CapitaesAreia

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SISTEMA ANGLO DE ENSINO 150 ANGLO VESTIBULARES APRESENTAÇÃO Jorge Amado iniciou a redação de seu sexto romance, Capitães da Areia, na cidade de Estância, in- terior do Estado de Sergipe, em março de 1937, para terminá-la em pleno Oceano Pacífico, a caminho do México, no mês de junho do mesmo ano. Os exemplares da primeira edição da obra, disponíveis no mercado e no estoque da Editora José Olympio, que a lançara, foram apreendidos pouco após a instalação do Estado Novo (1937-1945). Em novembro, oitocentos exemplares do livro foram incinera- dos publicamente em Salvador, por ordem do comandante da 6ª - Região Militar. A ditadura Vargas, enquanto durou, pode ter impedido a circulação desse romance, mas, a partir de sua segunda edição (1944), ele vem mostrando tal vitalidade, que já ultrapassou a marca de 120 edi- ções em língua portuguesa, tendo sido traduzida para o alemão (Herren des Strandes, 1954), espanhol (Los capitanes de la arena, 1956), francês (Capitaines des sables, 1952), inglês (Captains of the sands, 1988), italiano (Banditi del porto, 1952), russo (Piestchânie capitâni, 1976) e tcheco (Kapitâni z písku, 1951). Tra- ta-se da obra mais lida do autor, também difundida por meio de adaptações para teatro, cinema e his- tória em quadrinhos. JORGE AMADO (Ferradas, 1912- 2001, Salvador) Filho de fazendeiro produtor de cacau, Jorge Amado nasce na zona rural do município de Itabuna, sul da Bahia, em 1912. Passa a infância em Ilhéus até mudar-se para Salvador, onde realiza os estudos secundários. Forma-se advogado pela Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935, ano de publicação de seu quarto romance: Jubiabá. Perseguido pelo Estado Novo getulista, devido a sua militância política, é obrigado a viver no exílio entre 1941 e 1944. De volta ao Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de malandro, os rostos chupados de fome, pedem esmola. Praticam também pequenos furtos. Há quarenta anos escrevi um romance sobre eles. Os que conheci naquela época são hoje homens maduros, malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões fichados na polícia, mas os Capitães da Areia continuam a existir, enchendo as ruas, dormindo ao léu. Não um bando surgido ao acaso, coisa passageira na vida da cidade. Não, são um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas. Os jornais noticiam constantes malfeitos desses meninos, que têm como único corretivo as surras na polícia, os maus tratos sucessivos. Parecem pequenos ratos agressivos, sem medo de coisa alguma, de choro fácil e falso, de inteligência ativíssima, soltos de língua, conhecendo todas as misérias do mundo. AMADO, Jorge. Guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador da Bahia. Rio de Janeiro: Som Livre, 1997, faixa 5, disco 2. CAPITÃES DA AREIA Jorge Amado ANALISE DA OBRA JOSÉ DE PAULA RAMOS JR. ´

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resenha do livro

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SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 150 • ANGLO VESTIBULARES

AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOOJorge Amado iniciou a redação de seu sexto romance, Capitães da Areia, na cidade de Estância, in-

terior do Estado de Sergipe, em março de 1937, para terminá-la em pleno Oceano Pacífico, a caminhodo México, no mês de junho do mesmo ano. Os exemplares da primeira edição da obra, disponíveisno mercado e no estoque da Editora José Olympio, que a lançara, foram apreendidos pouco após ainstalação do Estado Novo (1937-1945). Em novembro, oitocentos exemplares do livro foram incinera-dos publicamente em Salvador, por ordem do comandante da 6ª- Região Militar.

A ditadura Vargas, enquanto durou, pode ter impedido a circulação desse romance, mas, a partirde sua segunda edição (1944), ele vem mostrando tal vitalidade, que já ultrapassou a marca de 120 edi-ções em língua portuguesa, tendo sido traduzida para o alemão (Herren des Strandes, 1954), espanhol(Los capitanes de la arena, 1956), francês (Capitaines des sables, 1952), inglês (Captains of the sands, 1988),italiano (Banditi del porto, 1952), russo (Piestchânie capitâni, 1976) e tcheco (Kapitâni z písku, 1951). Tra-ta-se da obra mais lida do autor, também difundida por meio de adaptações para teatro, cinema e his-tória em quadrinhos.

JJOORRGGEE AAMMAADDOO

((FFeerrrraaddaass,, 11991122-- 22000011,, SSaallvvaaddoorr))

Filho de fazendeiro produtor de cacau, Jorge Amado nasce nazona rural do município de Itabuna, sul da Bahia, em 1912. Passa ainfância em Ilhéus até mudar-se para Salvador, onde realiza osestudos secundários. Forma-se advogado pela Faculdade Nacionalde Direito, no Rio de Janeiro, em 1935, ano de publicação de seuquarto romance: Jubiabá.

Perseguido pelo Estado Novo getulista, devido a sua militânciapolítica, é obrigado a viver no exílio entre 1941 e 1944. De volta ao

Os molecotes atrevidos, o olhar vivo, o gesto rápido, a gíria de malandro, os rostos chupados de fome, pedemesmola. Praticam também pequenos furtos. Há quarenta anos escrevi um romance sobre eles. Os que conheci naquelaépoca são hoje homens maduros, malandros do cais, com cachaça e violão, operários de fábrica, ladrões fichados napolícia, mas os Capitães da Areia continuam a existir, enchendo as ruas, dormindo ao léu. Não um bando surgido aoacaso, coisa passageira na vida da cidade. Não, são um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre asclasses pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas. Os jornais noticiam constantes malfeitosdesses meninos, que têm como único corretivo as surras na polícia, os maus tratos sucessivos. Parecem pequenos ratosagressivos, sem medo de coisa alguma, de choro fácil e falso, de inteligência ativíssima, soltos de língua, conhecendotodas as misérias do mundo.

AMADO, Jorge. Guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador da Bahia.Rio de Janeiro: Som Livre, 1997, faixa 5, disco 2.

CCAAPPIITTÃÃEESS DDAA AARREEIIAAJorge Amado

ANALISE DA OBRA JOSÉ DE PAULA RAMOS JR.´

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Brasil, elege-se deputado constituinte, em 1945,pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Deve-seao seu trabalho parlamentar a garantia constitu-cional à liberdade religiosa que vigora no país. Doisanos após, com a cassação de registro e a declara-ção de ilegalidade de seu partido, Jorge Amadosegue para novo período de exílio, que se estendeaté o ano de 1952. Outra vez em sua pátria, o escritordeixa a militância política, em 1955, mas sem rom-per com suas convicções ou com o PCB, para dedi-car-se integralmente à literatura.

Jorge Amado se consagra como o escritor brasi-leiro de maior sucesso nacional e internacional no sé-culo XX, com obras publicadas em inúmeros países etraduzidas para cerca de 50 idiomas. A eleição para aAcademia Brasileira de Letras, em 1961, ratifica o re-conhecimento popular de que já gozava o escritor des-de seus primeiros romances, lançados na década de1930. Esse prestígio se expandiu ainda mais com asinúmeras adaptações de sua produção literária parateatro, cinema e televisão. Falece em Salvador, em 2001,poucos dias antes de completar 89 anos de idade, oamado Jorge do povo brasileiro.

RROOMMAANNCCEESS DDOO AAUUTTOORR• O país do Carnaval (1931)

• Cacau (1933)

• Suor (1934)

• Jubiabá (1935)

• Mar morto (1936)

• Capitães da Areia (1937)

Fac-símile da capa da 1a edição

• Terras do sem-fim (1943)• São Jorge dos Ilhéus (1944)• Seara vermelha (1946) • Os subterrâneos da liberdade: Os ásperos tempos;

Agonia da noite; A luz no túnel (1954)• Gabriela, cravo e canela (1958)• O capitão-de-longo-curso (1961) • A morte e a morte de Quincas Berro D’água (1961)• Os pastores da noite (1964)• O compadre de Ogum (1964)• Dona Flor e seus dois maridos (1966)• Tenda dos Milagres (1969)• Tereza Batista cansada de guerra (1972)• O gato malhado e a andorinha Sinhá (1976)• Tieta do Agreste (1977)• Farda, fardão, camisola de dormir (1979)• Tocaia Grande (1984)• O sumiço da santa (1988)• A descoberta da América pelos turcos (1992)• O milagre dos pássaros (1997)

CCAAPPIITTÃÃEESS DDAA AARREEIIAA ((11993377))

EElleemmeennttooss ddoo EEnnrreeddooO romance se divide em quatro partes, intitula-

das: “Cartas à redação”, “Sob a lua, num velho trapi-che abandonado”, “Noite da grande paz, da grandepaz dos teus olhos” e “Canção da velha Bahia, cançãoda liberdade”. A primeira é constituída por uma su-posta reportagem de jornal, seguida da transcrição decinco supostas cartas de leitores que se haveriam ma-nifestado sobre a mencionada reportagem; a segunda

Depoimento de Claude Guméry-Emery(professora de literatura e cultura

brasileira na Universidade Stendhalde Grenoble, França)

Ler Jorge Amado num país estrangeiro é entender pelaliteratura como se formou o Brasil, é tornar presente e pa-tente o que o sociólogo Gilberto Freyre e o historiador SérgioBuarque de Holanda explicaram. É compreender a históriado Brasil além de Salvador e da Bahia.

(...)Nos romances de Jorge Amado, vivenciamos os resulta-

dos da colonização portuguesa (mas não só; também dafrancesa, da inglesa, da holandesa, da espanhola, em outrasterras) e da escravidão; quem lê Seara vermelha compreendeo Movimento dos Sem-Terra; quem lê Os pastores da noiteentende a violência urbana de hoje. Jorge é a articulaçãoentre a herança do passado e a construção do futuro. Contaa epopeia da conquista das terras, denuncia o latifúndio nos“romances da terra”, defende os menores abandonados,reabilita a mulher negra e mestiça nos romances urbanos,explica como se estruturou e hierarquizou a sociedade bra-sileira, mostra como é longo o caminho a ser percorrido.

In: A literatura de Jorge Amado – caderno de leituras. São Paulo:Companhia das Letras, novembro de 2008.

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parte contém onze capítulos; a terceira e a quarta, oitocapítulos cada. Ao todo, são 27 capítulos mais ou me-nos curtos, antecedidos pela hipotética reportagem epelas pseudocartas.

A história se passa, sobretudo, na cidade de Sal-vador, capital da Bahia, numa época imprecisa, masque se pode situar, aproximadamente, entre o final dadécada de 1920 e meados do decênio seguinte.

A narrativa se inicia com a descrição de um velhotrapiche abandonado. O casarão em ruínas, que ser-vira outrora de armazém e atracadouro de embarca-ções, tornara-se moradia e esconderijo para um gru-po de crianças e adolescentes abandonados que, parasobreviver, dedicavam-se a furtos e assaltos.

OOss LLííddeerreessMais de cem meninos compõem o bando dos

chamados “Capitães da Areia”, dos quais uns quaren-ta dormem regularmente no trapiche. Seu líder é Pe-dro Bala, rapaz entre quatorze e quinze anos de ida-de, órfão desde os cinco, cujo pai, estivador conhecidopelo apelido de “Loiro”, fora fuzilado pela polícia nasdocas, quando discursava aos companheiros em greve.

Pedro Bala conquista a chefia após vencer Raimun-do, o antigo líder, numa célebre briga. Numa luta an-terior, Raimundo cortara o rosto de Pedro Bala comuma navalhada, de que resultara grande cicatriz. Ven-cido, Raimundo abandona o grupo. Pedro Bala é acei-to como chefe por tácito e unânime reconhecimentode suas qualidades: a inteligência, a lealdade, o sensode justiça, a habilidade no trato com os outros. Confor-me assinala o narrador, Pedro Bala “trazia nos olhos ena voz a autoridade de chefe”1. Sob a nova liderança,o grupo se organiza melhor e ganha fama na cidade.

Pedro Bala comanda as atividades com a ajuda dealguns companheiros mais próximos, reconhecidospelo bando como maiorais. Entre eles, destaca-seJoão Grande, negro de treze anos que se distinguenão pela inteligência, mas pela enorme força, pelabondade natural e pela proteção que devotava aosmenores e mais fracos.

