CAO Crim€¦ · Boletim Criminal Comentado 108- Setembro -2020 - 3 ESTUDOS DO CAOCRIM 1- Tema:...

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CAO – Crim Boletim Criminal Comentado n° 108, 9/2020 (semana nº 2) Procurador-Geral de Justiça Mário Luiz Sarrubbo Secretário Especial de Políticas Criminais Arthur Pinto Lemos Junior Assessores Fernanda Narezi P. Rosa Ricardo José Gasques de Almeida Silvares Rogério Sanches Cunha Valéria Scarance Paulo José de Palma (descentralizado) Artigo 28 e Conflito de Atribuições Marcelo Sorrentino Neira Fernando Célio Brito Nogueira Analistas Jurídicos Ana Karenina Saura Rodrigues Victor Gabriel Tosetto

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CAO – Crim

Boletim Criminal Comentado n° 108, 9/2020

(semana nº 2)

Procurador-Geral de Justiça

Mário Luiz Sarrubbo

Secretário Especial de Políticas Criminais

Arthur Pinto Lemos Junior

Assessores

Fernanda Narezi P. Rosa

Ricardo José Gasques de Almeida Silvares

Rogério Sanches Cunha

Valéria Scarance

Paulo José de Palma (descentralizado)

Artigo 28 e Conflito de Atribuições

Marcelo Sorrentino Neira

Fernando Célio Brito Nogueira

Analistas Jurídicos

Ana Karenina Saura Rodrigues

Victor Gabriel Tosetto

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SUMÁRIO

SUMÁRIO..............................................................................................................................................2

ESTUDOS DO CAOCRIM.........................................................................................................................3

1-Tema: Progressão de regime e termo inicial.....................................................................................3

2- Tema: ANPP e atos infracionais........................................................................................................3

3- Tema: Nota Técnica Conjunta CAOCrim e CAOCivel : Alterações trazidas pela Lei n° 13.931/19 na

Lei de notificação compulsória n. 10.778/03........................................................................................4

STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM.......................................5

DIREITO PROCESSUAL PENAL:...............................................................................................................5

1-Tema: Audiências criminais no contexto da Pandemia de COVID-19. (In)existência de excesso de

prazo.....................................................................................................................................................5

2- Tema: Acordo de delação premiada e impugnação do delatado.....................................................7

DIREITO PENAL:...................................................................................................................................11

1-Tema: Apreensão de arma de fogo e munições no contexto de crime de tráfico de drogas afasta a

minorante do tráfico privilegiado.......................................................................................................11

MP/SP: decisões do setor art. 28 do CPP............................................................................................12

1- Tema:..............................................................................................................................................12

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ESTUDOS DO CAOCRIM

1- Tema: Progressão de regime e termo inicial

Em sede de agravo em execução nº0002075-46.2020.8.26.0637, o TJSP reformou decisão que

deferiu a progressão ao regime aberto, com base em cálculo de penas que teve como termo inicial

a data em que preenchido o requisito objetivo para a progressão ao regime semiaberto.

A Corte paulista seguiu não apenas entendimento predominante nos E. Tribunais Superiores, mas

também a tese 513 do Setor de Recursos Extraordinários e Especiais do MP SP. Na execução da

pena, o marco para a progressão de regime será a data em que o apenado preencher os requisitos

legais (art. 112, LEP), segundo análise casuística de cada caso. No caso, a presença do requisito

subjetivo foi constatada somente por ocasião da reabilitação da conduta carcerária a partir de falta

grave praticada, quando o sentenciado passou a contar com bom comportamento carcerário

atestado pela direção do presídio.

O recurso ministerial foi provido, determinando se a recondução do sentenciado ao regime

semiaberto e a retificação do cálculo para a progressão ao regime aberto.

Inteiro teor do acórdão

2- Tema: ANPP e atos infracionais

Aparece como importante circunstância judicial (e não raras vezes esquecida) a PERSONALIDADE do

agente. Cuida-se do retrato psíquico do delinquente, não podendo ser valorada de forma imprecisa

ou objetivamente desamparada porquanto, através de considerações vagas e insuscetíveis de

controle, a sua utilização acarretaria a ampla e inadequada incidência do Direito Penal do Autor.

(STJ - REsp 513.641/RS, Rel. Min. Felix Fischer, j. 06/05/2004).

Pode a personalidade do agente servir para o promotor de Justiça, fundamentadamente, recusar

oferecer o acordo de não persecução penal (ANPP)? Entendemos que sim.

De acordo com diversas decisões proferidas pelo STJ, os atos infracionais podem influenciar a

análise da personalidade do agente para fins cautelares:

“A Terceira Seção desta Corte firmou orientação de que ‘os registros sobre o passado de uma

pessoa, seja ela quem for, não podem ser desconsiderados para fins cautelares. A avaliação sobre a

periculosidade de alguém impõe que se perscrute todo o seu histórico de vida, em especial o seu

comportamento perante a comunidade, em atos exteriores, cujas consequências tenham sido

sentidas no âmbito social. Se os atos infracionais não servem, por óbvio, como antecedentes penais

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e muito menos para firmar reincidência (porque tais conceitos implicam a ideia de 'crime' anterior),

não podem ser ignorados para aferir a personalidade e eventual risco que sua liberdade plena

representa para terceiros’” (RHC 96.158/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, j. 14/8/2018).

É neste contexto que enxergamos campo fértil para o promotor de Justiça, com base nas

circunstâncias do caso concreto, negar oferecer o ANPP com base na personalidade do agente,

destacando-se, nesse tanto, a existência de atos infracionais cometidos pelo investigado quando

menor inimputável. Nesse sentido já decidiu o TJ SP ( clique aqui )

3- Tema: Nota Técnica Conjunta CAOCrim e CAOCivel : Alterações trazidas pela Lei n° 13.931/19

na Lei de notificação compulsória n. 10.778/03

Conheça o posicionamento institucional sobre o impacto da notificação compulsória no

enfrentamento da violência doméstica e as críticas à Portaria n° 2.282, de 27 de agosto de 2020 do

Ministério da Saúde: Clique aqui.

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STF/STJ: decisões de interesse institucional COMENTADAS PELO CAOCRIM

DIREITO PROCESSUAL PENAL:

1-Tema: Audiências criminais no contexto da Pandemia de COVID-19. (In)existência de excesso de

prazo.

