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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
LUCIANA SIQUEIRA DE CARVALHO
REGULAÇÃO AUTÔNOMA E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES COMO PARÂMETROS CONTEMPORÂNEOS PARA AVALIAÇÃO DA
LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL
Rio de Janeiro2016
LUCIANA SIQUEIRA DE CARVALHO
REGULAÇÃO AUTÔNOMA E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES COMO PARÂMETROS CONTEMPORÂNEOS PARA AVALIAÇÃO DA
LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL
Tese apresentada como requisito para obtenção do título de Doutor em Direito, pela Universidade Estácio de Sá.
Orientador: Prof. Dr. Rogério José Bento Soares do Nascimento
Rio de Janeiro
2016
“O conhecimento científico é um juízo acerca de coisas universais e necessárias, e tanto as conclusões da demonstração como o conhecimento científico são derivados de primeiros princípios (pois ciência envolve apreensão de uma base racional). Desse modo, o primeiro princípio de que deriva o que é cientificamente conhecido não pode ser objeto de ciência, nem de arte, nem de sabedoria prática, pois aquilo que pode ser cientificamente conhecido pode ser demonstrado, ao passo que a arte e a sabedoria prática tratam de coisas variáveis. Tampouco esses primeiros princípios são objetos de sabedoria filosófica, pois é uma característica do filósofo buscar a demonstração de certas coisas.
Se, então, as disposições da alma pelas quais possuímos a verdade e pelas quais jamais nos enganamos a respeito de coisas invariáveis ou mesmo variáveis, são o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva, e se a disposição da alma pela qual apreendemos as primeiras causas não pode ser nenhuma das três primeiras (isto é, o conhecimento científico, a sabedoria prática e a sabedoria filosófica), resta somente uma alternativa, a saber, que é a razão intuitiva que apreende os primeiros princípios.” - Aristóteles
RESUMO
A presente tese, inserida na linha de pesquisa Acesso à Justiça e Efetividade do Processo, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá, tem por objetivo analisar a atuação da Justiça Eleitoral no Brasil, no contexto do Estado Democrático de Direito, frente aos desafios regulatórios contemporâneos para a realização de eleições íntegras. Parte-se da premissa de que o Sistema Eleitoral brasileiro sofreu mudanças inauguradas pela Constituição de 1988, que alteraram as relações envolvidas na competição política para escolha de representantes eleitos, transformando a Justiça Eleitoral em uma autoridade reguladora autônoma híbrida, com poderes regulatórios e jurisdicionais. Todavia, a nova função regulatória e as responsabilidades eleitorais conforme o novo paradigma de Estado não foram abrangidas pela legislação eleitoral infraconstitucional com a extensão necessária, circunstância que permitiu a instauração de um ciclo vicioso para a regulação eleitoral e a fragilização do sistema democrático brasileiro nos últimos anos. Com o intuito de atingir o objetivo proposto, na primeira parte da presente pesquisa, busca-se delinear o contexto para o surgimento de autoridades reguladoras autônomas no final do século XX, utilizando-se como marcos teóricos a democracia deliberativa, nos termos propostos por Habermas, a democracia reflexiva tal como apresentada por Pierre Rosanvallon e a teoria contemporânea sobre autoridades reguladoras. Na segunda parte, a pesquisa pretende discutir o objeto da regulação na atualidade, suas instituições e finalmente analisar a atuação da Justiça Eleitoral brasileira, no desempenho de suas novas atribuições constitucionais.
Palavras chaves: democracia deliberativa, Justiça Eleitoral, eleições íntegras, integridade das eleições, regulação eleitoral.
ABSTRACT
This thesis, located in the line of research on "Access to Justice and the Effectiveness of Proceedings" of the graduate law program at Universidade Estácio de Sá, aims to review the performance of the Justiça Eleitoral do Brasil (Brazilian Electoral Justice System), in the context of the Estado Democrático de Direito (Democratic Legal State), vis-à-vis the current regulatory challenges to the integrity of elections. Starting with the premise that the Brazilian Electoral System underwent changes inaugurated by the Constitution of 1988, which changed the relationships involved in the political competition for the choice of elected representatives, thereby turning the Electoral Justice System into a hybrid autonomous regulatory authority, with regulatory and jurisdictional powers. However, the new regulatory function and the electoral responsibilities pursuant to the new paradigm of the State were not covered to sufficient extent by the infraconstitutional electoral legislation, which circumstance allowed for the establishment of a vicious cycle for the electoral governance and a weakening of the Brazilian democratic system in recent years. In order to achieve the objective, in the first part of this research, we seek to outline the context for the emergence of autonomous regulatory authorities at the end of the 20th century, using as theoretical frameworks deliberative democracy, as proposed by Habermas, reflexivity democracy, as presented by Pierre Rosanvallon, and contemporary theory on regulatory authorities. In the second part, the study will discuss the object of current regulation and its institutions and then review the performance of the Brazilian Electoral Justice System vis-à-vis its new constitutional powers.
Key words: deliberative democracy, Justiça Eleitoral, electoral integrity, integrity of elections, electoral governance.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................10
PARTE I – APORTES TEÓRICOS PARA UM DIAGNÓSTICO DE LEGITIMIDADE DA ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORALNO BRASIL...................................................................................................16
1. ANÁLISE DISCURSIVA DA ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL..............171.1 Delimitação do modelo procedimental de democracia...........................................231.2 Sistema de direitos, autonomia privada e soberania popular..................................291.3 Direitos políticos, cidadania e sujeitos da democracia............................................321.3.1 Abordagem discursiva dos direitos políticos e delimitação do conteúdo
dos direitos eleitorais..............................................................................................421.3.2 Sujeitos da democracia............................................................................................491.4 Uma análise discursiva da Justiça Eleitoral.............................................................521.5 A crise do Estado de Direito, democracia deliberativa e autoridades
reguladoras...............................................................................................................60
2. DIFERENTES FORMAS DE LEGITIMIDADE E DIMENSÕESTEMPORAIS DA DEMOCRACIA...........................................................................69
2.1 Democracia representativa e novas demandas por legitimidade...................................712.2 Autoridades reguladoras independentes........................................................................822.3 Generalidade negativa e legitimidade da imparcialidade..............................................862.4 Dimensões temporais, expressões múltiplas do sujeito da democracia e
reflexividade..................................................................................................................912.5 Procedimento como meio de legitimação das ações estatais.........................................98
3. ALINHANDO CRITÉRIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DA ATIVIDADE REGULATÓRIA DA JUSTIÇA ELEITORAL.......................................................101
3.1 Sentido contemporâneo para o termo regulação...........................................................1023.2 Fundamentação teórica para a atividade regulatória....................................................1063.3 Autoridades reguladoras contemporâneas....................................................................1143.3.1 Autoridades reguladoras no estrangeiro.................................................................1163.3.2 Autoridades reguladoras no Brasil.........................................................................1193.4 Parâmetros para identificação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral.................130
PARTE II: REGULAÇÃO ELEITORAL E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES ... 136
4. GOVERNANÇA ELEITORAL, REGULAÇÃO AUTÔNOMA E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES..........................................................................................................137
4.1 Governança Eleitoral e regulação tradicional................................................................1424.2 Integridade das eleições como objeto da regulação eleitoral........................................1524.2.1 Conceito de integridade eleitoral...............................................................................1534.2.2 Porque adotar a integridade das eleições como objetivo a ser perseguido
pela regulação eleitoral.............................................................................................159
4.3 Regulação, jurisdição e ineficiência: lacunas de legitimidade no processo eleitoral contemporâneo como fonte de instabilidade política...................................................165
4.4 Governança Eleitoral, regulação autônoma e integridade das eleições.........................1734.5 Regulação autônoma: nova dimensão da Governança Eleitoral...................................1804.6 Dimensões temporais da Governança Eleitoral – ciclos eleitorais................................189
5. INSTITUIÇÕES DE REGULAÇÃO ELEITORAL.................................................1985.1 Órgãos de Gestão Eleitoral - OGE...............................................................................2025.1.1 Princípios que devem reger as atividades dos Órgãos de Gestão Eleitoral..............2065.1.2 Funções atribuídas aos Órgãos de Gestão Eleitoral.................................................2105.1.3 Partes interessadas no processo eleitoral..................................................................2175.2 Sistema de Justiça Eleitoral – SJE.................................................................................2185.2.1 Conceito de Sistema de Justiça Eleitoral...................................................................2215.2.2 Classificação dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais – SRDE................2225.2.3 Princípios e garantias dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais–SRDE.. 2265.3 Autoridade Reguladora Eleitoral...................................................................................230
6. REGULAÇÃO ELEITORAL NO BRASIL.............................................................2466.1. Governança Eleitoral pós Constituição de 1988..........................................................2486.2 Justiça Eleitoral como Autoridade Reguladora Eleitoral..............................................2556.3 Transição inacabada: regulação eleitoral, jurisdição e lacunas de legitimidade...........265
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................288
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................301
ÍNDICE DE QUADROS E FIGURAS
QUADROS
Quadro 1: Três níveis da Governança Eleitoral.................................................147
Quadro 2: Princípios relacionados aos direitos eleitorais previstos em convenções e tratados internacionais.................................................155
Quadro 3: Características dos principais Modelos de Gestão Eleitoral...........204
Quadro 4: Natureza do Órgão Eleitoral conforme distribuição dos Níveisde Governança Eleitoral.......................................................................234
FIGURAS
Figura 1: Modelo central de integridade eleitoral.............................................161
Figura 2: Ciclo Eleitoral........................................................................................192
Figura 3: Composição da arquitetura institucional eleitoral............................201
Figura 4: Três Principais Modelos de Gestão Eleitoral.....................................203
Figura 5: Governança Eleitoral tradicional........................................................231
Figura 6: Nova Governança Eleitoral..................................................................232
Figura 7: Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida..........................................244
INTRODUÇÃO
Garantir a legitimidade do processo eleitoral é a missão institucional da Justiça
Eleitoral.
Embora seja bastante fácil intuir que um processo eleitoral legitimo possui
relevância significativa para o exercício democrático, compreender, de fato, o que tal
expressão significa e suas respectivas implicações traz alguns desafios. A legitimidade não é
um conceito que se possa formular sem um parâmetro previamente definido de Estado ou
apartado de um modelo de democracia. A análise de fenômenos jurídicos e políticos demanda
a escolha de referenciais críticos como ponto de partida.
As sociedades democráticas contemporâneas passaram por diversas
transformações ao longo do século XX culminando inclusive com a necessidade de revisão
dos fundamentos do estado liberal de direito. Temas como liberdade, igualdade,
responsabilidade, direitos humanos, justiça e instituições democráticas passaram a fazer parte
da pauta de interesses para uma reflexão atual sobre o fenômeno jurídico e sobre as premissas
para ordenação legitima da convivência coletiva.
A ideia do direito como metalinguagem para a prática política aparece como
paradigma novo e impacta diretamente o debate a respeito do exercício democrático atual, na
medida em que ao direito, além da atribuição normativa para regular conflitos sociais, passa a
ser atribuída a função de identificar e consagrar os valores que sustentam o ordenamento
jurídico em vigor. Da ideia de um sistema jurídico fechado, imune a influências morais e,
portanto, alijado de sua função crítica, caminha-se para a necessidade de construção de um
sistema jurídico permeável aos anseios sociais e para a necessária identificação de parâmetros
legítimos para o funcionamento do sistema representativo e por consequência do sistema
eleitoral.
Liberdade, igualdade, segurança e responsabilidade são valores que, se
submetidos a processos deliberativos legítimos transformam-se em vetores para organizar a
vida em comum, tomam a forma de princípios, e permitem verificar de que forma os
indivíduos enquanto agentes morais e jurídicos, através das diversas perspectivas de justiça,
se relacionam. Tais relações passam a ser mediadas por uma racionalidade prática que se
manifesta através de discursos públicos, de escolhas políticas e de políticas públicas.
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O Estado Democrático de Direito, enquanto novo paradigma, tem consagrado,
através das Constituições contemporâneas, esforços diversos para que a ordem jurídica,
econômica e social seja positivada de forma a alcançar os conflitos sociais ignorados pelo
positivismo. Dedica ainda esforços para atribuir ao direito autonomia. Esta nova concepção de
Estado deriva de uma concepção fraternal, a partir do reconhecimento do outro, da dignidade,
da autonomia, da tolerância, da possibilidade racional de liberdade entre cidadãos que
compartilham o mesmo espaço no tempo. Nessa linha de pensamento, delimitar um sentido e
um conteúdo para o que se compreende como legitimidade do processo eleitoral requer, em
primeiro lugar, a escolha de referenciais críticos para esta avaliação. As implicações e
consequências, que resultam da atribuição de sentido e conteúdo ao termo legitimidade pelos
diversos marcos teóricos sobre democracia, podem conduzir a resultados práticos bastante
distintos e por esta razão é preciso refletir a respeito dos referenciais que melhor se alinham
com os princípios que sustentam o sistema jurídico brasileiro.
Outra expressão problemática contida na missão institucional da Justiça Eleitoral
é processo eleitoral. A legislação relacionada à matéria não é exatamente clara quanto à
abrangência da expressão. Quando se inicia o processo eleitoral? A partir de quando há poder
de polícia? Em que momento há propaganda extemporânea? É com o registro de candidatos
ou com a legislação eleitoral fixada até um ano antes da data do pleito? Quando termina o
processo eleitoral? É com a diplomação dos eleitos? É no dia da votação? É no término do
julgamento dos feitos eleitorais relacionados a uma determinada eleição?
Os questionamentos envolvendo a expressão processo eleitoral não se referem
apenas à temporalidade, envolvem também questionamentos quanto às atividades
desenvolvidas pela Justiça Eleitoral e sua finalidade preponderante. Em última instância,
também levam a sérios problemas de legitimidade, responsabilidade, limites e controles.
Julgar processos, organizar a logística das eleições, normatizar procedimentos, solucionar
questionamentos, alistar eleitores e partidos políticos. Como identificar sua principal ou
principais atividades?
Uma análise dos documentos relacionados ao Planejamento Estratégico e ao
Mapeamento de Processos do Tribunal Superior Eleitoral/TSE e dos Tribunais Regionais
Eleitorais / TREs – Plano Estratégico, Mapa Estratégico e Cadeia de Valor, documentos de
planejamento e gestão disponíveis nas páginas de internet dessa justiça especializada –
demonstra que, embora todos esses órgãos estejam voltados para a finalidade comum de
realizar eleições, há diferenças quanto ao que se compreende por processos finalísticos, ou
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macros processos chave, envolvidos no processo eleitoral. Apenas para ilustrar, em alguns
documentos o julgamento de feitos eleitorais é considerado macroprocesso de apoio ao
macroprocesso chave Processo Eleitoral, como ocorre no TSE, enquanto para outros, tal
julgamento é um dos macroprocessos finalísticos da instituição, como está registrado na
Cadeia de Valor do TRE do Rio de Janeiro e do TRE de Minas Gerais, por exemplo. Para o
TSE a prestação jurisdicional é atividade de apoio ao processo eleitoral, enquanto que nos
TREs tal atividade faz parte do núcleo de atividades finalísticas da instituição.
As divergências e convergências encontradas em tais documentos não teriam
grande relevância se houvesse acordo semântico quanto ao que se compreende por processo
eleitoral, se houvesse acordo social quanto ao significado dessa expressão, se houvesse
clareza jurídica dos conteúdos abrangidos e sua extensão. Tais diferenças poderiam refletir
simplesmente diferenças de competência entre os órgãos da Justiça Eleitoral. No entanto, os
diferentes pontos de vista refletidos nos documentos de planejamento e gestão da Justiça
Eleitoral também ecoam nos questionamentos apresentados à Justiça Eleitoral, nas decisões
proferidas em feitos eleitorais e nos diversos debates sobre a amplitude do poder normativo
do órgão responsável pela condução de eleições no Brasil. Decisões judiciais e doutrina sobre
a matéria reiteradamente abrangem discussões sobre limites, competências e natureza das
atividades dessa justiça especializada.
A ausência de significado pacífico para os termos contidos na missão institucional
da Justiça Eleitoral é uma das evidências mais claras de que não há acordo estabelecido
quanto ao papel institucional da Justiça Eleitoral no Brasil. E esse desacordo possui sérias
consequências para a governança democrática no país, como se pretende demonstrar.
A Justiça Eleitoral pós Constituição de 1988, por exigência da restauração do
Estado de Direito, ganhou nova missão institucional. Em contexto de
neoconstitucionalismo(s), a Constituição e o sistema de direitos vinculam-se com projetos
econômicos, sociais, políticos e jurídicos que, necessariamente são prospectivos, pois devem
atuar conforme vetores voltados para a garantia da dignidade da pessoa humana e da justiça
social, com dimensão formal e substancial.
A prescrição de um Estado Democrático de Direito, na nova carta, ampliou as
exigências para a estrutura democrática e para as condições de emancipação do cidadão. O
povo constituído de cidadãos emancipados, enquanto condição para exercício da autonomia
fixada por parâmetros substanciais de dignidade e justiça, atua simultaneamente como autor e
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destinatário das normas de convivência comum. Nesse cenário, as condições para garantia de
legitimidade representativa são mais amplas.
No modelo anterior de estado, a Justiça Eleitoral é apenas responsável por
organizar eleições e julgar conflitos dela decorrentes, caso a caso, solucionando as pendências
de direitos políticos concebidos enquanto direitos individuais, de defesa. Atua, portanto, de
forma neutra para garantir uma igualdade formal, e assim, assegurar uma legitimidade
também de natureza formal. A repressão de ilícitos eleitorais e a organização burocrática da
logística das eleições são os parâmetros de legitimidade para o processo eleitoral. A regulação
eleitoral tradicional possui seu foco orientado para a legitimidade, enquanto amplo
alistamento e punição de ilícitos, e para a credibilidade, enquanto votação e apuração livres de
fraude. A presunção de inocência e a proteção da esfera de interesses individuais, em face do
Estado, são os vetores que orientam a regulação eleitoral tradicional, realizada mediante o
julgamento das ações típicas do processo eleitoral.
No novo paradigma de Estado as exigências são mais amplas. No Estado
Democrático de Direito os direitos de participação no Estado e o processo político para
escolha e legitimação de representantes assumem caráter de condições formais e materiais
para a democracia. Apenas a garantia de legitimidade e de igualdade formal não são
suficientes. Não basta o julgamento de atos ilícitos e a organização de votação e apuração
livre de fraudes. O conceito de processo eleitoral é ampliado e a regulação eleitoral, como
conceito novo, expande-se para o controle da disputa, para a regulação de candidaturas, das
regras de financiamento e propaganda, para a repressão de abusos econômicos, políticos e
ideológicos-religiosos, para a regulação e fiscalização da atividade partidária, para a regulação
do impacto do dinheiro na política. A nova regulação eleitoral mantém os objetivos do
passado acrescido da integridade, finalidade relacionada a um específico formato de processo
eleitoral: aquele voltado para realizar substancialmente princípios de direitos humanos e de
justiça social.
Parte-se da premissa de que a Constituição de 1988, a Lei de Inelegibilidade – Lei
Complementar nº 64/1990 -, A Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/1995 -, e a Lei das
Eleições – Lei 9.504/1997 –, em conjunto, inauguraram um novo sistema eleitoral.
Nesse novo contexto, o desenho institucional da Justiça Eleitoral brasileira seria o
de uma autoridade reguladora híbrida, pois desempenha simultaneamente funções regulatória,
jurisdicional e administrativa.
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A presente tese busca responder se a Justiça Eleitoral é, de fato, uma autoridade
reguladora híbrida. E mais, se este desenho institucional convém, em um Estado Democrático,
ou se é sinal de uma distorção que compromete o equilíbrio perseguido com a separação das
funções-poder do Estado Constitucional contemporâneo.
A Justiça Eleitoral não pode ser um órgão neutro. No que se refere à competição
eleitoral e a eleições íntegras, ela deve ter papel ativo para garantir que as regras do jogo
democrático sejam honradas, ela possui responsabilidade política e social muito claras:
estabilizar e aprofundar as condições para o exercício da democracia representativa.
A Justiça eleitoral deve ser uma jurisdição provocada no que se refere à solução
das disputas e conflitos que venham a emergir durante o processo eleitoral, mas este é um dos
aspectos de sua atuação, que não pode ser confundido com sua missão contemporânea e
concomitante de organizar e regular o devido processo eleitoral, aquele orientado por
diretrizes de integridade.
O desafio que se apresenta é o de identificar e decompor as diversas funções da
Justiça Eleitoral e, portanto, compreender a governança eleitoral atual, a fim de que sejam
estabelecidos os devidos controles sociais e identificados os parâmetros para aferir seu
funcionamento legítimo.
A parte mais significativa dos feitos eleitorais, por força normativa, são
processados através de procedimentos análogos aos procedimentos judicias. Essa
circunstância faz com que a função regulatória autônoma seja encoberta pelo exercício da
função jurisdicional, parecendo que a regulação eleitoral tradicional realizada pelo devido
processo judicial é suficiente para dar conta das responsabilidades eleitorais. Não é. O devido
processo eleitoral contemporâneo é mais amplo, envolve uma teia de relações entre diversas
partes interessadas nas eleições que teve sua natureza alterada pela nova carta - especialmente
a interface entre a Justiça Eleitoral e os Partidos Políticos. O processo eleitoral
contemporâneo também atua em temporalidade distinta da tradicional tripartição de poderes, e
pelas razões expostas requer atendimento a outros requisitos para ser percebido como íntegro
e, portanto, legítimo.
O que se pretende demonstrar é que a regulação eleitoral contemporânea, de
natureza autônoma, inaugurada pela Constituição de 1988, possui estrutura diferente da
regulação eleitoral anterior, realizada apenas mediante controle jurisdicional tradicional. Essa
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modificação da estrutura regulatória em matéria eleitoral modificou a natureza das atividades
da Justiça Eleitoral e dos Partidos Políticos.
Para alcançar os objetivos propostos, nesta pesquisa documental utilizou-se de:
fontes legais - Tratados e Convenções Internacionais sobre direitos políticos, Constituição da
República, Legislação Eleitoral; fontes doutrinárias com temas relacionados à democracia,
cidadania, jurisdição, autoridades reguladoras e órgãos de gestão eleitoral; decisões e
estatísticas judiciais relacionadas aos direitos políticos; e consultas a diversos sítios de
organizações não governamentais internacionais relacionadas a eleições. Acrescente-se, ainda,
que o procedimento metodológico adotado foi o método hermenêutico-constitucional. Seus
resultados estão consolidados em duas etapas distintas conforme descrito a seguir.
A primeira parte da presente investigação tem por finalidade estabelecer marcos
teóricos para identificação e contextualização da nova atividade regulatória autônoma
resultado das transformações sociais e da reconfiguração de poderes do estado
contemporâneo. Tais transformações trouxeram a adição de novos papéis e mudanças
institucionais para fazer face aos novos desafios. Nesse contexto autoridades reguladoras
autônomas e cortes judiciais com características bastante específicas ganharam protagonismo.
Estabelecidos os marcos teóricos de análise, realizadas as devidas considerações a
respeito de autoridades reguladoras autônomas, definidos os critérios para sua identificação e
partindo-se da premissa de que a terceira onda regulatória do final do século XX teve
expressivo impacto também para a esfera eleitoral mundial, a segunda parte da pesquisa tem
por objetivos abordar o novo objeto da regulação eleitoral contemporânea, verificar como
regulação e governança eleitoral se relacionam e finalmente identificar quais são as
instituições envolvidas na regulação eleitoral.
Ultrapassadas essas etapas, será então realizada uma avaliação do sistema eleitoral
brasileiro para identificação e delimitação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral
contemporânea.
PARTE I
APORTES TEÓRICOS PARA UM DIAGNÓSTICO DE LEGITIMIDADE DA
ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL NO BRASIL
CAPÍTULO 1
ANÁLISE DISCURSIVA DA ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL
A relação entre democracia e direito no modelo apresentado por Habermas
(2003), em sua obra Direito e Democracia: entre facticidade e validade, parte da premissa
fundamental de que o convívio social harmônico e legítimo entre indivíduos de uma mesma
coletividade depende, diretamente, da capacidade de tais indivíduos constituírem-se,
simultaneamente, como autores e destinatários das regras de convivência escolhidas e
delimitadas a partir da linguagem jurídica.
Habermas (2003a, p.122) inova ao identificar a esfera pública como instância
deliberativa e legitimadora do poder político, superando a necessidade de prévia subordinação
da moral ao direito ou do direito à moral como fundamentação do modelo de democracia,
conforme proposto por Immanuel Kant ou por Jean Jaques Rousseau.1 Na verdade, o autor
propõe uma relação de cooriginariedade entre direito e moral, e nessa linha de pensamento
explica os pressupostos de legitimidade para a construção do sistema de direitos, para o
funcionamento do sistema político, para a divisão de poderes e para o exercício da autonomia
privada e da soberania popular.
Partindo de uma análise compartilhada e interdisciplinar da obra Direito e
Democracia: entre facticidade e validade que envolveu diversos pesquisadores renomados,2
inclusive o próprio Habermas em réplica às críticas recebidas, Michel Rosenfeld e Andrew
Arato (1998, p. 01) realizam oportuna contextualização desse “trabalho monumental de
filosofia e de teoria social” que tem por finalidade tentar reconciliar direito e justiça, assim
como democracia e direitos, no horizonte das experiências americana e alemã no âmbito da
teoria constitucional e da jurisprudência.
1 “Torna-se crucial apreciar como Habermas tenta se localizar num ponto médio entre dois extremos: a tradição liberal inspirada em Immanuel Kant e a republicana infundida por Jean Jacques Rousseau. ” (OQUENDO, 2009,p. 10 e ss).2 O ponto de partida para os diversos artigos escritos pelos autores na coletânea organizada por Michel Rosenfeld e Andrew Arato (1998) tiveram origem em congresso realizado em 20 e 21 de setembro de 1992, na Escola de Direito Benjamin N. Cardozo, oportunidade em que trinta e dois acadêmicos dos Estados Unidos, Alemanha e de outros países, se reuniram, na cidade de Nova York, como representantes de diversos campos de estudo tais como direito, filosofia, sociologia e ciência política, para debaterem a obra apresentada por Habermas e que culminaram na publicação em 1998 da obra ”Habermas on law and democracy: critical exchanges”. Não é objetivo desta pesquisa discutir as críticas apresentadas à obra que serve de parâmetro de análise para as investigações realizas, mas apenas registrar a importância e a relevância do marco teórico escolhido.
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Explicam os autores que ao colocar a norma jurídica no centro de uma teia que
conecta a moral, o direito e a política, Habermas aperfeiçoa o projeto kantiano empreendido
por John Rawls em Uma Teoria da Justiça, sendo tal esforço influenciado ainda pela
Sociologia do Direito de Max Weber e pelo Filosofia do Direito de Hegel. Tal projeto ganha
fôlego no contexto das democracias constitucionais plurais contemporâneas, profundamente
fragmentadas, na qual identificam-se concepções amplamente divergentes de bem e de
significativo desacordo sobre valores fundamentais.
Nesse contexto, a relação entre norma e ética e entre normas e política tornam-se
cada vez mais problemáticas, sendo as soluções apresentadas pela jurisprudência e pela
doutrina bastante distintas. De um lado, há a produção acadêmica dos diversos estudiosos do
movimento Critical Legal Studies, que realizam suas reflexões a partir da subordinação do
direito à política, por compreenderem que as normas legais são suficientemente porosas para
serem manipuladas pela esfera política, como registram Rosenfeld e Arato (1998, p. 2). No
extremo oposto, está a corrente que concebe a norma jurídica como autônoma e
essencialmente separável da ética e da política, sendo seu mais célebre representante Niklas
Luhmann.
Outras alternativas intermediárias para lidar com o problemático nexo entre
direito, ética e política são as teorias liberais propostas pela filosofia política de John Rawls
em Uma Teoria da Justiça e pela teoria legal e constitucional de Ronald Dworkin. As duas
abordagens buscam lidar com a dicotomia kantiana entre direito e bem através da
determinação de uma unidade normativa e de uma coesão política sobrepostas às diversas
concepções de bem.
Objetivando contextualizar o projeto de democracia deliberativa apresentado por
Habermas, Rosenfeld e Arato registram que o esforço teórico realizado por Rawls e Dworkin,
no entanto, implicam em sacrifícios tão extremos de argumentação que suas conclusões ficam
comprometidas. Como explicam os autores, o contrato social hipotético de Rawls realizado
por trás do “veú de ignorância” torna-se reduzido a um ato individual solipcista e os
princípios de justiça que decorrem desse processo aproximam-se mais da incompatibilidade
do que propriamente da harmonia com as diversas concepções de bem. Já Dworkin, embora,
em sentido diverso, repudie o reino abstrato de um consenso hipotético, cai na armadilha da
contingência e da excessiva abstração do seu monológico juiz Hércules. Tanto Rawls como
Dworkin, apresentam teorias que colocam direitos liberais acima de bens e essa circunstância
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aumenta a tensão entre direito e democracia, na medida em que impacta diretamente políticas
públicas (ARATO, 1998, p. 2 e ss).
O recurso ao comunitarismo, e, portanto, à deliberação, nos termos propostos por
Frank Michelman, com algumas divergências, aparece como alternativa para superar a tensão
entre direito e democracia e a limitação da fundamentação monológica. Como explicam
Rosenfeld e Arato, esse é exatamente o esforço realizado por Habermas no seu projeto
filosófico e jurisprudencial consolidado em Direito e Democracia ao tentar compatibilizar o
que é mais atrativo das teorias de Rawls, Dowrkin e Michelman, mas sem sucumbir “aos
respectivos atalhos”.3
Assim, os aspectos principais que caracterizam e diferenciam a legitimidade
jurídica tal como proposta por Habermas são exatamente as características de autoimposição e
de vinculação de normas criadas por atores livres e iguais, através de procedimento
democrático discursivo, e por estas razões com potencial para preencher o abismo entre
democracia e direito, entre igualdade normativa e igualdade fática.