Outro líder é João José, o “Professor”, muito res-peitado pela inteligência. Alfabetizado, lê vorazmenteos livros que furta e coleciona, cujas histórias ele nar-ra à noite aos companheiros. O Professor possui, tam-bém, grande e espontâneo talento para o desenho,com que costumava ganhar algum dinheiro, retratan-do os transeuntes a giz nas calçadas da cidade. “Pe-dro Bala nada resolvia sem o consultar e várias vezes

foi a imaginação do Professor que criou os melhoresplanos de roubo” (p. 32).

É importante o papel de Sem-Pernas, garoto coxoque se vale da deficiência física e da habilidade emfingir-se bom menino para ganhar a simpatia das fa-mílias e ser acolhido em suas casas, com a finalidadede observar os hábitos dos moradores, verificar ondese guardavam os objetos de valor e indicar a melhormaneira de roubá-los. Apesar de respeitado, poucosgostavam dele no grupo. Tinha fama de cruel e de mal-vado, costumava ridicularizar a todos, era dos maisbriguentos e nutria um grande ódio contra o mundo,sobretudo após ter sido preso e espancado pela polí-cia. As humilhações sofridas na delegacia tornaram-seum pesadelo que o atormentava, fazia com que ti-vesse medo de dormir e o deixava cada vez mais ran-coroso, especialmente contra os policiais e os ricosconsiderados culpados pelas misérias que o angustia-vam. No fundo, sentia enorme carência de afeto, oque alimentava seu sentimento de ódio e desejo devingança.

Pirulito, Gato, Boa-Vida e Volta Seca completam acúpula dos Capitães da Areia. O primeiro se distinguepelo sentimento religioso e pela vocação para o sacer-dócio; o segundo e o terceiro, pela propensão à vidade malandro, adversa ao trabalho regular. Gato, o“elegante” do bando, antes de completar quatorzeanos, torna-se amante da bela prostituta Dalva e de-senvolve a aptidão para trapacear em jogos de bara-lho; Boa-Vida revela talento para sambista, arruaceiroe vagabundo. Volta Seca, por sua vez, é um meninosertanejo, afilhado do cangaceiro Lampião, que aspi-ra a voltar para o sertão e incorporar-se ao bando deseu padrinho, por quem nutre imensa admiração.

AAdduullttooss AAmmiiggoossA cidade os teme, a polícia os persegue, mas os Ca-

pitães da Areia têm a amizade de alguns adultos, to-dos pobres. Um deles, conhecido como Querido-de-Deus, o mais respeitado mestre de capoeira da Bahia,luta que ensina a Pedro Bala, Gato e João Grande, vi-ve da pesca e demonstra verdadeira simpatia e res-peito pelo bando, confraterniza com os líderes e ma-nifesta solidariedade aos meninos abandonados nosmomentos mais difíceis.

A mãe de santo Don’Aninha tem a amizade dosCapitães da Areia porque, nas palavras do narrador,“são amigos da grande mãe de santo todos os negrose todos os pobres da Bahia” (p. 97). Líder e conse-lheira espiritual, guardiã dos cultos religiosos de ori-gem africana, Don’Aninha “cura doenças, junta aman-tes” e mata “homens ruins” com “seus feitiços”. “Eraalta e magra, um tipo aristocrático de negra (...). Tinhao rosto alegre, se bem bastasse um olhar seu parainspirar profundo respeito” (p. 97). A mãe de santo re-cebe socorro dos Capitães da Areia num importanteepisódio da narrativa, quando seu terreiro é invadido

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1 AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia dasLetras, 2008, p. 29. As citações do romance sempre remetem aessa edição. As próximas serão identificadas pelo respectivonúmero de página entre parênteses.

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pela polícia, que apreende e leva para a delegacia umaimagem sagrada de Ogum.

O padre José Pedro fora operário cinco anos emuma tecelagem e conseguira entrar para o semináriocom a promessa do patrão, feita ao bispo que visitavaa fábrica, de custear os estudos de “alguém que qui-sesse estudar para padre” (p. 73). De seu tear, JoséPedro ouvira a conversa, declarara-se interessado naoferta e, assim, fora admitido no seminário. Embora odiretor da fábrica só honrasse o compromisso nos doisprimeiros anos, o estudante pôde seguir seus estudosaté ordenar-se, trabalhando como bedel no próprioseminário. Ali, fora discriminado pelos colegas, porsua baixa origem social e por seu baixíssimo desempe-nho nos estudos, o que era compensado pelo seu com-portamento exemplar, bem como pela sincera devo-ção e pela legítima vocação para o sacerdócio. Apósordenar-se, enquanto espera a designação para umaparóquia, acerca-se dos Capitães da Areia, com o “gran-de desejo” de “catequizar as crianças abandonadas dacidade, os meninos que, sem pai e sem mãe, viviamdo roubo, em meio a todos os vícios. O padre José Pe-dro queria levar aqueles corações a Deus” (p. 74).Com carinho e bondade, conquista a confiança do ban-do liderado por Pedro Bala, mas, apesar do respeitoobtido, sua ação catequética não prospera muito,exceto pela conversão de Pirulito. Em defesa dos me-nores abandonados, padre José Pedro denuncia à im-prensa os maus tratos sofridos por eles quando pre-sos no reformatório, e é complacente com os víciosdas crianças do bando, que ele protege a despeito daorientação de seus superiores e, às vezes, até mesmoao arrepio da lei. Por isso, sofre a hostilidade das bea-tas que frequentavam a igreja onde oficiava, é critica-do pela imprensa, que divulga uma carta do diretor doreformatório, desmentindo as acusações e difamandoo sacerdote, além de receber ásperas reprimendas deseus superiores eclesiásticos, como a de um cônego queo chamara de comunista.

João de Adão, um dos mais velhos estivadores ematividade no porto de Salvador, líder de sua categoriaprofissional, antigo companheiro de Loiro, pai de Pe-dro Bala, também goza de prestígio junto aos Capitãesda Areia, especialmente de seu maior chefe. Distin-gue-se pela consciência e pela militância política, emque exerce o papel de organizador de greves e mem-bro de uma “organização” clandestina.

Na parte final da narrativa, ganha ainda destaqueum estudante universitário chamado Alberto, ativistapolítico de esquerda, que age em solidariedade aostrabalhadores nas suas lutas. Apresentado por João deAdão a Pedro Bala, Alberto contribui para a transfor-mação do chefe dos Capitães da Areia em líder e or-ganizador do proletariado.

EEppiissóóddiiooss ee PPeerriippéécciiaassO enredo entrelaça ações circunstanciais que se

encerram em si mesmas, sem fazer avançar a narrati-

va, e ações que dinamizam as situações, modificam omodo de agir das personagens e articulam os acon-tecimentos que definem a história central numa rela-ção de causalidade. As ações circunstanciais consti-tuem episódios; as dinâmicas, peripécias.

Os episódios, sobretudo, caracterizam a vida co-letiva dos meninos abandonados ou configuram per-fis individuais das personagens importantes. Servem,ainda, para compor a imagem da cidade dividida en-tre ricos e pobres.

Os onze capítulos da segunda parte do livro –“Sob a lua, num velho trapiche abandonado” – são,sobretudo, episódicos. “O Trapiche”, por exemplo,desenha a miséria e a promiscuidade do ambiente fí-sico e moral em que vive o bando e traça o primeiroretrato de Pedro Bala. “Noite dos Capitães da Areia”,segundo capítulo dessa parte, prossegue com a funçãode apresentar líderes do grupo – João Grande, o Pro-fessor, Pirulito, Sem-Pernas, Boa-Vida, Gato e VoltaSeca –, fixando-lhes os traços de caráter por meio depequenas sínteses biográficas. O capítulo seguinte,“Ponto das Pitangueiras”, destaca a astúcia e a habili-dade dos Capitães da Areia, ao mostrar como algunsde seus líderes conseguem entrar numa casa, substi-tuir um objeto por outro de igual aparência, burlandoa vigilância de um cão e de um homem, e sair sem se-rem sequer percebidos. Na sequência, justapõe-se ocapítulo “As luzes do carrossel”, talvez o melhor exem-plo de acontecimento episódico do livro, uma vez quea ação nele contida apresenta-se como que encapsu-lada, aparentemente autônoma em relação a anterio-res e posteriores. Nem por isso esse capítulo é des-provido de importância, pois introduz o retrato moraldo padre José Pedro, que em passagens anteriores sófora mencionado ligeiramente, e elabora uma alego-ria decisiva para a construção do sentido do romance,como veremos mais adiante, além de agregar ele-mentos para a caracterização psicológica de duaspersonagens de destaque: Volta Seca e Sem-Pernas.

Os demais capítulos da segunda parte do roman-ce apresentam-se, em maior ou menor grau, tambémcomo episódios, com as mesmas funções menciona-das acima. No quinto, “Docas”, Pedro Bala e Boa-Vidavão passear na zona portuária e encontram por acasoo velho estivador João de Adão, líder dos doqueiros.Numa conversa, de que também participa uma velhanegra chamada Luísa, vendedora de laranjas e coca-das, Pedro toma conhecimento de suas origens. Luísaconhecera os pais do rapaz: Raimundo, apelidado deLoiro, fora operário em uma fábrica de cigarros antesde tornar-se doqueiro; a mãe, de família rica, fugirade casa para casar-se com Raimundo, mas morreraquando Pedro tinha cerca de seis meses de vida. Joãode Adão, que fora companheiro do pai de Pedro, res-salta a coragem de Loiro, que morrera na luta “pelodireito da gente. Era um homem e tanto. Valia dez des-tes que a gente encontra por aí.” (p. 86). João de Adão

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garante a Pedro Bala um lugar nas docas, quando ese ele quisesse seguir os passos do pai. Essa conversaprovoca reflexões no líder dos Capitães da Areia, quesão como um vago despertar de consciência políticarevolucionária, mesclada com sentimento de vingan-ça pessoal:

O navio apitava nas manobras de atracação. De to-dos os cantos surgiam estivadores que se iam dirigindopara o grande armazém. Pedro Bala os olhou com cari-nho. Seu pai fora um deles, morrera por defesa deles. Aliiam passando homens brancos, mulatos, negros, muitosnegros. Iam encher os porões de um navio de sacos decacau, fardos de fumo, açúcar, todos os produtos do es-tado que iam para pátrias longínquas, onde outros ho-mens como aqueles, talvez altos e loiros, descarregariamo navio, deixariam vazios os seus porões. Seu pai fora umdeles. Somente agora o sabia. E por eles fizera discursostrepado em um caixão, brigara, recebera uma bala no diaem que a cavalaria enfrentou os grevistas. Talvez ali mes-mo, onde ele sentava, tivesse caído o sangue de seu pai.Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado. Por baixo da-quele asfalto devia estar o sangue que correra do corpode seu pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lu-gar nas docas, entre aqueles homens, o lugar que fora deseu pai. E teria também que carregar fardos... Vida duraaquela, com fardos de sessenta quilos nas costas. Mastambém poderia fazer uma greve assim como seu pai eJoão de Adão, brigar com polícias, morrer pelo direitodeles. Assim vingaria seu pai, ajudaria aqueles homens alutar pelo seu direito (vagamente Pedro Bala sabia o queera isso). Imaginava-se numa greve, lutando. E sorriamos seus olhos como sorriam os seus lábios. (p. 87).

Além desse, há outro episódio que arremata ocapítulo em questão. De volta das docas para otrapiche, na praia quase deserta, Pedro Bala sodomi-za à força uma jovem negra, apesar de ela implorarpara que ele a poupasse. Tal episódio, aparentementedesconexo de tudo, caracteriza a bestialidade dosinstintos sexuais do protagonista e tem a função deservir de contraponto ao futuro comportamento deleem relação a outra jovem, Dora, personagem decisivana terceira parte do romance, como será explicitadoem outro momento deste estudo.

5a edição (1954) de Capitães da Areia.

O capítulo seguinte tem muito de episódico, masse aproxima da peripécia na medida em que determi-na, embora de modo fantástico, acontecimentos vin-douros. Trata-se de “Aventura de Ogum”, capítulo emque a imagem desse orixá é retirada de seu altar nocandomblé de Don’Aninha e levada pela polícia parauma delegacia. A mãe de santo recorre a Pedro Bala,que se faz prender para resgatar e restituir a imagemao seu lugar sagrado. Nesse capítulo, patenteia-se aintolerância e a perseguição religiosa que, na época emque transcorre a história, afligiam os praticantes doscultos religiosos de origem africana no Brasil. Alémdisso, reforça-se a imagem de Pedro Bala como heróisolidário, dotado de rara inteligência, coragem e ha-bilidade.