STJ- Pesquisa Pronta

No julgamento do HC 580.435, a Sexta Turma afirmou que "eventual retardo na conclusão da

instrução criminal deve ser considerado para fins de flexibilização, especialmente diante da

situação pela qual todos passamos – na espécie, a audiência de instrução e julgamento, que estava

designada para o dia 28/7/2020, foi suspensa, segundo a juíza que conduz o processo, em razão da

pandemia da Covid-19, o que justifica certa demora no encerramento da instrução criminal".

O processo é de relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior.

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

Somente configura constrangimento ilegal por excesso de prazo, capaz de autorizar o relaxamento

da prisão cautelar, a demora em razão da ofensa ao princípio da razoabilidade pela desídia do

Poder Judiciário ou da acusação, jamais sendo aferível apenas a partir da mera soma aritmética dos

prazos processuais.

O maior prolongamento da instrução criminal, devidamente justificada pelo estado em que

vivemos atualmente (PANDEMIA), não implica ofensa ao princípio da razoabilidade. Nesse sentido

vem decidindo reiteradamente o STJ, porém atento à gravidade em concreto do crime objeto do

processo em instrução. Vejamos algumas decisões, extraídas do material publicado pelo Centro de

Apoio da Seção de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Sumário e trechos da decisão: Roubo majorado. Alegação de excesso de prazo da prisão cautelar.

“Ante a crise mundial do coronavírus e, especialmente, a iminente gravidade do quadro nacional,

intervenções e atitudes mais ousadas são demandadas das autoridades, inclusive do Poder

Judiciário. Assim, penso que, na atual situação, salvo necessidade inarredável da segregação

preventiva – mormente casos de crimes cometidos com particular violência –, a envolver acusado

de especial e evidente periculosidade ou que se comporte de modo a, claramente, denotar risco de

fuga ou de destruição de provas e/ou ameaça a testemunhas, o exame da necessidade da

manutenção da medida mais gravosa deve ser feito com outro olhar”. “Apoiado nessas premissas,

precipuamente em conformidade com os arts. 1º e 4º da Recomendação n. 62/2020 do CNJ,

entendo que não são bastantes as ponderações invocadas pelas instâncias ordinárias para manter a

ordem de constrição do réu”. “Deferida a liminar, para assegurar ao paciente que aguarde em

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liberdade o julgamento do mérito deste writ”. (STJ; Habeas Corpus nº 567.457-DF; rel. Rogério

Schietti Cruz; Decisão Monocrática; j. 19/3/2020).

Sumário e trechos da decisão: Tráfico de drogas (41 g de maconha). Revogação da prisão

preventiva. “É preciso dar imediato cumprimento à recomendação do Conselho Nacional de Justiça,

como medida de contenção da pandemia mundialmente causada pelo coronavírus (Covid-19),

devendo a custódia ser substituída pela prisão cautelar em regime domiciliar.” Liminar deferida.

(STJ; Habeas Corpus nº 567.006-SP; rel. Sebastião Reis Júnior; Decisão Monocrática; j. 19/3/2020).

Sumário e trechos da decisão: Estelionato e quadrilha ou bando. Pleito de concessão da liberdade

provisória ou prisão domiciliar. “Considerando tratar-se de crime cometido sem violência ou grave

ameaça, bem como o fato de a paciente possuir filho menor de 12 anos de idade, é preciso dar

imediato cumprimento à recomendação do Conselho Nacional de Justiça, como medida de

contenção da pandemia mundialmente causada pelo coronavírus (Covid-19), devendo a custódia

cautelar ser substituída pela prisão cautelar em regime domiciliar”. Liminar deferida. (STJ; Habeas

Corpus nº 550.529-SP; rel. Sebastião Reis Júnior; Decisão Monocrática; j. 19/3/2020).

Sumário e trechos da decisão: Tráfico de drogas e posse ilegal de arma de fogo de uso permitido.

“Defiro o pedido liminar para, excepcionalmente e em cumprimento à Recomendação CNJ n.

62/2020, substituir a prisão cautelar imposta ao paciente por prisão domiciliar.” (STJ; Habeas

Corpus nº 567.961-SC; rel. Sebastião Reis Júnior; Decisão Monocrática; j. 23/3/2020).

Sumário e trechos da decisão: Tráfico de drogas (77,12 gramas de maconha). Pleitos de revogação

da prisão preventiva e trancamento da ação penal. Deferida a liminar, apenas para ordenar a

soltura do paciente. “Em conformidade com os arts. 1º e 4º da Recomendação nº 62/2020 do CNJ,

entendo que não são bastantes as ponderações invocadas pelas instâncias ordinárias para embasar

a ordem de constrição do réu, porquanto não contextualizaram, em elementos concretos dos

autos, o periculum libertatis e a gravidade concreta da conduta perpetrada.” (STJ; Habeas Corpus

nº 567.821-SP; rel. Rogerio Schietti Cruz; Decisão Monocrática; j. 23/3/2020).

Sumário e trechos da decisão: Posse ilegal de arma de uso restrito. Pleito de revogação de prisão

preventiva. Deferida a liminar para substituir a prisão preventiva do paciente por medidas

cautelares. “Em conformidade com os arts. 1º e 4º da Recomendação n. 62/2020 do CNJ – inclusive

o conselho de ‘suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo das pessoas em liberdade

provisória’ (art. 4º, II, grifei) –, constato ser suficiente e adequado, para atender às exigências

cautelares do art. 282 do CPP, impor ao réu – independentemente de mais acurada avaliação do

Juízo monocrático – as providências alternativas positivadas no art. 319, IV e V, do CPP”. (STJ;

Habeas Corpus nº 567.782-SP; rel. Rogerio Schietti Cruz; Decisão Monocrática; j. 23/3/2020).

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Sumário e trechos da decisão: Tráfico de drogas e Associação ao tráfico. Pleito de substituição da

preventiva por prisão domiciliar. Paciente que é mãe de 2 (dois) menores, um com 5 (cinco) anos de

idade e outro com 01 (um) ano e 09 (nove) meses. “Prevalecem, pois, as razões humanitárias.