A deliberação como fonte de legitimidade para o exercício do poder deu origem a
amplo debate a respeito das possibilidades para a democracia contemporânea, seus limites,
dificuldades e possibilidades, sendo a obra de Habermas um dos principais referencias
teóricos para a discussão.
Na obra Deliberative Democracy and Beyond, John S. Dryzek, busca fazer um
apanhado do que chamou de “forte giro deliberativo” das teorias democráticas durante a
década de 1990. Aponta o autor que a legitimidade democrática passou a ser compreendida
como um processo social no qual aqueles que serão submetidos à normas coletivas possuem a
oportunidade de participar em deliberação efetiva, em contraposição a outras formas de
controle democrático como por exemplo a votação, a agregação de interesses, os direitos
constitucionais e até mesmo autogoverno. A ênfase dada pelo autor recai no grau de controle
democrático substantivo, comparado com o controle simbólico, realizado por cidadão
engajados e competentes. Dryzek propõe uma perspectiva mais abrangente para uma teoria
da democracia deliberativa, a democracia discursiva, cujo objetivo é reconhecer, para além
das fronteiras do constitucionalismo liberal, possibilidades para discursos deliberativos, como
3 Como explicam os autores: “Por causa de suas amarras à tradição Kantiana e seu firme compromisso com o proceduralismo, o projeto de Habermas é melhor compreendido como uma tentativa de aperfeiçoar a contribuição de Rawls apresentada em Uma Teoria da Justiça, de forma que permita um genuíno diálogo e consideração das diferenças que divide os atores sociais enquanto reduz o abismo entre democracia e direitos. ” - Em livre tradução – (ARATO, 1998, p 5).
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por exemplo, na esfera pública, na comunidade internacional, e entre o homem e a natureza. A
democracia discursiva teria fôlego para alcançar espaços deliberativos mais amplos que os
espações delimitados pelas instituições estatais.
William Scheuerman apontou dificuldades para a teoria habermasiana
relacionadas com as desigualdades sociais, que comprometeriam a legitimidade do poder na
medida em que as condições ideais de fala para participação em processos deliberativos seria
um “dever-ser abstrato”, distante da realidade prática. Nessa perspectiva, as ações do Estado
para redução das desigualdades sociais e para proteção e implementação efetiva de direitos
fundamentais passa a ser uma condição para o legitimo exercício democrático
(SHEUERMAN, 1999, p. 159).
A democracia deliberativa para realizar verdadeira democracia social depende do
reconhecimento de um núcleo mínimo de princípios substanciais. A exigência de um núcleo
moral com capacidade de abranger laços mínimos de civilidade é pressuposto para a
deliberação e o incentivo para construir as virtudes necessárias para uma cultura política
liberal deve resultar da cooperação entre as instituições do Estado e a sociedade civil
(BAYNES, 2010).
Amy Gutmann e Dennis Thompson (2004, p. 125 e ss.), na obra Why deliberative
democracy?, discutem exatamente o porquê da escolha por um paradigma deliberativo de
democracia, embora com algumas diferenças teóricas em relação à proposta de Habermas. E
esse é o ponto relevante aqui: o porquê da escolha de um paradigma deliberativo, ainda que
sejam muitos os questionamentos relacionados. Explicam os autores que as sociedades
modernas e plurais contemporâneas lidam permanentemente com desacordos morais e
perspectivas conflitantes sobre valores fundamentais que impactam diretamente a elaboração
das normas jurídicas de convivência comum que pretendem vincular a ação de todos. Essa
então seria a questão fundamental que se apresenta para as teorias democráticas
contemporâneas: encontrar meios moralmente justificáveis/legítimos para escolhas coletivas
vinculantes em face de permanente conflito moral (GUTMANN, 2004, p. 125).
A perspectiva da democracia deliberativa volta-se então para uma série de
princípios que buscam garantir termos justos de cooperação, deixando em aberto a
possibilidade para que os diversos valores morais sejam considerados no debate: “seu
princípio fundamental é que cidadãos devem uns aos outros justificativas pela legislação
vinculante que coletivamente impõem uns aos outros” (GUTMANN, 2004, p. 126).
21
Gutmann e Thompson (2004) distinguem as teorias de democracia em teorias de
primeira ordem e teorias de segunda ordem (first and second-order theories of democracy).
Enquanto as teorias de primeira ordem4 buscam solucionar o desacordo moral através de seus
próprios e exclusivos termos, e, portanto, rejeitando teorias alternativas ou princípios com os
quais sejam conflitantes, as teorias de segunda ordem buscam exatamente o oposto: lidar com
os diversos desacordos morais criando espaço para manifestação de todas as teorias de
primeira ordem ainda que conflitantes entre si.
As teorias de segunda ordem seriam bem-sucedidas ou não na medida em que
conseguissem justificar/legitimar tanto as deliberações realizadas como o desacordo moral
remanescente para todos os que devem conviver com as decisões tomadas. São teorias de
segunda ordem exatamente porque lidam de forma consistente com as diversas perspectivas
morais das teorias de primeira ordem, reconhecendo e levando em conta os múltiplos
princípios de primeira ordem sem afirmar ou negar sua validade em última instância. As
teorias de segunda ordem reconhecem e buscam lidar com os diversos conflitos e desacordos
morais que as teorias de primeira ordem buscam eliminar, sem, no entanto, pretender ser
moralmente neutra: “uma teoria sobre democracia deliberativa completa inclui tanto
princípios substantivos quanto procedimentais, nega que ambos sejam moralmente neutros, e
julga ambos através de um ponto de vista de segunda ordem” (GUTMANN, 2004, p. 127).
O que os autores propõem é a adoção de um paradigma de democracia
deliberativa, que seja uma teoria de segunda ordem com princípios substantivos e
procedimentais, apropriado para acomodar amplo espectro de princípios de primeira ordem.
Os princípios aqui possuem um status diferenciado dos princípios em outras teorias. Nas
palavras de Gutmann e Thompson (2004, p. 126):5
“Como é possível para uma teoria incluir princípios substantivos e procedimentais enquanto ainda consegue acomodar um amplo espectro de princípios de primeira ordem? A chave para essa resposta é que os princípios em uma teoria deliberativa da democracia, independentemente de serem substantivos ou procedimentais, apresentam um status diferente dos princípios em outras teorias. A democracia deliberativa não busca um princípio fundador ou um conjunto de princípios que, em antecipação a uma atividade política efetiva, determine se uma norma ou procedimento pode ser tido como justificado (legítimo). Ao contrário, a democracia deliberativa adota uma concepção dinâmica de justificação (legitimação) política, na qual mudanças ao longo do tempo são características de princípios justificáveis.
4 Nesse sentido, são exemplos familiares de teorias de primeira ordem: o utilitarismo, o libertarianismo, o liberal igualitarismo e o comunitarismo. (GUTMANN, 2004, p. 126).5 Em livre tradução.
22
Os princípios da democracia deliberativa são distintos em dois aspectos: eles são moralmente provisórios (sujeitos a mudanças em face da argumentação moral); e são politicamente contingentes (sujeitos a mudanças em face de argumentação política). ”
O desafio posto para uma teoria deliberativa da democracia, assim como para
qualquer teoria sobre democracia que pretenda dar conta das profundas divergências e
diferenças que compõem o tecido social contemporâneo, é identificar as condições para a
cooperação e participação influente de todos os envolvidos no processo democrático, ainda
que existam desacordos morais significativos, a fim de que a fonte normativa vinculante que
irá regular o compartilhamento do espaço comum de convivência possa ser vista como
legítima e aceita por todos.
Uma avaliação das funções e do papel atribuídos à Justiça Eleitoral não pode ser
feita desvinculada de um paradigma de democracia. Se a missão que cabe à Justiça Eleitoral é
“garantir a legitimidade do processo eleitoral”,6 então, em primeiro lugar há que se discutir e
contextualizar o que se compreende por legitimidade. É por esta razão que se elege a teoria da
democracia deliberativa, nos termos propostos por Habermas, como ponto de partida para esta
pesquisa.
Embora muitos acadêmicos tenham críticas e contribuições a apresentar a respeito
da democracia deliberativa nos termos propostos pelo autor,7 principalmente por ser esse um
projeto que suscita mais e novas questões ao tentar responder às demandas que se apresentam
para a democracia contemporânea, é indiscutível a importância e significado de suas ideias na
medida em que estas deslocam o debate para um novo paradigma de Estado de Direito e por
isso oferecem ferramentas inovadoras para uma análise de legitimidade da atuação da Justiça
Eleitoral em tempos de debate pós-metafísico que traz para a linguagem nova perspectiva de
análise.
Esta proposta pode ser melhor compreendida a partir de uma breve exposição
sobre as principais ideias de Habermas a respeito da democracia deliberativa, selecionadas
para colaborar na fundamentação da análise de legitimidade da Justiça Eleitoral
6 Ver: http://www.tre-rj.jus.br . Acesso em 23/11/2014.7 Nesse sentido, ver artigos publicados por Jacques Lenoble, Thomas McCarthy, Niklas Luhmann, Gunther Teubner, Arthur J. Jacobson, Michael K. Power, Robert Alexy, Klaus Günter, William Rehg, William E. Foorbath, Richard J. Bernstein, Frank I. Michelman, Ulrich K, Preuss, András Sajo, Bernhard Chlink, Amy Gutmann, Dennis Thompson e Pierre Rosanvallon, entre outros.
23
1.1 Delimitação do modelo procedimental de democracia
A construção da exposição de Habermas (2007, p.227 e ss) parte da contraposição
entre a concepção liberal e a concepção republicana de política, na forma sustentada pela
corrente americana comunitarista, a partir da avaliação do papel do direito, do papel do
cidadão e da natureza do processo político. Ao final, pondera as virtudes e os problemas
apresentados por cada uma, para buscar um caminho intermediário através da proposta de um
modelo procedimental de democracia.
Ensina o autor que, para a concepção liberal, a ordem jurídica é institucionalizada
a partir de direitos subjetivos que garantem a esfera de autonomia dos indivíduos, aqui
compreendidos como liberdades negativas, sendo a limitação do poder dada por um “direito
superior da razão ou revelação transpolítica” (HABERMAS, 2007, p. 281).
Para esta linha de argumentação o indivíduo dotado de razão é o centro do modelo
e a concepção de cidadania será desenhada a partir dos direitos fundamentais atribuídos a
cada indivíduo, e, portanto, oponíveis em face do Estado e dos demais cidadãos. É a idéia de
um conjunto de indivíduos, no qual cada um maximiza suas liberdades e escolhas de vida,
pautado por uma razão superior comum a todos, até o limite máximo que compatibilize a
coexistência simétrica dos diversos interesses individuais.8
Nesta perspectiva, os direitos políticos são concebidos como direitos subjetivos
que atribuem ao cidadão a capacidade de controlar se os poderes do Estado são exercitados
conforme os interesses do Estado e do mercado.
O processo político, para a corrente liberal, consagra-se como processo
democrático capaz de viabilizar, validar, a luta pelo poder administrativo do Estado. A
dinâmica do processo político é compreendida da mesma forma que a dinâmica do mercado,
visto que neste modelo existem duas instâncias reguladoras das relações sociais, o mercado e
a administração estatal. Tratando-se de um modelo no qual os indivíduos realizam opções que
maximizam suas escolhas individuais, o processo político é o resultado de aprovações ou
desaprovações de cada indivíduo, que leva em conta seus interesses particulares, quanto a
escolhas de pessoas, programas e políticas administrativas, o que pode ser avaliado a partir do
8 Explica Oquendo (2009, p.11) que: “Não obstante, Kant termina subordinando a democracia a um sistema moral categórico donde emergem direitos humanos sacrossantos. ”
24
número de votos dados em cada eleição. O conjunto das decisões individuais resulta na
manifestação de uma vontade política com força para interferir na administração estatal.9
Sob perspectiva distinta, a ordem jurídica, para a concepção Republicana, é
desenhada a partir da escolha dos indivíduos quanto a objetivos e normas que melhor reflitam
a ideia de interesse comum, “convívio equitativo e autônomo fundamentado sobre o respeito
mútuo” (HABERMAS, 2007, p.281), resultando numa ordem de valores expressa através de
uma ordem jurídica objetiva.
O projeto republicano busca compatibilizar a integridade da comunidade e os
direitos subjetivos dos indivíduos, sendo que os direitos devem resultar da vontade política
voltada para o bem comum (HABERMAS, 2007, p.280). Diferente da perspectiva liberal, o
modelo republicano transfere seu foco para o Estado, acrescentando, ao lado da administração
e do mercado, a solidariedade como fonte de integração social. O centro do modelo
republicano é a autodeterminação democrática de cidadãos deliberantes.
A cidadania, aqui, ganha papel diferenciado, visto que os direitos a ela relativos
passam a ser considerados como direitos positivos, como direitos de participação e
comunicação política. Os direitos políticos não são apenas direitos subjetivos negativos que
garantem a esfera de autonomia privada do cidadão, mas sim direitos positivos que garantem
a autodeterminação política. Os direitos políticos, nesta abordagem, garantem aos indivíduos
a participação nos processos decisórios a partir de uma autonomia pré-existente, com foco no
bem comum, garantindo a estes a prerrogativa de controle das ações estatais, sem, no entanto,
chegar a ser vislumbrado como força mediadora entre a sociedade e a ação estatal.
A natureza do processo político republicano apóia-se na garantia de um processo
equitativo da formação da opinião e da vontade, voltada para o bem comum, estruturado a
partir da “condução estritamente ética dos discursos políticos” (HABERMAS, 2007, p.286),
sendo esse o erro, segundo Habermas.
Neste modelo, o que viabiliza o entendimento não é a dinâmica própria de
interesses com foco no mercado, mas sim o entendimento mútuo alcançado a partir da
9 Explica Jean Paul Rocha (2008, p.179) sobre a abordagem liberal: “o objetivo do direito, portanto, é o reconhecimento e a garantia dos direitos individuais”. Nesse sentido a política é vista como “uma luta por posições que garantem acesso ao poder administrativo”. A disputa pelo voto, que franqueia aos partidos políticos o acesso ao poder, desenvolve-se num “mercado político” que molda a formação da vontade política. ” (...) “Na distinção entre Estado e sociedade, esta é concebida como “um sistema de interação entre pessoas e seu trabalho, estruturadas em torno do mercado. ”
25
interlocução, da solidariedade. Valoriza-se o poder comunicativo configurado a partir de
discursos políticos.
O modelo republicano reconhece a existência de um terceiro espaço social
diferente da administração estatal de do mercado, a sociedade civil organizada, capaz de
controlar as ações do Estado. Mas o processo político, neste modelo, não chega a alcançar o
status de mediador entre a sociedade e o poder estatal, visto que a autonomia dos cidadãos é
anterior à política e o poder estatal democrático não é concebido como força originária.10
O que fica evidenciado pela análise de Habermas é que as diferenças entre as
definições de cidadania e direito, resultam na verdade, de divergências quanto à compreensão
da natureza do processo político. E é exatamente a partir da natureza do processo político que
o autor constrói suas ponderações a respeito do processo deliberativo democrático.
O modelo liberal concebe o processo político como o resultado das escolhas
individuais de cidadãos que buscam os melhores meios de realizar seus projetos privados e
para tanto validam as políticas públicas que melhor se identifiquem com suas escolhas
individuais. Este modelo constrói suas premissas a partir de um direito fundado em uma razão
superior, a partir dos direitos universais dos homens, que atribui aos indivíduos direitos que
antecedem o processo político, sendo este, o processo político, o meio necessário para
compatibilizar as escolhas individuais de cada cidadão. O processo político gera resultados
na forma de arranjos e interesses.
O modelo republicano concebe o processo político a partir de uma auto-
organização de cidadãos que buscam o entendimento através da interlocução, apresentando
caráter radicalmente democrático. Para este modelo, o processo político decorre das escolhas
realizadas pelos indivíduos com foco no interesse comum da sociedade, a partir de escolhas
éticas, baseadas em uma autonomia pré-existente à política. O resultado do processo político,
a formação democrática da opinião e da vontade, revela-se como auto entendimento ético.
10 Explica Rocha (2008, p.179) que: “o modelo republicano de democracia não vê a sociedade estruturada primordialmente em torno do mercado, nem a política como mediadora entre Estado e sociedade. Além do poder administrativo e da busca dos interesses privados que se dá no mercado, a solidariedade desponta como terceira forma de integração social. A prioridade, aqui, é a formação de uma vontade política fundada num entendimento mútuo ou num consenso construído de forma comunicativa. Há um fundamento ético para a política. A esfera pública política e a sociedade civil asseguram “o poder de integração e a autonomia da pratica comunicativa dos cidadãos”. Para o cidadão, o mais importante neste modelo são as liberdades positivas, os direitos políticos de participação e comunicação, mediante os quais ele pode tornar-se sujeito de uma comunidade de cidadãos livres e iguais. O processo político tem como paradigma o diálogo, e não o mercado. ”
26
Ao analisar o processo político nos dois modelos, Habermas pondera que,
enquanto o modelo liberal tem por base a razão prática lastreada nos diretos universais dos
homens, no qual a partir destes, os indivíduos realizam acordos que permitem a convivência;
no modelo republicano as escolhas são realizadas a partir de numa razão prática voltada para a
eticidade concreta de uma determinada comunidade, com lastro em liberdades pré-existentes à
política, dependendo amplamente das “virtudes de cidadãos voltados ao bem comum”
(HABERMAS, 2007, p. 284).
Os dois modelos apresentam o processo político desenhado a partir de limitações
externas, sejam os direitos universais do homem no modelo liberal, seja o conteúdo ético das
escolhas realizadas pelos cidadãos no modelo republicano. A razão prática que configura o
processo político não é ligada diretamente aos cidadãos.
A proposta habermasiana pretende compatibilizar elementos dos dois modelos,
através da introdução da razão prática a partir da fixação de regras discursivas e formas
argumentativas que retiram seu teor normativo da estrutura de comunicação linguística
(HABERMAS, 2007, p. 286).
O modelo de democracia procedimental é construído a partir da delimitação das
condições de comunicação e procedimentos necessários à legitimação da formação
institucionalizada da opinião e da vontade. Habermas parte do princípio do discurso e da
forma jurídica para construir seu modelo, como será explicado no ponto seguinte. Para tanto,
o autor reconhece a existência de um espaço deliberativo diferente do Estado e do mercado, a
esfera pública ou sociedade civil, ao qual atribui a capacidade de mediar as relações sociais
através do processo político.
O processo político é concebido como caixa de ressonância dos anseios sociais
capaz de regular os diversos sistemas através da linguagem jurídica.
A concepção de uma política deliberativa é construída a partir do reconhecimento
das diferentes formas de comunicação que compõem a formação da vontade comum. Neste
contexto são reconhecidos auto-entendimentos de caráter ético, busca de equilíbrio entre
interesses divergentes e estabelecimento de acordos, checagem da coerência jurídica, escolhas
racionais com fim específico e fundamentação moral.
Em sua obra Direito e Democracia, Habermas demonstra como cada forma de
comunicação encontra-se ligada a processos de auto-entendimento específicos e
institucionalizados a partir de diferentes papéis. Assim as funções da legislação, da justiça e
27
da administração são diferenciadas a partir dos potenciais de argumentação e das formas de
comunicação correspondentes (HABERMAS, 2003a, p. 238). Habermas analisa a lógica da
divisão de poderes do Estado a partir da perspectiva da teoria do discurso.
À administração, responsável pela implementação de políticas públicas definidas
pelo poder legislativo, é vedada a utilização de argumentos normativos que contenham
resoluções de caráter legislativo ou de decisões judiciais. Os argumentos normativos resultam
das formas de comunicação através das quais o legislativo e a jurisprudência fundamentam e
aplicam normas. As leis transformam o poder comunicativo em administrativo, como
resultado de acordos realizados a partir do procedimento democrático (HABERMAS, 2003a,
p. 238).
Enfim, a estrutura do modelo procedimental de democracia tem por fundamento o
reconhecimento dos diversos tipos de comunicação inerentes à sociedade assim como o
reconhecimento da institucionalização dos diversos espaços de interlocução, o que confere ao
modelo procedimental caráter radicalmente democrático por atribuir, aos próprios cidadãos, a
responsabilidade pelo processo político, através da garantia das condições de comunicação e
dos procedimentos que legitimem a formação livre e igualitária da opinião e da vontade.
Explica Habermas que, quando estão institucionalizadas as diversas formas de
comunicação, estas são capazes de, a partir do procedimento deliberativo político, alcançar
resultados racionais. A ética do discurso habermasiana está fundamentada na crença em que a
racionalidade é instrumento capaz de orientar a interação social possibilitando a coordenação
dos planos de ação dos múltiplos sujeitos que partem de visões e interesses diferentes.
A concepção discursiva da democracia apóia-se sobre o conceito procedimental
de política deliberativa, ou seja, nas “condições de comunicação sob as quais o processo
político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo o
seu alcance, de modo deliberativo” (HABERMAS, 2007, p. 286).
A proposta normativa de democracia deliberativa apóia-se na ética do discurso, e
une elementos tanto do modelo liberal quanto do republicano, construindo um modelo ideal
para a tomada de decisões. Habermas propõe um modelo no qual são compatibilizados
negociações, discursos de auto-entendimento e discursos de justiça em um procedimento
democrático capaz de atingir resultados racionais, justos e honestos.
O processo político da formação da vontade adquire papel central no modelo
procedimentalista. As condições de comunicação do procedimento democrático necessárias à
28
estrutura do modelo são institucionalizadas partindo dos direitos fundamentais e do Estado de
direito, da linguagem jurídica.
A política deliberativa passa a depender diretamente da institucionalização dos
procedimentos necessários ao processo de entendimento mútuo. A rede de comunicação
formada a partir de relações intersubjetivas em espaços deliberativos permite a formação
racional da opinião e da vontade a respeito dos temas considerados importantes pela
sociedade.
Esta formação racional da opinião e da vontade transforma-se em “decisões
eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais o poder criado por via
comunicativa é transformado em poder administrativamente aplicável ” (HABERMAS, 2007,
p. 289).
Para Habermas, a solidariedade como fonte de integração social, decorre não
apenas das fontes da ação comunicativa, mas também precisa encontrar origem nas opiniões
públicas autônomas e em procedimentos institucionalizados por via jurídico-estatal para a
formação democrática da opinião e da vontade, sendo capaz de contrapor-se às outras duas
fontes de integração social: o dinheiro e o poder administrativo (HABERMAS, 2007, p. 289).
Enquanto na concepção liberal, a formação democrática da vontade tem a função
de legitimar o exercício do poder político e na concepção republicana esta tem a função de
constituir a sociedade como uma coletividade política, no modelo procedimentalista funciona
como procedimento através do qual ocorre a racionalização discursiva das decisões de
cidadãos que se auto-governam, mediante a programação e controle do poder político.
Na perspectiva procedimental, a soberania popular é concebida a partir de uma
filosofia pós-metafísica e prática, que transfere para a linguagem o seu paradigma, tornando
possível a existência de uma soberania construída a partir de formas de comunicação sem
sujeito; ao contrário dos modelos concebidos com base na filosofia da consciência, que
precisa personificar a soberania popular seja através de um conjunto de indivíduos, a partir de
competências atribuídas pelo direito constitucional, seja no povo de forma concretista ou em
instituições. Nesta perspectiva, o sistema político não se restringe ao ápice nem ao centro da
sociedade, mas configura-se como um sistema de ação ao lado de outros sistemas
(HABERMAS, 2007, p. 288 e ss).
O papel da cidadania, no modelo procedimentalista, ganha novos contornos, não
podendo os direitos políticos permanecerem resumidos a direitos negativos, ou ainda a
29
direitos positivos que garantem a participação e comunicação política apenas como meio de
controle das ações estatais. Neste contexto, procedimentalista, a cidadania adquire um papel
radicalmente democrático no qual os cidadãos passam a autores e destinatários do sistema de
direito ao qual se encontram submetidos, em uma perspectiva horizontalizada do
procedimento democrático.
Com a verticalização das formas de comunicação - através da institucionalização
do poder político na forma de Estado configurado como poder político de organização, de
sanção e de execução -, transfere-se a autonomia política para foros e espaços dialógicos.
Nestes novos espaços a base da soberania popular descola-se do indivíduo, sendo transferida
para uma complexa rede de comunicação com procedimentos especificamente determinados,
garantindo-se, assim, o caráter radicalmente democrático do modelo normativo
procedimental. Nas palavras de Habermas (2007, p. 285):
“O conceito de uma política deliberativa só ganha referência empírica quando fazemos jus à diversidade das formas comunicativas na qual se constitui uma vontade comum, não apenas por um atuo-entendimento mútuo de caráter ético, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses divergentes e do estabelecimento de acordos, da checagem de coerência jurídica, de uma escolha de instrumentos racional e voltada a um fim específico e por meio, enfim, de uma fundamentação moral. ”
Interessa abordar, a seguir, dois pontos específicos que auxiliam na compreensão
da proposta democrático-deliberativa: como é construído o sistema de direitos no modelo
procedimental e de que forma este compatibiliza autonomia privada com autonomia pública e
direitos humanos com soberania popular.
1.2 Sistema de direitos, autonomia privada e soberania popular
Como visto, o modelo normativo de democracia procedimentalista apresenta uma
nova abordagem para a natureza do processo político. A proposta habermasiana pretende
compatibilizar elementos do modelo liberal e do modelo republicano, através da introdução
da razão prática, a partir da fixação de regras discursivas e formas argumentativas que retiram
seu teor normativo da estrutura de comunicação linguística.
Angel R. Oquendo (2009, p. 11) explica que é fundamental a compreensão de que
Habermas busca encontrar um meio termo entre os extremos apresentados pela tradição
liberal, representada por Immanuel Kant, e a teoria republicana conforme a abordagem de
Jean Jacques Rousseau. Habermas busca estabelecer uma ligação interna entre soberania
30
popular e direitos humanos diferente da relação identificada pelas teorias de Kant e Rousseau:
enquanto estes estabelecem uma relação de hierarquia entre soberania popular e direitos
humanos, Habermas os define a partir de uma relação de cooriginariedade.
Para Habermas, a legitimação do sistema de direitos não pode ser fundamentada a
partir de cosmovisões metafísicas ou religiosas, a partir de elementos externos. Em um
contexto pós-metafísico, no qual o foco da aquisição de conhecimento volta-se para as
relações intersubjetivas e para a linguagem, o sistema normativo precisa legitimar-se a partir
de elementos internos, o que somente será possível a partir de um agir comunicativo.
O processo de normatização, a auto-legislação de civis, somente se torna legítima,
a partir da introdução do princípio do discurso pela via da institucionalização jurídica, a partir
da forma jurídica, configurando o princípio da democracia. O princípio da democracia
somente pode ser idealizado a partir de um sistema de direitos, visto que deve configurar-se
através da institucionalização jurídica do princípio do discurso (HABERMAS, 2003a, p 158).
O princípio geral do discurso pode ser enunciado da seguinte forma: “D: são
válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu
assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” (HABERMAS, 2003a, p
142). A utilização deste princípio parte da premissa de que questões práticas podem ser
julgadas de forma imparcial e decididas de forma racional.
O princípio da moral é uma especificação do princípio do discurso, que funciona
como “regra de argumentação para a decisão racional de questões morais” (HABERMAS,
2003a, p. 145), que funciona no nível da constituição interna da formação discursiva da
opinião e da vontade, se aplicando a todas as normas de ação que sejam justificáveis a partir
de argumentos morais.
Assim, a forma jurídica aliada ao princípio do discurso, ou seja, o princípio da
democracia, permite a identificação das categorias de direito que formam o próprio código
jurídico, enquanto “formalização jurídica de uma socialização horizontal em geral”
(HABERMAS, 2003a, p. 159).
A configuração da cidadania realiza-se, portanto, em dois momentos distintos. A
cidadania no primeiro plano é configurada a partir da especificação dos direitos fundamentais
das três primeiras categorias citadas por Habermas (2003a, 159) como necessárias para a
constituição do status de pessoas de direito. Esta cidadania ganha forma a partir da
positivação dos direitos constitucionais classicamente identificados como direitos de defesa,
31
pelo legislador histórico. Neste sentido, o princípio do discurso é institucionalizado
juridicamente.
A figura jurídica do princípio da democracia resulta da conformação dada pelo
constituinte histórico aos direitos que configuram o princípio do discurso, isto é, da
formatação dada aos direitos políticos de participação.
Os direitos políticos precisam assegurar aos cidadãos a participação em todos os
espaços de deliberação e decisão do processo legislativo, de forma que “a liberdade
comunicativa de cada um possa vir simetricamente à tona, ou seja, a liberdade de tomar
posição em relação a pretensões de validade criticáveis” (HABERMAS, 2003a, p.164).
A configuração política da opinião e da vontade públicas depende da
possibilidade de se garantir a liberdade comunicativa simétrica acima referida. O uso público
destas liberdades comunicativas pressupõe autorização anterior do ordenamento jurídico,
assim como pressupõe meios de comunicação, de processos discursivos de consulta e decisão
garantidos juridicamente, para que os resultados atingidos sejam considerados legítimos. Nas
palavras do autor (HABERMAS, 2003a, p.164):
“Iguais direitos políticos fundamentais para cada um resultam, pois, de uma juridificação simétrica da liberdade comunicativa de todos os membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da autonomia política através da assunção dos direitos dos cidadãos. ”
O princípio do discurso, concebido enquanto iguais direitos de comunicação e
participação, e aplicado à forma jurídica, ao médium do direito, são os pré-requisitos
necessários para a construção de um sistema de direitos a partir da autodeterminação dos
cidadãos, em oposição à um sistema jurídico construído a partir da subordinação do direito à
moral, como o modelo kantiano.11
A institucionalização de um processo legislativo, através da forma jurídica,
viabiliza a institucionalização do princípio do discurso como princípio da democracia. Esta
institucionalização somente é viável se houver um código jurídico previamente estabelecido
que atribua ao indivíduo o status de sujeito de direito apto a participar do processo político.