Seguem-se três capítulos – “Deus sorri como umnegrinho”, “Família” e “Manhã como um quadro” –protagonizados, respectivamente, por Pirulito, Sem-Pernas e Professor. São três episódios que tambémservem de suporte para a configuração da psicologiadessas personagens. No primeiro, Pirulito rouba umaimagem de Menino Jesus exposta em uma loja. O nar-rador expõe as hesitações do menino nos momentosque antecedem o roubo, de modo que o leitor possaacompanhar o fluxo de sentimentos e pensamentos con-traditórios, entre o temor e o amor de Deus, que o le-vam a meditar sobre os exemplos e as idéias de padreJosé Pedro e do estivador João de Adão sobre justiçae culpa:

Sua vida era uma vida desgraçada de menino aban-donado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, defurtos quase diários, de mentiras nas portas das casasricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com osolhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom(mas não tão justo também…) pelos seus pecados e os dosCapitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa.A culpa era da vida...

O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida etudo fazia para remediar a vida deles, pois sabia que era aúnica maneira de fazer com que eles tivessem uma exis-tência limpa. Porém uma tarde em que estava o padreJosé Pedro e estava o João de Adão, o doqueiro disse quea culpa era da sociedade mal organizada, era dos ricos.…Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não pode-riam ser homens de bem. E disse que o padre José Pedronunca poderia fazer nada por eles porque os ricos nãodeixariam. O padre José Pedro naquele dia tinha ficadomuito triste, e quando Pirulito o foi consolar, explicandoque ele não ligasse ao que João de Adão dizia, o padrerespondeu balançando a cabeça magra.

— Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem ra-zão, que isso tudo está errado. Mas Deus é bom e saberádar o remédio... (pp. 111-112)

O capítulo “Família” relata a aventura em queSem-Pernas se infiltra na casa de um casal rico deSalvador, Dona Ester e seu marido, Dr. Raul, umadvogado de grande reputação. Fingindo-se bommenino, Sem-Pernas é acolhido com muito afeto.Tratado como filho, ele também se apega ao casal esofre pelo desgosto que daria quando cumprisse suamissão de espionagem e informação para o roubo.Hesita e, continuando a fingir, prolonga sua per-

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manência na casa até não poder mais. Enfim, decide-se pela lealdade devida ao bando, foge do lar acolhe-dor e volta a viver no trapiche, ainda mais amargura-do do que já era.

“Manhã como um quadro”, por sua vez, relata oepisódio em que o Professor, acompanhado de PedroBala, ganha alguns trocados a desenhar a giz, nascalçadas da Cidade Alta, retratos dos transeuntes. Umdestes, que era poeta, fica impressionado com o ta-lento do menino, puxa conversa com ele e se oferecepara ajudá-lo.

Seguem-se mais dois capítulos, “Alastrim” e “Des-tino”, que encerram a segunda parte do romance. Oprimeiro tem a aparência de outro episódio isolado,que relata as atribulações da cidade em decorrênciade uma epidemia de varíola. Esta se apresenta comose fora castigo do orixá Omolu aos ricos de Salvador.Todavia, quem mais sofre são os pobres e, entre eles,os Capitães da Areia. Nesse capítulo, há uma cenaimportante, carregada de crítica contra a postura daIgreja católica, que seria desfavorável às classes bai-xas. Trata-se do diálogo travado entre um cônego,apresentado como porta-voz das posições oficiais dainstituição, e o padre José Pedro, que é recriminadopor seu comportamento solidário aos pobres e refra-tário às adulações e expectativas dos ricos. No decor-rer da conversa, o cônego se comporta de modo duroe áspero ao dizer:

— Cale-se — a voz do cônego era cheia de autorida-de. — Quem o visse falar diria que é um comunista queestá falando. E não é difícil. No meio dessa gentalha osenhor deve ter aprendido as teorias deles… O senhor éum comunista, um inimigo da Igreja…

O padre o olhou horrorizado. O cônego levantou-se,estendeu a mão para o padre:

— Que Deus seja suficientemente bom para per-doar seus atos e suas palavras. O senhor tem ofendido aDeus e à Igreja. Tem desonrado as vestes sacerdotais queleva. Violou as leis da Igreja e do Estado. Tem agido co-mo um comunista. Por isso nos vemos obrigados a nãolhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu. Vá (ago-ra sua voz voltava a ser doce, mas de uma doçura cheiade resolução, uma doçura que não admitia réplicas), pe-nitencie-se dos seus pecados, dedique-se aos fiéis daigreja em que trabalha e esqueça essas ideias comu-nistas, senão, teremos que tomar medidas mais sérias. Osenhor pensa que Deus aprova o que está fazendo? Lem-bre-se que a sua inteligência é muito pequena, o senhornão pode penetrar nos desígnios de Deus… (p. 155)

O derradeiro e curtíssimo capítulo da segundaparte — “Destino” — limita-se a reproduzir uma con-versa de bar, em que um velho freguês afirmara queo destino era algo imutável, pré-determinado pelocéu, para ser contraditado por João de Adão e porPedro Bala.

DDoorraaA terceira parte do livro, como já se sabe, intitula-

se “Noite da grande paz, da grande paz dos teusolhos” e contém oito capítulos. Neles, uma nova eimportantíssima personagem dinamiza a narrativa e

imprime aos elementos da ação um caráter mais deperipécia do que de episódio. Isso quer dizer que taiscapítulos se articulam, sobretudo, por relações decausalidade.

O primeiro, “Filha de bexiguento”, introduz a per-sonagem mencionada acima. Trata-se da meninaDora, cujos pais, muito pobres, sucumbem na ondade varíola que, enfim, passara, deixando a cidaderetornar à normalidade. Antes de completar quatorzeanos de idade, a menina vê-se órfã com o irmão me-nor, Zé Fuinha, de seis anos, sem ter o que comernem onde morar. Despejadas pelo dono do barracão,que já o alugara a um novo inquilino, as duas criançascaminham descalças até a casa de uma antiga patroada mãe delas, onde esta trabalhara como lavadeira deroupa. Dora se oferece para servir como copeira, masa dona da casa, que outrora a convidara exatamentepara isso, muda de idéia ao saber da causa da mortedos pais da menina. Esta ainda tenta empregar-se emmuitas outras casas, sempre com o mesmo resultado,devido ao medo que os possíveis patrões sentiam davaríola.

Com uma esmola recebida, Dora compra pãesamanhecidos. Ao comê-los com o irmão, dois meninosse aproximam com olhar de fome e ela oferece-lhesos pães que restavam. Dora conta a sua história aosnovos conhecidos. Estes, que eram Zé Grande e Pro-fessor, compadecidos, convidam a menina e seu ir-mão a acompanhá-los ao trapiche, onde poderiamdormir.

Meninas não eram admitidas no bando dos Capi-tães da Areia, que se alvoroçam com a presença deDora e tentam estuprá-la. O bando ataca Zé Grande eProfessor, que a defendiam, quando chega Pedro Ba-la e, após um primeiro momento em que dera razãoao bando, muda de opinião perante os apelos dosdefensores e o comovente pavor evidenciado nosolhos da menina. O líder do bando impõe sua autori-dade e decreta que ninguém molestaria Dora. Estadecide permanecer no trapiche com o irmão e tornar-se membro do bando.

Os dois capítulos seguintes, “Dora, mãe” e “Dora,irmã e noiva”, como os próprios títulos sugerem, rela-tam o processo em que Dora vai conquistando rapi-damente a simpatia de todos os Capitães da Areia,que passam a nutrir por ela sentimentos filiais, oufraternos ou, no caso de Professor e de Pedro Bala, depuro amor. Dora também ama Pedro Bala e, assim, osdois se declaram noivos.

No quarto capítulo dessa parte do romance, inti-tulado “Reformatório”, Pedro Bala e Dora são presospela polícia, em flagrante de roubo numa casa quehaviam invadido, com mais quatro meninos do ban-do. O líder dos Capitães da Areia arma grande confu-são, permitindo a fuga dos companheiros. Dora, po-rém, não consegue escapar. Na delegacia, Pedro Balaé brutalmente espancado e chicoteado para revelar

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onde o bando se escondia, mas nada diz. Dora é con-duzida a um orfanato; o rapaz, para a instituição refe-rida no título. Lá, ele é encarcerado numa cafua.

Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora.Fora atirado dentro da cafua. Era um pequeno quarto,por baixo da escada, onde não se podia estar em pé,porque não havia altura, nem tampouco estar deitado aocomprido, porque não havia comprimento. Ou ficavasentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corponuma posição mais que incômoda. Assim mesmo PedroBala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu primeiropensamento era que a cafua só servia para o homem-co-bra que vira, certa vez, no circo. Era totalmente cerrado oquarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas fres-tas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala,deitado como estava, não podia fazer o menor movimen-to. Por todos os lados as paredes o impediam. Seusmembros doíam, ele tinha uma vontade doida de esticaras pernas. Seu rosto estava cheio de equimoses das pan-cadas na polícia […] (p. 203)

Pedro permanece oito dias na cafua, alimentado sócom uma caneca de água e um prato de feijão ralo co-mo ração diária. Ao sair dali, passa a cortar cana naplantação que havia no reformatório; trabalho obriga-do aos internos, sob a vigilância de bedéis violentos.

Trabalhando no roçado, Pedro vê, para além dacerca, na estrada, a figura de Sem-Pernas, que ronda-va a região desde a prisão do chefe. Este conseguepassar um bilhete ao amigo, pedindo que ele, à noite,escondesse uma corda no canavial. No dia seguinte,Pedro se vale do alvoroço causado por um detento,que atacara um bedel com uma faca, e da simultâneaconfusão provocada pela fuga de outro interno, paralevar a corda ao dormitório e escondê-la debaixo docolchão, sem ser visto. À noite, Pedro Bala foge do re-formatório.

Os próximos quatro capítulos, que encerram aterceira parte do romance, são bem curtos. Em “Orfa-nato”, relata-se de modo sumário que Dora passaraum mês na instituição e ficara muito doente, com umafebre que não cedia. Pedro Bala, com alguns com-panheiros, invade o prédio e resgata a amada, tiran-do-a da enfermaria e levando-a para o trapiche. “Noi-te de grande paz”, curtíssimo, equivale a um quadroem que os Capitães da Areia, em silêncio, contem-plam a agonia serena de Dora, enquanto Pedro Balalhe dá a mão e a mãe de santo Don’Aninha reza paraespantar a febre. Segue-se “Dora, esposa”, em que aenferma revela ao amado que se tornara moça no or-fanato, insistindo para que ele a possuísse. A união doscorpos tem o significado de um casamento in extre-mis. De fato, na manhã seguinte, Dora está morta. Que-rido-de-Deus, Don’Aninha e padre José Pedro jun-tam-se aos Capitães da Areia para velar o corpo, atéque Querido-de-Deus o leva em seu saveiro para se-pultá-lo no mar. Padre José Pedro aceitara esse fune-ral em desacordo com a lei e com a fé católica, apesarde suas convicções religiosas, para que o esconderijodo bando não corresse o risco de ser descoberto pelapolícia. No derradeiro capítulo da terceira parte, “Co-

mo uma estrela de loira cabeleira”, Pedro Bala lança-se ao mar e nada até esgotar a força. Boiando com osolhos voltados para o céu, Pedro vê um cometa delonga cabeleira loira, como a de Dora, riscar e ilumi-nar a noite. Para Pedro Bala, o fenômeno se apresentacomo transfiguração de Dora em cometa, de acordocom certas crenças populares na Bahia. Querido-de-Deus, que voltava após lançar ao mar o cadáver, en-contra Pedro Bala e o leva a terra.

Pedro Bala se joga n’água. Não pode ficar no trapi-che, entre os soluços e as lamentações. Quer acompa-nhar Dora, quer ir com ela, se reunir a ela nas Terras doSem-Fim de lemanjá. Nada para diante sempre. Segue arota do saveiro do Querido-de-Deus. Nada, nada sempre.Vê Dora em sua frente, Dora, sua esposa, os braços es-tendidos para ele. Nada até já não ter forças. Bóia então,os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarelado céu. Que importa morrer quando se vai em busca daamada, quando o amor nos espera?