Assim sendo, mister autorizar a substituição da prisão da paciente pela prisão domiciliar (...) sem

prejuízo da fixação de medidas cautelares alternativas pelo magistrado, e podendo a prisão ser

novamente decretada em caso de descumprimento da referida medida ou de superveniência de

fatos novos.” Enfatiza, também, que “a Recomendação nº 62 do CNJ, de 17 de março de 2020,

estabelece medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no

âmbito dos sistemas de justiça penal”. Concedida a ordem de ofício para assegurar à paciente o

direito à prisão domiciliar. (STJ; Habeas Corpus nº 558.308-PR; rel. Reynaldo Soares da Fonseca;

Decisão Monocrática; j. 25/3/2020).

2- Tema: Acordo de delação premiada e impugnação do delatado

INFORMATIVO 988 STF- SEGUNDA TURMA

A Segunda Turma, em conclusão e por empate na votação, concedeu, de ofício, a ordem de habeas

corpus para declarar a nulidade da utilização, como meio de prova, do segundo acordo de

colaboração premiada firmado, por auditor e sua irmã, no âmbito de operação deflagrada com o

objetivo de desarticular organização criminosa formada por auditores fiscais (Informativos 941 e

958).

O colegiado reconheceu a ilicitude das declarações incriminatórias prestadas pelos referidos

delatores. Ademais, determinou ao juízo de origem que verifique eventuais outros elementos

probatórios contaminados pela ilicitude declarada e atos que devam ser anulados em razão de

neles estarem fundamentados, além da viabilidade de manutenção ou trancamento do processo

penal ao qual estão submetidos os pacientes. Prosseguindo, nos termos do art. 157, § 3º, do Código

de Processo Penal (CPP), preclusa a decisão de desentranhamento, determinou a inutilização da

prova declarada ilícita, facultado às partes acompanhar o incidente, mantidos os benefícios

oferecidos pelo Ministério Público e concedidos pelo juízo de origem aos delatores. Por fim,

mandou oficiar ao Conselho Nacional do Ministério Público e à Corregedoria do Ministério Público

do Paraná, a fim de que instaurem procedimentos investigatórios para o esclarecimento dos fatos

relacionados a atuações dos membros do Ministério Público na realização dos acordos de

colaboração premiada, devendo tais órgãos manter o Supremo Tribunal Federal (STF) informado

sobre o andamento e os resultados da apuração.

Na espécie, o referido auditor, investigado por supostos atos relacionados a propinas para redução

de tributos, foi preso em flagrante por crimes sexuais. Nessa ocasião, ele e sua irmã fizeram um

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acordo de colaboração premiada com o Ministério Público, o qual abrangeu todos os crimes a ele

imputados e culminou com a prisão de diversos auditores fiscais. Esse acordo foi rescindido diante

de constatações de que o delator teria mentido, omitido fatos e cometido novos crimes. Durante

interrogatório pelo juízo de origem, o delator asseverou que a rescisão do citado acordo teria sido

arbitrária. Acusou promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado

(Gaeco) de manipular suas declarações e ocultar todos os vídeos dos depoimentos que havia

prestado extrajudicialmente. Posteriormente, o Parquet firmou com o auditor novo acordo de

delação premiada, sob a condição de que se retratasse das mencionadas acusações e ratificasse as

declarações que fizeram parte do acordo rescindido. O segundo acordo foi homologado como

termo aditivo pelo juízo a quo.

Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes (relator).

O relator esclareceu que o caso em questão é diverso dos termos decididos anteriormente pelo

Plenário do Supremo Tribunal Federal (HC 127.483). Trata-se de aproveitamento das provas

resultantes do segundo acordo em processos concretos. O Pleno não discutiu a possibilidade na

qual o acordo possui reflexos diretos sobre situações de terceiros. Não se cuida de impugnação do

acordo de colaboração premiada por terceiros, mas de questionamento de terceiros que tem a

aplicação de provas no seu caso concreto. Ou seja, o que se discute é a produção de provas pelo

colaborador nos processos que tramitam em face dos pacientes da ação. O foco da impugnação diz

respeito à utilização de provas contra os imputados e ao modo que tais elementos foram

produzidos a partir de um cenário de acordos de colaborações temerários e claramente

questionáveis. Sendo assim, no caso concreto, pode-se questionar a aplicação das provas colhidas

nos acordos. Não se enfrenta, portanto, a posição adotada pelo Plenário, mas se desenvolve e

refina um sistema para analisar as consequências que precisam ser controláveis pelo Poder

Judiciário. Nessa perspectiva, diante da complexidade das relações que se colocam em uma Justiça

criminal negocial, o relator reputou ser necessário avançar para traçar critérios adequados à

limitação de abusos.

O ministro Gilmar Mendes relembrou que a Segunda Turma, no HC 151.605, já havia assentado, por

violação às regras de competência, a ilegalidade da homologação do acordo de colaboração

premiada ora questionado e reconhecido a ineficácia das provas por meio dele produzidas em

relação ao paciente daquele writ. Assim, explicou que as práticas realizadas na operação analisada

são claramente temerárias e questionáveis, porque ocasionaram inúmeras impugnações e

colocaram em risco a efetividade da persecução penal.

O relator ressaltou que o estabelecimento de balizas legais para o acordo é uma opção do nosso

sistema jurídico, para garantir a isonomia e evitar a corrupção dos imputados, mediante incentivos

desmesurados à colaboração, e dos próprios agentes públicos, aos quais se daria um poder sem

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limite sobre a vida e a liberdade dos imputados. É preciso respeitar a legalidade, visto que as

previsões normativas caracterizam limitação ao poder negocial no processo penal. No caso de

ilegalidade manifesta em acordo de colaboração premiada, o Poder Judiciário deve agir para a

efetiva proteção de direitos fundamentais. Registrou que, em diversos precedentes, a Corte

assentou que o acordo de colaboração premiada é meio de obtenção de prova. Portanto, trata-se

de instituto de natureza semelhante, por exemplo, à interceptação telefônica. Tendo em conta que

o STF reconheceu, várias vezes, a ilegalidade de atos relacionados a interceptações telefônicas, não

há motivo para afastar essa possibilidade em ilegalidades que permeiam acordos de colaboração

premiada.

