tal, a des pe i todas li nhas vi vas dos os sos apon tan do du ra men te no ros to ema gre ci do epá li do. Olhos gran des e ne gros em que se re fle te uma tris te za so be ra nae pro fun da.

Sa tis fez a cu ri o si da de dos cir cuns tan tes con tan do uma his tó -ria sim ples; uma tra gé dia em meia dú zia de pa la vras; um dra ma qua seba nal ago ra, com o epí lo go obri ga do de uma bala cer te i ra de Mann li -cher ou es ti lha ço de gra na da.

Nem vale a pena nar rá-lo. O dia es go ta-se em pre pa ra ti vos de vi a gem.

QUEIMADAS – 4 DE SETEMBRO

Par ti mos den tro de meia hora. Me ta de da co mi ti va, já mon ta da, atra ves sa em to das as di re ções

a pra ça, numa con fu são ri den te de uni for mes mul ti co res. Não po de ría mosde se jar me lhor dia de vi a gem. É tal vez um bom va ti cí nio esta ma nhãcla ra e ri den te que nos ro de ia ago ra.

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TANQUINHO – 4 DE SETEMBRO

São dez ho ras da no i te. Tra ço ra pi da men te es tas no tas sob ara ma gem opu len ta de um ju a ze i ro, en quan to, em tor no, todo o acam pa -men to dor me.

Tan qui nho é po si ti va men te um lu gar de tes tá vel e o vi a jan teque ven ce as cin co lé guas que o se pa ram de Qu e i ma das tem a pior dasde cep ções ante esta lú gu bre ta pe ra de duas ca sas aban do na das e es tru í -das, qua se in va di das pela ga lha da ás pe ra e inex tri cá vel do ale crim-dos-ta bu -le i ros de cujo seio emer gem cac tos es gui os im pri min do à pa i sa gem umafe i ção mo nó to na e tris tís si ma.

Che ga mos à uma hora da tar de, de po is de cin co ho ras de vi a -gem sob um sol abra sa dor, por meio das ca a tin gas in ter mi ná ve is, poruma es tra da mag ní fi ca, é cer to, mas cujo le i to are no so mul ti pli ca enor -me men te os ar do res da ca ní cu la.

Trou xe lon ga men te so fre a da uma sede in de fi ní vel. Não se pode ava li ar, de lon ge, o que é uma vi a gem nes tas re -

giões es té re is onde não se en con tra o mais exí guo re ga to, o mais in sig ni -fi can te fi le te de água. Ape nas em ra ros pon tos de pa ra mos com mi nús -cu las la go as já numa tran si ção per fe i ta para pân ta nos, com a su per fí cielí qui da re ves ti da da ve ge ta ção ca rac te rís ti ca.

Em uma de las – sur gin do como to das nos pon tos em queaflo ram, rom pen do as ca ma das de grés, lar gas bos sas de ter re no gra ní ti -co – aven tu rei-me a sa tis fa zer a sede.

Ao de sar mar, po rém, sub se qüen te men te o fil tro Grand je an,fi quei ater ra do ante a cros ta im pu ra de pos ta so bre a pla ca: um mi cros -có pio vul gar ali des co bri ria dez es pé ci es de al gas. Sem exa ge ro, estepri me i ro dia de vi a gem – que é um idí lio ante os que nos aguar dam –pa ten te ia já to dos os tro pe ços que se an to lha ram às ex pe di ções an -te ri o res. E so mos uma co mi ti va pe que na, per fe i ta men te dis pos ta, li -ga da pela me lhor cor di a li da de, tra zen do to dos os re cur sos, per fe i ta -men te mon ta da.

O Ma re chal Bit ten court e mais al guns com pa nhe i ros re sis tem ga lhar da men te; al guns, po rém, já se sen tem ex te nu a dos.

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Avis ta mos o Tan qui nho com a ín ti ma sa tis fa ção dos que sedi ri gem para um oá sis. Antes se guís se mos, po rém, a des pe i to do can sa ço e do ca lor, de man dan do um pon to mais re mo to.

Vou ris car da mi nha car ta o pe que no cír cu lo com que con de -co rei esse lu gar mal di to e subs ti tuí-lo por um pon to im per cep tí vel. Queto dos os vi a jan tes fu jam des tas duas ca sas ve lhas e aca ça pa das em cujafren te os man da ca rus es gui os ale van tam-se si len tes e rí gi dos, como imen -sos can de la bros im plan ta dos no solo, se gun do a bela com pa ra ção deHum boldt.

Às sete ho ras da no i te, em com pa nhia do co man dan te do Re -gi men to Po li ci al da Ba hia e dois com pa nhe i ros do Esta do-Ma i or, di ri -gi-me ao tan qui nho que ba ti za o lu gar.

Na que le pon to, ir rom pen do en tre pos san te ca ma da degrés, sur ge uma apó fi se do ter re no gra ní ti co sub ja cen te. O tan qui nho tem pro va vel men te como le i to a ro cha im per meá vel. Ro de a do deman da ca rus (tris tes ve ge ta is que são uma ob ses são qua se para o vi a jan -te) di fi cil men te se pode ima gi nar a fe i ção lú gu bre do lu gar na que lahora.

Alguns do en tes, que se guem para Qu e i ma das, ali pou sa vam e, ace sas as fo gue i ras em tor no das qua is pas sam a no i te, for ma vam à cla ri -da de in dis tin ta das cha mas – aco co ra dos uns per to do fogo, ca mi nhan -do ou tros cla u di can tes e va ga ro sos mais lon ge, pro je tan do so bre a su -per fí cie das águas as som bras dis for mes – um con jun to trá gi co e in te -res san te.

Ao abe i rar-me se qui o so da bor da do pân ta no, uma mú mia co -ber ta de tra pos er gueu-se, ten tan do fa zer a con ti nên cia mi li tar.

Exa mi nei-o e tive a fra que za de de i xar trans pa re cer, tal vez,in ven cí vel re pug nân cia ao pen sar que ia be ber no mes mo lu gar emque to ca ram aque les lá bi os gre ta dos pela fe bre. Ati rei po rém, co ra jo -sa men te, na água o tubo do fil tro, su gan do um lí qui do que tem sa ci a -do a to dos os ca va los e la va do a to dos os fe ri dos das ex pe di ções an -te ri o res.

É uma água pe sa da que não ex tin gue a sede. Às 8 ho ras todo o acam pa men to dor mia.

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Con sul to o meu ane rói de e vejo que es ta mos a 30 me trosso bre Qu e i ma das.

Escri tas es tas no tas, não sei se po de rei dor mir. Fe liz men te um céu ful gu ran te e am plo é o dos sel do meu le i to

rude de sol da do – um se lim, uma man ta e um ca po te. Óri on ful gu ra pro di gi o sa men te belo a pe que na al tu ra so bre o

ho ri zon te, e eu irei afu gen tar as sa u da des pro fun das evo can do no çõesqua se apa ga das de as tro no mia, per cor ren do numa ro ma ria olím pi ca oscéus – per di do, en tre as es tre las...

CANSANÇÃO – 5 DE SETEMBRO

Aqui che ga mos às 9 ho ras da ma nhã – es plên di da ma nhã! –ca mi nhan do duas lé guas a par tir do Tan qui nho. Can san ção, fe liz men te,já me re ce o nome de po vo a do. Tem onze ca sas, al gu mas co ber tas de te -lhas, e um ar ma zém pa u pér ri mo no qual en tra mos com a mes ma sa tis fa -ção com que aí se pe ne tra no Pro gre di or. Sen ti mo-nos des lum bra dos ante as pra te le i ras tos cas e des guar ne ci das.

A po vo a ção eri ge-se numa man cha de ter re no ar gi lo so – lar go hi a to no de ser to de grés que a ro de ia; e tem uma fe i ção ri den te er gui danuma bre ve co li na de onde se des cor ti nam ho ri zon tes in de fi ni dos. Nem uma ele va ção re gu lar, po rém, per tur ba a mo no to nia de um solo cha to –su ces são inin ter rup ta de ta bu le i ros imen sos.

A po pu la ção, mem bros de uma só fa mí lia, vi ven do sob um re -gi me pa tri ar cal e pri mi ti vo, re ce beu-nos numa qua se ova ção – ca pi ta ne a da pelo che fe, o ve lho Go mes Bu ra que i ra, que ape sar dos oi ten ta anos bemcon ta dos ale van tou, por três ve zes, num am ple xo for mi dá vel, a um me tro de al tu ra, o Co ro nel Ca la do.

Dois fra des fran cis ca nos, ale mães, ain da bem mo ços, aqui es -tão com o in tu i to no bi lís si mo de cu i dar dos fe ri dos que não pos samvin gar a dis tân cia de Mon te San to a Qu e i ma das. Vi e ram con vi dar o mi -nis tro e to dos para as sis ti rem à mis sa. Assis ti mos.

Há quan tos anos te nho eu pas sa do in di fe ren te, nas ci da desri cas, pe las opu len tas ca te dra is da cruz?

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E as sis ti à mis sa numa sa le ta mo des ta, ten do aos can tos es -pin gar das, cin tu rões e can tis e um se lim sus pen so no teto – ser vin douma mesa tos ca de al tar e es tan do nove dé ci mos dos cren tes fora, narua, ajo e lha dos. E ajo e lhei-me quan do to dos se ajo e lha ram e bati, comoto dos, no pe i to, mur mu ran do com os cren tes o mea cul pa con sa gra do.

Não me ape dre je is, com pa nhe i ros de im pi e da de; pou pai-me,li vres-pen sa do res, ico no clas tas fe ro zes! Vi o len to e ina mol gá vel na lutafran ca das idéi as, fir me men te abro que la do na úni ca fi lo so fia que me re ce tal nome, eu não men ti às mi nhas cren ças e não traí a nos sa fé, tran si -gin do com a rude sin ce ri da de do fi lho do ser tão...

De po is da ce ri mô nia, pas se a mos pe los ar re do res e sa ci a moslar ga men te a sede, agra va da por um chur ras co mag ní fi co de no vi lho sa -dio, mor to e as sa do em me nos de uma hora.

Den tro de uma hora (são duas ho ras da tar de) re a ta re mos amar cha de ven do che gar hoje mes mo a Qu i rin quin quá.

Con sul to o meu ane rói de: al tu ra so bre o ní vel do mar 395me tros.

A su bi da do ter re no na di re ção mé dia que le va mos, les te-oes -te, é, como se vê, in sen sí vel mas con tí nua.

QUIRINQUINQUÁ – 5 DE SETEMBRO

Aqui che ga mos às 7 ho ras e 38 mi nu tos da no i te, an dan do, apar tir de Can san ção, cin co lé guas ex ten sas, lé guas de ta ba réu, que va lem8 qui lô me tros cada uma.

O ter re no vai-se pou co a pou co mo di fi can do, as ca a tin gas tor -nam-se mais al tas numa pas sa gem fran ca para cer ra dos e o ter re no maismo vi men ta do. Encon tra mos as pri me i ras ram pas for tes da es tra da. Domeio do ca mi nho, per to da La goa de Cima, co me ça-se a avis tar, be lís si ma, fe chan do o ho ri zon te para nor des te, a ser ra de Mon te San to. Pre do mi -nam na flo ra no vos es pé ci mes; co me çam a apa re cer em ma i or nú me ro os an gi cos de fo lhas mi ú das e por te ele gan te, as ba ra i e nas al tas, as ca ra í bas defo lhas lan ce o la das e ca çu quin gas de che i ro agres te e agra dá vel. A três qui lô -me tros de Qu i rin quin quá o ter re no gra ní ti co aflo ra do mi nan do a cons ti -

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tu i ção do solo. A ro cha tem para mim um as pec to novo; está ca va da emmu i tos pon tos em cal de i rões de gran de za va riá vel, nos qua is se acu mu lam as águas da chu va. São re ser va tó ri os pro vi den ci a is. Estão to dos tos ca men -te co ber tos: al gu mas pe dras so bre paus dis pos tos pa ra le la men te.

Qu i rin quin quá, in com pa ra vel men te su pe ri or ao Tan qui nho,tem um ho ri zon te me nos mo nó to no que Can san ção.

A vi a gem se gue sem in ci den tes no tá ve is. O acam pa men to, àno i te, pa ten te ia mag ní fi co as pec to, di fe ren ci a do em gru pos ani ma dos,con ver san do ru i do sa men te en quan to a sol da des ca ades tra da cu i da daca va lha da ex te nu a da.

Abri ga dos uns nas duas ca sas da fa zen da gra ci o sa men te ce di -das, dor min do ou tros ao re len to, em re des ou so bre os ape tre chos damon ta ria, va mos atra ves sar mais uma no i te, a úl ti ma, fe liz men te, des tavi a gem. Par ti re mos ama nhã cedo para Mon te San to.

MONTE SANTO – 6 DE SETEMBRO 14

Fi nal men te che ga mos, às nove ho ras da ma nhã, à nos sa basede ope ra ções, de po is de duas ho ras de mar cha.

Nin guém pode ima gi nar o que é Mon te San to a três qui lô me -tros de dis tân cia. Ere ta num li ge i ro so cal co, ao pé da ma jes to sa mon ta -nha, a po vo a ção, pou cos me tros a ca va le i ro so bre os ta bu le i ros ex ten -sos que se es ten dem ao nor te, está numa si tu a ção ad mi rá vel. Não co -nhe ço ne nhu ma de as pec to mais pi to res co que o des te ar ra i al hu mil de,per di do nos se i os dos ser tões. O vi a jan te exa us to, es ma ga do pelo can sa -ço e pe las sa u da des, sen te um de sa fo go imen so ao avis tá-lo, de po is degal gar a úl ti ma on du la ção do solo, com as suas ca sas bran cas e pe que -nas, ca in do por um pla no de in cli na ção in sen sí vel até à pla ní cie vas tís si -ma.

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14 A edi ção de 22 de se tem bro de 1897, d’O Esta do de S. Pa u lo, pu bli cou esta car ta,que não cons tou das edi ções an te ri o res, em li vro. Co pi a mo-la da co le ção do jor -nal e, se gun do nos in for mou o Prof. José Ca la zans, par te dela foi pu bli ca da peloDiá rio de No tí ci as, da Ba hia. N. do R.

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Na mon ta nha, a um lado, res sal ta logo à vis ta um qua dro in te -res san te e novo.

Gal gan do-a, pri me i ro numa di re ção, de po is nou tra, em zi -gue za gue, até vin gar a en cos ta e su bin do de po is pelo es pi gão afo raaté a pon ta cul mi nan te da ser ra, apru mam-se vin te e qua tro ca pe las, al vís si mas, des ta can do-se ni ti da men te num fun do par do e re que i -ma do de ter re no ás pe ro e es té ril.

Não me de mo ra rei, po rém, nes te as sun to, do qual tra ta reicom mais va gar.

Qu an do en tra mos, for ma vam na pra ça 1.900 ho mens sob oco man do do Co ro nel Cé sar Sam pa io. À fren te dos ba ta lhões pa ra en sesavul ta va o Co ro nel So te ro de Me ne ses – um che fe e um sol da do comohá pou cos. Di vi sei logo, à fren te do Ba ta lhão do Ama zo nas, um dig nocom pa nhe i ro dos ve lhos tem pos en tu si as tas da pro pa gan da, Cân di doMa ri a no, con tem po râ neo de es co la.

Hou ve um en tu si as mo sin ce ro e ru i do so quan do, num mo vi -men to úni co, as mil e no ve cen tas ba i o ne tas, num cin ti lar vi vís si mo, des -ce ram rá pi das dos om bros dos sol da dos, apru man do-se na con ti nên ciaaos ge ne ra is – numa on du la ção lu mi no sa, imen sa.

Atra ves sa mos, a ga lo pe, pela fren te das tro pas e pa ra mos afi -nal di an te do úni co so bra do, no bi li ta do com o tí tu lo pom po so de quar -tel-ge ne ral.

Ape ei-me ime di a ta men te e achei-me en tre an ti gos com pa nhe i ros,de há mu i to au sen tes. Que di fe ren ça ex tra or di ná ria em to dos!

Do min gos Le i te, um belo tipo de fla ne ur, fol ga zão nos bonstem pos da es co la, um de vo to ele gan te da Rua do Ou vi dor, abra çou-mee não o co nhe ci. Vi um ho mem es tra nho, de bar ba in cul ta e cres ci da,ros to pá li do e tos ta do, voz ás pe ra, ves tin do bom ba chas enor mes, co ber tode lar go cha péu de sa ba do. Está aqui des de a Expe di ção Mo re i ra Cé sar,na fa i na pe ri go sa e tre men da da Enge nha ria mi li tar, a tra çar es tra das node ser to, cor ren do li nhas te le grá fi cas, di ri gin do com bo i os por ve re das di fí ce is, nas qua is o ba cha rel em Ma te má ti ca teve mu i tas ve zes de em pu -nhar o fer rão e trans for mar-se em car re i ro.

Abra cei co mo vi do o an ti go co le ga em quem as fa di gas nãodes tru í ram a jo vi a li da de an ti ga.

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Como se muda nes tas pa ra gens!Gus ta vo Gu a bi ru, ou tro en ge nhe i ro mi li tar, foi uma vez

en con tra do por um con tin gen te da For ça Po li ci al da Ba hia em tal es ta doque foi pre so como ja gun ço. E não teve me i os de con ven cer aos sol da dos do en ga no em que ha vi am ca í do.

Encon trei, per to de Qu i rin quin quá, na es tra da, quan do ví nha -mos, Co ri o la no de Car va lho, ex-go ver na dor do Pi a uí, e cor res pon di-lheao cum pri men to sem o co nhe cer ab so lu ta men te na oca sião.

O Ca pi tão Sou sa Fran co, um dos nos sos me lho res ofi ci a is deca va la ria, trans mu dou-se num ve lho inú til e com ba li do.

Pa re ce que esta na tu re za sel va gem vai em to dos im pri min douma fe i ção di ver sa.

O Ma jor Mar ti ni a no, co man dan te da pra ça, um tipo de sem pe -na do de sol da do que sem pre vi, des de os tem pos aca dê mi cos, no Rio,de boné atre vi da men te in cli na do “a três pan ca das”, subs ti tu iu o an ti goca va nha que ne gro por uma bar ba bran ca. Está ve lho; está aqui há pou -cos me ses.

A cor muda re ves tin do-se de tons ás pe ros de bron ze ve lho;como que mir ram as car nes e os os sos in cham; ra pa zes ele gan tes trans -for mam-se ra pi da men te em atle tas de sen gon ça dos e rí gi dos...

Qu a se que se vai tor nan do in dis pen sá vel a cri a ção de um ver bo para ca rac te ri zar o fe nô me no. O ver bo “aja gun çar-se”, por exem plo. Há trans for ma ções com ple tas e rá pi das.

O re pre sen tan te da No tí cia, Alfre do Sil va, as som brou-me: está num des cam bar ir re sis tí vel para o tipo ge ral pre do mi nan te – bar ba cres -ci da, cha pe lão de pa lha, pa le tó de brim de cor in clas si fi cá vel, bom ba chas mons tru o sas.

E cada um anda por aqui per fe i ta men te à von ta de. Mon teSan to é como uma úni ca casa, imen sa e mal di vi di da, com inú me roscu bí cu los, de uma só fa mí lia de sol da dos.

Nada ain da po de rei adi an tar so bre a si tu a ção.

∗ ∗ ∗As in for ma ções que hoje ob ti ve são pou co ani ma do ras. Falo

ba se a do no cri té rio se gu ro de co le gas que lá es tão há me ses, que de lá

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vol ta ram on tem, e que pela edu ca ção que pos su em po dem aju i zar comfir me za so bre os acon te ci men tos que pre sen ci a ram.

Ima gi nem que, en quan to o Exér ci to lhes ocu pa gran de par tede ca sas e os ful mi na co ti di a na men te, num bom bar de io in ces san te, osfa ná ti cos dis tri bu em de um modo no tá vel a ati vi da de, re ve zan do-se, dali nha de fogo para o cam po onde cul ti vam man di o cas, fe i jão e mi lho!

Fa zem ro ças que de vem ser co lhi das no ano vin dou ro!Ora, esse as sé dio pla tô ni co que fa ze mos, pa re ce que não per -

de rá tal fe i ção ain da quan do che guem a Ca nu dos to das as for ças comum efe ti vo de pou co mais de oito mil ho mens. Os meus co le gas que alian dam, há me ses, de bús so la e ane rói de em pu nho, ga ran tem-me que ocer co re gu lar exi ge um mi ni mum de vin te e cin co mil ho mens. Por que oja gun ço não tem ape nas três ou qua tro es tra das para o aces so ao po vo a -do, tem um nú me ro in cal cu lá vel de las – qual quer pon to por mais es ca -bro so é-lhe fran ca men te pra ti cá vel.

Res ta o re cur so de um as sal to im pe tu o so, rá pi do e fir me men tesus ten ta do; não há ou tro.

O ata que será fa tal men te mor tí fe ro. Bas ta exa mi nar-se umaplan ta do imen so ar ra i al. Ca nu dos está mi li tar men te cons tru í do e umaes tam pa que por aí anda nada tra duz, ab so lu ta men te, de sua fe i çãoca rac te rís ti ca.

As ca sas, apa ren te men te em de sor dem, dis põem-se umas re la -ti va men te às ou tras, de modo tal que de qual quer das qua tro es qui nas de qual quer de las, o ini mi go, sem mu dar de lu gar, ro dan do ape nas so bre os cal ca nha res, ati ra para os qua tro pon tos do ho ri zon te. É o que me afir -mou um ho mem in te li gen te e en ge nhe i ro dis tin to – o Co ro nel Cam pe lo Fran ça.

E se ali ar mos a essa dis po si ção, adre de pre pa ra da, a con for -ma ção bi zar ra do solo, de fi ni da por on du la ções li ge i ras e nu me ro sas,cru zan do-se em to dos os sen ti dos, com pre en de re mos bem to das as di fi -cul da des do com ba te.

É ab so lu ta men te ne ces sá rio, en tre tan to, que ele se re a li ze,quan to an tes. Eu es tou fir me men te con ven ci do que as nos sas tro pasnão po dem per ma ne cer por dois me ses no má xi mo, nes tas pa ra gens in -gra tas, ape sar do es to i cis mo e ab ne ga ção re ve la dos pe los seus che fes.

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As di fi cul da des de trans por tes de mu ni ções de guer ra e deboca po dem, em par te, ser de be la das. Há tro pe ços, po rém, ir re me diá ve is,ab so lu ta men te in sa ná ve is, e en tre es tes, es pan ta lho que ater ra a to dosque vêm ou se guem para Ca nu dos, a sede; sede de vo ra do ra e inex tin guí -vel que tem tor tu ra do a to dos os com ba ten tes.

Os pe que nos pân ta nos, que ain da exis tem nas es tra das, alémde qua se exa u ri dos têm no seio toda sor te de ger mes de in fec ção. Numde les, um dos me lho res, per to de Ju e tê, con tam com pa nhe i ros re -cém-vin dos que vi ram, es ten di do ho ri zon tal men te na bor da, a bocamer gu lha da na água es ver de a da, o ca dá ver de um va ri o lo so que até ali se ar ras ta ra, im pe li do pela sede ar den te da fe bre e mor re ra.

Ou tros guar dam no fun do, tra i ço e i ra men te ocul tos pela per fí -dia as som bro sa do ja gun ço, ca dá ve res de ho mens e ca va los, numa de com -po si ção len ta e ne fas ta.

Se as chu vas so bre vi e rem, de sa pa re ce rão es tes in con ve ni en tes,mas sur gi rão ou tros.

Ima gi ne mos um só. O Vaza-Bar ris, avo lu man do-se des me di da men te, cor ta rá de

todo as co mu ni ca ções en tre o exér ci to si ti an te e a base de ope ra ções. Só por um mi la gre da Enge nha ria, num lu gar em que es cas se i am ma te ri a ise pes so al ades tra do, po dem ser elas res ta be le ci das por uma pon te quedeve ser fe i ta no pra zo mí ni mo de oito dias, com to das as con di ções dere sis tên cia de fi ni da pela car ga pe ri go sa da tro pa em mar cha, sob as ba las cer te i ras e cons tan tes dos fa ná ti cos!

Não exa ge ro pe ri gos; mas o oti mis mo se ria um cri me nes taqua dra. Além dis to a ma i o ria re pu bli ca na da nos sa ter ra pre ci sa co nhe -cer toda a ver da de des ta si tu a ção do lo ro sa, pela voz ao me nos sin ce rados que aqui es tão pron tos para com par ti rem do sa cri fí cio no bi li ta dorpela Re pú bli ca.

Não sa be mos ain da se o Ma re chal Bit ten court irá até Ca nu -dos; se esta re so lu ção for to ma da re ves ti rei a mi nha in ca pa ci da de fí si ca com a mi nha ca pa ci da de mo ral e não aban do na rei os de di ca dos com -pa nhe i ros.

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Ama nhã con ti nu a rei es tas no tas que, com cer te za, aí vão che -gar com gran des in ter va los, por que o ser vi ço de cor re i os aqui é pés si mo e mo ro so.

MONTE SANTO – 7 DE SETEMBRO

Uma al vo ra da tris te. No en tan to vi bra vam nos ares as no tas me tá li cas de seis ban -

das mar ci a is e a ma nhã rom peu en tre os des lum bra men tos do ori en te,ex pan din do-se num fir ma men to sem nu vens.

Olhan do em tor no, o que se ob ser va é o mais per fe i to con -tras te com a fe i ção ele va da des ta data ru i do sa men te sa u da da.

As im pres sões aqui for mam-se por meio de um jogo per sis -ten te de an tí te ses. Si tu a da num dos lu ga res mais be los e in te res san tes do nos so país, Mon te San to é sim ples men te re pug nan te. A gran de pra çacen tral ilu de à pri me i ra vis ta. Quem ousa atra ves sar, po rém, as vi e las es -tre i tís si mas e tor tu o sas que nela aflu em é as so ber ba do por um es pan toex tra or di ná rio. Não são ruas, não são be cos, são como que imen sos en -ca na men tos de es go to, sem abó ba das, des tru í dos.

Cus ta a ad mi tir15 a pos si bi li da de da vida em tal meio – es tre i -to, exí guo, mi se rá vel – em que se com pri mem ago ra dois mil sol da dos,ex clu í do o pes so al de ou tras re par ti ções, e uma mul ti dão re bar ba ti va deme ge ras es quá li das e fe i as na ma i o ria – fú ri as que en cal çam o exér ci to.E todo esse acer vo in co e ren te co me ça, cedo, a agi tar-se, fer vi lhan do naúni ca pra ça, lar ga men te ba ti da pelo sol. Con fun dem-se to das as po si -ções, aco to ve lam-se se res de to dos os gra us an tro po ló gi cos.

Pas sam ofi ci a is de to das as pa ten tes e de to das as ar mas, pas -sam car re i ros po en tos e can sa dos, pas sam mu lhe res mal tra pi lhas, pas -sam co mer ci an tes, pas sam sol da dos a pé e a ca va lo, fe ri dos e con va les -

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15 Con fi ra-se, n’Os Ser tões, quan do é tra ça do o per fil do Co ro nel Mo re i ra Cé sar,cons tru ção se me lhan te: “Os que o viam pela pri me i ra vez cus ta vam a ad mi tir...”,cor ri gi da na 2ª edi ção para “Os que o viam pela pri me i ra vez, cus ta va-lhes ad mi -tir...”, com nota do Au tor no fi nal do li vro.

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cen tes; e cru zam-se em to dos os sen ti dos, atu mul tu a da men te, num ba ra -lha men to de sor de na do e in cô mo do de fe i ra con cor ri da e mal po li ci a da.

E isto to dos os dias, no mes mo lu gar, às mes mas ho ras – esão os mes mos in di ví du os, ves ti dos do mes mo modo, es ta ci o nan do nosmes mos pon tos...

Tem-se a sen sa ção es ma ga do ra de uma imo bi li da de do tem po. A ter ra re a li za a sua ro ta ção eter na, os dias su ce dem-se as tro -

no mi ca men te, mas não mu dam aqui. Pa re ce que é o mes mo dia que sedes do bra so bre nós – in de fi ni do e sem ho ras –, in ter rom pi do ape naspe las no i tes ar den tes e tris tes.

E quan do o sol dar de ja alto, ar den tís si mo num céu va zio,tem-se a im pres são es tra nha de um sple en mais cru el do que o que se de ri -va dos ne vo e i ros de Lon dres; sple en tro pi cal fe i to da exa us tão com ple ta do or ga nis mo e do té dio oca si o na do por uma vida sem va ri an tes.

∗ ∗ ∗Nem uma só no tí cia de Ca nu dos. Os que lá se acham têm ao me nos a di ver são pe ri go sa dos

as sal tos. E não su po nham que eles não se re a li zem di a ri a men te qua se. Às ve zes, toda a li nha das nos sas for ças, que tem uma ex ten -

são apro xi ma da de dois qui lô me tros, é, si mul ta ne a men te, à no i te, ata ca davi go ro sa men te, em to dos os pon tos. Esse fato, que se tem re pro du zi do,com ba te de al gum modo a opi nião dos que jul gam di mi nu to o nú me roatu al de fa ná ti cos.

As an ti gas for ças, que lá es tão des de o prin cí pio, afe i ço a -ram-se já, numa rude apren di za gem, a es sas sur ti das no tur nas e re pe -lem-nas bri lhan te men te, com uma mes tria no tá vel – de i xan do apro xi -mar-se o as sal tan te e ful mi nan do-o, mu i tas ve zes à que i ma-rou pa, em ti ros cer te i ros, apro ve i ta dos to dos. Estão per fe i ta men te dis ci pli na daspara os ata ques tra i ço e i ros. Não acon te ce, po rém, o mes mo com asre cém-che ga das; o que é na tu ral.

Pa gam ain da o tri bu to do so bres sal to re pen ti no e brus co. Os cor pos da ex-Bri ga da Gi rard e o Ba ta lhão de São Pa u lo,

que ocu pam os flan cos da li nha, res pon dem ain da aos as sal tos com

Ca nu dos e Ou tros Temas 73

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des car gas cer ra das, ti ros per di dos na no i te, des per dí cio inú til de ba -las. Os no vos com ba ten tes adap tar-se-ão, po rém, como os ou tros, àsi tu a ção.

Já te mos al guns ba ta lhões, en tre os qua is o 25º, o 32º e o 27º,que co pi am de uma ma ne i ra ad mi rá vel o modo de agir do ini mi go.Dis per sam-se como ele nas ca a tin gas e ca çam-no tam bém como ele nos caça; des li zam como ele, des tra men te, en tre os es pi nhos, de ras tros,co zi dos com o chão, aco ber tan do-se em to dos os aci den tes do solo,en grim po nan do-se na ga lha da inex tri cá vel das um bu ra nas; rá pi doscomo ele, como ele apa re cen do e de sa pa re cen do de um modo fan tás ti co, pon do a as tú cia di an te da as tú cia, jo gan do a ci la da con tra a ci la da.

Uma apren di za gem per fe i ta com ins tru to res sel va gens. Por que de ve mos dizê-lo – nin guém deve acre di tar que os

ja gun ços com ba tam sem or dem; há leis na que le tu mul to apa ren te; naor dem dis per sa em que se dis põem, in va ri a vel men te, o tri lar dos api tosde ter mi na evo lu ções rá pi das cor re ta men te exe cu ta das, di la tan do, en cur -tan do, fa zen do avan çar ou re tro ce der, mo vi men tan do em to dos os sen -ti dos, ver ti gi no sa men te, as li nhas de ati ra do res per fe i ta men te dis pos tas.

Antô nio Con se lhe i ro per ce beu as des van ta gens de uma lutaleal e fran ca com os nos sos sol da dos – e de cla rou so le ne men te aos bár -ba ros que o com ba ten te de go la do não te ria as re com pen sas de uma vida fu tu ra. Daí a ce le ri da de com que fo gem os ja gun ços quan do ao to que dede go la! os sol da dos se em bre nham de ba i o ne tas ca la das pe las ca a tin gas.

Os re sul ta dos des se es tra ta ge ma têm sido, como é sa bi do, ex -tra or di ná ri os.

MONTE SANTO – 8 DE SETEMBRO

Quem sobe a lon ga via-sa cra de três qui lô me tros de com pri -men to, la de a da de ca pe las des de a base até ao cimo, do Mon te San to,com pre en de bem a te na ci da de in co er cí vel do ser ta ne jo fa na ti za do. É di -fi cil men te con ce bí vel o es for ço des pen di do para o le van ta men to des sama ra vi lha dos ser tões.

74 Eu cli des da Cunha

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Ampa ra da aos dois la dos por mu ros de al ve na ria, ca pe a dos,de um me tro de al tu ra por um de lar gu ra, cal ça da em cer tos tre chos,ten do nou tros como le i to a ro cha viva, essa es tra da no tá vel, onde têmres so a do as la da i nhas das gran des pro cis sões da Qu a res ma e pas sa do le -giões in cal cu lá ve is de pe ni ten tes, é um mi la gre de en ge nha ria rude e au -da ci o sa. Per cor ri-a toda, hoje.

Co me ça in ves tin do fran ca men te con tra a mon ta nha, se guin do a nor mal de má xi mo de cli ve, com uma ram pa de cer ca de 20 gra us; naquin ta ca pe la in fle te à es quer da e pro gri de com uma in cli na ção me nor;vol ta de po is, mais adi an te, brus ca men te para a di re i ta, numa di mi nu i çãocon tí nua de de cli ve até ao seio mais ba i xo, es pé cie de li ge i ra gar gan ta do es pi gão. Se gue por este ho ri zon tal men te por cer ca de du zen tos me trosaté apru mar-se de novo – in ves tin do afi nal con tra a úl ti ma su bi da ín gre -me e di la ta da até à San ta Cruz, no alto.

Uma co i sa as som bro sa. Tem três mil me tros apro xi ma da men te e, em cer tos seg men tos, foi ras ga da atra vés da ro cha du rís si ma e ás pe ra –por que toda a ser ra de Mon te San to é cons ti tu í da de um quart zi to queir rom pe atra vés das for ma ções gra ní ti cas, vi sí ve is nos ter re nos pla nosque a cir cun dam. A ser ra tem uma fe i ção al ta men te pi to res ca, apru ma da so bre a po vo a ção – es cal va da em mu i tos pon tos, re ves ti da nou tros deuma ve ge ta ção en fe za da.

Com o ex tra or di ná rio luar des tas úl ti mas no i tes, o seu as pec to é ver da de i ra men te fan tás ti co; des ta cam-se ni ti da men te as ca pe li nhasbran cas e à luz re fle xa e dú bia da lua as ver ten tes, que se in ter rom pemem pa re dões a pru mo em vir tu de da pró pria es tra ti fi ca ção da ro cha, dão a idéia de mu ra lhas imen sas, sine cal cis li ni men to,16re cor dan do ve lhas trin -che i ras aban do na das de ti tãs.

Do alto des cor ti na-se um ho ri zon te de vin te lé guas; toda a re -gião como uma cos ta em re le vo es ten de-se ante o olhar do ob ser va dor,pa ten te an do pers pec ti vas be lís si mas. Apro ve i tan do con ve ni en te men teaque la al tu ra ali a da a mais dois ou três dos aci den tes de ter re no que

Ca nu dos e Ou tros Temas 75

16 No jor nal, lê-se li ni men ti, mas no fac-sí mi le da pág. 105 vê-se cla ra men te queEu cli des es cre veu li ni men to. A for ma cor re ta de ve ria ser sine cal cis le ni men to = sem o le ni ti vo do fim, isto é, in ter mi ná vel. N. do R.

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apon tam ao nor te, po der-se-ia, de há mu i to, ter es ta be le ci do um te lé gra -fo óp ti co, de trans mis são pron ta, por meio de um jogo com bi na do deco res, com Ca nu dos.

Infe liz men te esta me di da não foi to ma da.

MONTE SANTO – 9 E 10 DE SETEMBRO

Nada ain da de novo so bre a luta.Par tiu on tem mais um com bo io que deve ser es col ta do pelo 33º

Ba ta lhão de Ju e té para cima, ao en trar na zona pe ri go sa. Não par tiu ain da o Ge ne ral Car los Eu gê nio e é pos sí vel que se pro lon gue a sua de mo ra.

A nos sa si tu a ção, os des ti nos da guer ra es tão, ago ra, em fun -ção de mil e não sei quan tos bur ros in dis pen sá ve is para o trans por te demu ni ções.

Esta cir cuns tân cia bi zar ra ca rac te ri za as con di ções es pe ci a isda cam pa nha. Ain da quan do hou vés se mos aqui, em Mon te San to, cemmil ho mens, não me lho ra ría mos de sor te. Pode-se mes mo di zer pi o ra -ría mos con si de ra vel men te. Não nos fal tam ho mens que se dis po nham amor rer pela Re pú bli ca va ra dos pe las ba las.

A Re pú bli ca é que não lhes pode exi gir o sa cri fí cio da mor tepela fome.

To das es tas di fi cul da des pro ma nam em gran de par te da base deope ra ções ado ta da, en cra va da no de ser to e já de si mes ma de aces so pe no so.

Os com bo i os que se guem são o pão de cada dia das nos sas for -ças e são in su fi ci en tes. Os dois mil ho mens pron tos a par tir, por uma in -ver são no tá vel im pos ta pe los acon te ci men tos, ao in vés de au xi li a res se rãocon cor ren tes pre ju di ci a is num com ba te sur do com a pe nú ria.

Esse é o as pec to hor ro ro so e di fi cil men te ate nu a do da luta. É por isto que en ten do opor tu na ago ra uma tá ti ca mais ver ti gi no sa que ade Cé sar, che gar, lu tar, ven cer, vol tar...

∗ ∗ ∗Nas lon gas in ves ti ga ções di a ri a men te fe i tas pe los ar re do res,

te nho es tu da do, com di fi cul da des em bo ra, essa re gião in gra ta que é

76 Eu cli des da Cunha

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idên ti ca, com li ge i ras va ri an tes, à que cir cun da o ar ra i al con se lhe i ris ta. É uma das par tes mais mo der nas tal vez do nos so con ti nen te e sur giu daságuas pro va vel men te de po is da len ta as cen são da cor di lhe i ra dos Andes, como um fe nô me no com ple men tar.

A fal ta de ma tas, de ve ge ta ção opu len ta, além das ca u sas quere sul tam da na tu re za ge og nós ti ca do solo e dos agen tes me te o ro ló gi cos,tem como mo ti vo pre pon de ran te essa ida de re cen te.

O lí quen ain da está de com pon do a ro cha; a na tu re za in te i raain da se pre pa ra para a or ga ni za ção su pe ri or da vida.

Tudo in di ca (e fora lon go enu me rar as ra zões em que meba se io) o fun do, des co ber to por uma len ta su ble va ção, de um mar ge o -lo gi ca men te mo der no, ter ciá rio tal vez, em cuja am pli dão a pon ta cul mi -nan te de Mon te San to des pon ta va como um ca cho po de quart zi to.

MONTE SANTO – 11 DE SETEMBRO 17

Fo mos hoje, à tar de, sur pre en di dos com uma agra dá vel no tí -cia. O Ge ne ral Artur Oscar co mu ni cou ao mi nis tro que, de po is de lon -go bom bar de io, ca í ram afi nal as duas gran des tor res da igre ja nova deCa nu dos, pon tos que do mi na vam todo o nos so acam pa men to e de onde fa zi am os ja gun ços um fogo diá rio e mor tí fe ro. Isto su ce deu no dia 6.

Uma ou tra no tí cia com ple ta ad mi ra vel men te esta. O dia 7 foibri lhan te men te co me mo ra do no cen tro das ope ra ções. Foi, de po is dete naz re sis tên cia, em que per de ram os fa ná ti cos mu i tas vi das, to ma da atrin che i ra mais avan ça da da es tra da do Cam ba io.

Esta no tí cia tem para nós uma sig ni fi ca ção mais ín ti ma:se gun do ouvi do Co ro nel Sam pa io, co man dan te da Pri me i ra Bri ga da da

Ca nu dos e Ou tros Temas 77

17 O Esta do de S. Pa u lo de 27 de se tem bro de 1897 pu bli cou as no tas da ta das de 8, 9,10 e 11 des se mês, ex pe di das de Mon te San to. Na edi ção de 11 de ou tu bro, fi gu -rou a car ta se guin te, da ta da de 10 de se tem bro, e dan do, como lo cal de ex pe di ção, o ar ra i al de Ca nu dos. Sus pe i ta mos de en ga no, po den do-se atri bu ir à úl ti ma mis si -va a data de 12 de se tem bro, quan do se guiu para o cam po de ba ta lha a 2ª Bri ga dada Di vi são Au xi li ar, com a qual Eu cli des po de ria ter fe i to a jor na da de Mon teSan to a Ca nu dos. N. do R.

Page 156: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Di vi são Au xi li ar, aque la trin che i ra foi to ma da pelo 37º de Infan ta ria epelo Ba ta lhão Pa u lis ta.

Se gui rá ama nhã para Ca nu dos a 2ª Bri ga da des sa Di vi são sobo co man do do Co ro nel So te ro de Me ne ses.

CANUDOS – 10 DE SETEMBRO

… E vin gan do a úl ti ma en cos ta di vi sa mos su bi ta men te, adi -an te, o ar ra i al imen so de Ca nu dos.

Re fre ei o ca va lo e olhei em tor no.É ex tra or di ná rio que os que aqui têm es ta do e es cri to ou

pres ta do in for ma ções so bre esta cam pa nha, nada te nham dito ain daacer ca de um ter re no cuja dis po si ção to po grá fi ca e cons ti tu i ção ge o ló gi -ca são sim ples men te sur pre en de do ras.

As inú me ras co li nas que se des do bram em tor no da ci da de laser ta ne ja, to das com a mes ma al ti tu de qua se e dan do, ao lon ge, a ilu sãode uma cam pi na uni da e vas ta, ale van tam-se den tro de uma elip se ma -jes to sa de mon ta nhas. Olhan do para a di re i ta, avul tam as cu me a das daCa na bra va, Poço de Cima e Co co ro bó li gan do-se à es quer da com as doCa lum bi, Cam ba io e Caipã – in fle tin do a les te e a oes te uma cur va am -plís si ma e fe cha da, com um eixo ma i or de doze lé guas e um me nor, denove, tra çan do uma elip se per fe i ta.

Den tro dela es ten de-se a re gião caó ti ca, ir re gu lar men te on du -la da, em cujo cen tro, apro xi ma da men te, se er gue Ca nu dos.

O ar ra i al não se dis tin gue pron ta men te, ao olhar, como asde ma is po vo a ções; fal ta-lhe a al vu ra das pa re des ca i a das e te lha dosen ca li ça dos.

Tem a cor da pró pria ter ra em que se eri ge, con fun din do-secom ela na mes ma tin ta de um ver me lho car re ga do e par do, de fer ru -gem ve lha, e, se não exis tis sem as duas gran des igre jas à mar gem doVaza-Bar ris, não se ria per ce bi da a três qui lô me tros de dis tân cia.

Ale van ta-se so bre oito ou nove co li nas, su a ve men te ar re don -da das umas, ter mi nan do ou tras em ram pas for tís si mas.

78 Eu cli des da Cunha

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Vis to de al gu ma dis tân cia, po rém, pa re ce uma ci da de pla na,mais abri ga da, à di re i ta, pe los aci den tes um pou co mais for tes do solo,que, da Fa ve la à Fa zen da Ve lha, se li gam à úl ti ma trin che i ra fe chan do aes tra da do Cam ba io, cir cu mu ran do-o, em par te, a ca va le i ro do vale pro -fun do do Vaza-Bar ris que se gue a mes ma di re ção.

Do alto da trin che i ra Sete de Se tem bro, er gui da num con tra -for te avan ça do do mor ro da Fa ve la, quem ob ser va tem a im pres sãoines pe ra da de achar-se ante uma ci da de ex ten sa, di vi di da em cin co ba ir -ros dis tin tos e gran des, re ves tin do in te i ra men te o dor so das co li nas.

É um qua dro sur pre en den te, o des te acer vo in co e ren te deca sas – to das com a mes ma fe i ção e a mes ma cor, com pac tas e uni dasno cen tro de cada um dos ba ir ros dis tin tos, es par sas e mi li tar men te dis -pos tas em xa drez nos in ter va los en tre eles.

Não há pro pri a men te ruas, que tal nome não se pode dar às vi e -las tor tu o sas, cru zan do-se num la bi rin to inex trin cá vel – e as duas úni caspra ças que exis tem, ex ce tu a da a das igre jas, são o aves so das que co nhe ce -mos: dão para elas os fun dos de to das as ca sas; são um quin tal em co mum.

À es quer da da li nha de fi ni da pelo ob ser va dor e a pa re de an te -ri or da igre ja nova, acha-se a par te rica – ca sas de te lhas aver me lha das ede apa rên cia mais cor re ta, um tan to ma i o res que as de ma is e mais oume nos ali nha das num ar re me do de ar ru a men to. Esten den do-se em tor -no des tas, apre sen tam-se, nu me ro sís si mas e como que fe i tas por umúni co mo de lo, as ca si nhas que cons ti tu em a ma i or par te do clã18 deAntô nio Con se lhe i ro.

Fe i tas de pau-a-pi que e di vi di das em três com par ti men tos, nomá xi mo, são como que uma pa ró dia gros se i ra da an ti ga casa ro ma na:um átrio que é a um tem po a co zi nha, sala de jan tar e de re cep ção, umves tí bu lo es tre i to em al gu mas, e uma al co va. Co ber tas de uma ca ma dade cer ca de quin ze cen tí me tros de bar ro, lem bram nes te pon to as ca sasdos ga u le ses de Cé sar. Os nos sos ru des pa trí ci os têm, po rém, um ma te -

Ca nu dos e Ou tros Temas 79

18 Clã sig ni fi ca, em sen ti do pró prio, gru po apa ren ta do, con san güí neo. No caso, hácon ta mi na ção se mân ti ca: os fa ná ti cos de Ca nu dos eram a “fa mí lia” de Antô nioCon se lhe i ro e o de sig na ti vo do fe nô me no (clã) es ten de-se à ci da de por ela ha bi ta -da. N. do R.

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ri al mais apro pri a do nas pla cas lar gas da ro cha pre do mi nan te da re gião,que ain da quan do de com pos ta con ser va a es tra ti fi ca ção pri mi ti va.Assen tam-nas so bre as fo lhas re sis ten tes de icó.

É uma co ber tu ra eter na – e Ca nu dos, como um vas tís si moKra al afri ca no, pode du rar mil anos, se o bom bar de io e os in cên di os não o des tru í rem bre ve.

Te nho-a per cor ri do toda, de lon ge, can sa do de aco mo dar avis ta às len tes dos bi nó cu los. Dois me ses de bom bar de io per ma nen tenão lhe des tru í ram a me ta de se quer das ca sas; so men te uma aná li se mais de mo ra da pa ten te ia as ru í nas que sur gem num e nou tro pon to, a pró -pria cons tru ção ru di men tar im pe din do a ir ra di a ção efi caz das ex plo sõesdas gra na das. A bala atra ves sa vi o len ta men te, sem en con trar re sis tên cia,per fu ran do pa re des es tre i tís si mas de ar gi la, dez ou vin te ca sas e não asaba la.

De i xa-as in tac tas qua se, aber tas ape nas mais al gu mas se te i raspara o es pin gar de a men to tra i ço e i ro fe i to pe los ja gun ços.

As pró pri as igre jas, lon gos dias ru de men te tra ta das pela ar ti lha ria,con ser vam ain da as pa re des mes tras qua se es tru í das, como dois acer vosmons tru o sos de pe dras enor mes. Os ja gun ços ain da se en trin che i ram ne las, às ve zes, tra van do ti ro te i os cer ra dos, à que i ma-rou pa, com as li nhasau da ci o sas dos Te nen tes-Co ro néis Tupi e Dan tas Bar re to.

E olha-se para a al de ia enor me e não se lo bri ga um úni coha bi tan te. Lem bra uma ci da de bí bli ca ful mi na da pela mal di ção tre men dados pro fe tas. E quan do os ti ros dela par tem, de to dos os pon tos, ir ra -di an do para to dos os pon tos da li nha am plís si ma do cer co, a fan ta siaape nas di vi sa ali den tro uma le gião in vi sí vel e in tan gí vel de de mô ni os...

∗ ∗ ∗Se, con si de ran do esta al de ia si nis tra, se ava li am to das as di fi cul -

da des de um com ba te tra va do em seu seio, ob ser van do os ar re do res vê-se que deve ter sido di fi cí li ma a in ves ti da fe i ta con tra ela pe las nos sas tro pas.Qu al quer sec ção trans ver sal, nes te ter re no ca pri cho so, de ter mi na, de se -nha da, uma si nu o sa. A mar cha re a li za-se ou se guin do pe los me an dros dos pe que nos va les ou em su ces si vas e ine vi tá ve is su bi das e des ci das, nu me ro -sas e fa ti gan tes, agru pan do-se as co li nas pou co ele va das numa or dem e

80 Eu cli des da Cunha

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fe i ção tais que lem bram gran des ca lo tas es fé ri cas dis pos tas num pla noex ten so, tan gen ci an do-se no fun do das gar gan tas in ter me diá ri as.

Nada mais pe ri go so e di fí cil do que a mar cha de um exér ci toem tais lu ga res; é como se atra ves sas se o re cin to com pli ca do de uma for -ta le za. Cada ba ta lhão, cada bri ga da, o exér ci to in te i ro é fa tal men te ba ti dopor to dos os la dos pelo ini mi go in vi sí vel sem pre, aco ber ta do ora pe losva los que sul cam as en cos tas, cu jas bor das mas ca ra das por en re da dos ren -ques de ma cam bi ras não de i xam per ce ber o ati ra dor ou sa do, ora pe lastrin che i ras ca va das no alto, cir cu la res ou elíp ti cas, den tro das qua is nãocaem as ba las nem mes mo no ramo des cen den te das tra je tó ri as.

Nos com ba tes cru en tos de 18 de ju lho os ten ta ram-se, demodo no tá vel, es tas con di ções tá ti cas for mi dá ve is.

Per cor ri o cam po da ba ta lha com o meu co le ga Gus ta vo Gu a -bi ru, e ele, que foi um dos pro ta go nis tas da luta, mos trou-me pon tos em que meia dú zia de ho mens ra re a ram as fi le i ras de mu i tas bri ga das.

Vi o len ta men te ba ti da pe los flan cos e pela fren te, as for ças, ao vin ga rem as emi nên ci as su ces si vas do solo, ne las não en con tra vam doini mi go ou tro in dí cio além de uma trin che i ra tos ca e che ia de car tu chosde to na dos. Em com pen sa ção, mais adi an te con ti nu a va a fu zi la ria inex -tin guí vel e tre men da, ful mi nan do-as no va men te por to dos os la dos – e o ini mi go res sur gia nas três ou qua tro co li nas mais pró xi mas. E não ha viaabri ga rem-se no fun do dos va les: os ti ros mer gu lhan tes des ci am maiscer te i ros ain da.

Fa zia-se um es for ço in de fi ní vel, or de na vam-se as fi le i ras aba -la das, os ba ta lhões as cen di am, a pas so de car ga, para as no vas for ti fi ca -ções e en con tra vam ou tra vez as trin che i ras va zi as, e, mais adi an te, ale -van ta do nos aci den tes mais pró xi mos, o mes mo ini mi go, in tan gí vel e rá -pi do como um de mô nio, ful mi nan do-os sem pre e es ca pan do sem prepara no vas po si ções, in te i ra men te idên ti cas às an te ri o res!

Uma co i sa fan tás ti ca. E nem um pla i no so fri vel men te ex ten -so, um pon to abri ga do, in sig ni fi can te em bo ra, para a or ga ni za ção deuma re sis tên cia ou ata que mais bem ori en ta do...

Numa das co li nas, no alto, sob a ra ma da sem fo lhas de umum bu ze i ro, o meu co le ga mos trou-me uma ca vi da de cir cu lar de pou comais de meio me tro de pro fun di da de.

Ca nu dos e Ou tros Temas 81

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Ali es te ve no dia da pe le ja um úni co ho mem; e esse ho memtor tu rou ba ta lhões in te i ros!

Nin guém o po dia dis tin guir. Os ti ros rá pi dos da Mann li cherque so pe sa va, dis pen san do a pon ta ria para um alvo enor me, ca íam,re pe ti dos, nu me ro sís si mos, em che io, den tro das fi le i ras. Era uma fu zi la riate naz, im pe tu o sa, mor tí fe ra, for mi dá vel, jo gan do em ter ra pe lo tões in te i ros e fe i ta por um úni co ho mem. Os sol da dos, es ton te a dos, ati ra vam aoaca so, na di re ção pro vá vel dos ti ros do mal di to: uma sa ra i va da de ba laspas sa va ru gin do pela ga lha da do um bu ze i ro; o ati ra dor si nis tro e nun caper ce bi do aba i xa va ape nas a ca be ça e pas sa da a onda de ba las, con ti nu a va, de có co ras, no fun do da trin che i ra, a ta re fa es pan to sa.

Os me lho res bi nó cu los não o dis tin gui am: aga cha do na cova,olhan do se gun do uma tan gen te à bor da do fos so ter rí vel e ati ran do, ati -ran do, ati ran do sem pre, des pi e da do, ter rí vel, de mo nía co, num du e lo demor te con tra mil ho mens!

Ain da lá es tão as cáp su las de to na das. Con tei 361.361 ti ros deu aque le ente fan tás ti co e tal vez per des se mu i to

pou cas ba las.E não mor reu. Por aca so uma fra ção das for ças to mou em

ace le ra do a di re ção da trin che i ra. Ele sur giu numa úl ti ma ex plo são ter rí -vel e de sa pa re ceu pres tes ca in do pela en cos ta abrup ta...

Ora, pelo alto de to das as tom ba das que atra ves sei, apa re ci am asmes mas trin che i ras ca va das com uma dis po si ção in te li gen te umas re la ti va -men te às ou tras cru zan do os fo gos da ma ne i ra mais efi caz, e den tro de to das elas os car tu chos de to na dos pa ten te a vam o mes mo aço da men to na pe le ja.

Não será por isto di fí cil de mons trar – e fá-lo-ei mu i to bre ve – que a ba ta lha de 18 de ju lho é um dos fe i tos de ar mas mais no tá ve is danos sa his tó ria mi li tar.

CANUDOS – 24 DE SETEMBRO

Com ple to on tem o cer co de Ca nu dos, a luta cor re rá ver ti gi -no sa men te, ago ra. Os su ces sos de hoje o in di cam.

82 Eu cli des da Cunha

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Des de mu i to cedo a di re i ta da nos sa li nha avan çou es tre i tan doo sí tio e es ta be le cen do com o ini mi go um com ba te que irá num cres cen doine vi tá vel.

Tra va ram-se com ba tes par ci a is, pe i to a pe i to, den tro das ca sas mais pró xi mas, ra pi da men te cer ca das. À au dá cia in dô mi ta do ja gun çocon tra põe-se nes te mo men to a bra vu ra ini gua lá vel do sol da do.

