Capítulo 1 Um Espelho Para a Humanidade

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“É apenas natureza humana.” “As pessoas são praticamente as mesmas em todo o mundo.” Esse tipo de opinião, que ouvimos em conversas, nos meios de comunicação de massa e em muitas cenas na vida cotidia- na, promove a ideia equivocada de que as pessoas de outros países têm os mesmos de- sejos, sentimentos, valores e aspirações que nós. Essas afirmações proclamam que, como são em essência as mesmas, as pes- soas estão ávidas por receber ideias, crenças, valores, instituições, práticas e produtos de uma cultura norte-americana que se disse- mina em todas as partes do globo terrestre. Muitas vezes, esse pressuposto acaba se re- velando equivocado. A antropologia oferece uma visão mais ampla – uma perspectiva comparativa diferenciada e intercultural. A maioria das pessoas pensa que os antropólogos estudam as sociedades não industriais, e eles o fazem. Minha pesquisa me levou a aldeias remotas no Brasil e em Madagascar, uma grande ilha na costa sudeste da África. No Brasil, nave- guei com pescadores em simples embarca- Adaptabilidade humana Adaptação, variação e mudança Antropologia geral As forças culturais formam a biologia humana As subdisciplinas da antropologia Antropologia cultural Antropologia arqueológica Aplicando a antropologia à cultura popular: Indiana Jones Antropologia biológica ou física Antropologia linguística Antropologia e outros campos acadêmicos Antropologia aplicada Antropologia hoje: filho de antropóloga é eleito presidente 1 O QUE É ANTROPOLOGIA? ções a vela, nas águas do Atlântico. Entre o povo Betsileu de Madagascar, trabalhei em campos de arroz e participei de cerimônias nas quais entrei em túmulos para reembal- samar corpos de ancestrais em decompo- sição. No entanto, a antropologia é muito mais do que o estudo dos povos não indus- trializados. É uma ciência comparativa que analisa todas as sociedades, antigas e mo- dernas, simples e complexas. A maioria das outras ciências sociais tende a se concentrar em uma única sociedade, em geral nações industrializadas, como os Estados Unidos ou o Canadá. A antropologia oferece uma perspectiva intercultural única, comparan- do constantemente os costumes de uma so- ciedade com os das outras. Para ser antropólogo cultural, costu- ma-se fazer etnografia (o estudo em primei- ra mão e pessoal de contextos locais). O tra- balho de campo etnográfico geralmente implica passar um ano ou mais em outra sociedade, vivendo com a população local e aprendendo sobre seu modo de vida.

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Filosofia da MenteCognição

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“É apenas natureza humana.” “As pessoas são praticamente as mesmas em todo o mundo.” Esse tipo de opinião, que ouvimos em conversas, nos meios de comunicação de massa e em muitas cenas na vida cotidia-na, promove a ideia equivocada de que as pessoas de outros países têm os mesmos de-sejos, sentimentos, valores e aspirações que nós. Essas afirmações proclamam que, como são em essência as mesmas, as pes-soas estão ávidas por receber ideias, crenças, valores, instituições, práticas e produtos de uma cultura norte-americana que se disse-mina em todas as partes do globo terrestre. Muitas vezes, esse pressuposto acaba se re-velando equivocado.

A antropologia oferece uma visão mais ampla – uma perspectiva comparativa diferenciada e intercultural. A maioria das pessoas pensa que os antropólogos estudam as sociedades não industriais, e eles o fazem. Minha pesquisa me levou a aldeias remotas no Brasil e em Madagascar, uma grande ilha na costa sudeste da África. No Brasil, nave-guei com pescadores em simples embarca-

Adaptabilidade humanaAdaptação, variação e mudança

Antropologia geralAs forças culturais formam

a biologia humana As subdisciplinas da

antropologiaAntropologia culturalAntropologia arqueológica

Aplicando a antropologia à cultura popular: Indiana Jones

Antropologia biológica ou físicaAntropologia linguística

Antropologia e outros campos acadêmicos

Antropologia aplicadaAntropologia hoje: filho de

antropóloga é eleito presidente

1O QUE É ANTROPOLOGIA?

ções a vela, nas águas do Atlântico. Entre o povo Betsileu de Madagascar, trabalhei em campos de arroz e participei de cerimônias nas quais entrei em túmulos para reembal-samar corpos de ancestrais em decompo-sição.

No entanto, a antropologia é muito mais do que o estudo dos povos não indus-trializados. É uma ciência comparativa que analisa todas as sociedades, antigas e mo-dernas, simples e complexas. A maioria das outras ciências sociais tende a se concentrar em uma única sociedade, em geral nações industrializadas, como os Estados Unidos ou o Canadá. A antropologia oferece uma perspectiva intercultural única, comparan-do constantemente os costumes de uma so-ciedade com os das outras.

Para ser antropólogo cultural, costu-ma-se fazer etnografia (o estudo em primei-ra mão e pessoal de contextos locais). O tra-balho de campo etnográfico geralmente implica passar um ano ou mais em outra sociedade, vivendo com a população local e aprendendo sobre seu modo de vida.

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Não importa o quanto descubra sobre essa sociedade, o etnógrafo continuará sendo estrangeiro naquele contexto. Essa experiên-cia de estranhamento tem um impacto pro-fundo. Tendo aprendido a respeitar outros costumes e crenças, os antropólogos nunca podem se esquecer de que existe um mundo mais amplo. Existem outros modos normais de pensar e agir que diferem dos nossos.

ADAPTABILIDADE HUMANA

Os antropólogos estudam os seres humanos em locais e momentos em que os encon-tram – em um café turco, um túmulo da Mesopotâmia ou em um shopping center nos Estados Unidos. A antropologia é a pes-quisa da diversidade humana no tempo e no espaço, estudando o conjunto da condi-ção humana: passado, presente e futuro, biologia, sociedade, língua e cultura. De particular interesse é a diversidade que se dá por meio da adaptabilidade humana.

Os seres humanos estão entre os animais mais adaptáveis do mundo. Nos Andes, na América do Sul, as pessoas acor-dam em aldeias cerca de 5.000 m acima do nível do mar e sobem caminhando mais 500 m para trabalhar em minas de estanho. Tribos no deserto australiano cultuam ani-mais e discutem filosofia. As pessoas sobre-vivem à malária nos trópicos. Os homens caminharam na Lua. A miniatura da nave estelar Enterprise, na Smithsonian Institu-tion de Washington, simboliza o desejo de “buscar uma nova vida e novas civilizações, de ir audaciosamente onde ninguém jamais esteve”. Os desejos de conhecer o desconhe-cido, controlar o incontrolável e criar or-dem a partir do caos encontram expressão entre todos os povos. A criatividade, a adap-tabilidade e a flexibilidade são atributos humanos básicos, e a diversidade humana é o tema da antropologia.