Observou que, no caso concreto, em face da gravidade das acusações atribuídas aos membros do

Ministério Público estadual, é questionável a possibilidade de esses agentes negociarem e

transigirem sobre a pretensão acusatória com relação a fatos supostamente criminosos a eles

imputados. Além disso, diante do cenário descrito, em que houve a realização de acordo de

colaboração premiada sucessivo à rescisão por descumprimento de avença anterior, há clara

fragilização à confiabilidade das declarações prestadas pelos delatores. A força probatória de tais

declarações, já mitigada em razão do previsto no art. 4º, § 16, da Lei 12.850/2013 (1), resta

completamente esvaziada diante do panorama de ilegalidades narrado. Apontou, como orientação

prospectiva ou até um apelo ao legislador, a obrigatoriedade de registro audiovisual de todos os

atos de colaboração premiada, inclusive negociações e depoimentos prévios à homologação.

Segundo o ministro, grande parte dos problemas que se verificaram no caso concreto decorrem da

ausência de registro e controle dos atos de negociação e das declarações prestadas pelos delatores.

Vencidos os Ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia que denegaram a ordem.

(1) Lei 12.850/2013: “Art. 4º. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial,

reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de

direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o

processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: (...)

§ 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de

agente colaborador.”

HC 142205/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25.8.2020. (HC-142205)

HC 143427/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25.8.2020. (HC-143427)

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

Em que pese a decisão em comento, que a todos surpreendeu, a doutrina, bem como a

jurisprudência (inclusive dos Tribunais Superiores) são no sentido de que não é possível o delatado

impugnar o conteúdo da colaboração homologada judicialmente. Isso acontece em razão da

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proteção jurídica conferida ao aspecto interno da colaboração, que se refere apenas as esferas

jurídicas dos negociantes, atributo que lhe assegura uma estável aquisição de direitos recíprocos.

Por isso, deve continuar incólume o entendimento segundo qual “O delatado não tem legitimidade

para impugnar o acordo de colaboração premiada. Assim, em regra, a pessoa que foi delatada não

poderá impetrar um habeas corpus alegando que esse acordo possui algum vício. Isso porque se

trata de negócio jurídico personalíssimo. Esse entendimento, contudo, não se aplica em caso de

homologação sem respeito à prerrogativa de foro. Desse modo, é possível que o delatado

questione o acordo se a impugnação estiver relacionada com as regras constitucionais de

prerrogativa de foro. Em outras palavras, se o delatado for uma autoridade com foro por

prerrogativa de função e, apesar disso, o acordo tiver sido homologado em 1ª instância, será

permitido que ele impugne essa homologação alegando usurpação de competência”. (STF. 2ª

Turma. HC 151605/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 20/3/2018 (Info 895)).

Este entendimento se assenta na natureza personalíssima do negócio jurídico celebrado, composto

por obrigações que vinculam apenas as partes do ajuste e incapaz de malferir a esfera jurídica de

terceiros, ressalvada a possibilidade de os delatados confrontarem as declarações do colaborador,

que não representa, propriamente, um ataque verdadeiramente desconstitutivo do ato.

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DIREITO PENAL:

1-Tema: Apreensão de arma de fogo e munições no contexto de crime de tráfico de drogas afasta

a minorante do tráfico privilegiado

STJ- AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1682520

EMENTA

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES.

DOSIMETRIA. PRETENDIDA APLICAÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE REDUÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 33,

§ 4º, DA LEI N. 11.343/2006. APREENSÃO DE ARMA E MUNIÇÕES NAS MESMAS CIRCUNSTÂNCIAS.

CONDENAÇÃO PELOS CRIMES PREVISTOS NO ART. 14 E 16 DA LEI DE ARMAS. NÃO

PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PREVISTOS EM LEI. RECURSO DESPROVIDO.

Inteiro teor

COMENTÁRIOS DO CAOCRIM

O § 4º do art. 33 da Lei n.º 11.343/06 dispõe que para o crime de tráfico de entorpecentes e suas

figuras equiparadas as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente

seja primário, possua bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas e não integre

organização criminosa.

No caso em tela, o traficante foi surpreendido com arma e munições, sendo condenado, inclusive,

pelos crimes previstos no art. 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003. Esse quadro, obviamente, evidencia a

dedicação do réu às atividades criminosas, afastando a incidência da benesse legal.

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MP/SP: decisões do setor do art. 28 do CPP

Autos n.º 15xxxx-3x.2019.8.26.0114 – MM. Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Campinas

Ré: U.S.L.

Assunto: recusa de formulação de acordo de não persecução penal – manutenção – fatos que envolvem injúria racial – orientação conjunta 01/2020 PGJ/CGMP-MPSP

Cuida-se de ação penal instaurada contra U.S.L., denunciada incurso no art. 140, § 3º, do

Código Penal, porque, no dia 16 de outubro de 2018, no período da tarde, na Rua General

Setembrino de Carvalho, n. 143, bairro Jardim Leonor, na cidade e Comarca de Campinas, a acusada

injuriou a vítima V.S.T., ofendendo-lhe a dignidade, utilizando-se, para tanto, elementos referentes

à sua cor (cf. denúncia de fls. 53/54).

Segundo se apurou, a denunciada dirigiu-se ao local dos fatos, Farmácia de Alto Custo, a fim

de retirar medicamento prescrito ao seu cônjuge. Todavia, como houve alteração de dosagem do

remédio, segundo as diretrizes do local, o médico auditor precisaria reanalisar o pedido para,

somente após, autorizar a entrega.

Ocorre, contudo, que o funcionário responsável já não mais se encontrava no local quando

U. lá chegou. Assim, a ofendida interveio na situação, explicou à denunciada o ocorrido e, a seguir,

orientou-a como agir.

Então, inconformada que não conseguiria resolver, naquele dia, seu problema, U. esmurrou

o balcão de atendimento e passou a ofender a dignidade da vítima, dizendo-lhe: “você é uma

miserável, além de preta e ruim”.

A testemunha I.S.B., que também trabalha no local dos fatos, presenciou as ofensas

proferidas, narrando em solo policial todo o ocorrido (fls. 42).

Diante dos fatos, por ter sua honra subjetiva ofendida, a vítima, além de ouvida,

apresentou à autoridade policial representação criminal, manifestando expressamente o desejo de

serem os fatos devidamente apurados (fls. 7/8).

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U. negou a prática delitiva (fls. 33).

Ao oferecer a denúncia, o Douto Promotor de Justiça deixou de oferecer o acordo de não

persecução penal à denunciada, uma vez que ela negou a prática dos fatos, e o benefício exige a

confissão formal e circunstanciada do agente (fls. 55).

A inicial foi recebida (fls. 56).

Acostou-se folha de antecedentes e certidões criminais em nome da acusada (fls. 62/64).