Fica evidenciada a gênese simultânea, portanto a pressuposição recíproca da
esfera privada e da esfera publica de autonomia do cidadão, tornando-se claro que direitos
11 Como enfatiza Samantha Dobrowolski; “precisamente o direito e a participação no processo político democrático garantem a integração social em tempos de pluralismo no mundo desencantado. E os pressupostos comunicativos e as condições do processo de formação democrática da opinião e da vontade são a única fonte de legitimação” (DOBROWOLSKI, 2007, p. 188).
32
humanos e soberania popular são pré-requisitos simultâneos para a arquitetura de um sistema
jurídico democrático. A autonomia política somente passa a existir após interpretação e
configuração, através do processo legislativo legítimo, dos direitos que a consagram.
Explica Habermas (2003a, p.166) que toda Constituição é um projeto cuja
duração dependerá da interpretação constitucional realizada pelos diversos participantes dos
processos de positivação do direito.
A tensão entre norma e realidade apresenta-se na conclusão de que “os direitos
políticos fundamentais devem institucionalizar o uso público das liberdades comunicativas na
forma de direitos subjetivos” (HABERMAS, 2003a, p.166).
A forma de tornar legítima a criação de normas de convivência entre cidadãos no
Estado Democrático de Direito depende da existência simultânea de um espaço público de
deliberação com regras e procedimentos bem definidos, assim como depende de um código
jurídico que assegure a esfera de autonomia a todos os cidadãos envolvidos. Para tanto, todo
cidadão deve ter assegurada sua autonomia privada simétrica e intersubjetivamente garantida,
enquanto destinatário das normas criadas, assim como sua autonomia pública ou política,
enquanto participante livre na criação das normas que regem a convivência, a qual todos, sem
distinção, estarão submetidos.
1.3 Direitos políticos, cidadania e sujeitos da democracia
Na construção teórica apresentada, Habermas demonstra, passo a passo, como
deve ser constituído o sistema jurídico, para, a seguir, explicar como a figura jurídica do
princípio da democracia resulta da formatação dada pelo constituinte histórico aos direitos
que configuram o princípio do discurso, da formatação dada aos direitos políticos de
participação.
O princípio do discurso, concebido enquanto iguais direitos de comunicação e
participação, aplicado à forma jurídica, é o pré-requisito necessário para a construção de um
sistema de direitos a partir da autodeterminação dos cidadãos, em oposição a um sistema
jurídico construído a partir da subordinação do direito à moral, como o modelo kantiano.12
12 Complementa este raciocínio Samantha Dobrowolski (2007, p.319) ao ponderar que: “A única forma de normatividade e de legitimidade, neste contexto, é o princípio do discurso. Este se desdobra no princípio da moralidade, que justifica juízos morais passíveis de universalização, e no princípio da democracia, o qual estrutura o conhecimento e a práticas dos cidadãos e, ao assumir a forma jurídica (direito), pode institucionalizar
33
A cidadania, na perspectiva do modelo habermasiano, ganha novos contornos,
realizando-se em dois sentidos distintos.
No primeiro sentido, a cidadania configura-se a partir das três primeiras categorias
de direitos fundamentais apresentadas por Habermas. Ao serem interpretadas e positivadas
pelo legislador originário, configuram os clássicos direitos de defesa. Especificam direitos
fundamentais, constituindo os indivíduos como sujeitos de direito, como cidadãos enquanto
membro de uma coletividade.
No segundo sentido, a cidadania configura-se a partir da quarta categoria de
direitos fundamentais apresentada por Habermas. Observa-se que o sistema de direitos deve
permitir que os cidadãos sejam capazes de avaliar se os meios para produção da legislação são
legítimos, tarefa atribuída aos direitos fundamentais de participação nos processos de
formação da opinião e da vontade do legislador (HABERMAS, 2003a, p.164).
Sob a perspectiva desta abordagem, explica Gisele Citadino (2004, p.231-232),
que a democracia pressupõe uma cidadania ativa que seja capaz para o exercício da liberdade
e da deliberação na esfera publica política.13
Aqui se apresenta a grande diferença entre o modelo liberal e o modelo
procedimentalista, necessária à fundamentação de uma nova abordagem dos direitos políticos.
Para o modelo liberal, o processo político, a formação democrática da vontade,
tem a função exclusiva de legitimar o exercício do poder político, através da manifestação de
concordância ou não, pelos cidadãos, das políticas públicas implementadas. Neste contexto,
os direitos políticos apresentam-se como direitos subjetivos que garantem ao cidadão a
capacidade de validar ou não as escolhas políticas realizadas pelo Estado, conforme o
interesse de cada cidadão. Os direitos fundamentais e, entre estes os direitos políticos, são
instituídos na forma de direitos subjetivos de defesa em face do Estado e dos demais cidadãos.
O exercício da cidadania fica restrito, praticamente, aos direitos políticos de votar e de ser
os procedimentos comunicativos de formação da opinião e da vontade políticas, nos quais se entrelaçam compromissos, questões morais, éticas e pragmáticas, sob a suposição de que se alcançam resultados racionais equitativos. ”13 Para a autora: “a participação cidadã pode certamente buscar, através dos vários institutos previstos no texto constitucional, a efetivação das normas constitucionais protetoras dos direitos fundamentais. Nesta perspectiva, o sistema de direitos assegurados pela Constituição Federal apenas terá efetividade mediante a força de vontade concorrente dos nossos cidadãos em processos políticos deliberativos. Esta cidadania juridicamente participativa, entretanto, dependerá, necessariamente, da atuação do Poder Judiciário – especialmente da jurisdição constitucional-, mas sobretudo do nível de pressão e mobilização política que, sobre ele, se fizer” (CITTADINO, 2004, p.231-232).
34
votado no dia das eleições. O processo eleitoral, nesta perspectiva, caracteriza-se apenas por
disputas políticas estratégicas de interesses individuais que resultam somente em acesso ao
poder administrativo pelas posições vencedoras e bem-sucedidas, com lógica de
funcionamento muito semelhante ao mercado. O processo eleitoral é o mecanismo que
legitima o acesso ao poder administrativo sem qualquer compromisso com a forma como este
será exercido. Nas palavras de Habermas (2007, p. 283):
“Segundo a concepção liberal, a política é essencialmente uma luta por posições que permitam dispor do poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião política, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, é determinado pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategicamente e pela manutenção ou conquista de posições de poder. O êxito desse processo é medido segundo a concordância dos cidadãos em relação a pessoas e programas, o que se quantifica segundo números de votos. Ao votar, os eleitores expressam suas preferências. As decisões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos de participantes do mercado voltados à conquista de êxito. São os eleitores que licenciam o acesso a posições de poder pelas quais os partidos políticos lutam, em uma mesma atitude que se orienta pela busca de sucesso. Um mesmo modelo de ação estratégica corresponde igualmente ao input dos votos e ao output do poder. ”
A concepção republicana, por outro lado, atribui ao processo político uma
dinâmica diferente da que ocorre com o mercado identificando-o com práticas comunicativas
públicas voltadas para o entendimento mútuo, sendo o seu paradigma a interlocução. Há o
expresso reconhecimento de duas dinâmicas estruturalmente diferenciadas: o poder
comunicativo que emerge de opiniões majoritárias através da utilização de mecanismos de
discurso e o exercício do poder administrativo. A disputa de interesses divergentes precisa
submeter-se a processo cooperativo para que resultados respeitados por todos possam ser
alcançados. Mais do que autorizar o exercício de poder administrativo, o processo político é
responsável por delimitar as fronteiras vinculantes para o exercício do poder administrativo
(HABERMAS, 2007, p.283).
No entanto, em contexto de pluralismo social e cultural, em contexto de visões de
mundo e valores divergentes sem horizonte de consenso, apenas a interlocução fundamentada
pelo caráter ético de uma comunidade concreta não viabiliza o entendimento, sendo incapaz
por si só de excluir as motivações estratégicas. A fixação de pressupostos e procedimentos de
deliberação aparecem para preencher essa lacuna na medida em que o reconhecimento e a
institucionalização das respectivas formas de comunicação da interlocução e do agir
35
instrumental tornam possível compatibilizá-las no médium das deliberações para produzir
uma razão procedimentalizada. Como explica o autor (HABERMAS, 2007, p. 286):
“Esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendimento e discursos sobre a justiça, além de fundamentar a suposição de que sob tais condições se almejam resultados ora racionais, ora justos e honestos. Com isso a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura de comunicação linguística. ”
Para o modelo procedimentalista o processo político da formação democrática da
vontade apresenta-se como procedimento através do qual ocorre a racionalização discursiva
das decisões de cidadãos que se auto-governam, mediante a programação e controle do poder
político.
Para esta teoria, os direitos políticos referem-se a um conjunto de posições
jurídicas muito mais abrangentes. Os direitos precisam ser concebidos de forma que
autonomia pública e privada sejam pressupostas reciprocamente. A autonomia política
somente passará a existir após interpretação e configuração, através do processo legislativo
legítimo, dos direitos que a consagram. Nas palavras de Habermas (2003a, 165):
“Isso vale também para os direitos políticos fundamentais que entram nesse contexto. O princípio segundo o qual todo o poder do Estado emana do povo tem que ser especificado, conforme as circunstâncias, na forma de liberdades de opinião e de informação, de liberdade reunião e de associação, de liberdades de fé, de consciência e de confissão, de autorização para participação em eleições e votações políticas, para a participação em partidos políticos ou movimentos civis, etc. Nos atos constituintes de uma interpretação jurídica do sistema de direitos, os cidadãos fazem um uso originário de uma autonomia política que se constitui através de um modo performativo auto referencial.”
Os direitos políticos assim compreendidos envolvem o conjunto de direitos
subjetivos positivados pelo legislador constituinte histórico que garantem ao cidadão sua
autonomia política e privada, conforme acima exemplificado; envolvendo inclusive os
direitos fundamentais que garantem a cada cidadão a participação, em igualdade de
condições, em processos de formação da opinião e da vontade, de forma que possam criar
direito legítimo a partir do exercício de sua autonomia política (HABERMAS, 2003a, p. 159).
O sentido dos direitos fundamentais, para Habermas, se diferencia bastante do
conceito de direitos fundamentais regularmente utilizado pela doutrina.
36
Habermas apresenta os direitos fundamentais como o conjunto de posições
jurídicas que precisam estar asseguradas para permitir a construção de um sistema jurídico
que compatibilize autonomia pública e privada dos cidadãos, direitos humanos e soberania
popular.
Nesse sentido, estes direitos fundamentais podem ser percebidos como
“condições da democracia”. Trata-se do conjunto de direitos essenciais ao estabelecimento
das condições para o diálogo democrático, primordiais no que se referem à criação das
condições ideais de fala dos cidadãos, no que se refere à criação do espaço dialógico para
realização do processo político democrático.
Há o reconhecimento pelo autor do sistema de direitos como conjunto de normas
que consagram as escolhas racionais dos indivíduos, portanto, o reconhecimento explícito de
uma dimensão objetiva da ordem jurídica, sendo esta uma conseqüência necessária do modelo
discursivo.
A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, nesta abordagem, resulta das
escolhas do constituinte originário ao definir os direitos fundamentais conforme as quatro
categorias de direitos humanos propostas por Habermas, e do constituinte derivado ao
configurar e reconfigurar o sistema jurídico à luz das normas e princípios elaborados pelo
constituinte originário.
A perspectiva objetiva não resulta da Constituição interpretada como ordem de
valores, como no modelo republicano, mas desta enquanto resultado das escolhas racionais de
cidadãos, legitimadas por um processo discursivo na forma de processo legislativo, cujo
resultado objetivo é o conjunto de normas e princípios jurídicos que configuram o sistema de
direitos.
É importante ressaltar que, para Habermas, essas normas e princípios, por
conterem sentido deontológico de validade, apresentam obrigatoriedade geral por meio de
argumentos normativamente fundamentados, muito diferente do que ocorre com os valores,
que precisam ser abordados numa ordem transitiva a partir de ordens de precedência e
costumes, visto que não se encontram normativamente escalonados. Normas e princípios
refletem as escolhas discursivas realizadas e aceitas por uma dada comunidade jurídica,
enquanto valores refletem opções morais não legitimadas por um processo legislativo, não
expostas à processo de escolhas racionais.
37
Neste sentido, a aplicação pela jurisdição constitucional da Constituição como
ordem de valores reflete imenso arbítrio, por não se utilizar de formas de discurso
previamente legitimadas, por não se utilizar de argumentos normativos previamente
justificados. Trata-se aqui da legitimidade da atuação do Poder Judiciário, que somente
ocorrerá a partir da utilização das formas de discurso compatíveis com a sua atuação.
São aparentes, portanto, as incompatibilidades identificadas entre direitos
humanos e soberania popular, ou, em relação ao dilema enfrentado pela hermenêutica
constitucional ao buscar compatibilizar Constituição e Democracia. Não é a coletividade
superior ao indivíduo, como na ótica republicana, e nem o indivíduo superior em importância
à coletividade, como no liberalismo.
Conforme proposto pelo modelo normativo da Democracia, este equilíbrio é dado
pela existência e atuação de indivíduos/cidadãos que exercem duplo papel, pois realizam
escolhas e ao mesmo tempo submetem-se às escolhas realizadas. Estas escolhas são co-
originárias e definem a tensão entre direitos humanos e soberania popular, entre Democracia e
Estado Constitucional, visto que definem a opção por um ponto de equilíbrio desejado entre
estes dois pólos.
Na verdade, a dimensão objetiva e a subjetiva dos direitos fundamentais podem
ser compreendidas como resultado direto do duplo papel assumido pelo indivíduo no modelo
da democracia procedimental, em um primeiro momento, e como resultado do modelo de
democracia procedimental que transfere para foros autônomos a dinâmica do processo
democrático. O espaço dialógico é que definirá a forma de equilíbrio entre estes dois pólos
de forma simultânea. Não dá para caminhar entre os dois pólos sem que aproximar-se de um,
implique em afastar-se do outro. As escolhas políticas realizadas devem levar estas questões
em consideração. O espaço dialógico é que definirá o equilíbrio, ora aproximando-se de um
pólo, ora de outro, e esta composição será dada por escolhas políticas realizadas de forma
legítima, pelos meios legítimos.
Explica Habermas que não há mais como abordar os direitos fundamentais sob a
perspectiva liberal, segundo a qual tais direitos são tratados apenas como direitos subjetivos
de liberdade em face do poder estatal quando também deveriam ser compreendidos,
simultaneamente, como normas objetivas de princípio e obrigatórias para todo o sistema
jurídico (HABERMAS, 2003a, p. 325). Para o autor, uma constituição construída a partir do
conceito de “auto-organização de uma comunidade jurídica”, por isso no contexto do Estado
38
Democrático de Direito, não pode limitar-se a regular apenas as relações estabelecidas entre
cidadãos e Estado. A democracia deliberativa procedimental, construída a partir do Estado de
Direito deve regular também os poderes econômico, social e administrativo (HABERMAS,
2003a, p. 326).
Resulta destas proposições que, se os direitos fundamentais não podem ser mais
concebidos apenas como direitos subjetivos de liberdade em face do poder Estatal, como
direitos negativos, a Jurisdição Constitucional também ganha novos contornos, visto que não
poderá mais apenas restringir-se à proteção de cidadãos autônomos em face do Estado.
Reconhece o autor que, numa democracia procedimental, os direitos fundamentais, portanto a
autonomia privada e a soberania popular, ficam expostos à agressão também nas esferas
econômica e social, necessitando de proteção mais ampla.
Estas proposições também apresentam impacto direto na divisão de poderes
classicamente concebida, tornando-se necessário adequá-la aos novos parâmetros. Se o
conjunto de direitos fundamentais é concebido sob nova ótica, a efetivação e proteção de tais
direitos também deve ser redimensionada.
Na abordagem discursiva da democracia, as funções da legislação, da justiça e da
administração são diferenciadas a partir das formas de comunicação e dos potenciais de
argumentos respectivos, como anteriormente mencionado. A transformação do poder
comunicativo em poder administrativo é regulada por leis que emergem do procedimento
democrático legítimo, sendo estas leis e esse procedimento resultado de um sistema jurídico
protegido por uma jurisdição constitucional.
Nesse sistema, os argumentos normativos necessários aos discursos de
fundamentação, consubstanciados em resoluções legislativas, e aos discursos de aplicação das
normas, implementados através de decisões judiciais, são construídos pelo Poder Legislativo
e pelo Poder Judiciário respectivamente, não estando tais argumentos normativos disponíveis
à Administração (HABERMAS, 2003a, p. 238-239).
O Poder Executivo deverá, para efetivação de tais direitos, conformar suas ações a
projetos e orientações previamente determinados pela instância legislativa legítima.
Ao Poder Legislativo originário, é atribuído o poder ilimitado de utilizar-se de
argumentos normativos e pragmáticos voltados à fundamentação de normas elaboradas
através de processo radicalmente democrático. Ao Poder Legislativo derivado é concedido
poder para utilizar-se de argumentos normativos e pragmáticos voltados à fundamentação de
39
normas, nos limites do sistema de direitos que viabiliza a autonomia privada e pública dos
cidadãos.
Ao Poder Judiciário, mais especificamente, à Jurisdição Constitucional, é
atribuída nova tarefa: considerando-se que apenas as “condições processuais da gênese
democrática das leis” são capazes de garantir legitimidade ao sistema jurídico, a esta caberá a
nobre tarefa de cuidar do sistema de direitos que viabiliza a autonomia privada e pública dos
cidadãos, em outras palavras, dos direitos políticos fundamentais (HABERMAS, 2003a, p.
326).
Explica, Habermas, que a constituição não deve ser compreendida como uma
“ordem jurídica e global concreta‟, que cristaliza uma escolha prévia para toda a sociedade. A
constituição deve ser compreendida como um sistema que normatiza procedimentos políticos
voltados para viabilizar a autodeterminação, juridicamente legitimada, de cidadãos que vivem
cooperativamente. “Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de
normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos comunicativos e
condições procedimentais do processo de legislação democrático. Tal compreensão
procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema da
legitimidade do controle da constituição ” (HABERMAS, 2003a, p. 326).
Torna-se ainda relevante enfatizar que os princípios que fundamentam a
legitimidade do processo democrático são suficientemente informativos, no sentido de
apresentarem conteúdo normativo, ainda que apresentem natureza procedimental, tornando-se
desnecessária sua densificação a partir de uma teoria substancial dos direitos (HABERMAS,
2003a, p. 329). Todo o sistema jurídico é concebido a partir uma perspectiva coerente e
racional, visto que amparado em uma teoria da democracia, e esta é suficiente para legitimar
discursos de fundamentação e discursos de aplicação de normas.
Uma análise dos direitos políticos sob a ótica de uma dimensão objetiva e
subjetiva dos direitos fundamentais, aliada uma análise discursiva de tais direitos, permite um
exercício de reflexão imediato. O conjunto dos direitos fundamentais pode ser interpretado
em dois sentidos distintos:
Como direitos fundamentais – primeiro sentido - referem-se aos quatro conjuntos
de direitos humanos fundamentais, concebidos como categoria de direitos previamente
acordados enquanto constitutivos do pacto democrático, nos termos apresentados por
Habermas: configuram o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e privada dos
40
cidadãos. Pode-se identificá-los como as regras do jogo democrático estabelecidas pelo poder
constituinte originário, como “condições da democracia”.
Estes direitos apresentam simultaneamente aspectos objetivos e subjetivos. No
aspecto objetivo, consagram normas objetivas de princípio e obrigatórias para todo o sistema
jurídico, criam “a possibilidade jurídico-objetiva de uma prática institucionalizada de
autodeterminação dos cidadãos”. No aspecto subjetivo, garantem direitos subjetivos em face
do poder administrativo, econômico e social, que viabilizam o exercício da autonomia pública
e privada.
Como direitos fundamentais – segundo sentido – referem-se ao conjunto de
direitos humanos positivados, configurados e reconfigurados, enquanto posições jurídicas
subjetivas, pelo legislador derivado.
Os direitos políticos fundamentais, no primeiro sentido, realizam-se através dos
direitos políticos fundamentais positivados, no segundo sentido. E estes somente serão
legítimos se forem interpretados e configurados a partir de um processo político que preencha
as exigentes condições de comunicação que permita a construção racional da opinião e da
vontade. Os direitos fundamentais no primeiro sentido direcionam e limitam a conformação
dos direitos fundamentais no segundo sentido. Nesse contexto, não se pode falar, por
exemplo, de uma liberdade ilimitada dos poderes políticos.
Os direitos políticos fundamentais, no primeiro sentido, servem como princípios
jurídicos de orientação para o legislador e ao mesmo tempo servem como parâmetro, pois
precisam atuar através da linguagem jurídica, do médium do direito estabelecido.
Como ensina Cass Sunstein (2009, p.182), “o governo autônomo depende para
sua existência dos direitos democráticos firmemente protegidos. O constitucionalismo pode
assim, garantir as pré-condições para a democracia limitando o poder das maiorias em
eliminar aquelas pré-condições. ” A jurisdição constitucional não pode invadir o espaço do
legislador, constituinte derivado, mas tem plena legitimidade para fazer cumprir sim a
Constituição originária, independente da atuação do poder legislativo derivado, pois as
normas constitucionais que caracterizam os direitos políticos fundamentais, no primeiro
sentido, são autoaplicáveis.
Por tais razões, os direitos políticos precisam ser interpretados no sentido proposto
por Habermas e não apenas como proposto pela doutrina tradicional, como direitos políticos
subjetivos de primeira dimensão, no sentido albergado pela teoria liberal.
41
A dificuldade para se definir e compreender os direitos políticos em face da
Constituição de 1988 resulta de uma abordagem equivocada: enquanto são interpretados
exclusivamente como direitos fundamentais subjetivos de primeira dimensão, direitos
negativos, estes não são suficientes para garantir a democracia. É necessário para uma teoria
da democracia consistente com o Estado Democrático de Direito em que os direitos políticos
sejam concebidos como os direitos fundamentais que garantem a autonomia privada e a
autonomia pública dos cidadãos, somente nesta perspectiva é possível uma compreensão
adequada dos direitos políticos.
Os direitos políticos fundamentais perdem seu conteúdo relevante quando são
analisados apenas enquanto direitos subjetivos, negativos, de primeira dimensão. Estes
deixam de ser pilar da democracia, descaracterizando-se a cidadania, alienando o indivíduo do
contexto social, permitindo a criação de um abismo entre política e democracia em virtude da
ausência de processos de legitimação. Esta abordagem tem por conseqüência a apatia dos
cidadãos, que sem o estabelecimento necessário das vias de acesso à arena discursiva, isolam-
se enquanto indivíduos, não conseguindo se articular adequadamente enquanto sociedade
civil, enquanto esfera pública, no sentido habermasiano.
Neste contexto, a coletividade constitui-se em um conjunto esquizofrênico de
indivíduos que não interagem adequadamente, o que resulta na precariedade da esfera de
autonomia individual e do exercício da soberania popular, na incapacidade do Estado de
equacionar os problemas de ordem pública básicos como educação, saúde, segurança entre
tantos outros.
Resulta ainda desse processo a erosão dos pilares da própria democracia, visto que
o legislador derivado perde seus parâmetros de atuação e por conseqüência sua legitimidade,
visto que não mais se utiliza dos discursos produzidos a partir do poder comunicativo dos
cidadãos, não mais se utiliza de processo democrático apto a garantir tratamento racional de
questões políticas (HABERMAS, 2003a, p. 321 e ss). O que resulta em políticas públicas
incapazes de equacionar as mazelas sociais e em uma jurisdição constitucional chamada a
colmatar espaços vazios que deveriam ser preenchidos por discursos jurídicos normativos de
fundamentação e não por discursos jurídicos de aplicação sem prévia legitimação.
A proposta aqui defendida é a de que seja realizada nova abordagem dos direitos
políticos, tomando-se como referencial o modelo normativo de democracia procedimental, e,
42
portanto, a partir da forma como o processo político e o sistema de direitos são concebidos
neste modelo.
Este deve ser o preciso conceito de direitos políticos: o conjunto de direitos
fundamentais que formam o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e privada
dos cidadãos. Os direitos políticos somente encontrarão um caminho para efetivação nos
moldes compatíveis com o Estado Democrático de Direito se for construída uma nova
perspectiva para sua interpretação, reconfiguração e aplicação.
1.3.1 Abordagem discursiva dos direitos políticos e delimitação do conteúdo dos direitos eleitorais
A delimitação do conteúdo, alcance e natureza jurídica dos direitos políticos,
partindo de uma compreensão discursiva, deve ser realizada levando-se em conta a estrutura
do sistema de direitos no contexto de uma democracia procedimental.
O referencial revolucionário da democracia, nesta abordagem, é a possibilidade de
emancipação do indivíduo a partir do seu reconhecimento como pessoa humana capaz de
autodeterminação e, simultaneamente, do seu reconhecimento como ser social capaz de
construir acordos racionais de convivência entre iguais, cujo referencial para igualdade é a
natureza humana.
Adotar o referencial de igualdade a partir da condição humana da pessoa significa
emancipar o indivíduo para fazer suas próprias escolhas, sem torná-lo refém de cosmovisões
metafísicas ou religiosas, previamente definidas. Significa atribuir ao indivíduo a condição de
cidadão capaz de regular sua vida em comunidade através do auto-entendimento. Significa
confiar na espécie humana como autora e responsável por seu destino.
Paradoxalmente, o reconhecimento dessa igualdade, considerando a condição
humana da pessoa, cria as condições para o reconhecimento e respeito das diferenças entre os
diversos seres humanos, para o reconhecimento do “outro”.
A igualdade é reconhecida através da garantia da “liberdade de todos”, do
reconhecimento simétrico de direitos para participar dos espaços dialógicos de interlocução,
enfim, da autonomia pública. A diferença é reconhecida partindo da liberdade de escolhas
43
atribuída a cada cidadão, considerada sua esfera individual de autodeterminação. O sistema de
direitos de uma democracia que se pretende legítima, é construído sobre essas premissas.
Parece óbvio o que foi dito, mas basta voltar quase dois séculos na história, e
analisar a primeira Constituição brasileira, para compreender-se a importância desse
parâmetro. Em 1824, no Brasil, a titularidade e o exercício dos direitos políticos dependiam
dos seguintes requisitos: ser homem, ter renda mínima (voto censitário), saber ler (voto
literário), ser católico, entre outros.14 Estado e Igreja misturavam-se a tal ponto que o
exercício do voto era realizado conforme a paróquia do eleitor. As mulheres, os analfabetos,
os libertos, os acatólicos entre outros não votavam. Apenas alguns “humanos” eram
qualificados como cidadãos pelo sistema de direitos.
Disputas de poder, revoluções e guerras foram levadas a efeito na luta pela
igualdade. Basta lembrar que a revolucionária Declaração dos Direitos dos Homens foi feita
para os homens, não atribuindo às mulheres os mesmos direitos. Marie Gouze (1748-1793) ou
Olympe de Gouges, como ficou conhecida, propôs, durante o período da revolução francesa, a
criação da Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã, tendo sido condenada por seu
ativismo e guilhotinada em 1793 por ser “desnaturada” (GOUZE, 1791).
14 Enunciava a Constituição de 1824, quanto aos requisitos para exercício dos direitos políticos: “ Art. 91. Têm voto nestas Eleições primariasI. Os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos políticos.II. Os Estrangeiros naturalizados.Art. 92. São excluídos de votar nas Assembléas Parochiaes.I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares,
que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos.III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e primeiros caixeiros das casas de
commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas.
IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral.V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, indústria, commercio ou
Empregos.Art. 93. Os que não podem votar nas Assembléas Primarias de Parochia, não podem ser Membros, nem
votar na nomeação de alguma Autoridade electiva Nacional, ou local.Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de
Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-seI. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou
emprego.II. Os Libertos.III. Os criminosos pronunciados em querela, ou devassa.Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-seI. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.II. Os Estrangeiros naturalisados.III. Os que não professarem a Religião do Estado.Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegiveis em cada Districto Eleitoral
para Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não sejam nascidos, residentes ou domiciliados.Art. 97. Uma Lei regulamentar marcará o modo pratico das Eleições, e o numero dos Deputados
relativamente à população do Império. ”
44
Atualmente, o reconhecimento da prerrogativa de dignidade e igualdade da
condição humana é marcado por diversas lutas, o que resta demonstrado pelos diversos
movimentos sociais de proteção aos deficientes, aos idosos, às crianças e adolescentes, apenas
para citar alguns. É a batalha pela igualdade construída a partir do reconhecimento da
diferença.
Neste contexto, a cidadania precisa ser compreendida como o vínculo jurídico que
atribui a cada pessoa o poder de ser reconhecida como igual em dignidade perante
determinado grupo social organizado, em razão da sua natureza humana. Em uma
compreensão discursiva da democracia, a cidadania garante a “consideração simétrica da
liberdade individual de cada um” como prerrogativa da “liberdade de todos”, sendo este o
sentido de igualdade. A igualdade apoia-se na premissa de que, a cada um, serão garantidas
condições equitativas de participação no processo de disputas argumentativas, no processo
democrático de justa coordenação das liberdades (NASCIMENTO, 2011, p. 723 e ss).
Os direitos políticos, então, devem ser compreendidos como o conjunto de
direitos que garante aos indivíduos o pleno exercício da cidadania.
Os direitos políticos podem ser conceituados como o conjunto de direitos
fundamentais que compõem o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e privada
dos cidadãos.
Como neste trabalho apresenta-se necessária a proposta de uma sistematização
dos direitos políticos que consiga abarcar o sentido amplo de tais direitos na democracia
discursiva, e por conseqüência torná-los mais efetivo, é importante realizar uma abordagem
analítica dos direitos políticos, para apontar que parcela destes direitos deve ser objeto do
Direito Eleitoral.
Para esta tarefa, escolhe-se como referencial a classificação dos direitos
fundamentais apresentada por Rogério Nascimento, uma vez que esta classificação distingue
os direitos fundamentais a partir do duplo papel do sujeito em face da ordem jurídica, pessoa
e cidadão, e da pretensão respectiva.
em:15
Assim, conforme já mencionado, distinguem-se os direitos políticos fundamentais
15 Segundo o autor: “a ) direito à autonomia (direito de não ingerência do poder público ou de particulares na esfera de liberdade do sujeito no papel de pessoa), desdobrável „direitos de defesa‟ (autorização de resistência contra interferências não consentidas, direitos estes usualmente materializados por meio de prestações negativas,
45
a) direitos à autonomia: - direitos de defesa;- direitos a proteção;
b) direitos de participação: - direito à lisura dos procedimentos;- direito-competência;
c) direitos à fruição.