Os estudantes muitas vezes se sur-preendem com a amplitude da antropolo-

gia, que é o estudo da espécie humana e seus ancestrais imediatos. A antropologia é uma ciên cia exclusivamente comparativa e holística. O holismo se refere ao estudo de toda a condição humana: passado, presente e futuro, biologia, sociedade, língua e cul-tura.

As pessoas compartilham a sociedade – vida organizada em grupos – com outros animais, incluindo babuínos, lobos, toupei-ras e até formigas, mas a cultura é mais es-pecificamente humana. As culturas são tra-dições e costumes transmitidos pela apren-dizagem que formam e orientam as crenças e o comportamento das pessoas expostas a eles. As crianças aprendem uma tradição ao crescer em uma determinada sociedade, por meio de um processo chamado de en-culturação. As tradições culturais incluem costumes e opiniões desenvolvidos ao longo de gerações, que dizem respeito a compor-tamentos adequados e inadequados. Essas tradições respondem a perguntas do tipo: Como as coisas devem ser feitas? Como po-demos entender o mundo? Como podemos distinguir o certo do errado? O que é certo e o que é errado? Uma cultura produz um grau de coerência de comportamento e de pensamento entre as pessoas que vivem em uma determinada sociedade.

O elemento mais fundamental das tradições culturais é sua transmissão pela aprendizagem e não por meio de herança biológica. A cultura, em si, não é biológica, mas se baseia em certas características da biologia humana. Há mais de um milhão de anos, os seres humanos têm pelo menos al-gumas das capacidades biológicas das quais depende a cultura: aprender, pensar de modo simbólico, usar a linguagem e empre-gar ferramentas e outros produtos para or-ganizar suas vidas e se adaptar aos seus am-bientes.

A antropologia enfrenta grandes ques-tões da existência humana e reflete sobre elas ao explorar a diversidade biológica e cultural humana no tempo e no espaço.

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Examinando ossos e ferramentas antigas, desvendam-se os mistérios das origens hu-manas.

Quando foi que nossos antepassados se separaram daqueles remotos tios-avôs cujos descendentes são os símios? Onde e quando teve origem o Homo sapiens? Como a nossa espécie mudou? O que somos agora e para onde estamos indo? De que forma as mudanças na cultura e na sociedade in-fluenciaram a mudança biológica? Nosso gênero, o Homo, vem mudando há mais de 2 milhões de anos. Os seres humanos conti-nuam se adaptando e mudando, biológica e culturalmente.

Adaptação, variação e mudança

A adaptação diz respeito aos processos pelos quais os organismos lidam com forças e ten-sões ambientais, como as que são apresenta-das pelo clima e pela topografia, ou os terre-nos, também chamados de acidentes geográ-ficos. De que modo os organismos mudam para se ajustar a seus ambientes, como cli-mas secos ou altitudes elevadas nas monta-nhas? Assim como outros animais, os seres humanos usam recursos biológicos de adap-tação, mas são os únicos a também ter solu-

ções culturais. A Tabela 1.1 resume os recur-sos culturais e biológicos usados para adap-tação a grandes altitudes.

Os terrenos montanhosos apresentam desafios específicos, associados a altitude ele-vada e privação de oxigênio. Considere qua-tro maneiras (uma cultural e três biológicas) com as quais os seres humanos podem lidar com a baixa pressão de oxigênio na altitude elevada. Para ilustrar a adaptação cultural (tecnológica), pensemos em uma cabine pressurizada de avião equipada com másca-ras de oxigênio. Existem três maneiras de se adaptar biologicamente à altitude: adapta-ção genética, adaptação fisiológica de longo prazo e adaptação fisiológica de curto prazo. Primeiro, populações nativas de áreas de alti-tude elevada, como os Andes, no Peru, e os Himalaias, no Tibete e no Nepal, parecem ter adquirido certas vantagens genéticas para viver nesse ambiente. É provável que a ten-dência andina de desenvolver peito e pul-mões volumosos tenha base genética. Em se-gundo lugar, independentemente dos seus genes, as pessoas que crescem em uma altitu-de elevada se tornam fisiologicamente mais eficientes naqueles lugares do que pessoas geneticamente semelhantes que cresceram ao nível do mar, ilustrando adaptação fisio-lógica de longo prazo durante o crescimento

TABELA 1.1 Formas de adaptação cultural e biológica (a altitude)

FORMA DE ADAPTAÇÃO TIPO DE ADAPTAÇÃO EXEMPLO

Tecnologia Cultural Cabine de avião pressurizada com máscaras de oxigênio

Adaptação genética Biológica “Peito de barril”, maiores, de (ocorre ao longo de gerações) nativos de grande altitude

Adaptação fisiológica de longo Biológica Sistema respiratório mais prazo (ocorre durante o crescimento eficiente para extrair oxigênio e desenvolvimento do organismo do ar rarefeito individual)

Adaptação fisiológica de curto Biológica Aceleração dos batimentos prazo (ocorre espontaneamente cardíacos, hiperventilação quando o organismo individual entra em novo ambiente)

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e o desenvolvimento do corpo. Terceiro, os seres humanos também têm capacidade para adaptação fisiológica de curto prazo ou ime-diata. Portanto, quando quem vive nas planí-cies chega a terras altas, sua respiração e seus batimentos cardíacos se aceleram imediata-mente.

A hiperventilação aumenta o oxigênio nos pulmões e artérias. Como o pulso tam-bém aumenta, o sangue chega aos tecidos mais depressa. Todas essas respostas adap-tativas variadas – culturais e biológicas – al-cançam um único objetivo: manter o forne-cimento adequado de oxigênio para o corpo.

No desenrolar da história humana, os meios sociais e culturais de adaptação se tornaram cada vez mais importantes. Nesse processo, os seres humanos criaram diver-sas formas de enfrentar a gama de ambien-tes que ocuparam no tempo e no espaço. O ritmo da adaptação e da mudança cultural tem se acelerado, em particular durante os últimos 10 mil anos. Durante milhões de anos, caçar e coletar as dádivas da natureza – o forrageio – foi a base única da subsistên-cia humana, mas a produção de alimentos (o cultivo de plantas e a domesticação de animais), que teve origem cerca de 12 mil a 10 mil anos atrás, levou apenas alguns mi-lhares de anos para substituir a maioria das áreas de forrageio. Entre 6000 e 5000 a.P. (antes do presente), surgiram as primeiras civilizações, que eram sociedades grandes, poderosas e complexas, como o Antigo Egito, que conquistaram e governaram grandes áreas geográficas.