Devidamente citada a ré (fls. 66/67), a Defensoria Pública manifestou-se nos autos,

oportunidade em que, considerando a atual situação de pandemia, que impede a adequada

comunicação entre acusado e defesa técnica, limitou-se a arrolar as testemunhas indicadas na

denúncia, bem como requereu a suspensão do prazo para resposta à acusação, com reabertura de

vista quando normalizadas as circunstâncias (fls. 74/75).

O Ministério Público manifestou-se favoravelmente à suspensão do prazo para a

apresentação de defesa prévia, considerando que se trata de ré solta e diante da situação de

pandemia (fls. 78).

O MM. Juiz determinou o retorno dos autos à Defensoria Pública, para apresentação de

resposta à acusação, tendo em vista que, nos termos do Provimento CSM n. 2.554/2020, os prazos

dos processos digitais voltaram a fluir em 4/5/2020, anotando que eventuais diligências poderão

ser requeridas no curso da instrução, assim como indicação de provas, que serão consideradas

oportunamente até a realização da audiência de instrução, sem prejuízos para a Defesa (fls. 80).

A Defensoria Pública reiterou o pedido anterior (fls. 85/87 e 88/90), que foi indeferido a fls.

91.

Apresentada a resposta à acusação, a Defensoria Pública entendeu presentes os requisitos

do art. 28-A do CPP, requerendo a formulação de proposta de acordo de não persecução penal.

Argumentou que, embora a acusada tenha negado os fatos em sede policial, não estava

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acompanhada de advogado, sendo necessário dar a ela essa oportunidade, pugnando pela

designação de audiência para esse fim.

Não sendo esse o entendimento, considerando presentes os requisitos do art. 89 da Lei n.

9.099/95, requereu a formulação de proposta de suspensão condicional do processo e, havendo

negativa do Ministério Público, que haja a aplicação de ofício pelo MM. Juízo.

Quanto ao mérito, afirmou que será discutido ao final da instrução. Arrolou como

testemunhas as mesmas pessoas indicadas na denúncia, sem prejuízo de outras eventualmente

indicadas por ocasião da audiência de instrução (fls. 93/94).

O Douto Promotor de Justiça, então, deixou de oferecer ambos os benefícios pretendidos

pela Defesa, como forma de prevalência dos princípios dos direitos humanos e a fim de se evitar

proteção insuficiente dos direitos fundamentais resguardados pela Constituição Federal,

garantindo-se, para tanto, punição adequada de qualquer forma de discriminação ou incitação à

discriminação de raça, em todas as suas formas e manifestações, além de se garantir e de assegurar

a compreensão e o respeito à dignidade da pessoa humana.

Assim, fundamentou sua negativa, com intuito não somente de obedecer e de concretizar

os fundamentos, objetivos e os princípios estabelecidos na Constituição Federal, mas também nos

documentos internacionais de direitos humanos, mormente na Declaração das Nações Unidas

sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, concluindo que, no caso concreto,

são incabíveis propostas de acordo de não persecução penal pleiteada ou de suspensão condicional

do processo à acusada, consoante Orientação Conjunta n. 01/2020 - PGJ/SP e CGMP/SP, publicada

no Diário Oficial de 16/06/2020 (Aviso de 10/06/2020, nº 206/2020 – PGJ).

Diante disso, manifestou-se pelo recebimento da exordial e designação de audiência de

instrução, debates e julgamento (fls. 98/99 e 100/101).

O MM. Juiz, então, apesar dos argumentos lançados, sustentou que, em seu bojo, a

Constituição Federal não impõe restrições à aplicação de benefícios legais ao tipo específico de

crime tratado nos presentes autos. Pontuou que, mesmo em delito mais grave, como no racismo,

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as restrições trazidas pelo ordenamento são outras, e não alcançam nenhum dos dois benefícios

que foram pleiteados pela defesa. Isso considerado, determinou tornassem os autos ao Ministério

Público, para que apresentasse proposta nos termos do art. 28-A do CPP ou, ao menos, nos termos

do art. 89 da Lei n 9099/95, dada a taxatividade de suas condições de cabimento (fls. 102).

O Ilustre Representante Ministerial, por sua vez, reiterou a manifestação anterior e deixou

de oferecer proposta nos termos do art. 28-A do CPP ou do art. 89 da Lei n. 9.099/95. Acrescentou

que ambos os institutos (acordo de não persecução penal e suspensão do processo) não encerram

direito subjetivo do acusado, mas prerrogativa institucional do Ministério Público, invocando, nesse

sentido, o Enunciado 21 – PGJ/CGMP. Diante disso, insistiu no normal prosseguimento do feito,

nada impedindo ao d. Juízo, por aplicação analógica do art. 28 do CPP, e a acusada, valendo-se do

disposto no art. 28-A, §14, do CPP, deliberarem pela remessa dos autos ao Exmo. Procurador-Geral

de Justiça (fls. 105/107).

O Digníssimo Magistrado, então, destacou que o sistema processual pátrio é informado

pelo princípio acusatório, motivo pelo qual entende que o art. 28 do CPP, em sua redação vigente,

não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, de modo que não cabe ao MM. Juízo

encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça quando discorda de posicionamento adotado

pelo promotor de justiça natural, observando que o titular exclusivo da ação penal é o Ministério

Público. E ainda que assim não fosse, no caso específico, de nada adiantaria a remessa,

considerando que o entendimento jurídico do Procurador-Geral de Justiça quanto ao tema já está

contido nos autos. Pelas mesmas razões, entende que não cabe ao MM. Juízo aplicar, de ofício, as

disposições do art. 89 da Lei n. 9.099/95. Diante disso, considerando a recusa ministerial em

apresentar à ré qualquer benefício, por entendê-los incabíveis, resta ao MM. Juízo dar

prosseguimento à marcha processual, dando ciência da decisão às partes (fls. 108/109).

A Defensoria Pública, contudo, requereu a reconsideração da decisão. Argumentou que o

Ministério Público se recusou a propor os benefícios solicitados pela defesa, com fundamento da

Orientação Conjunta nº 01/2020 – PGJ/ CGMP/SP, mas pugnou pela a reanálise da recusa, com

fundamento no § 14 do art. 28-A d o CPP, cuja eficácia não foi suspensa por liminar do STF.