Que importa tampouco que os astrônomos afirmemque foi um cometa que passou sobre a Bahia naquelanoite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indopara o céu. Fora mais valente que todas as mulheres,mais valente que Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tãovalente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina,se dera ao seu amor. Por isso virou uma estrela no céu.(p. 224-225)

DDeesseennllaacceessA quarta e última parte do romance intitula-se

“Canção da Bahia, canção da liberdade” e compreen-de oito capítulos.

O primeiro, “Vocações”, relata o desligamento dobando de três de seus membros destacados — Pro-fessor, Boa-Vida e Pirulito —, bem como a transferên-cia do padre José Pedro para uma paróquia no sertãoda Bahia, para onde ninguém mais queria ir, commedo dos cangaceiros que aterrorizavam a região.Todavia, padre José Pedro se alegra com a oportuni-dade, embora lamentasse ter que se afastar dos Capi-tães da Areia, que, assim, não teriam quase ninguémque lhes desse um pouco de carinho e devotassealgum sentimento de solidariedade. Consola-se coma idéia de que poderia se esforçar na missão de cha-mar para perto de Deus os cangaceiros, que o padreconsidera “como crianças grandes”. Antes de partir,porém, padre José Pedro consegue que Pirulito sejaadmitido como frade na irmandade dos capuchinhos.O rapaz deixa o trapiche para entregar-se à sua voca-ção religiosa, ensinando catecismo a crianças numaigreja do bairro da Piedade em Salvador.

Boa-Vida torna-seum malandro completo, um daqueles mulatos que amama Bahia acima de tudo, que fazem uma vida perfeita nasruas da cidade. Inimigo da riqueza e do trabalho, amigosdas festas, da música, do corpo das cabrochas. Malan-dro. Armador de fuzuês. Jogador de capoeira navalhista,ladrão quando se fizer preciso. De bom coração, comocanta um abc que Boa-Vida faz acerca de outro malan-dro. Prometendo às cabrochas se regenerar e ir para otrabalho, sendo malandro sempre. Um dos “valentões”da cidade. (p. 235)

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Traumatizado com a morte de Dora, que amaraem segredo, Professor é o primeiro a deixar o bando.Aceita a proteção de um poeta que se impressionaracom o talento do menino para o desenho e conse-guira mandá-lo ao Rio de Janeiro para aprender pin-tura. Na capital do país, acaba por rejeitar o acade-mismo do mestre e passa a “pintar por sua conta qua-dros que, antes de admirar, espantam todo o país” (p.232), pelo conteúdo de crítica social contido em suaarte singular.

O segundo capítulo da última parte em que se di-vide o romance intitula-se “Canção de amor da vitali-na2” e narra uma aventura protagonizada por Sem-Pernas. Trata-se de outro episódio isolado, que nãofaz progredir a ação. O rapaz se faz admitir como em-pregado na casa de uma rica solteirona, no intuito deespioná-la e preparar um novo roubo. Todavia, a mu-lher se aproveita de Sem-Pernas para satisfazer umreprimido desejo sexual. Mas ela não consente a “pos-se completa” e tal proibição deixa o rapaz perturbadoe com um ódio maior ainda “contra o mundo todo”(p. 241).

Segue-se o capítulo “Na rabada de um trem”, emque Gato e Volta Seca desligam-se do bando. O pri-meiro parte para Ilhéus, acompanhado da amante, aprostituta Dalva, atraído pela abundância provenienteda exploração do cacau, que proporcionara a prospe-ridade de bordéis de luxo. Lá ele se torna gigolô e jo-gador. Volta Seca despede-se do bando e segue detrem para o sertão baiano, para tornar-se cangaceirodo bando de seu padrinho Lampião.

O quarto capítulo intitula-se “Como um trapezistade circo” e se refere à morte de Sem-Pernas. Encurra-lado na rua pela polícia, após uma tentativa frustradade roubo, joga-se de um penhasco, para não ser pre-so outra vez e passar pelas mesmas humilhações etorturas que o fizeram odiar o mundo.

Segue-se o capítulo “Notícias de jornal”, em que,como sugere o título, a imprensa baiana, representa-da no romance por um fictício Jornal da Tarde, dá in-formações sobre alguns ex-membros do bando. OProfessor, agora referido pelo nome (João José), ex-põe com sucesso no Rio de Janeiro suas telas de mar-cante conteúdo social. Gato aparece em notícias poli-ciais como vigarista notório da região de Ilhéus, quevendera terras inexistentes a fazendeiros inadverti-dos. Também no noticiário policial, o Jornal da Tardeinforma sobre um “fuzuê tremendo numa festa na Ci-dade de Palha”, armado pelo malandro Boa-Vida, que“abrira a cabeça do dono da casa com uma garrafa decerveja e estava sendo procurado pela polícia” (p.253). Sobre Volta Seca, o periódico publica duas gran-des reportagens: uma, sobre a ação do jovem canga-ceiro “temido em todo o sertão como um dos mais

cruéis do grupo” (p. 254); a outra, uma série de maté-rias a propósito da prisão, julgamento e condenaçãode Volta Seca a trinta anos de prisão.

Os três últimos capítulos são dedicados a PedroBala. Em “Companheiros”, a pedido de João de Adão,Pedro lidera os Capitães da Areia, que auxiliam gre-vistas da empresa de bondes, impedindo a ação defura-greves. João de Adão apresenta Pedro a Alberto,um estudante universitário que militava numa “orga-nização” política revolucionária nacional, a que o ve-lho doqueiro também pertencia. Não se revela o no-me da “organização”, mas depreende-se que seja oPartido Comunista Brasileiro (PCB). Em “Os atabaquesressoam como clarins de guerra”, passada a grevedos bondes, o estudante Alberto passa a frequentar otrapiche, convencendo Pedro Bala a ingressar na“organização” e transformar os Capitães da Areianuma brigada de choque:

Agora [Pedro Bala] comanda uma brigada de cho-que formada pelos Capitães da Areia. O destino delesmudou, tudo agora é diverso. Intervêm em comícios, emgreves, em lutas obreiras. O destino deles é outro. A lutamudou seus destinos. (p. 265)

A “organização” determina que Alberto passe aorientar os Capitães da Areia e que Pedro Bala partapara Aracaju, a fim de organizar o bando dos ÍndiosMaloqueiros, transformando-o também em brigada dechoque. Na despedida, Pedro passa o comando paraBarandão, recomenda a todos que sigam a orientaçãode Alberto e é saudado pelos punhos fechados eerguidos — típica saudação comunista — dos meni-nos do bando.

O último capítulo do livro – “… Uma pátria e umafamília” — arremata a narrativa em três parágrafos,que reproduzimos integralmente:

Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais,dos quais vários não tinham existência legal e se impri-miam em tipografias clandestinas, jornais que circula-vam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eramlidos à luz de fifós3, publicavam sempre notícias sobreum militante proletário, o camarada Pedro Bala, que es-tava perseguido pela polícia de cinco estados como orga-nizador de greves, como dirigente de partidos ilegais,como perigoso inimigo da ordem estabelecida.

No ano em que todas as bocas foram impedidas defalar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, essesjornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pelaliberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se en-contrava preso numa colônia.

E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, nahora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber danotícia. E, apesar de que lá fora era o terror, qualquer da-queles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fu-gitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e umafamília. (p. 270)

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2 No Nordeste do Brasil, o vocábulo “vitalina” é sinônimo de“solteirona”. 3 Fifó (reg. BA): lampião a querosene.

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AANNÁÁLLIISSEE DDAA OOBBRRAA

NNeeoorrrreeaalliissmmoo RReeggiioonnaalliissttaaApós alguns anos de estudo nos Estados Unidos

e na Europa, o jovem Gilberto Freyre volta ao Brasil,em 1923, e dá início a uma intensa militância culturalem Pernambuco, com o objetivo de promover o estu-do do país na perspectiva dos conceitos de tradição eregião.

Convencido de que a divisão política em estadosera artificial e de que o país real era composto por re-giões, Freyre propõe o critério regional como orien-tação para os estudos sociais e culturais interessadosno conhecimento da realidade brasileira. Além disso,o então futuro autor de Casa-grande & senzala (1933)considerava que o Brasil corria o grave perigo dedissolução de sua identidade cultural, por esta se verameaçada pelo avanço da modernização capitalistaem curso, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Pau-lo, que impunha padrões culturais estrangeiros emdesfavor das genuínas tradições brasileiras. Estas,segundo Gilberto Freyre, deveriam ser estudadas emsuas mais variadas manifestações tradicionais, comoa culinária, o folclore, as práticas sociais, os usos e oscostumes regionais, para que fossem conhecidas ereafirmadas, de modo a servir de antídoto à ameaçade descaracterização.

Ilustração de capa da 1a edição deCapitães da Areia

Essa linha de pensamento leva o sociólogo per-nambucano, no campo artístico, a opor-se ao movi-mento modernista, que se expandia nacionalmentedesde seu ruidoso lançamento na Semana de ArteModerna (1922). Para Freyre, o Modernismo se afigu-rava como um movimento paulista e carioca quetranspusera artificialmente as formas estéticas davanguarda européia para o Brasil:

Enquanto isto, os chamados Modernistas do Rio ede São Paulo é para a França, para a Europa, alguns paraos Estados Unidos, como Ronald de Carvalho, que sevoltam como para mundos ideais, dando as costas aoBrasil: ao que no Brasil há de verdade digna de serdescoberta ou redescoberta (...)4

No Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalis-mo, realizado em Recife, em 1926, Gilberto Freyre lan-ça o Manifesto regionalista, que teria desdobramentosculturais importantes, sobretudo com a formação dacorrente ou movimento literário conhecido comoNeorrealismo Regionalista.

A bagaceira, romance de José Américo de Almei-da, lançado em 1928, constitui a obra inaugural dessacorrente, que inclui autores de tendência saudosistaou conservadora, como o próprio José Américo, JoséLins do Rego e Jorge de Lima, mais próximos daspropostas de Gilberto Freyre, mas também escritorescomo Raquel de Queirós, Graciliano Ramos e JorgeAmado, que imprimem ao regionalismo um carátercrítico, ideologicamente associado a ideais revolucio-nários ou, ao menos, reformistas.

Fenômeno de grande prestígio na literatura bra-sileira da década de 1930, o romance neorrealista, co-mo sugere o adjetivo, retoma e atualiza procedimen-tos do romance realista ou naturalista do século XIX,cujos paradigmas são, respectivamente, os de Macha-do de Assis e Aluísio Azevedo. Desse modo, as narra-tivas valorizam a observação e a análise objetiva darealidade, e se esforçam na criação de um forte efeitoartístico de imitação da vida, quer no âmbito das rela-ções sociais, quer no da vida interior das personagens.

O que há de novo nesse realismo dos anos 1930são os temas, os instrumentos de análise e a lingua-gem, todos afinados com a época, cujo espírito nãomais correspondia ao do final do século XIX, que seprolonga até a eclosão do Modernismo, mas a umanova configuração histórica, conceitual e estética.

O romance dos anos 1930 propende à valorizaçãode temas associados à decadência da velha aristocraciaaçucareira do Nordeste, ao cangaço e à continuidadeda miséria social provocada pela seca e pela estruturafundiária, arcaica e autoritária, no contexto históricoassociado à Revolução de Outubro de 1930. Do pontode vista conceitual, o romance de 1930 valeu-se decontribuições como as de Gilberto Freyre, ou de Sér-gio Buarque de Holanda ou, ainda, do pensamentomarxista que, então, passava a influenciar de modonítido as análises e interpretações da realidade de es-critores importantes não só da prosa de ficção, comoos já mencionados Graciliano Ramos e Jorge Amado,mas também da poesia, como Carlos Drummond deAndrade. Sob a perspectiva estética, em vez da prosaacademizante do Realismo oitocentista, o Neorrealis-mo assimilou conquistas do Modernismo, a despeito

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4 FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Rio deJaneiro: José Olympio, 1975, p. 135.

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de certa aversão a esse movimento, sobretudo quantoà valorização da linguagem coloquial brasileira (nocaso, regional), estilizada literariamente não comoexemplo de pitoresco, mas como rico, legítimo e au-têntico instrumento de comunicação e criação artísti-ca, diversa da elocução culta lusitanizante.