Escre vo ra pi da men te es tas li nhas, no meio do tu mul to qua se,en quan to a fu zi la ria in ten sa sul ca os ares a cem me tros de dis tân cia.

Aca bam de che gar al guns pri si o ne i ros.O pri me i ro é um ente si nis tro – um es ti lha ço de gra na da

trans for mou-lhe o olho es quer do numa cha ga he di on da, de onde go te jaum san gue ene gre ci do; ba i xo e de com ple i ção ro bus ta, res pon de tor tu o -sa men te a to das as per gun tas.

Está ape nas há um mês em Belo Mon te e nada tem com a luta;nun ca deu um tiro por que tem co ra ção mole, etc. Nada re ve la.

Che gam mais duas pri si o ne i ras, mãe e fi lha; a pri me i ra es que -lé ti ca e es quá li da – re pug nan te, a se gun da mais for te e de fe i ções atra en -tes. Evi tam igual men te tan to quan to pos sí vel res pon der ao in ter ro ga tó -rio do ge ne ral. A fi lha ape nas re ve la:

– Vi la no va esta no i te las cou o pé no ca mi nho e há um lote de diasque um des po tis mo de gen te tem aban ca do para o Cum be e Ca i pã. Está commu i tos dias que há fome em Belo Mon te.

A ve lha nada sabe, evi ta to das as res pos tas e nada pode di zerso bre o nú me ro de ini mi gos por que só sabe con tar até qua ren ta!

Mor reu-lhe o ma ri do há meia hora; era um ba i a no tru cu len to; ex pi rou atra ves sa do pe las ba las, cin co mi nu tos de po is de ha ver mor tocom um tiro de ba ca mar te o al fe res do 24º, Pe dro Si mões Pon tes, emur mu rou com um sor ri so si nis tro ao ex pi rar:

– Estou con ten te! Ao me nos ma tei um! Viva o Bom Je sus!São duas ho ras da tar de e já te mos 13 ba i xas.Che ga mais um ja gun ço pre so.Deve ter ses sen ta anos – tal vez te nha trin ta; vem meio

des ma i a do: no pe i to de se nha-se, ru bra, a lâ mi na de uma es pa da, im pres -sa por uma pran cha da vi o len ta. Não pode fa lar, não anda.

Ca nu dos e Ou tros Temas 83

Page 162: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Mais ou tro: é um ca dá ver cla u di can te. Foi fe ri do há dois me -ses pela ex plo são de um shrap nel quan do se aco lhia ao san tuá rio. Umadas ba las atra ves sou-lhe o bra ço e a ou tra, o ven tre. E este ente as simvive, há dois me ses, numa ina ni ção len ta, com dois fu ros no ven tre,num ex tra va sa men to cons tan te dos in tes ti nos. A voz sai-lhe da gar gan ta im per cep tí vel qua se. Não pode ser in ter ro ga do, não vi ve rá tal vez atéama nhã.

No colo de um sol da do do 5º che ga um ou tro, – tem seis me ses.Foi en con tra do aban do na do numa casa. E o po bre en je i ta do

pas sa, in di fe ren te ao tu mul to, aco ber ta do pela pró pria in cons ciên cia davida. De po is uma ve lha com a fe i ção tí pi ca de ra po sa as sus ta da.

E mais ou tros. Cre io que en tra mos no pe río do agu do da lutaque tal vez não dure oito dias. Está fe cha do o cír cu lo de fer ro em tor no de Ca nu dos.

CANUDOS – 26 DE SETEMBRO 19

Os ja gun ços en cur ra la dos na igre ja nova e no san tuá rio ane xo,des de às 10 ho ras da no i te, de on tem, até o mo men to em que es cre vo(10 ¼ da ma nhã), ati ram de sor de na da men te numa fu zi la ria con tí nua,frou xa às ve zes, re cru des cen do re pen ti na men te ou tras. Não apon tammais, ati ram ao aca so, para to das as di re ções, de ses pe ra da men te. É umvul cão numa erup ção de ba las aque le tem plo mal di to.

O es pe tá cu lo de Ca nu dos, pre sa das cha mas que la vram emdi fe ren tes pon tos, é ex tra or di ná rio; a fu ma ra da – eno ve la da e par da cen ta– ale van ta-se e de sen ro la-se e es pa lha-se por so bre os te lha dos, en co -brin do a ma i or par te das ca sas e mal de i xan do per ce ber as ban de i ro lasver me lhas – pon tos de ter mi nan tes da li nha do cer co –, ale van ta das ago raem tor no do úl ti mo ba lu ar te dos re bel des. E os ti ros par tem des te,cons tan tes, mul ti pli ca dos, inú me ros, num des per di çar de mu ni çõesca paz de exa u rir o ar se nal mais rico.

84 Eu cli des da Cunha

19 Não cons ta o lo cal de ex pe di ção des ta car ta, no jor nal de 13 de ou tu bro de 1897.N. do R.

Page 163: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

São ba las que si bi lam em to dos os tons des de o res so ar ás pe roe rou que nho das Com bla ins à zo a da lú gu bre dos pro jé te is gros se i rosdos ba ca mar tes, ao as so vio su a ve qua se de li ca dís si mo da Mann li cher,ver gas tan do os ares.

Os ca nhões cu i da do sa men te con te i ra dos para não atin gi remaos si ti an tes pró xi mos, ati ram gra na das e shrap nels cer te i ros no an tro for -mi dá vel; e a fu zi la ria não ces sa, e cada bala que ali cai pa re ce es ti mu lar ain sâ nia dos fa ná ti cos.

Tem a mais só li da, a mais ro bus ta têm pe ra essa gen te in do -má vel! Os pri si o ne i ros fe i tos re ve lam-na de uma ma ne i ra ex pres si va.

Ain da não con se gui lo bri gar a mais bre ve som bra de de sâ ni -mo em seus ros tos, onde se de se nham pri va ções de toda a sor te, a mi sé -ria mais fun da; não tre mem, não se aco bar dam e não ne gam as cren çasman ti das pelo evan ge li za dor fa tal e si nis tro que os ar ras tou a uma des -gra ça in cal cu lá vel.

Mu lhe res apri si o na das na oca sião em que os ma ri dos ca íammor tos na re fre ga e a pro le es pa vo ri da de sa pa re cia na fuga, aqui têm che ga -do – numa tran si ção brus ca do lar mais ou me nos fe liz para uma pra ça deguer ra, per den do tudo numa hora – e não lhes di vi so no olhar o mais levees pan to e em al gu mas mes mo o ros to bron ze a do de li nhas fir mes é ilu mi -na do por um olhar de al ti vez es tra nha e qua se ame a ça do ra. Uma de las aca -ba de ser con du zi da à pre sen ça do ge ne ral. Esta tu ra pe que na, ros to tri gue i -ro, ca be los em de sa li nho, lá bi os fi nos e bran cos, ru ga dos aos can tos por um riso do lo ro so, olhos ves gos, cin ti lan tes; traz ao pe i to, pos ta na aber tu ra daca mi sa, a mão di re i ta, fe ri da por um gol pe de sa bre.

– Onde está teu ma ri do?– No Céu.– Que que res di zer com isto?– Meu ma ri do mor reu.E o olhar cor reu rá pi do e ful gu ran te so bre os cir cuns tan tes

sem se fi tar em nin guém.O che fe da co mis são de en ge nha ria jul gou con ve ni en te fa -

zer-lhe al gu mas per gun tas acer ca do nú me ro de ha bi tan tes e con di çõesda vida, em Ca nu dos.

– Há mu i ta gen te aí, em Ca nu dos?

Ca nu dos e Ou tros Temas 85

Page 164: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

– E eu sei? Eu não vivo na ve gan do na casa dos ou tros. Está commu i tos dias que nin guém sai por via das pe ças. E eu sei con tar? Só con toaté qua ren ta e rola o tem po pra con tar a gen te de Belo Mon te...

– O Con se lhe i ro tem re ce bi do al gum au xí lio de fora, mu ni -ções, ar mas?...

– E eu sei? Mas po rém em Belo Mon te não man ca∗ arma nemgen te pra bri gar.

– Onde es ta va seu ma ri do quan do foi mor to?Esta per gun ta foi fe i ta por mim e em má hora a fiz. Ful mi -

nou-me com o olhar.– E eu sei? Então que rem sa ber de tudo, do mi ú do e do gran de.

Que ex tre mos!...E uma iro nia for mi dá vel, re fle ti da nos lá bi os se cos que ain da

mais se ru ga ram num sor ri so in de fi ní vel, su bli nhou esta fra se al ti va,in ci si va, do mi na do ra como uma re pre en são.

– Onde está Vi lan o va?– Aban cou para o Caipã.– E Pa jeú? – É de hoje que ele foi pro Céu.– Tem mor ri do mu i ta gen te aí?– E eu sei?Este e eu sei? é o iní cio obri ga do das res pos tas de to dos; sur ge

es pon ta ne a men te, in fa li vel men te, numa to a da mo nó to na, en ci man do to -dos os pe río dos, cor tan do per sis ten te men te to das as fra ses.

– Fu gi ram mu i tos ja gun ços hoje, no com ba te?– E eu sei? Meu ma ri do foi mor to por um lote de sol da dos

quan do saía; o mes mo tiro que brou o bra ço de meu fi lho de colo...Fi quei es ta ta la da, não vi nada... este san gue aqui na mi nha man ga é demeu fi lho, o que eu que ria era fi car lá tam bém, mor ta...

E as sim vão tor cen do e evi tan do a to das as per gun tas, fu gin dovi to ri o sa men te ao in ter ro ga tó rio mais ha bil men te fe i to. E que as in ter ro -

86 Eu cli des da Cunha

* Man car – fal tar (man quer) – É sin gu lar este ga li cis mo no ser tão. N. do A.

Page 165: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

ga ti vas as se di em-nos de ma is, in fle xi vel men te, quan do não é mais pos sí velter gi ver sar lá sur ge o in fa lí vel – e eu sei? tra du ção bi zar ra de to das as ne ga -ti vas, eu fe mis mo in te res san te subs ti tu in do o não cla ro, po si ti vo.

∗ ∗ ∗São cin co ho ras da tar de. Os ja gun ços con ti nu am ina mol gá ve is,

na re sis tên cia. Ti ve mos on tem cer ca de cin qüen ta ba i xas e as de hoje nãose rão tal vez me no res. Fa le ceu he ro i ca men te, quan do to ma va po si çãoper to das igre jas, o Ca pi tão Cor de i ro, do Ba ta lhão Pa ra en se, na mes maoca sião qua se em que era fe ri do o Co ro nel So te ro de Me ne ses, co man -dan te do mes mo Ba ta lhão. Aca ba de ser fe ri do por um tiro de ba ca mar teo Ma jor José Pe dro, do Ba ta lhão Pa u lis ta, no bra ço es quer do, no pe i to ena ca be ça, sem gra vi da de. O sar gen to do 5º de Arti lha ria, Fran cis co deMelo – o mes mo que há me nos de um mês, num belo lan ce de bra vu ra,foi só à igre ja nova lan çar uma bom ba de di na mi te –, aca ba tam bém deser fe ri do. E os es tra gos vão-se as sim acu mu lan do no fi nal mes mo daluta, e pode-se ava li ar o que foi ela no prin cí pio quan do o ini mi go sere ves tia da for ça mo ral da vi tó ria.

Onze ho ras da no i te. A par tir das 6 ho ras da tar de re cru des ceua fu zi la ria que ain da per du ra e, cer to, con ti nu a rá por toda a no i te. Elafaz-se numa in ter mi tên cia su ces si va de ti ros nu me ro sos, mul ti pli ca doscomo uma ex plo são e pe río dos mais cal mos de fogo len to, como re ti -cên ci as pas sa ge i ras no tu mul to ru i do so do ti ro te io.

Olho nes te ins tan te, ca u te lo sa men te, por uma fres ta da trin -che i ra para a igre ja...

É uma cra te ra ful gu ran te. Assom bra...Não é pos sí vel que a mu ni ção de guer ra da que la gen te seja só

de vi da à de i xa da pe las ex pe di ções an te ri o res. A nos sa es go ta-se to dos os dias; to dos os dias en tram com bo i os car re ga dos e, no en tan to, já nosfal ta, às ve zes.

Como ex pli car essa pro di ga li da de enor me dos ja gun ços?Não nos ilu da mos. Há em toda esta luta uma fe i ção mis te ri o sa

que deve ser des ven da da.Meia-no i te. Mal pos so, à luz mal en co ber ta de um fós fo ro,

ob ser var a tem pe ra tu ra e a pres são no meu ane rói de, a fu zi la ria con ti nua te naz de lado a lado.

Ca nu dos e Ou tros Temas 87

Page 166: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Já se não dis tin guem os ti ros – ouve-se um res so ar imen solem bran do o de mu i tas re pre sas brus ca men te aber tas.

Os ja gun ços lu tam ago ra pela vida, no sen ti do mais es tri to dafra se. La vra en tre eles a sede e as ca cim bas ali es tão, a pou cos me trosape nas, em nos so po der.

Mas não va ci lam, não re cu am, não se en tre gam, e ati ram, ati -ram sem pre den tro de um cír cu lo de fogo for ma do pe las ar mas vi va -men te dis pa ra das de seus ba ta lhões.

A igre ja si nis tra avul ta nas tre vas, do mi na do ra, for mi dá vel.Re flui so bre ela o re lam pa gue ar do ti ro te io e a essa cla ri da de in dis tin ta e ru bra cre io dis tin guir, des li zan do no alto dos mu ros es tru í dos, en grim -po na dos al guns, nos res tos des man te la dos das tor res der ro ca das, osnos sos ru des pa trí ci os trans vi a dos.

CANUDOS – 27 DE SETEMBRO

7 e ½ ho ras da ma nhã – A fu zi la ria ces sou ape nas às 5 ho ras.Du rou a no i te in te i ra. Acos sa do pela sede o ini mi go aban do nou porde zo i to ve zes os re du tos, ata can do as li nhas, na di re ção das ca cim basaber tas no le i to do rio. Fo ram sem pre ru de men te re pe li dos em ba ten dode en con tro a seis ba ta lhões, o 34º, 38º, 25º, 37º de Infan ta ria e oscor pos po li ci a is dos Esta dos. Fo ram de zo i to com ba tes vi o len tos e rá -pi dos, al guns du ran te ape nas dez mi nu tos e ex tin guin do-se len ta men te,di fe ren ci a dos em ti ros des ta ca dos, ter mi nan do brus ca men te ou tros –des cen do sem tran si ção o si lên cio da no i te es tre la da so bre os úl ti mosecos dos es tam pi dos.

E o ad ver sá rio atre vi do con se guiu em par te re a li zar o in -ten to que o le va ra ao ata que: al guns mais au da ci o sos des ce ram aole i to do rio, de sa fi an do a mor te, ca in do pe las bar ran cas, ba ti dos pe -las trin che i ras, al ve ja dos à que i ma-rou pa qua se – rá pi dos e áge is eter rí ve is –, en chen do as va si lhas e vol tan do pron ta men te, gal gan dove loz men te a bar ran ca, per den do-se en tre os es com bros da igre janova...

88 Eu cli des da Cunha

Page 167: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Pre sen ci ei de lon ge as evo lu ções de um des ses se res fan -tás ti cos, agi tan do-se, meio afo ga do na no i te, in dis tin to como umdu en de. Alguns não vol ta ram – lá es tão, de bru ços, à bor da das ca -cim bas...

Com a tem pe ra tu ra má xi ma de 33º à som bra des tes dias,deve ser cru de lís si mo o mar tí rio des sa gen te in do má vel e cus ta acom pre en der a ener gia so be ra na que os ale van ta por tal modo aci madas im po si ções mais ru des da ma té ria. E lu tam por um lí qui do al ta -men te sus pe i to e en ve ne na do qua se – por uma água con ta mi na da pe -los de tri tos or gâ ni cos de ca dá ve res que ja ze ram lar go tem po so bre ole i to do rio; uma água pe sa da e sa lo bra que não ex tin gue a sede e emcujo sa bor re pug nan te se pres sen te a ação tó xi ca das pto ma í nas efos fa tos dos or ga nis mos de com pos tos.

∗ ∗ ∗

O Ge ne ral Artur Oscar, res ta be le ci do ago ra de li ge i ra en fer -mi da de, aca ba de mos trar-me al guns ti pos de ba las ca í das nos ti ro te i osda no i te. São de aço, se me lhan tes às das Mann li cher, al gu mas, ou trascom ple ta men te des co nhe ci das. São ine ga vel men te pro jé te is de ar masmo der nas que não pos su í mos.

Como as pos su em os ja gun ços?Estou aqui há quin ze dias e há quin ze dias que, qua se sem

in ter rup ção, os fa ná ti cos re pli cam vi go ro sa men te, em ti ro te i os cer -ra dos, a qual quer ata que; re pi lo de todo a idéia de que se uti li zemain da das mu ni ções to ma das às ex pe di ções an te ri o res. Sou le va do aacre di tar que tem ra í zes mais fun das esta con fla gra ção la men tá veldos ser tões.

∗ ∗ ∗

Ca nu dos já pa ten te ia o as pec to en tris te ce dor de uma ci da -de em ru í nas: sur gem res tos de cu me e i ras car bo ni za das, des pon tamtra ves e es te i os fu me gan tes ain da, in cli nam-se de sa pru ma das, am pa -ra das, umas em ou tras pa re des es bu ra ca das e o acer vo in co e ren te das co ber tu ras de ar gi la, de sa ba das, sur ge por toda a par te, de so la dor. Há dois dias que la vra em seu seio o in cên dio – em fogo len to, lem bran -do a ati vi da de la ten te dos for nos ca ta lães, fogo sem cha mas, pro gre -

Ca nu dos e Ou tros Temas 89

Page 168: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

din do atra vés dos obs tá cu los de ri va dos da ar gi la, que é o ma te ri alpre do mi nan te das ca sas, mas la vran do sem pre – sur da men te – de sa -pi e da da men te, lan çan do so bre o ar ra i al mal di to a fu ma ra da in ten sacomo uma mor ta lha enor me.

As nos sas for ças mar cham através das ruas tor tu o sas e es tre i -tas da po vo a ção, qua se toda con quis ta da casa por casa, e vão im pe lin do,para a igre ja nova e san tuá rio a po pu la ção in te i ra.

∗ ∗ ∗9 ho ras da no i te – Com re la ti va co mo di da de es cre vo na mesa de

far má cia ane xa ao hos pi tal mi li tar. Em fren te ale van tam-se bar ra cões re -ple tos de fe ri dos e do en tes e che i os de la men tos mal-aba fa dos, de do rescru ci an tes. So bre a co ber tu ra de cou ro do ca se bre em que me aco lhopas sam, si bi lan do, as ba las.

Já me vou afe i ço an do a esta or ques tra es tra nha. Não há umúni co pon to do acam pa men to em que ela não se faça ou vir; um úni copon to em que não ca i am os pro jé te is cons tan te men te ar re mes sa dospelo ini mi go. No pró prio hos pi tal mi li tar eles têm ido pro cu rar os fe ri -dos e do en tes, cor tan do ra pi da men te a vida de mo ri bun dos. O dig noDr. Cu rio, di re tor da que le hos pi tal, des per tou hoje pela ma dru ga da sen -tin do vi o len ta pan ca da na ca be ça.

Uma bala atra ves sa ra a tela da bar ra ca, per pas san do pelafron te do dis tin to mé di co. De via de mo rar-me al gum tem po em re -fe ren da es pe ci al ao Dr. Cu rio, um ho mem que tem re ve la do de di ca -ção exem plar pelo de ver e que liga às fun ções de mé di co os atri bu -tos no tá ve is de uma alma pro fun da men te re li gi o sa. Ja ma is es que ce -rei a ora ção fú ne bre so le ne men te en to a da por ele no mo men to emque ex pi ra va, numa ago nia tris tís si ma, o al fe res do 24º Si mões Pon -tes, mor tal men te fe ri do no dia 24. Des ti no, po rém, a ou tras pá gi nas, o es tu do psi co ló gi co da cam pa nha – in com pa tí vel com a ra pi dezdes tas no tas. Além dis to co nhe ço que não po de rei pro lon gar-memais hoje. Aca ba de re cru des cer o ti ro te io e o as so bio das ba las res -soa so bre to dos nós lem bran do uma ven ta nia fu ri o sa.

Não te re mos ou tra no i te.

90 Eu cli des da Cunha

Page 169: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

CANUDOS – 28 DE SETEMBRO 20

Du ran te a no i te toda, com pe que nos in ter va los, con ti nu ou depar te a par te, in ten sa, a fu zi la ria. Cre io que os ja gun ços con se gui ram ago -ra, gra ças a su ces si vos, ines pe ra dos e im pe tu o sos as sal tos às li nhas epro te gi dos pela no i te, ti rar al guns bal des de água das ca cim bas do rio.Nada de novo, en tre tan to, na nos sa si tu a ção ge ral.

Per sis te a mo no to nia es tra nha do cer co. No en tan to há trêsdias acre di tei que os nos sos an ta go nis tas não po de ri am re sis tir três ho -ras, es ma ga dos numa brus ca aper tu ra do cer co. Mas lá es tão, in do má ve is,num cír cu lo es tre i tís si mo, vi sa dos cons tan te men te por mil e tan tas ca ra -bi nas pres tes a dis pa rar – e não ce dem.

São in com pre en sí ve is qua se tais lan ces de he ro ís mo.Para não per der tem po con ti nuo, com o Te nen te-Co ro nel Si que -

i ra de Me ne ses – um tipo in te res san tís si mo e no tá vel, ao qual mais lon ga -men te me re fe ri rei – a ob ser var sis te ma ti ca men te, hora por hora, a tem pe -ra tu ra, a pres são e a al ti tu de em Ca nu dos. Fa re mos com todo o cu i da do es -tas ob ser va ções que são as pri me i ras re a li za das nes tas re giões e das qua is se de ri va rá a de fi ni ção mais ou me nos apro xi ma da do cli ma des tes ser tões.

∗ ∗ ∗Ao meio-dia em pon to, por de ter mi na ção do co man -

do-em-che fe, cada ba te ria sa u dou a data fe liz de hoje com uma sal va de21 ti ros de bala. E to das as ba las – uma a uma –, com uma pre ci são fa ci -li ta da pela dis tân cia re du zi da, ca í ram na área es tre i ta em que fer vi lhamos ja gun ços, ex plo din do e in cen di an do ou des pe da çan do as frá ge is edi fi -ca ções; mas so bre a pres são do bom bar de io for te eles ati ra vam vi go ro -sa men te so bre as li nhas.

Às 5 ½ da tar de, en tre tan to, al vo ro tou-se o acam pa men totodo: cor re ra, cé le re, a no tí cia de que se ha vi am ren di do os ja gun ços.Alguns sol da dos ha vi am vis to agi tar-se en tre as ca sas, à re ta guar da do

Ca nu dos e Ou tros Temas 91

20 No jor nal de 21 de ou tu bro de 1897 não fi gu ra o lo cal de ex pe di ção nem o diades ta re por ta gem. Ape nas, se tem bro de 1897. N. do R.

Page 170: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

san tuá rio, como um ape lo de ses pe ra do à sal va ção, uma ban de i rabran ca.

Além dis to dera-se um fato ab so lu ta men te novo – ces sa -ram com ple ta men te os ti ros dos ja gun ços . A zona re du zi da em que seaco i tam pa re cia aban do na da. Uma cu ri o si da de ir re pri mí vel fez comque se ale van tas sem nos mais pe ri go sos pon tos gru pos de ob ser va -do res.

E nem um leve si nal de vida, adi an te; na igre ja nova nem umleve ru í do; um si lên cio tu mu lar pa i ra va so le ne men te so bre a ru ina ria depe dra do tem plo gi gan tes co.

Em fren te à sede da co mis são de en ge nha ria – pon to clás si codas me lho res pa les tras do acam pa men to –, o gru po ha bi tu al de que fazpar te o ge ne ral-em-che fe, co men ta va-se vi va men te o acon te ci men to,pre es ta be le cen do-se so lu ções a di fe ren tes hi pó te ses pro vá ve is.

Ter-se-ia en tre gue o Con se lhe i ro?Fora mor to por al gum es ti lha ço de gra na da?Sa cri fi ca do pe los seus pró pri os se qua zes de ses pe ra dos ante os

in su ces sos su ces si vos dos úl ti mos dias?E que fa zer se o trá gi co evan ge li za dor se ren des se con fi an do

na ge ne ro si da de do ven ce dor?Às 6 ho ras uma ban da do 12º Ba ta lhão co me çou a to car, a

vin te pas sos do nos so gru po. Até às 7 ho ras as no tas vi bran tes e mar ci a isdas mar chas do mi na ram o si lên cio. E quan do os mú si cos se re ti ra rameste úl ti mo re i nou no va men te, inex pli cá vel.

A que atri buí-lo?Re al men te al gu ma co i sa de anor mal pas sa va-se em fren te,

no ar ra i al; e os co ra ções co me ça vam já a ba ter fe bril men te ante aqua se evi dên cia da vi tó ria lon ga men te es pe ra da, quan do uma ex plo -são for mi dá vel fe i ta pe los dis pa ros si mul tâ ne os das ar mas des pe da -çou o si lên cio e a no i te e um tur bi lhão de ba las caiu ru gin do so bre anos sa gen te...

Incom pre en sí vel e bár ba ro ini mi go!E a fu zi la ria, como a de on tem, pa re ce que per sis ti rá por toda

a no i te. A ba ta lha crô ni ca que aqui se tra va há três me ses teve ape nasuma tré gua de três ho ras.

92 Eu cli des da Cunha

Page 171: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

CANUDOS – 29 DE SETEMBRO 21

Du rou a no i te toda qua se a fu zi la ria, com in ter va los ma i o resque a da no i te an te ri or, po rém.

Por doze ve zes os ja gun ços in ves ti ram con tra as li nhas, sen dore pe li dos.

Con se gui ram, en tre tan to, ain da, ad qui rir al guns li tros d’água.Às 7 ½, em com pa nhia dos Ge ne ra is Artur Oscar, Car los

Eu gê nio, Te nen te-Co ro nel Me ne ses e ou tros ofi ci a is, se gui para umaex cur são atra en tís si ma – um pas se io den tro de Ca nu dos!

Se gui mos a prin cí pio pelo alto das co li nas que se des do brampara o flan co di re i to da li nha e con tor nan do-as de po is numa in fle xãopara a es quer da des ce mos por uma san ga aper ta da e ás pe ra em que aspla cas du rís si mas e ne gras de tal co xis to cin ti la vam ao sol; e en con tra -mos as pri me i ras ca sas do ar ra i al, ca sas que ain da dois dias an tes es ta -vam adi an te em po der dos nos sos ru des e va len tes ad ver sá ri os. A re vol -ta dos tras tes pa u pér ri mos e tos cos, que bra dos ou in cen di a dos, in di ca vatoda a vi o lên cia das re fre gas an te ri o res. À por ta de al gu mas fu me ga vamain da, como pi ras si nis tras, ca dá ve res car bo ni za dos de ja gun ços. E em bre -nha mo-nos in te i ra men te na ta pe ra co los sal.

Tive uma pri me i ra de cep ção: não con se gui des co brir a pro pa la da dis po si ção em xa drez, das ca sas, à qual eu mes mo me re fe ri an te ri or men te.Nada que re cor de o mais bre ve, o mais sim ples pla no na su ces são dehu mí li mos e de sa je i ta dos ca se bres. Au sên cia qua se com ple ta de ruas, em gran de par te subs ti tu í das por um dé da lo de ses pe ra dor de be cos es tre i -tís si mos, mal per mi tin do, mu i tos, a pas sa gem de um ho mem. Às ve zescin co ou seis ca sas ali nham-se como que numa ten ta ti va de ar ru a men to,mas logo adi an te em ân gu lo reto com a di re ção da que las, ali nham-se ou -tras, for man do mar te lo e dan do ao con jun to uma fe i ção in de fi ní vel,cons ti tu in do um lar go im per cep tí vel e im per fe i to para o qual dão si mul ta -ne a men te os quin ta is, a fren te das ca sas que se en re dam de sor de na da men te. As mais das ve zes, po rém, nem isto se dá: as ca sas acu mu lam-se em ab so lu -ta de sor dem, com ple ta men te iso la das, al gu mas en tre qua tro vi e las es tre i tas,uni das ou tras, com as tes ta das vol ta das para to dos os pon tos, cu me e i ras

Ca nu dos e Ou tros Temas 93

21 Tam bém nes ta car ta não há in di ca ção da lo ca li da de de onde foi en vi a da, masso men te a data. N. do R.

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ori en ta das em to dos os sen ti dos, num ba ra lha men to in des cri tí vel, como setudo aqui lo fos se cons tru í do ra pi da men te, ver ti gi no sa men te, fe bril men te –numa no i te – por uma mul ti dão de lou cos!

E esse acer vo in co e ren te de ca se bres es cu ros e pe que nos, ten doqua se to dos uma só por ta e mu i tos nem uma só ja ne la, des do bra-se pe laslom ba das, cai para o fun do das san gas, re ves te uma ex ten são enor me.

Para se ir de uma casa a ou tra, afas ta da ape nas meia dú zia deme tros, tem-se de fa zer um ro de io di la ta do, e, em cer tos pon tos, paradi ri gir mo-nos a de ter mi na da par te do po vo a do, te mos que aban do ná-lo, con tor nan do-o por fora.

Afi nal apa re ce uma das ra ras ruas – a Rua do Cam po Ale gre.Di vi de o ar ra i al em duas par tes qua se igua is, se guin do a me ri di a na apro -xi ma da men te. Pa ten te ia uma no vi da de, al gu mas ca sas de te lhas. Se gue,re ti lí nea, pelo alto da ex ten sa on du la ção do solo, e era, cer to, uma daspa ra gens pre di le tas da me lhor gen te da ter ra.

Nos quin ta is aban do na dos nem o mais tê nue tra ço de umcan te i ro, um ar re me do qual quer de jar dim; em com pen sa ção en che-otoda a ve lha ria de tras tes in ser ví ve is, das ca sas; não ti nham tal vez ou trafun ção. Nem uma ár vo re, nem um pé de flor.

O in te ri or das ca sas as sus ta...Com pre en de-se que haja po vos vi ven do ain da, fe li zes e ru des,

nas an frac tu o si da des fun das das ro chas; que o ca ra í ba, fe ro cís si mo e aven -tu re i ro, se aga sa lhe bem nas tu ba nas de pa re des fe i tas de se bes en tre la ça dasde tre pa de i ras agres tes e te tos de fo lhas de pal me i ras ou os ca u cá si os nassuas bur kas, co ber tas de cou ro – mas não se com pre en de a vida den trodes sas fur nas es cu ras e sem ar, ten do como úni ca aber tu ra, às ve zes, apor ta es tre i ta da en tra da, e co ber tas por um teto ma ci ço e im pe ne trá velde ar gi la so bre fo lhas de icó!

Qu an do o olhar do ob ser va dor se aco mo da afi nal à pe num -bra que re i na no in te ri or per ce be uma mo bí lia que é a de to das as ca sasqua se: um ban co gran de e gros se i ro (uma tá bua so bre qua tro pés nãotor ne a dos); dois ou três ban qui nhos; re des de cruá ; dois ou três baús dece dro de três pal mos so bre dois. É toda a mo bí lia. Não há ca mas; nãohá me sas, de um modo ge ral. Pen du ra da à pa re de dis tin gue-se a bor ra chades ti na da ao trans por te da água. É um tras te pre ci o so nes tas ári das re -giões – e que, ten do, além dis to, a pro pri e da de de de i xar que se ope re li -ge i ra tran su da ção, fa ci li ta, por uma eva po ra ção con tí nua, o res fri a men to

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do lí qui do. A um can to um in fa lí vel par de ca çuás (ja cás) de cipó e al guns aiós, es pé cie de bol sa para caça, fe i ta de te ci do de ma lha de cruá. Os aióssão ago ra em pre ga dos pe los ja gun ços para o trans por te das mu ni ções deguer ra. Cada um pode con du zir até oi to cen tos car tu chos.

Atra ves sa da a Rua do Cam po Ale gre gui ou-nos a mar chaCân di do Ma ri a no, co man dan te da gen te do Ama zo nas – mar cha en tretrin che i ras e es com bros.

O pas se io tor nou-se pe ri go sa men te atra en te, com os ja gun ços a dois pas sos ape nas, nas ca sas con tí guas, pron tos a abri rem nas pa re desfrá ge is uma se te i ra à pas sa gem dos ca nos tru cu len tos. Di an te das trin -che i ras, so bre tu do, era ine vi tá vel o pas so fran ca men te ace le ra do, por que an dar de pres sa sem cor rer em tal si tu a ção já é he ro ís mo. Ao pas sar poruma de las cha mou-me uma voz co nhe ci da e re co nhe ci o Ca pi tão Osó -rio. A pe ri go sa po si ção na que le pon to es ta va sen do guar da da pela ala di re i ta do Ba ta lhão de São Pa u lo, que tem sido ad mi rá vel de cor re çãoem toda esta cam pa nha.

Afi nal, de vol ta, atin gi mos as Ca sas Ver me lhas, su búr bio mi -nús cu lo de Ca nu dos, e de i xa mos, de man dan do o acam pa men to, aque lapo vo a ção es tra nha.

CANUDOS – 1º DE OUTUBRO

Não há ma nhãs que se com pa rem às de Ca nu dos; nem as ma -nhãs sul-mi ne i ras, nem as ma nhãs dou ra das do pla nal to cen tral de SãoPa u lo se equi pa ram às que aqui se ex pan dem num fir ma men to pu rís si -mo, com ir ra di a ções fan tás ti cas de apo te o se. Dou ram-se pri me i ro ascris tas al tas de Co co ro bó, Poço de Cima e Ca na bra va e a onda lu mi no sa do dia sul ca-lhes, len ta men te as cen den do, os flan cos abrup tos e ás pe rosse me lhan do uma que i ma da lon gín qua, nas ser ras. A orla ilu mi na da am -plia-se, va ga ro sa men te, des cen do pe los con tra for tes e gar gan tas dasmon ta nhas fim bra das de cen te lhas... De po is, a pou co e pou co, um raiode sol es ca pa-se, tan gen ci an do as que bra das mais ba i xas, e su ce dem-sera pi da men te ou tros, e vin gan do logo após a bar re i ra das mon ta nhas odia des do bra-se des lum bran te so bre a pla ní cie on du la da, ilu mi nan do-se

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re pen ti na men te to das as ver ten tes das ser ras do Cam ba io, Caipã eCa lum bi, até en tão imer sas na pe num bra.

E há como que uma har mo nia es tra nha nos ares de uma re -gião da qual fu gi ram, de há mu i to, es pa vo ri das, to das as aves. Uma har -mo nia im per cep tí vel qua se e pro fun da, fe i ta pela ex pan são ín ti ma dater ra ante o be i jo ar den tís si mo da luz, re cor dan do o fato mi to ló gi co daes tá tua de Mne mon, de Te bas.

Hoje, po rém – co in ci dên cia bi zar ra! –, ob ser vei pela pri me i ravez uma ma nhã ene vo a da e úmi da, per sis ten te men te va ra da por uma ga -roa im per ti nen te e fina; uma ma nhã de in ver no pa u lis ta. E quan do ospri me i ros ti ros da ar ti lha ria res so a ram, dan do co me ço a mais um en con -tro cru de lís si mo com os nos sos sel va gens ad ver sá ri os, pa re ce-me quemais lú gu bre se tor nou a ma nhã, agra va da pela fu ma ra da ne gra e es pes -sa do bom bar de io.

∗ ∗ ∗Este foi vi o len to, de sa pi e da do, for mi dá vel; as sis ti-o da sede

da Co mis são de Enge nha ria.Uma a uma, com uma pre ci são ma te má ti ca, as gra na das es tou -

ra vam den tro da área re du zi da do ini mi go, ba ten do-a em to dos os pon -tos, casa por casa; ri co che tan do em cer tos lu ga res e abrin do um cír cu loam plís si mo de es tra gos, sus pen den do além, brus ca men te, numa ex plo -são enor me, a po e i ra in ten sa dos es com bros, ale van tan do mais lon ge acoma ful va e des gre nha da dos in cên di os.

Du ran te qua ren ta e oito mi nu tos os ca nhões da Sete de Se tem -bro, do cen tro e da di re i ta da li nha ful mi na ram, re vi ra ram, re vol ve ram um tre cho do po vo a do onde re pug na va à ra zão ad mi tir a exis tên cia de ho -mens, so bre-hu ma na men te bra vos em bo ra. E du ran te todo esse tem po,sob uma ava lan che pe sa dís si ma de fer ro, nem uma voz se al te ou da zonaful mi na da, imer sa toda numa qui e tu de pas mo sa, in con cep tí vel qua se; nem um vul to cor ren do es ton te a do pe las vi e las es tre i tas e tor tu o sas, nem amais leve agi ta ção pa ten te a vam a exis tên cia de se res, ali den tro.

A ar ti lha ria fez es tra gos in cal cu lá ve is nas pe que nas ca sas, re -ple tas to das. Pe ne tran do pe los te tos e pe las pa re des as gra na das ex plo di amnos quar tos mi nús cu los des pe da çan do ho mens, mu lhe res e cri an ças so -bre os qua is des cia, às ve zes, o pe sa do teto de ar gi la, pe sa da men te,

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como a laje de um tú mu lo, com ple tan do o es tra go. Pa re ce, po rém, queos mal fe ri dos mes mo so fre a vam os bra dos da ago nia e os pró pri os tí mi dos evi ta vam a fuga, tal o si lên cio, tal a qui e tu de so be ra na e es tra nha, quepa i ra vam so bre as ru í nas fu me gan tes, quan do, às 6 horas e 48 mi nu tos,ces sou o bom bar de io.

Foi de ter mi na do o as sal to. Dois ba ta lhões de li nha, o 4º e o29º, atra ves sa ram, de ar mas sus pen sas, ace le ra da men te, a mar che-mar -che, o rio; gal ga ram, rá pi dos, o bar ran co em pi na do da mar gem es quer da e sur gi ram de ba i o ne ta ca la da em fren te da igre ja nova.

Um belo mo vi men to he rói co exe cu ta do num mi nu to.Nes se mo men to pas sou-se um fato ex tra or di ná rio e ines pe ra do

em que pese aos nu me ro sos exem plos de he rói ca sel va ti que za re ve la dapelo ja gun ço.

De to das as ca sas, há pou cos mi nu tos ful mi na das, ir rom pen dode to das as frin chas das pa re des e dos te tos, sa in do de to dos os pon tos,ex plo diu uma fu zi la ria imen sa, re tum ban te, mor tí fe ra e for mi dá vel, dear mas nu me ro sas rá pi da e si mul ta ne a men te dis pa ra das – e so bre osba ta lhões as sal tan tes re flu iu a ré pli ca tre men da de uma sa ra i va da, im pe -ne trá vel, de ba las!

Isto logo após o bom bar de io, logo de po is da agi ta ção deme tra lha ter rí vel e de mo li do ra que os tru ci dou, des pe da çou e mu ti lou –mas não des tru iu a for ma tu ra para o com ba te...

Se ja mos jus tos – há al gu ma co i sa de gran de e so le ne nes saco ra gem es tói ca e in co er cí vel, no he ro ís mo so be ra no e for te dos nos sos ru des pa trí ci os trans vi a dos, e cada vez mais acre di to que a mais belavi tó ria, a con quis ta real con sis ti rá no in cor po rá-los, ama nhã, em bre ve,de fi ni ti va men te, à nos sa exis tên cia po lí ti ca.

Vi ca í rem as pri me i ras ví ti mas so bre o acer vo in for me dasru í nas da igre ja, so bre os gran des blo cos de pe dra da fa cha da dis jun gi dae des man te la da pe las ba las. Fo ram mu i tas; tan tas que a prin cí pio acre di -tei que, obe di en tes a um pre ce i to ru di men tar de tá ti ca, mu i tos sol da doshou ves sem ca í do de bru ços para ati rar com mais se gu ran ça e me lhor.

O com ba te pros se guiu vi va men te. Res so a ram as cor ne tasre pro du zin do o to que par ti do da Sete de Se tem bro, onde se acha va oGe ne ral Artur Oscar.

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Ouvi ni ti da men te a or dem para que avan ças se o 5º de Po lí ciada Ba hia.

O 5º avan çou. Não foi a in ves ti da mi li tar, o avan çar fran co,numa lar ga ex po si ção do pe i to aos ti ros, do 4º e do 29º; mas um comoque ser pe ar rá pi do e he rói co, um cin ti lar vi vís si mo de ba i o ne tas on du -lan tes, tra çan do uma si nu o sa ful gu ran te de lam pe jos des de o le i to do rio até às ru í nas da igre ja.

O mes mo avan çar dos ja gun ços – cé le re, ser pe an te, es ca pan doà tra je tó ria re ti lí nea – num co le ar in des cri tí vel e fan tás ti co qua se, comose aque les du zen tos ho mens fos sem as vér te bras mo bi lís si mas de umaser pen te enor me in ves tin do num bote atre vi do con tra o po vo a do e en -vol ven do, numa cons tri ção vi go ro sa, com a ca u da de aço fle xí vel e for -te, o ba lu ar te sa gra do do ini mi go.

O 5º de Po lí cia é todo cons ti tu í do por ser ta ne jos do in te ri orda Ba hia e de ou tros Es ta dos, e o seu de sas som bro no com ba te e a ca -pa ci da de sin gu lar de adap tar-se às mais du ras con di ções de uma cam pa -nha pa ten te i am ad mi ra vel men te o va lor e a têm pe ra re sis ten te dos nos -sos ru des pa trí ci os dos ser tões.

∗ ∗ ∗Mo men tos an tes des sa in ves ti da, ca í ra mor tal men te fe ri do o

Ma jor Qu e i rós, co man dan te do 29º. Vi-o, de po is, no hos pi tal de san gue.Emol du ra do o ros to ar ro xe a do pela bar ba bran ca mal tra ta da, o as pec todo dig no che fe co mo via pro fun da men te. Um pon to ne gro, de san gueco a gu la do, na raiz do na riz, in di ca va a en tra da da bala. Um pon to ne gro,pe que nís si mo, im per cep tí vel a dez pas sos de dis tân cia; em com pen sa ção,po rém, a fron te no bre e am pla, sul ca da di a go nal men te, mos tra va ocur so do pro jé til den tro do crâ nio.

∗ ∗ ∗Às 8 ho ras, era ge ral o com ba te em que se em pe nha vam ou -

tros cor pos, além da 3ª e 6ª bri ga das.Nes sa oca sião uma nova ab so lu ta men te ines pe ra da aba lou a

to dos: mor re ra, atra ves sa do por uma bala, quan do ob ser va va de bi nó cu lo,numa trin che i ra, o mo vi men to da ba ta lha, o Te nen te-Co ro nel Tupi Cal das.

Era um ofi ci al de car re i ra, um mi li tar de raça, um es plên di doge ne ral do fu tu ro.

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Esta tu ra pe que na; ma gro, seco, ner vo so, fi si ca men te frá gil; olharsem ex pres são ani man do-se, po rém, re pen ti na men te, nas dis cus sões emque mal so fre a va as ex pan sões de um tem pe ra men to apa i xo na do e for te; aum tem po sim ples e ávi do de re no me; mo des to, mas ten do, pe re ne, n’alma, o so nho in de fi ni do, a ide a li za ção su pre ma e ab sor ven te da gló ria.

Ulti ma men te atra ves sa va o acam pa men to ar ri ma do em com -pri do bor dão, com o an dar ti tu be an te e in cer to dos be ri bé ri cos.

Ro de a va-o a sim pa tia de to dos. Os seus co man da dos di re tos,os sol da dos do 30º, res pe i ta vam-no como a um pai.

No dia 30, à tar de, quan do me di ri gia para o acam pa men to do Ba ta lhão Pa u lis ta, en con trei-o.

Inter pe lou-me de lon ge:– Então, seu dou tor, já re ce beu o tra bu co que lhe man dei? Uma

arma in te res san te; há de fa zer um su ces so enor me em São Pa u lo.Agra de ci-lhe o pre sen te na vés pe ra en vi a do e, de po is de bre ve

tro ca de pa la vras, dis se-lhe:– Sabe que o ge ne ral não con cor da que en tre ama nhã no

com ba te?– Sei, sei, o Artur é mu i to meu ca ma ra da e teme pela mi nha

mo lés tia... Mas não acha que é um con tra-sen so fi car na mi nha bar ra ca,ago ra, no fim de tudo, eu, que su por to há tan to tem po este in fer no?...Fi car na cama no fim da fes ta, jus ta men te quan do vão ser vir os do ces...Não! fal ta só um dia, vou até o fim.

E fal ta va-lhe só um dia e foi até o fim o bra vo e de di ca doli da dor, uma mag ní fi ca exis tên cia he rói ca atra ves sa da ao rit mo fe bril das car gas guer re i ras, uma vida que foi um po e ma de bra vu ra ten do comopon to fi nal uma bala de Mann li cher.

Cor reu um frê mi to, mis to de pa vor, de es pan to e de có le rape las fi le i ras do 30º. Hou ve um mo men to de va ci la ção e de po is, comoum só ho mem, mudo, as som bra do, ter rí vel, o Ba ta lhão ro lou so bre atrin che i ra, trans pô-la de um sal to, caiu no solo vi o len ta men te ba ti dopela fu zi la ria e en fren tan do a mor te pre ci pi tou-se so bre o ini mi go, amar che-mar che, sem dis pa rar um tiro, im pe tu o sa men te, var ren do-o àba i o ne ta e a co i ce de ar mas!

Ca nu dos e Ou tros Temas 99

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E – fato que teve mu i tas tes te mu nhas – o sol da do ao vol tar des -ta car ga tre men da, fe ri do, mu ti la do ou cha mus ca do pelo in cên dio, co ber topela po e i ra dos es com bros, exa us to e ofe gan te da luta, ves tes des pe da ça dasnos pu gi la tos cor po-a-cor po, in di fe ren te à dor, in di fe ren te à vida que se lhees ca pa va len ta men te pe las ar té ri as ro tas, vi nha cho ran do, mur mu ran do com uma ve ne ra ção es tra nha o nome do de no da do co man dan te.

∗ ∗ ∗Ge ne ra li za do o com ba te às 9 ho ras era di fí cil con je tu rar se -

quer para que lado pro pen dia a vi tó ria. O ini mi go re sis tia, in do má vel,den tro de um cír cu lo de fogo.

Dis sol ve ram-se nes sa oca sião as né vo as da ma nhã e um solcla rís si mo ilu mi nou a ba ta lha.

Obser vei en tão que o in cên dio la vra va a oes te do ar ra i al, pro -gre din do len ta men te para a zona ocu pa da pelo ini mi go.

Às 10 ho ras a vi tó ria pa i rou um mi nu to so bre as nos sas ar -mas, mas de sa pa re ceu de pron to. Fora to ma da a igre ja nova e um ca de te do 7º cra va ra, au da ci o sa men te, no alto da pa re de es tru í da do tem plo, aban de i ra na ci o nal.

As cor ne tas to ca ram a mar cha ba ti da e um viva à Re pú bli caimen so e re tum ban te saiu de mi lha res de pe i tos.

Sur pre en di dos por esta ma ni fes ta ção es tra nha, os pró pri os ja -gun ços ces sa ram, por mo men tos, o ti ro te io.

Na lar ga pra ça das igre jas fer vi lha vam sol da dos, atu mul tu a da -men te, an dan do em to das as di re ções, tro can do sa u da ções en tu siás ti cas.

Era a vi tó ria, por cer to.Eu es ta va a cer ca de 200 me tros ape nas da pra ça, no quar -

tel-ge ne ral do Ge ne ral Bar bo sa. Des ci ra pi da men te a en cos ta e en trei na zona do com ba te. Não gas tei dois mi nu tos na tra ves sia. Ao che gar, po -rém, ouvi, sur pre en di do, so bre a ca be ça, o si bi lar in cô mo do das ba las.

Tudo é in com pre en sí vel nes ta cam pa nha: a ba ta lha con ti nu a vamais ace sa e mor tí fe ra se é pos sí vel.

Abe i rei-me de uma trin che i ra. Esta va ali um ba ta lhão sob o co man do do Ca pi tão Ra i mun do

Mag no da Sil va.

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Nes sa oca sião três es tam pi dos mais for tes que a ex plo são dasgra na das fi ze ram-se ou vir, pró xi mo à la ta da.

Ti nham sido ar re mes sa das três bom bas de di na mi te so bre os ja -gun ços. Sen ti o solo es tre me cer numa vi bra ção rá pi da e for te de ter re mo to.

Ces sa ram os ti ros do ini mi go e três co lu nas de fumo, pre cur -so ras do in cên dio, de ter mi na ram os pon tos fla ge la dos.

Mas es tas não se ti nham ain da dis sol vi do nos ares e a fu zi la riaini mi ga, re a tan do a re fre ga, ba tia ou tra vez, vi o len ta men te, as nos sas li nhas.

Mais vi o len ta, se é pos sí vel, pros se guia a ba ta lha.Vol tei para o meu pos to de ob ser va ção, ca u te lo sa men te, de sen -

fi an do-me pe las ca sas e, ao atin gir o alto da en cos ta, vi pas sar, numa rede, ago ni zan te, o Ca pi tão Agui ar, as sis ten te do Ge ne ral Car los Eu gê nio.

No ex tre mo de um beco es tre i tís si mo, abri ga do por uma casaa pou cos pas sos das trin che i ras, o ma lo gra do ofi ci al con ver sa va com oTe nen te-Co ro nel Dan tas Bar re to e o Ca pi tão Abí lio, as sis ten te do Ge -ne ral Artur Oscar, quan do, ao pas sar, um ba ta lhão que avan ça va, seafas tou dos com pa nhe i ros para ob ser var, da es qui na, a in ves ti da. E aoob ser vá-la, vi go ro sa e im pá vi da, o moço re pu bli ca no, que era um ofi ci al va len te, jo vi al e bom, ti rou o cha péu, agi tan do-o en tu si as ti ca men te, e er -gueu – fe bri ci tan te, – um viva fer vo ro so à Re pú bli ca.

Essa sa u da ção cus tou-lhe a vida; a vida fu giu-lhe do pe i to deen vol ta nas vi bra ções de um bra do he rói co, pre ci sa men te na oca sião em que a sua alma sin ce ra an si a va pela exis tên cia eter na da Re pú bli ca.

Mor reu como sa bem mor rer os imor ta is, aque le dig no, leal ees plên di do com pa nhe i ro...

∗ ∗ ∗Às 10 ho ras e 52 mi nu tos no vos es tam pi dos aba la ram os ares

e no va men te es tre me ceu a ter ra em tor no de um pu nha do de va len testrans vi a dos; no vas bom bas de di na mi te der ra ma ram a de vas ta ção e amor te na zona con vul si o na da em que lu ta vam os úl ti mos ja gun ços. E des -pe da ça dos pe las ex plo sões for tís si mas que dis par ti am em to das as di re -ções os res tos das ca sas des tru í das sob os es com bros fu me gan tes, sobum chu ve i ro de ba las, aper ta dos num cír cu lo de ba i o ne tas e de in cên di os,aque la gen te es tra nha não fra que ou se quer na re sis tên cia.

Ca nu dos e Ou tros Temas 101

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As nos sas ba i xas avul ta vam. As pa di o las e re des pas sa vam,in ces san te men te, inú me ras, como uma pro cis são lu tu o sa e tris te dos que se gui am a ro ma ria trá gi ca para o tú mu lo.

No hos pi tal de san gue um qua dro lan ci nan te, in de fi ní vel. Sem es pa ço mais den tro das am plas bar ra cas, os fe ri dos

acu mu la vam-se, fora, no chão en san güen ta do, sob o cáus ti co abra sa do deum sol in cle men te e ful gu ran te, ator do a dos pe los zum bi dos agou ren tos ein cô mo dos das mos cas, fer vi lhan do em nú me ro in cal cu lá vel.

Qu an do à 1 hora da tar de con tem plei o qua dro emo ci o nan tee ex tra or di ná rio, com pre en di o gê nio som brio e pro di gi o so de Dan te.Por que há uma co i sa que só ele sou be de fi nir e que eu vi na que la san gaes tre i tís si ma, aba fa da e ar den te, mais lú gu bre que o mais lú gu bre vale do Infer no: a blas fê mia or va lha da de lá gri mas, ru gin do nas bo cas si mul ta -ne a men te com os ge mi dos da dor e os so lu ços ex tre mos da mor te.

Fe ri das de toda a sor te, em to dos os lu ga res, do lo ro sas to das,gra vís si mas mu i tas, pro gre din do numa con ti nu i da de per fe i ta dos pon tosape nas per cep tí ve is das Mann li chers, aos cír cu los ma i o res im pres sos pe las Com bla ins, aos rom bos lar gos e pro fun dos aber tos pe las pon tas de chi -fre, pe los pre gos, pe los pro jé te is gros se i ros dos ba ca mar tes e tra bu cos.

Vi bra va no ar um coro si nis tro de im pre ca ções, que i xas ege mi dos. Qu a se to dos con tor ci am-se sob o ín ti mo acú leo de do rescru ci an tes, ar ras ta vam-se ou tros dis pu tan do um res to de som bra dasbar ra cas, que da vam-se mu i tos, as mãos cru za das ou es pal ma das so bre oros to, res guar dan do-o do sol, imó ve is, es tói cos, numa in di fe ren ça mór -bi da pelo so fri men to e pela vida.

No fun do dos bar ra cões, ar ri ma dos so bre os co to ve los ousen ta dos, os an ti gos do en tes, os fe ri dos dos com ba tes an te ri o res, olha -vam as sus ta dos para os no vos com pa nhe i ros de des di ta, só ci os das mes -mas ho ras de de ses pe ran ça e mar tí rio.

A um lado, lan ça dos so bre o chão duro, fran ca men te ba ti dospelo sol, ali nha vam-se três ca dá ve res – o Te nen te-Co ro nel Tupi, oMa jor Qu e i rós e o Alfe res Ra po so.

Fe li zes os que não pre sen ci a ram nun ca um ce ná rio igual... Qu an do eu vol tei, per cor ren do, sob os ar do res da ca ní cu la, o

vale tor tu o so e lon go que leva ao acam pa men to, sen tia um de sa pon -

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ta men to do lo ro so e acre di tei ha ver de i xa do mu i tos ide a is, per di dos,na que la san ga mal di ta, com par tin do o mes mo des ti no dos que ago ni za vamman cha dos de po e i ra e san gue...

∗ ∗ ∗À 1 hora e 45 mi nu tos che guei à sede da co mis são de en ge -

nha ria e ob ser vei o com ba te. A si tu a ção não mu da ra. Den tro de um cu mu lus eno ve la do e par da cen to de fu ma ça agi ta -

va-se ain da, do i da men te, o en con tro. Cin co mi nu tos de po is par tiu do co -man do-em-che fe um to que ge ral de “in fan ta ria avan çar!” so bre as trin che i -ras. A in fan ta ria avan çou sem con se guir tomá-las. À es tra da, os sul cos pro -fun dos aber tos pela di na mi te eram tran ca dos te naz men te pela fu zi la ria.