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Sustentou que a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de

Discriminação Racial (ONU), a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial

e formas correlatas de intolerância, a Constituição Federal (art. 4º, incisos II e VIII e art. 5º, inciso

XLII ) e a legislação ordinária (Lei 7.716/89 e art. 140, § 3º, do Código Penal) não estabelecem a

obrigatoriedade de prisão (ainda que em regime aberto) como forma de reação estatal às condutas

racismo e injúria racial, tampouco vedam a utilização de instrumentos auto compositivos de

resolução de conflitos.

Defendeu que esse conjunto legislativo procura identificar o bem jurídico e as formas

possíveis de sua violação, recomendando uma série de medidas ao Estado signatário dos tratados.

A Constituição Federal estabelece que o crime será inafiançável, imprescritível e sujeito à reclusão

(ainda que em regime aberto). Todavia, a forma como o Estado irá processar e reagir a ofensas

raciais, em razão dos imperativos de legalidade, impessoalidade, culpabilidade, individualização e

de motivação das decisões, deve seguir o que estabelece a legislação nacional para toda e qualquer

infração penal, seja o bem jurídico e suas formas de violação previstos ou não em tratados

internacionais. Concluiu, assim, que varia de caso para caso os elementos concretos de cada

infração, portanto, concernente à matéria fática.

Destacou que a Constituição Federal estabelece o dever de fundamentação das decisões

judiciais, sendo o mesmo estabelecido aos Membros do Ministério Público em geral, pela Lei

Orgânica Nacional do Ministério Público e, no caso do Ministério Público de São Paulo, pela Lei

Complementar nº 734/93. Nessa esteira, sustentou que é insuficiente invocar diplomas normativos

internacionais, que sequer sustentam o fundamento invocado, sem argumentar em que medida as

circunstâncias de lesividade do caso concreto são relevantes a ponto de inadmitirem determinada

providência prevista como regra geral pela legislação.

Argumentou que isso está pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao

vedar que legislação estabeleça, a priori, o regime inicial fechado ou a prisão preventiva

obrigatória. Invocou os enunciados das Súmulas 718 e 719 do STF, para dizer que as consequências

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jurídicas a serem aplicadas a cada caso não podem derivar de simples análise abstrata de cada tipo

legal.

Diante disso, concluiu que dizer que o crime é de injúria racial e que, apenas por isso, as

medidas compositivas são insuficientes ao imperativo de tutela e incompatíveis com infração penal

dessa natureza viola o dever de fundamentação concreta exigido pela legislação, além do

regramento geral a todo e qualquer tipo penal, porque não se fundamenta em circunstâncias

concretas do caso, individualizando-o como de especial gravidade.

Pontuou que o caso concreto não envolveu difamação, calúnia ou violência física, ou seja,

maior lesividade, tratando-se exclusivamente de injúria envolvendo cliente e atendente de uma

farmácia, possuindo características que admitem acordo de não persecução penal e sursis

processual.

Sustentou que a remessa pretendida não decorre exclusivamente do § 14 do art. 28-A do

CPP, porque o sistema acusatório implica no controle da fundamentação das condutas que negam a

o acusado o exercício de direitos, devendo ser realizado pelo próprio órgão superior do Ministério

Público, a pedido da defesa, e não por iniciativa do juiz. Todavia, defendeu que, em caso de recusa,

o magistrado é garantidor da máxima eficácia dos direitos fundamentais, dentre eles o controle da

fundamentação concreta pela qual o Ministério Público não oferece os benefícios.

O § 5º do art. 28-A determina que o juiz deve controlar a abusividade das condições

dispostas em acordo de não persecução penal, recusando-se a homologá-lo. Trata -se de função

republicana de controle, de modo que, da mesma forma, nada impede o controle de omissão

considerada infundada.

Diante disso, requereu a reconsideração da decisão, para encaminhar os autos ao

Procurador-Geral de Justiça, com fundamento no § 14 do art. 28-A do CPP e, em caso de recusa do

órgão de acusação, com o retorno dos autos, pugnou pela aplicação de ofício, como forma de

controle da legalidade do exercício de poder-dever do órgão de acusação (fls. 116/121).

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O MM. Juiz manteve sua decisão anterior, por seus próprios fundamentos, mas constatou

equívoco ao analisar a suspensão da eficácia da norma legal, que não é aplicável ao ponto debatido

nos autos, de modo que, considerando o pedido da Defesa, com base no art. 28-A, § 14, do CPP,

reconsiderou parcialmente a decisão, para remeter os autos a esta Chefia Institucional, para revisão

da recusa em propor acordo de não persecução penal à ré (fls. 124).

É a síntese do necessário.

Com razão o Douto Promotor de Justiça, com a máxima vênia da Douta Defesa.

É preciso sublinhar, de início, na esteira do Enunciado n.º 21, PGJ – CGMP – Lei n.º

13.964/19, que “a proposta de acordo de não persecução penal tem natureza de instrumento de

política criminal e sua avaliação é discricionária do Ministério Público no tocante à necessidade e

suficiência para a reprovação e prevenção do crime. Trata-se de prerrogativa institucional do

Ministério Público e não direito subjetivo do investigado” (grifo nosso).

De acordo com o art. 28-A, caput, do Código de Processo Penal, com a redação que lhe deu

a Lei n.º 13.964/2019: “Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e

circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima

inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal,

desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes

condições ajustadas cumulativa e alternativamente”.

O trecho em destaque evidencia o primeiro pressuposto jurídico para o cabimento do

instituto, qual seja, que não seja caso de arquivamento ou, a contrario sensu, que exista nos autos

da investigação penal (em sentido lato) prova da materialidade e indícios de autoria ou

participação.

O segundo pressuposto é a existência de confissão formal e circunstanciada da prática da

infração penal pelo agente.

Em seguida, o dispositivo enumera os requisitos materiais objetivos do instituto, a saber:

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a) que não se trate de infração praticada com violência ou grave ameaça;

b) que a pena mínima cominada no tipo seja inferior a 4 (quatro) anos (consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis);

c) que não seja cabível a transação penal, nos termos da lei;

d) que não seja caso de crime praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

Há, ainda, requisitos materiais subjetivos, consistentes em:

a) que o investigado não seja reincidente;

b) inexistência de elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

c) que o investigado não tenha sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo;

d) que a celebração do acordo atenda ao que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

Há que se observar, por fim, como requisito formal ou procedimental, a formalização por

escrito do acordo, o qual deverá ser firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e

por seu defensor.