Muito mais recentemente, a expansão da produção industrial afetou de forma profunda a vida humana. Ao longo da his-tória da humanidade, grandes inovações se espalharam à custa das anteriores, e cada re-volução econômica tem tido repercussões sociais e culturais. A economia global e as comunicações de hoje ligam todas as pes-soas contemporâneas, de forma direta ou indireta, no sistema-mundo moderno. As pessoas devem lidar com as forças geradas

por sistemas cada vez maiores – região, nação e mundo. O estudo dessas adaptações contemporâneas cria novos desafios para a antropologia: “As culturas dos povos do mundo precisam ser constantemente redes-cobertas à medida que essas pessoas as rein-ventam ao transformar as circunstâncias históricas” (Marcus e Fischer, 1986, p. 24).

ANTROPOLOGIA GERAL

A disciplina acadêmica da antropologia, também conhecida como antropologia geral ou antropologia de “quatro campos”, inclui quatro subdisciplinas ou subcampos principais: sociocultural, arqueológica, bio-lógica e linguística. (Daqui em diante, a an-tropologia cultural de mais curto prazo será usada como sinônimo de “antropologia so-ciocultural”.) Entre os subcampos, a antro-pologia cultural é a que tem o maior núme-ro de membros, e a maioria dos departa-mentos de antropologia ministra disciplinas dos quatro campos.

Há razões históricas para a inclusão de quatro subcampos em uma única disci-plina. A origem da antropologia como campo científico, especificamente a antro-pologia nos Estados Unidos, pode ser iden-tificada no século XIX. Os primeiros antro-pólogos do país estavam preocupados so-bretudo com a história e as culturas dos povos nativos da América do Norte. O inte-resse nas origens e na diversidade dos índios norte-americanos reuniu estudos sobre costumes, vida social, língua e característi-cas físicas. Os antropólogos ainda conside-ram questões como: de onde vieram os ín-dios da América do Norte? Quantas ondas de migração os trouxeram ao Novo Mundo? Quais são as relações linguísticas, culturais e biológicas entre esses povos, e entre eles e a Ásia? (Observe que não se desenvolveu uma antropologia de quatro campos unifi-cada na Europa, onde os subcampos ten-dem a existir de modo separado.)

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Também há razões lógicas para a uni-dade da antropologia norte-americana. Cada subcampo trata da variação no tempo e no espaço (i.e., em diferentes áreas geo-gráficas). Os antropólogos culturais e os ar-queólogos estudam (entre muitos outros temas) as mudanças na vida social e nos costumes. Os arqueólogos lançam mão de estudos de sociedades vivas para imaginar como poderia ter sido a vida no passado. Os bioantropólogos examinam mudanças evo-lutivas na forma física, por exemplo, altera-ções anatômicas que poderiam ter sido as-sociadas à origem do uso de ferramentas ou da linguagem. Os antropólogos linguistas podem reconstruir os fundamentos dos idiomas antigos estudando os modernos.

Os subcampos influenciam uns aos outros à medida que antropólogos falam entre si, leem livros e revistas e se reúnem em organizações profissionais. A antropo-logia geral explora os conceitos básicos da biologia, da sociedade e da cultura huma-nas e considera suas inter-relações. Os an-tropólogos compartilham determinados pressupostos essenciais, dos quais talvez o mais fundamental seja a ideia de que as conclusões sólidas sobre a “natureza huma-na” não podem ser derivadas do estudo de uma única população, nação, sociedade ou tradição cultural, sendo essencial uma abordagem comparativa e intercultural.

As forças culturais formam a biologia humana

A perspectiva comparativa e biocultural da antropologia reconhece que as forças cultu-rais moldam constantemente a biologia hu-mana. (O termo “biocultural” se refere a inclusão e combinação das perspectivas biológica e cultural e a abordagens para co-mentar ou resolver um determinado pro-blema ou questão.) A cultura é uma força ambiental fundamental na determinação de como os corpos humanos crescem e se de-

senvolvem. As tradições culturais promo-vem certas atividades e habilidades, desen-corajando outras, e estabelecem padrões de bem-estar e atratividade físicos. As ativida-des físicas, incluindo esportes, que são in-fluenciadas pela cultura, ajudam a moldar o corpo. Por exemplo, as meninas norte-ame-ricanas são estimuladas a praticar competi-ções que envolvem patinação artística, gi-nástica, atletismo, natação, mergulho e muitos outros esportes e, portanto, ter um bom desempenho nessas atividades; as bra-sileiras, ainda que se destaquem nos espor-tes coletivos, como basquete e vôlei, não se saem tão bem em esportes individuais, como as norte-americanas e canadenses. Por que as pessoas são estimuladas a se no-tabilizar como atletas em alguns países, mas não em outros? Por que as pessoas em al-guns países investem tanto tempo e esforço em esportes competitivos a ponto de que seus corpos se alterem significativamente como resultado disso?

Em seus primórdios, a antropologia nos Es-tados Unidos estava preocupada sobretudo com a história e as culturas dos povos nati-vos norte-americanos. Ely S. Parker, ou Ha--sa-no-an-da, foi um indígena Seneca que deu contribuições importantes ao início da antropologia. Parker também foi Comissário de Assuntos Indígenas dos Estados Unidos.

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Padrões culturais de atratividade e ade-quação influenciam a participação e o de-sempenho nos esportes. Os norte-america-nos correm ou nadam não apenas para com-petir, mas para se manter em forma e em boas condições físicas. Os padrões de beleza do Brasil tradicionalmente aceitaram mais gordura, em especial nas nádegas e nos qua-dris das mulheres. Os homens brasileiros têm obtido algum sucesso internacional na natação e em corridas, mas o Brasil raramen-te envia nadadoras ou corredoras às Olim-píadas. Uma das razões para as brasileiras evitarem a natação competitiva podem ser os efeitos que o esporte tem sobre a modela-ção do corpo.