Impos sí vel for mar-se a mais leve idéia so bre a si tu a ção. Insis -ten tes, im pri min do em todo aque le tu mul to a nota sin gu lar de umamo no to nia es tra nha, re pro du zi am-se em to das as li nhas, de mi nu to emmi nu to, in ces san tes, sem va ri an tes, as no tas es trí du las das cor ne tasde ter mi nan do a car ga.

E as car gas re a li za vam-se, su ces si vas, rá pi das, cons tan tes,vi go ro sas, in fle xí ve is; pe lo tões, ba ta lhões e bri ga das, on das cin ti lan tes de ba i o ne tas fe ri das pelo sol, ro la vam, que bra vam-se ru i do sa men te so breas trin che i ras in trans po ní ve is.

Vi, nes sa oca sião, o Co ro nel Sam pa io atra ves sar len ta men te, a pé, a pra ça, na di re ção do com ba te. Não ti ra ra os ga lões; en ca ra va se re -na men te os pe ri gos den tro do alvo tre men do da pró pria far da, fran ca -men te ex pos to aos ti ros do ini mi go, que vi sa va de pre fe rên cia os che fes. De sa pa re ceu com o mes mo an dar tran qüi lo no seio dos com ba ten tes.

À mar gem es quer da do Vaza-Bar ris uma li nha de ba i o ne tasdes do bra va-se, ex ten sa, da igre ja ve lha à nova. Era a ala di re i ta do Ba ta lhãoPa u lis ta, cor re to sem pre, se ve ra men te su bor di na do ao de ver e pron to aen fren tar os pe ri gos à pri me i ra voz.

A ou tra ala, den tro de Ca nu dos, sus ten ta va bri lhan te men te,no seio da re fre ga, as gran des tra di ções dos sol da dos do Sul.

Às 2 e 20 uma nova vi bra ção do solo che gou até o pon to emque eu es ta va – no vas bom bas de di na mi te eram lan ça das so bre o ini mi go

Ca nu dos e Ou tros Temas 103

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e um novo in cên dio ir rom peu, lis tran do a fu ma ra da com as lín guas ver -me lhas das cha mas.

Mais vi o len to e mor tí fe ro pros se guia o com ba te. E pela en cos ta aci ma, de flu in do da san ga pro fun da, den tro da

qual se es ten dia a li nha avan ça da do 25º Ba ta lhão – lon ga, cons tan te,su bia sem pre a trá gi ca pro cis são dos mor tos e fe ri dos em di re ção aohos pi tal de san gue.

Em pa di o las uns, car re ga dos ou tros em re des, as cen di am len -ta men te a co li na es cal va da pela lon ga es tra da pon ti lha da de go tas desan gue.

Alguns su bi ram sós, a pé, va ga ro sa men te, ti tu be an tes, pa ran dode mi nu to em mi nu to, exa us tos, res fo le gan do pe no sa men te, ani man do-se às ca sas, numa exa us tão con tí nua de for ças, ar ras tan do-se num es for çoex tra or di ná rio, até ao alto.

∗ ∗ ∗A ver da de é que nin guém po de ria pre ver uma re sis tên cia de tal

or dem. O ata que foi ló gi co, im pos to se ve ra men te pe las ra zões mais

só li das, e o seu pla no, per fe i ta men te bem con ce bi do, re sis ti rá comvan ta gem à crí ti ca mais ro bus ta.

Tudo, po rém, são sur pre sas nes ta cam pa nha ori gi nal. À tar de re co nhe ceu-se de fi ni ti va men te que a si tu a ção não

mu da ria. Só ha via uma pro vi dên cia a to mar – con ser var as po si ções

ar du a men te con quis ta das, em bo ra não se re ves tis sem de im por tân ciaque com pen sas se os sa cri fí ci os fe i tos.

Re du zi ra-se, en tre tan to, de mu i to, a área ocu pa da pelo ini mi go. Esta re du ção de es pa ço, po rém, pa re cia ha ver de ter mi na do a

con den sa ção de sua ener gia sel va gem. A no i te des ceu se re na men te so bre a re gião per tur ba da do

com ba te e ras gan do o seio da no i te, ca in do, in sis ten tes, so bre to dos ospon tos da li nha do cer co, si bi lan do em to dos os tons so bre o acam pa -men to, inú me ras, cons tan tes, da zona re du zi da em que se en con tra vamos ja gun ços, ir rom pi am as ba las.

104 Eu cli des da Cunha

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Ca nu dos e Ou tros Temas 105

Pá gi na de cu ri o so ca der ni nho que Eu cli des tra zia no bol soquan do se en con tra va em Ca nu dos. Con tém ano ta ções rá pi das, apa -ren te men te des co ne xas, ter mi no lo gia re gi o nal, es bo ços de im pres -sões, apon ta men tos vá ri os de que ele se uti li za va para a ela bo ra çãodas re por ta gens.

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O ba ta lhão de São Pa u lo22

26 de ou tu bro de 1897O Esta do de S. Pa u lo – São Pa u lo

OS BRIOSOS SOLDADOS que vol tam da luta são dig nos doen tu si as mo com que o povo os re ce be. Qu an do, em prin cí pio de se -tem bro, che ga mos a Qu e i ma das, eu já sa bia que o Ba ta lhão Pa u lis tache ga ra a Ca nu dos re a li zan do uma mar cha bri lhan te e rá pi da. Em Qu e i -ma das, a opi nião unâ ni me dos ha bi tan tes da que la ci da de tra du zia-senum elo gio cons tan te ao pro ce di men to da for ça des te Esta do du ran te otem po em que ela ali es te ve.

Nem uma voz dis cor dan te per tur ba va essa ma ni fes ta ção ab so lu -ta men te sin ce ra e fran ca, que ain da per du ra e per sis ti rá por mu i to tem po.

Em Mon te San to (enun cio um fato que me foi ex pos to pe laspes so as mais sé ri as da lo ca li da de), a po pu la ção in te i ra fi cou ver da de i ra -men te sur pre en di da ante a en tra da cor re tís si ma de um ba ta lhão, queaca ba va de re a li zar uma mar cha de de zes se is lé guas e ali che ga va, emfor ma, numa or dem ad mi rá vel, como se fos se tran qüi la men te para umasim ples re vis ta.

22 Este ar ti go, com a as si na tu ra de Eu cli des da Cu nha, apa re ceu no Esta do de S. Pa u lo de 24 de ou tu bro de 1897. N. do R.

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Qu an do se gui para Ca nu dos com o he rói co Re gi men to doPará, en con trei uma ala da nos sa for ça já pró xi mo ao ter mo da vi a gem.Foi en tre Su çu a ra na e Juá, na es tra da do Ca lum bi, ha via pou co des co -ber ta pelo Te nen te-Co ro nel Si que i ra de Me ne ses, tra ba lho no tá vel quecon tri bu iu mu i tís si mo para apres sar o ter mo da luta, por que es ta be le ceu mais rá pi das e se gu ras co mu ni ca ções com Mon te San to.

Lá es ta va a ala es quer da do Ba ta lhão Pa u lis ta, di ri gi da pelobra vo e de di ca do Ma jor José Pe dro. A es tra da do Ca lum bi, por onde osja gun ços es pe ra vam a ex pe di ção do Ge ne ral Artur Oscar, la de a da em par -te pe las mon ta nhas do Ca lum bi e Ca cha man gó, cri va da de trin che i rasás pe ras de már mo re si li co so, ten do um tre cho de três qui lô me tros den -tro do vale pro fun do do rio Sar gen to, cor tan do tal vez quin ze ve zes asbar ran cas abrup tas do rio Cra í ba, é de mais di fí cil tra ves sia do que a doCam ba io. Gu ar dá-la e ocu pá-la, pois, não era em pre sa de pou ca mon ta,so bre tu do an tes do es ta be le ci men to de um trá fe go fran co e con tí nuo.Tan to isto é ver da de que a ala do Ba ta lhão Pa u lis ta foi de po is subs ti tu í -da por uma bri ga da – a do Co ro nel Gou ve ia.

Assim, ao che gar a Ca nu dos, no dia 15 de se tem bro, eu le va va já a con vic ção de que os in tré pi dos sol da dos do Sul pros se gui am re ti li -ne a men te nas em pre sas ru des da guer ra.

E, re al men te, as sim pro ce de ram sem pre.Expo nho le al men te a ver da de afir man do que o ge ne -

ral-em-che fe re pe ti das ve zes me ma ni fes tou, com a fran que za ex cep ci o -nal que o ca rac te ri za, a con fi an ça in te i ra, ab so lu ta, que lhe ins pi ra va oBa ta lhão de São Pa u lo:

– “Cada vez me agra da mais esta sua gen te...”Ha via ra zões para isto. O Ba ta lhão era per fe i to na dis ci pli na.

Cum pria as or dens que re ce bia, mas ri go ro sa men te, es tri ta men te, com uma pre ci são ver da de i ra men te mi li tar, sem de las se ar re dar nem mes mo para seati rar à aven tu ra mais ten ta do ra e apa ren te men te da mais fá cil re a li za ção.

Teve pou cos ho mens fora de com ba te; foi mes mo, tal vez, oba ta lhão me nos sa cri fi ca do de toda a cam pa nha. Este fato, na apa rên ciain com pa tí vel com os ine gá ve is ser vi ços por ele pres ta dos e cuja im por -tân cia não se pode di ri mir, ex pli ca-se, de um lado, pelo tem po re la ti va -men te cur to em que es te ve no cam po das ope ra ções e, de ou tro, por um

108 Eu cli des da Cunha

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aca so fe liz, por que ar ris ca dís si mas e sé ri as fo ram mu i tas ve zes as po si ções que ocu pou e não aban do nou nun ca.

O pla no de ata que do me mo rá vel dia 1º de ou tu bro de mons -tra-o. Apo i a da pelo Ba ta lhão do Pará, a ala di re i ta do Ba ta lhão Pa u lis ta,sob o co man do ime di a to do Te nen te-Co ro nel Eles bão Reis, ga ran tiu apou cos me tros do cen tro agi ta do da luta, des do bran do-se na mar gemes quer da do Vaza-Bar ris, da igre ja ve lha à nova, um ex ten so seg men toda li nha do cer co, en quan to a ala es quer da, den tro do ar ra i al, no maisace so do com ba te, com par tia os tra ba lhos e pe ri gos que ro de a vam asfor ças as sal tan tes do Exér ci to, acom pa nhan do-o dig na men te na rara eno tá vel su bor di na ção ao de ver e na ex tra or di ná ria de di ca ção à Re pú bli caque ele sem pre pa ten te ou.

Isto é o de po i men to sim ples e sin ce ro de uma tes te mu nhapou co afe i ço a da à li son ja ba nal e inú til.

Mas, não era a pri me i ra vez que os pa u lis tas se aven tu ra vam aar ran ca das nos ser tões.

O epi só dio trá gi co dos Pal ma res e a epo péia ain da não es cri tados Ban de i ran tes fo ram cri a dos pela ín do le aven tu re i ra e lu ta do ra dossu lis tas ou sa dos.

E o Ba ta lhão de São Pa u lo, he rói co e de sas som bra do nocom ba te, fez re vi ver, por um mo men to, numa pá gi na da his tó ria dopre sen te, todo o vi gor guer re i ro e toda a ín do le va ro nil dos va len tes ca í doshá dois sé cu los.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 109

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OUTROS TEMAS

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Dis tri bu i ção dos ve ge ta is noEsta do de São Pa u lo

4 de mar ço de 1897O Esta do de S. Pa u lo – São Pa u lo

O XI BOLETIM da Co mis são Ge o grá fi ca e Ge o ló gi ca tra ta, en tre ou tros, da que le in te res san tís si mo as sun to que se tra duz como uma no vi da de na de plo rá vel ina ni da de do nos so am bi en te in te lec tu al eeri ge-se como a pri me i ra ten ta ti va sé ria, a par do re cen te tra ba lho deWar ming so bre a flo ra da La goa San ta, em Mi nas, de um es tu do sis te -má ti co da nos sa flo ra lo cal, e, tal vez, sob um pon to de vis ta mais ge ral,da ge o gra fia bo tâ ni ca do nos so país.

De fato, os li ne a men tos ge ra is do nos so mun do ve ge tal, tra ça dopelo ilus tre Mar ti us em sua clás si ca di vi são de pro vín ci as ou sub-re i nosam plís si mos e de mal de fi ni das fron te i ras, ti nham de ma si a da am pli tu depara re fle ti rem as mo di fi ca ções im pos tas pe las cir cuns tân ci as lo ca is.Abran gen do cada uma da que las di vi sões, às ve zes, mu i tos gra us de la ti -tu de, ca rac te ri za-as a má xi ma ge ne ra li da de, tal que se to cam e se con -fun dem qua se, na par te oci den tal da nos sa ter ra, as duas pro vín ci asex tre mas das Na péi as ex tra tro pi ca is e Nái a des in ter tro pi ca is – as pri -me i ras do mi nan do ex clu si va men te no Rio Gran de, San ta Ca ta ri na, Pa ra ná

Page 189: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

e sul de Mato Gros so e as se gun das, mais dis se mi na das, acom pa nhan doo cur so dos gran des rios e de fi nin do-se com ad mi rá vel opu lên cia na hi -léia ama zô ni ca de Hum boldt que des do bra pela ex ten são do gran de vale uma ve ge ta ção in com pa rá vel e for te, sob a adus tão pe re ne dos gran desdias tro pi ca is.

Tor na-se, as sim, cla ra men te, ne ces sá rio, por meio de um es tu domais ín ti mo da nos sa na tu re za, de fi nir os vá ri os as pec tos par ti cu la resine vi ta vel men te as su mi dos por aque las di vi sões, ante as mo da li da des domeio. Foi o que in ten tou, para a flo ra pa u lis ta, o Sr. A. Lo ef gren apóspa ci en tes e lon gas in ves ti ga ções.

Com par tin do o do mí nio da ve ge ta ção pa u lis ta as Dría des eOréa des de Mar ti us, a que per ten cem res pec ti va men te as ma tas que re -ves tem as mon ta nhas gra ní ti cas do li to ral e a flo ra das re giões mon ta -no-cam pes tres in ter tro pi ca is, cada uma des sas pro vín ci as, se gun do ascon di ções am bi en tes, pode re ves tir-se de fe i ções par ti cu la res, per fe i ta -men te de fi ni das, trans mu dan do-se len ta men te, sob o in flu xo das re a ções ex te ri o res, e es ta be le cen do, numa con ti nu i da de ad mi rá vel, a tran si çãodas gran des flo res tas pri mi ti vas, sil vae pri me vae, à ve ge ta ção ru di men tardos cam pos.

A tra ços lar gos em bo ra e apro ve i tan do ha bil men te as di vi sões cri a das pela pró pria na tu re za, des cre ve o Sr. A. Lo ef gren es ses di ver sosas pec tos em que se re par tem na tu ral men te aque las duas gran des di vi -sões do emi nen te ini ci a dor da Flo ra bra si li en sis, ado tan do para de sig ná-las as de no mi na ções po pu la res ge ral men te co nhe ci das. E com a má xi macla re za liga os dois ex tre mos na tu ra is da ve ge ta ção, as ma tas e os cam -pos, pe las sé ri es de cres cen tes de fi ni das pe los ca po e i rões, ca po e i ras ecar ras ca is, de um lado e de ou tro pe las ca tan du vas, cer ra dões, cer ra dos e ca a tin gas – for ma ções de ri va das, se gun do a de no mi na ção de War ming,do Dri as e Óre as mar ti a nos. De fi ne es tes di ver sos fa ci es de uma flo raque se adap ta com sin gu lar plas ti ci da de a um meio al ta men te com ple xoe in cons tan te e abor da afi nal o pon to ca pi tal da ques tão – es tu dan -do-lhes as es pé ci es ve ge ta is ca rac te rís ti cas.

Com pre en de-se que tal es tu do é ape nas um en sa io, como de cla -ra o seu au tor, e, acres cen ta mos, uma ten ta ti va até cer to pon to he rói ca.

Ten do, tal vez, em par te, como úni ca ori en ta ção as re cen tesde du ções de War ming acer ca do modo de ser da flo ra da La goa San ta, o

114 Eu cli des da Cunha

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Sr. A. Lo ef gren es te ve qua se que in te i ra men te iso la do nes sas in da ga ções per sis ten tes por meio da flo ra opu len ta e ni mi a men te ca pri cho sa deuma re gião, cuja dis po si ção to po grá fi ca pa re ce ter in ver ti do a de fi ni çãoas tro nô mi ca dos cli mas, im pon do aos iso ter mos23 de fle xões bi zar ras eexa ge ra das e im pri min do em sua zona ex tra tro pi cal do li to ral a fe i çãotro pi cal por ex ce lên cia, mu i tís si mo mais acen tu a da que no in te ri or.

Daí o al tís si mo va lor do seu es for ço, des ti na do a ma i o res re -sul ta dos fu tu ros e a ine gá vel ori gi na li da de de um es tu do para cuja apre -ci a ção exa ta ca re ce mos de com pe tên cia, não ten do es tas li nhas ou trafun ção além de im pe dir que o in di fe ren tis mo ge ral apa gue e ex tin gamais um ten ta me no tá vel. Não acom pa nha re mos por isto o in fa ti gá velbo tâ ni co na cri te ri o sa aná li se dos di ver sos ti pos flo ra is do Esta do – daflo ra exu be ran te das ma tas à ve ge ta ção caó ti ca das ca po e i ras ou doscam pos, ads tri ta a um meio in cle men te.

∗ ∗ ∗

Ampli an do as no tá ve is in da ga ções ini ci a das em Mi nas peloilus tre se cre tá rio do Dr. Lund, abor dou o Sr. A. Lo ef gren, com in te i ra se -gu ran ça, so bre a lar ga base dos es tu dos a que nos vi mos re fe rin do, o pro -ble ma in te res san tís si mo e atra en te da gê ne se dos cam pos e a ex pli ca çãose gu ra das ca u sas que de ter mi nam a per sis tên cia, a cons tân cia da suave ge ta ção de pri mi da, es ta ci o ná ria e sem a mí ni ma ten dên cia, por meio de um mo vi men to evo lu ti vo as cen si o nal, a for mas mais pro e mi nen tes.

É esta ine ga vel men te a fe i ção mais di re ta men te útil do seutra ba lho, so bre tu do se con si de rar mos que pre pon de ram nes te Esta do as re giões cam pes tres ge ral men te con si de ra das es té re is e inap tas a qual quer cul tu ra re gu lar; re giões des ti na das en tre tan to a no tá vel ação so bre onos so de sen vol vi men to eco nô mi co, em pró xi mo fu tu ro, quan do o es go -ta men to das ter ras ora cul ti va das, co in ci din do com o au men to da po pu -la ção, de ter mi nar o sur to de uma la vou ra mais in te li gen te, na qual gra ças a um ma i or des do bra men to de ener gi as, exi gi das pela cul tu ra in ten si va, a

Ca nu dos e Ou tros Te mas 115

23 A me lhor for ma é a do fe mi ni no iso ter ma ou o ad je ti vo subs tan ti va do iso tér mi co =li nha de pon tos de igual tem pe ra tu ra. N. do R.

Page 191: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

in te li gên cia do ho mem, em ín ti ma co la bo ra ção, se alie à for ça in cons ci en teda ter ra.

Ora, dos es tu dos em ques tão re sul ta que, em con tra po si ção àopi nião ge ral, ne nhu ma ca u sa in sa ná vel de ter mi na a es te ri li da de apa ren tedos cam pos, ca ben do à com po si ção quí mi ca do solo in fluên cia di mi nu -tís si ma em sua for ma ção e con ser va ção.

Obser van do a dis po si ção ge ral dos cha pa dões do am plo pla -nal to pa u lis ta, re ves ti dos pela flo ra cam pes tre, que des cam bam in sen si -vel men te em su a ves de cli ves se gun do a di re ção dos rios prin ci pa is, notao Sr. A. Lo ef gren que são eles var ri dos lon gi tu di nal men te pe los ven tosdo mi nan tes – o SE, ma rí ti mo e sa tu ra do de umi da de, que após vin gar oan te mu ral24 da ser ra do Mar atin ge o pla nal to de ter mi nan do a açãobe né fi ca do or va lho, e o NO ar den te, ori un do das re giões adus tas doin te ri or, e ori gi nan do in ten sa eva po ra ção, vis to como a au sên cia deobs tá cu los que não lhe ofe re ce a su per fí cie lisa das cha pa das, con ser va-lhea tem pe ra tu ra alta e afas ta do, con se qüen te men te, o pon to de sa tu ra çãopara a umi da de. Esta con di ção des fa vo rá vel para a exis tên cia ve ge tal,pró pria dos vas tos des cam pa dos, é agra va da ain da pela ir ra di a ção no tur na que é ne les mu i to ma i or do que nas ma tas, de onde de cor re o fla ge lope rió di co das ge a das. A es tas ca u sas po rém, obs tá cu los opos tos aode sen vol vi men to ve ge ta ti vo dos cam pos, alia-se uma ou tra.

Per ten ce esta à te o ria es ta be le ci da por Thurm man, fir man doa in fluên cia pre pon de ran te das qua li da des fí si cas do solo e es pe ci al men teda sua de sa gre ga ção mais ou me nos com ple ta de onde re sul tam a avi dez com que re tém a água ou a fa cul da de de fil trá-la ra pi da men te, de i xan -do-a pas sar às ca ma das in fe ri o res.

De fato, a ob ser va ção re ve la nos pla nal tos das re giões cam -pes tres ca ma das ter ro sas ni mi a men te es pes sas e per meá ve is, nas qua is aumi da de de ri va da da at mos fe ra pres tes de sa pa re ce, avi da men te su ga dapelo solo até às ca ma das im per meá ve is pro fun das.

Da con cor rên cia de tais obs tá cu los re sul ta a pe no sa adap ta -ção im pos ta àque la flo ra, o seu es ta ci o na men to e a con ser va ção per sis -

116 Eu cli des da Cunha

24 A pu bli ca ção ori gi nal re gis tra a an te mu ral. N. do R.

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ten te de uma ve ge ta ção ca rac te rís ti ca que não evol ve e, ao con trá rio, de -pe re ce cada vez mais, ante o as sal to bru tal dos ele men tos.

Ve ge ta ção ra quí ti ca, tor tu ra da e des gra ci o sa, em que os ga lhosre tor ci dos e de sor de na dos dão-nos a idéia de um bra ce jar de de ses pe ro,ela é, en tre tan to, in te res san tís si ma e, me lhor do que as ma jes to sas flo res tasdo li to ral, pa ten te ia vi gor e re sis tên cia he rói ca na luta pela vida.

Se gun do já fora ob ser va do por War ming, com põem-na en tre -tan to as mes mas fa mí li as e gê ne ros que po vo am as ma tas. As cir cuns -tân ci as des fa vo rá ve is apon ta das im pri mi ram-lhes, po rém, mo vi men tore tró gra do tão gran de que à mais inex per ta vis ta res sal ta a di fe ren ça en -tre as Big no niá ce as qua se aca u les do cam po e as suas es bel tas ir mãs dasflo res tas.

Che ga-se as sim, lo gi ca men te, à con clu são de que a per sis tên ciados cam pos nes te es ta do par ti cu lar é o re sul ta do de con di ções ge o ló gi cas, fí si cas e to po grá fi cas – não sen do lí ci to acre di tar-se numa es te ri li da dein com pa tí vel com uma flo ra va ri a dís si ma e idên ti ca à das ma tas e com apró pria per me a bi li da de do solo. De sor te que a ir ri ga ção ar ti fi ci al nasépo cas de seca de be la ria em gran de par te os ma les apon ta dos, vis tocomo a eva po ra ção por um lado e a suc ção do solo por ou tro são asca u sas pre do mi nan tes da que la apa ren te ari dez dos cam pos.

Se acres cen tar mos ago ra que es tes pela sua dis po si ção mes mo,de su per fí cie li ge i ra men te on du la da, cons ti tu em re giões em que se tor na fa cí li ma a apli ca ção dos ara dos, pa ten te an do de modo no tá vel essa ma na -ge a bi lity of na tu re de que nos fala Buck le, com pre en de-se cla ra men te todo o seu va lor e o pa pel que lhes des ti na o fu tu ro.

Exa us tas as re giões ubér ri mas nas qua is a de com po si ção dasro chas erup ti vas (au gi to-por fi ri tos) ori gi na a ter ra roxa que está atu al -men te para o nos so de sen vol vi men to eco nô mi co como a ter ra ne gra daUcrâ nia, a fe cun da tcher no i zem, para o da Rús sia me ri di o nal, o apro ve i ta -men to das ex ten sas zo nas hoje aban do na das tor nar-se-á ine vi tá vel e tra -du zi rá uma ex pan são mais am pla da ati vi da de do la vra dor, que per den doa fe i ção qua se pa ra si tá ria atu al terá ne ces si da de de es ti mu lar an tes ede sen ca de ar as ener gi as la ten tes do solo. Os cam pos são as sim, se gun do a ex pres são de um belo ta len to, as re ser vas do nos so fu tu ro. A suaes tru tu ra ge o ló gi ca ou, de um modo ge ral, do pla nal to se di men tá rio que

Ca nu dos e Ou tros Te mas 117

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os con tém, com pos ta de ex tra tos ho ri zon ta is de xis to e pos san tes ca ma dasde grês, cin di das pe las erup ções triás si cas de diá ba se e me lá fi ro, tor naemi nen te men te pra ti cá vel a aber tu ra de po ços ar te si a nos, pela pro ba -bi li da de da exis tên cia da água a pe que na pro fun di da de, nas ca ma dasda que las ro chas se di men tá ri as. Por ou tro lado, a ex tre ma di fe ren ci a ção hi dro grá fi ca do Esta do, em que a ma i o ria dos rios se sub di vi de eminú me ros aflu en tes, fa ci li ta a for ma ção de re pre sas e ar ma ze na men to de gran des mas sas de água, que po dem ser dis tri bu í das para o be ne fi ci a -men to do solo, con so an te as ne ces si da des.

Estas con clu sões no tá ve is com ple tam ad mi ra vel men te oses tu dos do dig no bo tâ ni co da Co mis são Ge o grá fi ca e Ge o ló gi ca.

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O 4º cen te ná rio do Bra sil

6 de maio de 1900 O Rio Par do – São José do Rio Par do

NO SÉCULO XVI a hu ma ni da de di la tou o ce ná rio da His -tó ria.

Des pe a da do tu mul to me di e val vol tou-se para o pas sa do,atra í da pelo ful gor da Anti güi da de clás si ca, re a tan do, pela cul tu ra hu ma -nis ta, os elos da con ti nu i da de so ci al par ti dos des de a ir rup ção dos bár -ba ros. E à me di da que, por tal for ma, o es pí ri to hu ma no re nas cia, cres -cen do na or dem in te lec tu al, como que se lhe im pôs in dis pen sá vel am pli ar tam bém, na or dem fí si ca, o pal co des me di do em que apa re ci am as so ci e -da des trans fi gu ra das.

De sor te que, lo gi ca men te, a Re nas cen ça co in ci de com a épo -ca dos gran des des co bri men tos ge o grá fi cos – que lon ge de tra du zi rem fe i -tu ras do aca so fa vo re ci do pela au dá cia de al guns ma ri nhe i ros te me rá ri os,fo ram um re sul ta do ime di a to da re or ga ni za ção ge ral.

Co lom bo, me di ta ti vo di an te da Ima go Mun di de Pe trus Ali a cusou de le tre an do as car tas de Pa o lo Tos ca nel li, li ga va-se por meio dos sé cu los a Stra bo; Bar to lo meu Dias, ru man do im pá vi do para o mar im mo to doAtlân ti co Sul, sin gra va na es te i ra se cu lar do pé ri plo de Ha non...

Os pa í ses fu tu ros iri am sur gir in di ca dos pelo pas sa do.

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Além dis to, a atra ção ir re pri mí vel do Ori en te opu len tís si mo,por um lado, e, por ou tro, o ane lo de atin gir as ter ras mis te ri o sas doOci den te, onde de mo ra va a Atlân ti de fan tás ti ca dos gre gos, eram es tí mu -los po de ro sos às gen tes eu ro péi as.

Nor te a dos por tais de síg ni os os ba ri néis25 li ge i ros, as ga lés eas na ves ma jes to sas, e as ca ra ve las atre vi das fi ze ram-se aos ma res des co -nhe ci dos, ve le jan do de Pa los e Lis boa.

Pro cu ran do com Vas co da Gama as al tas la ti tu des do He mis fé -rio Sul e con tor nan do a Áfri ca ou com Vi cen te Pin zón en di re i tan do pon -te i ros para oes te, vi san do “el le van te por el po en te”, de man da vam to dos, va ri an do na rota, um ob je ti vo úni co – al can çar a Índia por ten to sa.

O des co bri men to da nos sa ter ra re a li zou-se, en tão, como umin ci den te ines pe ra do, mas não in te i ra men te for tu i to, des sa ten ta ti va fas ci -na do ra. Pe dro Álva res Ca bral zar pa ra a 9 de mar ço de 1500, de Lis boapara a Índia, onde ia su ce der ao Gama, e este, mais ex pe ri men ta do àque -les ma res, re co men dan do-lhe que se alon gas se o mais pos sí vel para o oci -den te, ama ran do da cos ta afri ca na de modo a evi tar as cal ma ri as do gol fode Gu i né, ti nha, tal vez, o se cre to in tu i to de ver re a li za da uma tra ves sia nas pa ra gens ig no tas, cu jas ter ras, ain da não des co ber tas, per ten ci am, pelo re -cen te Tra ta do de Tor de si lhas, à co roa por tu gue sa.

Par tiu o fe liz na ve ga dor e ines pe ra da men te, a 22 de abril (data inu til men te trans pos ta pelo ca len dá rio gre go ri a no para 3 de maio) de pa -rou com lu ga res nun ca vis tos na que les ma res nun ca dan tes na ve ga dos.

Foi há qua tro cen tos anos...Em ge ral os nos sos his to ri a do res dão ao acon te ci men to um

as pec to dra má ti co: doze ca ra ve las de sar vo ra das – mas tros de sa pa re lha -dos e ve la mes ro tos, sa cu di das vi o len ta men te pelo Atlân ti co, ar re ba ta -dos nas lu fa das for tes dos ven tos de sen ca de a dos – e ar ri ban do à en se a -da sal va do ra de “Vera Cruz”.

Esta va des co ber to o Bra sil.E como aque les ru des li da do res, que ha vi am des co lo ca do

para o oce a no tor men to so a bra vu ra ro ma nes ca da ca va la ria me di e val,

120 Eu cli des da Cunha

25 Tal vez a me lhor for ma seja va ri nel ou va ri no. N. do R.

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não di la ta vam so men te o “im pé rio” mas tam bém a fé, dias de po is, a 1ºde maio, di an te do gen tio des lum bra do re a li za ram a pri me i ra mis sa.

E par ti ram. Re a ta ram a rota apro an do ou tra vez para as Índi as,de i xan do em ter ra, al te a da so bre um mon te, avul tan do nas so li dões denovo con ti nen te e do mi nan do o mar, uma cruz de ma de i ra.

Esta va cra va do o pri me i ro mar co da nos sa his tó ria.O belo sím bo lo cris tão ali fi cou; e mu i to alto, pro je tan do-se

nos céus en tre as ful gu ra ções do Cru ze i ro, bra ços para a Eu ro pa, eracomo um ape lo an si o so, o pri me i ro re cla mo da ter ra ain da vir gem à ci vi li -za ção afas ta da...

Ca nu dos e Ou tros Te mas 121

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As se cas do Nor te

29, 30 de ou tu bro e 1º de no vem bro de 1900O Esta do de S. Pa u lo – São Pa u lo

I O NOSSO PAÍS é um meio sem uni for mi da de. Te mos cli -mas que se ex tre mam, dís pa res, ao pon to de im po rem adap ta ção pe -no sa aos pró pri os fi lhos do ter ri tó rio e, se exa ge rás se mos o con ce i tome so ló gi co de Buck le, pre fi gu ra ría mos na nos sa ter ra a exis tên cia fu tu -ra de mu i tas na ci o na li da des di ver sas. Por que a pres são ba ro mé tri ca, atem pe ra tu ra e os ven tos pre do mi nan tes, se guin do o li to ral ex ten so ouvin gan do as bor das dos pla nal tos, não se en tre la çam num re gi me úni co.Entre tan to, o fato não de cor re, como à pri me i ra vis ta se po de ria ima gi nar,de um vas to des do bra men to em la ti tu de, avas sa lan do di fe ren tes zo nas.É uma re sul tan te ime di a ta da es tru tu ra ge og nós ti ca do ma ci ço con ti nen tal com ple ta da pela ori en ta ção e re le vo va riá ve is do ma jes to so an te mu ral26

de cor di lhe i ras que o pre cin tam e al te i am so bre os ma res.Abe i ra das do li to ral, so bre que se apru mam às ve zes, acom pa -

nhan do-lhe as in fle xões, aque les, con so an te os ru mos va riá ve is dos ei xosprin ci pa is, re a gem di ver sa men te so bre o re gi me das ter ras in te ri o res.

26 No va men te apa re ce an te mu ral como subs tan ti vo fe mi ni no, no jor nal. N. do R.

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E tão vi va men te que trans cor ri dos al guns gra us além do tró pi co, na di -re ção do nor te, quan do as ca de i as se alon gam per pen di cu la res ao alí sio,ob ser va-se, de pron to, ines pe ra da ano ma lia cli má ti ca en tre a fa i xa deter ras que lhes de mo ram a les te e as re giões ser ta ne jas, des do bra das para o po en te.

Dali por di an te o cli ma, con tra pos to à sua de fi ni ção teó ri ca,co me ça a de fi nir-se, anor mal men te, pe las lon gi tu des.

É um fato elu ci da do. Em todo o tra to de ter re nos, da Ba hia àPa ra í ba, se no tam tran si ções mais acen tu a das acom pa nhan do os pa ra le -los, para oes te, que os me ri di a nos, de man dan do o nor te.

A va ri e da de nos as pec tos na tu ra is que na úl ti ma di re ção só seaper ce be de po is de lon ga tra ves sia, pa ten te ia-se, de gol pe, na pri me i ra.Dis ten di da até às pa ra gens se ten tri o na is ex tre mas, a mes ma na tu re zaexu be ran te esta de ia-se uni for me, sem va ri an tes, nas ma tas que de bru ama cos ta, ilu din do a ob ser va ção su per fi ci al do fo ras te i ro.

Entre tan to, logo a par tir do 12º pa ra le lo, es con dem vas toster ri tó ri os es té re is re tra tan do nos pla i nos des nu dos e ás pe ros os ri go resmá xi mos do cli ma.

Re ve la-o bre ve vi a gem para o oci den te. Qu e bra-se o en can to de uma ilu são be lís si ma; a ter ra em po -

bre ce-se, de im pro vi so; des pe-se da flo ra in com pa rá vel; ab di ca o fas tí gio das mon ta nhas; erma-se e de pri me-se; e trans mu da-se nos ser tões ex si -ca dos e bru tos mal re cor ta dos de rios efê me ros ou de sa ta dos em cha pa -das nuas que se su ce dem, in de fi ni das, for man do o pal co as som bra dordas se cas.

O con tras te é em pol gan te.A me nos de cin qüen ta lé guas um do ou tro, vêem-se lu ga res

de todo opos tos cri an do opos tas con di ções à vida.Cai-se, de sur pre sa, no de ser to. Ora, esta ano ma lia, de ri va da

de ca u sas se cun dá ri as fa cil men te aper ce bi das, con duz a um pro ble main so lú vel, o pro ble ma for mi dá vel das se cas do Nor te, que, in te res san doa um quin to da nos sa gen te, não tem e não terá por mu i to tem po ain da,na sua fór mu la com ple xa, to das as va riá ve is que o ca rac te ri zam.

Inde ter mi na do e dú bio, per mi te um agi tar exa us ti vo de hi pó -te ses, de sor te que as so lu ções até hoje aven tu ra das têm, to das, um ca rá -

124 Eu cli des da Cunha

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ter fri san te: es cla re ce-nos por uma das fa ces au men tan do a obs cu ri da dede ou tras.

Assim é que se o con tras te aci ma apon ta do en tre os li to ra isdo Sul e do Nor te, re la ti va men te à tran si ção para o in te ri or, pode ser ex -pli ca do por Emí lio Li a is como ori un do da as pi ra ção dos pla nal tos in so -la dos, ao pon to de exer ce rem so bre o alí sio de su des te tor ção vi go ro sa,que o ar re ba ta pe los ter re nos me nos aci den ta dos do úl ti mo, sem que sepre ci pi tem, em chu vas, os va po res acar re ta dos, tal fato, ads tri to a cir -cuns tân ci as lo ca is, não ex pli ca ab so lu ta men te a lar ga ex pan são do re gi -me in cle men te que não raro, de po is de as so lar os Esta dos que se su ce -dem da Ba hia ao Pi a uí, di la ta-se pe los ma res, re fle tin do-se em Fer nan dode No ro nha, lon ga men te afas ta da.

O Pro fes sor Hann, por sua vez, a cuja ine gá vel com pe tên ciafal tou a base da ob ser va ção di re ta, ins pi ra do numa ana lo gia ine gá velcom a Aus trá lia, pro cu ra a gê ne se das se cas do Ce a rá à Pa ra í ba, no pa ra -le lis mo exis ten te en tre o li to ral e o alí sio. Tal ex pli ca ção, po rém, além de se con tra por à ir rup ção do fla ge lo no ori en te, des de a Pa ra í ba à Ba hia, éde al gum modo in com pa tí vel com a pró pria con for ma ção ge o grá fi ca deum ter ri tó rio, cuja ex pan são tri an gu lar, ex tre ma da pelo cabo de SãoRo que, fa vo re ce sin gu lar men te a en tra da no in te ri or das ter ras do ven to do qua dran te in di ca do.

Se nos am pa ra mos às lú ci das con si de ra ções de Fred Dra e nerapon tan do, no fato, a in fluên cia ine gá vel das mon ta nhas e mos tran do-as ori en ta das, de um modo ge ral, per pen di cu lar men te ao alí sio, como bar -re i ras pre ju di ci a is, ve mos que, so bre não bas tar, esse ele men to úni coin sur ge-se con tra ou tras cir cuns tân ci as cli má ti cas.

Ve ri fi cam-se, cla ros, al guns fa tos iso la dos; o con jun to daques tão, po rém, en gra ves ce.

Re al men te, as ser ras dos Ca ri ris, Bor bo re ma e Ga ra nhunsan te pos tas às ra ja das do sul e su des te e ab sor ven do-lhes nas ver ten tesori en ta is toda a umi da de, fa zem com que, no trans mon tá-las, aque laspro gri dam ex si ca das para o cen tro de Per nam bu co e Ce a rá, de modo acon tri bu í rem para as se cas que ali apa re cem; as da Cha pa da, Iti ú ba,Ita ba i a na e Dois Irmãos, an ta gô ni cas às mes mas cor ren tes na Ba hia eSer gi pe, jus ti fi cam da mes ma sor te as que as so lam os ter ri tó ri os ad ja -cen tes ao mé dio e ba i xo São Fran cis co.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 125

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Po rém, a ação iso la da des se ar gu men to é in sus ten tá vel.A de mons tra ção é sim ples. De fato, ace i to tal modo de jul gar, as se cas re la ti va men te in -

sig ni fi can tes do Pi a uí se ri am inex pli cá ve is, por que a pre pon de rân cia da -que le mo ti vo de via tor ná-las, en tre ou tras, as mais du ra dou ras e in cle -men tes.

Indi ca-o um lan ce de vis tas so bre um mapa. Vê-se, en tão, que os res tos es cas sos de va po res es ca pos à pas -

sa gem das ser ra ni as, ao che ga rem às ra i as da que le Esta do, se de po ri amnas en cos tas ori en ta is das ser ras de Dois Irmãos e Ibi a pa ba, que os ven -tos trans po ri am por fim mais ás pe ros que no Ce a rá, tor nan do aque lesser tões os mais es té re is e bru tos da nos sa ter ra.

Sen do, po rém, as se cas do Pi a uí equi pa ra das às da Ba hia ePer nam bu co, de mu i to in fe ri o res às do Ce a rá, é for ço so con vir em quenão re si de nos en tra ves apon ta dos à pro pul são das cor ren tes uma ca u sado mi na do ra, se não mais um fa tor nes se en tre la ça men to de agen tes paraa ges ta ção de uma si tu a ção que, atin gin do o pe río do tor men to so naster ras ce a ren ses, se alar ga ate nu a do para as con vi zi nhas.

A ques tão é ple na men te ge ral; re pe le o in flu xo de ca u sas iso la das.Tem, en tre tan to, à pri me i ra vis ta, a má xi ma sim pli ci da de. Por -

que os ci clos das se cas se abrem e se en cer ram com um rit mo tão no tá -vel que re cor dam a mar cha in fle xí vel de uma lei na tu ral, ig no ra da, maspou co com ple xa.

Re ve lou-o pela pri me i ra vez o Se na dor To más Pom peu, tra -çan do um qua dro por si mes mo bas tan te elo qüen te em que o apa re ci -men to da que las nos sé cu los pas sa do e atu al se de fron tam em pa ra le lis -mo sin gu lar, sen do de pre su mir que li ge i ras dis cre pân ci as in di quem de -fe i tos de ob ser va ção ou des vi os na tra di ção oral que as re gis trou.

De qual quer modo, res sal ta à sim ples con tem pla ção uma co in -ci dên cia re pe ti da bas tan te para que se re mo va a in tru são do aca so.

Assim, para ci tar mos ape nas as ma i o res, às se cas de(1710-1711), (1723-1727), (1736-1737), (1744-1745), (1777-1778), do sé -cu lo XVIII, jus ta põem-se as de (1808-1809), (1824-1825), (1835-1837),(1844-1845), (1877-1879), do atu al.

126 Eu cli des da Cunha

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Esta co in ci dên cia, es pe lhan do-se qua se in va riá vel como sesur gis se do de cal que de uma qua dra so bre ou tra, acen tua-se ain da naiden ti da de das qua dras re man sa das e lon gas que em am bas atre gua ram a pro gres são dos es tra gos.

De fato, sen do, no sé cu lo pas sa do, o ma i or in ter reg no, de 32 anos (1745-1777), hou ve no nos so ou tro ab so lu ta men te igual e, o que é so bre ma -ne i ra no tá vel, com a cor res pon dên cia exa tís si ma das da tas (1845-1877).

Con ti nu an do num exa me mais ín ti mo do qua dro, des ta cam-se no vos da dos fi xos e po si ti vos, apa re cen do com um ri go ris mo de in cóg -ni tas que se des ven dam.

Obser va-se, en tão, uma ca dên cia raro per tur ba da na mar chado fla ge lo, in ter cor ta do de in ter va los pou co dís pa res, en tre 9 e 12 anos,su ce den do-se de ma ne i ra a per mi ti rem pre vi sões se gu ras so bre a sua ir -rup ção.

Entre tan to, ape sar des sa sim pli ci da de ex tre ma nos re sul ta dosime di a tos, o pro ble ma, que se pode tra du zir na fór mu la arit mé ti ca maissim ples, per ma ne ce ina bor dá vel.

Impres si o na do pela ra zão des sa pro gres são raro al te ra da, e fi -xan do-a um tan to for ça da men te em onze anos, um na tu ra lis ta, o Ba rão deCa pa ne ma, teve o pen sa men to de ras tre ar nos fa tos ex tra ter res tres, tão ca -rac te rís ti cos pe los pe río dos in vi o lá ve is em que se su ce dem, a sua ori gem re -mo ta. E en con trou, na re gu la ri da de com que re pon tam e se ex tin guem in -ter mi ten te men te as man chas da fo tos fe ra so lar, um sí mi le com ple to.

De fato, aque les nú cle os obs cu ros, al guns mais vas tos que ater ra, ne gre jan do den tro da cer ca du ra ful gu ran te das fá cu las, len ta men te de ri van do à fe i ção da ro ta ção do Sol, têm, en tre o má xi mo e o mí ni moda in ten si da de, um pe río do que pode va ri ar de nove a doze anos. Ecomo de há mu i to, a in tu i ção ge ni al de Hers chel des co bri ra-lhes o in flu xo apre ciá vel na do sa gem de ca lor emi ti do para a Ter ra, a cor re la ção sur giaina ba lá vel nes se es te ar-se em da dos ge o mé tri cos e fí si cos acol che tan -do-se um efe i to úni co.

Res ta va equi pa rar o mí ni mo de man chas, an te pa ros e ir ra di a -ção do gran de as tro, ao fas tí gio das se cas no Pla ne ta tor tu ra do – demodo a pa ten te ar, côm pa res, os pe río dos de uma e ou tras.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 127

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Fa lhou nes te pon to, em que pese a sua for ma atra en tís si ma, ate o ria pla ne a da: ra ra men te co in ci dem as da tas do pa ro xis mo es ti val, noNor te, com as da que le.

O ma lo gro des ta ten ta ti va, en tre tan to, de nun cia me nos a des -va lia de uma apro xi ma ção im pos ta ri go ro sa men te por cir cuns tân ci as tão no tá ve is do que o ex clu si vis mo de aten tar-se para uma ca u sa úni ca. Por -que a ques tão, com a com ple xi da de ima nen te aos fa tos con cre tos, seatém de pre fe rên cia a ra zões se cun dá ri as mais pró xi mas e enér gi cas e es tas,em mo da li da des pro gre din do, con tí nu as, da na tu re za do solo à dis po si ção ge o grá fi ca, só se rão de fi ni ti va men te sis te ma ti za das quan do ex ten sa sé rie de ob ser va ções per mi tir, do mes mo pas so, a de fi ni ção dos agen tes pre -pon de ran tes do cli ma ser ta ne jo e, além dis to, tal vez mais sé ria a in fluên cia me di a ta so bre ele do re gi me nou tras re giões do con ti nen te.27

Esta úl ti ma con di ção afi gu ra-se-nos de im por tân cia ex tre ma. Apon te mos um caso úni co.

II

Está hoje des co ber ta – ain da que im per fe i ta men te de li mi ta da– no âma go con ti nen tal da Amé ri ca do Sul, enor me su per fí cie abran -gen do par te do Mato Gros so e da Bo lí via, so bre a qual, al ter na da men te, se es ta be le cem, se gun do o jo gar das es ta ções, pres sões e de pres sões ba -ro mé tri cas tão in ten sas que se vão exer ci tar so bre os mais lon gín quostra tos de ter ri tó rio.

Dali ir ra di am, de abril a no vem bro, e se es pa lham, for tes cor -ren tes di la tan do-se pe los qua dran tes e es ten den do-se so bre de mar ca dasáre as: o no ro es te que rola pe los al tos cha pa dões do Pa ra ná e São Pa u loaté Mi nas Ge ra is e daí para o li to ral, onde imo bi li za e não raro re pe le oalí sio, de su des te; o ven to sul en re ge la do, que rom pe pela at mos fe ra

128 Eu cli des da Cunha

27 Sob o im pac to da seca de l900 que as so lou o Ce a rá, Eu cli des pu bli cou es tes ar ti gos, que são pá gi nas não re vis tas d’Os Ser tões. Daí o fi nal in com pre en sí vel des se pa rá gra -fo; no li vro, po rém, ele ter mi na as sim: “...per mi tir a de fi ni ção dos agen tes pre pon -de ran tes do cli ma ser ta ne jo.” (Cf.: Os Ser tões, pág. 34 da l3ª edi ção.) N. do R.

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adu ren te do Ama zo nas, le van do até ao Equa dor, nos dias ina tu rá ve is dafri a gem em que os pe i xes mor rem de frio nas águas dos gran des rios, os ares das al tas la ti tu des; ou o su do es te vivo, que se alon ga pe las lin des se -ten tri o na is de Go iás, até ao pla nal to do Par na í ba.

De no vem bro a mar ço, à me di da que se acen tua, no mes mocen tro dos ma ci ços, um mí ni mo do mi nan te de pres são, es bo çam-se si -tu a ções con trá ri as: o su des te var re, en tão, li vre men te, os li to ra is do Sul,e, ao avan ta jar-se para o Norte vai sen do cada vez mais atra í do pela mí -ni ma in di ca da, até tor cer in te i ra men te o rumo, subs ti tu í do pela mon çãode nor des te, que, de de zem bro a mar ço, en tra per pen di cu lar men te pe las cos tas se ten tri o na is; ao pas so que das al tas la ti tu des, so pran do con tra -pos tos, pe ne tram re mo i nhan do, em ro de i os,28 até ao Mato Gros so, osha us tos im pe tu o sos do pam pe i ro...

Ora, se aque la área cen tral in flui por tal for ma so bre lu ga restão dis tan tes, mer cê da que les agen tes es sen ci a is à di nâ mi ca dos cli mas –que for mam as sú bi tas tem pes ta des de no ro es te, em São Pa u lo e Mi nas,ou o in ver no efê me ro e pa ra do xal do Ama zo nas –, pode-se con je tu rarque tam bém re a ja so bre a cli ma to lo gia dos ser tões do Nor te, so bre tu dose con si de rar mos que para isto se lhe alia o fa ci es oro grá fi co da re gião.

Re al men te, con si de ran do-se a dis po si ção des te úl ti mo e osen ti do dos ven tos que ali re i nam no es tio, evi den cia-se o mais per fe i topa ra le lis mo.

To das as prin ci pa is ser ra ni as – dos úl ti mos re ben tos da ser raGe ral às do Pi a uí, Dois Irmãos e Ca ri ris –, de sen ro lan do-se uni for me -men te para nor des te, re sul ta que a mon ção re i nan te, em bo ra re ple ta deva po res co lhi dos na tra ves sia dos ma res, en tra-lhes pe los va les ca na li za da,sem de pa rar obs tá cu los que a al te i em pro vo can do-lhe a con den sa ção, eavan çam, in tac tas, para o in te ri or re mo to.

Fal ta-lhes, como se vê, o an te pa ro de uma ser ra ori gi nan -do-lhes a as cen são e o res fri a men to, a di na mic col ding , se gun do um di zerex pres si vo. As lu fa das pas sam ve loz men te so bre aque les ser tões, cujoam bi en te abra sa do ale van ta-lhes ain da mais o pon to de sa tu ra ção, di mi -

Ca nu dos e Ou tros Te mas 129

28 No jor nal está ro déos, al te ra do, nas edi ções an te ri o res, para ro déus , am bas for masine xis ten tes. N. do R.

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nu in do as pro ba bi li da des de chu vas, e vão con den sar-se nos re ces sos do con ti nen te so bre os ma nan ci a is da opu len ta rede hi dro grá fi ca que o re -cor ta ir ra di an do para as cos tas.

Nes te caso não sur gem ob je ções idên ti cas às que anu lam o ra -ci o cí nio dos que lo bri gam a gê ne se das se cas no an ta go nis mo per ma nen teen tre o alí sio e as mon ta nhas. Estas tor nam-se pre ju di ci a is não pelo sealon ga rem per pen di cu lar men te à di re ção da que le se não pela cir cuns tân cia opos ta, pelo acom pa nha rem, pa ra le las, o tra ça do do Nor des te.

Com pre en de-se, en tão, lim pi da men te, que pos sam, as se cas,alas trar-se até o li to ral da Ba hia e dali para os Esta dos pró xi mos com ofas tí gio abra sa do no Ce a rá.

As mo da li da des cli má ti cas, nes te caso, re for çam, ao in vés decon tra ba ter este modo de pen sar.

Assim é que uma úni ca ser ra, ori en ta da em dis cor dân cia coma ten dên cia ge ral das ou tras, a de Ibi a pa ba, nos li mi tes oci den ta is do es -ta do fla ge la do, tra duz-se como ar gu men to va li o so no jus ti fi car o abran -da men to do re gi me no Pi a uí, que lhe de mo ra no oci den te.

Do mes mo modo que a do Ara ri pe, cor ren do em am pla cur va -tu ra de les te para oes te, ex pli ca a for ma ção da pa ra gem re man sa da quecen tra li za e para onde aflu em, mu i tas ve zes, os re ti ran tes dos Esta dospró xi mos.

Além dis to, vol ven do a en ca rar o as sun to sob o as pec to ge ral, o apa re ci men to das chu vas so bre os ser tões re que i ma dos, re a li za-se,sem pre, en tre duas da tas, fi xa das de há mu i to pela prá ti ca dos ser ta ne jos, de 12 de de zem bro a 19 de mar ço. Fora de tais li mi tes não há um exem -plo úni co de ex tin ção de se cas, que, se os atra ves sam, pro lon gam-se fa -tal men te por todo o de cor rer do ano, até que se re a bra ou tra vez aque laqua dra.

E sen do as sim e lem bran do-nos que é pre ci sa men te den trodes te in ter va lo que a lon ga fa i xa das cal mas equa to ri a is, no seu len toos ci lar em tor no do equa dor, pa i ra no zê ni te da que les Esta dos, le van doa bor da até as ex tre mas da Ba hia, não po de re mos con si de rá-la, para ocaso, com a fun ção de uma mon ta nha ide al que, cor ren do de les te a oes te e cor ri gin do mo men ta ne a men te las ti má vel dis po si ção oro grá fi ca, se an te -po nha à mon ção e pro vo que-lhe a pa ra da, a as cen são das cor ren tes e o

130 Eu cli des da Cunha

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res fri a men to sub se qüen te e a con den sa ção ime di a ta nos agua ce i ros di -lu vi a nos que tom bam, en tão, de sú bi to, so bre os ser tões?

Este des fi ar de con je tu ras tem o va lor úni co de in di car quan -tos fa to res re mo tos po dem in ci dir numa ques tão que du pla men te nosin te res sa, pelo seu tra ço su pe ri or, na ciên cia, e pelo seu sig ni fi ca do maisín ti mo no en vol ver o des ti no de ex ten so tra to do nos so país. Re mo ve,por isto, a se gun do pla no o in flu xo até hoje inu til men te agi ta do dos alí sios,e é de al gu ma sor te for ta le ci do pela in tu i ção do pró prio ser ta ne jo paraquem a per sis tên cia do nor des te – o ven to da seca, como o ba ti za ex -pres si va men te – equi va le à per ma nên cia de uma si tu a ção ir re me diá vel ecru de lís si ma.

Como quer que seja, o pe no so re gi me dos Es ta dos do Nor teestá em fun ção de agen tes de sor de na dos e fu gi ti vos sem leis ain da de fi ni -das – su je i tos às per tur ba ções lo ca is de ri va das da na tu re za da ter ra e are a ções mais am plas pro ma na das das dis po si ções ge o grá fi cas. Daí umcli ma ins tá vel e re vol to como as cor ren tes aé re as que o de se qui li bram eva ri am.