Cumpridas essas exigências, abre-se a possibilidade de ajustar, com o agente, a barganha

processual, mediante as seguintes condições, a serem ajustadas de maneira alternativa ou

cumulativa:

(i) reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo;

(ii) renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

(iii) prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução penal;

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(iv) pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo juízo da execução penal, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito;

(v) cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

Atendidos os requisitos legais e depois de celebrado, por escrito, o acordo, será ele

submetido à homologação judicial, a fim de que, com a chancela do Poder Judiciário, seja ele

devolvido ao Ministério Público e, na sequência, encaminhado ao juízo da execução penal (art. 28-

A, §6.º).

No caso de inadimplemento, o qual deverá ser verificado no âmbito do juízo da execução,

assegurada a ampla defesa, o acordo será rescindido e encaminhado ao juízo de origem, para que o

membro do Ministério Público ofereça denúncia ou realize novas diligências, se necessário.

De acordo com a lei, o descumprimento poderá ser utilizado como justificativa para o não

oferecimento de suspensão condicional do processo (art. 28-A, §11).

Cumprido integralmente, será declarada a extinção da punibilidade (art. 28-A, §13).

Conforme dispõe o art. 28-A, §14, do Código de Processo Penal, aplicado pelo MM. Juiz, no

caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo, poderá o investigado requerer

o envio do caso ao órgão superior de revisão, que é, no caso do Ministério Público estadual, o

Procurador-Geral de Justiça, a fim de sejam adotadas as seguintes providências:

(i) oferecer denúncia ou designar outro membro para oferecê-la;

(ii) complementar as investigações ou designar outro membro para complementá-la;

(iii) elaborar a proposta de acordo de não persecução, para apreciação do investigado.

Pois bem.

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Inicialmente, cumpre destacar que não houve confissão formal e circunstanciada dos

fatos, pressuposto para o acordo de não persecução penal.

A acusada, ouvida em solo policial, negou ter esmurrado o balcão e chamado V. de “preta

miserável, você é ruim” (fls. 33). De igual modo, em juízo, uma vez que estava representada pela

Defensoria Pública, portanto, dotada de defesa técnica adequada, e em momento algum ofereceu

confissão detalhada dos fatos.

Ausente, portanto, pressuposto objetivo indispensável ao cabimento do aventado acordo.

Inexistindo tal formalidade, não há, para o Ministério Público, dever de intimar a acusada, a

fim de oportunizar a ela que confesse o fato.

Não bastasse isso, há outros impedimentos à acenada avença processual, conforme a

seguir aduzido.

Como bem observado pelo Douto Promotor de Justiça, é certo que a acusada incorreu em

delito de injúria qualificada pelo emprego de elemento atinente à raça, ao dirigir-se a V. dizendo:

“você é uma miserável, além de preta e ruim”. As ofensas proferidas foram confirmadas por

testemunha presencial (fls. 42) e pelas declarações da vítima (fls. 07/08).

Esta Procuradoria-Geral de Justiça e a Corregedoria-Geral do Ministério Público

assentaram, na Orientação Conjunta 01/20201, o entendimento de que, em crimes de racismo (Lei

n. 7.716/89) e injúria qualificada pelo emprego de elemento atinente à raça (CP, art. 140, § 3º), os

1 Aviso nº 0206/2020-PGJ, de 10 de junho de 2020 (DOE, Poder Executivo, Seção I, 27-06-2020).

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA, a pedido do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais – CAOCRIM, avisa que, a Procuradoria-Geral de Justiça e a Corregedoria-Geral do Ministério Público do Estado de São Paulo, publicaram Orientação Conjunta nº 1/2020 – PGJ, no sentido de que os órgãos de execução do Ministério Público do Estado de São Paulo devem evitar qualquer instrumento de consenso (transação penal, acordo de não persecução penal e suspensão condicional do processo) nos procedimentos investigatórios e processos criminais envolvendo crimes de racismo, compreendidos aqueles tipificados na Lei 7.716/89 e no art. 140, §3º, do Código Penal, pois desproporcional e incompatível com infração penal dessa natureza, violadora de valores sociais. Conforme arquivo disponibilizado na página do CAO Criminal, no link “Notícias”. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/DO_Estado/2020/DO_27-06-2020.html - acesso em 07 de agosto de 2020.

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membros do Ministério Público devem evitar propor transação penal, suspensão condicional do

processo ou acordo de não persecução penal, por se tratar de delitos que atentam contra valores

sociais fundamentais ao Estado Democrático de Direito.

Algumas considerações acerca do tratamento dispensado ao crime de racismo são

pertinentes, em face da matéria objeto destes autos, consoante exposto a seguir.

Nos termos do art. 5º, inciso XLII, da Constituição Federal de 1988, a prática do racismo

constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

O mandamento constitucional, que impõe tratamento mais severo ao crime de racismo,

tem por finalidade realizar um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,

elencado no art. 3º, IV, da Constituição Federal:

Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E um dos fundamentos da República, que antecede ao objetivo de eliminação dos preceitos

de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação se encontra no art. 1º, III, da

Constituição Federal de 1988, que consagra a dignidade da pessoa humana.

E o Brasil é signatário de vários tratados internacionais, nos quais se comprometeu a

combater o racismo.

Assim, o Estado brasileiro, nesse momento atual de nossa história, não pode transigir com

um crime de ódio como o racismo.

E o acordo de não persecução penal, em crimes de ódio como o racismo, passaria essa ideia

de que há uma certa tolerância, complacência com crime que desperta tanta repulsa.

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Por fim, cumpre lembrar que nossa Constituição Federal, ao conferir a cláusula de

imprescritibilidade ao crime de racismo, emitiu mandamento claro no sentido de que esse tipo de

delito há de ser tratado com maior rigor.

Nesse sentido, adequado o julgado da Suprema Corte, cuja ementa é abaixo transcrita, da

lavra do Excelentíssimo Ministro MOREIRA ALVES:

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam

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repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta.

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Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada.

(HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00024 EMENT VOL-02144-03 PP-00524) (destacamos).

O princípio constitucional da proibição da proteção deficiente de bens jurídicos assume

transcendental importância no caso concreto.