A noção de regionalismo na literatura brasileira éum tanto vaga e ampla. Suas origens encontram-se noRomantismo, cuja inclinação nacionalista não se limi-tou à representação artística da vida da Corte, depoiscapital da República, mas das cidades e do sertão dasprovíncias (mais tarde, estados). Ao lado do romanceurbano, o romance dito regionalista ou sertanejo en-controu boa acolhida na literatura oitocentista, emobras como Inocência, de Taunay, O garimpeiro, deBernardo Guimarães, O sertanejo e O gaúcho, de Joséde Alencar. O Realismo-Naturalismo do século XIX eseu prolongamento na prosa do chamado Pré-Mo-dernismo também contribuíram para o enriqueci-mento do regionalismo literário, em livros como Omulato, de Aluísio Azevedo, Sertão, de Coelho Neto,os contos de Urupês, Cidades mortas e Negrinha, deMonteiro Lobato, ou mesmo Os sertões, de Euclidesda Cunha. De modo amplo (e impreciso), essas obrassão chamadas regionalistas em oposição à noção deromance urbano, cujas narrativas transcorrem na ci-dade do Rio de Janeiro e, já no século XX, também nade São Paulo.

Assim, mesmo após o advento do Modernismo,histórias localizadas fora dessas duas metrópoles, em-bora em capitais estaduais onde a modernização já seevidenciava, continuaram a ser rotuladas de regiona-listas, como é o caso de Angústia, de Graciliano Ramos,que se passa em Maceió, e, especialmente, do roman-ce em foco, Capitães da Areia, cuja ação tem como es-paço a cidade de Salvador, caracterizada como bemmoderna, para os padrões da década de 1930, com pro-blemas típicos dessa condição.

Somente por esse critério complacente é possívelconsiderar Capitães da Areia, assim como os demaisromances urbanos de Jorge Amado, ou de seus con-temporâneos gaúchos Érico Veríssimo e DionélioMachado, como obras regionalistas. Ademais, para

nos atermos ao romance que estamos a estudar, oproblema social das crianças abandonadas, abordadopelo autor, não é uma questão regional, mas uma ma-zela nacional, típica das grandes cidades brasileiras.

Desse modo, o rótulo de Neorrealismo Regionalis-ta, aplicado ao romance Capitães da Areia, mostra-seproblemático, pois, se se ajusta razoavelmente à noçãosubstantiva da expressão, mostra-se incerto quanto àadjetiva, isto é: neorrealismo, sim, embora a idealizaçãodos pobres e dos marginalizados constituam desviosdessa corrente, mas regionalista, só se levadas em con-sideração as restrições apontadas.

Feitas essas observações, é importante enfatizar oconteúdo político do romance em foco, que dá aoNeorrealismo, ou Neonaturalismo, um acentuado ma-tiz ideológico de inspiração socialista.

LLiinngguuaaggeemm ee eessttiilloo

Jorge Amado valeu-se da linguagem conquistadapelos modernistas, em que o padrão culto incorporaelementos da fala popular e os estiliza literariamente.

A linguagem popular em Capitães da Areia, po-rém, apresenta alguns graus de estilização. Na fala depersonagens populares, como, entre outros, os meni-nos do bando, o doqueiro João de Adão, o jangadeiroe mestre de capoeira Querido-de-Deus e alguns poli-ciais, a estilização reproduz em discurso direto o re-gistro quase bruto da oralidade popular, com seuserros de concordância, suas gírias e seus chavões.Como exemplo, leiamos a seguinte passagem:

— Tu ainda tem uma peitama bem boa, hein, tia? Anegra sorriu:

— Esses meninos de hoje não respeita os mais ve-lho, compadre João de Adão. Onde já se viu um capeti-nha destes falar em peito pra uma velha encongrujadacomo eu?

— Deixa de conversa, tia. Tu ainda topa a coisa... A negra riu com vontade:— Já fechei a cancela, Boa-Vida. Passei da idade.

Pergunta a este… — aponta João de Adão. — Vi quandoele, quase menino assim como tu, fez a primeira greveaqui nas doca. Naquele tempo ninguém sabia que diaboera greve. Tu te lembra, compadre?

João de Adão balançou a cabeça que sim, fechou osolhos recordando os longínquos tempos da primeiragreve que chefiara nas docas. Era um dos doqueiros maisvelhos, embora ninguém lhe desse a idade que tinha.

Pedro Bala falou:— Negro quando pinta, três vezes trinta.A negra mostrou a carapinha toda pintada de bran-

co. Tinha tirado o lenço que enrolava na cabeça e Boa-Vida chalaceou:

— Por isso tu anda com esse lenço. Ô negra cheiade prosopopéia...

João de Adão perguntou:— Tu te lembra de Raimundo, comadre Luísa?— O “Loiro”, que morreu na greve? Como não me

lembro? Era um que toda tarde vinha dar dois dedo deprosa comigo, gostava de tirar pilhéria...

— Mataram ele bem aqui, naquele dia que a cavala-ria atropelou a gente. — Olhou para Pedro Bala. — Tununca ouviu falar nele, capitão?

Depoimento de Jorge Amado

CADERNOS: Seu romance Capitães da areia traz à tonauma questão que hoje está no centro dos debates sobre arealidade brasileira: os meninos de rua. Quando publicou olivro, em 1937, o sr. tinha alguma consciência de seu caráterpremonitório?

Jorge Amado: Não, com o tempo, fui acompanhando oagravamento da situação dos nossos meninos, mas na épocaem que lancei o romance eu não tinha consciência de que aliestava um pro-blema que lamentavelmente se agravariatanto.

In: Cadernos de Literatura Brasileira – Jorge Amado.São Paulo: Instituto Moreira Salles, nº- 3,

março de 1997, p. 48.

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— Não.— Tu tinha uns quatro anos. Depois disso tu andou

um ano da casa de um pra casa de outro até que tu fugiu.Depois a gente só veio saber de tu quando tu já era chefedos Capitães da Areia. Mas a gente sabia que tu havia dete arranjar. Quantos anos tu tem agora?

Pedro ficou fazendo cálculos e o próprio João deAdão interrompeu.

— Tu tá com uns quinze anos. Não é, comadre? Anegra fez que sim. João de Adão continuou:

— No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nasdocas. A gente tem um lugar guardado pra tu.

— Por quê? — perguntou Boa-Vida, já que Pedroapenas olhava espantado. (pp. 84-85)

O discurso do narrador, bem como o de algumaspersonagens que tiveram acesso à educação letrada,como o padre José Pedro, desenvolve-se dentro doregistro culto, mas coloquial.

Valendo-se de vocabulário e de estruturas sintáti-cas simples, o registro culto do narrador assimila pro-cedimentos do registro popular, tais como a repetiçãode palavras e certa propensão para a ênfase das hipér-boles. Todavia, em certas passagens, o narrador, mes-mo conservando a simplicidade coloquial, aproxima-seda prosa poética, impregnando seu discurso de liris-mo, tal como pode ser observado no excerto seguinte.

Todos queriam. O sertanejo trepou no carrossel, deucorda na pianola e começou a música de uma valsa anti-ga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorriso.Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em ale-gria. Escutavam religiosamente aquela música que saíado bojo do carrossel na magia da noite da cidade daBahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Ca-pitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operárioque vinha pela rua, vendo a aglomeração de meninos napraça, veio para o lado deles. E ficou também parado, es-cutando a velha música. Então a luz da lua se estendeusobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, omar ficou de todo manso (talvez que lemanjá tivesse vin-do também ouvir a música) e a cidade era como que umgrande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos osCapitães da Areia. Neste momento de música eles senti-ram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, sesentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho esem conforto e agora tinham o carinho e conforto da mú-sica. Volta Seca não pensava com certeza em Lampiãoneste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia ochefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernasem se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Por-que a música saía do bojo do velho carrossel só para elese para o operário que parara. E era uma valsa velha etriste, já esquecida por todos os homens da cidade. (p. 68)

A estilização literária do coloquialismo popularnão impede, porém, o narrador de valer-se de proce-dimentos formais sofisticados. Tal é o caso do discur-so indireto livre, utilizado em passagens como a se-guinte, que representa o fluxo de consciência da per-sonagem engastado no discurso do narrador.

O padre José Pedro ia encostado à parede. O cône-go dissera que ele não podia compreender os desígniosde Deus. Não tinha inteligência, estava falando igual a umcomunista. Era aquela palavra que mais perseguia opadre. De todos os púlpitos todos os padres tinham fala-do contra aquela palavra. E agora ele... O cônego era mui-to inteligente, estava próximo de Deus pela inteligência,

era-lhe fácil ouvir a voz de Deus. Ele estava errado, per-dera aqueles dois anos de tanto trabalho. Pensara levartantas crianças a Deus... Crianças extraviadas... Será queelas tinham culpa? Deixai vir a mim as criancinhas... Cris-to… Era uma figura radiosa e moça. Os sacerdotes tam-bém disseram que ele era um revolucionário. Ele queriaas crianças… Ai de quem faça mal a uma criança… A viú-va Santos era uma protetora da Igreja… Será que ela tam-bém ouvia a voz de Deus? Dois anos perdidos... Faziaconcessões, sim, fazia. Senão, como tratar com os Capi-tães da Areia? Não eram crianças iguais às outras… Sa-biam tudo, até os segredos do sexo. Eram como homens,se bem fossem crianças...(p. 156)

Agora, é importante assinalar que a estilização dalinguagem popular é nula nos textos que mimetizamreportagens ou cartas de certas autoridades, como odiretor do reformatório, publicadas em jornal. Nessescasos, a linguagem ostenta uma pompa retórica quecaracterizava o discurso acadêmico então prestigiado.Contudo, trata-se de uma paródia desse tipo de lin-guagem empolada, cujo contraste com o registro des-pojado do narrador gera um efeito de sentido a um sótempo crítico e, sutilmente, humorístico.

EEssppaaççooA ação transcorre na cidade de Salvador, embora

haja algumas referências a locações sertanejas da Bahia.O espaço da cidade, porém, divide-se em locais

públicos e privados. Estes também se separam: deum lado, as confortáveis casas dos ricos, como a doadvogado Dr. Raul e sua esposa, Dona Ester, casalque acolhe Sem-Pernas e tem a residência invadida eroubada pelos Capitães da Areia; de outro lado, oscasebres dos pobres, situados no morro, como o bar-raco em que Dora vivera até a morte dos pais, quan-do ela e o irmão menor, Zé Fuinha, são despejadospelo “árabe que era dono dos barracões do morro” (p.168). Tal detalhe sugere que, mesmo dividido entrericos e pobres, o espaço privado pertence todo aosprimeiros. Os pobres não são proprietários do lugarprecário onde moram: os barracos alugados pelo“árabe”. A força de trabalho é o que lhes resta, mas aremuneração apenas possibilita uma vida cheia deprivações. As residências dos ricos, caracterizadascomo lugar onde se acumulam bens de conforto e deluxo, tornam-se alvo dos Capitães da Areia, meninosenjeitados e despossuídos de tudo, que as invadempara roubar, uma vez que são compelidos ao delitopela necessidade de sobrevivência.

É difícil caracterizar o trapiche, pois se trata de umlugar abandonado e em ruínas. Não é público nem,propriamente, privado, mas um espaço degradado emarginal, de que os Capitães da Areia tomam posse.Todavia, a posse é compartilhada pelos ratos que in-festam o lugar, dado que indicia a sub-humanidade aque os meninos do bando são submetidos. As ruínasdo trapiche são imagens correlatas às das roupas es-farrapadas e das vidas destruídas daquelas criançassem amparo.

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Os locais públicos também podem ser divididosem dois grupos: o dos espaços abertos e dos fechados.Os primeiros são constituídos pelas ruas e praças dacidade, que ora se mostram ameaçadores, como sen-te Dora antes de juntar-se aos Capitães da Areia, orase apresentam como correlatos objetivos do senti-mento de liberdade que anima Pedro Bala e seus com-panheiros.