Aqui, a classificação proposta será apropriada por um ângulo um pouco diferente
do previsto pelo autor.
A classificação utilizada como ponto de partida divide os direitos fundamentais
em direitos à autonomia, direitos de participação e direitos à fruição, considerando o duplo
papel do sujeito em face da ordem jurídica e a ótica da pretensão.
Esta classificação, ainda que ofereça novas contribuições por incluir mecanismos
procedimentais de garantia, identificando prestações negativas e positivas para resguardar
cada categoria de direitos, não permite clara delimitação dos direitos políticos no conjunto dos
direitos fundamentais. Nesta perspectiva, esta classificação resta bastante semelhante à
classificação que divide os direitos fundamentais, conforme a função preponderante, em
direitos de defesa (direitos de autonomia), direitos à prestação (direitos à fruição) e direitos de
participação (direitos de participação) por separar os direitos fundamentais a partir da
pretensão a ser exigida (autonomia, participação e fruição).
Ou seja, a depender da pretensão, qualquer direito fundamental pode assumir a
feição de direitos de autonomia, se a pretensão levar em consideração a defesa da dimensão
subjetiva, através de prestações positivas ou negativas que resguarde a esfera de autonomia
dos cidadãos; ou de direitos de participação, se a pretensão considerada for a garantia do
poder de agir e dos respectivos meios, através de prestações negativas e positivas; ou ainda,
direitos de fruição, quando a pretensão relacionar-se com a partilha justa dos recursos
coletivos (NASCIMENTO, 2011, p. 723 e ss).
isto é, com a proibição de certos comportamentos) e „direitos a proteção „ (poder de exigir a intervenção protetora do estado, usualmente materializado em prestações positivas, sejam de natureza jurídica ou fática, isto é, no exercício de direito subjetivo de acesso a serviços de proteção ou de reparação);(b) direito de participação (direito de influir como cidadão na formação da opinião e da vontade geral) que, por sua vez, se desdobra no„direito à lisura dos procedimentos‟, materializado em prestações negativas, ou no „direito-competência‟ de atuar através do procedimento devido, materializado em prestações positivas assecuratórias do poder de agir (direitos e garantias de atuação legítima);(c) direito a fruição, traduzindo a exigência de uma partilha justa dos recursos coletivos (reconhecível ao sujeito quer seja como cidadão, quer seja como pessoa), usualmente materializado por meio de prestações positivas (NASCIMENTO, 2011, p. 731).
46
O direito de acesso à justiça, o direito ao voto, o direito ao meio ambiente, o
direito à defesa do consumidor, o direito à saúde, o direito à educação, a função social da
propriedade, entre diversos outros, podem ter pretensões formuladas sob o ângulo tanto dos
direitos à autonomia, quanto dos direitos de participação ou, ainda, de direitos à fruição.
Ressalte-se, esta classificação pode ser bastante útil para identificar sob qual
aspecto o direito fundamental precisa ser protegido, mas não permite identificar quais seriam
os direitos relativos à cidadania ou quais seriam os direitos políticos.
Seja a partir da classificação que distingue os direitos fundamentais em direitos de
primeira, segunda ou terceira dimensão; seja a partir da classificação de tais direitos que os
identifica com uma dimensão objetiva ou subjetiva; ou ainda, a partir de uma classificação
quanto à pretensão, subdividindo-os em direitos à autonomia, à participação ou à fruição;
todas estas classificações revelam a possibilidade de olhar para o conjunto dos direitos
fundamentais a partir de ângulos diferentes, o que demonstra o caráter multidimensional dos
direitos fundamentais e a complexidade para sua abordagem. Estas diversas classificações
quanto aos direitos fundamentais atendem a enfoques diferentes, sendo relevante conforme o
objetivo a ser atingido.
Como nenhum destes critérios permite a delimitação precisa dos direitos políticos
relativos ao exercício da cidadania, sendo este o objetivo perseguido, torna-se necessário
lançar mão de outro ângulo para “olhar” os direitos fundamentais.
É precisamente esta outra forma de olhar os direitos fundamentais que diferencia a
abordagem realizada por Habermas da abordagem dos direitos fundamentais utilizada
recorrentemente pela doutrina.
Conforme descrito anteriormente, Habermas (2003a, p. 160), ao interpretar os
direitos fundamentais à luz de uma teoria do discurso, considera como direitos fundamentais o
conjunto de direitos que formam o sistema de direitos que viabiliza a autonomia pública e
privada dos cidadãos.
O autor demonstra em sua obra Direito e Democracia (HABERMAS, 2003a, p.
113-168), como este sistema é construído e quais são os direitos que consolidam os pilares de
uma democracia discursiva. Precisamente estes direitos devem ser considerados como direitos
de cidadania, como direitos políticos fundamentais de autonomia privada e de autonomia
pública: “Iguais direitos políticos fundamentais para cada um resultam, pois, de uma
juridificação simétrica da liberdade de todos os membros do direito; e esta exige, por seu
47
turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da
autonomia política através da assunção dos direitos do cidadão” (HABERMAS, 2003a, p.
164).
Para que seja possível diferenciar e identificar os direitos políticos, à luz da teoria
do discurso, propõe-se a classificação dos direitos fundamentais a partir de duas matrizes:
(1) Direitos da cidadania: - direitos políticos de autonomia;- direitos políticos de participação;
(2) Direitos de fruição da cidadania.
Os direitos da cidadania abrangem os direitos que consolidam os pilares da
democracia discursiva. Os direitos políticos de autonomia têm por fim a criação e proteção
dos meios para o exercício e manifestação da cidadania, considerados aqui os cidadãos
enquanto destinatários do direito. Estes se identificam com os direitos positivados pelo
legislador originário a partir das primeiras três categorias que dão origem ao código jurídico
de convivência, nos termos propostos por Habermas (2003a, p. 159). Tais direitos vinculam
as esferas de atuação social, seja o Estado, o Mercado ou a Sociedade Civil, à criação do
devido processo para o exercício da cidadania, inclusive de instituições que os garanta, em
seu aspecto autonomia privada. É possível pensar aqui no acesso à justiça, por exemplo, como
meio necessário para resguardar a “possibilidade de postulação judicial de direitos e da
configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual” (HABERMAS, 2003a,
p.159). Ou ainda em diversos direitos subjetivos garantidos a partir das previsões
constitucionais contidas no artigo 5º, que tem por objetivo garantir “direito à maior medida
possível de iguais liberdades subjetivas de ação” (HABERMAS, 2003a, p.160).
Os direitos políticos de participação, por sua vez, têm por fim a criação e proteção
dos meios para o exercício e a manifestação da cidadania, considerados aqui os cidadãos
enquanto autores do direito. Estes se correlacionam com os direitos positivados a partir da
quarta categoria, conforme proposto pelo autor. Aqui devem ser almejadas as situações ideais
de fala, para que todo cidadão possa participar de maneira equitativa dos processos
argumentativos, para a formação racional da vontade coletiva. Abrangem “os direitos
fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião
e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles
criam direito legítimo” (HABERMAS, 2003a, p. 159).
Os direitos de fruição da cidadania correlacionam-se tanto com os direitos
políticos à autonomia, quanto com os direitos políticos de participação, uma vez que abrange
48
seu conteúdo todos os demais direitos fundamentais que precisam ser reconhecidos para o
exercício dos direitos políticos de autonomia e de participação. Relacionam-se estes com a
quinta categoria de direitos prevista por Habermas. Pensemos aqui na defesa do consumidor
como atribuição do Estado, prevista no artigo 5º da Constituição, inciso XXXII, que exige dos
prestadores de serviços a disponibilização de canais de acesso para registro e solução de lesão,
ou ameaça de lesão, ligados ao consumo e dos Poderes Públicos as ações necessárias para
regulamentar, executar e garantir judicialmente as políticas de proteção ao consumidor. O
mesmo raciocino se aplica em relação ao meio ambiente, à educação, à saúde, ao
recolhimento de impostos, ou a qualquer direito que contribua para o exercício simétrico da
liberdade de cada um, em face de uma convivência coletiva. São os direitos fundamentais que
asseguram as “condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em
que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos
elencados de (1) até (4)” (HABERMAS, 2003a, p. 159).
Apresentada esta classificação, torna-se possível identificar um parâmetro para
definir o conteúdo dos direitos políticos que devem ser objeto do Direito Eleitoral.
Os direitos políticos considerados como objeto do Direito Eleitoral são os direitos
políticos de participação que se relacionam com o processo eleitoral, o que parece óbvio, mas
que supera em muito o direito de votar e ser votado, apenas normativamente considerado,
como forma pontual de participação nos termos previstos pelo Estado Liberal.
O conteúdo dos direitos eleitorais abrange a especificação e o detalhamento das
regras do jogo para a competição eleitoral, a especificação e o detalhamento dos
procedimentos necessários à realização das eleições e a especificação e detalhamento dos
procedimentos necessários para resguardar e assegurar as condições da democracia
alcançadas pelo processo eleitoral.
Todos os direitos relativos ao sistema de direitos, ligados ao cidadão enquanto
autor e destinatário das normas jurídicas de convivência, no que se refere à normatização,
regulamentação e regulação do processo eleitoral, à definição de estrutura da legítima
competição eleitoral e à definição dos conteúdos jurídicos dos termos envolvidos devem ser
considerados como objeto do Direito Eleitoral e, portanto, como matérias de competência da
Justiça Eleitoral.
Os direitos políticos de participação, objeto do Direito Eleitoral, ou seja, os
direitos eleitorais, podem ser conceituados como direitos da cidadania que garantem a
49
autonomia pública dos cidadãos, e por extensão, a soberania popular e o devido processo
eleitoral, pois referem-se exatamente às escolhas legitimas que irão governar os ciclos
eleitorais, às escolhas que irão determinar a participação legitima de todos os interessados nas
diversas fases do ciclo eleitoral e na escolha legítima de representantes políticos.
E estes direitos políticos de participação, os direitos eleitorais, apresentam
natureza jurídica de direitos fundamentais da democracia, enquanto um dos alicerces do
sistema de direitos, ao lado dos direitos fundamentais de autonomia. Esta classificação é
essencial, como veremos à diante.
1.3.2 Sujeitos da democracia
A soberania popular, na democracia procedimental, é concebida sob a ótica de
uma filosofia pós-metafísica, que transfere para a linguagem o seu paradigma, permitindo a
construção de uma soberania a partir de formas de comunicação sem sujeito. Aqui, o sistema
político não é considerado como topo ou como centro da sociedade, mas sim como um
sistema de ação ao lado de outros sistemas.
A formação democrática da vontade funciona como procedimento através do qual
ocorre a racionalização discursiva das decisões de cidadãos que se autogovernam, mediante a
programação e controle do poder político. A política deliberativa passa a depender
diretamente da institucionalização dos procedimentos necessários ao processo de
entendimento mútuo.
Neste modelo, a perspectiva horizontalizada do procedimento democrático liga-se
ao conjunto de cidadãos enquanto autores e destinatários do sistema de direitos ao qual
encontram-se submetidos.
Através da institucionalização do poder político na forma de Estado, configurado
como poder político de organização, de sanção e de execução, como resultado da
verticalização das formas de comunicação, transfere-se a autonomia política para foros e
espaços dialógicos.
A base da soberania popular descola-se do indivíduo, transferindo-se para uma
complexa rede de comunicação com procedimentos especificamente determinados,
garantindo-se assim o caráter radicalmente democrático do modelo normativo procedimental.
50
O descolamento da soberania popular de sua base original, o indivíduo, transfere
também a titularidade da democracia para esta complexa rede de comunicação, tornado
indeterminado o sujeito dessa relação. Os direitos políticos de participação passam a ser
exercidos também através do poder comunicativo, tornando-se transindividuais, para
coordenarem-se a partir de foros e espaços dialógicos de sujeito indeterminado, transferindo-
se para a coletividade. Coletividade aqui compreendida como sujeito indeterminado resultante
dos espaços dialógicos construídos a partir da associação de cidadãos livres e iguais, reunidos
para deliberar a respeito de sua convivência, como resultado do pacto constitucional de matriz
democrático-deliberativa. Além do cidadão, a coletividade, no exercício do poder
comunicativo, também se legitima como sujeito da democracia.
As consequências dessa premissa são diversas, visto que compreender a
coletividade como sujeito da democracia, implica em reconhecer o impacto desta titularidade
em face dos diversos direitos fundamentais. Aqui, especificamente, interessa os efeitos em
face dos direitos políticos de participação, objeto do Direito Eleitoral, os direitos eleitorais.
Se os direitos eleitorais, nesta nova abordagem, podem ser legitimamente
exercidos tanto pelo cidadão quanto pela coletividade, em suas diversas formas de
manifestação, resta evidente o quanto é insuficiente a compreensão do cidadão, enquanto
indivíduo portador de título de eleitor, como sujeito exclusivo democracia.
Uma abordagem inadequada da cidadania, e, portanto, da titularidade dos direitos
políticos, enseja a limitação inconstitucional do exercício dos direitos políticos.
Todos os indivíduos e a coletividade, independente da qualificação para o
exercício direto dos direitos políticos de participação, são cidadãos sujeitos aos efeitos deste
exercício pelos demais atores do processo político. Todos os cidadãos, aqui compreendidas as
crianças, os idosos, os conscritos, os presos, os analfabetos, ou seja, inclusive aqueles
cidadãos com direitos políticos limitados, suspensos ou cassado, sujeitam-se aos efeitos do
processo eleitoral (entre estes a propaganda irregular, a poluição visual, o abuso do poder
político, o abuso do poder econômico, etc...) e às decisões dos políticos eleitos, demonstrando
que há uma esfera dos direitos da cidadania que permanece intacta, os direitos políticos de
autonomia, apesar de restrições aos direitos políticos de participação. Tais cidadãos
permanecem destinatários do direito produzido.
A título de exemplo, a citação de algumas situações pode demonstrar restrições
inconstitucionais de direitos políticos de autonomia como resultado de uma abordagem
51
equivocada e limitada dos direitos políticos: a impossibilidade de conceder título de eleitor ao
cidadão que está em liberdade condicional impede que este exerça outros direitos visto que
não pode tirar documento de identidade, não pode cadastrar-se no cadastro de pessoa física
(CPF), o que limita claramente sua autonomia privada. O cidadão nesta condição, não tem
acesso a documentos, ou ao ensino público ou a empregos regulares.
A coletividade, enquanto autora e destinatária do sistema jurídico, também é
afetada pelo processo eleitoral e pelas decisões tomadas por políticos eleitos. Há direitos
políticos, dos quais a coletividade é titular, que apenas podem ser reconhecidos e protegidos
em sua dimensão transindividual, perdendo sua essência em face de uma abordagem
meramente individual.
Assim, o direito à livre participação no processo eleitoral é cerceado quando uma
comunidade inteira encontra-se ao arbítrio da ação de quadrilhas envolvidas com tráfico de
drogas; ou quando a prefeitura condiciona a concessão de licença para circular transporte
coletivo à afixação de propaganda eleitoral, da prefeita da cidade, em veículos particulares,
submetendo o grupo de proprietários de vans à exigência abusiva e a comunidade daquela
circunscrição à propaganda irregular; ainda é possível citar como exemplo, o político que
utiliza material escolar e estabelecimento de ensino da rede pública de educação para realizar
campanha política, como se fosse o promotor do evento, expondo alunos e pais a
circunstâncias constrangedoras de abuso de poder político; ou quando centros sociais
deliberadamente protagonizam políticas públicas em substituição à ação do Estado com
objetivos claramente eleitorais em acordo com ocupantes de cargos públicos.
A ausência do devido reconhecimento dos sujeitos da democracia neste novo
contexto não só impede o exercício pleno dos direitos políticos, como impede o
reconhecimento de eventuais abusos praticados por candidatos, partidos, parlamentares e até
da sociedade civil organizada no processo político.
O reconhecimento e a legitimação das diversas formas de circulação do poder
político são essenciais para ajustá-las às regras e procedimentos democráticos. Apenas a partir
deste mapeamento, é que se torna possível estabelecer as regras do jogo, identificar e coibir
eventuais abusos. O reconhecimento de cidadãos, candidatos, partidos políticos, entidades
representantes da sociedade civil, Ministério Público e da Justiça Eleitoral como agentes
legitimados para defesa e proteção dos direitos eleitorais é essencial.
52
1.4. Uma análise discursiva da Justiça Eleitoral
A opção política realizada pelo poder constituinte brasileiro, com a promulgação
da Constituição da República em 1988, buscou superar o modelo liberal, consagrando em seu
artigo primeiro a República Federativa do Brasil como Estado Democrático Social de Direito.
O novo modelo implantado pela Carta Magna demanda redimensionamento de
papéis, conceitos e instituições, notadamente da jurisdição eleitoral e da sociedade civil
organizada para realizar o princípio democrático.
Não obstante, a Constituição da República de 1988 preconize um novo modelo de
Estado e, portanto, um novo modelo para as relações democráticas, os direitos políticos
relativos à cidadania não foram devidamente explicitados e sistematizados pelo texto
constitucional. Tampouco avançou a legislação eleitoral no redimensionamento necessário e
suficiente de suas atribuições e dos direitos eleitorais.
Embora tenham sido publicadas diversas leis em matéria eleitoral, não houve
movimento necessário e suficiente para implementação e regulamentação de processo
eleitoral compatível com a nova abordagem de Estado, permanecendo o Código Eleitoral de
1965 ainda em vigor como a norma jurídica que regulamenta a competência constitucional da
Justiça Eleitoral.
A lei complementar responsável por determinar a competência da Justiça Eleitoral
permanece prescrevendo que incumbe a esta a tarefa de assegurar a organização e o exercício
dos direitos políticos, precipuamente os de votar e ser votado.
Quando se busca compatibilizar um modelo de Estado Democrático e Social de
Direito com premissas do Estado Liberal do século XVIII e XIX, é compreensível que
dissonâncias venham a ocorrer. A tentativa de aliar uma cidadania concebida sob a
perspectiva liberal, em virtude de inércia/omissão legislativa, a uma sociedade múltipla e
complexa bem diferente das sociedades dos séculos passados, resulta em um exercício de
cidadania caracterizado por momentos de participação em épocas de eleição e por uma
aparente apatia nos períodos compreendidos entre as mudanças de mandatos, no que se refere
a assuntos políticos, uma vez que o clamor social encontra-se represado pela inexistência dos
canais necessários para sua legitimação.
53
Uma mentalidade política construída com fundamento na abordagem liberal
também colabora para justificar uma legislação eleitoral infraconstitucional que legitima,
apenas a participação do Ministério Público, partidos e candidatos no processo eleitoral. Fato
que reforça a idéia de uma abordagem inadequada da relação cidadão/Estado/sociedade, uma
vez que a parte interessada, cidadão e coletividade, permanece sendo convocada apenas para
validar disputas de poder.
A abordagem liberal dos direitos políticos também contribui para explicar porque
decisões em matéria eleitoral tem seu foco majoritariamente voltado apenas para os direitos
eleitorais enquanto direitos subjetivos, como direitos de defesa, sem o debate adequado a
respeito destas questões pela ótica objetiva dos direitos. Também é perceptível que o foco
dos direitos políticos em geral, e dos direitos eleitorais em especial, na forma como é
abordado pela doutrina e pela jurisprudência, volta-se para os direitos políticos enquanto
direitos individuais, sem o reconhecimento tão necessário da esfera coletiva e de seu aspecto
transindividual.
O reconhecimento da multidimensionalidade dos direitos políticos, e dos direitos
eleitorais, levaria a debates importantes quanto aos limites constitucionais do exercício do
poder político, viabilizando a reconfiguração do exercício dos direitos e dos poderes políticos
do Estado, sob a nova perspectiva do Estado Democrático de Direito.
Como dito anteriormente, a abordagem fragmentada e limitada dos direitos
políticos contribui para as práticas de corrupção da política brasileira, visto que, em tese, o
indivíduo que se candidata à uma função pública não tem qualquer responsabilidade para com
a sociedade civil, visto que, desde que seus direitos subjetivos estejam resguardados e a sua
atuação esteja validada por eleições, não há qualquer outra limitação no modelo liberal de
democracia que impeça sua atuação como ocupante de cargo público voltado para interesses
privados se este estiver em conformidade com parâmetros legais formais. Para esta linha de
interpretação, as regras do jogo democrático contemplam apenas conteúdo relativo à disputa
pelo poder, não sendo capaz de prescrever limites e direcionamento para a atuação dos
poderes políticos do Estado e para a sociedade civil organizada.
Outro ponto a merecer destaque imediato é o texto do parágrafo único, do artigo
primeiro do Código Eleitoral: a atribuição de poder regulamentar à Justiça Eleitoral.
A análise do processo eleitoral e das Resoluções e Instruções expedidas pela
Justiça Eleitoral demonstram que as normas expedidas por esta justiça especializada muitas
54
vezes ultrapassam o tradicional limite da regulamentação, para legislar a respeito de assuntos
do processo eleitoral. E na maior para das vezes com o assentimento geral e aquiescência do
Supremo Tribunal Federal.
Por outro lado, resta indubitável que muitos dos avanços implementados no
processo eleitoral, desde a implantação da Constituição de 1988, resultaram do exercício deste
poder pela Justiça Eleitoral, ao expedir resoluções e instruções normativas a cada eleição, que
resultaram em posterior alteração na legislação eleitoral.
A produção parlamentar relativa à matéria eleitoral, em geral, tem “reagido” ao
trabalho realizado pela Justiça Eleitoral, seja no exercício do poder regulamentar, seja a partir
da interpretação e aplicação da legislação eleitoral. Muitas vezes o poder legislativo agiu, a
posteriori, para reconfigurar ou limitar abordagem dos direitos políticos consagrada por
interpretação realizada pela Justiça Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal.
A título de exemplo, podem ser citadas as resoluções editadas para regulamentar a
verticalização das coligações, para estabelecer o número de cadeiras ocupadas por prefeitos,
ou ainda as regras da fidelidade partidária; matérias tratadas em resoluções da Justiça
Eleitoral, que em data posterior foram regulamentadas através de lei específica.
Em virtude de omissão legislativa, a atividade parlamentar também se viu
compelida a votar matérias que chegaram ao congresso através de leis de iniciativa popular.
Dois casos são emblemáticos: a criação do artigo 41-A, da Lei 9.504/1997, que aborda
condutas vedadas para captação de sufrágio, acrescentado pela Lei 9840/99; e a lei de
iniciativa popular enviada ao Congresso para criar regras relativas à moralidade eleitoral para
o exercício do mandato, Lei Complementar 135 de 04 de junho de 2010. Estas leis indicam
claramente a existência de uma sociedade civil organizada capaz de mobilização para
legitimação do processo político e uma classe política ainda refém de uma cultura
democrática ultrapassada.
Mas, é preciso retornar à questão: qual deveria ser o parâmetro democrático para
o exercício legítimo do poder regulamentar? Que limites este deve respeitar?
Deve ser ressaltado que as diversas ponderações realizadas até aqui se baseiam na
premissa de uma abordagem fragmentada e insuficiente dos direitos políticos e dos direitos
eleitorais, ou, em outras palavras, na ausência de uma sistematização necessária e suficiente
de tais direitos em face da nova concepção de Estado em contexto de profundas diferenças e
múltiplas demandas sociais.
55
Mas esta premissa sozinha não é suficiente para justificar os problemas para
interpretação, aplicação e efetivação dos direitos políticos. Há, ainda, um outro complicador
bastante relevante: este refere-se à legitimação da atuação da Justiça Eleitoral enquanto poder
político estatal.
O mesmo poder político estatal, em princípio órgão jurisdicional, no exercício das
suas atribuições, acumula as três principais funções típicas do Estado: exercita a jurisdição
em matéria eleitoral, administra o processo eleitoral em todas as suas fases e expede
resoluções com força de lei em matéria eleitoral. O mesmo poder que expede normas,
administra e regula o processo eleitoral, acumula a tarefa de fiscalizá-lo administrativa e
judicialmente.
Para enfrentar os problemas relativos à interpretação, aplicação e efetivação dos
direitos políticos de participação, assim como os problemas relativos à legitimação da atuação
da Justiça Eleitoral, torna-se necessário recorrer, mais uma vez, a uma teoria da democracia
que aponte caminhos para a construção de uma cidadania compatível com o Estado
Democrático de Direito.
A teoria procedimental da democracia, conforme explicitado neste capítulo,
constrói seus pressupostos a partir do reconhecimento das diferentes formas de comunicação
que compõem a formação da vontade comum. Habermas demonstra que cada forma de
comunicação se encontra ligada a processos de auto-entendimento específicos e
institucionalizados a partir de diferentes papéis. Da mesma forma que a pessoa humana
assume simultaneamente o papel de indivíduo e cidadão, também as funções da legislação,
da justiça e da administração são diferenciadas a partir dos potenciais de argumentação e das
formas de comunicação correspondentes (HABERMAS, 2003a, p.232).
Conforme mencionado anteriormente, Habermas analisa a lógica da divisão de
poderes do Estado a partir da perspectiva da teoria do discurso. À administração, responsável
pela implementação de políticas públicas definidas pelo poder legislativo, é vedada a
utilização de argumentos normativos que contenham resoluções de caráter legislativo ou de
decisões judiciais. Os argumentos normativos resultam das formas de comunicação através
das quais o legislativo e a jurisprudência fundamentam e aplicam normas. As leis
transformam o poder comunicativo em administrativo, como resultado de acordos realizados a
partir do procedimento democrático (HABERMAS, 2003a, p.238).
56
Enfim, a estrutura do modelo procedimental de democracia tem por fundamento o
reconhecimento das diversas teias de comunicação inerentes à sociedade assim como o
reconhecimento da institucionalização dos diversos espaços de interlocução, o que confere ao
modelo procedimental caráter radicalmente democrático por atribuir aos cidadãos a
responsabilidade pelo processo político, através da garantia das condições de comunicação e
de procedimentos que legitimem a formação da opinião e da vontade.16
Na medida em que a Justiça Eleitoral desempenha as funções administrativa,
jurisdicional e legislativa, de que forma deveria se dar a legitimação de sua atuação?
Em tese, o mesmo poder estatal não poderia dispor, ao mesmo tempo, dos
diferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes.
A utilização do poder administrativo, legislativo e judicial, simultaneamente, pela Justiça
Eleitoral, somente estaria devidamente legitimada se fosse possível a institucionalização dos
discursos correspondentes à cada função, se fossem criados os processos de fundamentação
para aceitabilidade racional da legislação e da jurisprudência. De outra forma, os pressupostos
comunicativos para argumentos normativos de fundamentação e aplicação restariam não
atendidos (HABERMAS, 2003a, p. 217).
Enquanto Justiça Eleitoral no desempenho de sua atribuição típica de jurisdição, é
possível compreender que esta função se encontra parcialmente legitimada através da
jurisprudência produzida pelos tribunais eleitorais, pelo uso de argumento normativos de
aplicação. Diz-se parcialmente porque o cidadão e a sociedade civil organizada não possuem
legitimidade ativa expressa para participar amplamente deste espaço de interlocução. As
ações típicas da Justiça Eleitoral atribuem legitimidade ativa apenas aos candidatos, aos
partidos e ao Ministério Público. Portanto, o espaço dialógico para o exercício do poder
comunicativo não se encontra amplamente garantido. Principalmente se pensarmos que as
16 Nas palavras de Habermas (2003ª, p.239): “do ponto de vista da lógica da argumentação, a separação entre as competências de instâncias que fazem as leis, que as aplicam e que as executam, resulta da distribuição das possibilidades de lançar mão de deferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes, que estabelecem o modo de tratar esses argumentos. Somente o legislador político tem o poder ilimitado de lançar mão de argumentos normativos e pragmáticos, inclusive os constituídos através de negociações equitativas, isso, porém, no quadro de um procedimento democrático amarrado à perspectiva da fundamentação de normas. A justiça não pode dispor arbitrariamente dos argumentos enfeixados nas normas legais; os mesmos argumentos, porém, desempenham um papel diferente, quando são aplicados num discurso jurídico de aplicação que se apóia em decisões consistentes e na visão da coerência do sistema jurídico em seu todo. A administração não constrói nem reconstrói argumentos normativos, ao contrário do que ocorre com o legislativo e a jurisdição. As normas sugeridas amarram a persecução de fins coletivos a premissas estabelecidas e limitam a atividade administrativa no horizonte da racionalidade pragmática. Elas autorizam as autoridades a escolher tecnologias e estratégias de ação, com a ressalva de que não sigam interesse ou preferências próprias – como é o caso de sujeitos de direito. ”
57
ações típicas eleitorais apresentam estrutura de processo coletivo, produzindo efeitos erga-
omnes.
Quanto à tarefa de administrar o processo eleitoral,17 caberia a esta Justiça
especializada, em tese, apenas optar entre tecnologias e estratégias para a implementação das
políticas públicas definidas pelo legislador.
No que se refere à administração do processo eleitoral, a Justiça Eleitoral já
avançou bastante quanto à implementação das condições e procedimentos que garantem o
processo dialógico de interlocução.
Atualmente, com o processamento eletrônico das eleições, através da votação
realizada via urna eletrônica, o enorme problema ligado à legitimidade das eleições no que se
refere às fraudes realizadas durante o processo de votação e a apuração dos votos, foi bastante
mitigado. Nesta hipótese, é possível afirmar que as condições atingidas pelo processo político
brasileiro em termos de meios de manifestação equitativa da vontade, no que se refere à
votação, aproximam-se cada vez mais das situações ideais de fala previstas por Habermas. A
Justiça Eleitoral realiza um trabalho belíssimo e vanguardista, levando a uma maioria
significativa de eleitores brasileiros a possibilidade efetiva de realizar seu direito ao voto.