Nesse sentido, mais uma vez manifestou-se a Suprema Corte brasileira, no julgamento do

HC 104.410-RS, Relator o Ministro Gilmar Mendes, na Segunda Turma, realizado no dia 06 de março

de 2012 e publicado no dia 27 de março de 2012, no sentido de que:

“A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes,

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determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente...”

O direito à igualdade entre os povos configura um direito fundamental. Todas as pessoas

são iguais perante a lei e têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação e contra

qualquer incitamento à discriminação.

A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais, entre outros,

pelos princípios da prevalência dos direitos humanos e do repúdio ao terrorismo e ao racismo (CF,

art. 4º, III e VII).

A Carta das Nações Unidas, além disso, baseia-se em princípios de dignidade e igualdade

inerentes a todos os seres humanos, e todos os Estados-membros, entre eles o Brasil,

comprometem-se a tomar medidas separadas e conjuntas, em cooperação com a Organização das

Nações Unidas (ONU), para a consecução de um dos propósitos das Nações Unidas, que é promover

e encorajar o respeito universal e a observância dos direitos humanos e das liberdade

fundamentais para todos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião.

As Nações Unidas têm condenado o colonialismo e todas as práticas de segregação e

discriminação a ele associadas, em qualquer forma e onde quer que existam, e a Declaração sobre

a Outorga da Independência aos Países e Povos Coloniais, de 14 de dezembro de 1960 (Resolução

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1514 – XV da Assembleia Geral), afirmou e proclamou solenemente a necessidade de levá-la a um

fim rápido e incondicional.

A Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação

Racial, de 20 de dezembro de 1963 (Resolução 1904 – XVIII da Assembleia Geral), afirma

solenemente a necessidade de eliminar rapidamente a discriminação racial no mundo, em todas

as suas formas e manifestações, e de assegurar a compreensão e o respeito à dignidade da

pessoa humana.

A doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa,

moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa e não existe nenhuma justificação para a

discriminação racial, em teoria ou prática, em nenhum lugar do mundo.

A discriminação entre pessoas por motivos de raça, cor ou origem étnica constitui

obstáculo às relações amistosas e pacíficas entre as nações e é capaz de perturbar a paz e a

segurança entre os povos e a harmonia de pessoas, vivendo lado a lado, até mesmo dentro dos

limites territoriais de um mesmo Estado.

A existência de barreiras raciais repugna os ideais de qualquer sociedade humana que se

pretenda justa e igualitária.

Vale lembrar que nossos Tribunais Superiores têm conferido tratamento mais rigoroso até

mesmo ao crime de injúria qualificada pelo preconceito racial (CP, art. 140, § 3º), não admitindo em

tais situações o perdão judicial.

Confira-se, nesse sentido, do Colendo Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.484.025 - SP (2019/0112202-4) RELATOR: MINISTRO JOEL ILAN PACIORNIK

“...a pena-base no mínimo legal, vale dizer, um (1) ano de reclusão, com multa correspondente a dez (10) diárias, unidade no piso.

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Sem notícia de causas modificadoras, a reprimenda acabou concretizada naquele patamar, estipulado o regime aberto diante da corporal, na hipótese substituída por restritiva de direitos consistente em prestação de serviços à comunidade, solução não impugnada pelas partes.

Da análise dos trechos acima transcritos, verifica-se que as instâncias ordinárias, com fundamento no arcabouço fático-probatório dos autos, reconheceu comprovada a autoria e a materialidade do crime previsto no art. 140, § 3º, do Código Penal (injúria racial), sobretudo considerando que as provas existentes são suficientes para embasar a condenação.

Desse modo, para rever a conclusão das instâncias ordinárias com o fim de reconhecer a ocorrência de retorsão imediata, consistente em outra injúria (figura prevista no art. 140, § 1º, inciso II, do Código Penal) e, assim, conceder o perdão judicial e extinguir a punibilidade com fundamento no art. 107, inciso IX, do CP, bem como para desclassificar a conduta prevista no art. 140, § 3º (injúria racial) para injúria simples, seria imprescindível o reexame dos elementos fático-probatórios dos autos, providência vedada em sede de recurso especial. Nesse sentido:

[...] 3. Agravo regimental não provido (AgRg no AREsp 354.175/SC, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, DJe 25/9/2013).

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.605.766 - DF (2019/0315306-2) RELATOR: MINISTRO PRESIDENTE DO STJ AGRAVANTE: MARCOS DA SILVA VIANA ADVOGADOS: RAFAEL ALMEIDA PEREIRA (ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA) - DF045366 NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA DO UNICEUB AGRAVADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS DECISÃO

Trata-se de agravo apresentado por MARCOS DA SILVA VIANA contra a decisão que não admitiu seu recurso especial.

O apelo nobre, fundamentado no art. 105, inciso III, alínea "a", da CF/88, visa reformar acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS, assim resumido:

APELAÇÃO CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL. RETORSÃO IMEDIATA NÃO CARACTERIZADA. RECURSO DESPROVIDO.

1. Inviável aplicar-se o perdão judicial previsto para o crime de injúria (art. 140, § 1°, do CP), se não ficou demonstrado que a

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vítima, de forma reprovável, provocou diretamente as ofensas ou deu causa à retorsão imediata.

Brasília, 13 de dezembro de 2019.

MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA

Presidente (Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, 3/2/2020).

Por tudo isso, conclui-se que o acordo de não persecução penal, pela prática de conduta

prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, injúria qualificada que envolva elementos de ordem

racial, de origem ou etnia, não é suficiente e necessário à repressão e prevenção do fato.

Além dos fundamentos acima alinhavados, cumpre lembrar, conforme já mencionado, que

esta Procuradoria-Geral de Justiça firmou a Orientação Conjunta n. 01/2020, com a Douta

Corregedoria-Geral do Ministério Público, recomendando a não formulação de transação penal,

suspensão condicional do processo ou acordo de não persecução penal em casos que envolvam

injúria racial (CP, art. 140, § 3º), delito que, à semelhança do racismo (Lei n. 7.716/89), atenta

contra valores sociais.

Diante do exposto, sempre com a renovada vênia da Ilustrada Defensoria Pública, insiste-

se na motivada recusa de acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A, do Código de

Processo Penal, e da Resolução n.º 1.187/2020 – PGJ – CGMP, restituindo-se os autos à Egrégia

Vara de origem, para o regular prosseguimento da ação penal.

São Paulo, 7 de agosto de 2020.

Mário Luiz Sarrubbo

Procurador-Geral de Justiça