Dentre os locais fechados, destacam-se a dele-gacia de polícia, o reformatório e o orfanato. Embo-ra sejam instituições públicas, esses espaços apre-sentam-se como locais de privação da liberdade,confinamento a que são sujeitos os que ameaçam eagridem a propriedade privada e a segurança da eli-te. Estão, portanto, a serviço dos interesses da classedominante e se caracterizam pelo excesso ou abusodo poder de repressão e da aplicação da violência.A brutalidade desumana que se pratica neles, po-rém, é disfarçada por discursos humanitários hipó-critas e consentida silenciosamente pela sociedadediscricionária.

No romance, tais discursos são veiculados pelojornal, que corresponde ao espaço de comunicaçãosocial e circulação de idéias. Embora suas páginasacolham textos que denunciam iniquidades ocorridasno reformatório, como uma carta do padre JoséPedro e, outra, da mãe de um menor lá aprisionado, ojornal se mostra parcial, francamente favorável aospronunciamentos do delegado de polícia e do diretordo reformatório, quer nos destaques dados àsmatérias, quer nos comentários favoráveis aos textosdas autoridades, quer, ainda, nas reportagens publi-cadas sobre a ação dos Capitães da Areia ou a prisãode Pedro Bala e Dora. O espaço cultural representadopela imprensa revela-se, desse modo, associado ouincorporado ao espaço social ocupado pela elite.

TTeemmppooA cronologia da narrativa é imprecisa. A reporta-

gem do Jornal da Tarde, sobre a prisão de Pedro Balae Dora, registra que o pai do rapaz morrera “na céle-bre greve das docas de 191…” (pp. 198-199). Esse anonão seria anterior a 1917, que, historicamente, corres-ponde à deflagração de greves operárias em váriascidades do país. Se tal hipótese for válida, a ação cen-tral do romance transcorre em 1928, quando PedroBala conta quinze anos de idade, conforme assinala ovelho estivador João de Adão num diálogo do capítu-lo “Docas” (p. 85). Órfão aos quatro anos de idade, Pe-dro Bala ingressara aos cinco no bando dos Capitãesda Areia, portanto, em 1918.

Do início da ação até a entrada de Dora para o ban-do, não há marcadores precisos de tempo que permi-tam afirmar se o período compreende dias, semanasou alguns meses. Dora é presa, adoece e morre no in-verno do suposto ano de 1928, após permanência dequatro meses entre os Capitães da Areia. Esse dado

permite, então, conjecturar que a ação nuclear tem iní-cio no verão de 1928. Após a morte de Dora, a narra-tiva salta um ano, conforme as palavras do narrador:“Passou o inverno, passou o verão, veio outro inverno,e este foi cheio de longas chuvas, o vento não deixoude correr uma só vez no areal.” (p. 232). Agora, restasaber se os nomes das estações são empregados emsentido próprio ou na acepção regionalista do Norte edo Nordeste do Brasil, caso em que se invertem os sig-nificados de “verão” e “inverno”.

Seja como for, até a morte de Dora a cronologiasegue o ritmo de dias, semanas ou meses; após, elaprimeiro dá o mencionado salto de um ano para,depois, saltar mais três, a julgar do marcador tem-poral contido na seguinte passagem: “Gato não fize-ra ainda dezoito anos. Fazia quatro que amava Dal-va.” (p. 243). Assinale-se que Gato torna-se amantede Dalva assim que ingressa no bando dos Capitãesda Areia, no início da ação romanesca. Quase aosdezoito anos, Gato despede-se dos Capitães de Areiapara tornar-se gigolô e jogador em Ilhéus, como vi-mos. Nessa mesma época, dá-se a transformaçãofinal de Pedro Bala, de chefe do bando para revolu-cionário, condição com que termina sua trajetóriano fim do romance, cujo último capítulo apresentamais um salto cronológico, agora de “alguns anos”.Essa indefinição, porém, não impede a conjectura deque a narrativa se encerre em 1935, uma vez que onarrador alude ao “ano em que todas as bocas foramimpedidas de falar” (p. 270), numa referência cifradaàs perseguições políticas desencadeadas pelo go-verno Vargas contra a esquerda, após o episódio his-tórico conhecido como “Intentona Comunista”.

Assim, a narrativa abrange um período que, his-toricamente, corresponderia aos anos de 1928 a 1935,em que a decadente República Velha se esgota, dá-sea Revolução de Outubro (1930) e a era Vargas se pre-cipita, após a “Intentona” (1935), para a ditadura doEstado Novo, que viria com o golpe de 1937, mesmoano em que Jorge Amado escreve e publica a primei-ra edição de Capitães da Areia.

A cronologia, todavia, não é completamente linear,pois, em alguns momentos, a narrativa alude a acon-tecimentos ocorridos até mesmo antes do nascimentode Pedro Bala, por meio de flashes do passado.

A linearidade cronológica também se esgarçanos momentos em que o tempo exterior dá lugar àmanifestação do tempo interior ou psicológico, queirrompe nos momentos de devaneio, fantasia ou so-nho das personagens, ou, ainda, naquelas passagensem que o narrador flagra monólogos interiores oufluxos de consciência, nos quais a subjetividade alon-ga, acelera ou confunde a sensação de passagem dotempo, como é o caso do episódio em que Pedro Ba-la perde a noção exata dos dias passados na cafua doreformatório.

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PPeerrssoonnaaggeennssSegundo a clássica divisão de personagens em pla-

nas e redondas5, proposta pelo escritor inglês E. M.Forster, os caracteres que se delineiam em Capitãesda Areia devem ser classificados como planos, unsmais, outros menos. Isso significa que as persona-gens do romance de Jorge Amado não têm muita den-sidade ou profundidade psicológica. Seus perfis mo-rais são um tanto esquemáticos e podem ser agrupa-dos em duas esferas: a dos ricos e a dos pobres.

A essa polaridade social corresponde uma gené-rica caracterização moral: os ricos são maus, excetoalguns poucos, e os pobres, geralmente, são bons, adespeito de seus possíveis defeitos.

Na esfera dos ricos, excetuam-se, basicamente, ocasal constituído por dona Ester e o Dr. Raul, que aco-lhe Sem-Pernas como um filho, e o poeta que protegee encaminha Professor para estudar pintura no Riode Janeiro. Todavia, o narrador não se detém na com-posição psicológica desses caracteres. Alguns delessão esboçados sumariamente. Do poeta, por exemplo,o narrador informa o nome — Dr. Dantas —, e se li-mita a registrar o interesse dele pelo talento artísticodo Professor, bem como a generosa ajuda prestada aomenino, cujo destino se altera em decorrência desseempenho desinteressado. Ao invés de um possívelmarginal adulto, o Professor se torna um pintor impor-tante, e suas telas, além do reconhecido valor artísti-co, são apreciadas também pelo conteúdo social.

Os ricos, em geral, mostram-se egoístas, precon-ceituosos e intolerantes, quando não pervertidos oufrancamente cruéis. Seus perfis são delineados se-gundo modelos típicos, ou seja, generalizantes. Aavidez dinheirista do “árabe”, proprietário dos barra-cos do morro, que despeja Dora e Zé Fuinha do case-bre em que viviam, assim que lhes morre a mãe, paraalugá-lo a outro inquilino, sem nenhuma compaixãopelos órfãos, ilustra o egoísmo dos ricos. O comporta-mento da mulher a quem Dora pede emprego, quedespacha a menina, ao saber que os pais dela haviammorrido na epidemia de varíola, sem mais impulso desolidariedade que a parca esmola depositada sobre omuro do jardim, para evitar qualquer contato físico,poderia ser também compreendido como egoísta, em-bora o egoísmo seja, nesse caso, misturado ao medoe à ignorância. Preconceituosas mostram-se as beatasque se escandalizam com a atenção dada pelo padreJosé Pedro às crianças esfarrapadas, e reclamam dis-so aos superiores dele. Estes, que representam a su-posta voz institucional da Igreja católica, mostram-sefavoráveis à demanda das beatas contra o padre, cujaatitude é acusada de “comunista” pelo cônego que orepreende asperamente. Pervertida mostra-se a “vita-

lina” que acolhe Sem-Pernas como empregado, maspara satisfazer um apetite sexual que a lei, rigorosa-mente, consideraria criminoso, por ser ele menor deidade. As autoridades estatais agem de modo dis-cricionário, como no episódio em que a polícia invadeo candomblé da mãe de santo Don’Aninha, apreendea imagem de Ogum e a leva para a delegacia. A intole-rância religiosa dos ricos, a cujo serviço a políciaestaria, é denunciada nessa profanação do que a reli-giosidade afro-brasileira, apresentada no romancecomo manifestação cultural dos pobres, considera sa-grado. A encenação da violência do delegado, de po-liciais, do diretor e dos bedéis do reformatório, emvárias passagens, simboliza o caráter desumano do po-der público, e o teor dos noticiários jornalísticos podeser interpretado como representativo da opinião dosricos, destituída de qualquer sensibilidade social e co-nivente com a repressão brutal da criminalidade infan-to-juvenil.

Os pobres, em geral, são trabalhadores exploradosou lumpens, cuja vida, destituída de qualquer confor-to, confina-se em espaços materiais e espirituais mi-seráveis. Contudo, revelam-se solidários, como de-monstra o comportamento caridoso da mãe de santoDon’Aninha, que auxilia os necessitados com seus co-nhecimentos de medicina popular e os aconselha eampara espiritualmente nos momentos mais difíceis;ou como ilustra o sacrifício do pai de Pedro Bala, quemorrera em defesa de sua classe; ou a amizade do jan-gadeiro e mestre de capoeira Querido-de-Deus, de-votada aos Capitães da Areia; ou, ainda, a deferênciaafetuosa demonstrada pelo líder dos estivadores, ovelho João de Adão, a Pedro Bala. Além da solidarie-dade, os pobres também se caracterizam pela espe-rança de um futuro melhor, numa sociedade mais jus-ta, e pela alegria de viver, apesar de todo sofrimento aque estão sujeitos.

A criminalidade dos pobres, como a dos cangacei-ros do bando de Lampião ou dos Capitães da Areia, éfrequentemente escusada pelo narrador, que a con-sidera consequência do sistema injusto. Desse modo,o crime se apresenta como inelutável necessidade deresistência ou de sobrevivência. Os cangaceiros, ape-sar dos estupros, roubos e assassinatos, são reitera-damente apresentados como “crianças grandes” e,até mesmo, heróis vingadores dos pobres sertanejoscontra os ricos latifundiários. Em discurso indiretolivre, a voz do narrador se confunde com a do prota-gonista, quando este se encontra preso na cafua doreformatório, sugerindo certa concordância de pensa-mento entre ambos: “Lampião mata soldado, matahomem ruim. Pedro Bala neste momento ama Lam-pião como a um seu herói, a um seu vingador. É o bra-ço armado dos pobres do sertão.” (pp. 203-204, grifonosso). Em outra passagem, em que também compa-rece o discurso indireto livre, agora fundindo a voznarrativa ao pensamento de Volta Seca, essa heroici-zação mostra-se mais acentuada:

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5 FORSTER, E. M. Aspects of the Novel, London: Penguin Books,1990 (1ª- ed., 1927), p. 73: “we may divide characters into flat andround.”

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Homens magros que lavram a terra para ganhar mile quinhentos dos donos da terra. Só a caatinga é que éde todos, porque Lampião libertou a caatinga, expulsouos homens ricos da caatinga, fez da caatinga a terra doscangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O heróiLampião, herói de todo o sertão de cinco estados. Dizemque ele é um criminoso, um cangaceiro sem coração,assassino, desonrador, ladrão. Mas para Volta Seca, paraos homens, as mulheres e as crianças do sertão é um no-vo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitãode um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, obem maior do mundo. E Lampião luta, mata, deflora efurta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para oshomens explorados do sertão imenso de cinco estados:Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia. (p. 247)

Assim como a dos cangaceiros, a imagem dos Ca-pitães da Areia, a despeito dos defeitos, é idealizadalogo no início do romance, para ser reiterada ao longodele como um leitmotiv:

Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agres-sivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro,eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciamtotalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.(p. 29)

Vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças.Mas só os sacarão se os outros puxarem. Porque os me-ninos abandonados também têm uma lei e uma moral, umsentido de dignidade humana. (p. 194)

Os Capitães da Areia furtam, roubam, estupram eagridem, mas não são vistos como culpados dessesdelitos, como transparece na visão do padre José Pe-dro ou do doqueiro João de Adão, em uma passagemjá citada (pp. 111-112 do romance), na qual o narradorse vale, mais uma vez, do discurso indireto livre, en-tão para apresentar o fluxo de consciência de Pirulito.A culpa seria da vida, na opinião do padre, ou, confor-me o velho estivador, “da sociedade mal organizada,[a culpa] era dos ricos…”.