Note-se que o fator preponderante e responsável por legitimar esta fase é a
participação do cidadão. As Seções Eleitorais nos dias de Eleição são compostas por cidadãos
recrutados junto à sociedade civil, que em tais dias prestam enorme serviço à democracia,
colaborando para o pleno sucesso dessa fase do processo eleitoral. Os prédios cedidos para
alocação das seções eleitorais são prédios cedidos pelo próprio poder público ou por
representantes da sociedade civil, como por exemplo, escolas e clubes. É possível notar
claramente que, onde o cidadão e a sociedade civil participam, onde há acordo para formação
do processo de interlocução entre Estado, Sociedade Civil e cidadãos, o processo político
encontra-se plenamente legitimado.
No entanto, a função administrativa atribuída à Justiça Eleitoral, nas demais fases
do processo eleitoral ainda se encontra bastante distantes da garantia de um espaço de
interlocução que assegure a todos os interessados as condições procedimentais necessárias e
suficientes para proporcionar o diálogo democrático. O processo eleitoral continua ainda
submetido ao arbítrio do abuso do poder econômico e do abuso do poder político em ampla
17 Para compreensão mais detalhada do processo eleitoral ver: RAMAYANA, 2012; CERQUEIRA, 2006; CÂNDIDO, 2010; COSTA, 2009; TORQUATO, 1998; TEIXEIRA, 2003.
58
escala, sem que haja mecanismos eficientes suficientemente estabelecidos para combatê-los,
contribuindo de forma decisiva para este quadro a ausência de clareza quanto às atribuições
da Justiça Eleitoral. 18
Aqui apresenta-se outra questão relativa à função administrativa exercida pela
Justiça Eleitoral: em tese, a administração responsável pelas escolhas políticas voltadas para
implementação do processo eleitoral deveria ter sua ação limitada pelos direitos subjetivos
dos indivíduos/cidadão, pelos direitos subjetivos da coletividade, o que seria controlado pelo
poder legislativo e pelo poder judiciário, nas arenas discursivas específicas. No entanto, se
tais escolhas políticas forem realizadas pela própria Justiça Eleitoral, no uso de seu poder
regulamentar, e forem controladas pela própria jurisdição eleitoral, a quem estaria atribuída a
tarefa de resguardar os direitos políticos dos excessos da própria Justiça Eleitoral?
Quanto à função normativa desempenhada pela Justiça Eleitoral, o exercício de
seu poder regulamentar tem se estendido para além da tarefa de detalhar a legislação eleitoral,
ultrapassando a fronteira de poder administrativo, para estabelecer procedimentos e escolhas
políticas que resultam na tarefa típica do poder legislativo de interpretar e configurar os
direitos políticos.
Ainda quanto ao exercício do poder normativo, também não se encontra
claramente expresso no sistema jurídico brasileiro procedimentos que garantam a legitimação
desta atuação. A Justiça Eleitoral, em tese, não poderia “dispor arbitrariamente dos
18 Diversos outros problemas se apresentam quando se pensa de forma mais ampla no processo eleitoral. Pode-se citar alguns exemplos: a pressão exercida junto à comunidades carentes para venda de votos, através de coação por grupos especializados, ou através da prestação de serviços por centros sociais de candidatos, ou ainda pela troca de bens ou dinheiro oferecidos por cabos eleitorais; o cadastramento com declaração falsa de residência por eleitores que receberam “incentivos” para alistamento conforme o interesse do candidato; e por fim a ausência de legitimação do cidadão e da coletividade para acionar a Justiça Eleitoral de forma direta quanto aos atos lesivos ou ilícitos praticados nesta fase, entre diversos outros problemas. Os problemas também se avolumam visto que a legislação não é clara ou é falha quanto a vários pontos como por exemplo: a ausência de uma definição clara do que se considera “apresentação da prestação de contas” pelos candidatos para efeitos de diplomação e de quitação eleitoral; o prazo para diplomação do suplente e o respectivo prazo para avaliação de problemas em sua prestação de contas; a comprovação do abuso de poder político ou econômico em virtude da dificuldade de levantamento das provas; o prazo exíguo para ajuizamento das ações típicas da justiça eleitoral; a utilização de termos de baixa densidade jurídica pela legislação eleitoral, como por exemplo os utilizados para especificar abuso do poder econômico, abuso do poder político, moralidade eleitoral para o exercício do cargo, entre outros; a ausência da legitimação dos cidadãos e da coletividade para impugnar atos ilegítimos do processo eleitoral. Estas situações geram enormes interferências e distorções nas condições de comunicação e, portanto, no processo de formação da opinião e da vontade, retirando desse espaço de interlocução uma boa parte de sua legitimidade. Não está definitivamente garantida a qualquer cidadão o exercício pleno de sua autonomia política, visto que não está garantido a todos os direitos fundamentais à participação, em igualdade de condições, no processo de formação da opinião e da vontade. Quanto a este ponto, a adequada identificação e reconhecimento das atividades da Justiça Eleitoral ainda precisa avançar muito para que sejam atendidas as exigentes condições de comunicação adequadas ao processo democrático.
59
argumentos enfeixados nas normas legais” (HABERMAS, 2003a, p. 239), por não se utilizar
das formas de comunicação e potenciais de argumentos que legitimam o processo legislativo
se esta funcionasse apenas como órgão do Poder Judiciário. Mas como esta possui
competências mais amplas bastante significativas, esta restrição não pode ser simplesmente
aplicada sem a devida análise a respeito da natureza da atuação da Justiça Eleitoral.
O poder regulamentar da Justiça Eleitoral encontra-se amparado no artigo 1º,
parágrafo único, do Código Eleitoral de 1965, e reiterado nos artigos 61 da Lei 9.096/95 e no
artigo 105 da Lei 9.504/97, publicadas posteriormente à Constituição de 1988.
Interessante notar que a CFRB/88 atribui poder regulamentar amplo à Justiça
Eleitoral no ADCT para regulamentar as primeiras eleições após a constituição de 1988. Em
tese, quer parecer, que a legislação complementar posterior deveria ser produzida para
estipular as competências e a as regras para condução do processo eleitoral, ou seja, deveria
ter especificado e detalhado essa competência. O Ministro Gilmar Mendes questiona se, por
mutação constitucional, este poder não poderia ser visto como poder implícito atribuído à
Justiça Eleitoral.19 O Ministro Dias Tofolli entende que a Justiça Eleitoral funciona nos
moldes das agências reguladoras, não tendo esta sido constituída sob esta natureza jurídica
por tratar-se de figura jurídica ainda não consolidada à época de sua criação (Ata da 2ª
Reunião Ordinária realizada em 25 de abril de 2013, do Grupo de Trabalho para Análise,
Estudo e Formulação de Proposições relacionadas à Lei Eleitoral).
O exercício teórico, aqui realizado, de analisar os direitos políticos enquanto
direitos fundamentais, a partir das premissas do modelo normativo de democracia
procedimental, demonstra que a proposta de uma nova abordagem a partir do modelo
apresentado por Habermas é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro.
O que fica evidenciado, no entanto, é a completa incompatibilidade de alguns
aspectos da legislação infra-constitucional com um processo político eleitoral que se pretenda
democrático, a partir das premissas de uma teoria da política e da democracia constituída em
tempos de pós-metafísica, em tempos de filosofia da linguagem.
Para redesenhar o processo político eleitoral brasileiro a fim de torná-lo legítimo,
no sentido de um modelo procedimental de democracia, torna-se necessária a
institucionalização das formas de comunicação e procedimentos correspondentes para o
19 Palestra proferida por Gilmar Mendes no plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, em 30/08/2008.
60
exercício da autonomia política e privada de cidadãos que se pretendam autores e
destinatários de sua própria legislação. Torna-se necessário o reconhecimento efetivo dos
discursos jurídicos disponíveis para utilização da Justiça Eleitoral. Essa análise, sob a
perspectiva procedimental, permite reconhecer que a Justiça Eleitoral agrega funções para
além das típicas funções jurisdicionais.
Sob essa perspectiva, é necessário que a legislação eleitoral seja atualizada, a
partir das formas de comunicação e potenciais de argumentos correspondentes aos diversos
poderes políticos institucionalizados na forma de Estado, para criar formas de comunicação e
espaços de interlocução legítimos para a implementação do processo eleitoral.
1.5 A crise do Estado de Direito, democracia deliberativa e autoridades reguladoras
O aprofundamento da complexidade e a radicalização das diferenças nas
sociedades contemporâneas ao longo do século XX transformou os laços de convivência e a
forma como se constrói a coesão social. Esse longo caminhar transformou também a
configuração dos direitos subjetivos, reforçou a dimensão objetiva do sistema jurídico, e
orientou-se no sentido segundo o qual os beneficiários do direito já não mais se contentam em
ser apenas destinatários de normas, tornando-se imperativa a demanda por um espaço comum
para interpretação dos critérios que poderiam levar à superação das desigualdades de fato
através de um horizonte de garantia da igualdade jurídica (HABERMAS, 2003b, p. 171).
As mudanças paradigmáticas do Estado Liberal, passando pelo Estado Social e a
seguir para o Estado Democrático de Direito, atuaram também em nível abstrato mais
profundo nas correspondentes exigências de transformação do direito enquanto
metalinguagem para a organização social.
As exigências para legitimação da convivência democrática, por consequência,
também se alteraram e se tornaram mais profundas com impacto direto na divisão de poderes
do Estado de Direito: “com o crescimento e a mudança qualitativa das tarefas do Estado,
modifica-se a necessidade de legitimação; quanto mais o direito é tomado como meio de
regulação política e de estruturação social, tanto maior é o peso da legitimação a ser carregado
pela gênese democrática do direito” (HABERMAS, 2003b, p. 171).
61
A permanente tensão entre direito, enquanto meio de regulação social, e a política,
enquanto arena legítima de disputa de interesses, também se modifica mas precisa ser
preservada, a fim de que o direito possa permanecer funcionando como meio de integração
social, como meio de transformação de poder político em poder comunicativo. O direito não
pode estar à livre disposição da política sob pena de desvincular-se de sua função social
integradora, atingindo o cerne do processo democrático de estruturação política autônoma do
sistema de direitos.
A divisão de poderes na democracia deliberativa, como visto, apresenta sentido
distinto do conceito tradicional uma vez que se ampara na diferenciação de discursos que
permitem a gênese democrática do direito e na consequente possibilidade de avaliação das
políticas criadas sob a perspectiva normativa. Se as condições democráticas de criação do
direito e de políticas não são observadas, a circulação de poder político legítimo é diretamente
afetada, colocando em risco os meios para alcance da integração social.20
Se na clássica tripartição de poderes o Estado de Direito ampara-se nas premissas
de separação funcional/institucional e de independência entre poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário, na perspectiva da democracia deliberativa o Estado de Direito ampara-se nos
seguintes princípios: soberania popular, enquanto elo de ligação entre Estado de Direito e
sistema de direitos; ampla proteção jurídica à esfera de autonomia do indivíduo, através da
atuação independente do Poder Judiciário; princípio da legalidade como exigência
fundamental de legitimidade para atuação da administração pública, ou seja, estrita
subordinação do poder administrativo ao poder comunicativo; separação entre Estado e
sociedade, de forma que o princípio de responsabilização democrática – accountability21 –
seja assegurado (ROCHA, 2008, p.177-183). Nesse sentido, a separação de poderes pode ser
concebida como a institucionalização dos procedimentos que fornecem à uma sociedade
complexa instrumentos para programar adequadamente, através do poder comunicativo, o
20 Como explica Rocha (2008, p.177-182), a clássica concepção de separação de poderes, atribuída à Montesquieu, ampara-se em duas premissas essenciais: cada uma das funções estatais do Estado – legislativa, administrativa e jurisdicional – deve ser exercida por uma autoridade especializada e tais entes são independentes entre si. Essa tradicional formulação teórica sofreu flexibilização ao longo do tempo assumindo- se que os poderes de Estado realizam funções típicas e atípicas, sendo amplamente discutida por diversos autores à medida que esta se afasta cada vez mais da realidade social contemporânea. Por outro lado, a separação de poderes na perspectiva da teoria do discurso afasta-se da concepção clássica ao buscar ir além da separação funcional de poderes e introduzir a diferenciação entre discursos de fundamentação de normas e de aplicação de normas, que se vinculam a um direito produzido comunicativamente.21 Enquanto forma de controle social.
62
poder administrativo que ao lado do dinheiro, funciona como fonte de integração social
(ROCHA, 2008, p.183).
A separação de poderes, na verdade, sob perspectiva teórica abstrata, relaciona-se
mais com a disposição sobre diferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de
comunicação correspondentes – como estes são distribuídos - do que propriamente com a
separação funcional de poderes entre órgãos específicos. Em outras palavras, a disposição dos
diferentes tipos de argumentos e suas respectivas formas de comunicação, ou seja, a
materialização do direito através da possibilidade de elaborar discursos de fundamentação de
normas e de elaborar discursos de aplicação de normas, com suas correspondentes formas de
comunicação e legitimação, é que de fato diferenciam instituições. A democracia
deliberativa, nesse sentido, abre diversas outras possiblidades para criação de direito legitimo
através de instituições distintas das previstas na clássica tripartição de poderes, na medida em
que suas exigências se voltam para estruturas e procedimentos de legitimação, não ficando
aprisionada às instituições clássicas do Estado Liberal.22
A multiplicação de tarefas do Estado e a maior demanda por prestações coloca em
risco a estrutura democrática na medida em que critérios de eficiência e de sobrevivência
política de partidos e programas passam a competir com os requisitos de criação do direito
legítimo, exercendo pressão para que o direito seja instrumentalizado para fins políticos,
estratégicos, e para uma administração voltada exclusivamente para problemas de integração
funcional (HABERMAS, 2003b, p. 177 e ss).
A proliferação de políticas públicas para fazer face às diversas demandas sociais e
a criação inevitável de múltiplos centros de tutela de interesses especializados, aliados à
velocidade e complexidade das relações sociais contemporâneas, obrigam à revisão da
tradicional repartição de poderes entre seus clássicos representantes e apresentam reais
possibilidades de enfraquecimento do efeito impositivo da lei originada pelo tradicional
processo legislativo.
Nesse sentido, se por um lado, as instancias administrativas passam a ser cada vez
mais autônomas na busca por eficiência e na instrumentalização de direitos para alcançar fins
22 Nesse sentido, explica Rocha (2008, p.183): “o importante é que este exercício de “imaginação institucional e experimentação cuidadosa” seja orientado normativamente por uma visão do Estado e do direito baseada em princípios de acordo com os quais o direito legitimo nasce do poder comunicativo e este é convertido em poder administrativo por meio do direito produzido pelo Estado. Em outras palavras, o direito não pode ser somente o código de poder de acordo com o qual funciona o processo administrativo. Ele deve ser também o médium que transforma o poder comunicativo em poder administrativo. ”
63
coletivos, por outro cria-se o risco cada vez maior de afastamento dos requisitos que lhes
garante atuação legitima, visto que tais instâncias administrativas não são capazes de, por si
só, construírem parâmetros para elaboração das necessidades sociais e para escolha adequada
de fins, se a estas não forem atribuídos os meios para legitimar tal atuação, ou seja, se não
forem institucionalizados os procedimentos correspondentes para formulação de direito
legítimo e democrático.
No paradigma Liberal de Estado a ordem jurídica geral e abstrata era construída
através de conceitos jurídicos determinados e por consequências jurídicas claramente
definidas a priori, visto que seu objetivo era preservar o espaço da autonomia individual em
face do aparelho estatal, sendo sua principal tarefa garantir a ordem. Nesse contexto, a
clássica tripartição de poderes fazia sentido e, mesmo que jamais tenha sido estritamente
obedecida, não causou maiores questionamentos. No entanto, com o advento do Estado Social
e do Estado Democrático de Direito, a administração assumiu amplas tarefas de estruturação e
de regulação política, sendo este o momento de inflexão no qual o processo legislativo
clássico começou a perder sua capacidade de programar a administração como
tradicionalmente o fazia (HABERMAS, 2003b, p.174).
A velha forma reativa e intervencionista de administração estatal cede espaço para
uma nova e moderna administração planejadora, preocupada com infraestrutura e prevenção
de riscos, prestadora de serviços, que assume cada vez mais atividades de regulação política
em sentido amplo, interferindo em espaços diferenciados da clássica relação cidadão-Estado,
avançando sobre as relações sociais entre sujeitos e sociedade civil (HABERMAS, 2003b,
p.174).
A emergência e multiplicação de normas com cláusulas gerais e conceitos
jurídicos cada vez mais indeterminados é o sintoma mais evidente da transformação das
relações políticas que passam a exigir novas formas de circulação do poder político e novos
meios para tradução deste em conteúdo jurídico, para transmissão das necessidades sociais e
de justificações éticas para o sistema de direitos. A programação da administração estatal,
voltada para a manutenção da ordem, realizada por um direito construído sob premissas
antecipadas, gerais e abstratas, é insuficiente para lidar com o aprofundamento da
complexidade e com a velocidade das demandas sociais, ou seja, com as mudanças
paradigmáticas inauguradas pelo Estado Social e ampliadas pelo Estado Democrático de
Direito.
64
A divisão funcional do direito é diretamente atingida pelas modificações das
exigências de regulação social frente às instâncias administrativas estatais, uma vez que a
instância legislativa tradicional perdeu seu poder de adequadamente programá-las em face das
amplas tarefas de regulação e programação social assumidas pela administração
(HABERMAS, 2003b, p.176).
E se a administração assume formas de discurso próprias do poder legislativo sem
a institucionalização dos correspondentes procedimentos de legitimação, o sistema de direitos
é imediatamente enfraquecido visto que seus mecanismos de oxigenação e garantias são
solapados. Sem a definição de procedimentos específicos para legítima criação de normas,
não há parâmetros legítimos para aferição da atuação da administração, sem parâmetros
legítimos para aferição dessa atuação não pode haver controle social ou jurisdicional.
A autoprogramação da administração tende a pautar-se por referenciais de
eficiência e proporcionalidade, bastante distantes de um adequado referencial normativo
neutro produzido e pautado pelo poder comunicativo legitimador. “Políticas que não seguem
as condições da gênese democrática do direito não têm como ser avaliadas do ponto de vista
normativo. Os critérios de legitimidade democrática são perigosamente substituídos por
standards de eficiência” (ROCHA, 2008, p.187).
Se a Administração não institucionaliza procedimentos para adequada circulação
de poder político e portanto para a construção de uma razão procedimentalizada apropriada
para garantir a higidez do sistema de direitos, o Estado se enfraquece pois abre mão de sua
posição e força politicamente diferenciadas, ou seja, de sua soberania e imperatividade, para
se colocar no mesmo nível de outros atores da esfera pública e civil, passando a utilizar-se de
formas comunicacionais ilocucionárias, estratégicas, e portanto desprovidas da legitimação
democrática. O resultado é a instrumentalização da esfera pública para finalidades
estratégicas. Como explica Habermas (2003b, p.180):
“O desengate entre o poder administrativo autônomo e as normas do Estado de direito traz consequências. Uma administração que se programa a si mesma tem que abandonar a neutralidade no trato com normas, prevista no esquema clássico da divisão de poderes. Sob esse aspecto não se observa nenhuma tendência à objetivação. Na medida em que a administração assume as tarefas do legislador político e passa a desenvolver programas próprios, ela tem que decidir por conta própria a questão da fundamentação e da aplicação de normas. Todavia, essas questões clássicas não podem ser decididas sob pontos de vista da eficácia, pois exigem uma abordagem racional de argumentos normativos. Uma administração que trabalha seguindo o estilo cognitivo não possui os pressupostos comunicacionais, nem os procedimentos necessários. ”
65
No diagnóstico do autor, o problema de uma administração que se autorregula
sem os correspondes pressupostos de legitimação, relaciona-se muito mais com uma
“insuficiente institucionalização de princípios do Estado de direito do que propriamente com a
sobrecarga de atividades” (HABERMAS, 2003b, p.180) e com as prestações do Estado
contemporâneo. Ressalte-se que Habermas enfatiza a necessidade de uma mudança
paradigmática na forma como se concebe a clássica divisão de poderes, através da proposta de
um paradigma jurídico procedimentalista, de uma nova institucionalização do princípio da
separação de poderes.
Na verdade, o Estado Democrático de Direito regula em nível abstrato
diferenciado o poder para dispor dos diferentes tipos de argumentos, ao exigir que diferentes
discursos e as respectivas formas de comunicação correspondentes aos distintos poderes
estatais sejam institucionalizadas, ao contrário do Estado Liberal que se contentava com a
divisão funcional/institucional do poder. Não se trata de não reconhecer a legitimidade da
atuação de uma administração que se auto programa, mas de apontar que, se o poder
legislativo adota a utilização de direito regulador, ou seja, se atribui à administração ou à
justiça função regulatória, deve criar os meios para compensar legitimamente a ausência de
imperatividade do direito assim formulado (HABERMAS, 2003b, p.182 e 183).
Os discursos de aplicação gerados a partir da função reguladora, para serem
legítimos, necessitam da correspondente complementação dos discursos de fundamentação,
necessitam, portanto, de legitimação suplementar em fóruns para solução de controvérsias
públicas com a participação influente dos envolvidos (HABERMAS, 2003b, p.183).
Há o explicito reconhecimento por Habermas do direito regulador, de entes
autônomos com funções reguladoras e das exigências de legitimação que este impõe a uma
Administração onerada com o ônus de realizar escolhas políticas, escalonar bens e finalidades
e implementar programas de leis abertos que demandam a utilização de argumentos
normativos ou a uma Justiça chamada a preencher espaços normativos deixados em aberto
pelo legislador (HABERMAS, 2003b, p.183). A ênfase, nesta perspectiva recai sobre a
necessidade de se criar e institucionalizar procedimentos suplementares para legitimação das
escolhas políticas e normativas da administração de da justiça.
Isso significa exatamente que autoridades reguladores e autoridades jurisdicionais,
nesse contexto, atuam de forma política, realizando escolhas, abandonando a pretensa
neutralidade a estas atribuídas pela clássica tripartição de poderes. Essa mudança de posição
66
na estrutura de circulação de poder político implica necessariamente em novos requisitos de
legitimidade e em nova forma de análise destas instituições no desempenho de suas funções.
Essa nova perspectiva para a separação de poderes reconhece explicitamente que
no Estado contemporânea há a possibilidade real de mobilização de argumentos de
justificação, ou seja, de função quase-legislativa, por juízes e por representantes de
burocracias especializadas, tornando-se imperativo a institucionalização de procedimentos
voltados para suprir o déficit de legitimidade decorrente dessa exigência suplementar de
formas comunicacionais adequadas, a fim de que tais procedimentos sejam transparentes e
passíveis de controle.
Não é, portanto, a moldura institucional que determina a gênese do direito
legitimo, mas sim a garantia das condições procedimentais para sua produção e a legitima
disposição das formas de discurso.23 Para Habermas, os fluxos comunicacionais e as
influências públicas originadas na esfera pública e na sociedade civil, transformados em poder
comunicativo pelos processos democráticos, configuram o substrato social necessário para a
realização do sistema de direitos e para a coesão social.
Fica bastante claro o reconhecimento da função reguladora autônoma como forma
de atuação inevitável do Estado contemporâneo por todas as suas especificidades e
complexidades expostas. Fica evidente ainda que o ponto essencial não se refere a encontrar
novas explicações e fundamentos para manter vigente a separação de poderes em sua
formulação clássica. Como alerta Habermas, a sociedade e o Estado contemporâneo
encontram-se perante uma crise e, por consequência, perante transformações do direito que
atuam sobre seus fundamentos estruturais e abstratos: há de fato uma mudança paradigmática
na forma de funcionamento do processo político e na emergência de novas instituições
estatais com características e pressupostos legitimadores profundamente diferenciados. É
necessário então redobrar a atenção com a exigências suplementares de legitimação que
emergem nesse contexto.
Uma adequada análise das autoridades reguladoras e das cortes constitucionais
demanda, portanto a compreensão dessas profundas mudanças e das exigências suplementares
23 No mesmo sentido, explica Jean Paul Rocha que: “Concebida nesta perspectiva, a separação dos poderes, seja como doutrina, seja como princípio do Estado de direito, permite ao mesmo tempo compreender e criticar os desenhos institucionais e dinâmicas constitucionais concretas a partir dos desafios que se apresentam à democracia contemporânea. Ao formular os critérios para distribuição, pelos Poderes do Estado, dos diferentes tipos de argumentos e suas correspondentes formas de comunicação, a teoria habermasiana nos fornece instrumentos para fazer essa crítica da maquinaria constitucional” (ROCHA, 2008, p. 191).
67
de legitimidade que se apresentam. A compreensão do funcionamento da Justiça Eleitoral e a
identificação de parâmetros para aferir a legitimidade de sua atuação também precisa
percorrer o mesmo caminho. Buscar explicações em fundamentos clássicos para a democracia
contemporânea sem aceitar que as transformações institucionais e políticas ocorrem em
dimensão estruturalmente diferenciada, implica em fracasso.
Nesse contexto, as relações que se estabelecem entre eleições, cidadãos,
candidatos, partidos políticos, Ministério Público, Justiça Eleitoral, representantes diversos da
sociedade civil, etc., precisam ser compreendidas através de novas lentes e a apropriação dos
diversos tipos de discurso que caracterizam as interações políticas resultantes precisam ser
identificadas a fim de que os correspondentes procedimentos de legitimação possam ser
institucionalizados.24
Já é possível perceber que, no horizonte da prática democrática contemporânea de
acirrada diferenciação social e de especialização da experiência jurídica, a atuação
compartilhada e influente de todos esses agentes sobre o tema eleições parece funcionar como
um centro de interesse público especializado e diferenciado para produção de razão
procedimentalizada, sobre tema essencial do processo político, o processo eleitoral. Mas esse
núcleo especializado de circulação de poder político, que cuida do processo eleitoral, precisa
ser visto sob nova perspectiva, sob pena de uma abordagem reducionista não dar conta de
toda a complexidade envolvida, com sérias consequências para a legitimação dessa parte
significativa do processo democrático. Afinal, como explica Habermas com referência a U.
Rödel e C. Lefort, no Estado Democrático de Direito o lugar simbólico de uma “soberania
diluída pelo discurso” deve permanecer vazio, e em tempos de mudanças paradigmáticas do
sistema de direitos essa condição tem como pré-requisito a institucionalização de
24 Nesse sentido, alerta Habermas (2003b, p.187) a respeito de problemas gerados no processo político pela mistura de papéis: “A crítica que atualmente se dirige contra a estatização dos partidos políticos visa, em primeiro lugar, a uma pratica que instrumentaliza a concorrência entre os diferentes programas que buscam o assentimento do público de eleitores para fins de recrutamento de pessoas e para a distribuição de cargos. Trata- se de uma diferenciação institucional entre duas funções, que os partidos assumem, apoiados em boas razões. Enquanto catalisadores da opinião pública, eles são chamados a colaborar na formação da vontade política e na educação política (com a finalidade de qualificar os cidadãos para exercer o seu papel); porém, enquanto máquinas de recrutamento, eles fazem seleção de pessoal e enviam grupos de líderes para o sistema político. Essas duas funções se confundiram na medida em que os próprios partidos se transformaram em componentes desse sistema. Pois na perspectiva dos detentores do poder administrativo, os partidos assumem seu poder de participação como se fosse uma função de regulação e consideram a esfera pública política como um ambiente do qual eles extraem a lealdade das massas. ”
68
procedimentos que possam suplementar os déficits de legitimidade trazidos pelas mudanças
paradigmáticas no Estado de Direito em sua nova versão contemporânea.
CAPÍTULO 2
DIFERENTES FORMAS DE LEGITIMIDADE E DIMENSÕES TEMPORAIS DA DEMOCRACIA
A abordagem da democracia deliberativa, nos termos apresentados por Habermas,
fornece parâmetro teórico consistente para a compreensão do sistema político e do sistema de
direitos, demonstrando passo a passo como, através de processos comunicativos e da
linguagem jurídica, as autonomias privada e pública são institucionalizadas, viabilizando
uma prática democrática fundada na razão, na qual cidadãos adotam simultaneamente o papel
de autores e de destinatários das normas de convivência para compartilhamento de um
determinado espaço e tempo histórico comuns.
A abordagem de Habermas com foco na teoria do discurso colabora para a
compreensão da arquitetura da democracia contemporânea no Estado Democrático de Direito,
das fronteiras e fundamentos que delimitam o processo político e legitimam o sistema de
direitos, demonstrando como se forma e se desenvolve o processo democrático. A abordagem
da democracia deliberativa proposta é necessária e bastante significativa, mas ainda é
insuficiente para completar a investigação que se pretende realizar. Embora Habermas faça
um diagnóstico da crise paradigmática que vive o direito e das ameaças que se apresentam em
face do correspondente sistema de direitos, na obra analisada este não se aprofunda em
relação à crise de legitimidade que se abate sobre o Estado contemporâneo como um todo
para apresentar um prognóstico.
Em sua obra Democratic legitimacy: Imparciality, Reflexivity, Proximity, Pierre
Rosanvallon (2011) oferece um outro ponto de vista para compreensão do processo
democrático ao buscar identificar as diferentes formas de legitimidade que fundamentaram e
sustentaram a democracia representativa e suas transformações desde o período pós
revolucionário até o momento presente. Ao adotar uma perspectiva dinâmica de análise,
propõe o autor que a democracia representativa e os fundamentos que a legitimam sejam
compreendidos como processo histórico, como construções que se realizam e se modificam
ao longo do tempo, sob pena de os fenômenos políticos e as novas instituições
contemporâneos não serem adequadamente compreendidos.
Explica o autor que o advento do sufrágio universal e a criação de instituições
para representação político-eleitoral foram o ponto alto do rompimento com o absolutismo no
70
caminho para a implantação da experiência democrática, ao longo do século XIX. E este é um
dos principais motivos pelo qual se escolheu agregar seu ponto de vista à presente pesquisa: o
autor constrói seus argumentos com foco nas formas de legitimidade que sustentaram e
sustentam a representação político eleitoral e nas suas transformações ao longo do tempo. Tal
abordagem permite um novo e original olhar para as instituições que participam do processo
eleitoral, ao oferecer a possibilidade de se acrescentar um contraponto bastante interessante
para a democracia deliberativa. A teoria construída por Habermas faz um importante
diagnóstico voltado para o processo político das democracias contemporâneas, mas não
enfatiza as premissas que fundamentaram o sistema representativo-eleitoral, o processo
eleitoral e seu significado como o faz Pierre Rosanvallon.