Anos de natação esculpem um físico di-ferenciado: torso superior alargado, pescoço grosso e ombros e costas robustos. As nada-doras de sucesso tendem a ser grandes, fortes e volumosas. Os países que mais produzem atletas femininas da natação são Estados Uni-dos, Canadá, Austrália, Alemanha, os países escandinavos, a Holanda e a ex-União Sovié-tica, onde esse tipo de corpo não é tão estig-matizado como em países latinos. As nada-doras desenvolvem corpos rígidos, mas a cul-tura brasileira diz que as mulheres devem ser delicadas, com quadris e nádegas grandes, sem ombros largos. Muitas jovens nadadoras do Brasil optam por abandonar o esporte para manter o corpo “feminino” ideal.

Quando você estava crescendo, qual era o esporte de que mais gostava: futebol, natação, futebol americano, beisebol, tênis, golfe ou algum outro (ou talvez nenhum)? Isso se dá em função de “quem você é” ou por causa das oportunidades que teve para praticar e participar nessa atividade especí-fica quando era criança? Quando você era pequeno, talvez os seus pais tenham lhe dito que tomar leite e comer legumes iriam aju-dá-lo a ficar “grande e forte”. Eles provavel-mente não reconheceram de forma imedia-ta o papel que a cultura cumpre na defini-ção de corpos, personalidades e saúde pessoal. Se a nutrição é importante para o

crescimento, o mesmo se aplica às orienta-ções culturais. Qual é o comportamento adequado a meninos e meninas? Que tipo de trabalho os homens e as mulheres devem fazer? Onde as pessoas deveriam viver? Quais são os usos apropriados do seu tempo de lazer? Que papel deve cumprir a religião? Como as pessoas devem se relacionar com seus parentes, amigos e vizinhos? Embora nossos atributos genéticos proporcionem uma base para o nosso crescimento e desen-volvimento, a biologia humana é bastante plástica, isto é, maleável. A cultura é uma força ambiental que afeta o nosso desenvol-vimento, tanto quanto a nutrição, o calor, o frio e a altitude, e também orienta o nosso crescimento emocional e cognitivo, ajudan-do a determinar o tipo de personalidade que temos como adultos.

O Brasil raramente envia nadadoras para as Olimpíadas. Uma exceção é Fabíola Molina, que competiu nas Olimpíadas de 2000 e 2008. Nessa foto, em maio de 2009, Fabíola dá um mergulho vencedor na final feminina dos 100 metros – nado costas, do Troféu Maria Lenk, no Rio de Janeiro. De que forma anos de na-tação competitiva podem afetar o fenótipo?

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AS SUBDISCIPLINAS DA ANTROPOLOGIA

Antropologia cultural

A antropologia cultural é o estudo da so-ciedade e da cultura humanas, o subcampo que descreve, analisa, interpreta e explica as semelhanças e diferenças sociais e culturais. Para estudar e interpretar a diversidade cul-tural, os antropólogos culturais realizam dois tipos de atividade: etnografia (com base no trabalho de campo) e etnologia (com base na comparação intercultural). A etnografia fornece uma descrição de deter-minada comunidade, sociedade ou cultura. Durante o trabalho de campo etnográfico, o etnógrafo reúne dados que organiza, des-creve, analisa e interpreta para construir e apresentar essa descrição, que pode se dar na forma de livro, artigo ou filme. Tradicio-nalmente, os etnógrafos têm morado em pequenas comunidades e estudado com-portamentos, crenças, costumes, vida so-cial, atividades econômicas, política e reli-gião locais (ver Wolcott, 2008).

A perspectiva antropológica derivada do trabalho de campo etnográfico costuma ser bastante diferente da que deriva da eco-nomia ou da ciência política. Esses campos trabalham com organizações e políticas na-cionais e oficiais e, muitas vezes, com elites, mas os grupos que os antropólogos têm es-tudado costumam ser relativamente pobres e desprovidos de poder. Os etnógrafos ob-servam muitas práticas discriminatórias voltadas a essas pessoas, que enfrentam es-cassez de alimentos, deficiências alimenta-res e outros aspectos da pobreza. Os cientis-tas políticos tendem a estudar os programas que os planejadores nacionais desenvolvem, enquanto os antropólogos descobrem como esses programas funcionam em nível local.

As culturas não são isoladas. Como observado por Franz Boas (1940/1966) há muitos anos, o contato entre tribos vizinhas sempre existiu e se estendeu sobre áreas

enormes. “As populações humanas cons-troem suas culturas em interação umas com as outras, e não isoladamente” (Wolf, 1982, p. ix). Moradores de aldeias partici-pam cada vez mais de eventos regionais, na-cionais e mundiais. A exposição a forças ex-ternas se dá pelos meios de comunicação de massa, pela migração e pelo transporte mo-derno. A cidade e a nação cada vez mais in-vadem as comunidades locais com a chega-da de turistas, agentes de desenvolvimento, autoridades governamentais e religiosas e candidatos a cargos políticos. Essas ligações são componentes importantes de sistemas regionais, nacionais e internacionais de po-lítica, economia e informações. Esses siste-mas maiores afetam mais e mais as pessoas e os lugares tradicionalmente estudados pela antropologia. O estudo desses vínculos e sistemas faz parte do tema da antropolo-gia moderna.

A etnologia examina, interpreta, ana-lisa e compara os resultados da etnografia – os dados coletados em diferentes sociedades – e os usa para comparar, contrastar e fazer generalizações sobre a sociedade e a cultura. Olhando além do particular e vislumbran-do o mais geral, os etnólogos tentam identi-ficar e explicar as diferenças e similaridades culturais, testar hipóteses e construir teorias para melhorar nossa compreensão de como funcionam os sistemas sociais e culturais. A etnologia obtém seus dados para compara-ção não apenas da etnografia, mas também de outros subcampos, em especial da antro-pologia arqueológica, que reconstrói os sis-temas sociais do passado. (A Tabela 1.2 re-sume os principais contrastes entre etno-grafia e etnologia.)

Antropologia arqueológica

A antropologia arqueológica (dito de forma mais simples, “arqueologia”) recons-trói, descreve e interpreta o comportamen-to e os padrões culturais humanos por meio

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de restos materiais. Em locais onde as pes-soas vivem ou viveram, os arqueólogos en-contram artefatos – itens materiais que os seres humanos produziram, usaram ou modificaram, como ferramentas, armas, acampamentos, construções e lixo.

Os restos de vegetais e animais e o lixo antigo contam histórias sobre consumo e atividades. Os grãos selvagens e os domesti-cados têm características diferentes que permitem que os arqueólogos distingam entre coleta e cultivo. O exame de ossos de animais revela a idade dos animais abatidos e fornece outras informações úteis para de-terminar se as espécies eram selvagens ou domesticadas.