As qua dras be né fi cas che gam de im pro vi so.De po is de dois ou três anos, como de 1877-1879, em que a

in so la ção res cal da vi o len ta men te as cha pa das des nu das, a sua pró pria in -ten si da de ori gi na um re a gen te ine vi tá vel. De cai, afi nal, por toda a par te,de modo con si de rá vel, a pres são at mos fé ri ca e apru ma-se ma i or e maisbem de fi ni da a bar re i ra das cor ren tes as cen si o na is dos ares aque ci dosan te pos tas às que en tram pelo li to ral. E en tre cho ca das num de sen ca de ar de tu fões vi o len tos, con fun di das as lu fa das, al te i am-se, re ta lha das de ra i os, nu blan do em mi nu tos o fir ma men to todo, des fa zen do-se logo de po isem agua ce i ros for tes so bre os de ser tos re cres ta dos.

Então pa re ce tor nar-se vi sí vel o an te pa ro das co lu nas as cen den tesque de ter mi nam o fe nô me no na co li são for mi dá vel com o nor des te.

Se gun do nu me ro sos tes te mu nhos dos que o pre sen ci a ram –,as pri me i ras bá te gas des pe nha das da al tu ra não atin gem a ter ra; a meioca mi nho eva po ram-se en tre as ca ma das re fer ven tes, que so bem, e vol -vem, re pul sa das, às nu vens para ou tra vez con den sa das pre ci pi ta rem-sede novo e no va men te re flu í rem –, até to ca rem o solo que, a prin cí pio,não ume de cem, tor nan do ain da aos es pa ços, com ra pi dez ma i or, numava po ri za ção qua se, como se hou ves sem ca í do so bre cha pas in can des -

Ca nu dos e Ou tros Te mas 131

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cen tes –, para mais uma vez des ce rem, numa per mu ta rá pi da e con tí nua –,até que se for mem afi nal os pri me i ros fios de água de ri van do pe las pe -dras, as pri me i ras tor ren tes em des pe nhos pe las en cos tas, aflu in do emre ga tos já avo lu ma dos en tre as que bra das, con cen tran do-se tu mul tu a ri a -men te em ri be i ros en ca cho e i ra dos; aden san do-se es tes, em rios bar ren tos, tra ça dos ao aca so, à fe i ção dos de cli ves, em cu jas cor ren te zas pas save loz men te a ga lha da das ár vo res ar ran ca das – ro lan do to dos e ar re ben -tan do na mes ma onda, no mes mo caos de águas re vol tas e es cu ras.

Se ao as sal to su bi tâ neo su ce dem-se as chu vas re gu la res, trans -mu dam-se os ser tões, re vi ves cen do. Pas sam, po rém, não raro, num girocé le re, de ci clo ne.

A dre na gem rá pi da do ter re no e a eva po ra ção que se es ta be le -ce mais viva, tor nam-nos, ou tra vez, de so la dos e ári dos. Pe ne tran do-lhes a at mos fe ra ar den te, os ven tos du pli cam a ca pa ci da de hi gro mé tri ca, evão, dia a dia, ab sor ven do a umi da de exí gua da ter ra – re a brin do o ci cloin fle xí vel das se cas...

Estas, as som bra do ras e ine lu tá ve is, de ri van do na in ter ca dên -cia do rit mo que apon ta mos, su ce dem-se ina ces sí ve is até hoje a ex pli ca -ções ri go ro sas, como vi mos.

Po de rá a ati vi da de hu ma na, tão bem apa re lha da ago ra pe losre cur sos da in dús tria mo der na, se não des truí-las, ate nu ar-lhes os efe i tos?

III

Quem atra ves sa as pla ní ci es ele va das da Tu ní sia, en tre Beja eBi zer ta, à ou re la das pri me i ras es te pes mar gi na is do Sa a ra, en con tra ain dano de sem bo car dos va les, atra ves san do nor mal men te o cur so ca pri cho soe em tor ci co los dos ou eds, res tos de an ti gas cons tru ções ro ma nas.

Ve lhos mu ra da is der ru í dos, em bre cha dos de si lha res e blo cosro la dos, as so ber ba dos em par te pe los de tri tos de en xur ra das de vin te sé -cu los, aque les le ga dos dos gran des co lo ni za do res de la tam-lhes a umtem po a ati vi da de in te li gen te e o des le i xo bár ba ro dos ára bes que ossubs ti tu í ram.

132 Eu cli des da Cunha

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Os ro ma nos de po is da ta re fa da des tru i ção de Car ta go ti -nham pos to om bro à em pre sa in com pa ra vel men te mais sé ria de ven cera na tu re za an ta go nis ta.

E ali de i xa ram be lís si mo tra ço de sua ex pan são his tó ri ca.Per ce be ram com se gu ran ça o ví cio ori gi nal da re gião – es té ril

me nos pela es cas sez das chu vas que pela sua pés si ma dis tri bu i ção ads tri ta, aos re le vos to po grá fi cos. Cor ri gi ram-no.

O re gi me tor ren ci al que ali apa re ce, in ten sís si mo em cer tasqua dras, de ter mi nan do al tu ras plu vi o mé tri cas ma i o res que a de ou trospa í ses fér te is e exu be ran tes, era, como nos ser tões do Nor te do nos sopaís, além de inú til, ne fas to. Caía so bre a ter ra de sa bri ga da, de sar ra i gan doa ve ge ta ção mal pre sa a um solo en du re ci do; tur bi lho na va por al gu masse ma nas nos re ga tos trans bor dan tes ala gan do as pla ní ci es e de sa pa re cialogo de ri van do em es car pa men tos, pelo nor te e pelo le van te, no Me di -ter râ neo, de i xan do o solo, de po is de uma re vi ves cên cia tran si tó ria, maisdes nu do e es té ril.

E o de ser to ao sul pa re cia avan çar do mi nan do a pa ra gem toda,vin gan do-lhe os úl ti mos aci den tes, que não to lhi am a pro pul são do si mum.

Os ro ma nos fi ze ram-no re cu ar. Enca de a ram as tor ren tes; to -lhe ram as cor ren te zas for tes, e aque le re gi me bru tal, te naz men te com ba -ti do e blo que a do, ce deu, do mi na do in te i ra men te, numa rede de bar ra -gens.

Exclu í do o al vi tre de ir ri ga ções sis te má ti cas di fi cí li mas, con se -gui ram que as águas per ma ne ces sem mais lon go tem po so bre a ter ra. As ra vi nas re cor ta das em gân gli os es tag na dos di vi di ram-se em açu des abar -re i ra dos pe las mu ra lhas que tran ca vam os va les, e os ou eds, pa ran do, in -tu mes ci am-se en tre os mor ros, con ser van do lar go tem po as gran desmas sas lí qui das até en tão per di das, ou le van do-as, no trans bor da rem, em ca na is la te ra is aos lu ga res pró xi mos mais ba i xos, abrin do-se em san gra -dou ros e le va das, ir ra di an do por toda a par te e em be ben do o solo. Desor te que este sis te ma de re pre sas, além de ou tras van ta gens, cri a va umes bo ço de ir ri ga ção ge ral. Ade ma is, to das aque las su per fí ci es lí qui das,es par sas em gran de nú me ro e não re su mi das a um Qu i xa dá úni co – mo -nu men tal e inú til –, ex pos tas à eva po ra ção, aca ba ram re a gin do so bre ocli ma, me lho ran do-o.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 133

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Por fim a Tu ní sia, onde ha vi am apro a do os fi lhos pre di le tosdos fe ní ci os, mas que até en tão se re du zi ra a um li to ral po vo a do de tra -fi can tes ou nú mi das er ra di os, com suas ten das de te tos cur vos bran que -an do nos are a is como qui lhas en ca lha das – fez-se, trans fi gu ra da, a ter raclás si ca da agri cul tu ra an ti ga. Foi o ce le i ro da Itá lia; a for ne ce do ra, qua se ex clu si va, de tri go, dos ro ma nos. Os fran ce ses, hoje, co pi am-lhes emgran de par te os pro ces sos ado ta dos, sem ne ces si ta rem ale van tar mu ra -men tos mo nu men ta is e dis pen di o sos.

Re pre sam por es ta ca das en tre mu ros de pe dras se cas e ter ras,à ma ne i ra de pa lan cas, os ou eds mais apro pri a dos e ta lhan do-lhes peloalto das bor das, por toda a lon gu ra das ser ra ni as que os la de i am, con du -tos de ri van do para os ter re nos cir cun ja cen tes, por onde en tram, sub di vi -din do-se em re des ir ri ga do ras.

Des se modo as águas sel va gens es ta cam, re man sam-se, sem ad -qui rir a for ça acu mu la da das inun da ções vi o len tas, dis se mi nan do-se, afi -nal, es tas, amor te ci das em mi lha res de vál vu las, pe las de ri va ções cru za das.

E a his tó ri ca pa ra gem, li ber ta da apa tia do mus lim iner te,trans mu da-se vol ven do, de novo, à fi si o no mia an ti ga. A Fran ça sal va osres tos de opu len ta he ran ça da ci vi li za ção ro ma na, de po is des se de clí niode sé cu los.

∗ ∗ ∗Ora, quan do se tra çar, sem gran de pre ci são em bo ra, a car ta

hip so mé tri ca dos ser tões do Nor te, ver-se-á que eles se apro pri am auma ten ta ti va idên ti ca, de re sul ta dos igual men te se gu ros.

A idéia não é nova. Su ge riu-a de há mu i to, em me mo rá ve isses sões do Insti tu to Po li téc ni co do Rio, em 1877, o belo es pí ri to docon se lhe i ro Be a u re pa i re Ro han, tal vez su ges ti o na do pelo mes mo sí mi leque aci ma apon ta mos.

Das dis cus sões en tão tra va das, em que se en ter re i ra ram osme lho res ci en tis tas do tem po –, da só li da ex pe riên cia de Ca pa ne ma àmen ta li da de rara de André Re bou ças – foi a úni ca co i sa prá ti ca, fac tí vel,ver da de i ra men te útil que fi cou.

Ide a ram-se, na que la oca sião, lu xu o sas cis ter nas de al ve na ria;mi ría des de po ços ar te si a nos per fu ran do as cha pa das; de pó si tos co los sa is

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ou ar ma zéns des me di dos para as re ser vas acu mu la das nos dias de abas -tan ça: açu des vas tos fe i to Cás pi os ar ti fi ci a is; e, por fim, como paraca rac te ri zar bem o des ba ra te com ple to da en ge nha ria ante a enor mi da de do pro ble ma, es tu pen dos alam bi ques des ti na dos à des ti la ção das águasdo Atlân ti co...

O al vi tre mais mo des to, po rém, re sul ta do ime di a to de umen si na men to his tó ri co, cal ca do no mais ele men tar dos exem plos, su plan -ta-os. Por que é, além de prá ti co, evi den te men te o mais ló gi co.

Re al men te, en tre os agen tes de ter mi nan tes da seca se in ter ca -lam, de modo apre ciá vel, a es tru tu ra e a con for ma ção do solo. Qu al quer que seja a in ten si da de das ca u sas com ple xas e mais re mo tas que an te ri or -men te es bo ça mos, a in fluên cia da que les é ma ni fes ta des de que se con si -de re que a ca pa ci da de ab sor ven te e emis si va dos ter re nos ex pos tos, a in -cli na ção dos es tra tos que os re ta lham e a ru de za dos re le vos to po grá fi cos, agra vam, do mes mo pas so, a cres ta du ra dos es ti os e a de gra da ção in ten si -va das tor ren tes. De modo que, sa in do das in so la ções de mo ra das para asinun da ções su bi tâ ne as, a ter ra mal pro te gi da por uma ve ge ta ção de cí dua,que as pri me i ras re que i mam e as se gun das er ra di cam, de i xa-se, a pou co epou co, in va dir pelo re gi me fran ca men te de sér ti co.

As for tes tem pes ta des que apa gam o in cên dio sur do das se -cas, em que pese à re vi ves cên cia que acar re tam, pre pa ram de al gummodo a re gião para ma i o res vi cis si tu des. Des nu dam-na ru de men te, ex -pon do-a cada vez mais de sa bri ga da aos ve rões se guin tes; sul cam-nanuma mol du ra gem de con tor nos ás pe ros; gol pe i am-na e es te ri li zam-na;e ao de sa pa re ce rem de i xam-na mais bem apa re lha da à adus tão dos sóis.O re gi me de cor re num in ter mi tir de plo rá vel que lem bra um cír cu lo vi ci o so de ca tás tro fes.

Des se modo a me di da úni ca a ado tar-se deve con sis tir numcor re ti vo a es sas dis po si ções na tu ra is. Pon do de lado os fa to res de ter mi -nan tes do fla ge lo, ori un dos da fa ta li da de de leis as tro nô mi cas ou ge o -grá fi cas, ina ces sí ve is à in ter ven ção hu ma na, são, aque las, as úni cas pas sí -ve is de mo di fi ca ções apre ciá ve is.

O pro ces so que in di ca mos em bre ve re cor da ção his tó ri ca, pelasua sim pli ci da de mes mo, dis pen sa inú te is por me no res téc ni cos. A Fran ça co -pia-o hoje, sem va ri an tes, re vi ven do o tra ça do de cons tru ções ve lhís si mas.

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Abar re i ra dos os va les, in te li gen te men te es co lhi dos, em pon tospou co in ter va la dos, por toda a ex ten são do ter ri tó rio ser ta ne jo, três con se -qüên ci as ine vi tá ve is de cor rem: ate nua-se de modo con si de rá vel a dre na gem vi o len ta do solo com as suas con se qüên ci as las ti má ve is; cri am-se-lhes à ou -re la, ins cri tas na rede das de ri va ções, fe cun das áre as de cul tu ra; e for -ma-se uma si tu a ção de equi lí brio para a ins ta bi li da de do cli ma, por queos nu me ro sos e pe que nos açu des, uni for me men te dis tri bu í dos e cons ti -tu in do di la ta da su per fí cie de eva po ra ção, te rão na tu ral men te a in fluên cia mo de ra do ra de um mar in te ri or, de im por tân cia ex tre ma.

Não há al vi trar-se ou tro re cur so.As cis ter nas, po ços ar te si a nos e ra ros ou lon ga men te es pa ça -

dos la gos, como o de Qu i xa dá, têm um va lor lo cal ina pre ciá vel.Vi sam, de um modo ge ral, ate nu ar a úl ti ma das con se qüên ci as

da seca – a sede; e o que há a com ba ter e de be lar no Ce a rá e Esta dosli mí tro fes29 é o de ser to.

O mar tí rio do ho mem, ali, é o re fle xo de tor tu ra ma i or, maisam pla, abran gen do a eco no mia ge ral da vida.

Nas ce do mar tí rio se cu lar da ter ra...

136 Eu cli des da Cunha

29 N’Os Ser tões – pág. 61 da 13ª edi ção – lê-se: “e o que há a de be lar nos ser tões doNor te...” O ar ti go, adap tan do-se à con tin gên cia, res trin gia ao “Ce a rá e Esta dos li mí tro fes”. N. do R.

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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Re la tó rio so bre as ilhasdos Bú zi os e da Vi tó ria30

8 de ju nho de 1902Trans cri to de O Esta do de S. Pa u lo,

São Pa u lo – 18-4-1954

Con si de ra ções pre li mi na resESTA NOTÍCIA, re sul ta do ime di a to de um re co nhe ci men to li ge i ro nas ilhas dos Bú zi os e da Vi tó ria, in di ca-lhes os ca rac te res es sen -ci a is vi san do prin ci pal men te os que per mi tem, numa de las, a lo ca li za ção de uma co lô nia pe nal.

De acor do com as ins tru ções ver ba is que me fo ram da daspelo Sr. Dr. Car do so de Alme i da, che fe de Po lí cia do Esta do de São Pa u lo,exa mi nei-as so bre tu do quan to aos vá ri os as pec tos fí si cos pre pon de ran tes, li mi tan do-me quan to aos to po grá fi cos às ope ra ções ex pe di tas ca pa zes

30 O tex to aqui apre sen ta do está con for me a pu bli ca ção da Impren sa Ofi ci al doEsta do de São Pa u lo – 1903, por nós com pul sa da no De par ta men to do Arqui vode São Pa u lo. Tra ta-se do Re la tó rio Apre sen ta do ao Se cre tá rio do Inte ri or e Jus ti ça peloche fe de Po lí cia de São Pa u lo, José Car do so de Alme i da – 135 pá gi nas –, re fe ren te aoexer cí cio de 1902, no qual se en con tra, a par tir da pá gi na 117, este tra ba lho, sob aepí gra fe: “Co lô nia Pe nal – Re la tó rio Apre sen ta do pelo Dr. Eu cli des da Cu nha”.Há, no fi nal, es bo ços e ma pas as si na dos pelo au tor. N. do R.

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de for ne cer ele men tos ace i tá ve is para uma apre ci a ção apro xi ma da dosdi ver sos con tor nos, re le vos pre do mi nan tes e di men sões prin ci pa is.

Des te modo as plan tas ane xas são ape nas um es bo ço sem afi xi dez de li nhas e a se gu ran ça ma te má ti ca de um tra ba lho pla ni mé tri como de la do pe los pro ces sos nor ma is. Como adi an te de mons tra rei, ain daquan do ul tra pas san do aque las ins tru ções eu ten tas se um le van ta men tore gu lar, este só se ria exe qüí vel num es pa ço de tem po so bre ma ne i ra lon go, im pli can do a pres te za es sen ci al dos re co nhe ci men tos.

Assim me li mi tei, quan to às po si ções ge o grá fi cas da que lasilhas, e con for ma ção par ti cu lar, a uti li zar-me dos da dos que se me an to -lha ram sem gran de dis pên dio de tem po. Ado tei para as pri me i ras asco or de na das aver ba das nas car tas exis ten tes, por que as li ge i ras dis cre -pân ci as de al guns se gun dos, que aca so exis tam, cer to não se re ve la ri amem uma ou duas no i tes de ob ser va ção nas ope ra ções ex pe di tas do sex -tan te. E quan to à se gun da, di an te da im pos si bi li da de com ple ta de pra ti car o mais sim ples ca mi nha men to, fui obri ga do, como se verá mais lon ge, aes te ar-me no mais an ti go e sim ples dos re cur sos in di ca dos para ca sos idên -ti cos – o dos le van ta men tos a vela, con sis tin do em tor ne ar, em ca noa, ater ra, ava li an do as dis tân ci as a re ló gio e ori en tan do as li nhas cos te i raspe los azi mu tes e de fle xões do trân si to.

Este meio, po rém, além da ins ta bi li da de dos ele men tos quefor ne ce, tem a agra van te de exa ge rar qua se sem pre to das as li nhas vi vasdos re le vos, am pli an do-lhes os va lo res an gu la res re la ti vos com o ol vi doqua se sem pre ine vi tá vel dos aci den tes se cun dá ri os. Embo ra sob o pon tode vis ta hi dro grá fi co ele te nha o apo io fran co e in sis ten te men te pro cla -ma do de um geó gra fo ilus tre, o Almi ran te E. Mou chez – por que é o queme lhor re gis tra a im pres são ge ral de quem, em ple no mar, con tem pla ater ra –, está lon ge de bas tar às exi gên ci as vul ga res re la ti vas às gran de zasli ne a res ho ri zon ta is ou ver ti ca is e áre as dos ter re nos de se nha dos.

Quer isto di zer que este re co nhe ci men to, fe i to em bo ra comas ma i o res ca u te las, so fre rá ine vi tá ve is cor re ções caso se re a li ze ul te ri or -men te, ali, qual quer ou tra ope ra ção to po grá fi ca.

E esta é ne ces sá ria.Aque las ilhas, ape sar de abe i ra das do li to ral, e apa re cen do,

ní ti das, di an te dos na ve gan tes como o re ve lam os de se nhos do qua dronº 1 –, são pou co co nhe ci das.

138 Eu cli des da Cunha

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Não têm exis tên cia his tó ri ca e não fi gu ram em ne nhu ma nar -ra ti va de epi só di os de que foi, en tre tan to, no tá vel te a tro o vas to seg men -to de cos ta que fron te i am.

Ao atin gi-las os ma re an tes ti nham logo adi an te, para o oci -den te ou para o sul, na en se a da aber ta de Ca ra gua ta tu ba, no abri go se -gu ro de Uba tu ba, ou na cur va tu ra se ten tri o nal in ten sa men te ar ti cu la dada ilha de São Se bas tião, os atra ti vos de uma ter ra ma i or e de fun de a -dou ros mais aces sí ve is; e pas sa vam sem que nada os le vas se aos doisilho tes pou co dis tan tes cu jos con tor nos re vol tos, de pron to aper ce bi dos na al vu ra dos cor dões de ro chas des man te la das que os de bru am, lhespre nun ci a vam pe ri go sos par céis e de sem bar que pe no sís si mo.

Ape sar dis to fo ram no ta dos des de os pri me i ros anos do sé cu lo do des co bri men to e ti ve ram os no mes que ain da per sis tem e se aver bamno Tra ta do Des cri ti vo do Bra sil (1587), de Ga bri el So a res.

Tais de no mi na ções, po rém, abran gem-nos in dis tin ta men te,sen do tro ca das con so an te o ca pri cho dos car tó gra fos, de sor te que ain dahoje não há aju i zar-se acer ca de suas apli ca ções re a is, nem mes mo ante a ad mi rá vel car ta ma rí ti ma de Mou chez (1869), onde a va ci la ção se põe de ma ni fes to no de no mi nar a ilha mais re mo ta e se ten tri o nal de Bú zi os(anct. Vi tó ria) e a mais pró xi ma de Vi tó ria (anct. Bú zi os).

E se con si de rar mos que o al vi tre do no tá vel hi dró gra fo se con -tra põe ao dos ha bi tan tes que cha mam, hoje, Vi tó ria à mais se ten tri o nal eBú zi os à ou tra, ve mos que não há cri té rio al gum para a fi xa ção de fi ni ti -va dos ter mos.

Te mos por es cu sa do ci tar sem-nú me ro de car tas es pe lhan doidên ti ca am bi güi da de.

Este fato de la ta por si só o gran de ol vi do em que têm ja zi doaque les dois frag men tos da nos sa ter ra.

A pe que na po pu la ção de pou cas cen te nas de al mas, que exis te na da Vi tó ria (ado te mos este nome para a mais pró xi ma, de acor do com E. Mou chez), se bem que sob a ju ris di ção da co mar ca de Vila Bela, estáde todo se gre ga da do res to do país.

Vive sob o pa tri ar ca do de um oc to ge ná rio, Jo a quim de Oli ve i ra,que, gra ças a no tá vel as cen den te mo ral, en fe i xan do to dos os po de res,lhe re gu la to dos os atos, dos que en ten dem com a or ga ni za ção da fa mí lia

Ca nu dos e Ou tros Te mas 139

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aos que vi sam a ma nu ten ção da or dem e aos que ori en tam uma ati vi da dere su mi da em pe que nas cul tu ras de ce re a is e à fa i na pe sa da das pes ca ri asno alto do mar.

Este úl ti mo meio de vida é o mais ge ne ra li za do.Quem ro de ia a ilha da Vi tó ria ob ser va, de es pa ço a es pa ço,

ir re gu lar men te in ter va la das, gros se i ras ar ma ções de paus ro li ços en tre -cru za dos ou amar ra dos com ci pós e cor das, ins tá ve is à pon ta dos fra -gue dos, de onde des cem em pla nos in cli na dos for tes para as águas. Noalto um al pen dre – qua tro pés di re i tos e uma co ber tu ra de sapê – com -ple ta aque le dis po si ti vo in dis pen sá vel num li to ral sem pra i as, onde asem bar ca ções mais li ge i ras não po dem per ma ne cer en cos ta das no ma ru lhodas va gas so bre as pe dras. Por ali des cem ou so bem, di a ri a men te, ar ras -tan do-as a pul so, os pes ca do res que não raro ao tor na rem das lon gas ex -cur sões, no fi nal de um dia in te i ro de fa di gas, têm ain da que re a li zar pro dí -gi os de agi li da de e de for ça, para, sal tan do em ple na ar re ben ta ção dason das, sal va rem a em bar ca ção, o que con se guem sem pre.

São na tu ral men te ho mens de com ple i ção ro bus ta, vi go ro sos eáge is, afe i ço a dos aos pe ri gos que afron tam to dos os dias, por que, ca no e i ros emé ri tos, se dis tan ci am às ve zes para su es te até per de rem de vis ta a ter ra,ou atra ves sam cons tan te men te o lar go bra ço de mar que os se pa ra deSão Se bas tião, prin ci pal mer ca do para onde le vam, sal ga dos, os pro du tosde suas pes ca ri as.

O mar tem-lhes sido uma es co la de for ça e de co ra gem, sen dona tu ral que a ele de vam as úni cas tra di ções lo ca is que de cer to modo sepren dem a uma fase da nos sa His tó ria.

De fato –, quan do pelo bill de Aber de en (1845), os cru ze i rosin gle ses exer ci ta ram a re pres são do trá fi co afri ca no até den tro de nos sas águas ter ri to ri a is, as ilhas da Vi tó ria e dos Bú zi os fo ram as es ta ções mais avan ça das dos vi gi as que ilu di am ou bur la vam aque la fis ca li za ção se ve ra. Gra ças a si na is adre de com bi na dos, de fo gue i ras ace sas ao lon go doscos tões vol vi dos para o sul, ou de ban de i ras de di ver sas co res le van ta das no mais alto dos mor ros, os na vi os ne gre i ros, ao lon ge, apro a vam con fi an tespara a ter ra ou ama ra vam cé le res fur tan do-se aos que os ca ça vam.

Toda a ati vi da de na que les pon tos se re su mia nas aven tu raspe ri go sas do con tra ban do de es cra vos.

140 Eu cli des da Cunha

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Dali ar ran ca vam em ve lo zes ca no as de voga os au xi li a res dostra fi can tes, indo co lher em ple no mar os ne gros ma ni e ta dos que con du -zi am para os re ces sos do Som brio, ao fun do da baía dos Cas te lha nos, epara o li to ral, de pre fe rên cia na fa i xa vin ca da de pe que nas an gras que sees ti ra de Mo co o ca às ter ras que de fron tam o Ba ir ro Alto.

Des tas em pre sas ar ris ca das, nem sem pre co ro a das de êxi to,re sul tam os úni cos epi só di os da His tó ria, de todo des ti tu í da de in te res se,da que las ilhas.

Elas per sis tem no mes mo es ta do ru di men tar.Na úni ca re al men te po vo a da, a da Vi tó ria, en tre 358 pes so as,

so men te duas sa bem ler e es cre ver. Um pro fes sor que ali es te ve, há tem -pos, pou co se de mo rou, aban do nan do-a como quem foge a um de gre do ina tu rá vel.

Por ou tro lado ne nhum sa cer do te hou ve ain da bas tan te ab ne -ga do para pro cu rar a po pu la ção es que ci da, que é, di ga mo-lo de pas sa -gem, fer vo ro sa men te cris tã.

Des te modo aque les lu ga res, tão pró xi mos do li to ral, es tãocomo que aban do na dos sem te rem de fi ni dos os pró pri os no mes –como se es ti ves sem a des mar ca das dis tân ci as, em ple no Atlân ti co...

Me re cem, con tu do, al gu ma aten ção. Pos to que di mi nu tís si ma a fac ção de nos sa gen te que por ali

mou re ja numa ati vi da de pri mi ti va, enér gi ca e pe no sa, faz jus a me lho resdes ti nos. E uma es co la – mes mo mo des tís si ma – tra du zi ria a mais belain ter ven ção dos po de res cons ti tu í dos, no sen ti do de in cor po rar a umapá tria, que não co nhe cem, aque les des pro te gi dos pa trí ci os.

A Ilha dos Bú zi os – Esbo ço To po grá fi co (23º 44’ 15” lat. S. e 1º 51’ 30” long. O. do R. Ja ne i ro)

A plan ta ane xa (nº 2), re pi ta mos, não foi or ga ni za da se gun doqual quer dos pro ces sos re gu la res. Ten tei a prin cí pio um ca mi nha men toex pe di to, con tor ne an te, com o te o do li to de Ca se la, mas não con se gui re a -li zar a ter ce i ra vi sa da. Impos si bi li tou-a o apa re lho li to ral al ta men teper tur ba do de gran des acer vos de blo cos, já acu mu la dos, já de sor de na -da men te es par sos e de sa pa re cen do ape nas nos tre chos em que a ro chades ce em pa re dões a pru mo, tor nan do ine xe qüí vel a tra ves sia.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 141

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Ve ri fi quei de po is tam bém ir re a li zá vel o tra ça do de uma basecen tral e do mi nan te, ten do a con di ção es sen ci al da vi si bi li da de dospon tos prin ci pa is do con tor no, fa cul tan do uma tri an gu la da ri go ro sa. Oca rá ter or to grá fi co da ilha im po ria, em tal caso, a es co lha de mu i tas ba -ses se cun dá ri as para o aper ce bi men to de to dos os vér ti ces, e es tas exi gi ri am de mo ra das aber tu ras de pi a das, etc.

Idên ti cos in con ve ni en tes acom pa nha ri am os pro ces sos por ir -ra di a ção e o de or de na das a uma li nha me di a na de sen vol vi da se gun do adi men são ma i or do ter re no.

Re co nhe ci dos tais em pe ci lhos, ado tei para logo o re cur so úni co e mais pró prio a for ne cer in di ca ções ra zoá ve is: ro de ar a ilha numa ca noade voga, de mar cha tan to quan to pos sí vel uni for me, que me per mi tis seapre ci ar as dis tân ci as pelo re ló gio, à me di da que iam sen do de ter mi na das,com au xí lio da bús so la, as de fle xões das li nhas prin ci pa is da cos ta.

Assim pro ce di: Par tin do da es ta ção A, no meio de pe que nís si mo es tre i to que

se pa ra a ilha prin ci pal da do Pa re dão, e ori en ta do pelo azi mu te pon to B,na Pon ta do Ora tó rio, se gui para O e em or dem su ces si va para SO, S,SE, NE e N, tor nan do ao pon to de par ti da após 1 hora e 38 mi nu tos de mar cha inin ter rup ta.

Des te modo de li ne ei o es bo ço ci ta do, na es ca la de 1:20.000.Su fi ci en te para que se for me idéia per fe i ta so bre a con for ma ção ge raldo ter re no, ca re ce ele de ri gor quan to aos ele men tos que sir vam paraapre ci ar31 as vá ri as di men sões.

A mar cha da ca noa não foi uni for me. Num per cur so en vol -ven te, vol vi da a proa para to dos os ân gu los dos qua dran tes, sal te a -ram-na lu fa das di fe ren tes e a mo vi men ta ção va riá vel das va gas.

Par tin do com o mar re man sa do e chão, à me di da que nosavan ta já va mos na di re ção do sul, avo lu ma vam-se as on das, so bre tu do ao lon go do de sa bri ga do cos tão de su es te, onde se tor nou so bre mo do mo -ro sa a tra ves sia.

142 Eu cli des da Cunha

31 A pu bli ca ção ofi ci al re gis tra: para se apre ci ar as vá ri as di men sões. N. do R.

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Assim, ao or ga ni zar a plan ta de fi ni ti va, tive de aten der a es tascir cuns tân ci as fu gi ti vas e ins tá ve is, ads tri tas a to dos os efe i tos da apre ci a ção pes so al e sem um só co e fi ci en te prá ti co e fixo que a for ta le ces se.

Ape sar dis to, como pro cu rei equi pa rar as gran de zas ob ti dasnes te re co nhe ci men to com as que ad qui ri de po is, cor tan do a ilha, porter ra, em di ver sos sen ti dos, acre di to que os er ros ine vi tá ve is co me ti doste nham sido em gran de par te ate nu a dos.

De qual quer modo fi ca ram de fi ni das as li nhas es sen ci a is dascos tas.

Con si de ran do-as, vê-se que a ilha prin ci pal se es ten de jus ta -pos ta ao tra ço do me ri di a no, com um com pri men to to tal de 2.180 me tros.Re cor tam-na pe que nas en se a das, duas das qua is ma i o res e mais re en -tran tes, a das Fre che i ras e a do Abri go para os ven tos do sul, lhe dão afor ma ge ral de um 8 in cor re to, re par tin do-a em duas par tes de si gua is, uma,a do nor te, com 800 me tros de eixo ma i or, e a ou tra, do sul, com 1.880con ta dos a par tir do cen tro do istmo de Fre che i ras.

Ora, se lhes der mos as lar gu ras mé di as, res pec ti vas, de 620 e1.300 me tros, con si de ra das as fi gu ras como im per fe i tos re tân gu los, oque bas ta para um cál cu lo apro xi ma do, ve ri fi ca re mos para a pri me i rauma área de 496.000 m2, e para a se gun da a de 1.790.000 m2, so man doo to tal de 2.290.000 m2, equi va len tes, em me di das agrá ri as, a 229 hec ta res ou, em nú me ros re don dos, 95 al que i res.

Tal é a su per fí cie mé dia a ado tar-se, con vin do, po rém, ob ser -var que os ha bi tan tes do lu gar a re pu tam ain da es cas sa e são acor desnuma ava li a ção ma i or. Fir ma mo-nos, en tre tan to, nes tes nú me ros.

A pe que na ilha do Pa re dão, cuja si tu a ção real, bem de fi ni dana plan ta, é di ver sa da que lhe dá a car ta de Mou chez, tem a for ma maisou me nos tri an gu lar, per mi tin do ava li ar-se-lhe me lhor a su per fí cie decer ca de 90.000 me tros qua dra dos, cor res pon den tes a pou co me nos de4 al que i res.

Con clu í mos, en tão, pos to de lado o ilho te das Ca bras, de solo ará vel, e in sig ni fi can te, que se pode dar ao con jun to de ter ras a área to tal de 99 al que i res ou, ar re don dan do o nú me ro, 100 al que i res de ter rasapro ve i tá ve is – con vin do adi tar que este cál cu lo, se gun do o pre ce i tu a do, é cal cu la do na pro je ção ho ri zon tal das ter ras, o que re dun da na re du ção

Ca nu dos e Ou tros Te mas 143

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das di men sões efe ti vas so bre tu do em ter re nos, como aque les, bas tan teaci den ta dos.

Ve ri fi ca-se este ca rá ter ao sim ples enun ci a do das suas cos taspro e mi nen tes.

De fato, con si de ran do-se a por ção se ten tri o nal da ilha dosBú zi os, pro pri a men te dita, tem-se logo à dis tân cia de uns tre zen tos me tros, num li ge i ro pa ta mar do mor ro, a pri me i ra cota de 110 me tros. A as cen são,so bre tu do para quem en tra pela face que de fron ta a ilha do Pa re dão, épe no sa, de ri van do por um de cli ve de 20º a 25º. Ape sar dis so é nes ta ver -ten te, li vre das ven ta ni as do su es te e su do es te, que se en con tram emma i or nú me ro as vi ven das que a plan ta in di ca, cir cun da das de pe que nascul tu ras, es tan do a prin ci pal de las no pon to de fi ni dor da al tu ra in di ca da. Aí se ar que ia um li ge i ro so cal co, le ve men te côn ca vo, cen tra li za do porum ba nha do de águas pe re nes e re bal sa das.

Se guin do-se pela li nha fir me do sul, o ter re no sobe até atin gir a al ti tu de de 165 me tros, da qual des cam ba logo para o istmo dasFre che i ras, que se alon ga pelo mes mo rumo, des ca in do em pen do resbre ves para o po en te e para o le van te, em for ma de sela, da qual o pon -to mais alto al can ça ape nas 24 me tros.

Gal ga-se en tão o seg men to me ri di o nal e ma i or da ilha, pros -se guin do na mes ma di re ção, até ao seu pon to cul mi nan te, onde seob ser va a al tu ra má xi ma de 188 me tros.∗

Estes nú me ros for ne ci dos pelo ane rói de co mum, de po is dascor re ções de tem pe ra tu ra, re ve lam a fe i ção mon ta nho sa da ilha, ante asua área re la ti va men te es tre i ta.

Ape sar dis to, ex clu í dos a ver ten te do su es te, par te da do nor te e pe que nos es po rões que vão des ca in do para as pon tas de les te e su do es te,o ter re no em ge ral per mi te su bi das de sa fo ga das e fá ce is pe las ram paspou co ín gre mes que de ri vam para as pe que nas en se a das ex pres sas node se nho.

A um sim ples lan ce de vis ta nota-se que es tas úl ti mas seabrem da ma ne i ra mais pró pria a tor ná-las efi ca zes abri gos ante osven tos re i nan tes.

144 Eu cli des da Cunha

∗ Um fa rol ali es ta ci o na do, em po si ção ad mi rá vel, te ria um al can ce ge o mé tri co, qua seigual ao ilu mi na ti vo, de 28 mi lhas, pela fór mu la em pí ri ca D = 2 γ H. N. do A.

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De fato, quem se gue pelo rumo do re co nhe ci men to fe i to, por mar, de pa ra logo, trans pos ta a pe que na ex pan são que se lan ça parano ro es te, ex tre man do um dos la dos do pe que no ca nal, o Saco da Agua -da, ar que a do para o sul e fran ca men te var ri do pe los ven tos alí si os de su -es te, mas pro te gi do dos que tam bém com mu i ta re gu la ri da de so pram de nor des te. A sua con ca vi da de re du zi da, po rém, pre ju di ca da ain da e pelore vol to do apa re lho li to ral, tor na-a um im per fe i to pon to de de sem bar -que.

Mas es tes in con ve ni en tes se ate nu am logo adi an te. Encon -tra-se a re en trân cia ma i or e mais pra ti cá vel, das Fre che i ras, ofe re cen dome lhor ga ran tia con tra o su es te e o nor des te, ain da que este úl ti mo, ca -na li za do pela se la da fron te i ra à en se a da, deve agi tá-la for te men te des deque ad qui ra gran de vi o lên cia.

Das Fre che i ras em di an te, pas sa da a Pon ta do Par cel e in fle -tin do para su es te e nor des te até a Pon ta da Laje Pre ta, o cos tão é todode sa bri ga do. As va gas in ves tem-no de cha pa, per pen di cu lar men te, ba ti -das pe los ven tos pon te i ros. Não há um úni co pon to de de sem bar queem todo aque le tre cho, do Par cel à Pon ta de Les te, pas san do pela LajePre ta.

Con tor ne a da a Pon ta de Les te, po rém, en tra-se no me lhorabri go da ilha. A cos ta en cur va-se vi va men te para SO e, tor cen do su ces si -va men te para ONO, NO, NNE e NE, até a Pon ta do Meio for ma uman co ra dou ro que con tra põe às tem pes ta des pe ri go sas dos qua dran tes dosul toda a mas sa do mi nan te da mon ta nha.

Não tem, além dis so, um úni co es co lho ou re ci fe en co ber to; é pra ti cá vel em to dos os sen ti dos e tem pro fun di da de para na vi os de ca la -do re gu lar, atin gin do, mes mo per to da ter ra, as rá pi das son da gens quere a li za mos, a 11, 12 e 15 me tros.

De i xa da esta baía, vol ve-se em che io para o nor te até à Pon tado Ora tó rio, além da qual a bor da me ri di o nal da ilha do Pa re dão com -ple ta um novo fun de a dou ro, igual men te abri ga do, onde lan çou a ân co ra, numa pro fun di da de de 16 me tros, o re bo ca dor Ala mi ro que até lá noscon du ziu.

É um abri go per fe i ta men te se gu ro, mal gra do o in con ve ni en te, re ve la do pelo es bo ço que aqui tra ça mos, in di can do o es tre i to que lhede mo ra a oes te e por onde nos dias de mu i to mar po dem avan çar as va -

Ca nu dos e Ou tros Te mas 145

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gas im pe tu o sa men te. A pe que na lar gu ra dele tor na fá cil e pou co dis pen -di o sa a sua obs tru ção, para o que já exis tem, a um lado, nos gran desmo nó li tos que o mar gi nam, os ma te ri a is in dis pen sá ve is.

Des sas bre ves con si de ra ções con clui-se a exis tên cia de trêsan co ra dou ros re gu la res, por cer to ine fi ca zes ante os gran des tem po ra is,mas bas tan te para as con di ções nor ma is da na ve ga ção, so bre tu do após a cons tru ção de pe que nos cais de de sem bar que, per mi tin do que en cos tem fran ca men te as em bar ca ções, ca lan do 9 a 12 pés.

E con si de ran do ain da o úl ti mo fun de a dou ro, tra ça do, ma i or,ou tro es bo ço, da sua face sul, onde se vêem em li nhas pon tu a das as sec -ções que le van ta mos, ve ri fi ca-se pe las son da gens in di ca das, de que re sul -ta ram os cor tes se guin tes, que aque las cons tru ções pou co avan ça rão nas águas para o al can ce das pro fun di da des con ve ni en tes.

Con si de ra ções Ge ra is so bre a For ma ção da Ilha – Na tu re za do Solo, Flo ra, etc.

Quem se gue o iti ne rá rio do re co nhe ci men to an te ri or, con -tem pla no tá ve is efe i tos da for ça ero si va do mar, exer ci ta da por meio das ma rés e dos ven tos, so bre uma cos ta rí gi da, de pe dra.

Ora ar re don da dos com o fa ci es com ple to de enor mes blo coser rá ti cos, ora du ra men te es qui na dos ou apon to an do vi va men te as al tu -ras, os fra gue dos, al guns de mu i tos me tros cú bi cos de vo lu me, se agru -pam amon to a dos, em de sor dem, or lan do in te i ra men te as ilhas, sal vo osra ros pon tos em que se apru mam as fa la i ses gra ní ti cas, ver ti ca is e ex tra -or di na ri a men te al tas.

Não há um pal mo de pra ia.O apa re lho li to ral per tur ba dís si mo re cor da um des man te la -

men to de mu ra lhas. Não há des co brir-se uma úni ca “ita pe va” des cen do,in cli na da, para as águas, de modo a amor te cer a vi o lên cia das va gas. Afor ça viva des tas de sen ca de ia-se, in tac ta, ba ten do em che io na base doscos tões. E mes mo nos tre chos em que os nú cle os mais re sis ten tes da ro -cha ori gi na ram pe que nos ca bos ou pon tas, como no Par cel, na Laje Pre taou no Ora tó rio, os pe ne dos se aglo me ram re tra tan do a mes ma de gra da -ção po de ro sa e con tí nua. Ape nas em qua se todo o cor rer do cos tão desu es te a pe dra se ale van ta em fa la i se, in te i ri ça e lar ga men te des do bra da,face vol vi da para os ven tos im pe tu o sos do sul. Mas mes mo nes ta ban da

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no tam-se, in ter va la das e de nun ci an do os pon tos fra cos ata ca dos, lar gasfrin chas, al gu mas já em for ma de lon gas ga le ri as, onde aca cho am as on -das, re pro fun dan do-as e so la pan do-as, agra van do to dos os efe i tos de uma de com po si ção me câ ni ca em gran de es ca la.

Uma des tas fur nas, que pelo se es ca var à fe i ção de um ni chodeu o nome à pon ta do Ora tó rio, de la ta ain da na agu lha que lhe per ma ne -ce de pé, à en tra da, o de sa ba men to, por ven tu ra re cen te, da abó ba da queali se ale van ta va.

O tra ba lho de ero são do mar, como o in di cam es tas ob ser va -ções, pro gri de len ta men te acom pa nhan do as li nhas de me nor re sis tên cia do ter re no.

Con si de ran do-se en tre tan to, a plan ta ane xa, pa re ce que ele seexer ci ta in de pen den te da es tru tu ra do solo.

De fato, os in cor re tos ar cos de cír cu lo que ali se vêem abremas con ca vi da des pre ci sa men te para os pon tos do ho ri zon te de onde che -gam os ven tos mais cons tan tes e for tes, e as tor men tas, como se fos sem fe i tu ra ex clu si va des tes ele men tos.

Além dis to, o cos tão vá ri as ve zes ci ta do, de su es te, com sermais vi va men te tra ba lha do pe las águas e des do brar-se sem re en trân ci as,ex tre man do-se mes mo em li ge i ra pon ta vol vi da para o OSO, não in va li dae an tes re for ça a con je tu ra, por que esta pro tu be rân cia, lan ça da se gun do are sul tan te das ra ja das mais vi o len tas de SO e SE, in di ca por si mes ma ore sul ta do de es for ços que ali in ci dem em ân gu lo reto, de sor te que asde gra da ções ope ra das de um lado se ate nu am pela si mul ta ne i da de dasque se re a li zam do ou tro.

De qual quer modo o que se ve ri fi ca, de modo ine gá vel, é aação de mo li do ra do mar, bas tan te va ga ro sa, en tre tan to, para que se ga -ran ta a exis tên cia da que la ter ra por mu i tos sé cu los ain da.

Dela se co lhe, além dis so, o prin ci pal ele men to para afir -mar-se que a ilha dos Bú zi os é, no ri go ris mo téc ni co do ter mo, uma“ilha de ero são”, um pro du to das cos tas de vas ta das pelo mar, um frag -men to des ta ca do, em re mo tís si mas ida des, do con ti nen te que lhe de mo rafron te i ro.

Re al men te to dos os ou tros da dos que con se gui mos ob ternuma bre ve ex cur são for ta le cem esse con ce i to.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 147

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Há, por exem plo, a na tu re za das ro chas que for mam a os sa -tu ra da ilha. Gna is se-gra ní ti cas como as da Man ti que i ra e da ser ra doMar, as so ci am-se-lhes ou tra cuja exis tên cia é, para o nos so caso, ex tre -ma men te ex pres si va.

Con sis tem nas que en con trei com os ca rac te res fri san tes dene fe li nas gra ní ti cas (fo i a í to) e fo nó li to. Ora, esta ocor rên cia idên ti ca àve ri fi ca da pelo Pro fes sor Orvil le Derby em vá ri os pon tos do con ti nen -te, de Cabo Frio a Igua pe, pas san do pelo Tin gi rá, Ita ti a ia, ser ra da Bo -ca i na, Po ços de Cal das, etc., afi gu ra-se-nos de im por tân cia con si de rá -vel. Esta be le ce en tre os so los da ilha e do con ti nen te uma uni for mi da -de es tru tu ral só jus ti fi cá vel pela an ti ga ex pan são da que les an tes que odes bas tas sem as va gas, de i xan do-o pro fun da men te re ta lha do em todaaque la cos ta.

Por ou tro lado a car ta hi dro grá fi ca de Mou chez in di ca ou trosele men tos. Re al men te, uma reta qual quer tra ça da da ilha dos Bú zi ospara qual quer pon to do li to ral vai, numa con ti nu i da de per fe i ta, à me di da que se alon ga, pas san do so bre pro fun di da des cada vez me no res, re ve -lan do um de cli ve per fe i to, sem as do bras sú bi tas das gran des pro fun du -ras em tor no das ilhas oceâ ni cas, re pon tan do in de pen den tes das ter rasque avi zi nham.

∗ ∗ ∗

Mas quan do es tas con si de ra ções não bas tas sem, uma sim plesex cur são pelo in te ri or da ilha con fir ma ria o con ce i to emi ti do.

Aí se nota logo o fato no tá vel, e sem igual em qual quer ou tropaís, da es ca la exa ge ra da em que se re a li za, sob a ação da at mos fe ra, ade com po si ção das ro chas me ta mór fi cas no Bra sil – pe las ações com bi -na das das chu vas vi o len tas, das al ter na ti vas de ca lor e umi da de e re a çãoquí mi ca das águas car re ga das de car bo na tos al ca li nos –, en ru gan do ees tri an do as pe dras mais du ras, ra chan do-as de meio a meio, se gun doas li nhas na tu ra is das li tó cla ses, e, ao cabo, re du zin do-as à lama te nu ís si ma do ca u lim ou ar gi las vul ga res co lo ri das pelo óxi do de fer ro das ma la ca -che tas de com pos tas.

Como nos de ma is lu ga res do con ti nen te em que o fato sepa ten te ia, vêem-se ali es pa lha dos pe los pen do res ou pelo teso dosmor ros, raro acu mu la dos, blo cos gra ní ti cos de gran des di men sões às

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ve zes, cuja ori gem está na es tru tu ra con cên tri ca da mas sa, fe i ta de nú -cle os es fé ri cos ou len ti cu la res, com pac tos e mais re sis ten tes aos agen -tes ex te ri o res que as ca ma das vi zi nhas en vol ven tes mais fa cil men tedes tru í das. Estes blo cos dis per sos, po rém, não são em có pia tal queim pri mam o ca rá ter pe dre go so à re gião onde o solo ará vel se evi den cia fran co como re sul ta do des sas de com po si ções pro fun das. A sua cor es -cu ra tão con tra pos ta à ver me lha da dos so los gra ní ti cos, pro vém deuma cir cuns tân cia fa vo rá vel: a mis tu ra lon ga men te acu mu la da dos de -tri tos ve ge ta is em ter re no in su la do e há mu i to in cul to e que tudo in di -ca ser de fer ti li da de rara.

∗ ∗ ∗

Mos tram-no as ma tas exu be ran tes que o re ves tem. Com efe i -to, em bo ra o por te dos ve ge ta is ma i o res não atin ja as gran des al tu rasdos que se ale van tam nas ser ras do li to ral, são sen sí ve is, na va ri e da dedas fa mí li as e gê ne ros dis tin tos, no tran ça do inex tri cá vel da ve ge ta çãoras te i ra e no co lo ri do for te das ra ma gens, às ener gi as cri a do ras da ter ra.

No ta mos as es pé ci es prin ci pa is, à me di da que se nos an to lha -vam, ao aca so, um rumo de pi ca da:

Lou ro-par do – (Lou ro sas sa fraz) La u rá cea; Ipê (Te co ma ipê);Cu ti ca ém; Bi cu í ba – (Myris ti ca of fi ci na lis) (ano ná cea?); Ce dro – (Ce dre labra si li en sis) me liá cea; Go i a be i ra-do-mato (Myrtus sylves tris) mir tá cea; Gu a -pe ba (Hu pant hea gua pe va) (Nhan diá cea?); Gu a tam bu; Ba cu bi cha ba;Ambi ju; Pi tan gue i ra – (Eu ge nia li gus tri na) mir tá cea; Cu ba tã; Ca ba ce i ro –(Stti fi tia par vi flo ra) com pos ta; Cam bu cá – (Eu ge nia edu lis) mir tá cea; Ba cu pa ri– (Sa la cia cam pes tris?) hi po dra teá cea; Pe ro ba; Ara ça ra na; Cam ba rá (Le an drasca le ra) me las to má cea; Ba ta lha; Mos so ta nha; Cu ti ca ém; Aro e i ra (Schi nusaro e i ra) ana car diá cea; Ara ri bá – (Cen tro lo bi um to men to sum) le gu mi no sa;Gu a i a cá; Gu a ra ci pó; Gu i ti; Bre ja ú ba.

Além do gran de nú me ro de es pé ci es ras te i ras que não fo ramano ta das.

Ora, se con si de rar mos que aí se aver bam ape nas ve ge ta is oca -si o nal men te en con tra dos, se guin do rumo pre fi xo e sem a pre o cu pa çãoes sen ci al de ob ser var mos a flo ra, con vi re mos em que é ela far ta de gê -ne ros e fa mí li as uti lís si mas.

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Ain da quan do, po rém, não bas tas se este qua dro para ates tar a fe cun di da de da ter ra, re ve lá-la-iam as pe que nas e mal cu i da das cul tu rasque lá exis tem.

Re du zem-se a di mi nu tas plan ta ções de fe i jão, man di o ca ecana. Os re sul ta dos des sas ro ças mal tra ta das, en tre tan to, equi pa ram-seaos das me lho res ter ras; bas tan do di zer-se que a plan ta ção de um al -que i re do ce re al in di ca do pro duz em mé dia 88, atin gin do as man di o cas e as ca nas a gran des di men sões. Além dis so – cir cuns tân cia dig na denota –, em que pese a uma pro du ção es cas sa, dado o res tri to das cul tu -ras –, o fe i jão dos Bú zi os é co nhe ci do em todo o li to ral con vi zi nho,em São Se bas tião, Vila Bela e mes mo em San tos, como ten do pro pri e -da de de não apo dre cer nun ca, con ser van do-se in tac to por mu i tosanos.

Algu mas ár vo res fru tí fe ras, aba ca te i ros, ame i xe i ras e ou tras,além de cer ca de oi ten ta la ran je i ras plan ta das na ilha, faz pou cos anos, já as su mi ram o por te que lhes é pró prio e pro du zem mag ní fi cos fru tos,as sim como um sem-nú me ro de ba na ne i ras de vá ri as qua li da des, dede sen vol vi men to re al men te no tá vel. O mes mo di re mos de pou co maisde uma cen te na de pés de ca fe e i ros ten do pou co mais de cin co anos,mas já ele va dos a uma al tu ra mé dia de 4 me tros e es pe lhan do, na co lo -ra ção fir me de uma fo lha gem es pes sa, vi gor pou co co mum. A ma tu -ra ção dos fru tos fi gu rou-se-nos, con tu do, bas tan te ir re gu lar.

Num tal ter re no é na tu ral que não es cas se i em ma nan ci a ispe re nes. Obser vam-se vá ri os, sen do os prin ci pa is:

1º – O que de ri va à meia-en cos ta do es po rão de ter mi nan teda Pon ta da Agua da; o 2º, pró xi mo e mais des vi a do para o sul, flu in dodo mi nús cu lo lago a que nos re fe ri mos an te ri or men te; e o 3º na se la dadas Fre che i ras e des cen do para o abri go de nor des te, além de ou trosque ti ve mos por es cu sa do exa mi nar; sen do a água toda de lim pi dez per -fe i ta e po tá vel.

A des pe i to de uma des pe sa in sig ni fi can te que su bi rá quan domu i to, nos ma i o res, a 0,0005 m3 (meio li tro) por se gun do (mas quepo de rá ser au men ta da por uma cap ta ção ra ci o nal) é permanente o seure gi me, no di zer de to dos os ha bi tan tes dali e da Vi tó ria. E é na tu ral que isso su ce da, ain da nas qua dras de pro lon ga das se cas, des de que é aque la

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ter ra var ri da de modo re gu lar pe los ven tos SE e SO, pre e mi nen tes dis -tri bu i do res de umi da de.

Nem de ou tra ma ne i ra se ex pli ca ria a exis tên cia não de umamas de quatro fon tes pe re nes, na ilha me nor, do Pa re dão, tam bém fér til, re ves ti da de mato e em pe que na par te cul ti va da a des pe i to da exi güi da de de sua área. Uma des tas fon tes, se gun do in for mam os mo ra do res, tempro pri e da des te ra pêu ti cas no fa ci li tar a cura da opi la ção e ou tros ma les,sem que se co nhe ça, en tre tan to, a na tu re za dos cor pos que en cer ra, oque de pen de de aná li se ulte ri or.

Assim se com pre en de por que a ilha dos Bú zi os foi ar ren da da,ou afo ra da – me di an te 50$000 anu a is, pa gos à Câ ma ra de Vila Bela porha bi tan tes da Vi tó ria, cuja su per fí cie mais am pla lhes de via bas tar às ma i o rescul tu ras.

É que a es tas con di ções na tu ra is fa vo rá ve is ou tras se ali am,por igual apre ciá ve is.

A fa u na ter res tre é pa u pér ri ma, re du zi da a duas es pé ci es deco bras – a ver de, de todo ino fen si va, e ja ra ra cas das qua is o ve ne no, ali,pa re ce con tes tá vel –, la gar tos e ba trá qui os.