Nessa linha de análise, explica o autor que, do século XIX até os anos1980, os
grandes temas políticos abordaram questões como, por exemplo, a democracia representativa,
as formas de exercício da democracia direta, a questão da separação de poderes, o papel da
opinião pública, debates a respeito da identificação de direitos humanos e suas
correspondentes garantias, entre outros, sem que houvesse qualquer ruptura ou mudança
significativa nas abordagens realizadas. No entanto, Pierre Rosanvallon (2011, p. 10) ressalta
que muito pouco se falou ou se questionou a respeito das premissas que fundamentaram na
origem o modelo democrático pós Revolução Francesa.
O diagnóstico realizado na obra Democratic Legitimacy busca explicar e oferecer
elementos para a compreensão de como a ideia de legitimidade democrática foi concebida no
período pós revolucionário e como essa se desenvolveu e se transformou até os dias atuais.
Como esclarece o autor, o acirramento e a diferenciação das relações sociais,
aliados `a velocidade do tempo democrático contemporâneo, trouxeram novos desafios para a
democracia e novo arranjo para a correlação e circulação de forças políticas, tornando
imprescindível a reavaliação de tais premissas.
O aparecimento e multiplicação de novas instituições da democracia no Estado
contemporâneo, as autoridades independentes e as cortes constitucionais, nesse contexto,
marcam um longo processo de ruptura com a ordem democrática tradicional e significam a
tentativa de responder a demandas recebidas pela administração pública e de dar respostas
diferenciadas às expectativas sociais (ROSANVALLON, 2011, p.10).
Por não se tratarem de instituições facilmente associadas às formas clássicas de
exercício da política, os cargos políticos eletivos, estas instituições não foram prontamente
associadas com a manifestação e com o exercício de poder político. Não foram identificadas
71
como novos meios para expressão da soberania popular. Tanto é assim, que o debate a
respeito da legitimidade de tais instituições como meio politicamente válido para expressar o
interesse público a todo tempo emerge.
No mesmo sentido, a clássica questão que opõe o constitucionalismo como limite
ao exercício democrático da “voz da maioria” é fruto da falta de compreensão desse novo
fenômeno. Ela tanto pode ser compreendida pela perspectiva liberal burguesa que buscou
argumentos para dar um limite ao sufrágio universal e, portanto, à voz das massas, como pode
ser compreendida como meio de controle social sobre os representantes eleitos, se a este
corresponderem mecanismos institucionalizados de transparência das atividades públicas e de
responsabilização. As atividades de supervisão e regulação aparecem nesse contexto
(ROSANVALLON, 2011, p.10).
As agências reguladoras ou as autoridades independentes e as cortes
constitucionais, então, podem ser analisadas como formas políticas capazes de
institucionalizar mecanismos para o aprofundamento da convivência democrática na medida
em que se constituem como novos espaços para circulação do poder político.25
Ao lado das instituições e das normas, a arte de governar também aparece como
novo elemento essencial da esfera política contemporânea.26 Os procedimentos e o
comportamento dos representantes que governam e de todos os que atuam em nome da
administração passam a importar. O procedimento para entrega de produtos, de serviços e
para elaboração de decisões e de políticas públicas também passa a ser visto como essencial
para a coesão social. Participação, abertura, justiça, reconhecimento, respeito, presença,
transparência, solidariedade, responsabilidade e controle são valores e palavras que se
relacionam com o discurso público atual.
2.1 Democracia representativa e novas demandas por legitimidade
A transição do princípio hereditário para o princípio democrático como forma de
dar legitimidade ao exercício do poder demandou a construção de duas ficções sociológicas
que atuaram como premissas do Estado liberal democrático: a criação de um novo sujeito
político para a democracia e a criação de uma forma de expressão para esse novo sujeito
(ROSANVALLON, 2011).
25 Nesse sentido ver obra de Lawrence Sager. SAGER, Lawrence G. Juez y Democracia-Una teoria de la prática constitucional norte americana. Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A. Madrid: 2007.
26 ROSANVALLON, Pierre. Democratic Legitimacy: Imparciality, Reflexivity, Proximity. Cit.pág. 10.
72
“O povo” é o sujeito político da democracia que, em tese, tem legitimidade para
expressar a vontade geral. Desse conceito, infere-se o ideal de unanimidade, a ficção para a
“expressão da generalidade social”. Esse novo sujeito político se expressa por meio de
representantes políticos escolhidos através de eleições periódicas, como solução para
legitimação do exercício da atividade política ao longo de cada mandato.
Esses são os dois postulados que fundamentaram o exercício democrático desde o
seu início, no período pós revolucionário: o povo como expressão da generalidade social e a
as eleições como mecanismo de legitimação da ação política durante o tempo determinado
pelo mandato.
Nos termos explicitados por Pierre Rosanvallon (2011, p.23), a democracia
representativa esteve, então, desde o princípio, amparada nos seguintes pressupostos: o
processo eleitoral é capaz de expressar direta e completamente à vontade geral; a cédula
eleitoral expressa a vontade dos eleitores, sendo os eleitores os únicos sujeitos da política; o
momento do voto é capaz de determinar a temporalidade do processo eleitoral; e, a
legitimidade das urnas legitima a ação dos representantes eleitos durante todo o seu mandato.
Essas características configuram o que ao autor denomina de “democracia imediata”.
A “democracia imediata” relaciona-se com o conceito inequívoco de “o povo”, no
sentido que este adquiriu no período pós Revolução Francesa. Explica o autor que, enquanto a
democracia direta rejeita a ideia de delegação, a democracia imediata rejeita a ideia de
interface, a ideia de que a expressão coletiva precisa de instituições e procedimentos para ser
alcançada, ou seja, rejeita qualquer forma de reflexividade social. Segundo Rosanvallon, esta
seria exatamente a fonte de hostilidade em relação aos partidos políticos e aos corpos
intermediários visto que estes seriam vistos como responsáveis por distorcer a espontaneidade
da expressão da vontade geral (ROSANVALLON, 2011, p.123 e ss).
Compreender o contexto da manifestação da vontade geral na época da Revolução
Francesa ajuda a entender o conteúdo da ideia de democracia imediata. Como explica o autor,
a expressão popular legítima funcionaria como um tipo de “eletricidade moral”, uma
manifestação natural, unânime e instantânea da vontade geral que não dependeria de debates
ou fundamentações para revelar-se, ficando o senso comum do povo sujeito a manipulações
ou abusos se fosse permitido que qualquer resquício da tradição absolutista tivesse caminho
para se manifestar. No momento revolucionário apenas o presente importava, devendo ser
rompidas as relações com instituições do passado. Somente o poder constituinte poderia
desempenhar a expressão de unanimidade e falar em nome do povo, de forma autônoma e
73
incondicionada. Como afirmou Sieyès em 1789 “a vontade é tudo, a forma nada”. O poder
constituinte era equiparado ao poder divino para criação de uma ordem democrática sem que
fosse necessário a ela se submeter. Já naquele tempo, Sieyès diferenciou o poder constituinte
do poder constituído (ROSANVALLON, 2011, p.124).
Note-se que à época da Revolução Francesa, o poder constituinte era forma
legitima de expressão da vontade geral, portanto da unanimidade, não sendo o poder
constituinte e a vontade geral vistos como resultantes de disputas de posições e interesses,
como acontece nos dias de hoje. O poder constituinte, nesse sentido, era visto como a
expressão imediata e absoluta do povo, livre de quaisquer limites ou constrangimentos. A
vontade geral era concebida como forma de assentimento de todos para as ações dos
representantes eleitos. Ao longo do tempo, os ideais utópicos da democracia ficaram, no
entanto, restritos a praticas eleitorais e a uma perspectiva monista da política, que vê no
parlamento a única expressão legitima da soberania, abordagem que precisa ser alterada para
comportar o exercício democrático contemporâneo.
A concepção de democracia imediata, portanto, adota três premissas: a escolha
dos eleitores é equiparada a vontade geral; os eleitores são equiparados ao povo, e toda
legitimidade da atividade legislativa e política subsequente decorre do momento do voto.
Embora estas sejam premissas problemáticas, normalmente estas não costumam ser o centro
do questionamento a respeito da legitimidade da democracia representativa atual.
Com o tradicional foco da análise política voltado para as instituições e para o
exercício de práticas democráticas sem a adequada discussão das premissas que ao longo do
tempo fundamentam a democracia representativa, muito pouco se aventou a respeito de tais
fundamentos e dos problemas que estes implicam.
Partindo dessa perspectiva, Pierre Rosanvallon busca demonstrar que essas
ficções essenciais do modelo democrático, assumidas de forma pacífica e pouco questionada,
encobrem na verdade questões essenciais de legitimidade do exercício democrático
contemporâneo. Essas ficções foram primordiais para a justificação do Estado Liberal mas
sofreram transformações ao longo do século XX e já não são suficientes para fundamentar o
exercício do poder político no Estado Democrático contemporâneo.
A premissa de que o povo é capaz de representar de forma instantânea e unânime
a vontade geral é o primeiro problema. A técnica de escolha de representantes que atribui à
“vontade da maioria” a legitimidade para exercício do poder político reduz um problema
74
complexo à uma questão aritmética: o povo e sua respectiva vontade pode ser representado
de forma instantânea pela maioria expressa na urna de votos. Vale registrar que as
manifestações populares na democracia dos antigos eram feitas sempre voltadas para o
consenso, ou seja, visavam atribuir aceitação unanime às soluções de problemas coletivos
levadas à ágora, a votação era realizada para simbolizar a adesão de todos à decisão tomada.
A votação não configurava uma vitória numérica na disputa de interesses individuais ou de
grupos, como passou a ocorrer na democracia dos modernos a partir do século XIX
(ROSANVALLON, 2011, p.18).
O segundo problema pode ser descrito como a suposição de que a legitimidade
atribuída pelas urnas aos representantes eleitos no momento instantâneo da eleição estende-se
durante todo o exercício de seu mandato. Como explica o autor as acirradas disputas
partidárias e eleitorais esvaziaram os conteúdos relacionados com a ideia de povo, enquanto
expressão da unanimidade, e de mandato, enquanto período autorizado para exercício de
poder legítimo, alterando significativamente o funcionamento do sistema político. O sistema
partidário e as infindáveis demandas e interesses divergentes passaram a apresentar relevância
inesperada e transformaram o exercício legislativo que deveria ser o centro do governo
representativo e a expressão do interesse comum em espaço permanente de disputas acirradas
de interesses privados. Já no período compreendido entre os anos 1890 e 1920 diversos livros
foram escritos buscando diagnosticar “a crise da democracia” e identificar os fatores que
transformaram o poder legislativo no espaço de disputas partidárias e de corrupção quando
este, na verdade, deveria ser o templo da razão pública (ROSANVALLON, 2011, p. 2).
Embora as eleições tenham deixado de ser vistas como a celebração da “apoteose
do povo” com todo o seu encanto desmistificado, não houve questionamento contundente a
respeito da regra da maioria como forma de representação da unanimidade social
(ROSANVALLON, 2011, p. 124).
Diversas soluções foram buscadas para superar os problemas da representação
democrática e revitalizar o ideal democrático. Após a Primeira Guerra mundial essa aspiração
foi transferida para a burocracia estatal como caminho alternativo para alcance da
generalidade social. Com o aparecimento e consolidação do Estado de Bem-Estar Social, uma
“máquina burocrática” estruturada e eficiente passou a representar o lócus da preservação e
defesa do interesse comum. Levar a vontade geral e o bem comum para uma esfera distante
das disputas partidárias foi o que motivou o desenvolvimento francês de modelo de serviço
75
público, e o modelo de administração racional norte-americano (ROSANVALLON, 2011, p.
34 e ss).
Em contraste com o Estado Liberal, que tinha por princípio de justificação, e
portanto de legitimidade, as eleições e a “voz da maioria” como representante da unanimidade
social - outorgando aos representantes eleitos um “cheque em branco” para governar durante
o mandato previsto - , o regime democrático do Estado de Bem Estar Social passou a adotar
fundamentação e processos legitimadores diferentes: as eleições e a administração pública, o
acesso igual ao serviço público - através de concurso público- e a igualdade na urna de votos
como princípios de justificação e legitimidade para ação política estatal (ROSANVALLON,
2011, p. 34 e ss).
De mero instrumento para exercício do poder político e execução de políticas
públicas determinadas pelo parlamento, a administração pública passa a ser concebida como
entidade autônoma essencial para expressão do interesse comum. O conceito de competência
técnica aparece como fonte de legitimidade. Por um lado, as eleições configuravam uma
escolha subjetiva orientada por interesses e opiniões, por outro lado o concurso público
adotava critérios objetivos para escolher indivíduos tecnicamente competentes, como forma
de balancear o exercício das atividades políticas estatais (ROSANVALLON, 2011, p. 34 e
ss).
Essa nova forma de expressar o exercício do poder político passou a ter como
fundamentos a legitimidade das eleições, pela vontade expressa pela maioria através do
sufrágio universal, de caráter substancial, e a legitimidade através da identificação com o
interesse geral, de caráter procedimental, expresso pela burocracia estatal, como forma de
compensar o declínio da legitimidade eleitoral. Aceitava-se que as escolhas eleitorais
implicitamente legitimavam as políticas públicas propostas pelo vencedor das urnas, que
seriam implementadas por uma burocracia estruturada, técnica e neutra. Essa solução
sustentou os regimes democráticos durante grande parte do século XX, mas começou a
demonstrar-se insuficiente a partir da década de 1980.
Como aponta Pierre Rosanvallon, algumas mudanças significativas aconteceram
ao longo do caminho. As eleições passaram pelo que o autor chamou de “dessacralização”.
Sua função precípua foi, sob esta perspectiva, reduzida. Esta passou a ser um mecanismo de
escolha de representantes e não mais uma forma de expressão de unanimidade e de
legitimação antecipada de ações políticas para todo o período do mandato eleitoral
(ROSANVALLON, 2011, p. 69).
76
O significado da palavra maioria também se alterou. Embora seu conteúdo legal,
político e parlamentar seja indiscutível, explica o autor que as implicações sociológicas do
termo são menos evidentes. Os interesses do “maior número” não são mais equivalentes aos
interesses da maioria. A complexidade social e o aprofundamento das diferenças individuais
e sociais no mundo contemporâneo alteraram o sentido de maioria. O que antes era visto
como uma massa homogênea, fonte de interesses semelhantes, hoje pode ser descrito como
um conjunto de situações específicas, adquirindo “o povo” um sentido diferenciado, mais
próximo do que se pode chamar de “o plural de minorias” (ROSANVALLON, 2011, p. 70).
Contribuiu ainda para tais mudanças o discurso neoliberal avassalador do final do
século XX, amplificado pelo fenômeno da globalização econômica, que colaborou para minar
a legitimidade da burocracia estatal ao tentar transferir para o mercado a legitimidade para
expressar o bem-estar geral.
As fontes de legitimidade burocrática e eleitoral chegaram ao novo século sem a
mesma vitalidade que sustentou os regimes democráticos até então. O sistema político
amparado nessa dupla legitimidade entrou em colapso.
Essa lacuna deixada pelo enfraquecimento dos fundamentos da dupla legitimidade
do regime democrático ao longo do século XX, aliada à falência do estado provedor, à
velocidade da circulação do capital e ao descolamento da esfera econômica da esfera política,
criou espaço para a emergência de novas formas de articulação social e de uma nova base
para composição do interesse comum. Todos esses fatores em conjunto deram origem a novos
espaços e novas formas para circulação e manifestação de poder político.
De uma estrutura política centralizada e com divisão de poderes bem definidas
entre os três tradicionais ramos de manifestação estatal - poder legislativo, como arena para
definição de escolhas públicas, poder executivo como espaço impessoal e apartidário para
execução de políticas públicas, e finalmente o poder judiciário como arena isenta para limitar
e conter a atuação dos demais poderes, como “boca da lei” –, começam a emergir outros
centros de circulação de poder políticos com reflexo imediato nas instituições estatais.
A burocracia estatal também sofreu transformações e novas técnicas de
governança começaram a ser criadas para fazer face às demandas de imagem e comunicação
da esfera de cidadania. A máquina administrativa estatal, antes interpretada como agente
intermediário, imparcial e inquestionável para reprodução do interesse público definido pelo
parlamento, começa a ser percebida como centro de circulação de poder político que interfere
nas políticas públicas, e como tal precisa justificar e fundamentar suas ações.
77
O principal ponto de inflexão das mudanças contemporâneas no exercício do
regime democrático, ocorrida após a década de 1980, refere-se às novas exigências de
legitimação democráticas que passaram a ser demandadas pela sociedade contemporânea para
preencher o déficit de legitimidade que a dupla legitimidade eleitoral e do poder burocrático
já não podem dar conta.
O imperativo democrático que até então expressava a generalidade social foi
radicalmente transformado. O sufrágio universal, portanto, o resultado das urnas, não pode
mais ser equiparado à expressão subjetiva da massa de cidadãos, à equivalência da vontade
geral, já não é capaz de expressar a unanimidade social. E a estrutura burocrática estatal, por
si só, já não corresponde inquestionavelmente à noção objetiva e neutra de generalidade.
A construção do que se poderia chamar de interesse geral ou bem comum se
modifica. Como esclarece Pierre Rosanvallon, na forma contemporânea, a vontade geral não
mais se manifesta apenas como “generalidade social” unidimensional, como unanimidade
social instantânea. Para o autor esta se manifesta agora de forma complexa e
pluridimensional, sob três novas perspectivas simultâneas: a generalidade negativa, a
generalidade de multiplicação e a generalidade da atenção ao particular (ROSANVALLON,
2011, p. 6).
A generalidade negativa corresponde à definição do poder político em termos de
“um lugar vazio”. A manifestação dessa generalidade depende então de um tipo de instituição
que permaneça distante das disputas políticas, mas que permaneça aberta aos influxos da
cidadania. Ela se diferencia por uma variável estrutural, a independência, e por uma variável
comportamental, a manutenção da distância ou equilíbrio em relação às autoridades dos
poderes eleitos do governo (ROSANVALLON, 2011, p. 97). É esta generalidade negativa
que fundamenta a ação de instituições voltadas para atividades de supervisão ou de regulação
em geral, e das autoridades reguladoras independentes em especial, um dos focos dessa
pesquisa.
A generalidade de multiplicação ampara-se na proposição de que a soberania
social se expressa de múltiplas formas. O sujeito democrático é mais complexo, e por
consequência, o exercício democrático também o é. Rompe-se com a visão unidimensional
da soberania popular expressa pelo sufrágio universal ou pelas formas de exercício da
democracia direta, estas são algumas de suas manifestações mais significativas, mas sem
dúvida não são as únicas. A soberania popular se expressa de diversas formas, como por
exemplo através manifestação em processos que discutem a constitucionalidade ou
determinada interpretação de uma lei perante a Constituição, nas cortes constitucionais; nos
78
processos administrativos entre administração e administrados, no qual direitos e deveres são
discutidos, ou ainda na participação de procedimentos de audiências públicas conforme tem
sido propostas pelo STF ou pelo TSE, nos mecanismos de accountability, entre outros
exemplos.
No mesmo sentido, compartilhando compreensão semelhante quanto às cortes
constitucionais, Lawrence G. Sager (2007, p. 207), na obra Juez y Democracia, volta sua
atenção para a questão mais geral de como a prática constitucional responde às críticas
inspiradas no ideal democrático, compreendendo que a teoria baseada na justiça é a que
melhor sustenta o constitucionalismo robusto em face de dúvidas democráticas. Ensina o
autor que a democracia direta, a democracia representativa e os sistemas de governo que
incluem juízes com autoridade e responsabilidade de garantir a Constituição são diferentes
alternativas para o exercício democrático. Registra ainda que uma judicatura com
competência constitucional possui elementos que permitem o debate adequado sobre os
direitos, tendo essa percepção levado diversos estados democráticos modernos a adotar
constituições escritas e a conferir a instituição judicial a sua garantia, apontando como
características promissoras desse modelo, sob o ponto de vista epistêmico: a desvinculação
dos juízes e dos tribunais dos interesses imediatos dos membros de sua comunidade política; a
atuação dos juízes como se fossem “inspetores de qualidade” por cumprirem função
especializada e redundante ao identificar fundamentos de justiça política que sejam
importantes e que sirvam de fundamento para o regime constitucional e para o controle da
legislação; o “equilíbrio reflexivo” que decorre das fundamentações através de princípios em
uma sucessão de casos, que precisam ser coerentes no tempo, resultando como meio para
equilibrar a reflexão normativa e para concretizar a exigência moral de generalização.
A seguir, Sager induz à reflexão a respeito de duas formas pelas quais as pessoas
são capazes de participar como iguais no processo deliberativo de direitos: a igualdade
eleitoral e a igualdade deliberativa. A igualdade eleitoral seria garantida através do exercício
em condições de igualdade do direito de eleger os representantes políticos que tomam as
decisões sobre os direitos, ressaltando que esta é uma forma perigosa por ser influenciada
pelo poder dos votos e do dinheiro desviando-se das pretensões de determinado grupo ou
indivíduo. A igualdade deliberativa seria garantida aos participantes nos processos de debates
sobre direitos, ou seja, a consideração séria por quem tenha autoridade deliberativa dos seus
direitos e interesses, estando implícito nessa forma de igual participação o direito de ser
ouvido e de obter resposta fundamentada, como, por exemplo, nos processos judiciais. Essas
duas formas de igualdade seriam complementares para o exercício democrático. Nas palavras
79
de Sager (2007, p. 207): “A maior parte dos Estados democráticos modernos possuem um
conjunto de estruturas institucionais nas quais os parlamentos prometem a igualdade eleitoral,
enquanto os tribunais constitucionais prometem a igualdade deliberativa. ”
A generalidade da atenção ao particular adota a perspectiva de indivíduos
concretos e situados em determinado espaço e tempo da história e dá outro sentido ao
princípio da igualdade (ROSANVALLON, 2011, p. 171). Não basta a igualdade formal. O
aspecto material passa a ser relevante para a definição de políticas públicas justas. A
igualdade em dignidade, nos termos de Kant, passa a exigir a “inclusão do outro”, nos termos
de Habermas. É a igualdade pelo reconhecimento de diferenças de circunstâncias e garantia
de condições equivalentes de acesso ao futuro, nos termos de Pierre Rosanvallon. Esses são
os fundamentos da generalidade da atenção ao particular. Todos possuem direito de ter suas
especificidades levadas em conta. É o reconhecimento da miríade de minorias que compõem
o caleidoscópio social: crianças, idosos, homossexuais, negros, consumidor, eleitores,
empresários, sem-tetos, etc. É o reconhecimento da multiplicidade de papéis sociais
simultâneos desempenhados por cada um e a busca de meios para compor sua coexistência
(ROSANVALLON, 2011, p. 171 e ss).
O interesse comum, a vontade geral, pensada nestes termos se distancia
imensamente da totalidade social enquanto agregado aritmético (eleições) ou enquanto
unidade monista, corpo coletivo ou estrutura social homogênea e singular capaz de
representar uma só vontade geral que atenda a todos.
De uma perspectiva estática da sociedade e sua correspondente generalidade
social unidimensional, avança-se para uma abordagem dinâmica da convivência social que a
todo tempo reconfigura, transforma e adequa a vontade geral. Nesse sentido, a vontade geral
manifesta-se como um horizonte regulatório e não mais como uma fórmula substancial e
palpável, visto que se torna contingente e circunstancial.
A pluralização dos sujeitos políticos e das formas de expressão da generalidade
social tem por consequência exigências maiores para a legitimação da circulação do poder
político. A essas três novas formas de exercício e manifestação da soberania popular, ou seja,
de expressão da vontade geral, correspondem novos tipos de legitimidade para circulação do
poder político. À generalidade negativa, corresponde a legitimidade da imparcialidade; à
generalidade da multiplicação associa-se a legitimidade da reflexividade; e, finalmente, à
generalidade de atenção ao particular, corresponde a legitimidade da proximidade.
Essas novas formas de legitimidade diferenciam-se da legitimidade eleitoral e
burocrática, definidas por critérios estruturais – “maioria vitoriosa” e “concurso público” -,
80
visto que se definem por qualidades, sendo, portanto, precárias e nunca definitivamente
alcançadas, dependendo permanentemente da percepção social e da avaliação do
comportamento de suas instituições.
A conformidade com a norma formal já não se sustenta como fundamento único
para essas novas perspectivas de legitimidade. Seu caráter é hibrido visto que a dimensão
formal precisa ser complementada pela dimensão dinâmica do permanente reconhecimento
social. Não basta que as ações das instituições fundadas sob os novos tipos de legitimidade
pareçam legitimas, elas precisam ser percebidas como legítimas, elas precisam de fato agregar
valor às relações e à convivência social. Instituições não eleitas serão percebidas como
socialmente úteis se forem capazes de entregar produtos e soluções que correspondam ao
interesse social específico que deu origem à sua criação.
Nesse ponto Pierre Rosanvallon considera as abordagens procedimentais, como
por exemplo, a de Habermas, insuficientes visto que estas adotam uma perspectiva monista da
soberania popular, ou seja, enxergam apenas o parlamento como caixa de ressonância social
por excelência e como espaço exclusivo de elaboração da razão procedimentalizada
(ROSANVALLON, 2011, p. 8). Não haveria, em sua opinião, o explicito reconhecimento de
formas e arenas múltiplas para a manifestação da soberania popular. A soberania popular não
seria vista como resultado de formas complexas e múltiplas de manifestação, segundo
Rosanvallon haveria apenas o deslocamento da soberania social de um corpo social concreto
para um espaço difuso de comunicação.27
O autor francês propõe uma redefinição do conceito de legitimidade partindo da
desconstrução e reconstrução da ideia de generalidade social. Essa abordagem tem por
consequência a pluralização radical das formas de legitimidade e, portanto, das manifestações
correspondentes em termos de instituições que ficarão encarregadas de garanti-las. Então, se
existe mais de uma forma de agir ou de falar em “nome da sociedade”, ou seja, se existe mais
27 Neste ponto, vale registrar que a autora desta pesquisa discorda, em parte, da crítica feita por Pierre Rosanvallon à Habermas. Habermas não adota uma postura monista em termos da manifestação da soberania popular através do parlamento como única instância legítima, ao transferir a soberania popular de um corpo concreto para um espaço difuso de comunicação. O que o autor alemão faz é alertar para os princípios que fundamentam o sistema de direitos e para a apropriação de discursos sem as correspondentes formas de legitimação por instituições que passam a dispor de discursos de fundamentação e de aplicação de normas. Habermas reconhece sim a existência de novos espaços dialógicos, como as autoridades independentes e a cortes constitucionais, que precisam adequar a institucionalização de mecanismos de legitimação para a disposição dos discursos correspondentes. A diferença essencial é que Habermas reconhece essa possiblidade como uma possível fonte de enfraquecimento do sistema de direitos e talvez este seja o alvo da crítica de Rosanvallon que reconhece legitimidade para outras instituições além do Parlamento como fonte de produção de direito legítimo.
81
de uma forma da soberania popular se manifestar, é necessário que a tradicional repartição de
poderes e a estrutura tradicional da burocracia estatal sejam revistas.28
A proposta de Pierre Rosanvallon é que a legitimidade democrática seja vista
como um sistema no qual a dupla legitimidade eleitoral e burocrática seja complementada
pelas legitimidades da imparcialidade, da reflexividade e da proximidade como meio para
estabelecer um ideal democrático mais exigente. Como explica o autor, “se a legitimidade no
sentido mais amplo implica ausência de coerção, a legitimidade democrática requer algo mais:
um tecido de relações entre o governo e a sociedade” (ROSANVALLON, 2011, p. 9).
Nesse ponto o autor volta a se aproximar da democracia deliberativa nos termos
propostos por Habermas, na medida em que compreende que a democracia enquanto
apropriação social do poder político depende de tais relações. A ideia de tecido social se
aproxima muito da ideia de rede social de comunicação pela qual circula o poder político,
divergindo, no entanto quanto a forma de definir o lócus legítimo para sua manifestação.
Pierre Rosanvallon propõe uma forma bastante interessante para abordar o
aprofundamento da convivência democrática em tempos de radicalização da complexidade
social. Para ele a democracia contemporânea fundamenta-se no reconhecimento da
legitimidade do conflito de um lado, sendo a competição eleitoral responsável por
institucionalizar o conflito e determinar a solução: “a política democrática implica a escolha
de lados, a tomada de posição. Em sociedades marcadas pela divisão social e pela incerteza
quanto ao futuro, essa dimensão da política democrática é essencial” (ROSANVALLON,
2011, p. 12). Por outro lado, ampara-se na aspiração de consenso, visto que a convivência
democrática pressupõe o compartilhamento do espaço comum. Conflito e consenso são duas
faces da convivência democrática que necessitam de igual reconhecimento e legitimação.
Assim, identifica o autor dois tipos de instituições essenciais para a prática
democrática contemporânea: as instituições de conflito, relativas às práticas partidárias
subjetivas da competição eleitoral-representativa, e as instituições do consenso, relacionadas
ao mundo objetivo das instituições da democracia indireta, as cortes constitucionais e as
autoridades independentes.
O reconhecimento explícito de que o ideal democrático contemporâneo se ampara
nessa dualidade paradoxal permite o enfrentamento e atualização da ficção de que a “maioria
das urnas” corresponde à expressão de unanimidade da vontade geral. A decomposição dos
28 Sob a perspectiva da democracia deliberativa, nos termos propostos por Habermas, seria o equivalente a reconhecer a apropriação de formas diferenciadas de discursos por novas instituições.
82
elementos que fundamentam a ideia democrática permite a construção de soluções para suprir
o déficit democrático da democracia eleitoral-representativa liberal, nos termos em que foi
concebida. O explicito reconhecimento da necessária tensão entre instituições majoritárias e
instituições governadas pela justificação do consenso colabora para identificar soluções para o
equacionamento das tensões sociais.