Analisando esses dados, os arqueólogos respondem a várias perguntas sobre as anti-gas economias. O grupo obtinha sua carne da caça ou domesticava e criava animais, matando apenas os de certa idade e determi-nado sexo? Os alimentos vegetais vinham de plantas silvestres ou da semeadura, cuidado e colheita dos cultivos? Os moradores produ-ziam, comercializavam ou compravam de-terminados itens? As matérias-primas esta-vam disponíveis localmente? Se não, de onde vinham? A partir dessas informações, os ar-queólogos reconstroem os padrões de pro-dução, comércio e consumo.

Os arqueólogos passaram muito tempo estudando fragmentos de cerâmica, pois são mais duráveis do que muitos ou-tros artefatos, como os têxteis e a madeira. A quantidade de fragmentos de cerâmica permite estimar tamanho e densidade da

população. A descoberta de que os ceramis-tas usavam materiais que não estavam dis-poníveis localmente sugere sistemas de co-mércio. Semelhanças na fabricação e deco-ração em locais diferentes podem ser prova de conexões culturais. Grupos que tenham vasilhames semelhantes podem ter relações históricas e, talvez, compartilhem antepas-sados culturais, tenham negociado entre si ou pertençam ao mesmo sistema político.

Muitos arqueólogos examinam a pa-leoecologia. A ecologia é o estudo das inter--relações entre seres vivos em um ambiente. Juntos, organismos e ambiente constituem um ecossistema, uma configuração de flu-xos de energia e intercâmbios que segue de-terminados padrões. A ecologia humana es-tuda os ecossistemas que incluem pessoas, enfocando as formas como o uso humano “da natureza influencia a organização social e os valores culturais e por eles é influencia-do” (Bennett, 1969, p. 10-11). A paleoecolo-gia observa os ecossistemas do passado.

Além de reconstruir padrões ecológi-cos, os arqueólogos podem inferir transfor-mações culturais, por exemplo, ao observar mudanças no tamanho e no tipo dos sítios e na distância entre eles. Uma cidade grande se desenvolve em uma região onde, alguns séculos antes, só existiam cidadezinhas, al-deias e vilarejos. O número de níveis de as-sentamento (cidade grande ou pequena, povoado, aldeia) em uma sociedade é uma medida da complexidade social. As cons-truções dão pistas sobre as características políticas e religiosas. Templos e pirâmides

TABELA 1.2 Etnografia e etnologia – duas dimensões da antropologia cultural

ETNOGRAFIA ETNOLOGIA

Exige trabalho de campo para coletar dados Utiliza os dados coletados por uma série de pesquisadores

Muitas vezes descritiva Normalmente sintética

Específica de um grupo ou comunidade Comparativa/intercultural

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sugerem que uma antiga sociedade tinha uma estrutura de autoridade capaz de mo-bilizar o trabalho necessário para construir esses monumentos. A presença ou a ausên-cia de determinadas estruturas, como as pi-râmides do Egito e do México antigos, reve-la diferenças de funções entre os assenta-mentos. Por exemplo, algumas cidades eram lugares a que as pessoas iam para as-sistir a cerimônias, outras eram locais de se-pultamento e outras, ainda, comunidades agrícolas.

Os arqueólogos também reconstroem os padrões de comportamento e estilos de vida do passado fazendo escavações, ou seja, cavando uma sucessão de níveis em um sítio. Em uma determinada área, ao longo do tempo, os assentamentos podem mudar de forma e propósito, assim como as conexões entre eles. As escavações podem documentar alterações em atividades eco-nômicas, sociais e políticas.

Embora sejam mais conhecidos pelo estudo da pré-história, isto é, o período anterior à invenção da escrita, os arqueó-logos também estudam as culturas dos povos históricos e até mesmo dos que ainda vivem (ver Sabloff, 2008). Estudando na-vios afundados na costa da Flórida, arqueó-logos subaquáticos foram capazes de verifi-car as condições de vida nos navios que trouxeram ancestrais afro-americanos para o Novo Mundo, na condição de pessoas es-cravizadas. Em um projeto de pesquisa que iniciou em 1973, em Tucson, Arizona, o ar-queólogo William Rathje aprendeu sobre a vida contemporânea com o estudo do lixo moderno. O valor da “lixologia” (garbolo-gy), como Rathje a chama, é que ela fornece “evidências do que as pessoas faziam, e não do que elas acham que faziam, do que acham que deveriam ter feito ou do que o entrevistador acha que elas deveriam ter feito” (Harrison, Rathje e Hughes, 1994, p.

Uma equipe de arqueólogos trabalha em Harappa, onde esteve uma antiga civilização do Vale do Indo, que remonta a aproximadamente 4.800 anos.

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108). O que as pessoas informam pode ser muito diferente do seu comportamento real, como revelado pela lixologia. Por exemplo, o lixólogos descobriram que os três bairros de Tucson que relataram o menor consumo de cerveja tinham, na ver-dade, o maior número de latas de cerveja descartadas por domicílio (Podolefsky e Brown, 1992, p. 100)! A lixologia de Rathje também mostrou ideias equivocadas sobre a quantidade de diferentes tipos de lixo que está em aterros sanitários: embora a maio-ria das pessoas considerasse as embalagens de fast-food e as fraldas descartáveis como os grandes problemas em termos de lixo, na verdade, elas eram relativamente insignifi-cantes em comparação com o papel, in-cluindo o papel reciclável, que não seria prejudicial ao meio ambiente (Rathje e Murphy, 2001).

Antropologia biológica ou física

O tema da antropologia biológica, ou físi-ca, é a diversidade biológica humana no tempo e no espaço. O foco na variação bio-lógica une cinco interesses especiais na an-tropologia biológica:

1. Evolução humana segundo a revela o registro fóssil (paleoantropologia).

2. Genética humana. 3. Crescimento e desenvolvimento hu-

manos.

4. Plasticidade biológica humana (capaci-dade do corpo para mudar ao enfrentar estresse, como calor, frio e altitude).

5. A biologia, a evolução, o comporta-mento e a vida social de macacos, sí-mios e outros primatas não humanos.

Esses interesses ligam a antropologia física a outros campos: biologia, zoologia, geologia, anatomia, fisiologia, medicina e saúde pública. A osteologia – o estudo dos ossos – ajuda os paleoantropólogos, que examinam crânios, dentes e ossos, a identi-ficar os ancestrais humanos e acompanhar as mudanças na anatomia ao longo do tempo. O paleontólogo é um cientista que estuda os fósseis. Um paleoantropólogo é uma espécie de paleontólogo que estuda o registro fóssil da evolução humana. Os pa-leoantropólogos muitas vezes trabalham em conjunto com os arqueólogos, que estu-dam artefatos, na reconstrução de aspectos biológicos e culturais da evolução humana. É comum serem encontrados fósseis e fer-ramentas juntos. Diferentes tipos de ferra-mentas fornecem informações sobre os há-bitos, os costumes e o estilo de vida dos hu-manos ancestrais que as usavam.