Em com pen sa ção, a do mar é vas tís si ma, sa li en tan do-se, en treos mais nu me ro sos, os cher nes, sar gos, ga rou pas, ba de jos, ca va las, dou -ra dos, sa ler nas, ja gua ri çás, so ro ro cas, pi ra ji cas, ca ções, etc.

Vêem-se pás sa ros co muns no li to ral: be i ja-flor, tico-tico, sa biá,ju ri ti, tiê, ca ná rio, bem-te-vi, pom ba-rola, ara pon ga, sa ra cu ra, etc.

E nas qua dras mais pro pí ci as às pes ca ri as, de agos to a ou tu -bro, por ali se aba tem, de par ce ria com ou tras aves de ra pi na, e per tur -ban do se ri a men te, às ve zes, os tra ba lhos dos ru des pes ca do res, os al ca -tra zes er ran tes e sel va gens.

Uma bre vís si ma es ta ção de dois dias ne nhum ele men to nospo de ria dar para a ca rac te ri za ção do cli ma.

Po de mos en tre tan to ima gi ná-lo cons tan te, trans cor ren do umrit mo se gu ro des de que a abran ge o qua dro ma i or da cli ma to lo gia doAtlân ti co Sul.

Em tal caso os seus re gu la do res do mi nan tes são fi xos: os alí -si os, os ven tos re gu la res de SE e NE, agin do li vres, sal van te as ano ma li as

Ca nu dos e Ou tros Te mas 151

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das qua dras tem pes tu o sas, com o ri go ris mo in fle xí vel do fato as tro nô -mi co que os de ter mi na, por que se for ram, na que le pon to, à in fluên ciaper tur ba do ra das bri sas di ur nas pe rió di cas, ine vi tá ve is nas cos tas. Des temodo po de mos pre ver a fi xi dez ima nen te aos cli mas ma rí ti mos e umre gi me em ge ral es tá vel, sem as per tur ba ções que o de se qui li bram naspa ra gens cos te i ras onde aque les ven tos, re pu xa dos pe las com po nen tesde in ten si da de va riá vel, das bri sas que não raro os su plan tam, se des vi am,in co e ren tes e vá ri os, acar re tan do a va ri a ção per tur ba dís si ma dos da doshi gro mé tri cos e ter mo mé tri cos e a con se qüên cia for ça da da ins ta bi li da -de cli má ti ca.

∗ ∗ ∗

São es tes, em im per fe i to re su mo, os ca rac te res mais sa li en tesque de pa ra mos na ilha dos Bú zi os – qua se des po vo a da – com a sua po -pu la ção es cas sa (e ad ven tí cia por que é de mo ra do res da Vi tó ria) de 35pes so as lo ca li za das em nove ca sas hu mí li mas, de pau-a-pi que, co ber tasde sapê, cen tra li zan do des va li o sas cul tu ras, cu i da das ape nas nos in ter va -los das pes ca ri as.

Do que dis se mos re sul ta que ela tem ca pa ci da de para po vo a -men to mu i tas ve zes ma i or, ex pli can do-se o seu aban do no pela dis tân cia∗

que a se pa ra do li to ral.

Ilha da Vi tó ria(23º 48’ 20” L. S. e 0º 58’ L. O. R. Ja ne i ro)

A mor fo ge nia e as pec tos fí si cos des ta, idên ti cos aos da an -te ri or, dis pen sam o re pro du zir de con si de ra ções já fe i tas. Por ou trolado, a plan ta nº 3, ane xa, re ve la a sua con for ma ção ge ral e aci den tespre do mi nan tes de modo a dis pen sar uma des cri ção por me no ri za da.

Li mi ta mo-nos por isto a apre sen tar, cla ros, os mo ti vos quede todo a “im pro pri am ao es ta be le ci men to da co lô nia pla ne a da”.

Des ta que mo-los:1º – O po vo a men to ma i or. A ilha tem 358 pes so as, re par ti das

em 52 fa mí li as, vi ven do es tas em nú me ro igual de ca sas, das qua is 18 são co ber tas de te lha, re bo ca das e ca i a das, e ten do um cer to con for to.

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∗ A ilha dos Bú zi os fica a 17 mi lhas de Uba tu ba e a 23 de São Se bas tião. N. do A.

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Quer isto di zer que a sua es co lha acar re ta ria uma in de ni za çãoenor me por que, dado mes mo que isto lhe fos se per mi ti do, nem um sóha bi tan te, con for me ob ser vei, ali per ma ne ce ria.

2º – Ca rá ter da pro pri e da de. Re sul ta do de uma pos se ime mo -ri al para uns e para ou tros de com pras per fe i ta men te le ga li za das, aque laé ali de fi ni da – o que não su ce de na dos Bú zi os.

3º – Na tu re za da ter ra. Ain da que sob o as pec to ge og nós ti coidên tico à da ou tra, o solo, cul ti va do há du zen tos anos, é es té ril, exa u ri do.Ade ma is uma mo lés tia re cen te, por ven tu ra fa vo re ci da pela de bi li da de da ter ra, está pre ju di can do as cul tu ras. De no mi nam-na “sa po ré”.32 Ata ca o ve ge tal pe las ra í zes, que in cham, en du re cem e ne gre jam, ma tan do-o empou cos me ses. Assim aca ba ram cer ca de dez mil pés de ca fe e i ros de queres tam pou cas de ze nas, pro gre din do na de vas ta ção con tí nua o mal quetal vez me re ça o es tu do dos com pe ten tes.

Di an te dis so em que pese ao as pec to, à pri me i ra vis ta maisatra en te, da Vi tó ria, e a sua área ma i or, e aos seus dois abri gos, dasPi tan gue i ras e da Gu a i xu ma, e aos seus nove ma nan ci a is pe re nes, con si -de ro-a im pró pria para os fins aci ma in di ca dos. S. Pa u lo, 8 de ju nho de1902 – Eu cli des da Cu nha – Che fe do 2º Dis tri to da Su pe rin ten dên cia deObras Pú bli cas.

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32 Na edi ção ofi ci al cons ta sa po rê. Será sa po re ma? N. do R.

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Viajando...

8 de se tem bro de 1902O Esta do de S. Pa u lo – São Pa u lo

QUEM SALTA em qual quer das es ta ções da Cen tral,33

en tre Ro se i ra e Qu e luz, e se gue a ca va lo para o le van te, en tra, qua se decho fre, em lu ga res que não lhe re cor dam mais as bor das pin tu res cas doPa ra í ba...

A ter ra – uma ter ra an ti ga re cor ta da pela es tra da real três ve zes se cu lar que ia do Rio de Ja ne i ro a São Pa u lo – vai-se tor nan do cada vezmais po bre. Tu mul tu an do em co li nas des nu das, de flan cos en tor ro a dos;afun dan do em pe que nos va les sem en can tos, re bal san do pa u is fre cha dosde tabu as; de sa tan do-se em bre ves pla nu ras are no sas e lim pas – nadamais re ve la da opu lên cia in com pa rá vel que por três sé cu los, da ex pe di çãode Glim mer aos dias da Inde pen dên cia, fez do vale do gran de rio, al te a do num so cal co de cor di lhe i ras e re ca ma do de ma tas exu be ran do flo ra çãori den te, um dos ce ná ri os pre di le tos da nos sa His tó ria.

33 A for ma de fi ni ti va des te ar ti go, de no mi na da Entre as Ru í nas (cf.: pá gi nas 32 a 34do pre fá cio de Olím pio de Sou sa Andra de, 1ª edi ção), pode ser lida nas pá gi nas211 a 218 de Con tras tes e Con fron tos, 9ª edi ção. N. do R.

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E por mais inex per to que seja o vi a jan te, rom pen do pe lasve re das em tor ci co los, vai sen do in va di do pela tris te za da que les er mosde so la dos, e ao de pa rar, de mo men to em mo men to, as cru zes su ces si vas,que se ali nham in ter va la das às mar gens do ca mi nho, tem a im pres são de ir pas san do so bre um ve lho chão de ba ta lhas, es te ri li za do e re vol to pe los ras tros dos exér ci tos. É uma su ges tão em pol gan te.

Res sal tam a cada pas so ex pres si vos tra ços de gran de zas de ca í das.Os mor ros des pi dos por onde tre pa te i mo sa men te uma flo ra

ra re fe i ta de ca fe za is de oi ten ta anos, ra los e to lhi ços, mal re ve lan do osali nha men tos pri mi ti vos, cin ta dos ain da pe las fa i xas par do-es cu ras doscar re a do res tor tu o sos e lon gos por onde su bi am ou tro ra as tur mas doses cra vos; e ten do ain da pe los to pos, à ou re la de an ti gos va los di vi só ri os,ex ten sos ren ques de bam bu za is; e ao viés das en cos tas, sal te a da men te,bran que an do nas ma ce gas as vi ven das hu mí li mas por ali es par sas aesmo –, dão qua se um tra ço bí bli co às pa i sa gens.

Sem mais a ves ti men ta pro te to ra das ma tas ex tin tas na fa i nabru tal das der ru ba das, de sa gre gam-se, es co ri a dos dos en xur ros, so la pa dos pe las tor ren tes, tom ban do aos pe da ços nas “cor ri das de ter ra” de po isdas chu vas tor ren ci a is, e ex põem ago ra nos bar ran cos a pru mo, la iva dos pelo co lo ri do san güí neo das ar gi las, em acer vos de blo cos, a rí gi da os sa -tu ra de pe dra des ven da da, ou se ale van tam des pi dos e es té re is, mal co -ber tos dos res to lhos das gra mí ne as re sis ten tes, no ho ri zon te mo nó to noque abre vi am en tre as en cos tas ín gre mes.

Os ca mi nhos tor ne jam-nos, gal gam-nos, des cem-nos. Mas osqua dros não se ani mam.

Su ce dem-se chou pa nas po bres, der ru í das umas – te tos de sapêso bre es com bros de ta i pa e paus ro li ços –, ha bi ta das ou tras, cen tra li zan doexí guas ro ças in cor re tas, à be i ra dos cór re gos apa u la dos onde os lí ri ossel va gens der ra mam no per fu me in si di o so os ger mes das ma le i tas...

As es tra das são er mas.De lon ge em lon ge, um ca mi nhan te. Mas este, por sua vez, é um

de ca í do. Nada mais re cor dan do aque les mes ti ços ri jos, in com pa rá ve isma te i ros que nes te vale ti ra ram a fa cão as pri me i ras pi ca das das ban de i ras.

O ca i pi ra des gra ci o so, sem o de sem pe no dos ti tâ ni cos ca bo clos que lhe for mam a li nha gem obs cu ra e he rói ca, sa ú da-nos com hu mil da de

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re vol tan te e de i xa-nos mais im pres si o na dos como se de pa rás se mos uma ru í na ma i or na que la enor me ru ma ria da Ter ra...

Se gui mos.Em vá ri os tre chos cer ra dões tran ça dos, ten do ain da en tre os

ás pe ros ta bo ca is e as em ba ú bas frá ge is ra ros pés de café, de re mo tís si -mas cul tu ras em aban do no, se des do bram inex tri cá ve is na len ta re con -quis ta do solo des pi do da flo res ta pri mi ti va.

A es tra da vara-os en tre es pi nhe i ra is e bar ran cos, ten do nãoraro, la de an do-a em de ze nas de me tros, ex ten sos lan ços meio des mo ro -na dos dos ve lhos mu ros de ta i pa, de sí ti os que flo res ce ram nou tras eras. Des tes, al guns per ma ne cem ain da ha bi ta dos. Mas sem a ani ma ção an ti -ga, sem o mou re jar fe bril das co lhe i tas far tas, sem os re chi nos lon gosdos en ge nhos, sem o bu lí cio, a azá fa ma es ton te a do ra das mo en das ru i -do sas – quan do por aque las en cos tas on du la vam e su bi am va ga ro sa men te à me lo péia das can ti gas afri ca nas –, sem-nú me ro de dor sos lu zi di os re bri -lhan do ao sol – os cor dões de sen vol vi dos dos ei tos.

Hoje lhes de cor re a vida re du zi da e pre cá ria, com pas sa da norit mo me lan có li co dos mon jo los...

Qu a se to dos num de ca ir con tí nuo mal avul tam nos ter re i rosde ser tos. Vão sen do a pou co e pou co afo ga dos na len ta cons trição doma ta gal que se lhes en tran ça à roda, e mata-lhes as plan ta ções, e in va -de-lhes as pas ta gem, avan çan do até atin gi-los; e pe ne tran do-lhes de po ispe las por tas, en ra i zan do-se-lhes nas pa re des de bar ro e dis jun gin do-as,ra chan do-as, der ri ban do-as, e es ti ran do-se-lhes pe los te lha dos e aba ten -do-as – como uma re a ção sur da e for mi dá vel da na tu re za con tra os queou tro ra lhe ajus ta ram no seio, des nu dan do-o e fe rin do-o, os cáus ti cosmor den tes das que i ma das...

Ou tros ain da re pon tam de im pro vi so no bo le ar dos cer ros ou à meia-en cos ta dos mor ros, do mi nan tes, com a fe i ção per fe i ta de de pri -mi dos cas te los, sem bar ba cãs e sem tor res, gi za dos por esta ar qui te tu rabru tal men te cha ta, de ado bes, em que pri ma ram os nos sos ma i o res dehá dois sé cu los.

Em que pese, po rém, ao aba ti do das li nhas, es sas vi ven dasre tan gu la res e vas tas, so bran ce an do as sen za las ba i xas, os mo i nhos es -tru í dos, as pe que nas ca sas de agre ga dos – ser vos do nos so fe u da lis mo

Ca nu dos e Ou tros Te mas 157

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acham bo a do – e os pla nos uni dos dos ter re i ros que al te i am de cha papara a es tra da os al tos mu ra men tos de pe dra, guar dam o pri mi ti vo as pec tose nho ril.

Mas ja zem para todo o sem pre va zi as, até que as des trua o ab -so lu to aban do no.

Por que o ca i pi ra cren de i ro, por mais ve loz que siga, e pormais que o fus ti guem os agua ce i ros e os ven tos, não lhes pára à por ta.Se gue de sa ba la da men te, sem des fi tar as es po ras dos flan cos do ca va lofa zen do o “pelo-si nal”, e fu gin do.

Nem olha para a vi ven da si nis tra e mal-as som bra da onde ima -gi na co i sas pa vo ro sas: con tí nuo per va gar de som bras, ulu lar de es pec -tros ado i da dos, apa ri ções ma ca bras, lon gos ar ras ta men tos de cor ren tesou ar re pi a do res sab bats de al mas va ga bun das e ma lé vo las...

E quem, cu ri o so e sem me dos, as pro cu ra, jus ti fi ca-lhe os te -mo res.

Apro xi ma-se do lar go por tão cu jos um bra is va ci lam, aba la -dos. De sa pe ia e avan ça pe los ter re i ros de pe dra; sobe a ve lha es ca da ria pu -lan do os de gra us que fal tam e es ta ca, so bre o pa ta mar de la dri lhos, di -an te da por ta es can ca ra da, de en tra da, dan do para o am plo sa lão de ser -to. Pe ne tra-o. Con tem pla, de re lan ce, as mol du ras es bo te la das das pa re -des e o teto onde adi vi nha res quí ci os de fri sos dou ra dos na ci ma lha dees tu que. Enfia pelo lon go cor re dor, adi an te, afo ga do no ba fio an gu lhen -to do am bi en te imó vel, para o qual se abrem as por tas de ou tros re par ti -men tos va zi os onde chi am e re vo am de se qui li bra da men te mor ce gos es -ton te a dos. Che ga à sala de jan tar, de ser ta...

E na que la qui e tu de si nis tra, se não o ame dron tam os ecos dos pró pri os pas sos ex tin guin do-se va ga ro sa men te em res so nân ci as peloâm bi to da ha bi ta ção va zia, co mo ve-o, ir re pri mí vel, a vi são re tros pec ti vados be los tem pos em que a vi ven da se nho ri al sur gia, tri un fal, no meiodos ca fe za is flo ri dos.

Então era o es tré pi to ru i do so das ca val ga tas que che ga vam; alon ga es ca da ria por onde ro la vam sa u da ções jo vi a is, ri sos fe li zes, ti ni dos ar gen ti nos, de es po ras; e o vas to sa lão re ple to de con vi vas; e a ve lha sala de co ra da para os ban que tes far tos; e, à no i te, as ja ne las res plan de cen do,aber tas para a es cu ri dão e o si lên cio, gol fan do cla ri da des e a ca dên cia

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das dan ças – en quan to, fora, no ter re i ro lim po, tur bi lho na va o sam bados es cra vos ao toar me lan có li co e bru to dos ca xam bus mo nó to nos...

É um con tras te cru el. O vi a jan te de i xa afi nal a vi ven da mis te ri o sa com uma emo ção

mais fun da que a dos ro ce i ros. Rom pe en tre por ta das pen sas e ca run cho sas ca in do logo em

ma ta gal bra vio onde adi vi nha res tos de um jar dim ou de um po mar;con tor na, pu lan do so bre mu ra da is, a vi ven da; vol ve ao ter re i ro or la dode sen za las que de sa bam; gal ga o ca va lo; e par te...

Não vol ta rá mais. Se gue pe los ca mi nhos em tor ci co los, tor ne -ja mor ros es cal va dos, pas sa por ou tras fa zen das an ti gas, di vi sa ou tras es -tân ci as de ser tas, de pa ra ou tros ca mi nhan tes ta ci tur nos – ros tos de con -va les cen tes e tor sos ar ca dos – e to pan do de ins tan te a ins tan te, in ter mi -ná ve is, como se an das se pe las ave ni das de um enor me cam po-san to, asmes mas cru zes à mar gem dos ca mi nhos – sen te-se, sem o que rer, in va -di do pe las cren ças in gê nu as dos ca i pi ras...

Com pre en de-as e jus ti fi ca-as.34

∗ ∗ ∗

Tem, em roda e em tudo, na que le re can to ar ru i na do da Ter ra, a ex pres são con cre ta e ini lu dí vel da nos sa inap ti dão para a vida...

Um tre cho ad mi rá vel, a face mais bela tal vez de toda a na tu -re za, ali apa re cia sob o eter no res plen dor da li nha tro pi cal. E ne nhu mase lhe equi pa ra va, cer to, no en fe i xar os mais be los as pec tos das pa i sa -gens e as me lho res mo da li da des dos cli mas por que a ro de i am os agen tes fí si cos de onde res sal tam as li nhas pre ex ce len tes dos qua dros na tu ra is –o mar e as mon ta nhas.

E um gran de rio – de nas cen tes eter nas fe i tas na ba fa gem far ta dos alí si os, se guin do os mais ca pri cho sos ru mos, a princ ípio dis per soem tor ren tes di va gan tes, afo ga das nas gro tas, pe los con va les al te a dosdos Cam pos da Bo ca i na; de po is, con tra vin do, no cur so mé dio, ao sen ti do

Ca nu dos e Ou tros Te mas 159

34 Ao re fa zer este ar ti go, Eu cli des re fun diu o cur to pa rá gra fo as si na la do e eli mi nouos se guin tes. N. do R.

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pri mi ti vo, e aca cho an do em des pe nhos vi vos até per der o ca rá ter tor ren -ci al no úl ti mo in fle tir para nor des te em que se en ca i xa, vol ven do águastran qüi las, no ter ra ço que al te ia a Man ti que i ra so bre a ser ra do Mar –, oPa ra í ba, ilhan do o pró prio vale, pa re cia des ta cá-lo, fe i to uma re gião pri -vi le gi a da e rara.

E era-o. Mos tra-o o pró prio des do bra men to de vida que ali hou ve

des de o al vo re cer da nos sa His tó ria. A ter ra era rica e for mo sís si ma; e fez-se o pri me i ro cen tro de

atra ção das pri me i ras va gas hu ma nas que de man da vam o in te ri or. O ban de i ran te, po rém, pas sou. Gal ga do o teso do mi nan te da Man ti que i ra, sal te ou-o, em pol -

gan te, a ver ti gem das dis tân ci as que se lhe de sa ta vam no oci den te. Per -deu-se nos pla nal tos...

Fi cou em ba i xo, no vale fér til, uma gen te obs cu ra e fra ca; eesta vol veu para o seio da ter ra ca ri nho sa – gol pe an do-a fun da men te esar jan do-a de mas car ras ne gras – as suas úni cas ar mas de com ba te: a en -xa da ob tu sa, o ma cha do cor tan te, a fo i ce des tru i do ra e a que i ma da fu -ma ren ta...

Cri ou, por fim, todo aque le ce ná rio emo ci o nan te... Hoje, se hou ves se re flu xos na His tó ria, o ser ta nis ta des te me -

ro so não en con tra ria mais na que les er mos, pas san do de sen flu í do pe loscar ran ca is ma ni nhos, os mes mos es tí mu los para as em pre sas glo ri o sas.

Re cu a ria as som bra do; e se guin do pe los ca mi nhos em tor ci co -los, tor ne jan do os cer ros es cal va dos, pas san do pe las fa zen das de ca í das,en con tran do os ca mi nhan tes ta ci tur nos, de i xar-se-ia in va dir pe los de sa -len tos do ca i pi ra. E fa ria o que fa re mos: ti ra ria, re li gi o sa men te, o cha -péu, ante as cru zes dos ca mi nhos, como se por ali va gas sem na qui e tu de da que les des cam pa dos, mu das e la ten tes, to das as som bras de um povoque mor reu, er ran tes so bre uma na tu re za em ru í nas...

160 Eu cli des da Cunha

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Pos se no Insti tu to His tó ri co

Pos se: 20 de no vem bro de 1903Re vis ta do I. H. G. B. – Tomo LXVI –

2ª par te – págs. 288-293

EXMO. SR. PRESIDENTE – Srs. Mem bros do Insti tu to His -tó ri co e Ge o grá fi co Bra si le i ro:

Acu din do ao vos so cha ma do, ve nho ocu par o lu gar que mede sig nas tes e agra de cer-vo-lo, as se gu ran do-vos ao mes mo tem po a ufa niaque me ca u sa esta in ves ti du ra, em bo ra ela en vol va gran des res pon sa bi li -da des e me obri gue, de ora avan te, a aco mo dar uma vi são res tri ta e frá gil às mais di la ta das pers pec ti vas do nos so ti ro cí nio his tó ri co. Fe liz men te,mal gra do tan ta des va lia, che go ain da a tem po de apro ve i tar mais util -men te, no vos so con ví vio, uns res tos da mo ci da de. For rei-me ao do mí nio de al guns pre con ce i tos sem sen ti do; re co nhe ci a ina ni da de de não seiquan tas fór mu las vãs, que os dou tri na do res do mo men to – agi tan tes nová cuo de uma me ta fí si ca ta ca nha – re mas cam, ru mi nam e re mo em, names ma in cons ciên cia com que cer tos brâ ma nes mur mu ram du ran te avida in te i ra, sem os en ten de rem, os ver sí cu los do Rig-Veda;35 e rom pen do

35 Na Re vis ta do I .H. G. B. lê-se dos Rig-Ve das, evi den te en ga no, pois tra ta-se de umdos qua tro li vros da sa be do ria hin du. N. do R.

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as ma lhas de um in gê nuo fe ti chis mo po lí ti co, ao mes mo pas so quede i xa ram de atra ir-me as aven tu ras de an ti go ca ça dor de mi ra gens, pos sovir, pla ci da men te, para o vos so meio, tra zen do-vos uma qua li da de úni cae ir re du tí vel, mas que por si su pre por ou tras, e que no mo men to atu al,para ter al gum va lor, deve ser iso la da: a qua li da de de bra si le i ro.

Não é opor tu no, e de al gum modo fora ar re me ter com aspra xes ado ta das, o ten tar de mons trar-vos que se me lhan te tí tu lo nãono-lo pode dar, na sua es tru tu ra com ple xa, o for tu i to do nas ci men tonuma qua dra do chão, ou os atri bu tos ar ti fi ci a is de uma cons ti tu i çãopa ro di a da – se não um in ten so es for ço cons ci en te, di ria me lhor, uma es -pé cie de acli ma ção his tó ri ca –, apa re lhan do-nos para com pre en der osdes ti nos de um povo que, nas cen do em con di ções es pe ci a lís si mas, quan dosur gia a Re nas cen ça – em ple no trans fi gu rar das so ci e da des já cons ti tu í das–, de pa rou, na pró pria mar cha cres cen te men te ace le ra da do pro gres soge ral, sé ri os es tor vos, im pos si bi li tan do-lhe uma si tu a ção de pa ra da in -dis pen sá vel ao per fe i to cal de a men to de suas ra ças cons ti tu in tes – e che -gou ain da in ca rac te rís ti co à fase in te gra do ra do Impé rio, que foi o ór gão pro e mi nen te da sua uni da de na ci o nal.

Infe liz men te me es cas se i am com pe tên cia e va lor para con gra çarnuma sín te se ri go ro sa, com as suas re cí pro cas in fluên ci as, as gran desfa ta li da des que per tur ba ram ou de mo ra ram a nos sa evo lu ção: des de ascon di ções fí si cas des fa vo rá ve is do ter ri tó rio am plís si mo e qua se im pe -ne trá vel em vir tu de da sua pró pria es tru tu ra ge og nós ti ca, aos em pe ços e per tur ba ções de or dem mo ral, em gran de par te ori un das da cir cuns tân ciade ter mos sido obri ga dos a efe tu ar, si mul ta ne a men te, a nos sa for ma çãoét ni ca e a nos sa for ma ção po lí ti ca, dan do tra ça dos pa ra le los a fe nô me nosna tu ral men te su ces si vos.

Então as no tá ve is vi cis si tu des da nos sa exis tên cia co le ti va,com os seus des vi os, com os seus re cu os, com os seus des com pas sa dosar ro jos se gui dos de su bi tâ ne os des fa le ci men tos, e com as suas gran descur vas qua se fe cha das, que fa zem do Bra sil exem plo úni co, a es te ar afan ta sia fi lo só fi ca de Vico, por que trou xe ram a nos sa Ida de Mé dia atéao nos so tem po, ir ma nan do o fe u da lis mo re tró gra do dos do na tá ri os,que os al va rás no me a vam, com o fe u da lis mo anár qui co dos go ver na do res,que as ele i ções não ele gem – tudo isto, toda essa agi ta ção tu mul tuá ria,onde raro se des ta ca o ca rá ter so ci al dos acon te ci men tos, nos re ve la ria

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que aque le tí tu lo não é uma co i sa que se re ce be, se não uma po si ção quese con quis ta, e acar re ta de ve res tão sé ri os que quem a me re ce não sabedis tin guir os com pa tri o tas de boa von ta de pe las fór mu las inex pres si vase ar ti fi ci o sas dos par ti dos. Re ve la ria isto a mais li ge i ra aná li se da si tu a ção pre sen te.

Não a fa rei, po rém. Evi to por me no ri zar um as sun to em queo fu nam bu les co se con cha va ao trá gi co, num du a lis mo abo mi ná vel: omes mo Tá ci to, nes te lan ce, ce de ria mu i to a seu bom gra do uma tal em -pre sa ao mi mó gra fo Ba ti lo...

Pre fi ro não de i xar a ati tu de de cu ri o so con tem pla ti vo, pro te -gi do pela obs cu ri da de eno bre ce do ra, mer cê da qual pas so por aí per fe i -ta men te des co nhe ci do, como um gre go an ti go trans vi a do nas ruas deBi zân cio...

Ade ma is, para ser útil bas ta-me o cin gir-me ao vos so be lís si -mo pro gra ma.

De fe i to, es tas es tan tes ilu dem mi ra cu lo sa men te o en cer ro das pa re des que nos cer cam; têm a trans pa rên cia ide al, e che ia de es plen do res, dos pró pri os li vros que as ates tam; e dão aos es cas sos me tros qua dra dos des ta sala uma am pli tu de de qua tro sé cu los, sem que se es tra nhe a fal tade ho mo ge ne i da de de uma tal com pa ra ção, por que a mes ma re a li da detan gí vel nos en si na que, ao pi sar mos as ve lhas tá bu as des ta casa, an da mos so bre um tre cho da ter ra mis te ri o sa e sa gra da do pas sa do.

Aqui se con ju gam, sem o em per ra men to de ir ri tan tes atri tos,sem o dis per si vo das pa i xões, e sem que os ape que ne a ló gi ca ca tur rades tes tem pos, os efe i tos má xi mos dos qua tro cen tos anos da nos sa vida; pas sa in tac ta e in tan gí vel, so bran ce i ra a um tem po ao li vre-ar bí trio dosho mens e aos ca pri chos da Pro vi dên cia, a di re triz do nos so fu tu ro,ga ran ti da pelo seu de ter mi nis mo in fle xí vel nes se eter no equi lí brio di nâ -mi co das ten dên ci as psí qui cas in di vi du a is e dos mo ti vos – per pe tu um mo -bi le onde os nos sos im pul sos pes so a is se cor ri gem, se re ti fi cam e se am -pli am sob a dis ci pli na aus te ra da in fluên cia acu mu la da das ge ra ções quepas sa ram... E mes mo para os mais de sa len ta dos, sal te a dos de as som bros ante a si tu a ção pre sen te, para os que pre fi gu ram to dos os de sas tres rom -pen tes des ta cri se, mes mo para es ses, há nes te re cin to, no es plên di doiso la men to des te cor dão sa ni tá rio de mi lha res de li vros, um ad mi rá vel econ so la dor exí lio, um se gre do que lhes per mi te li gar a vida ob je ti va

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tran si tó ria à gran de vida imor tal da Pá tria, sem que per cam a con tem pla -ção de seus as pec tos fí si cos for mo sís si mos dela, um belo os tra cis mo quees ca pou a to das as ti ra ni as, por que é um prê mio – um exí lio no tem po...

E eu aqui vi rei, sem pre que mo per mi ti rem as bre ves fol gasda mi nha car re i ra fa ti gan te, tra zer-vos a mi nha boa von ta de, que deveser mu i to gran de para ni ve lar-me tão des per ce bi do de ou tros re qui si tos,à in com pa rá vel su pe ri o ri da de dos vos sos in tu i tos e dos vos sos es for ços.

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Entre os se rin ga is∗

A ABERTURA DE UM SERINGAL , no Pu rus, é ta re fa ina ces sí vel ao mais so ler te agri men sor, tão ca pri cho sa e vá ria é a di a bó li ca ge o me tria re que ri da pela di vi são dos di fe ren tes lo tes. De fe i to, re le ga doa um mi ni mum ex tra or di ná rio o va lor pró prio da ter ra, ante a va lia ex clu -si va da ár vo re, ali se en ge nhou uma ori gi nal me di da agrá ria, a “es tra da”,que por si só re su me os mais va ri a dos as pec tos da so ci e da de nova, àven tu ra abar ra ca da à mar gem da que les gran des rios. A uni da de não é ome tro – é a se rin gue i ra; e como em ge ral 100 ár vo res, de si gual men tein ter va la das, cons ti tu em uma “es tra da”, com pre en dem-se para logoto das as dis pa ri da des de for ma e di men sões do sin gu la rís si mo pa drãoque é, não obs tan te, o úni co afe i ço a do à na tu re za dos tra ba lhos.

Não há gi zar-se um ou tro. Per di do na mata exu be ran te e far ta, com o in ten to ex clu si vo de ex plo rar a he vea ape te ci da, o se rin gue i rocom pre en de, de pron to, que a sua ati vi da de se de ba te rá inú til na inex tri -cá vel tra ma das fo lha gens, se não vin gar nor teá-la em ro te i ros se gu ros,nor ma li zan do-lhe o es for ço e rit man do-lhe o tra ba lho tão apa ren te -men te de sor de na do e rude. É-lhe, ade ma is, in dis pen sá vel que os seus

∗ Kos mos, ano III, nº 1, RJ, jan. 1906.

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nu me ro sos ca ma ra das, fre gue ses ou avi a dos, des ti na dos a agi rem iso la da -men te, não se em ba ra lhem, às ton tas, ilu di dos pe los des vi os da flo res ta.

As “es tra das” re sol vem a ques tão. Mas o seu tra ça do é, de simes mo, o pri me i ro pro ble ma im pos to a quem quer que in ten te abrir um sí tio de bor ra cha.

Assim é que, er gui da ra pi da men te a pri me i ra vi ven da do bar -ra cão, sem pre à be i ra do rio prin ci pal, na bar ran ca de uma ter ra fir me a ca -va le i ro das águas – e fe i to um re co nhe ci men to pre li mi nar do la ti fún dioque o ro de ia, o si ti an te pro cu ra um ser ta nis ta ex pe ri men ta do a quemcon fia o en car go de di vi dir- lhe e ava li ar-lhe a fa zen da.

E o ma te i ro lan ça-se sem bús so la no dé da lo das ga lha das, com a se gu ran ça de um ins tin to to po grá fi co sur pre en den te e raro. Per cor reem to dos os sen ti dos o tre cho de sel va a ex plo rar; nota-lhe os aci den tes; apre en de-lhe a fi si o gra fia com ple xa, que vai dos iga pós ala ga dos aos fir -mes so bran ce i ros às en chen tes; tra ça-lhe os va ra do res fu tu ros; ava lia-lhe ri -go ro sa men te, as “es tra das”; e vai no mes mo lan ce, sem que lhe seja mis -ter tra du zir com pli ca das ca der ne tas, es co lhen do à be i ra dos iga ra pés to -dos os pon tos em que de ve rão eri gir-se as pe que nas bar ra cas dos tra ba -lha do res.

Fe i to este exa me ge ral, ape la para dois au xi li a res in dis pen sá -ve is – o to que i ro e o pi que i ro; e er guen do num da que les pon tos pre de ter -mi na dos, com as lon gas pal mas da ja ri na , um pa pi ri, onde se abri guemtran si to ri a men te, me tem mãos à em pre i ta da.

O pro ces so é in va riá vel. Se gue o ma te i ro e as si na la o pri me i ro pé de se rin ga, que se lhe an to lha ao sair do pa pi ri. É a boca da es tra da. Aíse lhe re ú nem o to que i ro e o pi que i ro – pros se guin do de po is, iso la do, oma te i ro até en con trar a se gun da ár vo re, de or di ná rio pou co dis tan te, auns cin qüen ta me tros. Avi sa en tão com um gri to par ti cu lar, ao to que i ro,que par te a al can çá-lo jun to da nova ma de i ra, en quan to o pi que i ro, acom -pa nhan do-o mais de pas so, vai ti ran do a fa cão a pi ca da, que pre fi gu ra a“es tra da”. O to que i ro au xi lia-o por al gum tem po, abrin do por sua vezum pi que para o seu lado, en quan to um ou tro gri to do ma te i ro não ocha me a re co nhe cer a ter ce i ra ár vo re; e as sim em se gui da até ao pon tomais dis tan te, a vol ta da es tra da. Daí, agin do do mes mo modo, re tro gra -dan do por ou tros des vi os, vão de se rin gue i ra em se rin gue i ra, fe chan do a cur va ir re gu la rís si ma que ter mi na no pon to de par ti da.

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Ulti ma-se o ser vi ço, que dura or di na ri a men te três dias, fi can -do a “es tra da” em pi que. Par tin do do mes mo lu gar, e ads tri tos ao mes mosis te ma, abrem nou tro rumo uma se gun da es tra da; e tan tas, ao cabo,quan tas com por te a na tu re za da flo res ta cir cun dan te, cen tra li za das to das pela mes ma boca, jun to do te ju par que lo ca li za uma bar ra ca. Bus ca en -tão o ma te i ro um ou tro lu gar, in te li gen te men te es co lhi do, e re pro duz ames ma ope ra ção, até que, es tra da do todo o ter re no, fi que com ple ta men te re par ti do o se rin gal, como o re ve la este es bo ço, onde, pre sas pe los va ra do resao bar ra cão er gui do à be i ra do rio, se vêem as bar ra cas e as es tra das queas en vol vem, con tor ci das à ma ne i ra de ten tá cu los de um pol vo des me -su ra do. É a ima gem mons tru o sa e ex pres si va da so ci e da de tor tu ra da que mou re ja na que las pa ra gens. O ce a ren se aven tu ro so ali che ga numa de sa -po de ra da an si e da de de for tu na; e de po is de uma bre ve apren di za gemem que pas sa de bra bo a man so, con so an te a gí ria dos se rin ga is (o que sig -ni fi ca o pas sar das mi ra gens que o es ton te a vam para a apa tia de um ven -ci do ante a re a li da de ine xo rá vel), er gue a ca ba na de pa xi ú ba à ou re la maldes to ca da de um iga ra pé pin tu res co, ou mais para o cen tro numa cla re i -ra que a mata ame a ça do ra cons trin ge, e lon ge do bar ra cão se nho ril, ondeo se rin gue i ro opu len to es ta de ia o pa ra si tis mo far to, pres sen te que nun camais se li vra rá da es tra da que o en la ça, e que ele vai pi sar du ran te a vidain te i ra, indo e vin do, a gi rar es ton te a da men te no mons tru o so cír cu lovi ci o so da sua fa i na fa ti gan te e es té ril.

A pi e u vre as som bra do ra tem, como a sua mi ni a tu ra pe lá gi ca,uma boca in sa ciá vel ser vi da de nu me ro sas vol tas cons tri to ras; e só o lar gaquan do, ex tin tas to das as ilu sões, es fo lha das uma a uma to das as es pe -ran ças, que da-se-lhe um dia, iner te, num da que les ten tá cu los, o cor pore pug nan te de um es ma le i ta do, ca in do no ab so lu to aban do no.

Con si de rai a dis po si ção das “es tra das”.É o di a gra ma da so ci e da de nos se rin ga is, ca rac te ri zan do-lhe

um dos mais fu nes tos atri bu tos, o da dis per são obri ga tó ria.O ho mem é um so li tá rio. Mes mo no Acre, onde a den si da de

ma i or das se rin gue i ras per mi te a aber tu ra de 16 es tra das numa lé gua qua -dra da, toda esta vas tís si ma área é fol ga da men te ex plo ra da por oito pes so asape nas. Daí os des mar ca dos la ti fún di os, onde se nota, mal gra do a per ma -nên cia de uma ex plo ra ção agi ta da, gran des de so la men tos de de ser to...

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Um se rin gal mé dio de 300 es tra das cor res pon de a cer ca devin te lé guas qua dra das; e toda essa pro vín cia anô ni ma com por ta rá, nomá xi mo, o es for ço de 150 tra ba lha do res.

Ora, esta cir cuns tân cia, este afrou xa men to das ati vi da des dis -ten di das numa fa i na dis per si va, a par de ou tras ano ma li as, que maisadi an te re ve la re mos, con tri bui so bre ma ne i ra para o es ta ci o na men to daso ci e da de que ali se agi ta no afo ga do das es pes su ras, es te ril men te – semdes ti no, e sem tra di ções e sem es pe ran ças –, num avan çar ilu só rio emque vol ve mo no to na men te ao pon to de par ti da, como as “es tra das” tris -to nhas dos se rin ga is...

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O po vo a men to e a na ve ga bi li da de do rio Pu rus36

Ju nho de 1906 – Re la tó rio so bre o Pu rus Pu bli ca ção de par te na

Re vis ta Ame ri ca na – Rio – 8/1910

IDa foz às ca be ce i ras L ENDO-SE AS “no tí ci as da vo lun tá ria re du ção de paz e

ami za de da fe roz na ção do gen tio mura”, nos anos de 1784, 1785 e1786; e, prin ci pal men te, as lon gas cor res pon dên ci as en tre o Te nen te-Co ro nel Pri me i ro Co mis sá rio da Qu ar ta Par ti da, João Ba tis ta Mar del, eJoão Pe re i ra Cal das, acer ca da prá ti ca com o gen tio “que pelo cen tro ela gos ha bi ta des de o Pu rus até ao Ju ruá” – evi den ci am-se an ti gos e per -sis ten tes es for ços para o po vo a men to da que las re giões.∗ Mas fora so -bre ma ne i ra lon go este per qui rir de an ti gos do cu men tos. Bas te-nos sa ber que des de 1787, por efe i to de be lís si ma cam pa nha em que não en tra ram ou tras ar mas além das dá di vas mais ape te ci das do sel va gem, se con gra -ça ram os abo rí gi nes da que les pon tos, in te i ra men te cap ta dos pe las gen tes

36 O tex to base para esta edi ção foi o do Re la tó rio da Co mis são Mis ta Bra si le i ro-Pe ru a nade Re co nhe ci men to do Alto Pu rus – 1904/1905, Impren sa Na ci o nal – Rio – 1906. Osqua dros es ta tís ti cos e ma pas, ci ta dos pelo Au tor, não são re pro du zi dos dado seuca rá ter téc ni co e suas di men sões. N. do R.

∗ Re vis ta do Insti tu to His tó ri co e Ge o grá fi co Bra si le i ro. Tomo 36 (1873). N. do A.

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ci vi li za das. O Pu rus, so bre tu do, gra ças à sua in com pa rá vel ri que za depre ci o sas es pe ci a ri as, abri ra-se des de logo à fa i na, in fe liz men te de sor de na -da e pri mi ti va, que ain da hoje im pe ra na Ama zô nia. Re ve la-o um fato,bas tan te elo qüen te na sua mes ma ex tra va gân cia: em 1818 o úl ti mo go ver -na dor do Rio Ne gro, Ma nu el Jo a quim do Paço, tran cou-o; pro i biu que osul cas sem os pes qui sa do res de dro gas “indo-se-lhe os olhos ce gos de suaam bi ção atrás dos pre ci o sos fru tos, por que que ria an tes fi cas sem as suasun ta das com o co pi o so do seu pro du to.”∗ A Jun ta Go ver na ti va do Parálogo de po is re vo gou a cu ri o sa re so lu ção que é, afi nal, mu i to ex pres si va no de la tar a im por tân cia que já na que les tem pos ia as su min do o gran de rio.

Infe liz men te, du ran te lar gos anos as “en tra das” que, cer to,con ti nu a ram pelo Pu rus aci ma, não de i xa ram do cu men tos. Vis lum bramem frá ge is e dis cor des re mi nis cên ci as de seus mais ano sos po vo a do res,que pou ca con fi an ça ins pi ram.

Ape nas em 1854 prin ci pi a ram os pri me i ros da dos se gu ros atal res pe i to com o re la tó rio do pre si den te do Ama zo nas, Con se lhe i ro Her cu la no Pena, onde há re fe rên ci as à mis são do Pu rus (São Luís deGon za ga) con fi a da a Frei Pe dro de Ci a ri a na.

Da que la data em di an te o po vo a men to foi con tí nuo e tão sen -sí vel que em 7 de se tem bro de 1858 um ou tro pre si den te, Dr. Fran cis coFur ta do, jus ti fi cou no seu re la tó rio a ne ces si da de de es ta be le cer-se ana ve ga ção re gu lar na que les lu ga res. Cres ce ra, de fato, a po pu la ção queain da ins tá vel, ou er ran te em ter ri tó rio des co nhe ci do, não fa cul ta va umcôm pu to se quer apro xi ma do, con je tu ran do-se ape nas que não era di mi -nu ta pela cir cuns tân cia de se ha ver cri a do em ju nho de 1857, pró xi mo aGu a ja ra tu ba, uma en fer ma ria para os ata ca dos de fe bres per ni ci o sas que gras sa ram na que las ban das.

Ora, en tre es tes pri me i ros po vo a do res es ta va um ho mem queos pró pri os an te ce den tes ét ni cos apa re lha vam a fun dar a so ci e da de nova na pa ra gem re cém-des ven da da, Ma nu el Urba no da Encar na ção. Já lhevi mos o pa pel ad mi rá vel como ba te dor de de ser tos. Mas a sua açãocomo fun da dor de po vo a dos é ma i or, sen do ain da hoje tra di ci o na is no

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∗ No tí ci as Ge o grá fi cas. Cô ne go André Fer nan des de Sou sa. Re vis ta do Insti tu to His tó ri coe Ge o grá fi co Bra si le i ro. Tomo 10 (1848). N. do A.

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Pu rus o seu ati la men to e a sua per ti ná cia, a par duma gran de in te i re zade ca rá ter e uma bon da de ex cep ci o nal.

Foi o me di a dor en tre as gen tes no vas que bus ca vam aque lerio e as tri bos bra vi as que lhe ocu pa vam as mar gens. E esta sim plescir cuns tân cia ele va-o con si de ra vel men te.

Bas ta con si de rar-se que o Pu rus foi tal vez a ma i or es tra da poronde pas sa vam e re pas sa vam, há mu i tos sé cu los, as tri bos mais re mo tas dos ex tre mos do con ti nen te. Os mu ras er ra di os e bron cos, que tan to alar ma ramo go ver no co lo ni al, não são au tóc to nes: des ce ram da Bo lí via, pelo Ma mo ré, e são tal vez co la te ra is dos mo xos, su ces si va men te ba ti dos pe las ex pe di çõesdos in cas e pe las ou tras tri bos do Sul do nos so país, es pa vo ri das pe los pa u -lis tas; os ja ma man dis pa re ce guar da rem ain da hoje, en tra nha dos nas ter ras eevi tan do as mar gens dos rios, a lem bran ça das an ti gas ban de i ras de res ga te que os ex pe li ram do rio Ne gro; nos ipu ri nás Sil va Cou ti nho lo bri gou há bi tos dos uba i as do Pa ra guai; e o as pec to e as ves tes dos ca na ma ris, como no-los des -cre ve Ma nu el Urba no, re cor dam-nos vi va men te a en ver ga du ra rija e a cush -ma in con sú til dos cam pas que vi mos nas ca be ce i ras.

Estas tri bos fer vi lha vam nas duas or las do Pu rus.Os mu ras, da foz ao Pa ra ná-Pi xu na, al de a dos em Be ru ri, no

Lago Hi a puá,∗ na Cam pi na e em Ari mã, onde des de 1854 os re u ni ra Fr.P. de Ci a ri a na. Da foz do Ja ca ré a Hu i ta naã es pa lha vam-se os pa u ma ris eju be ris, sob o nome ge ral de puru-pu rus. Ha bi lís si mos fa bri can tes de ubáse in com pa rá ve is re ma do res, vi vi am ex clu si va men te da pes ca de tar ta ru gas e pi ra ras, de onde lhes pro vi nha a mo lés tia sin gu lar que lhes sal pin ta va apele de nu me ro sas man chas bran cas. Os ro bus tos e bra vos ipu ri nás ama lo -ca vam-se do Pa ciá ao Iaco, em am plos bar ra cões cir cu la res con ten do, às ve zes, cem pes so as às or dens de uma tu xa ua. Dali para cima os ca na ma -ris e ma ne te ne ris, à par te os pa ma nás e ja ma man dis, es con di dos nas sel vas.

Quem hoje sobe o Pu rus não os vê mais como os vi ram Sil vaCou ti nho, Chand less e Ma nu el Urba no. Os ipu ri nás fi gu ram-se mais nu me -ro sos, mas sem os ca rac te res de ou tro ra; e os puru-pu rus (pa u ma ris), que nosapa re ce ram, em nada mais re lem bram aque les cu ri o sos sel va gens, de todo

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∗ Hoje Ai a puá. N. do A.

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des pe a dos das ter ras mar gi na is e vi ven do em enor mes ma lo cas flu tu an tes,numa per ma nen te vi a gem, an co ran do ao aca so pe las pra i as e “bar re i ras”.

É que ce de ram o lu gar a uma imi gra ção in ten si va, ou fo ramab sor vi dos por ela. Já em 1862 Sil va Cou ti nho, avan çan do so men te atéHu i ta naã, pas sa ra por qua tor ze sí ti os ou bar ra cas, des de a foz (sí tio doPi can ço), onde está hoje Re den ção, até Ca nu ta ma (cos ta de Ca nu ta mã),que Ma nu el Urba no des bra va ra com au xí lio dos pa u ma ris.

Em 1866 o di re tor-ge ral dos ín di os, Ga bri el Gu i ma rães, nore la tó rio da que le ano, re fe re-se a cin co di re to ri as par ci a is, es tá ve is: AltoPu rus, Itu xi, Ta puá, Ari mã e Hi a puá.

Com pre en de-se que na que le mes mo ano o pre si den te da pro -vín cia, Dr. Epa mi non das Melo, re no vas se a an ti ga ten ta ti va duma na ve ga -ção re gu lar – que ao cabo se con tra tou com a Com pa nhia Flu vi al do Alto Ama zo nas, re a li zan do-se a pri me i ra vi a gem em de zem bro de 1869.

A so ci e da de, a prin cí pio er ran te, fi xa va-se, nor ma li zan do-se:uma co le to ria es ta be le ci da em Ca nu ta ma ar re ca da va no ano fi nan ce i rode 1867–1868 a ren da de 16:023$540, o que era evi den te pro gres sodado que a ren da toda do Pu rus nos quin ze anos an te ri o res(1852–1867), fora ape nas de 29:155$864. E por fim cri a va-se por ato de24 de mar ço de 1868 a Sub de le ga cia de Po lí cia do Alto Pu rus.∗

Apa re ce ram no vos pi o ne i ros. Antes de 1870 Ca e ta no Mon te i roe Bo a ven tu ra San tos avan ça ram na lan cha Ca na ma ri até aos mais re mo tospon tos, e um ser ta nis ta de sas som bra do, Le o nel Jo a quim de Alme i da, cons -ti tu ía-se mo de lo ad mi rá vel aos ri jos ce a ren ses que em bre ve o en cal ça ri am.

De fe i to, logo de po is de ina u gu ra da a na ve ga ção a va por(1869), es pra i ou-se pelo Pu rus afo ra, pro gre din do em avan ça men to inin -ter rup to, uma po de ro sa vaga po vo a do ra que ain da hoje não pa rou, per ti naz e in tor cí vel, fir man do-se no do mí nio es tá vel das ter ras so bre que vaipas san do e ani ma da de um rit mo que a im pe li rá às úl ti mas ca be ce i ras.

Este mo vi men to co me çou em 1870 e teve um guia, o Co ro nelAntô nio Ro dri gues Pe re i ra La bre. Efi caz men te au xi li a do por Ma nu el Urba -no, que o aga sa lha ra em Ca nu ta ma, o aven tu ro so ma ra nhen se pou co tem -

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∗ Re la tó rio da Pre si dên cia do Ama zo nas, de 1868. N. do A.

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po de po is pros se guiu pelo Pu rus aci ma, pas san do Hu i ta naã, ter mi nus da na -ve ga ção in ci pi en te, e foi es ta car nas vi zi nhan ças da con fluên cia do Itu xi.

Na que le pon to, so bre uma “bar re i ra” so bran ce an do a mar -gem di re i ta do rio, der ri bou um lan ço de flo res ta e ale van tou num diaum pa pi ri de fo lhas de pal me i ras.

Plan ta ra uma ci da de. Lá brea sur gi ria em bre ve, no de ser to,per pe tu an do-lhe o nome e tor nan do-se o mais avan ta ja do pon to deapo io à con quis ta que pros se guia.

Não ma ra vi lha que, em 1873, B. Brown e W. Linds to ne, vi a jan -do pelo Pu rus, no tas sem a toda a hora, fil tran do-se nas fo lha gens damata mar gi nal, ro los de fumo re ve lan do as bar ra cas em que se de fu ma va o “lá tex” das se rin gue i ras; e que, em Ma bi di ri e Se pa ti ni, dis tan tes maisde 1.300 qui lô me tros da foz, de pa ras sem opu len tos se rin ga is ex por tan -do 18.000 e 30.000 kg de bor ra cha.∗

Para não nos de lon gar mos de ma is não acom pa nha re mos emto das as suas fa ses esta ex pan são po vo a do ra, uma das mais enér gi casnão já da nos sa ter ra se não de toda a Amé ri ca do Sul.

O qua dro es ta tís ti co jun to∗∗ subs ti tu i rá com o seu ri go ris moarit mé ti co a mi nu ci o sa des cri ção. Tra çan do-o es co lhe mos pro po si ta da -men te os mais re mo tos pon tos ex plo ra dos no gran de rio, e ne les umtre cho ten do ape nas um dé ci mo da sua enor me ex ten são de 2.624 qui lô -me tros, toda ela ex clu si va men te po vo a da por bra si le i ros. Ora, con si de -ran do-se esse qua dro, vê-se que na dé ca da de 1873–1883 o po vo a men to se alas trou até Tri un fo Novo (1.375 mi lhas da foz), im pul si o na do porin fa ti gá ve is ex plo ra do res, em que se des ta cam Antô nio Fran cis co Ba ce lar, Ca si mi ro Pe re i ra Cal das e Antô nio Le o nel do Sa cra men to.

Qu an to ao de sen vol vi men to de todo o rio, in clu si ve o Acre –em cuja foz o va por che gou pela pri me i ra vez em 1878 –, o sim plescon fron to de sua ex por ta ção nos úl ti mos três anos da que le de cê nio com

Ca nu dos e Ou tros Te mas 173

∗ Fif te en Thou sand Mi les on the Ama zon and its Tri bu ta ri es, by C. Bar ring ton Brown andW. Lids to ne. N. do A.

∗∗ Vide o qua dro ane xo abran gen do so men te os 25 se rin ga is que se acham en treMa ca pá e So bral, e que são os mais lon gín quos do Pu rus. Estão de fato, comapro xi ma ção ra zoá vel, num dé ci mo ape nas da ex ten são do Pu rus en tre a sua foz e o úl ti mo sí tio bra si le i ro, So bral. N. do A.

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a do Ma de i ra põe de ma ni fes to que o Pu rus já era o mais rico en tre to -dos os rios da Ama zô nia.

EXPORTAÇÃO DE 1881 A 1883Do Pu rus Do Ma de i ra

Bor ra cha . . . . . . . . . . . . . . . 5.423.164 kg 3.545.995 kg

Cas ta nhas . . . . . . . . . . . . . . 40.749 hl 10.913 hl

Óleo de co pa í ba . . . . . . . . . 34.253 kg 11.908 kg

Pi ra ru cu seco . . . . . . . . . . . . 307.103 kg 26.438 kg

Sal sa par ri lha . . . . . . . . . . . . . 5.729 kg 281 kg

Cu ma ru . . . . . . . . . . . . . . . 1.073 kg 970 kg

Esta pro gres são as som bro sa, sal vo in sig ni fi can tes in ter mi tên ci as, con ti nu ou, ao me nos quan to à pro du ção da bor ra cha, aver ban do-se:1.950.000 kg, em 1884; 1.648.000, em 1885; 1.967.000, em 1886;1.990.000, em 1887...

Como se ve ri fi ca tam bém, num sim ples lan ce de vis tas so brea car ta ane xa a este re la tó rio, já na que le tem po se es ten di am pe las duasmar gens do Pu rus (não con tan do as do Itu xi, do Pa u i ni, do Ina o i ni, asdo Acre, do Iaco, etc.) mais de qua tro cen tos se rin ga is, além duma ci da de,Lá brea, eri gi da em co mar ca pela lei pro vin ci al de 14 de maio de 1881, euma pe que na vila, Ca nu ta ma.