Demonstra ainda o autor a necessidade de se reconhecer uma outra dualidade do
modelo democrático contemporâneo: a tensão entre democracia da tomada de decisão, cujo
referencial é a legitimidade eleitoral-burocrática, de cunho formal, e a democracia de
comportamentos, de aspecto procedimental, cujo referencial é a perspectiva dinâmica das
práticas e procedimentos públicos que não podem mais ignorar os cidadãos e suas
circunstancias até as próximas eleições.
Nesse contexto aparece uma nova dimensão para legitimação das ações da
administração pública: o comportamento daqueles que fazem parte da burocracia faz
diferença. Como as instituições funcionam passa a importar. É nesse sentido que as
instituições do consenso aparecem como novas formas políticas, como nova arena legítima de
circulação de poder político e de construção da razão procedimentalizada. As cortes
constitucionais e as autoridades independentes de supervisão e regulação atuam para alinhar
de forma dinâmica e permanente as ações e políticas públicas com o projeto constitucional, ou
seja, garantem a busca do interesse comum, a expressão da vontade geral, sob perspectiva
múltipla, complexa e diferenciada.
2.2 Autoridades reguladoras independentes
A criação de autoridades reguladoras independentes não é um acontecimento
recente na história da burocracia estatal. A primeira autoridade independente, a Interstate
Commerce Commission (ROSANVALLON, 2011, p. 75), foi criada pelos Estados Unidos no
final do século XIX para regular as estradas. O fenômeno que de fato tem chamado a atenção
é o aumento no ritmo da criação dessas entidades na maioria dos países democráticos após os
anos 1980, multiplicando a quantidade de órgãos independentes para tratar de diversos
interesses especializados.
Independente da natureza jurídica e das peculiaridades dessas autoridades em cada
país, o que pode ser analisado como ponto novo e comum é a dimensão executiva atribuída a
tais agências em conjunto com funções normativas e/ou judiciais, para atuarem em centros de
83
interesses públicos específicos e múltiplos, caracterizando uma nova forma de processar
interesses sociais e políticos pulverizados.
A proliferação de entes regulatórios interfere diretamente na tradicional separação
de poderes e modifica claramente a esfera de atuação do poder executivo e legislativo,
trazendo para o regime democrático uma reorganização das formas de circulação do poder
político. As fronteiras tradicionais entre poderes políticos, administrativo, legislativo e
judiciário são modificadas. Por hora, basta registrar esse ponto. O assunto será melhor
explorado no próximo ponto. Nesse momento, interessa identificar a origem do fenômeno e
discutir que fundamentos legitimaram a criação de órgãos dessa natureza.
Alguns fatores críticos que contribuíram para a criação da primeira agencia
reguladora no século XIX permanecem como fundamento para a criação dessas autoridades
no século XXI: a necessidade de um agente imparcial em relação ao ciclo das disputas
partidárias-eleitorais, a fim de que o interesse comum seja administrado em perspectiva de
prazo mais longo; alto grau de especialização técnica; flexibilidade do sistema regulatório
para expedir normas, tomar decisões, apresentar soluções e resolver disputas entre todos os
participantes e envolvidos da mesma esfera de interesses, de forma dinâmica e em prazo
adequado, portanto, com ciclos temporais diferentes dos horizontes de tempo dos tradicionais
procedimentos do poder executivo e do poder legislativo.
O primeiro esforço teórico a respeito de tais características das autoridades
independentes foi feito por uma força tarefa governamental americana em 1944 e confirmada
após pela Hoover Commission (ROSANVALLON, 2011, p. 79). Os relatórios que resultaram
desses trabalhos identificaram como características essenciais das comissões reguladoras as
seguintes: isolamento de pressões políticas e independência do poder executivo;
imparcialidade; habilidade para implementar políticas públicas de longo alcance não sujeitas à
influencias das eleições; e habilidade para formular políticas racionais e coerentes. Foi
enfatizado ainda o fato de que o público aceitava melhor as decisões das agências do que as
decisões da burocracia tradicional.
Na França, em 1978, sob imperativos semelhantes, foi criada a primeira agência
correspondente ao modelo de autoridade independente, a National Comission for Computers
and Freedom – CNIL (ROSANVALLON, 2011, p. 80). O debate envolveu opiniões
divergentes quanto `a natureza do órgão a ser criado para fornecer e gerir um número de
cadastro único para cada cidadão, se um departamento ligado ao Ministério da Justiça ou uma
autoridade administrativa independente. Houve resistência do público e da oposição política
que compreendeu essa iniciativa de dar a um órgão do governo esse poder como um ataque à
84
liberdade. A solução política aceita para o impasse foi a criação de uma autoridade reguladora
independente.
A criação do órgão regulador francês foi emblemática porque, como elucida
Pierre Rosanvallon, essa decisão evidenciou explicitamente a suspeita de parcialidade em
relação ao órgão executivo, demonstrando a insuficiência do princípio majoritário para
legitimar as ações estatais para alcance do bem comum. As circunstâncias que envolveram a
criação da National Comission for Computers and Freedom trouxeram uma distinção fática
entre a legitimidade eleitoral e a legitimidade da imparcialidade (ROSANVALLON, 2011, p.
80). E é nesse sentido que o autor entende que a adoção do modelo de autoridades reguladoras
independentes para resguardar o bem comum significa a criação de um novo sistema para
expressar e gerir o interesse geral, legitimidade que os poderes tradicionais do Estado já não
conseguem preencher.
Na América Latina, a experiência de seguidos regimes de exceção, com a
decomposição dos laços cívicos e, portanto, com a destruição sucessiva das possibilidades de
construção de um regime democrático subsequente, levou alguns países como, por exemplo,
Uruguai e Brasil, a resgatar a dimensão social e a definir precondições estruturais como
requisitos essenciais da democracia compreendida não apenas como procedimento, mas como
forma social. A criação de uma autoridade independente dos poderes eleitos para regular o
processo eleitoral foi a saída encontrada por alguns países da região para dar início à
construção dos lações civis de cidadania, para preservar os direitos políticos eleitorais da
corrupção do sistema partidário-eleitoral e da apropriação desse especifico interesse comum
por interesses privados.
O principal objetivo era assegurar a importância do processo eleitoral e proteger
as condições para que o tecido social fosse reconstruído, para que canais de circulação de
poder político legítimos fossem abertos e preservado na perspectiva de longo prazo, para que
as condições de auto-gestão política de uma comunidade de cidadãos que dividem o mesmo
espaço pudessem ser restauradas e preservadas em face de apropriações espúrias de poder no
curto prazo.
No período entre guerras e diante de ameaças extremas e concretas como o
comunismo, o nazismo, o stalinismo e os regimes de exceção na américa latina, as novas
fundações do processo democrático tiveram seu início em termos negativos. Era essencial
construir um “espaço vazio” para defesa do regime democrático e para preservação dos laços
políticos sociais.
85
A ideia era estruturar a atividade eleitoral e as atividades políticas de tal forma
que os requisitos essenciais do processo democrático pudessem ser garantidos. Os regimes de
exceção eram um claro indicativo de que a constituição política da sociedade havia sido
quebrada e de que não havia instituições e tradição de cidadania capaz de assegurar a solução
de problemas pelas vias institucionalizadas. Não era apenas uma questão de existir ou não
eleições. Era uma questão de legitimidade de todo o processo de disputa partidária-eleitoral
que estava em jogo, processo esse que por não ser capaz de refletir a vontade geral e o
interesse comum não conseguiu manter coeso o tecido político social.
Nesse sentido, é sintomática a criação da Justiça Eleitoral no Brasil em pleno
regime de exceção, em 1932, seu fechamento em 1937, sua reabertura em 1945, a publicação
do código eleitoral em 1965 e a criação do Banco Central do Brasil em 1964.29 A formas
políticas tradicionais de circulação de poder estavam quebradas e não funcionavam, mas as
exigências por legitimidade social estavam presentes. O poder político centralizado de forma
arbitrária na mão do poder executivo, embora fosse detentor da força militar, claramente não
possuía a legitimidade para se colocar como guardião do interesse comum na esfera politica-
eleitoral. A justificação do poder por meio da violência tem um custo elevado demais e difícil
de sustentar-se no tempo, era necessário pelo menos demonstrar algum esforço de
legitimação, ainda que formal.
A manutenção da Justiça Eleitoral no Brasil em tempos de ditadura evidencia
exatamente a separação entre legitimidade representativa-eleitoral, que no caso foi imposta
pela força, e legitimidade da imparcialidade. Esse foi o meio encontrado para dar início à
reconstrução dos laços políticos eleitorais em uma sociedade fragmentada e tutelada pela
força, ou pelo menos para oferecer ainda que formalmente uma aparência de legitimidade.
Não era uma mera questão de votar ou não, de escolher representantes eleitos ou não, mas de
criar um horizonte, ainda que simbólico, para a reconstrução dos laços de convivência
legitima, o primeiro passo, ainda que formal, para a busca de um contrato social durador e de
uma ordem justa.
O processo eleitoral tem dimensão democrática significativa na medida em que o
sufrágio universal possui uma força simbólica muito grande por permitir que toda a
comunidade de cidadãos se expresse através de um procedimento e de uma linguagem comum
compreendida por todos, e que dá a todos uma voz igual, com o mesmo peso. O paradoxo é
que para proteger e garantir as pré-condições de manifestações básicas da democracia foi
29 Sendo a moeda também considerada como uma das fontes de integração do tecido social. Nesse sentido ver: ROSANVALLON, 2011, p.116).
86
necessário afastar a coordenação e a regulação do processo eleitoral das disputas partidárias-
eleitorais, foi necessário entregá-lo à uma autoridade reguladora independente dos poderes
eleitos para que as disputas eleitorais fossem recolocadas numa dimensão que pudesse ser
percebida como legitima. A independência era a específica condição para sua atuação
legítima, a legitimidade negativa era o expresso requisito para a efetiva proteção da
manifestação do interesse comum, para o resgate dos laços sociais rompidos em países com
históricos recorrentes de ruptura com o Estado democrático. Foi necessário criar uma
instituição de consenso, como pré-condição para a reativação das instituições legítimas de
conflito.
2.3 Generalidade negativa e legitimidade da imparcialidade
A tradicional legitimidade eleitoral dos sistemas democráticos representativos
ampara-se no reconhecimento e aceitação popular da “regra da maioria”, representando então
uma generalidade agregada de identificação que se manifesta em termos quantitativos.
A generalidade da imparcialidade atua em outro sentido, no sentido negativo.
Numa sociedade profundamente diversificada, na qual, como dito, a concepção de “o povo”
manifesta-se mais como um agregado de múltiplas e diferenciadas minorias do que como uma
voz unânime e homogênea, na qual o interesse geral permanece em constante
questionamento e sob forte pressão de grupos de interesse diversos, há uma tendência para
que cidadãos prefiram ser governados por princípios e interesses voltados para a eliminação
de privilégios e para a garantia de igual possibilidade a todos. Explica Pierre Rosanvallon
(2011, p. 97 e ss), que a opção por uma generalidade negativa procedimental30 aparece como
meio mais eficiente e legítimo para criar e garantir espaço para a realização desinteressada
dos interesses de todos.
Outro aspecto relevante que deve ser ressaltado é o fato de que nessa sociedade
profundamente diversificada os centros de interesse e, portanto, de circulação de poder
político, são múltiplos e fragmentados em relação ao tradicional sistema napoleônico
centralizado de poderes políticos. Nessa perspectiva, instituições e cidadãos se organizam e
participam de tantos quantos forem necessários microssistemas para expressar múltiplas
dimensões do interesse comum.
30 Mais uma vez Rosanvallon se aproxima de Habermas ao reconhecer a manifestação da legitimidade negativa em seu aspecto procedimental como fonte de justificação de aspecto imparcial.
87
Esse é o fenômeno que esclarece a multiplicação de autoridades reguladoras
independentes e de organizações da sociedade civil a partir do final dos anos 1980. Esse é o
fenômeno que explica a transformação da tradicional partição de poderes com a emergência
de órgãos reguladores e de supervisão ao lado da expansão da atuação das cortes
constitucionais e do poder judiciário como um todo. Não é mais possível coordenar o
interesse comum de forma centralizada porque o interesse comum agora manifesta-se de
forma complexa, não é mais possível coordenar a vida social a partir de um único polo de
circulação de poder político, como ocorreu até então na figura do parlamento, porque o tempo
e o espaço para manifestação da democracia se modificaram. O interesse comum e a vontade
geral ganharam dimensões múltiplas de manifestação, estes passam a ser tidos como
interesses comuns e vontades gerais que se organizam circunstancial e dinamicamente,
necessitando assim de meios e instituições capazes de coordená-los também de forma
múltipla e dinâmica.
Para manter a coesão do tecido social, é essencial a existência de instituições com
espaço para a composição dos diversos e múltiplos interesses comuns, de forma que todos os
afetados percebam que efetivamente possuem voz ativa, que existem canais específicos para
garantir que ao seu direito será dada a mesma atenção que aos direitos dos demais. A
independência das autoridades reguladoras e das cortes de justiça protegem os interesses
comuns de interferências políticas, com políticas públicas previstas para horizontes de tempo
mais longos. Mas para funcionar de forma legítima e receber assentimento geral, tais
instituições devem ser percebidas como imparciais a todo tempo e nesse sentido a existência
de procedimentos internos bem definidos, de mecanismos claros para a tomada de decisão e
de mecanismos de accountability são essenciais. Estas precisam funcionar como novas
arenas para elaboração da razão procedimentalizada. Outro paradoxo precisa então ser
registrado: a generalidade negativa se apresenta através de uma imparcialidade
necessariamente ativa.
As autoridades reguladoras independentes e as cortes judiciais que lidam com a
questão da constitucionalidade, no novo contexto democrático, devem estar voltadas para
garantir tais objetivos: a acessibilidade de todos os participantes dos diversos microssistemas
políticos a canais para apresentar suas demandas, para ser ouvido e para ter uma resposta que
tenha levado em conta suas condições particulares. Tais objetivos tornam-se parâmetros para
aferição do exercício legitimo das funções públicas, e, portanto, da manifestação do poder
político estatal.
88
A igualdade como inclusão formal não é suficiente. Não basta haver sufrágio
universal, não basta haver acesso formal à educação e à saúde, e a tantos outros direitos de
cidadania. É preciso que as ações governamentais agreguem valor efetivo à vida cotidiana do
cidadão e entreguem respostas concretas. Como aponta Pierre Rosanvallon (2011, p. 98):
“A expectativa da imparcialidade, e então a importância da generalidade negativa, emerge dos caminhos concretos nos quais a sociedade funciona. A sociedade hoje está dividida numa miríade de caminhos: a particularidade está em todo lugar. Essa é uma consequência inevitável do crescimento econômico e do aumento da complexidade. A influência de interesses especiais e de grupos de pressão aumentaram por questões estruturais. Para que seja possível controlá-los, a estratégia mais eficiente é criar instituições cujo papel seja o de defender a generalidade negativa, porque não é mais possível conceber a sociedade como uma totalidade positiva. ”
Ressalta ainda o autor que, ao contrário do poder aristocrático que é concebido
como dominium e do poder eclesiástico como ministerium (ROSANVALLON, 2011, p. 98), o
projeto democrático depende da designação de um “lugar vazio”. Na democracia o poder
democrático deve emergir do livre consentimento, sem que este seja apropriado por qualquer
um dos participantes. Como “o povo” enquanto coletividade é um sujeito virtual, que na
prática é profundamente dividido por interesses e opiniões divergentes, a apropriação coletiva
do poder, se tomada apenas em seu aspecto positivo, não irá funcionar, visto que sua
manifestação se dá pela competição eleitoral-partidária e pelo embate de interesses políticos
antagônicos, ou seja pela regra da maioria. A socialização do poder em sua forma negativa se
faz então necessária para suprir os déficits de legitimidade da sua manifestação positiva.
A função de autoridades reguladoras independentes, das cortes judiciais e do
terceiro interventor é então desejar pela nação, é falar em nome da vontade geral.31 Tanto
Sieyès quanto Madison distinguiram o conceito de governo representativo e de democracia, e
ambos concordavam que os representantes do povo deveriam ser autoridades independentes,
imparciais e com competência diferenciada em relação aos eleitores, características que
atualmente descrevem muito mais os órgãos reguladores independentes e as cortes
constitucionais do que o parlamento contemporâneo.
Essa situação pode ser melhor compreendida com as colocações apresentadas pelo
autor em relação à tentação pela despolitização (ROSANVALLON, 2011, p. 223). Ele busca
evidenciar o paradoxo na conduta dos políticos que, para demonstrar seu comprometimento
com o bem comum, declaram sua rejeição à política enquanto espaço de manipulações e
31 No sentido usado por Carré de Malberg em sua teoria dos órgãos, alguns órgãos possuem a função de “agir e desejar pela nação”, e Rosanvallon cita o exemplo da lei francesa na qual os juízes decidem em nome do povo francês para demonstrar seu ponto de vista. Para melhor compreensão, ver: ROSANVALLON, 2011, p. 90.
89
cálculos pessoais, tentando vender uma imagem de distância das práticas políticas, do
desprezo pela competição feroz pelo voto, uma imagem apartidária. Ao mesmo tempo em que
a própria classe política deslegitima o conflito partidário, não há o devido reconhecimento da
função política de outras instituições da generalidade, de consenso. Pierre Rosanvallon
entende que esta é uma confusão destrutiva para a prática democrática que precisa ser
equacionada.
Para o autor, deve ser restaurado o respeito e a legitimidade das instituições de
conflito e reconhecida a importância das instituições de consenso. A legitimidade do processo
democrático contemporâneo depende de ambas. O embate de plataformas e valores, de ações
estratégicas e de disputas de interesses precisa ter sua arena delimitada e preservada. Estas
fazem parte das instituições de conflito. É necessário assumir que a disputa partidária-eleitoral
é componente legítimo e essencial do processo democrático, que se constitui como uma das
formas de expressão de generalidade que fundamenta a democracia, a generalidade positiva,
sendo seu canal de manifestação as instituições de conflito – partidos políticos, congresso
nacional e o processo eleitoral. Enfatiza o autor, no entanto, que esta não é a única instância
relevante (ROSANVALLON, 2011, p. 222 e ss).
Outra forma de expressão de generalidade precisa também ser assegurada, a
generalidade negativa, através da atuação de instituições contra majoritárias voltadas para o
consenso, instituições cujo foco de atuação seja garantir o aspecto substancial de igual
oportunidade para todos.32
É necessário colocar a democracia em perspectiva mais ampla, pois esta deve
criar e assegurar espaço tanto para o conflito como para o consenso, assim como para o
funcionamento dos diversos centros de interesse, seus sujeitos e instituições. A democracia
precisa ter assegurada em seu cerne a disputa política legitima o que implica em maior
regulação democrática e maior atenção à sua construção. Nas palavras do autor: “onde a
regulação é procedimental, a construção é mais substantiva” (ROSANVALLON, 2011, p.
224).
32 Aqui é necessário registrar um ponto que será considerado mais adiante. Embora o autor fale em instituições contra majoritárias no sentido de proteger os interesses comuns e as múltiplas vontades gerais das maiorias vencedoras, com a inversão de papéis ocorrida exatamente pelas diversas disputas de interesses, as autoridades reguladoras e as cortes judiciais e constitucionais em algumas circunstâncias terão, na verdade um papel majoritário, pois, além de proteger minorias para que não sejam dizimadas ou esmagadas pelas disputas de interesses, deverão principalmente proteger a soberania em suas múltiplas dimensões e manifestações, garantindo igual oportunidade a todos e mantendo aberto horizontes de múltiplas possibilidades. Nesse sentido, haverá então uma ação majoritária das autoridades reguladoras independentes e das cortes judiciais e constitucionais, mas majoritária exatamente no sentido de proteger o “lugar vazio” que precisa ser preservado na democracia contemporânea de apropriações indevidas por maiorias circunstanciais, ou, porque não dizer, das “minorias” circunstancialmente vencedoras.
90
Especificamente em relação ao tema desse trabalho, é imprescindível registrar
que: se a disputa partidária-eleitoral é um dos pilares da democracia contemporânea, o
processo para escolha de ideias, interesses e representantes constitui-se como uma arena
especifica e especializada de circulação de deliberação, portanto como um dos subsistemas
políticos no qual se manifesta aspecto especifico do interesse comum. A construção
substantiva e a manifestação dos diversos pontos de vista relacionados a tal interesse
dependem de regulação procedimental capaz de garantir condições equitativas para sua
expressão. O foco aqui é a garantia da legitimidade do processo eleitoral. Esse será legitimo
se as condições procedimentais para alcance de resultados substancialmente legítimos forem
asseguradas. Essa é a tarefa das autoridades reguladoras independentes associadas e
encarregadas do processo eleitoral.
Portanto, na perspectiva da generalidade negativa, cabe à Justiça Eleitoral
brasileira a regulação do processo eleitoral a fim de garantir sua legitimidade substancial, ou
seja, que as disputas partidárias-eleitorais, compostas pelo embate de interesses divergentes e
contrapostos, aconteça dentro das regras do jogo, para entregar resultados eleitorais
substancialmente justos. A Justiça Eleitoral é, no Brasil, o ente com a atribuição de construir
consensos que viabilizem processos eleitorais legítimos, com a atribuição de criar as
condições para que instituições de conflito, os partidos políticos, participem de forma legitima
da disputa de ideias e de interesses que indicará os representantes eleitos para a próxima
legislatura.
Uma distinção crucial se faz necessária nesse ponto: eleições como um dos pilares
da democracia, como manifestação positiva substancial da “maioria”, ou das “minorias
vencedoras”, como manifestação da vontade geral, ou seja, como resultado, como escolha
objetiva e inequívoca de representantes democráticos eleitos; e eleições como processo,
processo eleitoral como procedimento, como garantia de igualdade de condições, como meio
para alcance do consenso, como meio para aceitação dos resultados eleitorais.
A Justiça Eleitoral como agente regulador do processo eleitoral atua conforme
esse segundo sentido, para garantir eleições conforme o primeiro sentido. A Justiça Eleitoral
tem por função garantir as condições de legitimidade para produção do consenso, para o
resultado do embate de ideias eleitorais, ou seja, garantir legitimidade para a solução dos
conflitos eleitorais e legitimidade para os resultados das urnas. Há mesmo um paradoxo a ser
reconhecido: para garantir resultados legítimos para o exercício de poder político pelas
instituições de conflito é necessário a atuação legítima de instituições de consenso.
91
Autoridades reguladoras independentes, nesse sentido, configuram uma forma de
poder representativo embora não sejam integradas por agentes eleitos.
A tradicional representação eleitoral, por meio de representantes eleitos, incorpora
as duas dimensões tradicionais da representação previstas pela teoria política, a representação
como delegação e a representação como figuração, ampara-se, portanto, na proximidade.
Diferentemente, a representação de autoridades reguladoras independentes depende, por outro
lado, de sua abertura a inputs sociais, de sua capacidade para identificar necessidades sociais e
para funcionar em nome de todos os envolvidos, principalmente dos grupos ou de cidadãos
menos visíveis.
A representatividade das autoridades reguladoras independentes, e, portanto, sua
legitimidade de ação, ampara-se na acessibilidade, nos canais de diálogo efetivo que
estabelece com as partes interessadas para compor interesses e solucionar conflitos. A
legitimidade de sua atuação depende dos mecanismos de que dispõe para proporcionar a todos
os interessados influência nos processos de escolha das formas pelas quais os conflitos serão
resolvidos. Depende ainda de procedimentos que permitam levar em consideração todos os
argumentos das partes interessadas buscando superar perspectivas particulares para alcançar
uma forma de generalidade especifica, a generalidade negativa.
2.4 Dimensões temporais, expressões múltiplas do sujeito da democracia e reflexividade
Como registrado anteriormente, o estado democrático liberal foi criado sob a
perspectiva de três premissas básicas: a escolha dos eleitores é equiparada a vontade geral; os
eleitores são equiparados ao povo, e toda atividade legislativa e política subsequente decorre
do momento do voto.
A proposta teórica de Pierre Rosanvallon para corrigir e compensar essas três
premissas problemáticas no contexto democrático atual é o aprofundamento do exercício
democrático contemporânea sob a perspectiva do que ele chamou de democracia reflexiva. O
exercício da democracia reflexiva dá origem ao que o autor chama de generalidade de
multiplicação e a correlata exigência da legitimidade reflexiva (ROSANVALLON, 2011, p.
123).
Enquanto a generalidade negativa pretende satisfazer a demanda por unanimidade,
correspondendo-lhe a exigência de legitimidade da imparcialidade, a perspectiva reflexiva
92
exige a pluralização de manifestações do poder político ao invés da separação, buscando a
multiplicação de abordagens mais limitadas como forma de se alcançar perspectiva mais
compreensiva do todo.
A democracia reflexiva aprofunda esforços sobre si própria e funciona através de
duas perspectivas complementares: de um lado, acrescenta maior complexidade para formas
democráticas e para sujeitos da democracia, e, de outro regula os mecanismos do sistema
majoritário.
Pierre Rosanvallon explica que Condorcet foi o primeiro teórico a enfrentar a
questão a respeito de como deveria funcionar a democracia representativa. Ainda em 1793, ao
apresentar sua proposta de constituição, o autor já teria identificado que formas diferentes
para o exercício da soberania popular deveriam existir, através da diversificação do calendário
político e na diversidade das formas de expressão política. Pierre Rosanvallon (2011, p. 128)
reconhece o valor das ideias de Condorcet e propõe chamar este conjunto de múltiplas
possibilidades de expressão da soberania popular de “soberania complexa”.
Já naquele tempo, explica Rosanvallon, Condorcet identificou duas formas de
complexidade envolvidas no conceito da vontade geral. A vontade geral como resultado da
interação entre o povo e seus representantes, e não como uma vontade anterior ao processo
político. E a soberania popular como resultado das estruturas ordinárias do governo
representativo, em complemento ao referendo e a censura, por exemplo (ROSANVALLON,
2011, p. 128).
Prossegue em sua explicação ressaltando que, enquanto as seções de Paris
imaginavam a vontade geral apenas como expressão do povo enquanto “a multidão reunida
sob os paralelepípedos da cidade”, Sieyès, no extremo oposto, imaginava a vontade geral
apenas como expressão de um órgão, visto que o povo como sujeito político somente existia
por meio da representação. Condorcet, por outro lado, buscou transcender tais perspectivas, e
propôs a abordagem da soberania como construção histórica.
Explica Pierre Rosanvallon que para Condorcet a soberania popular se expressa
através de escalas temporais diferenciadas: a de curto prazo (referendum e censura), a
periódica (eleições institucionalizadas); e a de longo prazo (constituição). E tais formas de
expressão da vontade popular estariam sujeitas a complementação, supervisão e controle de
outras formas e procedimentos para sua manifestação. Para Condorcet, “o povo real” seria um
ente complexo com manifestações plurais e a única forma de dar corpo a esse povo real é
93
reconhecer suas diversas formas de manifestação. Nesse contexto, a separação de poderes
ganha novo sentido e passa a ser instrumento para se alcançar um exercício mais profundo de
democracia, como meio para manifestação do povo real (ROSANVALLON, 2011, p. 129).
A democracia representativa, enfatiza Rosanvallon, nos termos concebidos por
Condorcet permitia a multiplicação de temporalidades, de formas e de sujeitos da soberania,
não sendo reduzida a mera síntese ou equilíbrio de dois princípios contraditórios. Essa
abordagem é crucial para a compreensão da república moderna e para a abordagem da
generalidade democrática.
A abordagem plural dos sujeitos, das formas e dos procedimentos da democracia,
através de multiplicações de expressões parciais, permite uma aproximação mais efetiva da
generalidade democrática. Ao pluralizar fontes e representantes do poder social, Condorcet
propôs uma abordagem complexa da soberania que permite enquadrar a relação entre
liberalismo e democracia sob outro ponto de vista. Ao invés de uma abordagem que identifica
o liberalismo como limite ao exercício democrático, este passa a ser visto como aumento da
influência social no processo político. Se a sociedade possui mecanismos para interferir e
legitimar o exercício dos poderes estatais, então a generalidade social encontra-se, pelo
conjunto, no comando (ROSANVALLON, 2011, p. 129).
A pluralização das manifestações da soberania popular se dá pela abordagem
plural de seus representantes. A multiplicidade material e funcional de “o povo”, nos termos
propostos pela soberania complexa, é sua representação mais adequada. Pierre Rosanvallon
divide sua manifestação em três formas principais: o povo eleitoral, o povo social e o provo
como princípio, sendo que cada um deste é uma manifestação parcial do todo.
A manifestação do povo eleitoral (ROSANVALLON, 2011, p. 130) é sempre
fugaz e esporádica e identifica-se com a realidade numérica da urna de voto, expressando-se o
poder social nesta hipótese como manifestação instantânea da maioria. Imediatamente
manifesta-se na divisão entre minoria e maioria. Há diversas arenas, espalhadas por espaços
sociais distintos, na quais o debate político ocorre, e as eleições caracterizam uma forma de
agregar elementos tão diferenciados. Sua contribuição para a expressão da generalidade social
reside em dois pontos fundamentais: o processo eleitoral por natureza elimina controvérsias
através da expressão legitima e incontestável da maioria e as eleições consagram uma
expressão radical da igualdade, ao conceder a todos o igual direito de se manifestar pelo voto.
Embora o resultado das eleições seja dividido entre maioria vencedora e minoria que deverá
94
se submeter, o processo eleitoral garante a legitimidade que unifica temporariamente a
expressão popular e por isso é tão relevante para a prática democrática.
O processo eleitoral oferece meio objetivo legitimo de desejar em comum, de
reduzir periodicamente a diversidade a um denominador comum, estando tal função
agregativa das eleições no centro do processo democrático. Por esta razão muitos países
adotaram instituicoes eleitorais independentes para assegurar confiança e justiça ao processo
eleitoral, reconhecendo a necessidade de uma terceira parte reflexiva como premissa
fundamental para o completo exercício democrático.