Mais de um século atrás, Charles Dar-win percebeu que a variedade que existe em toda a população permite que alguns indi-víduos (com características privilegiadas) se saiam melhor do que outros na sobrevi-vência e na reprodução. A genética, que se desenvolveu mais tarde, ajuda a esclarecer

Aplicando a antropologia à cultura popularINDIANA JONES

Pensemos em qualquer um dos quatro filmes de Indiana Jones, dirigidos por Steven Spielberg. Os arqueó-logos costumam se queixar de que esses filmes distorcem a percepção pública de seu campo de trabalho, retratando-os como saqueadores gananciosos, aventureiros, amorais e não científicos. De que forma India-na Jones influenciou sua opinião sobre a arqueologia, se é que houve alguma influência? Falando em ter-mos mais gerais, as imagens dos arqueólogos na mídia fazem você ter uma opinião melhor ou pior do campo da arqueologia?

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as causas e a transmissão dessa variedade. No entanto, não são apenas os genes que causam a variedade. Durante a vida de qualquer indivíduo, o ambiente funciona junto com a hereditariedade para determi-nar as características biológicas. Por exem-plo, pessoas com tendência genética a ser altas serão menores se forem mal alimenta-das na infância. Assim, a antropologia bio-lógica também investiga a influência do ambiente sobre o corpo à medida que o in-divíduo cresce e amadurece. Entre os fato-res ambientais que influenciam o corpo em sua evolução estão altitude, nutrição, tem-peratura e doenças, bem como os fatores culturais, como os padrões de atratividade.

A antropologia biológica (junto com a zoologia) também inclui a primatologia. Os primatas incluem os nossos parentes mais próximos: símios e macacos. Os primatólo-gos estudam a biologia, a evolução, o com-portamento e a vida social daqueles prima-tas, muitas vezes em seus próprios ambien-tes naturais. A primatologia auxilia a paleoantropologia, porque o comporta-mento dos primatas pode ajudar a explicar o início do comportamento humano e da natureza humana.

Antropologia linguística

Não sabemos (e é provável que nunca che-garemos a saber) quando nossos ancestrais adquiriram a capacidade de falar, embora os bioantropólogos tenham examinado a anatomia do rosto e do crânio para especu-lar sobre a origem da linguagem, e os pri-matólogos descrito os sistemas de comuni-cação de macacos e símios. Sabemos que existem línguas complexas e gramatical-mente bem desenvolvidas há milhares de anos. A antropologia linguística oferece mais um exemplo do interesse da antropo-logia na comparação, na mudança e na va-riação. A antropologia linguística estuda a língua em seu contexto social e cultural, no

espaço e no tempo. Alguns antropólogos linguistas fazem inferências sobre as carac-terísticas universais da linguagem, ligadas, talvez, a uniformidades no cérebro huma-no; outros reconstroem línguas antigas comparando suas descendentes contempo-râneas e assim fazem descobertas sobre a história; outros, ainda, estudam as diferen-ças linguísticas para descobrir percepções variadas e padrões de pensamento em cul-turas diferentes.

A linguística histórica considera a va-riação no tempo, como as mudanças em sons, gramática e vocabulário entre o inglês médio (falado desde aproximadamente 1050-1550 d.C.) e o inglês moderno. A so-ciolinguística investiga as relações entre va-riações sociais e linguísticas. Nenhuma lín-gua é um sistema homogêneo em que todos falam da mesma maneira. De que formas os diferentes falantes usam um determinado idioma? Como as características linguísticas se relacionam com os fatores sociais, in-cluindo as diferenças de classe e gênero (Tannen, 1990)? Uma das razões para a va-riação é a geografia, como acontece com os dialetos e sotaques regionais. A variação lin-guística também se expressa no bilinguismo dos grupos étnicos. Os antropólogos lin-guistas e culturais colaboram no estudo de ligações entre a língua e muitos outros as-pectos da cultura, por exemplo, a forma como as pessoas avaliam parentesco e como percebem e classificam as cores.

ANTROPOLOGIA E OUTROS CAMPOS ACADÊMICOS

Como já mencionado, uma das principais diferenças entre a antropologia e os outros campos acadêmicos é o holismo, a mistura singular que a antropologia faz de perspec-tivas biológicas, sociais, culturais, linguís-ticas, históricas e contemporâneas. Para-doxalmente, embora diferencie a antropo-logia, essa amplitude é o que também a

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conecta a muitas outras disciplinas. Técni-cas usadas para datar fósseis e artefatos che-garam à antropologia vindas da física, da química e da geologia. Como os restos de plantas e animais são encontrados muitas vezes com ossos humanos e artefatos, os an-tropólogos colaboram com botânicos, zoó-logos e paleontólogos.

Como é uma disciplina ao mesmo tempo científica e humanista, a antropolo-gia tem ligações com muitas outras áreas acadêmicas. É uma ciência – um “campo de estudo ou corpo de conhecimento sistemá-tico que visa, por meio de experimentação, observação e dedução, produzir explicações confiáveis de fenômenos, com referência no mundo material e físico” (Webster’s New World Encyclopedia, 1993, p. 937).

Os capítulos seguintes apresentam a antropologia como uma ciência humanista dedicada a descobrir, descrever, compreen-der e explicar semelhanças e diferenças no tempo e no espaço entre os seres humanos e nossos antepassados. Clyde Kluckhohn (1944) descreveu a antropologia como “a ciência das semelhanças e diferenças huma-nas” (p. 9). Sua declaração sobre a necessi-dade desse campo ainda permanece: “A an-tropologia fornece uma base científica para lidar com o dilema crucial do mundo de hoje: como povos de aparência diferente, línguas ininteligíveis entre si e formas dife-rentes de vida podem conviver pacifica-mente?” (p. 9). A antropologia elaborou um impressionante corpo de conhecimento que este livro tenta sintetizar.