Advir ta mos des de já que al guns des ses sí ti os são ver da de i rospo vo a dos, onde se dis tin guem só li das cons tru ções, cer to des gra ci o sas,mas am plas e cô mo das, con tras tan do bas tan te com as pri mi ti vas bar ra casde pa xi ú ba e ubu çu:

Ita tu ba, com vin te e duas vi ven das, na ma i o ria co ber tas depa lha, aden sa das so bre alta bar re i ra, a ca va le i ro das ma i o res en chen tes;Pa re pi, vin te e cin co ca sas numa in de ci sa abra do Pu rus, que ali sealar ga de mais de um qui lô me tro; Ali an ça, per to e a mon tan te de Ca -nu ta ma, com qua tor ze ha bi ta ções; For te de Ve ne za; Nova Co lô nia, comde zes se is, co ber tas, na ma i o ria, de te lhas; Aça í tu ba, em si tu a ção ad mi rá velso bre uma bar re i ra de ar gi la co lo ri da, ex tre man do um “es ti rão” di la ta do;

174 Eu cli des da Cunha

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Pro vi dên cia, com dois so bra dos, e ca sas dis pos tas em ar re me do de ruas;São Luís de Ca çi a nã, o ma i or se rin gal do Ba i xo Pu rus; Se bas to pol, lo ca -da em “ter ra fir me” com pla na da e alta, onde as vi ven das se ali nhambem cons tru í das, ex tre ma das por uma pe que na igre ja; Ca cho e i ra, commais de trin ta ca sas, um so bra do, uma ca pe la re cém-cons tru í da e vas tosar ma zéns; Re a le za, com oito, de te lha, gran de ar ma zém e mu i tas bar ra -cas; São Luís do Ma mo riá, de zes se is; Aju ri ca ba, em ter ras on du la das efir mes, ten do doze ca sas além da vi ven da se nho ril; Se ru ri, de zes se isca sas; Ca na cu ri, com vas tas ha bi ta ções, co ber tas de te lha; Boca doAcre, em ter re no alto de vin te e qua tro me tros so bre o rio, nas va zan -tes, mas cuja área não bas ta rá à ci da de que ali se há de eri gir em vir -tu de da sua si tu a ção pri vi le gi a da; Por ta Ale gre; Ara pi xi, nove ca sas eum so bra do re cém-cons tru í do; São Mi guel e Re den ção, qua se fron te i -ros, com vin te;∗ Cam po Gran de, com oito, ex tre man do lar ga al ti pla nu ra; Novo Ampa ro; Ta lis mã e Boa Espe ran ça, que se li gam na mes mamar gem, com de zo i to vi ven das, à par te as bar ra cas me no res; Ma ca pá,com os lo tes pró xi mos, quin ze vi ven das, sen do o bar ra cão so li da men tecons tru í do como os de ma is dos ou tros sí ti os; Ca ti a na; Bar ce lo na;Con cór dia, um dos ma i o res es ta be le ci men tos do Alto Pu rus; NovoDes ti no, com as suas vin te e duas ha bi ta ções or lan do alta bar ran ca; San ta Ma ria Nova; Li ber da de, com doze boas ca sas, além de nu me ro sas bar ra -cas; Ara ca ju e São Brás, de fron tan do-se, com mais de vin te vi ven das;Por to Ma mo riá, em ter re nos al tos e on du la dos, onde além de no tá vel ex tra ção de ca u cho e se rin ga se dis tin guem cul tu ras dos ce re a is maisco muns, etc.

∗ ∗ ∗

Ca nu dos e Ou tros Te mas 175

∗ Ma ri puá, ca sas de te lha e uma pe que na igre ja; Gu a jar raã, bar ra cões de te lha; Ca ça -duá, com dois gran des agru pa men tos de ca sas; Aju ri ca ba, en tre cu jas vi ven dasse des ta ca gran de so bra do de pe dra e cal; Qu i çiã, so bra do co ber to de te lha,gran des ar ma zéns, vas to po mar; Peri, mu i to bem cons tru í do, com ex ten sa pon teaté ao por to; Se pa ti ni, mu i tas ca sas de te lhas e gran de so bra do se nho ril, de pe drae cal; Pe nha do Ta pa uá, só li das vi ven das e uma ca pe la. Em São Luís do Ma mo riáestá o 4º ju i za do de ca sa men tos de Lá brea e exis te uma es co la, o que acon te ce em mu i tos ou tros. N. do A.

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No pe río do sub se qüen te (1882–1892) o po vo a men to não per -deu a mar cha ad qui ri da. Con si de ran do-se o úl ti mo tre cho do rio a que nosre fe ri mos, ve ri fi ca-se que só na que las re mo tas pa ra gens se fun da ram dozeno vos sí ti os. A ex por ta ção to tal do Pu rus em 1892 pe sa va so bre os mer ca -dos com 3.459.455 qui lo gra mas de bor ra cha, mais que o do bro da de 1885; e Lá brea apa re cia com as ma i o res par ce las nos qua dros de mons tra ti vos dasre ce i tas e des pe sas das in ten dên ci as do Ama zo nas, in clu si ve a de Ma na us.Ao mes mo tem po, amor te ci do o tu mul to das pri me i ras en tra das, a so ci e da -de re cém-es ta be le ci da nas no vas ter ras equi li bra va-se, dis ci pli na da;∗ e ia ge -ne ra li zan do a sua ati vi da de, for ran do-a à fa i na ex clu si va do pre pa ro da bor -ra cha, com a pe que na cul tu ra dos gê ne ros mais co muns, ain da que numaes ca la re du zi da ao con su mo lo cal. Em vol ta dos bar ra cões fi ze ram-se aspri me i ras der ru ba das, de sa fo gan do-os e afor mo se an do-os com as plan ta -ções re gu la res que vin cu la vam os po vo a do res à ter ra.

Mas a ex por ta ção da bor ra cha sob as suas vá ri as mo da li da des,que vão dos mais fi nos pro du tos da he vea, ao ca u cho e ao ser nam bi, con ti -nu ou a ser o mais se gu ro es ta lão no afe rir-se o pro gres so ge ral – que du -pli cou no de cê nio de 1892–1902, como o re ve la a sim ples re fe rên cia daspro du ções anu a is nos úl ti mos três anos da que le pe río do: 5.520.000 qui lo -gra mas, em 1900; 6.016.000, em 1901; e, em 1902, 6.750.000, isto é, maisdum ter ço da pro du ção to tal do Esta do do Ama zo nas.

As le vas po vo a do ras avas sa la vam qua se todo o Alto Pu rus. Àpar te os de ma is aflu en tes e en tre eles o Acre, onde, na que le pe río do, oím pe to das en tra das de ter mi nou gra ve con fli to com a Bo lí via, que nãovem ao nos so pro pó si to his to ri ar; ads trin gin do-nos ao cur so prin ci paldo Pu rus, ve mos que de 1898 a 1900 se fun da ram mais cin co es ta be le ci -men tos nos mais afas ta dos pon tos.

So bral, er gui do em 1898, a 9º 15’ 07” de lat., de mar ca hoje amais avan ça da ata la ia des sa enor me cam pa nha com o de ser to. Quem oal can ça, par tin do da foz do Pu rus e per cor ren do uma dis tân cia iti ne rá ria de 1.417 mi lhas, ou cer ca de qua tro cen tas lé guas, tem a pro va tan gí vel

176 Eu cli des da Cunha

∗ Extra to do Re la tó rio do Che fe de Se gu ran ça do Ama zo nas apre sen ta do em 1880 ao go ver -na dor do Esta do: “Con sig no, po rém, que du ran te o lon go pe río do abran gi do por este re la tó rio não se re pro du zi ram as lu tas san gui no len tas tra va das qua se sem pre por mo -ti vos de pos se de se rin ga is, nos rios Pu rus, Ma de i ra, Ju ruá e ou tros.” N. do A.

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de que qua tro quin tos do ma jes to so rio es tão com ple ta men te po vo a dosde bra si le i ros, sem um hi a to, sem a me nor fa lha duma área em aban do no,li ga das as ex tre mas de to dos os se rin ga is – es ti ran do-se uni da por todaaque la lo ngu ra, que lhe de fi ne ge o me tri ca men te a gran de za, uma so ci e -da de rude por ven tu ra, ain da, mas vi go ro sa e tri un fan te.

Por que se re a li zou ali, e ain da se re a li za, uma vas ta se le çãona tu ral. Para esse afo i tar-se com o des co nhe ci do não bas ta o sim plesane lo das ri que zas: re que rem-se uma von ta de, um des te mor es tói co, eaté uma com ple i ção37 fí si ca pri vi le gi a da.

Lá per sis tem ape nas os for tes. E so bre pu jan do-os pelo nú me ro,pelo me lhor equi lí brio or gâ ni co duma acli ma ção mais pron ta, pelaro bus tez e pelo gar bo no en fren ta rem pe ri gos, os ad mi rá ve is ca bo closce a ren ses que re ve la ram a Ama zô nia.

Há, cer to, na que la so ci e da de prin ci pi an te, os ví ci os e os des -man dos ima nen tes aos gran des des lo ca men tos so ci a is – e que ali re pon tam como re pon ta ram nos pri me i ros tem pos do Trans val e na azá fa matu mul tuá ria dos rushs no Far West, ou nas mi nas da Ca li fór nia. A pro pri e -da de mal dis tri bu í da, ao mes mo pas so que se di la ta nos la ti fún di os daster ras que só se li mi tam de um lado pe las be i ra das do rio, re duz-se eco -no mi ca men te nas mãos de um nú me ro res tri to de pos su i do res. O rudese rin gue i ro é du ra men te ex plo ra do, vi ven do des pe a do do pe da ço de ter rasem que pisa lon gos anos – e exi gin do, pela sua si tu a ção pre cá ria e ins -tá vel, ur gen tes pro vi dên ci as le gis la ti vas que lhe ga ran tam me lho resre sul ta dos a tão gran des es for ços. O afas ta men to em que jaz, agra va dopela ca rên cia de co mu ni ca ções, redu-lo, nos pon tos mais re mo tos, a umqua se ser vo, à mer cê do im pé rio dis cri ci o ná rio dos pa trões. A jus ti ça é,na tu ral men te, se rô dia ou nula.

Mas to dos es ses ma les, que fora lon go mi u de ar, e que nãove la mos, pro vêm, aci ma de tudo, do fato me ra men te fí si co da dis tân cia.De sa pa re ce rão, des de que se in cor po re a so ci e da de se qües tra da ao res to do país, e para isto re quer-se, des de já, como pro vi dên cia ur gen tís si ma,o de sen vol vi men to da na ve ga ção até ao úl ti mo pon to ha bi ta do, com ple -ta da pelo te lé gra fo, ao me nos en tre Ma na us e a boca do Acre.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 177

37 Lê-se, nas edi ções an te ri o res, com ple xão, o que é evi den te en ga no. N. do R.

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Ve re mos que tais me di das – so bra da men te com pen sa das com as pró pri as ren das atu a is da que las re giões – não de man dam dis pên di ose es for ços ex tra or di ná ri os.

IINas ca be ce i ras

Re su min do: a mar cha as cen si o nal do po vo a men to do Pu rusestá hoje em So bral. Entre tan to a car ta ane xa in di ca, a mon tan te da que lesí tio, ou tros: San ta-Rosa, Ca tai, São João, Cu ran ja, San ta Cruz... São pu es -tos ou ca se ríos pe ru a nos.

Mas não sig ni fi cam por ma ne i ra al gu ma o do mí nio de fi ni ti voe re gu lar da ter ra. Já o de mons tra mos no Re la tó rio mis to e nada nosres ta adi tar à lím pi da con ci são com que de fi ni ram a in cons tân cia pro ver -bi al dos ca u che i ros as li nhas que têm o alto va lor de se rem tam bémsubs cri tas pelo dig no co mis sá rio pe ru a no.

Não fora ge ne ro so re no var um as sun to em que a nos sa van ta -gem é in te gral e ful mi nan te.

No te mos ape nas, a cor rer, vá ri as cir cuns tân ci as mu i to sig ni fi -ca ti vas.

Os pe ru a nos só se lo ca li za ram no Pu rus de po is de 1900, ocu -pan do ape nas três sí ti os aquém de So bral, os de Ho sa na, Cru ze i ro(Inde pen dên cia) e Ori en te, na foz do rio Chand less – in si nu an do-se man -sa men te pe las ter ras des de mu i to ocu pa das por bra si le i ros.

Per mi tiu-lhes isto a ina ta ge ne ro si da de dos ru des ser ta ne jos,que ne les viam me nos o es tran ge i ro que só ci os na mes ma em pre sa con tra as di fi cul da des na tu ra is. Mas, trans cor ri dos os dois anos (1903), pre ten -deu-se san ci o nar po li ti ca men te o que era ape nas uma be né vo la to le rân cia: ten tou-se es ta be le cer, com todo o apa ra to ofi ci al, uma “co mi sa ría” pe ru a -na na foz da que le úl ti mo rio.

Então des pon ta ram as dis pa ri da des de ca rá ter, que tan tose pa ram “se rin gue i ros” e “ca u che i ros”, tor nan do-se ine vi tá vel o con fli to que nos ini bi mos de des cre ver, por de ma is sa bi do e em mu i tos epi só di osim pli ca ti vo da se re ni da de ima nen te a es tas pá gi nas.

178 Eu cli des da Cunha

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Obser ve-se ape nas, ain da mu i to de re lan ce, que os in va so res,re fu gin do à luta, ce de ram todo o ter re no que se lhes per mi ti ra cal car, ere cu a ram até San ta Rosa, na foz do Cu ri naá, ex tre mo se ten tri o nal da sua ocu pa ção.

Entre os dois sí ti os, So bral e San ta Rosa, es ti ra-se hoje a fa i xane u tra onde ain da se dis tin guem os res tos de dois pu es tos, Unión e For ta -le za, aban do na dos pe los ca u che i ros.

Mas este aban do no, im pos to pela luta, efe tu ar-se-ia, em cur topra zo e tran qüi la men te, des de que se der ri bas sem as ár vo res de ca u chomais vi zi nhas. Por que os sí ti os pe ru a nos, mes mo os ma i o res, comoCu ran ja ou Coca ma, são sim ples abar ra ca men tos.

Não há em toda a ex ten são, que vai de San ta Rosa às úl ti masca be ce i ras do Pu rus, uma úni ca casa de te lha. As vi ven das de pa lha, cons -tru í das em dez dias, de nun ci am a exis tên cia ins tá vel da so ci e da de nô ma de que des po ja a ter ra e vai-se em bo ra. Ca rac te ri za-a a in cons tân cia ir re qui e -ta dos “in fi e les” pre do mi nan tes em ma i o ria es ma ga do ra. Con tam-se cin -co pe ru a nos, em ge ral lo re ta nos, para cem pi ros, cam pas, ama u a cas, cô ni bos,xi pi vos, xa mas, co ro na u as e ja mi na u as, que to dos se de pa ram vá ri os nas usan -ças e na ín do le, uns e ou tros, já “con quis ta dos” a ti ros de ri fle, já ilu di dospor ex tra va gan tes con tra tos, jun gi dos à mais com ple ta es cra vi dão.

A fa mí lia não exis te: não se apon ta um ca sal uni do le gal men te na ma i o ria dos sí ti os, se não em to dos; e pres sen te-se em tudo o de sen -so fri do duma per pé tua vés pe ra de vi a gem na que las es ca las pro vi só ri asem que o ho mem pre de ter mi na fi car, um, dois, três anos no má xi mo,para en ri que cer e par tir, e não vol tar.

Os “tam bos” eri gem-se de re pen te numa cla re i ra; ani mamru i do sa men te du ran te al gum tem po um re can to da mata; e es va zi am-se,e ar ru i nam-se, e de sa pa re cem no aba fa men to das li a nas.

Cu ran ja há dois anos ti nha cer ca de mil ha bi tan tes. Tem ago ra uns cen to e cin qüen ta, e es ta rá aban do na da den tro em pou co se os ca u -che i ros não vin ga rem su plan tar os co ro na u as bra vi os, ain da se nho res dasca be ce i ras do rio que ali aflui.

Ca tai, sí tio aber to por um bra si le i ro, o ve lho João Jo a quim deAlme i da, de Fron te i ra do Cac i a nã, es ta ria em ru í nas se não o es co -lhes sem para sede da Co mis são Mis ta Admi nis tra ti va.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 179

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Em Sham bo ya co, qua se fron te i ro à foz do rio Ma nu el Urba no, ame lhor cul tu ra, um vas to man di o cal so bre pe que na co li na, é de um ín diocam pa,∗ o cu ra ca Antô nio, es ta be le ci do aci ma do pu es to pe ru a no.

Co ca ma e San ta Cruz, ani ma dís si mos hoje, têm a du ra çãoli ga da aos úl ti mos tron cos das cas til lo as que pro fu sa men te ain da vi çamnas suas cer ca ni as e não du ra rão três anos.

Em Tin go le a les um imen so ba na nal e uma cul tu ra mais per -ma nen te de al go dão, per ten cem ain da a um cam pa, o cu ra ca∗∗ Ve nân cio,emi gra do do Uca iá li.

Por fim, Aler ta, na con fluên cia Cu jar–Cu ri ú ja, onde a pró priare si dên cia prin ci pal se re duz a um vas to “tam bo” de pa xi ú ba, não temou tra cul tu ra dig na de nota além das iú cas e ca nas plan ta das pe las mu -lhe res ama u a cas.

Entre tan to na que la es tân cia a ter ra é de exu be rân cia rara eon du la em su a ve ser ra nia, alon gan do-se pe las mar gens do Pu rus e doCu jar, ofe re cen do mag ní fi ca base a uma fa zen da mais du ra dou ra e prós -pe ra. Mas para isto exi gem-se ou tros es tí mu los além do an se io da ri que zafá cil, dos que ali che gam dis pos tos a pe na rem du ran te três anos parafa ze rem jus à exis tên cia opu len ta nou tros cli mas.

Nada mais além des sa pre o cu pa ção ex clu si va, fora da qualnão se vis lum bram ou tros agen tes de co e são so ci al.

IIITre chos que de vem ser me lho ra dos –

Urgên cia da na ve ga ção re gu lar até às ca be ce i ras

Da foz do Pu rus para as suas ca be ce i ras no tam-se mo di fi ca çõesna es tru tu ra do le i to e re gi me das águas, que se su ce dem em tran si çõesas mais das ve zes in sen sí ve is por meio de di la ta das dis tân ci as. A prin cí -pio pre pon de ram as vár ze as qua ter ná ri as, que o de sa fo gam nas en chen -tes, e por onde di va gam os ca na is que o pren dem ao So li mões, re fle tin do

180 Eu cli des da Cunha

∗ Os cam pas, gra ças à bra vu ra pes so al, con ser vam a pri mi ti va li ber da de, ape nas ilu -di das nas tor tu o si da des dos con tra tos que ece i tam. N. do A.

∗∗ Curaca corresponde a taxuada dos índios amazônicos; é o chefe. N. do A.

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na in cons tân cia das suas cor ren tes que ora, na va zan te, vão do tri bu tá rio para o rio prin ci pal, ora des te para aque le, nas che i as, os úl ti mos tra çosda evo lu ção ge o ló gi ca da Ama zô nia que se en cer ra. Enre dam-se os fu rose pa ra ná-mi rins, cer to ain da em com pli ca das ma lhas dis ten di das so brevas tas su per fí ci es, mas cada vez me nos far tos e ex tin guin do-se es con di dospe los iga pós, à me di da que o es for ço con tí nuo e im per cep tí vel da flo raexu be ran te, do mi nan do a vi o lên cia in ter mi ten te das águas, vai cons tru in doa ter ra, so bre que fi cam como fu gi ti vos es bo ços, cada vez mais apa ga dos,de seu fa ci es an ti go, os nu me ro sos la gos que a sal pin tam.

Esses úl ti mos, às duas mar gens do Pu rus, já exis tem hoje àcus ta das so bras do gran de rio. Ver da de i ros re ser va tó ri os com pen sa do resali men tam-nos as che i as trans bor dan tes; e, quan do o ní vel da que le des ce,rom pem-se-lhes as es tre i tas bar ra gens mar gi na is, vol ven do as águas para o Pu rus, cuja va zan te em par te se ate nua com es sas re ser vas das en chen tes.

As ter ras fir mes, de quin ze a vin te me tros de al tu ra re la ti va,cons ti tu í das in va ri a vel men te de pos san tes ca ma das de ar gi la co lo ri da, ca in -do em ta lu des vi vos para o rio, apa re cem sob o nome lo cal de “bar re i ras”em pon tos ain da lon ga men te es pa ça dos até as cer ca ni as de Ca nu ta ma.

De sor te que todo este pri me i ro tre cho, de 543 mi lhas, a con tar da foz, de ri van do numa pla nu ra qua se uni for me e de di mi nu to de cli veque im pri me às águas uma cor ren te za in sig ni fi can te, é fran ca men te aces sí -vel à gran de na ve ga ção, mes mo nas ma i o res va zan tes em que só a per tur -ba rá um ou ou tro ba i xio nas vi zi nhan ças do Ta pa uá a Ca ra tiá.

No in ter va lo de 110 mi lhas, en tre Ca nu ta ma e Lá brea, vãode se nhan do-se no vos as pec tos e uma es tru tu ra mais de fi ni da. Alar -gam-se as “ter ras fir mes” so bre tu do nas al tas bar ran cas de Açaí tu ba,Uma ri e Pa ciá; e no le i to do rio, ao fim das va zan tes, re pon tam as pri me i ras pe dras de grés fer ru gi no so (Pa rá sand ste in), des ven da das pela ero são, prin -ci pal men te em Api tuã e na vol ta de Ja di ba ru.

De Lá brea para Ca cho e i ra (158 mi lhas) vai num cres cen do anova con for ma ção dos ter re nos e sur gem mais nu me ro sos os sí ti os ina -ces sí ve is às en chen tes: Lá brea, São Luís, Se bas to pol, Ca ta tiá, Hu i ta naã emu i tos ou tros onde já se de li ne i am di mi nu tos per fis de cer ros on de an tes.Ao mes mo tem po di mi nu em os fu ros; de fi ne-se me lhor o tra ça do do rio; e as for ma ções de grés au men tam, subs ti tu in do-se os ba i xi os e ra rospaus das gran des es ti a gens, pe las pe dras que se mos tram não já lon ga -

Ca nu dos e Ou tros Te mas 181

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men te in ter va la das se não cada vez mais pró xi mas à me di da que seavan ça, avul tan do em Cac i a nã e tor nan do-se nu me ro sís si mas da Ca cho -e i ra para mon tan te. O nome des te lu gar re ve la a tran si ção do le i to, em -bo ra as pe dras que aí o per tur bam não im pos si bi li tem a pas sa gem daslan chas, mes mo nas va zan tes, e mal apon tem à flor das águas em mon tí -cu los dis per sos de blo cos fra tu ra dos.

Lá está, po rém, a es ta ção ter mi nus da atu al na ve ga ção a va por∗

e dos na vi os de mais de seis pés, no pe río do que vai de fins de abril aprin cí pi os de no vem bro; e isto não em vir tu de da Ca cho e i ra (por que ade no mi na ção é exa ge ra dís si ma), se não por que dali por di an te até à boca do Acre raro se apon ta um “es ti rão” ou uma pra ia onde não abro lhem,ora ilha das em acer vos, ora ar re mes san do-se em pe que nos pro mon tó ri os, as mes mas pe dras de grés de que tra ta mos. Ci tam-se de Ca cho e i ra paracima como pa ra gens mais pe ri go sas, onde, de fato, se vêem mu i tos res -tos de em bar ca ções na u fra ga das – as do Pa co val, Peri, Ermi da, Bo ta fo -go, Aju ri ca ba, Ca ça duá, San ta Qu i té ria, Can to da For tu na, Gu a jar raã,San ta Cruz, Ter ruã, Se ru ri, Te nha-Modo, Ta ca qui ri, Can ta ga lo, Qu i riã,etc., até à foz do Acre.

Entre tan to, ape sar des ta re se nha alar man te, pode-se afir mar quetodo este enor me tra to do Pu rus, da sua foz à do Acre, com 1.060 mi lhas, é na ve gá vel, mes mo em ple na es ti a gem, para va po res de ses sen ta a oi ten ta to -ne la das, des de que eles se cons tru am mais afe i ço a dos aos ca rac te res téc ni -cos do rio, e se fa çam pe que nos re pa ros nos pon tos que ci ta mos.

Há hoje em bar ca ções do por te de qua ren ta to ne la das, e mais,ca lan do, no má xi mo, dois pés; e para es tas sem ne nhum re pa ro aque latra ves sia só exi gi rá as ca u te las de um prá ti co qual quer.

Os re pa ros in dis pen sá ve is a fran que ar-se in te i ra men te, emqual quer es ta ção, o gran de rio até àque le pon to não acar re ta rão, alémdis to, des pe sas ex cep ci o na is, aten ta à na tu re za da ro cha e a sua fra tu rage ne ra li za da, li mi tan do-se o tra ba lho a uma re mo ção de blo cos. Por queas de ma is con di ções são al ta men te fa vo rá ve is: o cur so das águas é tran -qüi lo, sem con tra cor ren tes ou re mo i nhos, de ri van do com uma ve lo ci da -de cujo má xi mo, três mi lhas, só é atin gi do, em ra ros pon tos, nas en chen -

182 Eu cli des da Cunha

∗ Ama zon Ste am Na vi ga ti on Com pany, Li mi ted. (Sub ven ci o na da.) N. do A.

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tes; a lar gu ra de cres ce con tí nua e in sen si vel men te de 1.660 me tros nafoz para 1.300 me tros em Pa ri ca tu ba, para 600 me tros per to do Ta pa uá,para 320 na Ca cho e i ra e 236 na con fluên cia do Acre; a pro fun di da deque di mi nui tam bém uni for me men te, nas en chen tes, de vin te e cin come tros na foz para de zes se is me tros na Ca cho e i ra, com por ta, como vi -mos, na va zan te, os ca la dos das em bar ca ções nor ma is; e afi nal, a des pe i -to de um tra ça do si nu o sís si mo, não há vol tas vi vas ca pa zes de per tur bara pas sa gem dos ma i o res va po res.

Da foz do Acre para as ca be ce i ras mo di fi ca-se ain da o re gi me do rio. As pe dras di mi nu em, em bo ra ain da aflo rem, so bre tu do, em SãoMi guel, Pau do Alho, até além da Li ber da de, onde o grés fer ru gi no so ésubs ti tu í do por um con glo me ra do du rís si mo.

As “ter ras fir mes” são mais al tas, ex pan din do-se em ma i o resáre as, cor ren do o rio mais en ca i xa do en tre bar ran cos, que não as so ber ba nas ma i o res en chen tes.

Ao mes mo pas so au men ta a for ça da cor ren te, que fi xa re mosem 3,3 mi lhas por hora, nas che i as.∗ Daí a con se qüên cia ine vi tá vel dummais in ten so ata que das par tes côn ca vas das mar gens e o de sa ba men tode las em gran des lan ces ar ras tan do as ár vo res, que sus têm, indo ar re ba -ta dos pela cor ren te za tron cos e ga lhos nu me ro sos que não raro obs tru em o le i to, en quan to as “ter ras ca í das” for mam os “tor rões” e ba i xi os.

Estes no vos en tra ves subs ti tu em as pe dras do Ba i xo Pu rus esão mais sé ri os, por que, ori gi nan do-se de um es for ço per ma nen te daságuas, exi gem ser vi ço de con ser va or ga ni za do e cons tan te, que nun ca ali hou ve. As mui ra ras lan chas, que vão além do Iaco, evi tam a su bi dadu ran te a es ti a gem, de sor te que as co mu ni ca ções se fa zem ape nas àcus ta das mon ta ri as e ubás, ap tas a se in si nu a rem en tre os paus ou a des -li za rem so bre os ban cos.

Entre tan to, ain da nes ta se ção, não se ria mu i to dis pen di o soum ser vi ço sis te má ti co de me lho ra men to, que a pou co e pou co a afe i -ço as se a uma na ve ga ção mais re gu lar e rá pi da.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 183

∗ É um ma xi mum atin gi do em ra rís si mos pon tos. No es ti rão logo aci ma do Acre,en con tra mos pou co mais de uma mi lha por hora, em prin cí pi os de maio, numaen chen te mé dia. N. do A.

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Não pre ci sa mos dar ma i or des ta que à im pe ri o sa ne ces si da dede um tal ser vi ço. Bas ta con si de rar-se que do Iaco para cima, onde seeri gem mais de 120 se rin ga is bra si le i ros, os trans por tes e co mu ni ca çõeses tão ads tri tos à pas sa gem ale a tó ria de ra rís si mas lan chas, e de uma ouou tra ca noa, em tra ves sia es co te i ra. Entre tan to, a re mo ção par ci al dospaus, que em tre chos sal te a dos atra van cam o rio, se ria fa cí li ma, fa cul tan -do des de logo, em qual quer tem po, um trá fe go de vi a gens se gui das,mes mo para as lan chas de três pés de ca la do.∗

∗ ∗ ∗

Estes re pa ros po de ri am, de po is, ser com ple ta dos por umou tro de efe i tos ad mi rá ve is, ante as pe que nas des pe sas que acar re ta rá.Re fe ri mo-nos à re ti fi ca ção de mu i tos tre chos por meio da se ção dos“sa ca dos”, es tas for mas tão cu ri o sas dos rios ama zô ni cos que não es -ca pa ram à mes ma in cu ri o si da de dos sel va gens, que lhes de ram, numa e nou tra ban da, no Bra sil e no Peru, os no mes de ti pish cas e abu ninys.

Re al men te, do Acre para cima, as si nu o si da des ca rac te rís ti casdo Pu rus são mais sen sí ve is, mer cê da me nor lar gu ra do le i to, tor nan -do-se tam bém mais del ga dos os su ces si vos ist mos que se pa ram as suasmar gens fun da men te re cor ta das. Des te modo a tra ves sia de um paraou tro pon to da mes ma bor da, que exi ge em al guns tre chos mu i tas ho ras de na ve ga ção, efe tua-se em pou cos mi nu tos, por ter ra.

Con si de rem-se na plan ta que apre sen ta mos, en tre mu i tos ou -tros, os se guin tes pon tos, da con fluên cia do Acre para mon tan te:

1º Pau do Alho–Ca me tá: dis tam, por ter ra, cer ca de uma mi lha,e mais de dez por água. Um ca mi nhan te, a pé, em pas so na tu ral, faz emvin te mi nu tos a vi a gem dum dia de na ve ga ção a remo;

2º Vis ta Ale gre–San ta Ma ria: o ist mo tem 462 me tros de lar go(cin co mi nu tos de mar cha), en quan to a cur va tu ra do rio tem um de sen -vol vi men to de quin ze qui lô me tros;

184 Eu cli des da Cunha

∗ Mes mo no es ta do atu al de com ple to aban do no do rio, a nos sa lan cha Cu nha Go mese a pe ru a na Chu a pa nas, ca lan do cer ca de cin co pés, su bi ram em ple na es ti a gem qua -se, em fins de maio, até São Brás; e a N-4 da nos sa Ma ri nha, ca lan do mais de trêspés, foi de São Brás à con fluên cia do Chand less em pou cas ho ras. N. do A.

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3º Si lên cio–Si lên cio de Cima: atra ves sa-se o ist mo em meio mi nu to,tem po re que ri do, no má xi mo, a per cor rer-se a sua lar gu ra de trin ta me tros,ao pas so que a na ve ga ção é de 6.500 me tros, em vol ta qua se fe cha da;

4º São Jor ge–Novo Mi ra dor: vai-se em vin te e dois mi nu tos, fol ga da -men te, de um des tes pon tos a ou tro, o que pelo rio de man da rá mu i tas ho ras.

Po de ría mos pro lon gar a lis ta enu me ran do ou tros nas cer ca ni asda foz do Chand less, no Fu nil, no Mu ro nal, em San ta Rosa, e de Cu ran ja para cima. Mas os exem plos re fe ri dos são bem sig ni fi ca ti vos. De les seco lhe ain da que além do en cur ta men to das dis tân ci as es sas aber tu rasdos ist mos acar re ta rão ou tras van ta gens. Re al men te, em to dos os tre chosque se re ti fi ca rem, as que das de ní vel que se dis tri bu íam em lon gascur va tu ras irão efe tu ar-se, mais de gol pe, em di mi nu tos tra ça dos re ti lí -ne os. Assim a cor ren te za au men ta rá sen si vel men te e com ela, con so an te um fato co nhe ci do,∗ a es ca va ção do le i to, o que será um ele men to fa vo -rá vel para a de sobs tru ção dos lu ga res a ju san te. É cer to que, a pou co epou co, o rio irá re ad qui rin do a si tu a ção de equi lí brio an te ri or, por umalon ga men to do tra ça do, de gra dan do ou tras bar ran cas e tor cen do-se emou tras vol tas; mas os efe i tos do pri me i ro des ni ve la men to já es ta rão com ple -tos, sen do fa cil men te man ti dos por uma con ser va re gu lar e con tí nua.

Estes cor tes não exi gem dis pen di o sos tra ba lhos. Efe tu -am-nos por ve zes os si ti an tes ri be i ri nhos com os di mi nu tos re cur sosque pos su em.

O pro ces so é pri mi ti vo e sim ples. Con sis te em des co brir naar que a du ra a mon tan te o pon to mais ata ca do pelo rio, abrin do-se nelaum valo ou cava em toda a al tu ra da bar ran ca, com ple ta da em cima, namata, por uma pi ca da em li nha reta que vá in ter fe rir a mes ma mar gem aju san te, na ou tra vol ta. É o tra ba lho úni co. O res to en tre ga-o ao pró prio rio. So bre vém a en chen te; as águas, cuja vi o lên cia cres ce com a cor ren -te za, tor ve li nham pe ne tran do no pe que no valo e so la pa-o numa cor ro -são for tís si ma des de a base, ata can do-o em to dos os pon tos à me di da

Ca nu dos e Ou tros Te mas 185

∗ “A re ti fi ca ção do Izar de ter mi nou (de 23 de ou tu bro de 1878 e de 14 de fe ve re i ro de 1885) um ba i xa men to do le i to de 1.443m, em cin co qui lô me tros de ex ten são.A do Reno, na pla ní cie ale mã per to de Alsá cia, di mi nu in do o per cur so de 23%(81 qui lô me tros), mo ti vou o aba i xa men to do le i to, de mais de dois me tros, en treRhe in we il ler e Ne u en burg...” – A. de Lap pa rent. – Géo grap hie Physi que. N do A.

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que so bem, e de ter mi nan do as ca í das de ter ra que o re pro fun dam e alar gam. E se do mi nam a cris ta da bar ran ca, es pra i an do-se pela mata, acom pa -nham, na tu ral men te, for man do às ve zes ver da de i ra cor ren te za, o de sim -pe di do do tri lho que se abriu atra ves san do o ist mo.

Des ta sor te o ca nal vai abrin do-se por um du plo es for ço deefe i tos ex tra or di ná ri os ao fim de al gu mas en chen tes.

É o pro ces so pri mi ti vo e ge ral men te em uso.Mas é len to e pode ser me lho ra do, so bre tu do con si de ran do-se

o per ma nen te au xí lio do pró prio rio. Bas te-nos no tar que este pela suaação ex clu si va vai re ti fi can do-se sen si vel men te em mu i tos pon tos.

Com pa re-se a car ta atu al com a de W. Chand less, e ver-se-ãodi ver gên ci as ori un das ape nas des se fato. Assim para ci tar ape nas um pe -que no nú me ro, se des ta cam en tre os sa ca dos mais mo der nos: o de Qu i -be bu ri an, aber to pelo só es for ço das águas em 1884; o de São Jo a quim,per to de Ma piá, em 1883; o de Ca ra tiá aba i xo de Ca nu ta ma, em 1900,onde a di re ção do rio se des lo cou, de gol pe, de qua se 90º; e o de Ju ru -cuá, em 1903. Nes te úl ti mo pas sam hoje, mes mo na es ti a gem, em bar ca -ções ca lan do cin co pés, e re duz-se a pou co mais de uma mi lha a tra ves -sia an te ri or que se alon ga va numa vol ta de seis, apro xi ma da men te.∗

Nou tros pon tos ain da não se ul ti mou o es for ço per sis ten te das águas,mas o seu pro gre di men to é vi sí vel. Com pa rem-se, por exem plo, as duascar tas nas cer ca ni as da foz do Se pa ti ni: ver-se-á que os com pli ca dos me -an dros que ali se re tor cem já acen tu a ram vi va men te as suas vol tas, nãosen do di fí cil pre ver-se em pou cos anos um gran de en cur ta men to do tra -ça do, pelo rom pi men to de dois ist mos e for ma ção si mul tâ nea de doisvas tos cir cos de ero são, mais dois la gos anu la res cen tra li za dos por umailha, a exem plo dos que no Ano ri, na Pro vi dên cia e em Vera Cruz vãoajus tan do-se às duas ban das do Pu rus e de se nhan do, numa im pri ma du ra fi de lís si ma, to das as fa ses da sua evo lu ção ge o ló gi ca no tá vel.

Da For qui lha para as nas cen tes, pe los dois ga lhos Cu jar e Cu ri -ú ja, as vi a gens, em qual quer tem po, po dem re a li zar-se em ubás e mes mo

186 Eu cli des da Cunha

∗ Da boca do Acre à For qui lha de sen vol vem-se 607 mi lhas, ao pas so que em li nhareta há 290 mi lhas. Assim, a dis tân cia iti ne rá ria, ali, é mais do do bro da ge o grá fi ca, sen do fá cil con clu ir-se que os tra ba lhos pre ci ta dos po de rão re du zir con si de ra vel -men te esta di fe ren ça no tá vel. N. do A.

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em gran des mon ta ri as. Nós a efe tu a mos em ple na es ti a gem (ju lho e agos -to) em pe sa das ca no as de ita ú ba. Mas a na ve ga ção ali ja ma is per de rá estafor ma pri mi ti va. As nu me ro sas ita i pa vas e que das, ta lha das de or di ná rioem ro cha viva du rís si ma, exi gi rão tra ba lhos ex cep ci o na is, que re dun da ri -am tal vez em ma i o res di fi cul da des e es tor vos – por que, como já o no ta -mos, na ex tre ma es cas sez de águas da que les dois rios, as pe que nas ca cho -e i ras têm o efe i to de bar ra gens, anu lan do a mon tan te lon gos e su ces si vosba i xi os. Os nos sos ca no e i ros e va re ja do res re a ni ma vam-se quan do as en -con tra vam. Vi nham su cum bi dos de can sa ço na len ta tra ves sia dos ra sos“es ti rões” – onde as qui lhas em be bi das na are ia exi gi am o em pre go deala van cas – e es ta vam cer tos de que trans pon do-as te ri am a mon tan te um ou dois qui lô me tros de na ve ga ção de sa fo ga da e li vre.

Nas en chen tes to das as pe dras dos rá pi dos são co ber tas pe laságuas, fa vo re cen do a pas sa gem a va po res de re gu lar ca la do. Mas istocom os ma i o res ris cos por que o ní vel de las pode ba i xar de sú bi to de i -xan do-os em seco, no alto de uma bar ran ca, além de que tal vez não ven -çam a rá pi da cor ren te za ca paz de ar re mes sá-los de en con tro às con ca vi -da des das nu me ro sas vol tas em ex tre mo vi vas, em que co le i am os doispe que nos rios. Os mes mos ín di os nas ubás ali ge i ra das aguar dam na que -les pon tos que se ate nu em as en chen tes para re a ta rem as jor na das in ter -rom pi das pe los gran des re pi que tes.

∗ ∗ ∗

Ter mi nan do es tas bre ves con si de ra ções ad vir ta mos que elasvi sam so bre tu do atra ir a aten ção dos po de res pú bli cos para este as sun to de re le vân cia in tu i ti va. A in cum bên cia hon ro sís si ma que nos le vouàque le de par ta men to do nos so país era, por sua na tu re za, ex pe di ta: nãocom por ta va va ga res para es tu dos que nos apa re lhas sem a apre sen tar es cla -re ci men tos por me no ri za dos e se gu ros acer ca dos ca rac te res téc ni cos das vá ri as se ções que apon ta mos, ou a de fi nir a im por tân cia dos me lho ra -men tos re que ri dos com as par ce las dum or ça men to ri go ro so.

No qua dro que adi ta mos a es tas pá gi nas, in di ca mo-los sobum as pec to ge ral. É um es bo ço em lar gos li ne a men tos, mas ab so lu ta -men te fiel. Po de rá ser avi va do em vá ri os pon tos; em ne nhum, cor ri gi do. Dele se co li ge que o Pu rus pode ser fran ca men te aces sí vel à gran dena ve ga ção re gu lar, inin ter rup ta, até à For qui lha, numa dis tân cia iti ne rá -

Ca nu dos e Ou tros Te mas 187

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ria de 1.667 mi lhas, des de que a sua na ve ga bi li da de in com pa rá vel se re -ma te ape nas com al guns re pa ros de todo alhe i os a pro ces sos ou ser vi çosex cep ci o na is de en ge nha ria.

Ora, só nes te tre cho (3.087 qui lô me tros), não in clu in do osseus nu me ro sos tri bu tá ri os, ele do mi na todo o de sen vol vi men to defa mo sos cur sos d’água en tre os ma i o res da Ter ra∗ e ocu pa, como riona ve gá vel, o pri me i ro lu gar en tre to dos os do nos so con ti nen te, ex clu í dos o Ama zo nas e o Pra ta.

Vi mos, por ou tro lado, em bo ra mu i to de re lan ce, em pá gi nasan te ri o res, a sua con si de rá vel im por tân cia eco nô mi ca.

Não pre ci sa mos pros se guir, de mons tran do a ne ces si da de, aur gên cia im pe ri o sa e a van ta gem, sob to das as for mas in cal cu lá vel, deuma na ve ga ção que em bre ve há de trans fi gu rar as pa ra gens por onde se alon ga a mais di la ta da di re triz da ex pan são do nos so ter ri tó rio.

Rio, 10 de mar ço de 1906Eu cli des da Cu nha

188 Eu cli des da Cunha

∗ No tem-se ao aca so: o Da nú bio (2860 qui lô me tros), o Reno (1.300), o Dni e per(2.150), o Ori no co (2.250), o Gan ges (3.000), o Amu-Da ria (2.200), o Mur ray(2.870), o Oran ge (2.050), o Zam be ze (2.660), etc.Obser vem-se tam bém en tre os ma i o res aflu en tes do ama zo nas: o Ma de i ra é in -ter rom pi do pela se ção en ca cho e i ra da que co me ça em San to An tô nio (670 mi lhasda foz); o Ta pa jós, de po is de 1.300 qui lô me tros, in ter rom pe-se no Sal to Au gus to; o To can tins mais per to ain da da con fluên cia, de onde dis ta 133 mi lhas a ca cho e i -ra do Gu a ri bas; o rio Ne gro, de po is de São Gabri el, naõ é um rio na ve gá vel, etc.O Purus de sen vol ve-se em 3.087 qui lô me tros sem a mais di mu nu ta que da, ouáguas que bra das. N. do A.

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Últi ma vi si ta

30 de se tem bro de 1908 Jor nal do Co mér cio – Rio

NA NOITE em que fa le ceu Ma cha do de Assis, quempe ne tras se na vi ven da do Po e ta, em La ran je i ras, não acre di ta ria quees ti ves se tão pró xi mo o de sen la ce de sua en fer mi da de. Na sala de jan tar, para onde di zia o quar to do que ri do mes tre, um gru po de se nho ras –on tem me ni nas que ele car re ga ra nos bra ços ca ri nho sos, hoje no bi lís si -mas mães de fa mí lia – co men ta vam-lhe os lan ces en can ta do res da vida ere li am-lhe an ti gos ver sos, ain da iné di tos, ava ra men te guar da dos emál buns ca pri cho sos. As vo zes eram dis cre tas, as má go as ape nas re bri lha -vam nos olhos ma re ja dos de lá gri mas, e a pla ci dez era com ple ta nore cin to, onde a sa u da de glo ri fi ca va uma exis tên cia, an tes da mor te.

No sa lão de vi si tas viam-se al guns dis cí pu los de di ca dos, tam -bém apa ren te men te tran qüi los.

E com pre en dia-se des de logo a an ti lo gia de co ra ções tão aopa re cer tran qüi los na imi nên cia de uma ca tás tro fe. Era o con tá gio dapró pria se re ni da de in com pa rá vel e emo ci o nan te em que ia a pou co epou co ex tin guin do-se o ex tra or di ná rio es cri tor. Re al men te, na fase agu dada sua mo lés tia, Ma cha do de Assis, se por aca so tra ía com um ge mi do e

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uma con tra ção mais viva o so fri men to, apres sa va-se em pe dir des cul pasaos que o as sis ti am, na ân sia e no apu ro gen ti lís si mo de quem cor ri geum des cu i do ou in vo lun tá rio des li ze. Tim bra va em sua pri me i ra e úl ti ma dis si mu la ção: a dis si mu la ção da pró pria ago nia, para não nos ma go arcom o re fle xo da sua dor. A sua in fi ni ta de li ca de za de pen sar, de sen tir e de agir, que no tra to vul gar dos ho mens se ex te ri o ri za va em ti mi dezem ba ra ça do ra e re ca ta do re tra i men to, trans fi gu ra va-se em for ta le zatran qüi la e so be ra na.

E gen ti lis si ma men te bom du ran te a vida, ele se tor na va gen -til men te he rói co na mor te...

Mas aque la pla ci dez au gus ta des per ta va na sala prin ci pal,onde se re u ni am Co e lho Neto, Gra ça Ara nha, Má rio de Alen car, JoséVe rís si mo, Ra i mun do Cor re ia e Ro dri go Otá vio, co men tá ri os di ver gen tes. Re su mia-os um amar go de sa pon ta men to.

De um modo ge ral, não se com pre en dia que uma vida quetan to vi veu ou tras vi das, as si mi lan do-as por meio de aná li ses su ti lís si -mas, para no-las trans fi gu rar e am pli ar, afor mo se a das em sín te ses ra di o sas – que unia vida de tal por te – de sa pa re ces se no meio de ta ma nha in di fe -ren ça, num cír cu lo li mi ta dís si mo de co ra ções ami gos. Um es cri tor da es -ta tu ra de Ma cha do de Assis só de ve ra ex tin guir-se den tro de uma gran -de e no bi li ta do ra co mo ção na ci o nal.

Era pelo me nos de sa ni ma dor tan to des ca so – a ci da de in te i ra, sem a vi bra ção de um aba lo, de ri van do im per tur ba vel men te na nor ma li -da de da sua exis tên cia com ple xa quan do fal ta vam pou cos mi nu tos paraque se cer ras sem qua ren ta anos de li te ra tu ra glo ri o sa...

Nes te mo men to, pre ci sa men te ao enun ci ar-se este ju í zo de sa -len ta do, ou vi ram-se umas tí mi das pan ca das na por ta prin ci pal da en tra da.

Abri ram-na. Apa re ceu um des co nhe ci do: um ado les cen te, de16 a 18 anos no má xi mo. Per gun ta ram-lhe o nome. De cla rou ser des ne -ces sá rio dizê-lo: “Nin guém ali o co nhe cia; não co nhe cia, por sua vez,nin guém; não co nhe cia o pró prio dono da casa, a não ser pela le i tu ra deseus li vros, que o en can ta vam. Por isto ao ler nos jor na is da tar de que oes cri tor se acha va em es ta do gra vís si mo ti ve ra o pen sa men to de vi si tá-lo.Re lu ta ra con tra essa idéia, não ten do quem o apre sen tas se: mas nãolo gra ra ven cê-la. Que o des cul pas sem, por tan to. Se não lhe era dado ver o en fer mo, des sem-lhe ao me nos no tí ci as cer tas do seu es ta do.”

190 Eu cli des da Cunha

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E o anô ni mo ju ve nil – vin do da no i te – foi con du zi do aoquar to do do en te.

Che gou. Não dis se uma pa la vra. Ajo e lhou-se. To mou a mãodo mes tre; be i jou-a num belo ges to de ca ri nho fi li al. Acon che gou-ode po is por al gum tem po ao pe i to. Le van tou-se e, sem di zer pa la vra,saiu.

À por ta José Ve rís si mo per gun tou-lhe o nome. Dis se-lho. Mas deve fi car anô ni mo. Qu al quer que seja o des ti no des sa

cri an ça, ela nun ca mais su bi rá tan to na vida. Na que le mo men to o seuco ra ção ba teu so zi nho pela alma de uma na ci o na li da de. Na que le meiose gun do – no meio se gun do em que ele es tre i tou o pe i to mo ri bun do deMa cha do de Assis – aque le me ni no foi o ma i or ho mem de sua Ter ra.

Ele saiu – e hou ve na sala há pou co in va di da de de sa len tosuma trans fi gu ra ção.

No fas tí gio de cer tos es ta dos mo ra is con cre ti zam-se às ve zesas ma i o res ide a li za ções. Pe los nos sos olhos pas sa ra a im pres são vi su alda Pos te ri da de.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 191

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Numa vol ta do pas sa do

Ou tu bro de 1908Re vis ta Kos mos – Rio

TALVEZ AINDA ASSISTA em seu de ca í do sí tio per to de Sil ve i ras, o Ca pi tão Antô nio Pin to da Sil ve i ra, que se so bre no me ia como aque lavila pa u lis ta fun da da pe los seus ma i o res. Vi-o e con ver sei-o em 1903,num dos lan ces des ta mi nha en ge nha ria an de i ra que acer ta ra de va rarna que les lu ga res.

Che guei à es tân cia so li tá ria ao cair da no i te, exa us to de fa di ga, ao cabo de dez ho ras a fio de mar cha, aos bo léus pe los bo ro co tós deum des va i ra do ata lho do mais an ti go e es que ci do ca mi nho de ro da gemdo Bra sil. E, cer to, a não fal tar ain da lon go es ti rão de três lé guas parair-se até Are i as, ou a não se rem de todo im pra ti cá ve is à no i te aque lasve re das que os ta bo ca is ce ga vam, in va din do-as – eu te ria pros se gui dosu plan tan do o can sa ço, fu gin do à es po ra fita do mal-as som bra do pou soque se me ofe re ce ra. Na ver da de, era pre fe rí vel qual quer ran cho aber tode tro pe i ros, va ra do das chu vas e dos ven tos, àque la ta pe ra des gos tan te.Como tan tas ou tras, que se to pam de lon ge em lon ge ao lon go das tri lhas mul tí vi as da que le tra to de São Pa u lo, ela me apa re cia como um es pan ta lhode gran de za de ca í da: des gra ci o so ca sa rão an ti go, de pa re des es bor ci na das

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e pen sas, sob te lha do le va dio de be i ra is sa í dos, bo jan do no re cos to deum mor ro no bre ve cla ro de um car ras cal bra vio. À fren te da por taprin ci pal, so bre um mon te de se i xos, um cru ze i ro alto, sa cu din do aosven tos o es tro pa lho de um su dá rio em ti ras. A uma ban da, à es quer da,uma ti güe ra po bre de man di o cal ra quí ti co, onde fora vas to po mar apra zí vel. À ou tra, adi vi nha vam-se os res tos de um jar dim in va di do das sa mam ba i as. Ao fun do, des mo ro nan do, um ter re i ro de pe dra, fe i to enor me mu ra dal de lá je as dis jun gi das. Mais lon ge, por to dos os la dos, co brin do a mor ra riaaté ao pino, os ga lhos caó ti cos e sem fo lhas de um vas to ca fe zal seco, decem anos. Nada mais. Pelo me nos nada mais vi re lan ce an do o ce ná rioque o cre pús cu lo en tris te ce do ra men te em pas ta ra...

Trans pus es tre i to pon ti lhão sem guar das so bre um cór re goen tu pi do de tá bu as, ao com pas so mar te lan te de um mon jo lo, que se nãovia, mu i to em ba i xo no gro tão mas ca ra do de inha mes bra vos e so ro ro cas.

De sa pe ei no ter re i ro de ser to. O ca ma ra da bra dou o “ó-de-casa!” tra di ci o nal, ba ten do as pal mas; e logo des mon tan do, amar rou a um mo i -tão de ca bi ú na as nos sas ca val ga du ras abom ba das.

A aco lhi da, como sem pre acon te ce en tre os nos sos pa trí ci osser ta ne jos, foi ca ri nho sa e sim ples.

Mas, ao pe ne trar o re par ti men to prin ci pal da vi ven da, malaten tei no hos pe de i ro que me aco lhe ra, ro de a do de três ou qua tro ne tos ou bis ne tos.

Estro pi a ra-me de ma si a do a so bre car ga mus cu lar da tra ves siaexa us ti va, sob o res cal do das so a lhe i ras. Re nuí, por isto, a tudo, a co me çar pelo ofe re ci men to de um jan tar “que se ar ran ja ria num ins tan ti nho”; eata lhan do logo as cos tu me i ras des cul pas an te ci pa das, que aque las gen tes boas com tan tos re quin tes de gen ti le za sem pre apre sen tam ao fo ras te i ro que aga sa lham, ex pus para logo um em pe nho úni co, im pror ro gá vel,ur gen tís si mo: dor mir. Mas que se não in co mo das sem: eu me re cos ta riapor ali em qual quer ban co com o tra ves se i ro de lom bi lho re to va do, edor mi ria de bo tas e es po ras – mon ta do he ro i ca men te nas fa di gas – para acor dar cedo e pros se guir, re a vi van do-me à rota es co te i ra e rá pi da parafren te. E as sim dei as boas-no i tes ao no na ge ná rio tran qüi lo que mecon tem pla va, com pla cen te men te, sor rin do.

Fe liz men te ele se não pi ca ra de ta ma nha in ci vi li da de. Arca do,como se o do bras se o peso da can de ia de aze i te sus pen sa a uma das

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mãos, foi até à por ta; con si de rou um mo men to o céu já todo es tre la do;e tran cou-a. Vol tou-se; re tri bu iu-me a sa u da ção; e foi di ri gin do-se para o in te ri or da casa.

A meio ca mi nho, po rém, es ta cou; e, como em ir re pri mí velde sa ba fo, ouvi-lhe, que res mo ne a va:

– Mo ços de hoje... já nas cem ve lhos...De po is, em tom mais alto, le ve men te irô ni co:– Olhe, meu se nhor, aqui onde me vê já vi mu i to gra ú do, que

anda hoje na me mó ria do mun do. Sou mais ve lho do que a Inde pen -dên cia... e digo-lhe que fi ca ria pas sa do se de po is de to rar por es sasbi bo cas bra bas fi cas se tão mo fi no e sem ta len to...

Dis se; e as fa di gas, o sono pe sa dís si mo que me chum ba va os olhos, as ir ri ta ções da vi a gem, fo ram-se-me, por ver da de i ro en can to.Vi-me, de gol pe, de pé, ao lado do ve lho sur pre en di do e de so ri en ta dopor não sei quan tas per gun tas an si o sís si mas que me acor ri am des co ne -xas e vá ri as; e mi nu tos de po is achei-me, de im pro vi so, ali, na que labe i ra de ca mi nho des fre qüen ta do, à mar gem da nos sa His tó ria. E láme fui numa vi a gem ma i or e mais in de fi ni da, pe los tem pos afo ra, semno tar a tar de za das ho ras a es co a rem-se va ga ro sa men te, ao com pas sodas pan ca das tris to nhas do mon jo lo ba ten do, fora, ao lon ge, à sur di na, na no i te...