Ao que parece, o narrador compartilha a opiniãode João de Adão. Nessa medida, depreende-se quepara ele, narrador, se Pedro Bala sodomiza brutalmen-te a negrinha virgem no areal próximo ao trapiche, aculpa seria da sociedade; se Sem-Pernas odeia e agri-

de todo mundo, a culpa seria da sociedade; se Baran-dão é sodomita, a culpa seria da sociedade; se Gato setorna gigolô e golpista, a culpa seria da sociedade; seBoa-Vida vira malandro, a culpa seria da sociedade;se Volta Seca se transforma no mais cruel dos canga-ceiros, a culpa seria da sociedade. Enfim, a criminali-dade e os desvios de comportamento dos meninos dobando seriam sempre culpa da sociedade, ou seja,dos ricos.

Desse modo, os dois grupos de personagens — osricos e os pobres — apresentam-se de acordo comuma caracterização nitidamente maniqueísta, em queos primeiros são intrinsecamente maus e os segun-dos, bons, uma vez que seus defeitos seriam isentosde culpa.

Nessa visão, avulta o pressuposto ideológico se-gundo o qual os excluídos seriam a força de resistên-cia contra a alienação e reificação das pessoas e, emúltima análise, os portadores dos legítimos valoreshumanos, sendo que o maior deles seria representa-do pelo sentimento de liberdade, atribuído aos Capi-tães da Areia, aos trabalhadores espoliados e à “orga-nização” — vocábulo cifrado que se refere ao PartidoComunista Brasileiro (PCB) — como traço mais ca-racterístico dessas personagens coletivas.

Observe-se que a imagem de tal “organização”,representada, sobretudo, pelo estivador João de Adãoe pelo estudante universitário Alberto, é a de umaforça transformadora e revolucionária, investida degenerosidade e desinteresse pessoal, capaz de mudara realidade mesquinha em um mundo de justiça e li-berdade.

Como dissemos, as personagens do romance são,em geral, mais ou menos planas, sendo que boa partedas mais importantes (sobretudo Pedro Bala, Pro-fessor, Sem-Pernas, Volta Seca, Pirulito e o padre JoséPedro) recebe um tratamento mais complexo na ca-racterização psicológica, que os aproxima da noçãode personagens redondas.

NNaarrrraaddoorr

A história é contada, em terceira pessoa, por umnarrador onisciente. Isso significa que ele conhece atotalidade do universo narrado e permite que semovimente com desenvoltura no tempo e no espaço.Ele traz ao leitor informações do passado (flash back)ou antecipações de fatos futuros (flash forward), sem-pre com a capacidade não só de mostrar com nitidezos acontecimentos exteriores, mas também de revelara vida interior das personagens, seus pensamentos,sentimentos e fantasias.

O ponto de vista é dinâmico: ora se posiciona noalto, ora se movimenta para baixo, ora se distancia,ora se aproxima. Decorre daí a sucessão de enqua-dramentos que variam de acordo com a necessidadede proporcionar visões mais amplas ou mais concen-

Comentário de Antonio Candido

Dos meninos vadios de Jubiabá, do bando de AntônioBalduíno, nascem e crescem os Capitães da Areia, e dos seussaveiros, do oceano, nasce Mar morto. Os meninos vadios, porsua vez, são certamente uma necessidade imposta por Suor,pelo desejo de mostrar a gênese daquelas vidas esma-gadas decortiço. O cacau, lançado no romance deste nome, fica latentemuitos anos. Perpassa nas histórias do negro velho de Ilhéus,em Jubiabá. Aparece de modo fugaz em Capitães da Areia, jásob o aspecto pioneiro e far-west que constitui a trama dasTerras do sem-fim, onde se expande e se realiza, definitivo. O“Diário de um negro em fuga”, de Jubiabá, apresenta os perso-nagens de Mar morto e a vida dos trabalhadores do fumo,irmãos dos de cacau.

CANDIDO, Antonio. “Poesia, documento e história”(1945). In: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora

Unesp, 1992, p. 50-51.

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tradas: imagens panorâmicas para as mobilizaçõescoletivas; imagens aproximadas, como em close cine-matográfico, para as cenas mais pessoais e íntimas.

O lugar social do narrador evidencia-se na lin-guagem culta, que se diferencia claramente do regis-tro popular presente nos diálogos travados entre per-sonagens do grupo dos pobres. Todavia, o registroculto do narrador não é o mesmo que se vê nas mani-festações linguísticas de personagens do grupo dosricos, especialmente as que se mostram em textospublicados no jornal, sejam eles notas editoriais, re-portagens ou cartas enviadas para a redação pelo de-legado de polícia ou pelo diretor do reformatório.Esses textos são vazados em uma linguagem de saboracadêmico, com sua retórica um tanto pomposa eprotocolar, que sugere certa mediocridade intelectu-al. Tais textos, mais propriamente, constituem estiliza-ções da linguagem de uma elite pretensiosa, comintuito satírico. O discurso do narrador, embora devaser considerado como de registro culto, apropria-sedas conquistas do Modernismo, que combatera oacademicismo e forjara uma linguagem mais próxima do registro coloquial, inclusive popular. Todavia, não sepode confundir essa prática linguística com a de per-sonagens iletradas do romance. O narrador, por exem-plo, não comete erros de concordância, comumentepraticados pelos meninos do bando ou personagenscomo João de Adão, a velha negra Luísa e Querido-de-Deus. A linguagem do narrador, em última análi-se, é uma criação culta que assimila e mimetiza artisti-camente a simplicidade e a espontaneidade da ex-pressão coloquial. Portanto, do ponto de vista cultu-ral, o narrador se pronuncia e se posiciona na esferaletrada dos intelectuais, e, do ponto de vista social,

grosso modo, na esfera ocupada pelas elites. Todavia,do ponto de vista ideológico, o narrador deixa transpa-recer francamente que se encontra num campo opos-to ao da classe dominante.

Assim, o narrador rompe com sua classe de ori-gem, mas não se converte, propriamente, nummembro da classe inferior, assumindo a posição deintelectual orgânico do proletariado, para valer-nosda noção forjada por Gramsci6, isto é, aquele que,embora sua classe de origem possa ser outra, supe-rior, assume a perspectiva orientada para a con-quista da hegemonia política do proletariado. Trata-se de uma noção próxima à de intelectual engajado,no sentido preconizado por Sartre, ou seja, aqueleque intervém nos acontecimentos de modo a conci-liar pensamento, ética e ação política, sendo os três,no caso, de orientação socialista.

O narrador de Capitães da Areia, de fato, assu-me a defesa da luta socialista para a transformaçãorevolucionária da sociedade. Porém, tal defesa seconfigura como uma deformação da realidade, namedida em que esta é reduzida ao maniqueísmotípico do chamado marxismo vulgar, conforme oviés estético do realismo socialista promovido inter-nacionalmente pela política cultural de Stalin nadécada de 1930. Imbuído de uma visão profética dahistória, o narrador simplifica de modo um tantogrosseiro as complexas relações sociais, como quedemoniza as classes superiores e idealiza romanti-camente a personalidade e a ação de proletários emarginais, considerados intrinsecamente bons e au-tênticos construtores da sociedade justa e livre aque o futuro estaria necessariamente destinado. Talidealização, conforme dissemos, implica a atribui-ção de responsabilidade dos vícios e defeitos mo-rais dos pobres aos ricos, além de favorecer a defe-sa de uma ação política como a figurada na instru-mentalização dos Capitães da Areia pela “organiza-ção”, que os convertem em “brigada de choque” domovimento revolucionário.

CCOONNCCLLUUSSÃÃOO

Capitães da Areia vincula-se à tradição do roman-ce de aprendizagem ou de formação (Bildungsroman),gênero literário que tem Lazarillo de Tormes (1554)como precursor e Os anos de aprendizado de WilhelmMeister (1807), de Goethe, como modelo consagrado.Dessas duas obras exemplares, a de Jorge Amado re-vela maior afinidade com a primeira.

Depoimento de Mario Vargas LlosaEu o [Jorge Amado] conheci como leitor quando era estu-

dante universitário, na Lima dos anos 50, e me lembro, inclu-sive, dos dois primeiros livros que li: seu romance de juventudeCacau e a biografia romanceada do líder comunista brasileiro— figura mítica da época — Luís Carlos Prestes, O cavaleiro daesperança. Naqueles anos — os da guerra fria no mundo e dasditaduras militares na América Latina, não nos esqueçamos —sua figura pública e sua obra literária se identificavam com aidéia do escritor engajado, que usa sua pena como uma armapara denunciar as injustiças sociais, as tiranias e a exploração, econquistar adeptos para o socialismo. Os escritos de JorgeAmado, como os de seus contemporâneos hispano-americanosna época, o Pablo Neruda, de Canto geral ou o Miguel AngelAsturias, de Weekend na Guatemala, Vento forte e O papaverde, pareciam animados por um ideal cívico e moral (revo-lucionário seria a palavra mais correta) e ao mesmo tempoestético — embora, muitas vezes, como nos livros citados, o pri-meiro comprometia este último. O que salvou o Jorge Amadode então, da armadilha em que caíram muitos escritores latino-americanos “militantes”, que se converteram, como queriaStalin, em “engenheiros de almas”, ou seja, em meros propagan-distas, foi que em seus romances políticos um elemento intuiti-vo, instintivo e vital prevaleceu sempre sobre o ideológico,superando os esquemas racionais.

In: Cadernos de Literatura Brasileira – Jorge Amado. São Paulo:Instituto Moreira Salles, nº- 3, março de 1997, p. 38.

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6 GRAMSCI, Antônio. “A formação dos intelectuais”. In: Obrasescolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1974 , pp. 189-214, vol. 2.

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Capa da primeira edição (2008) deCapitães da Areia pela Companhia das Letras

Lazarillo de Tormes, narrativa anônima espanholado século XVI, também se destaca na história da lite-ratura como fundadora da tradição da novela picares-ca. Esse gênero da prosa de ficção surgiu como paró-dia das epopeias e novelas de cavalaria prestigiadasno Renascimento. Ao inverter ironicamente as narra-tivas heroicas, Lazarillo de Tormes inventa o pícaro —anti-herói cujas aventuras revelam a realidade socialsórdida em que vivem os pobres e marginalizados —,personagem de vida atribulada, cuja trajetória, narra-da na forma de uma pseudoautobiografia, constitui umaespécie rebaixada de epopeia, mais exatamente, umairônica epopeia dos miseráveis. Daí o brutal naturalis-mo com que a realidade, transfigurada pela ficção, éduramente castigada pela sátira, sempre associada auma intenção moralizante. Lazarillo de Tormes preco-niza o romance de aprendizagem na medida em quese observa no relato o processo de desenvolvimentofísico e moral do narrador-protagonista, desde a infân-cia até a maturidade.

O narrador de Capitães da Areia, como sabemos,pronuncia-se em terceira pessoa, de fora do mundomiserável que se apresenta na ficção, e não de dentro,como supõe Zélia Gattai em comentário posposto aotexto da edição publicada pela Companhia das Letras,que serve de base a este estudo.

Respeitosamente, discordamos da escritora, quefundamenta sua opinião no fato de que “Para escre-ver Capitães da Areia, Jorge Amado foi dormir no tra-piche com os meninos”, deduzindo daí que “Isso aju-da a explicar a riqueza de detalhes, o olhar de dentroe a empatia que estão presentes na história” (p. 271).A objeção se restringe ao “olhar de dentro”. Mesmo sedesconsiderássemos a distinção ontológica entreautor e narrador, e supuséssemos a narrativa não co-

mo ficção, mas um depoimento de Jorge Amado so-bre fatos reais, mesmo assim, a enunciação se perfazde fora, por meio do pronunciamento de um enunci-ador em terceira pessoa, distinto, quer pela culturasuperior, quer pela posição ocupada pelos intelectuaisna hierarquia social, das personagens cujas históriasele relata. Quanto à “riqueza de detalhes” e à “empa-tia”, não há como discordar de Zélia Gattai. E empáti-ca é, precisamente, a atitude do narrador em relaçãoàs personagens miseráveis, cujas pseudo-biografias dáa ver, sem confundir-se com elas. Seja como for, paraeste estudo, importa assinalar que o foco narrativo emterceira pessoa já estabelece uma diferença entre a pi-caresca tradicional, narrada em primeira pessoa naforma de pseudoautobiografia, e Capitães da Areia.