Além de suas ligações com as ciências naturais (p. ex., geologia, zoologia) e as ciên cias sociais (p. ex., sociologia, psicolo-gia), a antropologia também tem fortes li-gações com as humanidades, que incluem inglês, literatura comparada, temas clássi-cos, folclore, filosofia e artes. Essas áreas es-tudam idiomas, textos, filosofias, artes, mú-sica, atuações e outras formas de expressão criativa. A etnomusicologia, que estuda as formas de expressão musical em nível mun-

dial, tem uma ligação particularmente ínti-ma com a antropologia. Também está ligada ao folclore, o estudo sistemático de histó-rias, mitos e lendas de diversas culturas. Po-de-se argumentar que a antropologia está entre os mais humanistas de todos os cam-pos acadêmicos por causa de seu respeito fundamental à diversidade humana. Os an-tropólogos ouvem, registram e representam as vozes de uma enorme quantidade de na-ções e culturas. A antropologia valoriza o conhecimento local, visões de mundo dife-rentes e distintas filosofias. A antropologia cultural e a antropologia linguística, em particular, trazem uma perspectiva compa-rada e não elitista sobre formas de expres-são criativa, incluindo língua, arte, narrati-vas, música e dança, vistas em seu contexto social e cultural.

ANTROPOLOGIA APLICADA

A antropologia não é uma ciência do exóti-co realizada por estudiosos excêntricos em torres de marfim; ela tem muito a dizer ao público. A principal organização de profis-sionais da antropologia, a American An-thropological Association (AAA), assumiu formalmente um papel de serviço público ao reconhecer que a área tem duas dimen-sões:

1. antropologia acadêmica ou geral e 2. antropologia aplicada ou profissional.

Esta última se refere à aplicação de dados, perspectivas, teoria e métodos antro-pológicos para identificar, avaliar e resolver problemas sociais contemporâneos. Como afirma Erve Chambers (1987, p. 309), a an-tropologia aplicada é o “campo de pesquisa que trata das relações entre o conhecimento antropológico e os usos desse conhecimento no mundo para além da antropologia”. Cada vez mais antropólogos dos quatro subcam-pos trabalham nessas áreas “aplicadas”, como

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ANTROPOLOGIA HOJE

Filho de antropóloga é eleito presidente

É sabido que Barack Obama é filho de pai que-niano e mãe branca norte-americana, do Kansas. Menos reconhecido é o fato de que o 44o presi-dente dos Estados Unidos é filho de uma antro-póloga, a Dra. Stanley Ann Dunham Soetoro (em geral chamada apenas de Ann Dunham). Essa descrição centra-se em sua vida e sua atração pela diversidade, que a levou a trabalhar em antropologia. Antropóloga sociocultural por for-mação, Dunham trabalhou com microfinanças e questões socioeconômicas que afetam as mulheres da Indonésia, um exemplo de aplica-ção da antropologia para identificar e resolver problemas contemporâneos. Em outras pala-vras, ela fazia, ao mesmo tempo, antropologia cultural e aplicada.

Os antropólogos estudam a humanidade em tempos e lugares variados e em um mundo em rápida transformação. Em virtude de suas ori-gens, sua enculturação e sua experiência no exterior, Barack Obama é um excelente símbolo da diversidade e das interconexões que caracte-rizam um mundo desse tipo. Além disso, sua eleição é uma homenagem aos Estados Unidos como país cada vez mais diversificado.

Na versão resumida da história de Barack Obama, sua mãe é simplesmente a mulher branca do Kan-sas... Durante a campanha eleitoral, ele a chamou de sua “mãe solteira”. No entanto, nenhuma dessas descrições consegue retratar a vida não conven-cional de Stanley Ann Dunham Soetoro, quem mais influenciou Obama entre seus pais.

No Havaí, ela se casou com um estudante africano aos 18 anos. Depois, casou-se com um indonésio, mudou-se para Jacarta, tornou-se antropóloga, escreveu uma dissertação de 800 pági-nas sobre a atividade dos ferreiros camponeses de Java, trabalhou para a Fundação Ford, defen-deu o trabalho das mulheres e ajudou a levar o microcrédito aos pobres do mundo.

Ela tinha grandes expectativas para seus filhos. Na Indonésia, acordava o filho às 4h da manhã para que fizesse cursos de inglês por correspondência antes de ir à escola. Trazia para casa grava-ções de Mahalia Jackson, discursos do reverendo Dr. Martin Luther King Jr. e, quando Obama pediu para ficar no Havaí para cursar o ensino médio, em vez de voltar à Ásia, ela aceitou viver longe dele – uma decisão que sua filha diz ter sido uma das mais difíceis na vida de Stanley Ann.

“Ela achava que, de alguma forma, vagando por territórios desconhecidos, poderíamos trope-çar em algo que, em um instante, pareceria representar quem somos no íntimo”, disse Maya Soe-toro-Ng, meia-irmã de Obama. “Essa era basicamente a sua filosofia de vida: não se limitar por medo de definições estreitas, não construir muros ao redor de nós mesmos e fazer o melhor que pudermos para encontrar a afinidade e a beleza em lugares inesperados”.

Barack Obama... pouco viu o pai após os 2 anos de idade. Embora seja impossível precisar a influência de um pai sobre a vida de um filho, as pessoas que conheceram bem Stanley Ann afir-mam ver sua influência de forma evidente em Obama.

(continua)

O menino Barack Obama com sua mãe, a antropóloga Ann Dunham.

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ANTROPOLOGIA HOJE

Filho de antropóloga é eleito presidente (continuação)

“Ela era uma grande pensadora”, disse Nancy Barry, ex-presidente do Banco Mundial das Mulheres, uma rede internacional de fornecedores de microfinanças na qual Soetoro trabalhou em Nova York no início da década de 1990.

Em uma aula de russo na Universidade do Havaí, Ann Duham conheceu o primeiro aluno afri-cano da faculdade, Barack Obama. Eles se casaram e tiveram um filho em agosto de 1961, uma época em que o casamento inter-racial era raro nos Estados Unidos.

O casamento durou pouco. Em 1963, Obama partiu para Harvard, deixando a esposa e o filho. Ela então se casou com o estudante indonésio Lolo Soetoro. Quando ele foi chamado a seu país, em 1966, após a agitação em torno da ascensão de Suharto, Stanley Ann e Barack foram junto com ele.

Seu segundo casamento também acabou, na década de 1970. Stanley Ann queria trabalhar, disse um amigo, e seu marido queria mais filhos. Ele ia se tornando mais norte-americano, ela disse uma vez, enquanto ela se tornava mais javanesa. “Existe uma crença javanesa de que, se você estiver casado com alguém e não funcionar, a situação vai deixá-la doente”, disse Alice G. Dewey, antropóloga e amiga. “É simplesmente uma idiotice permanecer casada.”