Fora uma in vo ca ção. Na es tra da que pas sa va cer ca – na que lasmes mas tri lhas qua se im pra ti cá ve is, ba li za das de san tas cru zes ago i re i ras eonde dis pa ram em pin chos de sa ba la dos as mu las-sem-ca be ça da bron cami to lo gia ser ta ne ja – co me ça ram a de ri var en tão, in dis tin tos nos seustra ços dú bi os, a di lu í rem-se em for mas va gas, a apa re ce rem para logode po is ra le a rem di lu in do-se em ne bli nas, e a re a pa re ce rem e a de com po -rem-se, en tre la çan do-se, con fun din do-se ou de sa tan do-se, em lon gas fi -las si len ci o sas, os vul tos sin gu la rís si mos de uma ca val ga ta de re di vi vos. Ima gens es fu man do-se va ga men te no es cu ro a re cor da rem as fi gu rasdes tin gi das de an ti qüís si mos qua dros des co lo ri dos, sem con tor nos, semgra da ções, sem re le vos, im per fe i ta men te es ba ti dos na me mó ria des bo ta -da do nar ra dor, ou em brus can do-se no es que ci men to com ple to, malpude res ta u rá-las a todo po der da fan ta sia, atô ni to e co mo vi do di an te dean ti ga e ma ra vi lho sa re a li da de...

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Des fi la ram-me fu gi ti vas e bre ves.Foi numa no i te qual quer de me a dos de se tem bro de 1822. O

meu in ter lo cu tor era “dest’amaninho” – es cla re ceu-me es pal man do amão à pe que na al tu ra do as so a lho – quan do o so bres sal te ou, e a todafa mí lia ha via mu i to re co lhi da, o ino pi na do es tru pi do de uma ca va la riaes tra nha a tro pe ar pe los ca mi nhos e avan çan do num cres cen do ver ti gi -no so: a prin cí pio sur do ru mor dis tan te; logo de po is o es tré pi to acen tu a -do de cen te nas de cas cos so bre pe dras; por fim o es tron do de um tro vãore pen ti no de nun ci an do que o es qua drão fan tás ti co ro la va ru i do sa men teso bre o ta bu le i ro re bo an te da pon te. So bre ve io o si lên cio; uma pa ra da;um es bar ro vi o len tís si mo de de ze nas de gi ne tes de sen so fri dos. A pa tru lha mis te ri o sa es ta ca ra, de gol pe, no ter re i ro.

Cal cu le-se o as som bro da obs cu ra fa mí lia ser ta ne ja.Mas o seu che fe, pa u lis ta de pe i to lar go e co ra ção fir me, me -

diu-se ga lhar da men te pela con jun tu ra: pu lou do le i to; cor reu às ar mas;fur tou-se de ar re mes so aos bra ços da es po sa e dos fi lhos pe que ni nos,que o en le a vam re tran si dos de es pan to; aper rou o ba ca mar te, e ar re me teu,re so lu ta men te, com a por ta da en tra da mal ga ran ti da por uma tran cain se gu ra. Pre dis pu se ra-se num re lan ce para o que des se e vi es se.

Fora, no re la ti vo si lên cio que se for ma ra, ou vi am-se es ta li dos delo ros e ca be ça das en tre ba ti dos, res fo le gos e ma no ta ços de ca va los ir re qui e -tos, pa la vras pre cí pi tes, bre ves, en tre cru zan do-se, e ri sos – inex pli cá ve is ri -sos em tão te me ro sa con jun tu ra! Por fim três al dra va das in ti ma ti vas e ri jas.

E o si ti an te des te me ro so não ti tu be ou: de pôs can de e i ro emter ra; fez o “pelo-si nal”; cor reu as vis tas pela fe cha ria pra te a da do tra bu co;abe i rou-se da por ta; des tran cou-a. Escan ca rou-a toda, te me ra ri a men te... eque dou es tu po ra do, com a arma inú til qua se a es ca par-se-lhe dos de dostrê mu los, to lhi do de sur pre sa in des cri tí vel: es ta vam-lhe adi an te vin te, ou cem, tal vez mil ca va le i ros gar bo sos e mag ní fi cos. Não ha via con tá-los. A luz es cas sa dos qua tro bi cos da can de ia mor ren do num raio de dezpas sos pa re cia ex tin guir-se mais de pres sa, sub di vi di da num es pa da nar de lam pe jos dou ra dos, jo e i ran do-se num círcu lo co rus can te de ja e zes depra ta e nos ala ma res de um sem-nú me ro de far das re ful gen tes. Ao fun do,aos la dos, por toda a cer ca du ra do ter re i ro, até à pon te e pela pon te

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afo ra, des bor dan do dela para a es tra da, e es ti ran do-se tal vez pela es tra da,en chen do-a, numa mas sa com pac ta e in for me, onde se ris ca vam a sú bi tas re pen ti nos bri lhos de dra go nas e ta lins me tá li cos – adi vi nha va-se umale gião ao pa re cer inu me rá vel toda afo ga da na tre va.

À fren te, num re do mão la va do de suor e fre i os bran cos de es -pu ma, des ta ca va-se en vol ta nas do bras de am plo pon cho de vi a gem umafi gu ra va ro nil de moço. Incli na va-se-lhe à nuca o som bre i ro de mo les abas der ru ba das, de i xan do-lhe com ple ta men te es cam pa a fron te bom be a da elar ga ir ra di an do no ful gor dos olhos do mi na do res, mu i to ne gros e vi vos.As lar gas bo tas rus si lho nas co la vam-se-lhe fir mes às es pen das do se lim,de nun ci an do nos res pin gos de lama, que as sal pin ta vam des de o alto docano às ro se tas das es po ras, o di la ta do da vi a gem. À mão es quer da, pre soa uma cor ren te de pra ta, um re ben que de cou ro cru.

Nada mais no tou, ou de par tiu, a cri an ça ame dron ta da, na que lafi gu ra es tra nha, cuja lem bran ça a acom pa nha ria pela exis tên cia emfora. Fi cou-lhe ape nas aque le vul to de es tá tua mu ti la da, meio de li da,en tre o so nho e a re a li da de na no i te.

Tam bém não re te ve uma só pa la vra do rá pi do diá lo go paralogo en tre ti do en tre o es tra nho re cém-vin do à tes ta de tão for mi dá veles col ta e o seu pro ge ni tor sur pre so.

Ape nas con si de rou que, ao se tro ca rem as pri me i ras pa la vras,este úl ti mo – que ele até en tão vira sem pre al ti vo e qua se um rei na que la re don de za, im pe ran do so bre a es cra va tu ra nu me ro sa e os agre ga dossub mis sos –, que o seu pai tão al ta ne i ro e bra vo se des bar re tou numaati tu de a bem di zer hu mil de, que nun ca lhe no ta ra, e se acer cou ti mi da -men te do gar bo so ad ven tí cio fa zen do men ção de be i jar-lhe a des tra, oque este im pe diu, fur tan do-lha; ao mes mo pas so que in cli nan do-se agil -men te nos ar ções co lheu o ser ta ne jo nos bra ços vi go ro sos, so er guen -do-o por mo men tos num gran de abra ço gen ti lís si mo e ami go.

A cena foi ins tan tâ nea. Logo de po is com um ges to rá pi do, dedes pe di da, o ca va le i ro deu de ré de as, vol tan do-se, com uma pa la vra bre ve, de man do, para o sé qui to nu me ro so, que se abriu logo em ex ten sa alares pe i to sa; e cor reu as chi le nas no bojo do ca va lo, trans pon do em doisga lões im pe tu o sos a pon te, en cal ça do de pron to pe los con du tí ci os.

De po is: uma imen sa con fu são de cor pos obs cu re ci dos sar ja dos dos re fle xos vi vos das es pa das; o tro ve jar es tre pi tan te de cen te nas de

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cas cos en ta lo a dos ru fan do no ta bu le i ro res so an te da pon te trans pos tanum dis pa ro; e o es tru pi do do es qua drão fan tás ti co es fa re lan do osca lha us es par sos dos ca mi nhos – cada vez me nor, amor te cen do, len to elen to em res so ar a mais e mais im per cep tí vel e sur do, até de sa pa re cer de todo ao lon ge, per den do-se en tre os ru mo res in de fi ni dos da no i te –,de sa pa re cen do ao lon ge, para sem pre, o Impe ra dor Pe dro I e a suaco mi ti va ro mân ti ca, na vol ta glo ri o sa do Ipi ran ga...

∗ ∗ ∗

Fora as pan ca das mo nó to nas do mon jo lo so a vam en tris te ce -do ra men te; e fi gu ra ram-se-me as de um pên du lo in ver ti do, que mar -cas se um re cuo mis te ri o so do tem po, ba ten do to dos os se gun dos atra -sa dos de um sé cu lo de sa pa re ci do.

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Um atlas do Brasil

29 de agos to de 1909Jor nal do Co mér cio – Rio

A GEOGRAFIA BRASILEIRA é ain da es tri ta men te des -cri ti va. Fal tam-lhe os fun da men tos ge o ló gi cos. Exce tu an do-se a me ta de de São Pa u lo, de es tru tu ra em gran de par te co nhe ci da, gra ças aos tra ba lhos deO. Derby e Gon za ga de Cam pos, o cen tro de Mi nas, a Ba hia Cen tral,re cen te men te per lus tra da por Bran ner, nos de ma is Esta dos as vá ri asfor ma ções até hoje de fi ni das frag men tam-se em zo nas tão lar ga men tede su ni das que, ape sar da com pe tên cia dos ex plo ra do res e va lia real de seuses tu dos, di fi cil men te es tes se li gam ou se ar ti cu lam, de modo a fa cul ta rem o tra ça do con tí nuo das gran des li nhas da nos sa ar qui te tu ra con ti nen tal. Aomes mo tem po, fal tam-nos as re la ções en tre a cons ti tu i ção dos ter re nos eas for mas to po grá fi cas que dão à Ge o gra fia mo der na, nou tros pa í ses, oca rá ter de du ti vo de uma ciên cia in te i ra men te or ga ni za da.

Mas como, por ou tro lado, as in du ções do geó lo go bem pou co va lem fora do qua dro ou da mol du ra ge o grá fi ca, que elas pres su põem,com pre en de-se que a fase me ra men te des cri ti va, a que nos re fe ri mos, éuma pre li mi nar obri ga tó ria. Te mos que tra çar as li nhas es sen ci a is dere le vo da Terra, an tes de lhe per qui rir mos as ori gens pro fun das. Ao

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geó lo go, a quem pe di re mos a gê ne se das nos sas apa rên ci as ter res tressu per fi ci a is, cum pre-nos for ne cer de an te mão os pon tos de re fe rên ciain dis pen sá ve is. Antes da Ge o mor fo lo gia, de Mor ris Da vis, ou da Ge o mor -fo ge nia, de Law son, im põe-se-nos a cons ti tu i ção de fi ni ti va da Ge o gra fia pro pri a men te dita, que so men te em nos sos dias vai com ple tan do-se porma ne i ra a fi xar, de par com a con fi gu ra ção exa ta dos ter ri tó ri os, os seusaci den tes prin ci pa is.

Bas ta re cor dar a este pro pó si to que são ain da re cen tís si mosos des co bri men tos das úl ti mas ca be ce i ras do Tu ruá, do Pu rus e doAcre, des ven da das pe las úl ti mas co mis sões mis tas bra sí lio-pe ru a nas, epe los tra ba lhos do Ma jor Faw cett, da Real So ci e da de Ge o grá fi ca deLon dres; ou que ain da nes ta hora, des cen do as der ra de i ras ver ten tesoci den ta is do Cha pa dão dos Pa re cis, o en ge nhe i ro mi li tar Cân di do Ron don vai atra ves san do, em de man da de San to Antô nio do Ma de i ra, re gião tãoin te i ra men te des co nhe ci da, que re no va em nos so tem po, com o mes modes te mor e sem a mes ma fe ro ci da de, o ci clo glo ri o so das “ban de i ras”.

É que a nos sa ge o gra fia está ain da em mar cha. Di la ta-se nodes co nhe ci do. Está em ple na ida de he rói ca das ex plo ra ções ou lon gín -quas ba ti das no de ser to.

Sen do as sim, vê-se des de logo que aos de vo ta dos à ta re fa defi xar-lhe, car to gra fi ca men te, as li nhas prin ci pa is, não in cum be ape nas aem pre sa in cal cu lá vel de re u nir e com pa rar e com bi nar um sem-nú me rode ele men tos, ori un dos de in ves ti ga ções lar ga men te es par sas em su per -fí ci es am plís si mas, em mais de três sé cu los de es tu dos, sob os in fi ni tosas pec tos em que es tes se nos mos tram, des de as sim ples in di ca ções dosro te i ros dos mis si o ná ri os aos cál cu los pre ci sos das co or de na das as tro -nô mi cas.

A ta re fa é mais vas ta e mais sé ria. Per di do na in fi ni da de dospor me no res, en le an do-se nas cur vas de ní vel em ba ra lha das dos re le vos,ou em tor tu o sos tal ve gues mal de fi ni dos, ti tu be an te no meio de in for mes, e da dos, e plan tas, que raro con cha vam, que não raro se con tra ri am, emu i tas ve zes se anu lam di an te de no vos da dos mais re cen tes – os nos sosgeó gra fos de ga bi ne te sub me tem-se, qua se sem pre, a um tra ba lho tãoár duo quan to o dos que vão di re ta men te ba ter de fren te as re giões ig no -ra das. Hoje, di an te da ge o gra fia sul-ame ri ca na, eles res ta u ram a mes maati tu de de Gu i lher me De lis le ou de Bour guig non D’Auville, ante a ge o -

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gra fia eu ro péia do sé cu lo XVIII: isto é, ca re cem de exer ci tar uma crí ti casu pe ri or e pro fun da, ca paz de nor teá-los com se gu ran ça no la bi rin to dascar tas par ti cu la res, per mi tin do-lhes eli mi nar os tra ça dos in tru sos que asper ver tem, cor ri gir as di ver gên ci as que as se pa ram, e, ao cabo, ar ti cu lá-lasumas às ou tras, mais em vir tu de de um es for ço de du ti vo que da ex pres -são vi sí vel de seus de se nhos con tras tan tes. Agin do des ta for ma, De lis le,sem se ar re dar da sua pran che ta de car tó gra fo, re ti fi cou o eixo do Me di -ter râ neo, e deu, pela pri me i ra vez, à Eu ro pa, a fi gu ra real que ela con ser -va até hoje; ao mes mo pas so que D’Auville, pro lon gan do a mes ma nor -ma, co te jan do e dis cu tin do os re sul ta dos das ex pe di ções até en tão re a li -za das, ins ti tu iu a car to gra fia ge ral como se fora uma ciên cia po si ti va ca -paz de de du ções in fran gí ve is, ou de pre vi sões tão ri go ro sas que al gu mavez o car tó gra fo ex pe ri men ta do, nas suas vi a gens ide a is, pode ir re ti fi car os iti ne rá ri os efe ti va men te tri lha dos pe los ex plo ra do res.

Mas para isto com pre en dem-se os atri bu tos ra ros de pa ciên cia, de lu ci dez, de cla ro dis cer ni men to na aná li se dos do cu men tos e de lan ce in du ti vo no re ma te sin té ti co dos es tu dos, que se lhes re que rem.

É o que nos re ve la – fol ga mos em re gis trá-lo – o Atlas doBra sil, re cém-ela bo ra do pe los Srs. Ba rão Ho mem de Melo e Dr. Fran -cis co Ho mem de Melo. Não re lu ta mos em in cluí-lo en tre os ra ros mo de los que pos su í mos de uma car to gra fia ra ci o nal e lú ci da.

Fo lhe an do-o, logo às pri me i ras pá gi nas do tex to ex pli ca ti voque o pre ce de, ob ser va-se que, se por ven tu ra os au to res não en fe i xam ato ta li da de dos re qui si tos pre ci ta dos, ti ve ram ine ga vel men te dis tin tacom pre en são da em pre sa com ple xa a que se aba lan ça ram, ini ci an do-a àluz de um cri té rio es cla re ci do e fir me. Assim que, con si de ran do as li nhasdo mi nan tes do re le vo ter res tre, eli di ram des de logo o cos tu me i ro abu so, ou vul ga rís si ma ilu são, de ima gi nar-se, ne ces sa ri a men te, uma ser ra ouca de ia de mor ros, fe i to di vor ti um aqua rum ine vi tá vel de to dos os rios; eesta sim ples cir cuns tân cia, se a de fron ta mos com a pro fu são in com pa rá veldas nos sas re des hi dro grá fi cas, bas ta ria a re ves tir de ex cep ci o nal va lia onovo Atlas. Pelo me nos, des de as suas pri me i ras li nhas, ele se for rou aone fas to pre con ce i to da que la “oro gra fia sis te má ti ca” com a qual Fi lip peBu a che e os seus nu me ro sos imi ta do res per tur ba ram por mais de umsé cu lo toda a ge o gra fia eu ro péia; já re par tin do as ter ras em ba ci as flu vi a isobri ga to ri a men te se pa ra das por ser ra ni as; já fal se an do de todo o ca rá ter

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real das re giões com o frag men tá-las e vin cá-las, ar bi tra ri a men te, debar re i ras na tu ra is in te i ra men te ima gi ná ri as.

Con for me ob ser va Mar cel Du bo is, este sis te ma só de sa pa re ceu na Eu ro pa em me a dos do sé cu lo pas sa do, ao sur gir a re nas cen ça ge o -grá fi ca, no pe río do das car tas de es ta do-ma i or, isto é, quan do o es tu doma te má ti co das pro je ções e ou tros aper fe i ço a men tos téc ni cos, de parcom a crí ti ca es cru pu lo sa de to dos os aci den tes, par ti ram ou ate nu a ramas ca de i as rí gi das com que se ur di am e en tre te ci am, ca pri cho sa men te,to das as ma lhas das re des hi dro grá fi cas.

Entre nós, po rém, per sis tiu. Te mos ain da car tas mo der nas,onde o Bra sil se os ten ta fe i to uma Su í ça des me su ra da. Não há bor daviva de pla nal to es ca va do, ou ter re no in ter me di an do dois cur sos de água a cor re rem em di ver sos ru mos, que não on du le em cer ro ou res sa ia emal can tis. Re ven do-as, as vis tas ba ra lha das numa in fi ni da de de aci den tescaó ti cos não dis tin guem a ca rac te rís ti ca pre e mi nen te da nos sa es tru tu rama ci ça ex pos ta nos vas tos pla nal tos on de an tes, que se ar ri mam, de umaban da, nos gran des mor ros de ar ri mo da cor di lhe i ra ma rí ti ma, e de ou -tra des cem su a ve men te para o in te ri or do con ti nen te.

Ao com pla na do dos cha pa dões con tra põe-se um fer vi lhar depín ca ros; e, no meio de les, lan çan do-se, con tor ci da, des de Mi nas Ge ra isaté aos con fins de Mato Gros so, as for mas opu len tas de uma cor di lhe i ra ima gi ná ria – a ma i or das nos sas ser ras, a ser ra das Ver ten tes –, mons tru o saide a li za ção ge o grá fi ca, que não sa be mos se deve atri bu ir-se a Eschwe ge,ou aos pre ci pi ta dos car tó gra fos, que tan to exa ge ra ram aque la de no mi na ção, trans mu dan do em ca de ia con tí nua de mon ta nhas um sim ples sis te ma de ver ten tes.

Entre tan to, à par te as re ser vas do pró prio Eschwe ge, com ple -ta das pe las ob ser va ções de Fred. Hartt e Aug. Sa int-Hi la i re – o Pro fes sorOrvil le Derby, em duas ex cur sões no tá ve is aos va les do Rio Gran de edo São Fran cis co, des fez há mu i to a mi ra gem des sas fal sas ser ra ni as, desim ples de nu da ção, onde as ma gis tra is raro se ajus tam à ori en ta ção ge ral das ro chas so to pos tas. Des tar te se ma ni fes ta uma das ra ras con tri bu i çõesge o ló gi cas fe i tas à nos sa cons ti tu i ção ge o grá fi ca, que o Ba rão Ho memde Melo apro ve i tou, es cla re cen do-a, além dis to, com os mais fri san tesexem plos en fe i xa dos em lon ga sé rie de ob ser va ções: umas an ti quís si mas e re pro du zi das por d’Orbigny e Cas tel nau, acer ca da di vi só ria do Ama zo nas

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e do Pra ta; ou tras mais re cen tes, como as de Em. Li a is, re la ti va men te àin sig ni fi can te on du la ção que se pa ra os tri bu tá ri os ex tre mos do SãoFran cis co e do rio Gran de; ou as aver ba das por W. Chand less, no aba ti -men to ama zô ni co dos pla nal tos bra si le i ros.

Cer to, em tudo isto nada exis te de ori gi nal. O nos so emi nen te com pa tri o ta re pro duz pa re ce res co nhe ci dos, e re no va ape nas um con ce i toge o grá fi co ge ne ra li za do – que ain da re cen te men te se cons ta tou no Pu ruse no Tu ruá, mas se pa ra dos dos der ra de i ros ga lhos ori en ta is do Uca iá lipor di mi nu tís si mas co li nas.

Tais pa re ce res ou con ce i tos, po rém, até hoje es par sos emmo no gra fi as, como in ci den tes de ou tros as sun tos, pela pri me i ra vez seeri gem en tre nós em pre li mi nar ex pres sa de um tra ba lho car to grá fi co.

Po der-se-ia tam bém adi tar que a di vi são da nos sa oro gra fia,ado ta da pe los au to res – a) ser ra do Mar; b) ser ra da Man ti que i ra; c)ra mi fi ca ções do sis te ma in te ri or –, se ul ti ma de um modo vago, e é, evi -den te men te, pro vi só ria. O lan ce, po rém, vem de mol de a de nun ci ar-lhes a crí ti ca ca u te lo sa – aten den do-se em que para a clas si fi ca ção exa ta dasnos sas ver da de i ras mon ta nhas ca re ce mos ain da da de fi ni ção ge og nós ti cada ma i o ria de las, as sim como da his tó ria ge o ló gi ca dos mo vi men tosoro gê ni cos que as er gue ram. Du ran te lar go tem po as nos sas idéi as aeste res pe i to se rão for ça da men te pro vi só ri as.

Os au to res con fes sam a de fi ciên cia ine vi tá vel des ta sis te ma ti -za ção com a des cri...∗

∗ Obs.: – Este tra ba lho Eu cli des não che gou a ter mi nar.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 203

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Duas car tas

A PRIMEIRA FOI ENDEREÇADA a Jo a quim Na bu co, por meio de José Ve rís si mo em car ta da mes ma data. O voto para a Aca de mia,ao qual se re fe re, foi, com a de sis tên cia dos can di da tos com os qua is Na bu co ti -nha com pro mis sos, dado ao pró prio Eu cli des, como se ob ser va em car ta de Ma -cha do de Assis àque le seu ami go, em 7-10-1903. A de Eu cli des a Na bu co,aqui pu bli ca da, é do cu men to de gran de e sin gu lar no bre za que, so bre des fa zerhis tó ri as re la ti vas a di fe ren ças de na tu re za pes so al en tre os dois, con tém em seufi nal be lís si ma con fis são so bre Os Ser tões. A ou tra, en de re ça da a Oli ve i raLima, é do ano em que o es cri tor foi mor to, as si na lan do pre o cu pa ções com a es ta -bi li da de para a vida, des ve los para com a fa mí lia, sem pre pre sen te nas suas car -tas aos gran des ho mens de seu tem po, seus ami gos que, não raro, a cu mu la vamde gen ti le zas.

O. S. A.

Na op ção pela es sên cia com cla re za ab so lu ta, es cu so-me de ma i o resex pli ca ções aos eu cli di a nis tas clás si cos e à gra fo lo gia, por sa cri fi car par te das car tas ma nus cri tas de Eu cli des da Cu nha, pon do os tex tos im pres sos na ín te gra, nos seuslu ga res.

C. G.

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Lo re na, 18-10-1903Meu ve ne ran do com pa tri o ta, Dan do a pre fe rên cia de seu su frá gio ao Almi ran te Ja ce guai, e

ex pli can do-a com tan ta su pe ri o ri da de, o se nhor deu à car ta, com queme dis tin guiu, um raro tra ço de no bre za, so bre do i ran do o va li o sís si moau tó gra fo que guar da rei ca ri nho sa men te en tre as me lho res re lí qui as quepos suo. De ple nís si mo acor do com o seu pen sar, e agra de cen do-lhemu i to o tê-lo ex pos to sem ro de i os (por que me fez a jus ti ça de acre di tarque de modo al gum eu me po de ria sen tir aba ti do no pla no se cun dá rioque na tu ral men te ocu po ante aque le no tá vel com pa tri o ta), pos so afir -mar-lhe que não au men ta ria a mi nha con si de ra ção se a ti ves se de opor à do au tor do De ver do Mo men to, li vro que de ve mos em par te a fe li ci da dede ver mos res ti tu í do à ati vi da de po lí ti ca aque le cuja “For ma ção” re fle tein ci si va men te, sin te ti za do numa exis tên cia in di vi du al, a pró pria for ma -ção do que há de mais bri lhan te, de mais sé rio e de mais ro bus to nanos sa cons ciên cia co le ti va atu al.

Não vai a mí ni ma li son ja nes tas li nhas. To dos os da mi nhage ra ção de ve mos mu i to à sua pa la vra, por que a ou vi mos pre ci sa men tena qua dra em que a sua to na li da de pro di gi o sa se har mo ni za va ad mi ra -vel men te a to dos os gran des ar ro jos e de sin te res se da mo ci da de.

Ela – que por uma cir cuns tân cia no tá vel tan tas ve zes se ale -van tou em fren te à Esco la Po li téc ni ca – do mi na va não raro a dos nos sos mes tres e am pli a va o nos so des ti no su bal ter no de en ge nhe i ros, dan -do-me um sig ni fi ca do su pe ri or tão bem ex pres so na que la “tri an gu la dado fu tu ro” a que se re fe riu ima gi no sa men te, gol pe an do de sú bi tos lan -ces de gê nio a se cu ra ma te má ti ca da aula de cons tru ção, o bom e gran de André Re bou ças.

Não me de mo ra rei nes te as sun to, para não me de lon gar.Bas ta-me as se gu rar-lhe que ne nhum de nós, ra pa zes da que le tem po,tra íam aque la ad mi ra ção an ti ga, para que o senhor aqui la te bem a ver da -de i ra ufa nia com que re ce bi as suas le tras.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 207

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Qu an to aos Ser tões, aguar do tran qüi lo o re sul ta do de sua le i tu ra. Os des li zes de for ma que o in qui nam (e José Ve rís si mo in fle xi vel men teos de nun ci ou) em pa li de ce rão na es ca la da sin ce ri da de com que es bo ceias suas pá gi nas. Aí está o seu úni co va lor, mas este é des me su ra do. Re le -ve-me esta va i da de. Dan te, para re vi ver os des man dos de Flo ren ça, ide a -li zou o Infer no; eu, não; para ba ter de fren te al guns no mes do nos so sin -gu lar mo men to his tó ri co, co pi ei, co pi ei ape nas, in cor rup ti vel men te, umdos seus as pec tos... e não tive um Vir gí lio a am pa rar-me ante o fu rordos con de na dos!

Não lhe devo mais to mar seu tem po, que nes ta oca sião per -ten ce todo à nos sa ter ra. Ter mi no as se gu ran do-lhe o meu ma i orapre ço, e con sig no a cres cen te ad mi ra ção, como com pa tri o ta attº ecd.º obr do.

Eu cli des da Cu nha(a Jo a quim Na bu co)

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Rio, 10 de Ja ne i ro de 1909 Ami go Dr. Oli ve i ra Lima, De mo rei-me em es cre ver-lhe res pon den do a sua úl ti ma car ta

e agra de cen do as de li ca das lem bran ças do ano novo, por que an da mosto dos em casa, du ran te mu i tos dias, às vol tas com a úl ti ma pro e za dofi lhi nho mais novo. A sua car ta, a car te i ra, as ren das e os li vros che ga -ram quan do atra ves sá va mos o pe río do agu do da cri se; e não pre ci sodi zer-lhe quan to nos con so lou, no tran se, o re cor dar mo-nos da afe i çãolon gín qua dos bons ami gos au sen tes. A S’Anninha fi cou en can ta da com as ren das – gen ti lís si ma lem bran ça de D. Flo ra – e eu, com a car te i ra(em bo ra con si de ras se, me lan co li ca men te, que, só du ran te os bre ves diasda tra ves sia de Bru xe las até aqui, aque la car te i ra se ve ria uni da a ren das). Assim per pe trei o pri me i ro tro ca di lho des ta vida – mu i to di fe ren te dasua, aí, con for me ve ri fi quei pelo in ve já vel ho rá rio que me man dou. Porele vi – e com ver da de i ra sa tis fa ção – que o meu dis tin to ami go temmu i to tem po para o exer cí cio da sua ati vi da de pre di le ta, do es pí ri to. Aopas so que eu, se ti ves se tem po para por me no ri zar os meus dias, te ria deos re par tir não em ho ras, mas em mi nu tos, tão atra pa lha dos e cin di dosde pre o cu pa ções di ver sas, eles cor rem. Por exemplo no meio dos que fa -ze res do ofí cio, te nho, ago ra, to dos os quar tos de hora for ros en tre guesao es tu do da Ló gi ca, por que me ins cre vi num con cur so des ta ca de i ra,que se re a li za rá em abril no Gi ná sio Na ci o nal. Não te nho mu i ta con fi -an ça num es tu do fe i to sem mé to do ou con ti nu i da de – mas não pos sode i xar de apro ve i tar a opor tu ni da de que se me ofe re ce de ad qui rir umapo si ção mais fixa in de pen den te men te da boa von ta de de ou trem. Con ti -nuo na Se cre ta ria, pe las ra zões ex pos tas na car ta an te ri or. E a este pro -pó si to agra de ço-lhe mu i to os ge ne ro sos con ce i tos da sua úl ti ma car ta.

O Vi cen te de Car va lho fi cou sa tis fe i tís si mo com o seu voto,re u nin do-o aos que mais o no bi li tam. A vi tó ria dele é ago ra ine vi tá vel; já

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tem 21 vo tos, ao pas so que o Emí lio (can di da to do Gra ça) mal con se -gui rá 10; e o Gen. Dan tas Bar re to, 4.

Não te nho vis to os ami gos. A par ti da do Gas tão agra vou omeu re tra i men to. Osci lo, sem va ri an tes, da Se cre ta ria para casa, e des tapara aque la.

Há cin co ou seis dias, o Dr. José Car los Ro dri gues, di zen -do-me que lhe ha via pas sa do ao se nhor um te le gra ma de boas-fes tas,re fe riu-se in ci den te men te ao li vro D. João VI no ti ci an do-me que nãode mo ra ria em vir à pu bli ci da de. A boa nova, re ce bi-a com a ma i or sa tis -fa ção; e es pe ro ser dos pri me i ros a ler aque le li vro.

O fim qua se ex clu si vo des ta é agra de cer-lhe e a Exmª Srª D.Flo ra, em meu nome e no da S’Anninha as apre ci a dís si mas lem bran ças.Nou tra car ta, pró xi ma, con ver sa re mos mais lon ga men te.

Cre ia sem pre em quem é mu i to cor di al men te seu

Eu cli des da Cu nhaP. S. – Ama nhã ou de po is pro cu ra rei o Cal mon e trans mi -

tir-lhe-ei o seu re ca do.

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1892

OS QUATRO ARTIGOS SEGUINTES são de 1892, de um Eu cli desaos 26 anos, in te res sa dís si mo ain da na po lí ti ca mi li tan te, que logo mais aban do na ria para sem pre. Três de les fa zem par te de uma sé rie de 21 – “Dia a Dia” –, sen do oúl ti mo co lo ca do fora dela, em bo ra re a fir ma do por ou tro ali in clu í do. Os qua tro são,por tan to, an te ri o res à fase dos es tu dos bra si le i ros em pro fun di da de à qual per ten cemos iné di tos em li vro cons tan tes des te vo lu me. To dos fo ram pu bli ca dos em O Esta dode S. Pa u lo.

A sé rie des ti nou-se à de fe sa do con tra gol pe de Flo ri a no, no qual Eu cli des ti ve ra a sua par ti ci pa ção, como re ve la mos na His tó ria e Inter pre ta ção de “OsSer tões”, mas nela se en con tram tam bém ar ti gos como os que se se guem, que de i -xam de lado as ques tões po lí ti cas lo ca is, avan çan do lon ge no fu tu ro, como o le i tor ve ri fi ca rá.

O de 27 de abril, como o de 1º de maio – no qual já se liam fra sesque pas sa ri am para es cri tos pos te ri o res –, po de ri am com ple men tar bem a le i tu ra de“Um Ve lho Pro ble ma”, de 1904, in clu í do no Con tras tes e Con fron tos. Se ri am com ple men to nes se sen ti do de nos da rem cer tas co res e nu an ças do pen sa men to deEu cli des acer ca do fu tu ro po lí ti co do mun do em re la ção ao tem po em que vi veu,co res e nu an ças que ve mos aqui e ali, na sua obra in te i ra, até em ar ti gos dos 20anos, num dos qua is, fa lan do da De cla ra ção dos Di re i tos do Ho mem, dis se ra que a Re vo lu ção de via ter pa ra do aí, sen do de ma is o as sas sí nio de um rei e a ins ti tu i -

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ção do re gi me si nis tro do ter ror... O de 22 de maio é so bre a mor te de Vítor Hugo, e nós já te mos in sis ti do no sig ni fi ca do das re fe rên ci as de Eu cli des a esse nome gran -di o so.

No úl ti mo, aqui trans cri to, fi cou a es sên cia do pen sa men to do es cri torso bre o en si no, a sua in dis pen sá vel au to no mia em face do Esta do. Sua atu a li da de é fla gran te.

Não co gi ta mos da sé rie toda por que sen do em sua qua se to ta li da de deatu a ção po lí ti ca, de in te res se de um mo men to, não é ela pro pri a men te iné di ta, trans cri taque foi em se tem bro de 1959 pela Re vis ta do Li vro, do I. N. L.

O. S. A.

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Dia a dia

27 de abril de 1892

O IDEAL DA POLÍTICA MODERNA – tudo o in di ca – estánuma de pen dên cia, cada vez mais ín ti ma, do in di ví duo para com a so ci e -da de e numa in de pen dên cia, cada vez mais acen tu a da, de am bos paracom o Esta do. As pró pri as im po si ções sem pre cres cen tes da vida ci vilim pri mem, dia a dia, a to dos os es pí ri tos uma dis ci pli na bas tan te só li da,para dis pen sar as re pres sões con tí nu as dos po de res cons ti tu í dos ou oseu cons tan te apo io.

O fu tu ro – e é isto uma ver da de já ve lha – per ten ce ao in dus -tri a lis mo. Ele ope ra rá, to ni fi ca do vi go ro sa men te pela fór mu la so be ra nada di vi são do tra ba lho, a mais vas ta di fe ren ci a ção e con se qüen te aper fe i -ço a men to da fe i ção mais no bre da ati vi da de hu ma na; cres ce rá, por tan to, pa ra le la men te, com o pro gres so ma te ri al o de sen vol vi men to mo ral domun do; a so ci e da de será uma am pli fi ca ção da fa mí lia e res ta rá ao Esta do,ex clu si va, a ga ran tia da or dem.

Um olhar para o pas sa do nos mos tra lim pi da men te que a luta pela exis tên cia, na so ci e da de, ten de so bre tu do para este ob je ti vo – aeman ci pa ção in di vi du al.

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Entre as na ci o na li da des do pre sen te, as que se apro xi mammais des ta fase de am pla in de pen dên cia são, re al men te, as que maisno bi li tam o nos so sé cu lo pe las ma i o res cri a ções do tra ba lho. À pro por ção que se for ta le cem e cres cem dis pen sam na tu ral men te a in tru são dosgo ver nos, cujo pa pel res trin ge-se por fim em uni ca men te as se gu rar-lheso pró prio en gran de ci men to.

Esse gran de ide al po lí ti co será re a li za do.Não é uma uto pia; ga ran te-o van ta jo sa men te todo o ma ra vi -

lho so es pe tá cu lo da evo lu ção hu ma na.Com pre en de mos, po rém, toda a dis tân cia a que nos acha mos

dele; e em bo ra com a ma i or tris te za, con fes sa mos que a so ci e da de bra si -le i ra não pode dis pen sar, tão cedo, para as ques tões mais sim ples do seude sen vol vi men to, o pres tí gio ofi ci al do go ver no.

Te mos como em ex tre mo tra ba lho sa a mis são do Esta do, nos tem pos de hoje; não lhe bas ta de di car-se ex clu si va men te à ga ran tia daor dem, é-lhe in dis pen sá vel que, de al gu ma sor te, exor bi te, es ta be le cen do os pri me i ros ele men tos do pro gres so.

Fi lhos de uma ter ra tão vas ta e tão rica, pode-se di zer que nun ca pre ci sa mos vi ver atra vés de um con tí nuo ape lo à pró pria ati vi da de; nun ca ne ces si ta mos tra var com o meio cos mo ló gi co es tas ad mi rá ve is lu tas,em que se re tem pe ra tão bem a ín do le de to dos os po vos; a con cor rên ciavi tal, gra ças à ex ten são do ter ri tó rio, ali a da a uma po pu la ção ra re fe i ta,nun ca se cons ti tu iu como um mo ti vo da se le ção do nos so es pí ri to, deacor do com as con di ções ex te ri o res, de modo a nos dar esse con jun to deten dên ci as e as pi ra ções co muns, que de fi nem qual quer na ci o na li da de.

É fá cil a qual quer di zer, gra ças à ma ra vi lho sa plas ti ci da de does ti lo amol da do a to das as ca u sas, que so mos já uma na ção, com as pi -ra ções bem de fi ni das de fu tu ro, em har mo nia com uma exa ta com pre en são do pas sa do.

Nes te caso, o go ver no po de ria ver da de i ra men te se res trin gir à mis são, me nos tra ba lho sa, de mero con den sa dor das ener gi as so ci a is eguar da da es ta bi li da de ge ral.

A ver da de, po rém, é que, ante o as sal to da cri se atu al nos sen -ti mos iner mes e fra cos, fa zen do-se pre ci sa, para os mais sim ples fa tos de

218 Eu cli des da Cunha

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eco no mia, a ação do Esta do; isto des de as ques tões ru di men ta res da ali -men ta ção e da hi gi e ne às mais sé ri as.

O que o Esta do tem fe i to até hoje, além da fun ção di fi cí li made ve lar pela se gu ran ça co mum, é es ti mu lar, subs ti tu in do-a mu i tas ve zes, essa tão fe cun da ini ci a ti va par ti cu lar que so men te ago ra se es bo ça en trenós, com pro ba bi li da de de de sen vol vi men to.

A ini ci a ti va ofi ci al tem ab sor vi do mes mo as gran des ma ni fes -ta ções do sen ti men to, fa zen do-se in dis pen sá vel o seu in flu xo para quenão se ol vi de tudo o que há de ver da de i ra men te gran de na nos sa exis -tên cia his tó ri ca.

Pre ci sa mos po rém li ber tá-lo des sa du rís si ma ta re fa, li ber tan -do-nos des sa tu te la ge ne ro sa men te con ce di da.

Por mais ne ces sá ria que pa re ça a pro te ção ofi ci al, ela é efê me ra; por isto mes mo que toda a for ça dos go ver nos pro ma na das so ci e da des.

Faz-se ne ces sá rio por tan to que se ini ci em des de já to dos ospas sos para uma ma i or in de pen dên cia de vida e co me ce mos afi nal aau xi li ar o go ver no ao in vés de,38 como até hoje, re ce ber mos dele umapro te ção cons tan te e in con di ci o nal; só as sim po de re mos se guir com asde ma is na ções para esse ide al que eno bre ce e dig ni fi ca tan to a po lí ti camo der na.

E. C.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 219

38 No jor nal apa re ce ou em vez de, na tu ral men te por erro ti po grá fi co. N. do R.

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Dia a dia

1º de maio de 1892

EXTRAORDINÁRIO AMANHECER o de hoje nas ve lhasca pi ta is da Eu ro pa...

Como que as sal ta da por uma sín co pe, su bi ta men te, se pa ra li sa a com pli ca dís si ma vida da mais alta ci vi li za ção; todo o mo vi men to dasgran des so ci e da des, toda a es pan to sa ati vi da de de um sé cu lo e a ad mi rá vel con ti nu i da de des sa exis tên cia mo der na tão po de ro sa e tão vas ta, seex tin guem, apa ren te men te, es va in do-se em vin te e qua tro ho ras de ina -ti vi da de sis te má ti ca.

Aban do nam os cé re bros dos po lí ti cos os in te res ses na ci o -na is mais ur gen tes; de sa pa re cem por um dia to das as fron te i ras; re -con ci li am-se in cor ri gí ve is ódi os se cu la res de go ver nos – e aque lesexér ci tos for mi dá ve is, que a todo ins tan te ame a çam aba lar a ci vi li za -ção, num es pan to so du e lo, for mam si len ci o sos, pela pri me i ra vez, sobuma mes ma ban de i ra...

Tudo isto por que o anô ni mo ex tra or di ná rio que é o ma i orco la bo ra dor da His tó ria, o Povo que tra ba lha e que so fre – sem pre obs -curo –, en ten de, nes sa fes ti va en tra da da pri ma ve ra, de i xar por mo men tos

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as ás pe ras fer ra men tas e so nhar tam bém como os fe li zes, pen sar, eleque só tem um pas sa do, no fu tu ro.

O es cra vo an ti go, que ia nos cir cos ro ma nos dis tra ir o hu morti gri no dos reis, num pu gi la to de si gual e trá gi co com as fe ras; o ser vo da gle ba, o vi lão co bar de que atra ves sou a Ida de Mé dia, à som bra dos cas -te los sob o guan te do fe u da lis mo; que tem ali men ta do com o san gue aalma des tru i do ra das guer ras; ele – a ma té ria-pri ma de to das as he ca -tom bes, se guin do sem pre acur va do a to dos os ju gos – trans fi gu ra-sere al men te, alen ta do por uma as pi ra ção gran di o sa e apre sen ta esta no vi -da de à His tó ria – pen sa!

Deu to das as ener gi as ao pro gres so hu ma no, sem pre in cons -ci en te da pró pria for ça, e, quan do no fim do sé cu lo XVIII, uma gran deaura li ber ta do ra per pas sou a Ter ra, ele se ale van tou, apa ren te men te ape -nas para tra zer, às cos tas, até os nos sos dias, a bur gue sia tri un fan te.

Can sa do de es cu tar to das as te o ri as dos fi ló so fos ou os de va -ne i os dos so nha do res, que de há mu i to in ten tam-lhe a re ge ne ra ção –des de os exa ge ros de Proud hon às uto pi as de Louis Blanc –, ele ini ciapor si o pró prio ale van ta men to.

E para aba lar a Ter ra in te i ra bas ta-lhe um ato sim plís si mo –cru zar os bra ços.

E que tris te e de so la do ra pers pec ti va esta, de vas tas ofi ci nas eru i do sas fá bri cas de ser tas, sem mais a mo vi men ta ção fe cun da do tra ba -lho, e as pro fun das mi nas, aban do na das, abrin do para os céus as gar gan -tas es cu ras, num te ne bro so bo ce jo...

∗ ∗ ∗

Se en trar mos na aná li se dos cam bi an tes que tem as su mi do oso ci a lis mo, temo-lo como uma idéia ven ce do ra.

O quar to es ta do ad qui ri rá, por fim, um lu gar bem de fi ni do na vida uni ver sal. Nem se lhe faz para isto pre ci so agi tar o hor ror da anar -quia ou fa zer sal tar a bur gue sia a ex plo sões de di na mi te. Fala to das aslín guas e é de to das as pá tri as.

Toda a sua for ça está nes sa no tá vel ar re gi men ta ção, que orades pon ta à luz de uma as pi ra ção co mum; a anar quia é jus ta men te o seu

222 Eu cli des da Cunha

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pon to vul ne rá vel – quer se de fi na por um caso no tá vel de his te ria, Lu í saMi chel, ou por um caso vul gar de es tu pi dez, Ra va chol.

Não exis te, tal vez, um só po lí ti co pro e mi nen te, hoje, que senão te nha pre o cu pa do com esse gra ve pro ble ma; e o mais ele va do de les,o me nos in glês dos pen sa do res bri tâ ni cos, Glads to ne, ce den do à ca u sados home-ru lers o es pí ri to ro bus to, é, ver da de i ra men te, um so ci a lis ta depri me i ra or dem.

Re al men te, a vi tó ria do so ci a lis mo bem en ten di do ex pri me ain cor po ra ção à fe li ci da de hu ma na dos que fo ram sem pre dela afas ta dos.Em nos sa pá tria – moça e rica – che ga mos às ve zes a não o com pre en der – trans por tan do-nos po rém aos gran des cen tros po pu lo sos, ob ser van do to das as di fi cul da des que as so ber bam a vida ali, sen ti mos quão cri mi no satem sido a ex plo ra ção do tra ba lho. Ali, on de o ope rá rio mal ad qui repara a base ma te ri al da vida, a fal sís si ma lei de Malt hus pa re ce se exem -pli fi car am pla e de so la do ra. Pre so a lon gas ho ras de uma agi ta ção au to -má ti ca, além dis so cer ce a do da exis tên cia ci vil, o rude tra ba lha dor é mu i to me nos que um ho mem e pou co mais que uma má qui na.

∗ ∗ ∗

Os go ver nos da Eu ro pa hão de tran si gir po rém; hão de en ta -bu lar os pre li mi na res da paz, pe las con ces sões jus tas e ine vi tá ve is quete rão de fa zer.

Nós as sis ti mos ao es pe tá cu lo ma ra vi lho so da gran de re ge ne -ra ção hu ma na.

Pela se gun da vez se pa ten te ia na His tó ria o fato de po vos quese fun dem num sen ti men to co mum – e não sa be mos qual mais gran di o so,se o qua dro me di e val das Cru za das ou se esta ad mi rá vel cru za da para ofu tu ro.

Seja qual for este re gi me por vir, tra du za-se ele pela pro te çãocons tan te do in di ví duo pela so ci e da de, como pen sa Spen cer, ou pe lasinú me ras re pú bli cas, em que se di fe ren ci a rá o mun do, se gun do acre di taAug. Com te – ele será, an tes de tudo, per fe i ta men te ci vi li za dor.

Que se pas se sem lu tas este dia no tá vel. O so ci a lis mo, quetem hoje uma tri bu na em to dos os par la men tos, não pre ci sa de se des -pe nhar nas re vol tas des mo ra li za das da anar quia.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 223

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Que saia às ruas das gran des ca pi ta is a le gião ven ce do ra epa cí fi ca; e le van te al ta res à es pe ran ça, nes sa en tra da ilu mi na da de pri ma -ve ra, sem que se tor ne pre ci so ao glo ri o so ven ci do – o Exér ci to – aban -do nar a pe num bra em que len ta men te emer ge à me di da que sobe acons ciên cia hu ma na.

E. C.

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Dia a dia

22 de maio de 1892

HÁ SEIS ANOS de so la do ra nova per pas sou a Ter ra: ex -tin guia-se em Pa ris o po e ta ex tra or di ná rio, que se na ci o na li za ra emto das as pá tri as, pelo con den sar me lhor do que qual quer ou tro tal vez,no amál ga ma ide al de bron ze e ouro de seus ver sos eter nos, essa sín te se afe ti va con ti nu a men te cres cen te, que se es pe lha em to das as li te ra tu ras,e é o pon to de apo io de to das as na ci o na li da des e a ga ran tia mais só li dade to das as ci vi li za ções.

Re al men te, se qual quer li te ra tu ra de fi ne uma na ci o na li da de,pelo se ba se ar in te i ra no sen ti men to he re di tá rio da raça e a su bor di na çãoàs tra di ções na ci o na is, Ví tor Hugo, o ge ni al e ex tra or di ná rio ro mân ti co,é mais do que o po e ta da Fran ça; per ten ce ao nos so sé cu lo – por que oque to dos nós sen ti mos, pal pi tan do ve e men te, ful gu ran te e so no ro so,por meio dos seus ale xan dri nos imor ta is, não é a alma de uma so ci e da de,mas sim todo sen ti men to hu ma no!

O sen ti men to da pá tria, a ine xa u rí vel fon te dos ma i o res li ris -mos, em tor no ao qual têm vi vi do to das as mu sas, não lhe bas tou àdes me di da afe ti vi da de e vemo-lo li gan do-o ao sen ti men to ma i or da

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so li da ri e da de hu ma na – in ten tan do as sim, por uma in tu i ção de vi den te,esse con sór cio fi nal da Arte com a Fi lo so fia, a que che ga ram tam bémos pen sa do res mo der nos, po rém por meio de lon gas, pe no sas e se ve -ras me di ta ções.

É por isto tal vez que ele não foi um clás si co; o clas si cis mo,que se pode de fi nir como uma ve ne ra ção exa ge ra da pelo pas sa do, que -bra ra por lar go tem po a con ti nu i da de do sen ti men to hu ma no – res ta u -ra da fe liz men te na Ida de Mé dia pela Re nas cen ça e no sé cu lo XVIII pelo Ro man tis mo – e não po dia por cer to sa tis fa zê-lo.

Nas cen do com o seu sé cu lo, pa re ce ter-se in dis so lu vel men teli ga do à épo ca ex tra or di ná ria das ma i o res re vo lu ções da Fi lo so fia, daPo lí ti ca e da Arte e in ten ta do a ta re fa de re fle ti-las to das.

Assim é que por meio dos seus li vros no tá ve is, ve mos, alémdo es tu do exa ge ra do das pa i xões, de flu in do – ora um vago e in de fi ní velmis ti cis mo, uma fi lo so fia sin gu lar – a ide a li za ção ma ra vi lho sa de umDeus sem al ta res, ca ben do me lhor nos co ra ções do que nas ca te dra is;ora um for mi dá vel e im pe ni ten te de lí rio re vo lu ci o ná rio e vin ga ti vo,ex plo din do na or ques tra ção sel va gem e ma ra vi lho sa dos Cas ti gos...

A re vo lu ção oci den tal, que é ine ga vel men te o me lhor tra ba lho dos Enci clo pe dis tas, pu se ra no seio de to dos os po vos os ger mes dere ge ne ra ção po lí ti ca e, em to dos os cé re bros, os pri me i ros ele men tos de re ge ne ra ção fi lo só fi ca.

Era pre ci so, po rém, al guém que ide a li zas se, essa exis tên ciamo der na, que dela se de ri vou, al guém que, exa ge ran do em bo ra as ver da des da Fi lo so fia e da Po lí ti ca, as in ter pre tas se à hu ma ni da de, sob a for maatra en te de uto pi as e de ide a is des lum bran tes.

Esta fun ção foi ad mi ra vel men te exer ci ta da pelo ho memex tra or di ná rio, de cujo nome nos lem bra mos hoje.

Não nos da mos à ta re fa, ade ma is dis pen sá vel, de enu me -rar-lhe to das as fa ses, em sua trans la ção pela Ter ra, nem to das as gran de zas de seus so nhos, que di ma nam, mul ti for mes, das pá gi nas tran qüi las dasCon tem pla ções, às pá gi nas ex plo si vas do Ano Ter rí vel. Te mos, além dis to,uni ca men te o ob je ti vo de im pe dir que pas se des per ce bi do, hoje, um

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nome, so bre o qual pa re ce que se co me ça a fa zer um es que ci men to além de in jus to, in gra to.

Embo ra re co nhe ça mos que ele não é o pri me i ro ho memdes te sé cu lo, não nos ini be isto de ve ne rar mos pro fun da men te o so nha -dor ex tra or di ná rio que tão bem ide a li zou a fra ter ni da de hu ma na – queserá ama nhã uma con quis ta de fi lo so fia – e tão bem pre co ni zou a re pú -bli ca uni ver sal – o que será a ma i or con quis ta, ama nhã, da po lí ti camo der na.

E. C.

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Insti tu to Po li téc ni coI

24 de maio de 1892

SEM NOS FILIARMOS a es co las fi lo só fi cas – o que é um ver da -de i ro ab sur do na mo ci da de, na qua dra exu be ran te em que, para a for -ma ção im pres cin dí vel da cons ciên cia, nos vol ta mos in dis tin ta men te para to das as idéi as, abrin do com igual in te res se e igual cu ri o si da de to dos osli vros, ou vin do com igual res pe i to to das as cren ças e tri bu tan do igual ve -ne ra ção a to dos os sá bi os – va mos de fi nir o nos so modo de pen saracer ca do pro je to apre sen ta do pelo Sr. Dr. Pa u la Sou sa ao Con gres sodo Esta do, as sis tin do-nos, a nós que es tas li nhas tra ça mos, para isto,mais do que o fato in sig ni fi can tís si mo de um ba cha re la do em Ma te má ti ca e Ciên ci as Fí si cas, o di re i to de crí ti ca, des sa crí ti ca ou sa da e in tran si gen te,des ti na da a de sa pa re cer no fu tu ro – mas que é ain da um mal ne ces sá rio,o de fe i to mais bri lhan te e in dis pen sá vel das so ci e da des mo der nas.

Le va mos a im par ci a li da de mes mo ao pon to de afas tar do iní cio do as sun to a ques tão fun da men tal que se re fe re à in tru são do Esta do no de sen vol vi men to do en si no. Está hoje lim pi da men te de mons tra do queeste cres ce na ra zão in ver sa da pro te ção da que le; e que os pro gra mas ofi -ci a is, es tá ve is, mu dan do-se com in ter va los mais ou me nos lon gos, por

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meio das re for mas pe rió di cas, imo bi li zam a ins tru ção, no meio da mo vi -men ta ção sem pre as cen si o nal e cres cen te dos co nhe ci men tos. Mu i to me -nos es ta be le ce re mos em abo no des tas idéi as o pa ra le lo en tre as uni ver -si da des fran ce sas sem au to no mia, afo ga das pelo pro te ci o nis mo ofi ci al,es te ri li za das por uma uni for mi da de ani qui la do ra de mé to dos imu tá ve is,e as es co las ale mãs, qua se que au tô no mas, em cujo seio para cada ramode co nhe ci men tos exis tem mu i tas ve zes duas ou três ca de i ras ri va is,es ta be le cen do, as sim, fran ca, a má xi ma va ri a ção de mé to dos, uma gran decon cor rên cia de idéi as, o que, na cri se mo der na, é de mu i to mais fe cun -di da de do que a es tag na ção da ro ti na.

Re al men te, to dos com pre en de mos que se faz in fe liz men tene ces sá ria, en tre nós, povo afe i to à pas si vi da de hi ber nan te do pas sa dore gi me a in ge rên cia do Esta do nas ques tões mais sim ples do nos sopro gres so, em bo ra, acer ca do que diz res pe i to à ins tru ção su pe ri or, a ini -ci a ti va in di vi du al já te nha des pon ta do, com sen sí vel efi cá cia, na cri a çãodas fa cul da des li vres de Di re i to.