Agora, sem ser propriamente um romance pica-resco, essa obra de Jorge Amado também pode serentendida como uma espécie de epopeia dos miserá-veis, em que a denúncia das mazelas sociais (por exem-plo: a exploração do trabalho reificador, o preconcei-to de classe, a discriminação cultural e a fome), con-tém um sentido moral que castiga as elites da socie-dade e é portadora de uma mensagem política. Aqui,Capitães da Areia se afasta outra vez da picaresca, poisesta se caracteriza pelo pessimismo e pelo desenganodo mundo, enquanto o romance de Jorge Amadoapresenta, em última análise, uma visão otimista, fun-damentada na fé revolucionária e na convicção do po-der humanizador do socialismo. Desse modo, a epo-peia dos pobres readquire a aura das legítimas epo-peias, e o anti-herói é restituído à genuína condiçãode herói. Pedro Bala adere à luta do proletariado, ele-vada à condição épica na perspectiva ideológicasocialista. A vida das crianças de rua, aparentemente,evidencia-se como o tema principal de Capitães daAreia. A esse tema vinculam-se os demais, como o daviolência, da intolerância religiosa, da miséria e explo-ração dos pobres pelos ricos, da criminalidade infan-to-juvenil, do cangaço e de outros examinados nesteestudo. A eles todos, porém, subjaz o da luta heroicado proletariado, compreendida ideologicamente co-mo força histórica de resistência contra a reificação dohomem e portadora dos dignificantes ideais de liber-dade e justiça.

EEXXEERRCCÍÍCCIIOOSS1. (CEFET-BA/2007) Entre os Capitães da Areia, vi-

via apenas uma mulher, Dora. Esta personagema) tem um papel importante, encarnando, em mo-

mentos diversos, a figura de mãe, irmã e esposa.b) representa a força feminina, nas obras de Jor-

ge Amado, a partir da questão da prostituiçãoe da marginalização social.

c) provoca uma série de problemas entre o gru-po, que perduraram até a sua morte, por causada varíola.

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d) traz alívio para os pequenos que faziam partedo grupo, porque, enquanto os outros saíampara os roubos, ela se responsabilizava pelosque ficavam.

e) tenta conseguir emprego de empregada do-méstica, mas não conseguiu, porque tinha con-traído varíola, epidemia que assolou a cidade,provocando óbitos e medo.

Texto para as questões 2 e 3.

Certa hora Nhozinho França manda que oSem-Pernas vá substituir Volta Seca na venda debilhetes. E manda que Volta Seca vá andar no car-rossel. E o menino toma o cavalo que serviu aLampião. E enquanto dura a corrida, vai pulandocomo se cavalgasse um verdadeiro cavalo. E fazmovimentos com o dedo, como se atirasse nosque vão na sua frente, e na sua imaginação os vêcair banhados em sangue, sob os tiros da suarepetição. E o cavalo corre e cada vez corre mais,e ele mata a todos, porque são todos soldados oufazendeiros ricos. Depois possui nos bancos atodas as mulheres, saqueia vilas, cidades, trens deferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle.

Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma es-tranha comoção o possui. Vai como um crentepara uma missa, um amante para o seio da mulheramada, um suicida para a morte. Vai pálido e co-xeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pin-tadas no lombo de madeira. Os lábios estão aper-tados, seus ouvidos não ouvem a música da pia-nola. Só vê as luzes que giram com ele e prendeem si a certeza de que está num carrossel, girandonum cavalo como todos aqueles meninos que têmpai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem osame. Pensa que é um deles e fecha os olhos paraguardar melhor esta certeza. Já não vê os solda-dos que o surraram, o homem de colete que ria.Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem-Per-nas vai teso no seu cavalo. É como se corresse so-bre o mar para as estrelas na mais maravilhosaviagem do mundo. Uma viagem como o Professornunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto,tanto, que ele o aperta com a mão.

(Jorge Amado. Capitães da areia.)

2. (UEA/2007) Assinale a alternativa com comen-tário pertinente à leitura do texto.a) O trecho se coaduna com os ideais da primeira

fase modernista e suas intenções de construiruma prosa antipassadista, em busca de rupturaformal com a liberdade.

b) Encaixa-se na segunda fase do Modernismo e éexemplo da literatura de caráter social com am-bientação na Bahia.

c) Corresponde ao Modernismo de segunda fasee incorpora as relações de poder no ciclo docacau, no sul da Bahia.

d) Revela plena intenção de seu autor de extrapo-lar as formas convencionais de composição aocriar personagens representativos da seca noNordeste.

e) Constitui exemplo de literatura pré-modernis-ta, que, ao lado das obras de Euclides da Cu-nha, busca construir um retrato definitivo dopovo brasileiro.

3. (UEA/2007) Predominam no texto as seguintesfunções da linguagem:a) emotiva e apelativa.b) fática e metalinguística.c) referencial e conativa.d) poética e metalinguística.e) referencial e poética.

4. (UFMS/1999). Sobre o romance Capitães da Areia,é correto afirmar que(01) há o predomínio do discurso indireto livre,

observando-se a intenção do narrador de co-locar em destaque o íntimo das personagense o afloramento constante dos desejos femi-ninos.

(02) ao enfatizar a naturalidade e a espontaneida-de da fala cotidiana, o narrador incorpora aotexto a linguagem popular, registrando a faladas personagens tal como ela parece ser pro-duzida.

(04) o assunto da obra em questão são os mari-nheiros, e ela inaugura um verdadeiro ciclomarítimo na produção de Jorge Amado, pro-jeto que se irá completar com outras obras,como: Mar morto, Jubiabá e Velhos marinhei-ros.

(08) é uma obra regionalista, cuja preocupaçãocentral é registrar costumes, crenças, tradi-ções e linguagem típicas do litoral da Bahia.

(16) dentre as personagens que povoam seu uni-verso ficcional, há que se destacar Pixote,figura que inspirou um filme com o mesmonome.

Soma das asserções corretas:

5. Observe as asserções e assinale a alternativa cor-reta.

I. As personagens de Capitães da Areia, geral-mente planas e típicas, podem ser agrupadasem duas esferas sociais: a dos pobres e a dosricos. Todavia, Pedro Bala, Professor, Sem-Per-nas, Volta Seca e o padre José Pedro apresen-tam maior complexidade psicológica, aproxi-mando-se da categoria das personagens re-dondas.

II. O narrador de Capitães da Areia pronuncia-seem terceira pessoa, é dotado de onisciência emantém uma relação empática com as per-

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sonagens marginalizadas. Frequentemente, omundo interior das personagens mais impor-tantes é revelado por meio da técnica do dis-curso indireto livre.

III. Quanto ao gênero literário, Capitães da Areiaé um romance que pode ser vinculado à tradi-ção do romance de aprendizagem ou de for-mação (Bildungsroman), além de apresentaralgumas conexões com a novela picaresca, namedida em que a narrativa contém a biografiade Pedro Bala, cujo processo de desenvolvi-mento físico e moral o leitor acompanha des-de a infância até o início da vida adulta.

São corretasa) Somente I.b) Somente III.c) Todas.d) Somente I e II.e) Nenhuma.

Textos para a questão 6.

“Lampião mata soldado, mata homem ruim.Pedro Bala neste momento ama Lampião como aum seu herói, a um seu vingador. É o braço arma-do dos pobres do sertão.” (pp. 203-204).

“E pensando em Deus [Pirulito] pensou tam-bém nos Capitães da Areia. Eles furtavam, briga-vam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam ne-grinhas no areal, por vezes feriam com navalhasou punhal homens e polícias. Mas, no entanto,eram bons, uns eram amigos dos outros.” (pp.110-111).

6. O romance Capitães da Areia, tradicionalmente, évinculado à corrente do neorrealismo literárioque se destacou na prosa de ficção da chamadasegunda geração modernista (1930-1945). Nosdois excertos apresentados acima, as passagensassinaladas em caracteres itálicos estariam ounão de acordo com as propostas do neorrealis-mo? Justifique brevemente a sua resposta.

7. Por que o romance Capitães da Areia pode ser con-siderado uma espécie de epopeia dos miseráveis?

8. Caracterize brevemente as diferentes visões dopadre José Pedro e do velho estivador João deAdão quanto à solução para o problema social damiséria.

9. Em Capitães da Areia, a cidade de Salvador éconsiderada “a mais misteriosa e bela das cidadesdo mundo”, enquanto Dora é exaltada como “amais valente de quantas mulheres já nasceram naBahia, que é a terra das mulheres valentes”. Querecurso estilístico ou figura de linguagem com-parece nas duas citações e qual o seu efeito desentido?

Texto para a questão 10.

Fora sempre infeliz para o lado de mulher.Quando conseguia uma negrinha no areal eracom a ajuda dos outros, era à força. Nenhumaolhava para ele, convidando com os olhos. Outroseram feios, mas ele era repulsivo com a pernacoxa, andando feito caranguejo. Demais terminarapor se fazer antipático e a se acostumar a possuirnegrinhas a pulso. Agora vinha uma mulher bran-ca e com dinheiro, velha e feiúsca era verdade,mas bem comível ainda, e se deitava com ele. Aca-riciava seu sexo com a mão, juntava coxa comcoxa, deitava sua cabeça nos seus seios grandes.Sem-Pernas não podia sair dali, se bem cada diaestivesse mais bruto e mais inquieto. Seu desejoreclamava uma posse completa. Mas a vitalina secontentava em colher as migalhas do amor.

(AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo:Companhia das Letras, 2008, pp. 240-241.)

10. O excerto contém características que o aproxi-mam da estética naturalista. Identifique três des-sas características.

RREESSPPOOSSTTAASS1. A.2. B.3. E.

4. Soma das asserções corretas:

5. C.

6. Consideradas em si, as passagens em itálico con-trariam o estilo neorrealista, pois sugerem umavisão idealizada, em vez de objetiva, da crimi-nalidade dos cangaceiros e do bando dos Capi-tães da Areia.

7. A heroicização dos Capitães da Areia, dos canga-ceiros e dos proletários, cuja luta se apresentadignificada pelos valores de que eles seriam su-postamente portadores (liberdade e justiça), per-mite considerar o romance de Jorge Amadocomo uma espécie de epopéia dos miseráveis.

8. O padre José Pedro desejava que a pobreza fosseatenuada por meio de reformas sociais que pro-porcionassem casa, escola e carinho às criançaspobres, mas sem mudar a estrutura de classes dasociedade, sem acabar com os ricos. Trata-se deuma visão humanitária inspirada no espírito decaridade cristã. João de Adão não concorda como padre e considera que somente a revoluçãosocialista resolveria a questão social da pobreza,por meio da abolição das classes sociais, que aca-baria com a divisão entre ricos e pobres. Resumi-damente, trata-se da oposição entre uma visão re-formista e uma revolucionária.

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9. Nas duas citações verifica-se o uso de adjetivaçãoem grau superlativo, que constitui hipérboles. Pormeio desses mecanismos da linguagem, estabe-lece-se um efeito de intensificação máxima, res-pectivamente, do mistério e da beleza da cidadede Salvador e da valentia de Dora.

10. São características que se associam ao Natura-lismo: a apresentação do sexo como um instintoimperioso, de modo que o apelo fisiológico domi-na a vontade racional; a ênfase em aspectos desa-gradáveis, grotescos ou chocantes, que configu-ram uma espécie de estética do feio; a linguagembrutal e grosseira; o zoomorfismo, que transpare-ce na comparação de Sem-Pernas com um caran-guejo.

BBIIBBLLIIOOGGRRAAFFIIAAAMADO, Jorge. Guia das ruas e dos mistérios da cida-

de do Salvador da Bahia. Rio de Janeiro: Som Li-vre, 1997, faixa 5, disco 2.

AMADO, Jorge. Depoimento. In: Cadernos de Litera-tura Brasileira — Jorge Amado. São Paulo: Institu-to Moreira Salles, nº- 3, março de 1997, p. 48.

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