Em 1974, Stanley Ann estava de volta a Honolulu, fazendo pós-graduação e criando Barack e Maya, nove anos mais nova. Quando ela decidiu retornar à Indonésia, três anos mais tarde, para fazer seu trabalho de campo, Barack decidiu não ir.

Fluente em indonésio, Stanley Ann mudou-se com Maya primeiro para Yogyakarta, o centro do artesanato javanês. Tendo sido tecelã na faculdade, ela ficou fascinada com o que Soetoro-Ng chama de “as deslumbrantes minúcias da vida”. Esse interesse inspirou seu estudo sobre indústrias de aldeia, que se tornou a base da sua tese de doutorado em 1992.

“Ela adorava morar em Java”, disse a Dra. Dewey, que se lembra de acompanhar Stanley Ann até uma aldeia onde se trabalhava com metal. “As pessoas diziam: ‘Oi, tudo bom?’. E ela dizia: ‘Como vai a sua esposa? A sua filha ganhou nenê?’. Eles eram amigos. Aí ela pegava o caderno e dizia: ‘Quantos de vocês têm energia elétrica? Você está tendo problemas para conseguir ferro?’”.

Ela se tornou consultora da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional na criação de um programa de crédito em aldeias e, em seguida, responsável de programas da Fundação Ford em Jacarta, especializada em trabalho de mulheres. Mais tarde, foi consultora no Paquistão e, em seguida, trabalhou no banco mais antigo da Indonésia, naquilo que é descrito como um programa mundial de microfinanças sustentáveis, criando serviços como crédito e pou-pança para os pobres.

Os visitantes sempre frequentavam o escritório dela na Fundação Ford, no centro de Jacarta, e sua casa em um bairro ao sul, onde mamoeiros e bananeiras cresciam no jardim e eram servidos pratos javaneses no jantar. Os seus convidados eram líderes do movimento indonésio de direitos humanos, gente de organizações de mulheres, representantes de grupos comunitários que faziam desenvolvimento de base.

Soetoro-Ng se lembra de conversas com a mãe sobre filosofia ou política, livros, motivos eso-téricos em trabalhos indonésios em madeira.

“Ela nos deu um entendimento muito amplo do mundo”, disse sua filha. “Ela detestava a into-lerância e estava muito determinada a ser lembrada por uma vida de serviço e achava que servir era de fato a verdadeira medida de uma vida”. Muitos de seus amigos veem seu legado em Obama – na autoconfiança e motivação que ele demonstra, em sua disposição para ir além dos limites e até mesmo seu conforto aparente com mulheres fortes.

Ela morreu em novembro de 1995, quando Obama estava começando sua primeira campanha para um cargo público. Depois de uma cerimônia fúnebre na Universidade do Havaí, disse um amigo, um pequeno grupo de amigos partiu de carro para o litoral sul, em Oahu. Com o vento arremessando as ondas sobre as pedras, Obama e Soetoro-Ng colocaram as cinzas de sua mãe no Pacífico, enviando-as na direção da Indonésia.

Fonte: Janny Scott, “A free-spirited wanderer who set obama’s path”, New York Times, 13 de março de 2008. Direitos autorais © 2008 The New York Times. Co. Reproduzido com permissão.

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saúde pública, planejamento familiar, negó-cios, desenvolvimento econômico e gestão de recursos culturais.

A antropologia aplicada abrange qual-quer uso de conhecimentos e/ou técnicas dos quatro subcampos para identificar, ava-liar e resolver problemas práticos. Em função de sua amplitude, a antropologia tem muitas aplicações. Por exemplo, os profissionais da antropologia da saúde aplicada consideram os contextos socioculturais e biológicos e as implicações de doenças e problemas de saúde. As percepções de saúde boa e ruim, junto com ameaças à saúde e problemas reais, diferem entre as sociedades.

Vários grupos étnicos reconhecem di-ferentes doenças, sintomas e causas, e de-senvolveram diferentes sistemas de saúde e estratégias de tratamento.

A arqueologia aplicada, em geral cha-mada de arqueologia pública, inclui ativi-dades como gestão de recursos culturais, serviços de arqueologia prestados por con-trato, programas de educação pública e preservação histórica. Um papel impor-tante para a arqueologia pública foi criado pela lei que exige a avaliação de locais ameaçados por barragens, rodovias e ou-tras atividades de construção. Decidir o que precisa ser salvo e preservar informa-ções importantes sobre o passado quando isso não puder ser feito é o trabalho da gestão de recursos culturais (GRC). A GRC envolve não só a preservação de lo-cais, mas também permite sua destruição, se eles não forem importantes. A parte re-lativa a “gestão” diz respeito a avaliação e

tomada de decisão. Os gestores de recursos culturais trabalham para órgãos federais, estaduais e municipais e para outros clien-tes. Os antropólogos culturais que fazem trabalho aplicado por vezes trabalham com os arqueólogos públicos, avaliando os problemas humanos gerados pela mudan-ça proposta e determinando como podem ser reduzidos. A Tabela 1.3 relaciona os quatro subcampos da antropologia a suas duas dimensões.

RESUMO

1. A antropologia é o estudo holístico, biocultural e comparativo da humani-dade. É a exploração sistemática da di-versidade biológica e cultural humana no tempo e no espaço. Examinando as origens e as alterações da biologia e da cultura humanas, a antropologia apre-senta explicações para semelhanças e diferenças entre seres humanos e suas sociedades.

2. Os quatro subcampos da antropologia geral são (sócio) cultural, arqueológi-co, biológico e linguístico. Todos consi-deram a variação no tempo e no es-paço. Cada um também examina a adaptação – o processo pelo qual os or- ganismos lidam com as pressões am-bientais. A perspectiva biocultural da antropologia é uma forma particular-mente eficaz de se aproximar de inter--relações entre biologia e cultura. As forças culturais moldam a biologia hu-

TABELA 1.3 Os quatro campos e as duas dimensões da antropologia

SUBCAMPOS DA ANTROPOLOGIA EXEMPLOS DE APLICAÇÃO (ANTROPOLOGIA GERAL) (ANTROPOLOGIA APLICADA)

Antropologia cultural Antropologia do desenvolvimentoAntropologia arqueológica Gestão de recursos culturais (GRC)Antropologia biológica ou física Antropologia forenseAntropologia linguística Estudo da diversidade linguística em salas de aula