Se gun do a ju di ci o sa ob ser va ção de um pen sa dor con tem po -râ neo, em to das as agi ta ções so ci a is exis te sem pre uma es tre i ta so li da ri e -da de en tre as ins ti tu i ções po lí ti cas, que se trans for mam, e as dis ci pli naspe da gó gi cas. Assim é que o pri me i ro es bo ço da se cu la ri za ção do en si nope las uni ver si da des de cor re, no sé cu lo XIII, do ale van ta men to do pro -le ta ri a do à exis tên cia ci vil – e a cri a ção de es co las pro fis si o na is, a es pe -ci a li za ção do en si no, de cre ta da pela con ven ção, au xi li a da pela bri lhan te ela bo ra ção ci en tí fi ca dos sé cu los XVII e XVIII, foi como que o co ro a -men to in dis pen sá vel da gran de re vo lu ção. O que des ta sor te as sim seevi den cia, nas mu ta ções que afe tam em ge ral a to das as so ci e da des,dá-se do mes mo modo em cada uma de las es pe ci al men te.

Des de que a re for ma po lí ti ca ten de para um es ta do mais ele -va do da exis tên cia ci vil, há como que a im pres cin dí vel ne ces si da de depor ele ni ve lar os es pí ri tos, pela ín ti ma su bor di na ção ine gá vel da Po lí ti ca à Fi lo so fia.

Daí a ten dên cia no tá vel de to dos os le gis la do res que se vol tam, nas qua dras da re or ga ni za ção so ci al, afa no sa men te, para ques tões sé ri ase in te res san tes do en si no.

Esta ta re fa po rém, al ta men te lou vá vel, é al ta men te di fí cil.

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Te mos dis to uma pro va ir re cu sá vel e elo qüen tís si ma node sas tro so pro je to, apre sen ta do ago ra ao Con gres so do Esta do, e que éen tre tan to am pa ra do por um nome res pe i tá vel por mu i tos tí tu los.

Tra ta-se da cri a ção de um ins ti tu to po li téc ni co no qual asdi fe ren tes pro fis sões ir ra di am de uma vas ta base sub je ti va, co mum, dever da des ci en tí fi cas.

Nada re al men te mais ne ces sá rio do que o cri té rio uni for meda Fi lo so fia pa i ran do so bre to das as for mas da ati vi da de; so men te ele as es cla re ce e ori en ta, im pri min do-lhes os mais ele va dos des ti nos.

Da mes ma sor te que as nos sas te o ri as ci en tí fi cas abs tra tas,ge ra is, em bo ra nos per mi tam pre vi sões ra ci o na is, não se po dem tor narúte is, pela mo di fi ca ção do meio de har mo nia com as nos sas ne ces si da des, sem a in ter ven ção dos pro ces sos prá ti cos que, mo di fi can do as leisad qui ri das pela abs tra ção, as apro xi mam da re a li da de ob je ti va; do mes momodo a prá ti ca, nas suas in da ga ções, nada pode pro du zir sem as in di ca -ções teó ri cas que lhe li mi tam e for ta le cem a ação.

Um cur so pre pa ra tó rio, emi nen te men te teó ri co, de onde de -flu am as ver da des am pla men te ge ra is da ciên cia, deve pre si dir por tan toaos cur sos es pe ci a is, que cri am as pro fis sões.

∗ ∗ ∗

Estas bre ves con si de ra ções, in di can do a ma i or har mo nia devis tas acer ca da idéia fun da men tal que pa re ce ca rac te ri zar o pro je to doSr. Pa u la Sou sa, não im pe dem, ape sar dis to, que ve ja mos nele, tal qual se acha ela bo ra do, uma co i sa de sas tro sa, que, se for con ver ti da em lei, de fi -ni rá de um modo de plo rá vel a fe i ção su pe ri or da nos sa men ta li da de.

De i xan do de par te as in cor re ções im per doá ve is, que res sal tamde pron to à sim ples le i tu ra do ar ti go 1º do pro je to, pelo qual fica cri a daem São Pa u lo uma es co la su pe ri or de ma te má ti cas e ciên ci as apli ca das às ar tes e in dús tri as, etc., como se hou ves se mais de uma Ma te má ti ca e não fos seela a úni ca ciên cia a ad qui rir, num de seus ra mos, a Me câ ni ca, um ca rá -ter de in te i ra uni da de; como se ela não fos se a mes ma, do mais sim plescál cu lo de va lo res, às mais sé ri as das ques tões da Ter mo lo gia; de i xan dode par te isto e a des ne ces sá ria re dun dân cia ar tes e in dús tri as, como se ain dús tria não fos se uma mo da li da de das ar tes téc ni cas, con si de re mos oart. 3º do pro je to, onde vêm ex plí ci tas as ma té ri as cons ti tu in tes da es co la

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pre pa ra tó ria; co pi e mo-las tal qual ali se acham res pe i tan do a or dem emque es tão for mu la das.

Estas ma té ri as são: “Lín gua Por tu gue sa, Álge bra Ele men tar eSu pe ri or, Ge o me tria Pla na e no Espa ço, Tri go no me tria Pla na e Esfé ri ca, Ge o me tria Des cri ti va e Ge o me tria Ana lí ti ca e Ge o me tria Su pe ri or eCál cu lo Di fe ren ci al e In te gral, Me câ ni ca Ra ci o nal, Fí si ca Expe ri men tal,Qu í mi ca Ge ral, Inor gâ ni ca e Orgâ ni ca, To po gra fia e Ge o dé sia, De se nho de mão li vre, li ne ar, de or na men ta ção e to po grá fi co.”

Com pre en den do que es tas di fe ren tes ma té ri as não po de ri amter uma su ces são iló gi ca, de uma a ou tra, e con vic tos da im pos si bi li da de– no es ta do atu al do es pí ri to hu ma no – da ini ci a ção de es tu dos su pe ri o res,sem o in dis pen sá vel cri té rio de uma clas si fi ca ção ci en tí fi ca, pro cu ra mosen tre as inú me ras clas si fi ca ções de ciên ci as al gu ma que jus ti fi cas se aco lo ca ção da Ge o me tria Ana lí ti ca an tes do Cál cu lo Trans cen den te e ada Ge o dé sia de po is da Qu í mi ca, e nem a de Ba con, nem a de Ampère,nem as mo der nas de Bor de au, Spen cer e Aug. Com te, nos sa tis fi ze ramo es pí ri to inex pe ri en te e ávi do de co nhe ci men tos.

Não acre di ta mos, ape sar dis to, que um le gis la dor emi nen te eque in ten ta o ale van ta men to men tal de seu país per des se tão boa oca siãode se de fi nir acer ca do en ca de a men to in dis pen sá vel dos co nhe ci men tosci en tí fi cos, lan çan do a esmo, num pro je to su je i to à dis cus são, dis ci pli nas que es ta mos acos tu ma dos a ver su bor di na das a uma cer ta hi e rar quia.

Pros se guin do, ve mos logo após à Ge o me tria Pla na e no Espa ço(do que co nhe ce mos em ciên cia sob a de sig na ção de Ge o me tria Espe ci al) a Tri go no me tria Re ti lí nea e a Esfé ri ca, guin da das à ca te go ria de ciên ci as, quan do não pas sam de so lu ções ana lí ti cas do triân gu lo re ti lí neo e do ân gu lotri e dro, e nes se ca rá ter nada mais são do que ca pí tu lo da pró pria Ge o -me tria Espe ci al. É no en tan to isto uma co i sa fa cil men te com pre en sí vele que já nin guém dis cu te.

Logo após a Ge o me tria Ana lí ti ca, o pro je to nos pa ten te iauma no vi da de – a Ge o me tria Su pe ri or. Não tri pu di e mos, po rém, so breeste erro la men tá vel. Acre di te mos que o ilus tre le gis la dor se quis re fe rirà Ge o me tria Di fe ren ci al e Inte gral; re al men te não exis te na Ma te má ti caesta Ge o me tria Su pe ri or, a não ser por uma de sig na ção ca pri cho sa e por isto mes mo al ta men te re pro vá vel.

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No ta mos, após isto, en tre as ma té ri as in di ca das a au sên cia daAstro no mia, a ciên cia ilus tre por ex ce lên cia, re pre sen tan do, na fra se deD’Alembert, o mo nu men to mais in con tes tá vel do su ces so a que se pode ele var por seus es for ços a in te li gên cia hu ma na.

Por que este in te i ro aban do no da cos mo lo gia ce les te, quan doo pro je to dá o má xi mo de sen vol vi men to à cos mo lo gia ter res tre e oes tu do do mo vi men to e da fi gu ra dos as tros é uma apli ca ção cons tan tee fe cun da das te o ri as ge ra is, es ta be le ci das an te ri or men te, no do mí nio da Ma te má ti ca?

Numa es co la pre pa ra tó ria, des ti na da à cons tru ção ide al demen ta li da des for ma das para a ori en ta ção de ele va dís si mas ati vi da destéc ni cas, é imen sa men te cri mi no sa a ex clu são da ciên cia onde se es bo çae se de sen vol ve sis te ma ti ca men te a ob ser va ção, e onde o mé to do in du -ti vo, que tão vi go ro sa men te re a ge so bre as ciên ci as su pe ri o res, se es ta -be le ce de fi ni ti va men te.

Já que este cur so pre pa ra tó rio ten de so bre tu do a cri ar umabase sub je ti va de co nhe ci men tos às di fe ren tes pro fis sões, esta ex clu sãoequi va le à sua mu ti la ção a mais do lo ro sa, por que além da ação fi lo só fi ca, que im pri me às de ma is ciên ci as, a Astro no mia é, em mu i tos pon tos, abase ci en tí fi ca da Ge o dé sia, apon ta da no pro je to, e cujo es tu do, ba se a do qua se todo no co nhe ci men to das te o ri as as tro nô mi cas, é ver da de i ra -men te im pos sí vel, sem o in flu xo da ciên cia fun da men tal.

É ver da de i ra men te cons ter na do ra a le i tu ra do pro je to que cria o Insti tu to Po li téc ni co de São Pa u lo.

Va zio de ori en ta ção, in cor re tís si mo na for ma, e fi lo so fi ca -men te de fi ci en te, re pe li mos de todo a idéia de que ele pos sa vir a mo de lar a nos sa men ta li da de fu tu ra.

É de fato para es pan tar que um pro je to, os ten tan do tan toluxo de eru di ção, e in ten tan do um pre pa ro ci en tí fi co an te ri or às es pe ci a -li za ções téc ni cas, te nha ol vi da do o co nhe ci men to ge ral da Bi o lo gia e daEco no mia Po lí ti ca, ciên ci as igual men te pre pa ra tó ri as e in dis pen sá ve is ato das as car re i ras.

Nos di fe ren tes cur sos es pe ci a is não exis te o de Enge nha riaGe o grá fi ca, em bo ra a exis tên cia da Ge o dé sia, no cur so pre pa ra tó rio,te nha le gi ti ma do a sua apa ri ção. Por que ra zão es que cê-la, quan do nos é

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to tal men te des co nhe ci da a me ta de do país e so men te ela pode des ven -dá-la?

Tudo isto se ria ain da des cul pá vel, se so bre o pro je to em ques -tão se re fle tis se o bri lho de uma ori en ta ção se gu ra – o que é a ga ran tiamais ro bus ta da ação le gis la ti va.

Pro cu ra mo-la de bal de. Nada há mais ali além da enu me ra çãoar bi trá ria de ma té ri as e a fi xa ção do pra zo de três anos, em que de vemser es tu da das, se gun do pro gra mas or ga ni za dos pelo fu tu ro di re tor daes co la.

O le gis la dor ab di ca, as sim, num ter ce i ro, que pode ser umin com pe ten te. De sor te que a or ga ni za ção do pro je to per ten ce rá afi nal a este e não ao po der le gis la ti vo que a de via for mu lar.

Já que te mos um Con gres so des ti na do a le gis lar, se me lhan tein com pe tên cia, ta ci ta men te for mu la da, é um de sas tre e uma pro fun dade si lu são para to dos.

∗ ∗ ∗

Daí é pos sí vel que es te ja mos em erro.Aban do nan do ain da on tem uma aca de mia, so men te ago ra

co me ça mos re al men te a es tu dar.Este pro tes to bal bu ci an te, pois, não tem a pre ten são de aba lar

se quer um pro je to – fru to de um es pí ri to mais ex pe ri en te, que deve sermais so li da men te cons ti tu í do e in fi ni ta men te mais lú ci do do que o nos so.

EUCLIDES DA CUNHA

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Insti tu to Po li téc ni coII

1º de ju nho, 1892

NA FALTA DE ASSUNTO, con si de re mos mais uma vez o pro je to do Insti tu to Po li téc ni co de São Pa u lo.

Em ar ti go an te ri or de i xa mos lim pi da men te pa ten te a da, deuma ma ne i ra ge ral, a sua de fi ciên cia re la ti va men te à sua idéia ca pi tal.

Adep tos de uma ini ci a ção ci en tí fi ca que no bi li te e ori en te ato das as ati vi da des, em bre ves, mas se gu ras, ob ser va ções que en tão fi ze -mos, ten de ram so bre tu do a de mons trar que ela, tal qual foi pla ne a dapelo le gis la dor, está mu i tís si mo aquém des se ele va do ob je ti vo.

Não fo mos con tes ta dos: tal vez não fôs se mos li dos, tal vez não fôs se mos com pre en di dos.

Não nos de mo ra re mos, con si de ran do qual quer des tes doisca sos. Te mos a va i da de na tu ral a to dos que são cons ci en tes do pró priomé ri to; uma po lê mi ca não nos hon ra ria, em bo ra com ad ver sá rio ilus tre,pre fe ri mos este con tí nuo eno bre ci men to, que se re a li za atra vés da me di -ta ção e do es tu do.

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Apon tan do os de fe i tos e in cor re ções, mu i tos dos qua is gra -vís si mos, de que está ei va do o pro je to, ago ra apre sen ta do ao Se na do,cum pri mos um de ver ru di men tar – com ba ter o erro.

Pra ti ca mo-lo cor re ta men te; não são pos sí ve is con tro vér si as aesse res pe i to – e a au sên cia de uma con tra di ção, que en tre tan to es pe rá -va mos, quer di zer dis to – ven ce mos.

Re al men te, nin guém ou sa ria ar ros tar as con se qüên ci as de ne -gar os de fe i tos que apre sen ta mos; nem mes mo o au tor do pro je to.

Que po tên cia de ima gi na ção se ria ca paz de ar qui te tar ar gu -men tos em prol des ta ge o me tria su pe ri or, ex tra or di ná ria no vi da de ci en tí fi ca,a ma i or tal vez des te sé cu lo, por que em ver da de não é fá cil co i sa umaciên cia nova?

Quem ou sa rá afir mar como exe qüí vel um es tu do cons ci en -ci o so da ge o dé sia, sem o apo io da as tro no mia?

Quem con de na rá aos que exi gem do le gis la dor, que abor daques tões ele va dís si mas do en si no, o im pri mir, nas leis que ela bo ra, o bri -lho de uma ori en ta ção fi lo só fi ca? E etc.

Ape sar dis to, es pe ra mos al guns dias; tão sé rio e tão gra ve senos afi gu ra qual quer ata que, em bo ra de li ca dís si mo e vi san do a en ti da deabs tra ta que se diz ho mem pú bli co, cuja exis tên cia tem a fe i ção ni mi a -men te ge ral dos sím bo los – que es pe ra mos uma re a ção na tu ral, a qualtria, para nós, so bre tu do, o mé ri to de mos trar que não agi mos ir re fle ti -da men te, por que – sem vi o la ção da mo dés tia – qual quer ré pli ca, par tis se de onde par tis se, se ver sas se so bre a ques tão de que tra ta mos – se riavi to ri o sa men te ani i la da.

Não é uma fra se de re tó ri ca a aris to cra cia men tal. Fen dem-sebra sões he rál di cos ao cla rão ide al do pen sa men to. Daí tal vez esta apa -rên cia, até cer to pon to an ti pá ti ca, de or gu lho, que cir cun da aos que ten do, na his tó ria da exis tên cia, uni ca men te uma pá gi na em bran co – o fu tu ro– ou sam ana li sar as ações dos que já se cons ti tu í ram cre do res do me norres pe i to, por um pas sa do de es for ços. Exis te, po rém, uma ate nu an te sal -va do ra, para os que as sim se jul gam e pro ce dem – e é que toda a per so -na li da de se lhes ex tin gue, num gran de e inex tin guí vel amor pe las idéi asque ado tam.

Que isto nos ab sol va.

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Si ga mos uma ou tra or dem de con si de ra ções já que, em ar ti goan te ri or, de i xa mos lim pi da men te pro va da a in com pe tên cia do pro je tocri a dor do Insti tu to Po li téc ni co, re la ti va men te ao gran di o so fim a que se des ti na.

Após a fun ção des tru i do ra era per fe i ta men te ló gi ca a mis sãore cons tru to ra.

Inten tá-la, po rém, se ria não só al çar de ma si a da men te a nos sacom pe tên cia, como in va dir atri bu i ções es tra nhas e pa ten te ar in te i ra ig -no rân cia do nos so meio.

De fato, con si de ran do, não di ze mos a so ci e da de pa u lis ta, para não fe rir de per to, mas toda a so ci e da de bra si le i ra – com pre en de mosque ela não com por ta esse gran de ide al de um pre pa ro fi lo só fi coco mum, pre si din do a to das as ati vi da des.

Ele é di fí cil e lon go, não pode sur gir das no ções ge ra is, por -que a ín ti ma so li da ri e da de das ciên ci as não fa cul ta isto; por que as maissim ples no ções de umas re que rem mu i tas ve zes um co nhe ci men to pro -fun do de ou tras. O en ca de a men to in des tru tí vel das re la ções ci en tí fi casé, além dis to, a úni ca fon te das ver da des fi lo só fi cas e as no ções su per fi -ci a is não o es cla re ce rão com a lim pi dez in dis pen sá vel.

O fato mais sim ples tem mu i tas ve zes, em tor no, para ex pli -cá-lo, um ad mi rá vel con jun to de leis, su ce den do-se numa or dem ma ra vi -lho sa. Uma no ção de ciên cia es pe ci al pode evo car qua se to das as ciên ci as. Par tin do, por exem plo, da ver da de uni ver sal men te sa bi da do ca lor cen -tral, em ge o lo gia, o nos so es pí ri to, con cor ren te men te, en con tra para es -cla re cê-la a quí mi ca, a fí si ca, a as tro no mia e a ma te má ti ca, sen do ver da -de i ra men te in com ple ta a ex pli ca ção, des de que se ex clua qual quer umades tas ciên ci as e as sim su ces si va men te, em inú me ros fa tos, que fora de -ma si a do apon tar.

Por mais ad mi rá vel, po rém, que seja essa con ti nu i da de ne ces -sá ria dos co nhe ci men tos ci en tí fi cos – é ine xe qüí vel nas es co las prá ti cas,pelo me nos en tre nós. Com pre en de-se que o in di ví duo que se des ti na àagri cul tu ra en ten de rá e nin guém o con ven ce rá do con trá rio, que nadatem que ver com o cál cu lo in fi ni te si mal, que irá per der um tem po pre ci o socom a me câ ni ca ou a as tro no mia e fu gi rá do ins ti tu to que lhe im pu seres tas ma té ri as. Da mes ma sor te o fu tu ro en ge nhe i ro me câ ni co, jul ga rá,

Ca nu dos e Ou tros Te mas 237

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sem ra zão em bo ra, não se so bre car re ga inu til men te com o es tu do da as -tro no mia, de cu jas no ções nun ca terá que se uti li zar; e as sim por di an te.

Além dis to, a nos sa in dús tria nas cen te não pode ter ve le i da des de eri gir-se ori gi nal e cri a do ra; pela sim ples imi ta ção do que se faz noes tran ge i ro pode tor nar-se fe cun da e na tu ral; têm, gra tu i ta men te, todauma in fi ni da de de pro ces sos prá ti cos, ofe re ci dos pela ci vi li za ção ge ral, enão se lhe faz evi den te men te pre ci sa uma alta dose de ciên cia, para uti li -zá-los com efi cá cia.

Embo ra não fos se de fi ci en te e in cor re ta a ini ci a ção ci en tí fi caco mum que ca rac te ri za o pro je to de que tra ta mos, ex pri mi ria pois umaas pi ra ção no bi lís si ma ele va da – e ir re a li zá vel. Para útil esta edu ca çãosu pe ri or pre ci sa de ser com ple ta, e já que não a po de mos pos su ir as sime já que as sim ela não se pode re a li zar, que se a di fe ren cie, de acor docom as di fe ren tes car re i ras; fi can do en tre tan to o pen sa men to ca pi tal dopro je to re cor dan do uma ten ta ti va emi nen te men te ci vi li za do ra, ain da que mal ba se a da.

EUCLIDES DA CUNHA

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ANEXOS

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De po i men tosso bre Ca nu dos e Ou tros Te mas

EMBORA lon ge de si tu ar-me nas mes mas al tu ras li te rá ri as e de des cor ti no so ci o po lí ti co do meu an te ces sor na Pre si dên cia doSe na do, o meu no bre co le ga Ma u ro Be ne vi des, não po de ria fur tar-mede re i te rar, ao as su mir o car go, em fe ve re i ro de 1993, o seu com pro mis socom o jor na lis ta e es cri tor Cyl Gal lin do, de pu bli car, atra vés do Ce graf,a 2ª edi ção de Ca nu dos e Ou tros Te mas, do gran de Eu cli des da Cu nha, emco me mo ra ção aos 90 anos da pu bli ca ção de Os Ser tões.

E, mes mo já ha bi tu a do a pro mo ver ou tras pu bli ca ções degran de im por tân cia para o de sen vol vi men to cul tu ral de nos so País,quan do da mi nha an te ri or ges tão na Pre si dên cia des ta Casa, nos anos de 1987–88, sen ti-me, des ta fe i ta, to ma do de um inu si ta do con ten ta -men to. É que aque la se gun da edi ção de Ca nu dos teve uma re per cus sãore tum ban te. E, evi den te men te, não ape nas no âm bi to do Con gres soNa ci o nal.

Com efe i to, além de nós se na do res e dos no bres de pu ta dosfe de ra is, de cer to ple na men te con vic tos da im por tân cia da obra, nãofo ram pou cos os jor na lis tas, e, jun to com eles, um ex pres si vo nú me rode ou tros in te lec tu a is do Bra sil e do ex te ri or, a se ma ni fes ta rem po si ti va -men te sobre ela, mes mo an tes do seu lan ça men to. Numa de mons tra ção

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ine quí vo ca da ex ten são uni ver sal da obra eu cli di a na. A re con fir mar-nosque, por sua com ple te za lin güís ti ca, não só em ter mos es tru tu ra is e li te -rá ri os, mas so bre tu do te má ti cos, se cons ti tui uma das mais im por tan tesobras es cri tas em lín gua por tu gue sa.

Daí, o jus ti fi ca do in te res se de que, dis pen san do ma i o res apre -ci a ções bu ro crá ti cas, esta 3ª edi ção de Ca nu dos e Ou tros Te mas vi es se logopara as ruas, aten den do a um sem nú me ro de so li ci ta ções, que, do mes mo modo que acon te ceu com a edi ção an te ri or, já vem sen do fe i tas des de opri me i ro mo men to de sua anun ci a ção.

E, para mim, ser nor des ti no, mo vi do pelo mes mo te lu ris moe pro fun da men te em pa ti za do com a es sên cia re vo lu ci o ná ria dos per so -na gens de Ca nu dos, é, sem dú vi da, uma hon ra ser um dos res pon sá ve ispor essa pu bli ca ção. Com pre en den do que a saga da que les se res, que na bri lhan te pena e na ar gu ta vi são de Eu cli des da Cu nha, trans for mou-se em um dos tra ba lhos da nos sa li te ra tu ra que nada fica a de ver a ou trasobras clás si cas, não se res trin giu a um mo men to his tó ri co, fac tu al epunc tu al da vida do nos so país, em um li mi ta do am bi en te ge o grá fi co,ou uma mera ma ni fes ta ção de ira so ci al de um agru pa men to de des va -li dos.

Di fe ren te men te, Ca nu dos ul tra pas sou to dos os li mi tes. E,en con tran do na ma gia li te rá ria de Eu cli des um ini gua lá vel ve tor his tó -ri co e so ci o po lí ti co de sua re tum bân cia, está mais do que pre sen te nosdias di fí ce is que hoje en fren ta mos, no afã de cons tru ir uma na ção ver -da de i ra men te de mo crá ti ca e jus ta para com seus ci da dãos. Não é sóum re gis tro.

Como dis se la pi dar men te Cyl Gal lin do: “A Ca nu dos quefal sa men te afron ta o po der, en ver go nhan do a bur gue sia, não é maisum ar ra i al fin ca do no ser tão ba i a no, é toda a re gião, com for mi dá ve is ra mi fi ca ções no Bra sil in te i ro.” Que a 3ª edi ção des te li vro nos aju dea con ti nu ar nes se exer cí cio de re fle xão fun da men tal para o nos soPaís.

Se na dor Hum ber to Lu ce na

Então pre si den te do Se na do Fe de ralTex to pu bli ca do na ore lha do li vro – 3ª edi ção

242 Eu cli des da Cunha

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Exce len tís si mo Se nhorSe na dor Hum ber to Lu ce na:

Enca mi nha mos a V. Exª Ter mos da Mo ção nº 13/94, deau to ria dos Ve re a do res José Osval do Cos ta, Hé lio Escu de ro, JoséRo ber to Vi chi ni e Ba tis ta Za nit ti, ra ti fi ca da pe los Ve re a do res Má rioApa re ci do Gus mão, Antô nio Fer nan do Tor res e José Car los Xa vi er,apre sen ta da e apro va da, por una ni mi da de, por oca sião da ses são or di ná -ria de 9-3-94, com o se guin te teor:

“Re que re mos à Mesa, ou vi do o Ple ná rio, que se ofi cie ao Se na -dor Hum ber to Lu ce na, dig nís si mo Pre si den te do Se na do Fe de ral, emBra sí lia, ma ni fes tan do-lhe os agra de ci men tos des ta Casa, pela pu bli ca çãoda obra Ca nu dos e Ou tros Te mas, co me mo ra ti va do trans cur so dos no ven taanos de pu bli ca ção de Os Ser tões, que mu i to sen si bi li zou a co mu ni da derio-par den se que, há 82 anos inin ter rup tos, cul tua a me mó ria do es cri toren ge nhe i ro Dr. Eu cli des da Cu nha.”

“Des de que apro va da que se en ca mi nhe có pia da pre sen tepro po si tu ra ao Jor na lis ta Cyl Gal lin do e ao Pro fes sor Álva ro Ri be i ro deOli ve i ra Neto, Di re tor da Casa de Cul tu ra Eu cli des da Cu nha.”

Luiz Osval do Mer liPre si den te da Câ ma ra dos Ve re a do res

São José do Rio Par do – São Pa u lo.

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Pre za do Cyl Gal lin do:

Agra de cen do o seu es for ço va li o so no sen ti do de ob ter a re e -di ção de Ca nu dos, a fa mí lia Eu cli des da Cu nha, por meu in ter mé dio,en ca re ce tam bém a gen ti le za de fa zer che gar aos Srs. Se na do res Ma u roBe ne vi des e Hum ber to Lu ce na, e ao Sr. Ma no el Vi le la de Ma ga lhães,

Ca nu dos e Ou tros Te mas 243

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igual re co nhe ci men to pela anuên cia e com pre en são que vi a bi li za ram opro je to. A ho me na gem que o Se na do Fe de ral pres ta a Eu cli des, comesse tra ba lho, cres ce de va lor quan do se pode ver aí o em pe nho deho mens pú bli cos – as so ber ba dos com a bus ca di fí cil e ina diá vel deca mi nhos para o País, que vive mo men tos gra vís si mos – em pres ti gi ar e aju dar a com ba li da cul tu ra na ci o nal.

Qu an do, por ou tro lado, dis se ao ami go que a adi ção, aovo lu me, de co men tá rio seu sem dú vi da hon ra ria Eu cli des, vi con fir -mar-se que a in tu i ção qua se sem pre con duz a pre vi sões cor re tas: aapre sen ta ção que re di giu (fu gi do à ro ti ne i ra pre va lên cia da apo lo gia)tra çou sín te se per fe i ta dos tem pos atu a is, per mi tin do ao le i tor aten tocon clu ir que a de nún cia eu cli di a na deve ser cada vez mais di fun di da e de fen di da.

Pa ra béns. Pelo seu em pe nho, cer ta men te ár duo, para con -se guir a pu bli ca ção; e pelo de se nho do lo ro so e cho can te que sou beob je ti va men te ofe re cer à so ci e da de: os exem plos que apon tou ocor ri -dos no Rio Gran de do Sul e na pon te Rio–Ni te rói bas tam e mos -tram-se como pon ta de imen so ice berg. Entris te cem. Mas não ca u samde sâ ni mo; ao con trá rio, vi vi fi cam es pe ran ças e cer te zas no gran de des -ti no des ta Na ção quan do há vo zes a apon tá-los e a de nun ciá-los pu -bli ca men te.

Joel Bi ca lho Tos tesRe pre sen tan te da Fa mí lia Eu cli des da Cu nha – Rio de Ja ne i ro

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Meu caro ami go Cyl Gal lin do:

São mo men tos fe li zes da vida: re ce ber ines pe ra da men te, des -de pro lon ga do si lên cio, uma lem bran ça dum ve lho ami go em for ma deli vro, que ele aca ba de edi tar. Assim re ce bi a 2ª edi ção de: Eu cli des daCu nha, Ca nu dos e Ou tros Te mas (1993).

O Eu cli des é e tem sido ex ce len te ami go des de de cê ni os, e sóo co nhe ço pelo li vro Os Ser tões, que li e reli vá ri as ve zes. Mas aqui nos é

244 Eu cli des da Cunha

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ma te ri al men te im pos sí vel en con trar os ar ti gos que ele es cre veu para di -ver sos pe rió di cos da sua épo ca e é jus ta men te esse as pec to da sua ati vi -da de que nos ofe re ce no li vro que aca ba de man dar.

Agra de ço de todo o co ra ção!

B. N. Te ens maPro fes sor de Li te ra tu ra e Lín gua Por tu gue sa

Uni ver si da de de Le i den – Ho lan da

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Se nhor Cyl Gal lin do:

Ca nu dos e Ou tros Te mas. Re al men te uma obra e tan to que fa ci li tao aces so aos es tu dos eu cli di a nos. São tex tos es co lhi dos com o cri té rio já co nhe ci do do con ter râ neo Olím pio de Sousa Andra de.

.............................................................................................................Mas se Eu cli des se pre o cu pou em re ve lar a di vi são de dois

Bra sis con tan do as pec tos so ci o ló gi cos, ge o grá fi cos, ou his tó ri cos da -que la re gião, o se nhor se pre o cu pou em re la tar es tes mes mos pro ble -mas de po is de qua se 100 anos, ob ser van do-lhes como ca u sa uma po lí -ti ca de sen gon ça da que nos afli ge até hoje, quan do ve mos in sa tis fe i tasas ten ta ti vas das mais es pú ri as li ga ções po lí ti cas en vol ven do ide o lo gi as con trá ri as tão-so men te para se ten tar che gar ao po der... Não se pen sano povo!

Esti ve na Câ ma ra Mu ni ci pal a con vi te dos ve re a do res paralhes fa lar so bre a or ga ni za ção da Se ma na Eu cli di a na des te ano.

Entre guei-lhes um li vro com sua as si na tu ra, re co men dan doque les sem cu i da do sa men te a apre sen ta ção, sob o ar gu men to de que são in for ma ções ne ces sá ri as a to dos os mi li tan tes po lí ti cos.

Suas pa la vras são uma ori en ta ção se gu ra para se ana li sarcomo ain da an dam as co i sas nes te País, e uma in je ção de âni mo para to -dos aque les que têm um mí ni mo de pre o cu pa ção com o so ci al e de se

Ca nu dos e Ou tros Te mas 245

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es ta be le cer um cri té rio de igual da de e fra ter ni da de re la ci o na do com oNor te e o Nor des te do Bra sil.

Sa u da ções eu cli di a nas.

Álva ro Ri be i ro de Oli ve i ra Net toDi re tor da Casa de Cul tu ra Eu cli des da Cu nha

São José do Rio Par do – São Pa u lo

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Ca ma ra da Gal lin doCan dan go per nam bu ca no da pes te!

I – Enor me o pre sen te, meu ca rís si mo Cyl Gal lin do, e ain -da mais suas pa la vras de apre sen ta ção à 2ª edi ção de Ca nu dos e Ou trosTe mas.

De i xei para ler no meio da ma dru ga da da que le mes mo dia,quan do o si lên cio da casa abri ga va me lhor pe ne tra ção. O Gal lin dojo gou ali o mu i to que sabe: lim pe za de in for ma ção se gu ra e ade são aoas sun to. Com o mé ri to ma i or. Não se en re dou na eru di ção, nem de i -xou-se le var pela fri e za das le tras. O pro tes to que la vra é a atu a li za ção de Os Ser tões, ga ran tia de que o que lhe deu subs tân cia e pe re ni da de não foia for ma ou a sa ben ça, mas a des co ber ta da ter ra e do ho mem, o queim por ta fa zer para res ga tá-los e fa zer com que an de mos de ca be çaer gui da. De ago ra em di an te, a pa la vra ali e na ção some pra quem seacer car do li vro, e a prá ti ca das le tras im põe o exer cí cio da ação, a maisva lia fica re mo en do no fun do da cons ciên cia... para ser mo í da de vez.

Do Chuí ao Ca be de lo, ir mão per nam bu ca no, vai en tão o meu abra ço so li dá rio e agra de ci do.

II – Aqui, olhan do o mes mo rio em cu jas mar gens Eu cli descon clu iu Os Ser tões, en quan to re e di fi ca va a pon te, re le io a Apre sen ta çãode Cyl Gal lin do à nova edi ção do Diá rio da Cam pa nha, pu bli ca do sob otí tu lo de Ca nu dos e Ou tros Te mas.

Ges to igual, como um sím bo lo, fez Gal lin do com o li vro.Res ga tou do ol vi do cha ve apta a abrir a me mó ria na ci o nal, iden ti fi can do

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a cri se. E so mou-lhe, na aná li se, o que por cer to o pró prio gê nio agre ga -ria à vi são do Bra sil, en ca ra do sob o sol da ciên cia atu al e sua ur gên ciareal: a nos sa re mis são.

Assim com ple tam-se tex to e in tro du ção. Como, nas águas ouno tem po, per du ram a pa la vra, o gra ni to e o fer ro da mais com ple talu ci dez prag má ti ca.

José San ti a go NaudEscri tor e pro fes sor apo sen ta do da UnB – Bra sí lia – DF

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Caro con fra de Cyl Gal lin do

Obri ga do pelo Ca nu dos. Sua apre sen ta ção é um en sa io ta len to so,que en ri que ce a bi o gra fia eu cli di a na.

Um mag ní fi co en sa io. Uma das mais su cin tas e subs tan ci o sasapre sen ta ções. Pa ra béns!

Ade li no Bran dãoBió gra fo de Eu cli des da Cu nha – Jun di aí – SP

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Caro Gal lin do:

Li, emo ci o na do, sua in tro du ção a Ca nu dos e Ou tros Te mas.Eu cli des da Cu nha, nos ar ra i a is ce les tes, está or gu lho so de você, quesou be com gran de lu ci dez sin te ti zar os dra mas e con tra di ções de umpaís in ca paz, ain da, de en ca rar seus ser tões, ru ra is e ur ba nos. So moscada vez mais uma gran de sen za la. Como você bem es cre veu. Ca nu dostem hoje “ra mi fi ca ções no Bra sil in te i ro”.

Ca nu dos e Ou tros Te mas 247

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Sen ti fal ta ape nas de uma pa la vra so bre o pa pel dos mi li ta resna cam pa nha de Ca nu dos. Mas isso evi den te men te exi gi ria um ar ti goin te i ro.

Ja son Tér cioJor na lis ta-es cri tor – Bra sí lia – DF

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Se nhor Se na dor Álva ro Pa che co:

Fui in for ma do de que te ria sa í do pela grá fi ca do Se na do umapu bli ca ção so bre Eu cli des da Cu nha. Se a in for ma ção for pro ce den te fi ca ria gra to se você pu des se en vi ar esse tex to ou por mala di plo má ti ca,via Ita ma raty, ou di re ta men te pelo cor re io para Ber lim.

Qu an to ao mais, re pi to que es tou às suas or dens nes ta lin daci da de e que es pe ro vê-lo por aqui, em bre ve.

Um abra ço sa u do so,

Sér gio Pa u lo Rou a netCôn sul-Ge ral do Bra sil em Ber lim

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O es cri tor per nam bu ca no Cyl Gal lin do foi pego de sur pre sapor um con vi te ines pe ra do: es cre ver a apre sen ta ção do li vro Ca nu dos, deEu cli des da Cu nha, que será edi ta do pelo Se na do Fe de ral, em co me mo -ra ção aos 90 anos de pu bli ca ção de Os Ser tões. Gal lin do diz que ain danão al can çou a ci da da nia em ní vel de Eu cli des da Cu nha.

Re gi na Bel trãoDiá rio de Per nam bu co – Re ci fe – PE

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Na apre sen ta ção, Cyl Gal lin do, de ma ne i ra in dig na da, fala deuma re gião mas sa cra da pelo se cu lar des ca so dos man da tá ri os da Na ção.É tex to tão ten so quan to ver da de i ro. Daí o la men to pelo fato de ain danão ter mos apren di do a ler os nos sos clás si cos.

Ma u rí cio Melo Jú ni orCor re io Bra zi li en se – Bra sí lia – DF

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Se nhor Gal lin do:

Qu an to ao li vro em si, gos ta ria de dar uma su ges tão para uma fu tu ra 4ª edi ção: tra ta-se do ar ti go “Insti tu to Po li téc ni co”, de 24 demaio de 1892 (p. 257-61), que, ao meu ver, de ve ria ser com ple men ta dopelo ar ti go de 1º de ju nho de 1892, tam bém pu bli ca do no jor nal O Esta dode S. Pa u lo na co lu na “Dia a Dia”, e que é o pros se gui men to do “Insti tu toPo li téc ni co”.

O ar ti go de 1º de ju nho já foi pu bli ca do tan to na Obra Com -ple ta (I, p. 391-93) como na Re vis ta do Li vro (nº 15 – set./1959, p.158-60).

A se qüên cia ci ta da for ma um todo que me lhor ex pres sa avi são de Eu cli des so bre a fu tu ra Esco la Po li téc ni ca de São Pa u lo e tam -bém é res pon sá vel pe los pos te ri o res in su ces sos do es cri tor quan to ten taen trar para essa Insti tu i ção.

Com um abra ço e sin ce ros agra de ci men tos,

José Car los Bar re to de San ta naEstu dan te ma ra to nis ta em São José do Rio Par do, à épo ca

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Ilmo. Sr.Ma no el Vi le la de Ma ga lhães:

Infor ma mos a V. Sª que este De par ta men to de Estu dos deFor ma ção da AEUDF (Asso ci a ção de Ensi no Uni fi ca do do Dis tri toFe de ral), a exem plo do que foi fe i to no úl ti mo se mes tre de 1993 e pri -me i ro de 1994, com o li vro Um Mor to Co ber to de Ra zão, do es cri tor CylGal lin do, ado tou, des te mes mo au tor, a “Apre sen ta ção” do li vro Ca nu -dos e Ou tros Te mas, de Eu cli des da Cu nha, à pu bli ca ção pelo Se na doFe de ral, para a le i tu ra e aná li se no Cur so de Por tu guês mi nis tra do pelaPro fes so ra Ma ria do Car mo Pe re i ra Co e lho, en vol ven do mais de 400alu nos, no en fo que de fun da men ta ção da ques tão da ci da da nia.

Di an te do ex pos to, so li ci ta mos, a tí tu lo de do a ção, 300 exem -pla res, em se pa ra ta, da re fe ri da “Apre sen ta ção”, para o es tu do em foco e pos te ri or in clu são no acer vo per ma nen te da Bi bli o te ca Cen tral daAEUDF.

Ma ria Leda Re zen de Dan tasDe par ta men to de For ma ção da AEUDF – Bra sí lia – DF

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Da dos so bre o au tor da Apre sen ta çãode Ca nu dos e Ou tros Te mas

CYL GALLINDO é jor na lis ta fi li a do ao Sin di ca do dos Jor na -lis tas Pro fis si o na is do Dis tri to Fe de ral – Bra sí lia, e es cri tor, mem bro daAca de mia de Le tras do Bra sil – Bra sí lia – DF, do Insti tu to His tó ri co eGe o grá fi co do Dis tri to Fe de ral – Bra sí lia – DF, da ANE – Asso ci a çãoNa ci o nal de Escri to res – Bra sí lia – DF e da União Bra si le i ra de Escri to -res – se ção de Per nam bu co. Nas ceu em Bu í que – PE, de onde saiu aos15 anos de ida de, co nhe ceu todo o Bra sil e já vi si tou 14 pa í ses. Atu al -men te está ra di ca do no Re ci fe.

Foi as ses sor de Co mu ni ca ção So ci al no Se na do Fe de ral (Ga -bi ne te 25), tra ba lhou para o Jor nal do Com mer cio, Diá rio de Per nam bu co, Jor -nal da Ci da de e TV Uni ver si tá ria (Re ci fe), foi cor res pon den te do Jor nal deLe tras (RJ), co la bo ra dor da Ga ze ta do Povo (PR), Jor nal de Mato Gros so(MT) e mem bro (fun da dor) do Con se lho Mu ni ci pal de Cul tu ra do Re ci fe.Atu al men te, é o re pre sen tan te, para todo Bra sil, de FRANCACHELA– Re vis ta Inter na ci o nal de Li te ra tu ra e Arte, edi ta da na Argen ti na, comdi ver sos Es ta dos bra si le i ros.

Con quis tou prê mi os de âm bi to na ci o nal com po e si as e con -tos, um os qua is foi re pro du zi do na re vis ta PRISMAL – Uni ver sity ofMary land – USA. Ou tro con to, tra du zi do para o ale mão pelo pro fes sor

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da Uni ver si da de de Viena, Dr. Fri e drich Frosch, pu bli ca do na re vis taXICÓATL, em Salz bur go – Áus tria. Assim como po e mas seus fo rampu bli ca dos na Fran ça, na an to lo gia Poé sie de Bré sil, or ga ni za da por Lour -des Sar men to. O es cri tor cu ba no Edu ar do Frank, ra di ca do no Ca na dá,está tra du zin do con tos seus para o es pa nhol.

Cyl Gal lin do pu bli cou ca tor ze li vros de pro sa e po e sia, sem -pre bem aco lhi dos pela crí ti ca, com de po i men tos fa vo rá ve is de Car losDrum mond de Andra de, Jo a quim Car do so, Ma ria do Car mo Bar re toCam pe lo, Ênio Sil ve i ra, Dul ce Cha con, Re gi na Igel (USA), Né li daPi ñon, Luís da Câ ma ra Cas cu do, Mo a cir Scli ar, Nilo Pe re i ra, Ana Ma riaLis boa de Melo (UFRS), B. N. Te ens ma (Ho lan da), Luiz For jaz Tri gue i ro(Por tu gal), en tre ou tros. Aca ba de es cre ver seu pri me i ro ro man ce.

Foi ele o res pon sá vel pela am pli a ção do acer vo do Bra sil doMu seu Tro pi cal da Ho lan da, em Amster dã. Em 1976, em com pa nhia do Dr. Hans de Ma rez Oyens, per cor re ram vá ri os Es ta dos bra si le i ros, re u -ni ram 408 pe ças, cuja ex po si ção, à épo ca, foi ina u gu ra da pela ra i nha Ju li a na.

A Enci clo pé dia de Li te ra tu ra Bra si le i ra, de Afrâ nio Cou ti nho, 2ªedi ção, 2002, Glo bal Edi to ra/MinC/ABL traz ver be tes a seu res pe i to,as sim como di ver sos di ci o ná ri os de Li te ra tu ra.

Tan to no Rio de Ja ne i ro, como em Bra sí lia – DF, onde re si di ra, em pe nhou-se em pro mo ver e di vul gar a cul tu ra per nam bu ca no-nor des -ti na, in clu si ve re or ga ni zan do, na Ca pi tal da Re pú bli ca, a Casa de Per -nam bu co. No Rio de Ja ne i ro, tor nou-se ami go ín ti mo do po e ta Ma nu elBan de i ra, de Jo a quim Car do so, que pre fa ci ou seu pri me i ro tra ba lho; deCar los Drum mond de Andra de, Luís Luna, Plí nio Doy le, Né li da Pi ñon,Vi ní ci us de Mo ra es, en tre ou tros.

Pre fa ci ou e apre sen tou de ze nas de li vros, en tre os qua isCa nu dos e Ou tros Te mas. Pro fe riu con fe rên ci as e pa les tras na UFPE,UERJ, UnB, AEUDF, UFPA, UFSE, UNICAP, UNESC, Con gres sosNa ci o na is de Li te ra tu ra e Se ma na Eu cli di a na en tre ou tras ins ti tu i ções.

Além dos pu bli ca dos, C. G. ter mi nou de es cre ver seu pri me i roro man ce, que está em pro ces so de en ten di men to de sua tra du ção para o ho lan dês e pu bli ca ção na Ho lan da.

252 Eu cli des da Cunha

Page 320: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Da dos so bre o au tor da capa

REGINALDO ESTEVESPer nam bu co – Bra sil – 1930

Con clu iu ar qui te tu ra em 1954 na Esco la de Be las Artes doRe ci fe e pas sou a le ci o nar de se nho no Cur so de Arqui te tu ra da UFPEaté 1978.

Par ti ci pou de ex po si ções co le ti vas e re a li zou in di vi du al noMu seu de Arte Con tem po râ nea de Per nam bu co.

Foi di re tor do MAC e in te grou o júri da II Bi e nal da Ba hia.É mem bro do Con se lho Cu ra dor do Insti tu to de Arte Con -

tem po râ nea de Per nam bu co. Tra ba lho uma sé rie so bre Ca nu dos des de ja ne i ro de 1995.En de re ço: Escri tó rio/Ate li er – Ave ni da, 1578 – Casa For te –

CEP 52061 – 590 – Fone/Fax. 3441-7443 – Re ci fe/PE.

Page 321: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Índi ce Ono más ti co

A

ABADE, João – 39, 40, 41ABERDEEN – 140ABÍLIO (ca pi tão) – 101AGOSTINHO – 38AGUIAR (ca pi tão) – 101AGUIAR, Dur val Vi e i ra de – 47ALENCAR, Má rio de – 190ALMEIDA, João Jo a quim de – 180ALMEIDA, José Car do so de – 137ALMEIDA, Le o nel Jo a quim de – 172ALIACUS , Pe trus – 119AMPÉRE – 232ANDRADE, Bu e no de – 15ARTUR OSCAR (ge ne ral) – 9, 54, 77, 89,

93, 97, 99, 101, 108

ASSIS, Ma cha do de – Ver MACHADODE ASSIS

B

BACELAR, Antô nio Fran cis co – 173BACON – 232BARBOSA (ge ne ral) – 100BATILO – 163BAYARD – 50BITTENCOURT (ma re chal) – 63, 70, 71BLANC, Lou is – 222BORDEAU – 232BRANNER – 199BROWN, B. – 173

BUACHE, Fi lip pe – 201 BUCKLE – 49, 117, 123

C

CABRAL, Pe dro Álva res – 120CALADO (co ro nel) – 65CALDAS, Ca si mi ro Pe re i ra – 173CALDAS, João Pe re i ra – 169CALDAS, Tupi – 59, 80, 98, 102CALMON – 212CAMINHOÁ (pro fes sor) – 3, 5CAMPELO FRANÇA (co ro nel) – 70CAMPOS, Gon za ga de – 199 CÂNDIDO MARIANO – 68, 95CAPANEMA (ba rão de) – 127, 134 CARLOS EUGÊNIO (ge ne ral) – 76, 93,

101CARLYLE, Tho mas – 49CARVALHO, Co ri o la no de – 69CARVALHO, José C. de – 3CARVALHO, Vi cen te de – 211CASTELNAU – 202 CÉSAR – 9, 14, 76, 79CHANDLESS, W. – 171, 186, 203 CIARIANA, Pe dro de (frei) – 170, 171COELHO NETO – 190 COLOMBO – 119COMTE, Au gus te – 223, 232CONSELHEIRO, Antô nio – 4, 29, 30,

32, 36, 39, 40, 41, 42, 46, 48, 49, 58,59, 74, 79, 86, 92

Page 322: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

CORDEIRO (ca pi tão) – 87CORREIA, Ra i mun do – 190 CUNHA, Eu cli des da – 105, 153, 188,

203, 205, 208, 209, 212, 213, 215, 216, 234, 238

CURIO (dou tor) – 90

D

D’AUVILLE, Bour guig non – 200, 201D’ORBIGNY – 202 D’ALEMBERT – 233DANTAS BARRETO – 80, 101, 211DANTE – 101DELISLE, Gu i lher me – 200, 201DERBY, Orvil le – 148, 199, 202DIAS, Bar to lo meu – 119DRAENER, Fred – 125DUBOIS, Mar cel – 202

E

EMÍLIO – 211ENCARNAÇÃO, Ma nu el Urba no – 170,

171, 172ESCHWEGE – 202

F

FAWCETT (ma jor) – 200 FLORA (dona) – 211, 212FLORIANO (ma re chal) – 47, 215FRENCH – 28FURTADO, Fran cis co – 170

G

GAMA, Vas co da – 120GASTÃO – 212GLADSTONE – 223GLIMMER – 155

GOMES BURAQUEIRA – 65GOMES CARNEIRO – 53GOUVEIA (co ro nel) – 108GRAÇA ARANHA – 190, 211 GUABIRU, Gus ta vo – 69, 81GUIMARÃES, Ga bri el – 172

H

HANN – 125HARTT, Fred – 202HERSCHEL – 127HOMEM DE MELO (ba rão) – 201, 202HUMBOLDT – 4, 64, 114

J

JACEGUAI (al mi ran te) – 207JOSÉ (cri an ça) – 62JOSÉ FÉLIX – 39JOSÉ PEDRO (ma jor) – 87, 108

L

LABRE, Antô nio Ro dri gues Pe re i ra –172

LAWSON – 200 LEITE, Do min gos – 68LEÔNIDAS – 26LIAIS, Emí lio – 125, 203LIMA, Ro dri gues – 46LINDSTONE, W. – 173LIVINGSTONE – 6LOEFGREN, A. – 114, 115, 116LUND – 115

M

MACAMBIRA – 36, 39MACAMBIRA, Jo a quim (fi lho) – 39

256 Euclides da Cunha

Page 323: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

MACHADO DE ASSIS – 189, 190, 191,201

MALTHUS – 223MARDEL, João Ba tis ta – 169MARTINIANO (ma jor) – 69MARTIUS – 3, 113, 114MEDEIROS (co ro nel) – 13MELO, Epa mi non das – 172MELO, Fran cis co de – 87MELO, Fran cis co Ho mem de – 201 MICHEL, Lu í sa – 223MILL, Stu art – 49MNE MON – 96MONTEIRO, Ca e ta no – 172MONTESQUIEU – 49MOREIRA CÉSAR – 21, 42, 68MORRIS DAVIS – 200 MOTA – 40MOUCHEZ, E. – 138, 139, 143, 148

N

NABUCO, Jo a quim – 205

O

OLIVEIRA LIMA – 205, 211OLIVEIRA, Jo a quim de – 139OSÓRIO (ca pi tão) – 95

P

PAÇO, Ma nu el Jo a quim do – 170PAJEÚ – 39, 40, 86 PAULA SOUSA – 229, 231PEDRO I (im pe ra dor) – 198 PEIXOTO, Flo ri a no – 215PENA, Her cu la no (con se lhe i ro) – 170

PINZÓN, Vi cen te – 120PIRES FERREIRA (te nen te) – 40POMPEU, To más – 126PONTES, Pe dro Si mões – 83, 90PONTES, Si mões – 90PROUDHON – 222

Q

QUADRADO, Ma nu el – 40QUEIRÓS (ma jor) – 98, 102

R

RAPOSO (al fe res) – 102REBOUÇAS, André – 134, 207REMBRANDT – 23REIS, Eles bão (te nen te-co ro nel) – 109RODRIGO OTÁVIO – 190 RODRIGUES, José Car los – 212ROHAN, Be a u re pa i re – 134RONDON, Cân di do – 200

S

SACRAMENTO, Antô nio Le o nel do – 173SAINT-HILAIRE, Auguste – 3, 5, 202SAMPAIO, Cé sar (co ro nel) – 68, 77, 103S’ANNINHA – 211, 212SANTOS, Bo a ven tu ra – 172SARAIVA (con se lhe i ro) – 52SAVAGET (ge ne ral) – 20, 26, 27, 28SAVONAROLA – 49SCHILLER – 61SILVA COUTINHO – 171SILVA, Alfre do – 69SILVA, Ra i mun do Mag no da (ca pi tão) –

100SILVEIRA, Antô nio Pin to da (ca pi tão) –

193

Ca nu dos e Ou tros Temas 257

Page 324: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

SIQUEIRA DE MENESES (te nen te-co -ro nel) – 91, 93, 108

SOARES, Ga bri el – 139SOTERO DE MENESES (co ro nel) –

68, 78, 87SOUSA FRANCO (ca pi tão) – 69SPENCER – 223, 232STIRLING, John – 28

T

TÁCITO – 163TAMARINDO (co ro nel) – 45TÂNTALO – 55TARAMELA – Ver QUADRADO, Ma -

nu elTEIXEIRA DE SOUSA – 15

TELES, Car los (co ro nel) – 27, 38, 49THURMMAN – 116TOSCANELLI, Pa o lo – 119

U

URBANO, Ma nu el – Ver ENCARNA-ÇÃO, Ma nu el Urba no

V

VERÍSSIMO, José – 190, 191, 205, 208VICO – 162VÍTOR HUGO – 216, 225VILANOVA – 32, 39, 59, 83, 86

W

WARMING – 113, 114, 117

258 Euclides da Cunha

Page 325: Canudos e Outros Temas - Euclides Da Cunha

Ca nu dos e Ou tros Te mas, de Eu cli des da Cu nha, foi com pos to em Ga ra mond, cor po 12, e im pres so em

pa pel ver gê are ia 85g/m2 , nas ofi ci nas da SEEP (Se cre ta ria Espe ci al de Edi to ra ção e Pu bli ca ções), do Se na do

Fe de ral, em Bra sí lia. Aca bou-se de im pri mir em abril de 2003, de acor do com o pro gra ma edi to ri al e pro je to grá fi co

do Con se lho Edi to ri al do Se na do Fe de ral