O povo social (ROSANVALLON, 2011, p. 130), por outro lado, expressa-se
como uma sucessão continua de minorias ativas ou passivas. É a perspectiva dinâmica das
relações sociais em movimento, e a busca permanente por uma convivência justa, é o
resultado das diversas interações e interconexões que delimitam questões essenciais do tecido
social, deixando evidente problemas, promessas e objetivos não alcançados.
O povo como princípio é representado pelo equivalente geral que sustenta a ideia
de igualdade e fundamenta o projeto de uma política inclusiva. É o liame que une cidadãos
pelo que estes possuem em comum, o direito a igualdade de oportunidades. Pela perspectiva
kantiana, seria o reconhecimento da dignidade inerente a todo ser humano. Sua expressão
mais evidente se dá pelo reconhecimento dos direitos fundamentais, enquanto constituição e
reconhecimento simultâneo da cidadania e da coletividade. Os sujeitos de direito são a
expressão concreta do povo como princípio, que qualquer um pode identificar. A expressão
sociológica e abstrata de “o povo” é substituída por uma expressão jurídica e concreta que
permite a identificação tangível da comunidade política e de todos os seus problemas,
discriminações e exclusões.
O povo como princípio (ROSANVALLON, 2011, p. 130) atua em dimensão
temporal mais ampla. Ao contrário do que ocorreu na época da Revolução Francesa, quando
o parlamento era a instituição que melhor representava o povo como princípio, atualmente o
órgão que melhor representa o povo como princípio são as cortes constitucionais e judiciais.
A atuação contra majoritária com foco em direitos e princípios fundamentais, aliada à técnica
jurídica de produção de racionalidade decisória, colabora diretamente para a construção ativa
da memória e da vigilância coletivas, funções politicas concretas por excelência, permitindo a
preservação da identidade da democracia ao longo do tempo.
95
Cada imagem apresentada acima identifica-se com uma expressão diferente da
vontade geral. O povo eleitoral se relaciona a sua expressão numérica, a “vontade geral
expressiva”. O povo social expressa-se através da “vontade geral integrativa” que busca
eliminar distinções e erradicar discriminações, criando iguais condições de convivência
comum. O povo como princípio manifesta–se através do amplo respeito pela existência e
dignidade de cada indivíduo, sendo sua manifestação de generalidade somente possível
mediante a existência de um governo que inclua a todos incondicionalmente. O alcance da
generalidade social pressupõe então a manifestação do sujeito democrático em suas três
dimensões.
A pluralização da temporalidade política é a próxima contribuição essencial de
Condorcet ressaltada por Pierre Rosanvalon, na medida em que este compreende a
democracia como uma construção histórica, sendo esta então função do tempo
(ROSANVALLON, 2011, p. 132). O povo, enquanto sujeito político coletivo, também. O que
significa que a democracia, além de ser um sistema que permite que uma coletividade governe
a si mesma, é um horizonte temporal que permite a construção de uma identidade comum.
Nessa linha de pensamento, tempos sociais diversos precisam ser articulados para densificar o
ideal democrático: o tempo vigilante da memória, o longo prazo da norma constitucional; o
médio prazo, o tempo limitado do mandato parlamentar; e, o curto prazo da opinião pública e
das eleições. A vontade geral é, portanto, complexa e apresenta então diversas sujeitos e
formas de manifestação no tempo.
A generalidade da multiplicação se manifesta então através da pluralização em
duas dimensões: na pluralização dos sujeitos políticos e na pluralização das temporalidades
políticas.
Na sociedade contemporânea a pluralização da temporalidade do exercício
democrático é uma exigência cada vez maior. A permanente mutação social torna o
pensamento de curto prazo uma ameaça constante, sendo necessário para a manutenção dos
laços sociais um parâmetro estável, função ocupada pela representação através de princípios.
Esse é o motivo que explica o aumento de credibilidade das cortes constitucionais e judiciais
e a queda da credibilidade dos órgãos representativos tradicionais.
A democracia de longo prazo relaciona-se então com as normas constitucionais,
enquanto as decisões e escolhas realizadas pelo parlamento e pelo executivo relacionam-
se
96
com o exercício democrático em prazo mais curto. Cortes constitucionais e parlamento são
então instituições políticas que atuam em dimensões temporais diferentes da democracia.
É essencial então compreender a estrutura da democracia, e, portanto, do sistema
político e de suas instituições, como uma construção que se realiza em escalas temporais
diferenciadas, mas interconectadas.
A reflexividade, nesse sentido, é uma forma de representação democrática que
permite a redução do abismo entre as escolhas majoritárias e a prática democrática concreta,
colaborando para aprofundamento do sistema representativo como um todo. As cortes
constitucionais e judiciais permitem outra forma de manifestação e construção da vontade
geral, em escala de tempo diferente das eleições e dos mandatos políticos, concedendo aos
cidadãos outras formas de controle sobre o poder político. Regista Pierre Rosanvallon que os
objetivos de uma democracia direta podem ser melhor alcançados através do estabelecimento
de um sistema de representação generalizado, que ultrapassa as tradicionais fronteiras do
momento eleitoral. As cortes constitucionais e judiciais colaboram com a vitalidade da
democracia através de pelo menos três formas: ajudam a corrigir as deficiências do sistema
representativo, realçam as práticas de governança democrática e realçam a qualidade da
deliberação política.
A reflexividade permite o confronto de práticas deliberativas distintas, de duas
formas de construção da vontade geral: a produção de normas pelo devido processo
legislativo e a produção de decisões através da técnica de fundamentação legal. Como explica
o autor (ROSANVALLON, 2011, p. 147):
“A reflexividade introduzida por procedimentos judiciais constitucionais multiplica as localizações, modos e tempos da deliberação pública. Ela permite a oportunidade de olhar para essas questões de ângulos diferentes. Ela ainda impõe um período de delay para reflexão. A cena deliberativa resultante tem uma composição, um caráter reflexivo, que faz com que seja possível abordar objetivos que seriam difíceis de atingir através da organização do debate público de acordo com os cânones da teoria deliberativa pura. De fato, a deliberação verdadeira é bastante exigente em termos do nível de informação, parâmetros de argumentação, e maturidade de reflexão. ”
O ponto central da reflexividade é a construção da ponte e a redução de distâncias
entre a democracia definida como procedimento e a democracia definida como conteúdo.
Nesse contexto, novos requisitos são adotados para coordenar as diversas
expressões da vontade geral. Procedimentos de imparcialidade e de reflexividade são
97
incorporados para evidenciar outras dimensões do exercício democrático, para além da
tradicional composição do sistema representativo eleitoral.
O aprofundamento do exercício democrático ao longo do século XX e XXI
demonstra a exigência de novos procedimentos e instituições para a prática democrática
contemporânea deixando claro a insuficiência da abordagem unidimensional e monista
original. A multiplicação de sujeitos e espaços da democracia trouxe a necessidade de meios
mais elaborados e múltiplos para expressão da vontade geral, como dito, e foi nesse contexto
que apareceram as autoridades reguladoras independentes e as cortes constitucionais como
novas arenas de circulação de poder político.
Para Pierre Rosanvallon, as cortes constitucionais e judiciais apresentam uma
função diferente das abordagens tradicionais que as equiparam a legisladores negativos ou a
percebem como limite ao exercício democrático. Entende o autor que além da tarefa de
supervisão as cortes constitucionais constituem-se como espaço para “um regime de
expressões concorrentes da vontade geral”,33 na medida em que concedem poderes aos
cidadãos para questionarem a atuação de diversas instituições e para apresentar pontos de
vista diferenciados sobre a interpretação das normas, configurando uma forma de resistência
popular. A possibilidade de participação na construção de argumentos e fundamentos pelos
cidadãos, e, portanto, a capacidade de influenciar as decisões das instituições reflexivas, seria
para o autor uma forma equivalente de exercício de democracia direta (ROSANVALLON,
2011, p. 137 e ss).
As eleições e a revisão constitucional seriam por excelência canais para cidadãos
realizarem o controle social sobre o poder do parlamento. Sendo importante frisar que estes
são canais complementares e não concorrentes.
Explica o autor que o aumento da complexidade social deu origem a um mundo de
singularidades que já não comporta apenas a expressão unidimensional do povo eleitoral
como forma de legitimação do poder político. A fragmentação da percepção do bem comum
e a intensa dinâmica social trouxeram a exigência de espaços diferenciados e concretos para
construção do seu conteúdo, tornando fundamental para a convivência democrática a criação
de arenas específicas para atuação do povo como princípio (ROSANVALLON, 2011, p. 141).
O exercício de soberania, sob tais lentes, é muito mais amplo que participar do
momento eleitoral, significa ter a oportunidade de discutir efetiva e ativamente as diversas
33 Expressão emprestada da formulação de Dominique Rousseau (ROSANVALLON, 2011, p.139).
98
perspectivas para aplicação das normas de convivência comum e para a interpretação do bem
comum. Os procedimentos nos quais são discutidas as normas constitucionais, aparecem
assim como novos espaços deliberativos significativos.
Essa abordagem fornece novo sentido para a relação entre supervisão
constitucional e princípio majoritário, colocando em nova perspectiva o debate entre
constitucionalismo e democracia.
A democracia então precisa ser abordada pelo menos sob duas perspectivas
distintas: democracia como regime e democracia construída como forma de sociedade. É
necessário o reconhecimento simultâneo do conflito institucionalizado e das instituições de
consenso, o que significa dizer que o processo democrático necessita atender tanto a
exigências de escolhas periódicas entre programas e indivíduos significativamente diferentes,
como é necessário o estabelecimento de instituições que permaneçam acima destas diferenças
para promover o interesse geral (ROSANVALLON, 2011, p. 163).
Enquanto regime jurídico, a democracia depende do permanente embate de ideias
e opiniões para se manter como caixa de ressonância dos anseios sociais. De outra
perspectiva, a democracia como forma de sociedade depende de instituições capazes de
construir consensos, de direcionar esforços e reduzir desigualdades, garantindo oportunidades
e igual acesso a possibilidades.
A legitimidade das instituições de reflexividade e da imparcialidade dependem
então, tanto do reconhecimento de seu caráter representativo, como do seu reconhecimento
pelos cidadãos, qualidade que precisa ser testada a todo tempo.
Esse fenômeno refle as mudanças da dinâmica social e aparece como resultado de
aspirações democráticas de maior justificação para as decisões políticas, maior abertura e,
acima de tudo, maior imparcialidade (ROSANVALLON, 2011, p. 171 e ss).
2.5 Procedimento como meio de legitimação das ações estatais
Atualmente o procedimento importa. A forma como o funcionamento de órgãos e
instituições públicas é percebido pela sociedade faz diferença. Apenas a entrega de serviços e
produtos pelo Estado não são mais suficientes para suprir as demandas sociais e garantir a
legitimidade das instituições governamentais. Em uma sociedade que se diferencia a cada dia
e na qual o indivíduo tem importância fundamental, demonstrar que os argumentos de todos
99
são considerados e que cada um tem seu espaço de manifestação garantido também é fator
crítico para aferição de legitimidade.
A ideia de uma “democracia da proximidade” foi oficialmente consagrada em
2002, na legislação francesa, conforme registra Pierre Rosanvallon (2011, p. 171).
Proximidade é a palavra que expressa a demanda contemporânea para o exercício da
cidadania. Todos desejam ser ouvidos, todos desejam saber que importam, todos desejam ter
meios para registrar suas demandas e receber respostas.
A proximidade se relaciona com a ideia de atenção ao particular e de efetiva
consideração das circunstâncias de cada um, sendo esta uma variável determinante para na
constituição da percepção da legitimidade das instituições.
Eficiência e transparência são variáveis que colaboram decisivamente para a
percepção de proximidade em relação às instituições. Em sociedades multiculturais, a
preocupação com a proximidade e a imparcialidade será cada vez maior pois a construção da
vontade geral depende do sentimento de inclusão e da construção de boas relações entre
cidadãos e instituições. A coexistência social contemporânea ampara-se na coordenação da
ideia de direitos iguais com a diversidade. A legitimidade das instituições democráticas
depende desse reconhecimento.
O “fluxo de legitimidade” tornou-se estruturalmente mais frágil e fragmentado em
virtude da aceleração, modificação e multiplicação do tempo político e da dificuldade de se
identificar maiorias em meio a diversidade. A incorporação ao sistema político de instituições
atentas as particularidades e próximas dos indivíduos tornou-se então necessidade imperativa
para fortalecimento das fundações democráticas e para garantir governabilidade.
Enquanto as formas de generalidade negativa e reflexiva resultam das demandas
por imparcialidade e reflexividade, a forma de generalidade da proximidade decorre das
demandas por acessibilidade, transparência e receptividade ao outro. O conceito de mandato
já não é suficiente para suprir a defasagem entre governo e sociedade e estabelecer o grau de
proximidade necessário. Cidadãos já não se contentam apenas com o sistema representativo
eleitoral como forma de participação, há uma exigência por maior intervenção em todos os
momentos e em todas as dimensões do exercício democrático. Ha exigências de
implementação de meios para um intercâmbio aberto e efetivo, para reconhecimento da
batalha que se trava diariamente pela justificação de ações políticas e governamentais. Ha
ainda a exigência de garantia de meios para troca efetiva de informações entre governo e
100
sociedade, que serve para o governo como instrumento de ação para construção de sua
legitimidade e para os cidadãos como mecanismo de reconhecimento. A justificação e a troca
de informações são processos interativos que se constituem como elementos essenciais da
legitimidade das instituições governamentais, não apenas do parlamento, mas da máquina
burocrática como um todo.
CAPÍTULO 3
ALINHANDO CRITÉRIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DA ATIVIDADE REGULATÓRIA DA JUSTIÇA ELEITORAL
Nas últimas décadas do século XX, o Estado para enfrentar as múltiplas demandas
sociais incorporadas ao longo do período, viu-se diante de enorme sobrecarga e falência do
modelo previsto pelo Estado de bem-estar social ao buscar funcionar como grande fornecedor
central de serviços públicos (BARROSO, 2003, p. 15 e ss). A velocidade, diversificação e
especialização das demandas sociais fizeram com que a elaboração de políticas públicas
centralizadas e a prestação do serviço público ganhassem novos contornos.
Desburocratização, desregulamentação, privatização, foram movimentos que
ganharam forte impulso nos anos 1980 e 1990 modificando a relação entre o Estado, a esfera
pública e o mercado. Diversas atividades e bens monopolizados pelo Estado passaram a ser
explorados pela iniciativa privada e atividades privadas foram classificadas como de interesse
público, ficando o Estado responsável por delimitar a moldura jurídica para seu exercício
(BARROSO, 2003, p. 16 e ss).
O reconhecimento, incorporação e consolidação progressiva de direitos
individuais e coletivos no catálogo de direitos fundamentais positivados nas constituições
contemporâneas, após o segundo pós-guerra, que acompanharam a transformação do Estado
Liberal para um Estado do Bem Estar Social e finalmente para o que hoje se denomina na
literatura de Estado Democrático de Direito, tem exigido de forma permanente a revisão de
valores, dogmas e conceitos tradicionais incorporados e consolidados pelo sistema jurídico
ao longo dos séculos XVIII e XIX, com enorme impacto ainda nos dias de hoje.
A atuação regulatória estatal amplamente centralizada fortaleceu-se e depois
entrou em crise, ao longo século XX, e esse fenômeno deslocou o centro de poder político
institucionalizado e concentrado para a periferia, ou seja, de um poder administrativo
altamente burocrático e centralizado para polos de poder administrativo e político
descentralizados, tecnicamente especializados e diversificados. Essa transformação da
atividade regulatória do Estado e a consolidação progressiva da nova correlação de forças
políticas e sociais impactou diretamente o sistema jurídico, transformando a estrutura da
divisão de poderes tradicionais herdada da democracia liberal.
102
Nesse sentido, novas teorias foram elaboradas para buscar explicar a
transformação da atividade regulatória do Estado. Diversas esforços acadêmicos
multidisciplinares permanecem sendo feitos para tentar entender e explicar tal fenômeno.
Nos dois primeiros capítulos a regulação foi abordada sob o ponto de vista de
duas teorias da democracia a fim de que fossem identificados critérios para aferir sua
legitimidade no Estado Democrático de Direito. Agora serão apresentados esforços para
compreender este mesmo fenômeno da regulação sob a perspectiva da teoria jurídica.
3.1 Sentido contemporâneo para o termo regulação
Compreender o sentido e significado do termo regulação demanda em primeiro
lugar reconhecer o intercâmbio de ideias existente nas diversas abordagens sobre sistemas e
em especial sobre os sistemas econômico, político e jurídico na medida em que as construções
teóricas e científicas sobre estes temas influenciam-se reciprocamente.34
Embora a economia seja um sistema independente ao lado de outros, o
funcionamento do sistema capitalista de produção, com sua lógica própria, tem sido fator
determinante para a forma como as relações sociais e políticas se estabelecem, influenciando
diretamente a normatização estatal, o sistema de direitos e, por conseguinte a forma como se
compreende o termo regulação.
A racionalidade das relações econômicas decorrente da estrutura de mercado
capitalista tem tido influência decisiva no Estado moderno, como salienta Max Weber ao
longo de sua obra Economia y Sociedad (WEBER, 2009). As relações sociais e políticas que
sustentam o modo de produção capitalista são balizadas por normas jurídicas que definem
34 Conforme explica Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “A ideia de regulação, também conotada a equilíbrio, aparece na Biologia para designar a função que mantém o balanço vital dos seres vivos, um conceito que mais tarde se expandiria e se aperfeiçoaria com a descrição da função autopoiética, tendo alcançado as ciências sociais, a partir de sua adoção na Teoria Geral dos Sistemas, criada em 1951, por Ludwig von Bertalanfy, passando a ser descrita genericamente como a função que preserva o equilíbrio de um modelo em que interagem fenômenos complexos. No Direito o conceito teórico de regulação sistêmica, inovando uma nova percepção do equilíbrio na convivência, surgiu muito depois das experiências históricas haverem desenvolvido certas funções reguladoras setoriais. Realmente, desde a Idade Média já se havia percebido a conveniência de articular-se uma harmonização setorial de interesses complexos para alcançar um micro equilíbrio independente do todo social; foi o que ocorreu, ainda no âmbito exclusivo da autorregulação, com a experiência das corporações de oficio, e, na Idade Moderna, com a disciplina desenvolvida na Alemanha para o uso das águas e com as anglo-saxônicas, aplicadas inicialmente aos setores de transporte aquaviários, nos Estados Unidos, e ferroviários, na Inglaterra. O pioneirismo desses dois países anglo-saxões no campo da regulação setorial independente de interesses, não só se revela na multiplicação dos entes encarregados dessas novas funções como na elaboração doutrinaria que se foi neles amealhando” (MOREIRA NETO, 2003, p. 67).
103
suas regras, permitindo e amparando seu desenvolvimento. Esse intercâmbio permanente
demonstra que o tecido social possui fontes de integração diversas sendo a moeda, o sistema
de direitos, a solidariedade e o Estado expressões por excelência de tais fontes de integração.
Realizadas estas considerações, é preciso registrar que um dos referenciais mais
importantes que deu origem a estudos sobre regulação foi o Teorema de Pareto, o “ótimo de
Pareto”, de Vilfredo Pareto, elaborado, entre o final do século XIX e início do século XX,
para abordar a eficiência econômica e a ideia de equilíbrio geral.
Diversas outras produções acadêmicas também se utilizaram desse mesmo marco
teórico para o desenvolvimento de conceitos da microeconomia, para análises sobre a
ineficiência do sistema econômico e a necessidade de intervenção, e muitas resultaram em
teorias sobre falhas de mercado e equilíbrio sistêmico, como por exemplo, a teoria da
regulação proposta por George Stigler, em sua produção The theory of economic regulation,
publicada em 1971, o Diagrama de Edgeworth e a Teoria da Agência,35 tendo este marco
teórico impactado até mesmo debates sobre equidade.36
Todas essas pesquisas tiveram seu escopo ampliado e também serviram de
referencial para inferências sobre eficiência social e para a elaboração de teorias
sociojurídicas sistêmicas, como por exemplo as propostas por Massimo Severo Giannini e sua
Teoria dos Ordenamentos Setoriais, por Niklas Luhmann e sua Teoria dos Sistemas Sociais e
por Gunther Teubner na sua obra O Direito como sistema autopoiético, em 1989.
Considerando-se que o termo regulação pode ser conceituado por perspectivas
diversas – como por exemplo, a sociológica, a econômica, a jurídica – faz-se necessário
apresentar alguns conceitos com a finalidade de delimitar o sentido que se pretende adotar
nessa pesquisa.37
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2003, p. 91) a regulação é um novo tipo
de atividade jurídica do Estado que busca superar as linhas tradicionais da administração
burocrática de feição positivista, através da incorporação de aspectos democráticos à
administração pública, com ênfase na eficiência, na legitimidade e na efetividade, aspectos de
natureza secundária no contexto anterior. Para o autor, a regulação “como instituto vitorioso
35 Nesse sentido ver: PINDICK e RUBINFELD, 2002, principalmente a Parte 4 – Informação, Falhas de Mercado e o Papel do Governo.36 Em Pindick e Rubinfeld são referenciadas quatro visões de equidade: a igualitária, a Rawlsiana, a utilitária e aorientada pelo mercado, no ponto que discute equidade e competição perfeita (PINDICK e RUBINFELD, 2002, p. 581).37 Para outras referências sobre o conceito de regulação contemporânea ver: PIETRO, 2012, p. 525; SUNFELD, 2000, p. 29-47; MOREIRA, 1997.
104
disseminado pela nova revolução liberal” marca ponto de inflexão quanto à irresponsabilidade
política e incorpora novos referenciais democráticos na gestão de interesses públicos.
Paulo Todescan Lessa Mattos (2006, p.35-38) considera que o ato de regular
equivale ao exercício de função normativa. Quando a regulação decorre de atividade do poder
executivo, esta é chamada de regulação administrativa. Esta deriva de normas secundárias e
normas terciárias, possui fundamento em norma primária, faz a previsão de direitos e
deveres, altera e especifica condicionamentos e restrições já previstos em normas primárias
editadas pelo parlamento. As normas produzidas pela regulação resultam da delegação
legislativa e por esta razão podem adaptar e especificar o conteúdo de normas primárias,
gerais e abstratas em face de novas situações. A delegação legislativa estaria justificada em
face de exigências para aumento da eficiência, para correção de problemas de legitimidade, e
em virtude da ausência de expertise do parlamento. O Poder Legislativo não possui
conhecimentos dos detalhes (expertise) do setor regulado nem capacidade operacional
(eficiência) para lidar com todas as exigências da regulação. Registra o autor que “um sistema
jurídico moderno não tem como ser concebido apenas como um sistema estático fundado em
normas primárias estabelecidas por um Poder Legislativo soberano, gerando a exigência de
delegação de poder normativo (problemas de legitimidade) ” (MATTOS, 2006, p. 35-38).
No mesmo sentido, Marçal Justen Filho (2002) aponta que a regulação
econômico-social abrange a atividade estatal sistemática de intervenção indireta sobre o
comportamento dos sujeitos públicos e privados, para implementar políticas públicas e
realizar direitos fundamentais. Odete Medauar (2002, p. 123-128) registra que a regulação
atual abarca a edição de normas; a fiscalização do seu cumprimento; a atribuição de
habilitações como por exemplo autorização, permissão e concessão; a cominação de sanções;
a mediação de conflitos através de técnicas como consultas públicas, audiências públicas,
celebração de compromisso de cessação e de ajustamento; podendo abranger até mesmo
fixação de políticas públicas para o setor regulado.
Para Alexandre Santos de Aragão (2013, p. 40), em seu livro Agências
Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico, a regulação contemporânea
pode ser definida como:
“A regulação estatal da economia como o conjunto de medidas legislativas, administrativas, convencionais, materiais ou econômicas, abstratas ou concretas, pelas quais o Estado, de maneira restritiva da autonomia empresarial ou meramente indutiva, determina, controla ou influencia o comportamento dos agentes econômicos, evitando que lesem os interesses sociais definidos no marco da Constituição e os orientando em direções socialmente desejáveis. ”
105
Como explica Aragão, a noção de regulação implica no exercício integrado de três
poderes: poder normativo, ao qual corresponde a imposição de quadro normativo geral e
abstrato às atividades econômicas; o poder de assegurar sua aplicação, como aplicação
concreta de regras, através de decisões individuais, caso a caso; e, o poder de reprimir
infrações, compondo disputas e conflitos, através da apreciação concreta, caso a caso.
Nesse contexto, a “regulação para a competência” (ORTIZ, 1999), de inspiração
na Comunidade Europeia, também aparece como enfoque diferenciado da regulação
econômica tradicional, ao buscar compor características da tradição europeia de serviços
públicos com aspectos mais flexíveis de uma regulação estatal voltada para a determinação de
quadros normativos para a regulação das atividades econômicas.38
Observe-se que, ao lado dos mecanismos tradicionais de regulação, em especial o
poder de polícia de fundamento liberal, a regulação econômica contemporânea incorpora a
sua atuação objetivos finalistas que exigem atuações estatais positivas, em perfeita sincronia
com os propósitos do Estado Democrático de Direito, o que justificaria a ampliação de
poderes atribuídos às autoridades independentes. Nesse sentido, inclusive a compreensão do
tradicional poder de polícia precisa ser revista. Nas palavras de Alexandre Aragão (2013, p.
38):
“Propugnamos, ao revés, um conceito de poder de política adequado ao Estado Democrático de Direito e à complexidade socioeconômica em que vivemos; que seja funcionalizado em razão dos interesses públicos a serem atendidos pelas atividades privadas, em relação às quais o Poder Público pode, observados os limites legais, dimensionar de maneira dinâmica o conteúdo e a extensão. Não se trata mais apenas de evitar que um particular fira os direitos dos demais, mas também de direcionar a sua atividade na senda dos interesses públicos juridicamente definidos. ”
Dessa forma, as novas formas de regulação estatal da economia, em sentido
amplo, poderiam ser assim enumeradas, conforme ensina Alexandre Aragão (2013, p. 35):
regulação estatal, realizadas através de normas expedidas por órgãos e entidades do próprio
Estado, ainda que com a participação de organismos intermédios da sociedade; regulação
pública não estatal, realizada por entes da própria sociedade, mas por delegação ou por
incorporação das suas normas ao ordenamento jurídico estatal; autorregulação realizada por
38 No mesmo sentido, afirma Massimo Giannini: “ a regulação dos anos menos recentes é embebida de controles e de relações de controle; já a dos anos mais recentes registra a tendência a substituir relações de controle por relações de direção, aparentemente mais elaboradas e ponderadas; a relação de direção compreende ainda o controle, mas que, de maneira muito mais flexível, sobretudo permite a adoção de medidas corretivas, em sentido próprio, das disfunções verificadas, que, ao invés de serem reprimidas com medidas sancionatórias, são eliminadas mediante a adoção de medidas corretivas, frequentemente informais.” (GIANNINI, 1995, p 299).
106
instituições privadas sem delegação ou interferência estatal; e, desregulação, assim
consideradas aquelas atividades livremente desenvolvidas sujeitas apenas às regras de
mercado.
A atividade regulatória antes amparada em normas gerais e abstratas expedidas
pelo parlamento, para se adequar à velocidade e pluralidade do Estado contemporâneo, são
agora produzidas por diversos polos atomizados de poder, tornando-se parte significativa da
atividade regulatória exercida por medidas concretas de autoridades administrativas
independentes. Nessa mesma linha de pensamento, Paulo Todescan Mattos (2006, p. 38-39)
acerca do tema, registra que o fenômeno da delegação legislativa se estruturou ao longo do
século XX como resposta mais eficiente que a legislativa à necessidade de especialização
técnica da burocracia estatal para regulação do sistema econômico.
Com a funcionalização da atividade regulatória, a ação do órgão regulador atual,
além de atender aos aspectos formais da lei, precisa alinhar-se a valores e princípios da ordem
jurídica, para alcançar legitimidade também material. Como bem resume J.J. Canotilho
(2009, p. 1085), a legitimidade do Estado passa a amparar-se na realização de finalidades
coletivas e não mais na expressão legislativa da soberania popular.
Na linha dos conceitos apresentados, a regulação contemporânea caracteriza-se
então pela atribuição de função regulatória autônoma a um órgão regulador, decorrente de
delegação legislativa, a qual corresponde um conjunto de poderes para induzir, restringir,
determinar, controlar ou influenciar o comportamento dos agentes do setor regulado, com as
especiais intenções de realizar finalidades coletivas, proteger e implementar direitos
fundamentais. A regulação autônoma orienta-se por padrões de eficiência, efetividade e
legitimidade do sistema jurídico, enquanto referenciais democráticos para a gestão de
interesses públicos.
3.2 Fundamentação teórica para a atividade regulatória contemporânea
Ao longo do século XX a administração pública foi incorporando a tutela dos
mais variados interesses sociais, o que teve por consequência a ampliação e especialização do
aparato estatal, com a consequente autonomização da burocracia (GIANNINI, 1970, p. 33 e
ss) e a reorganização dos poderes públicos.
107
Como visto, a estrutura de poder político centralizada da modernidade foi
transformada pela consolidação de subsistemas político-jurídicos, e pelo consequente
aparecimentos de novos órgãos e entes legitimados a produzir normas jurídicas, que se
multiplicaram alterando a correlação de forças até então concentradas no Estado central. O
resultado desse movimento foi a criação de novos centros de poder especializados, dotados de
autonomia em graus diferenciados, funcionando lado a lado com as instituições tradicionais
do estado liberal, dando origem ao fenômeno do pluralismo social e estatal.
O novo desenho político-jurídico de organização social desloca e atribui
competências normativas para novas unidades intermediárias mediadoras das relações entre
Estado e cidadãos, com lógica diversa do universalismo e racionalismo liberal do século
XVIII. Agências reguladoras, organizações sociais, parcerias público-privadas, entidades
coletivas, etc., constituem novos centros de decisão política e organização social.
A concepção de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos que se relacionam de
maneiras diversas - seja um subsistema ou subsistemas contidos em outro, seja por uma
relação de coordenação ou intersecção de sistemas, seja pela convivência de diversos sistemas
jurídicos paralelos – perpassa a história do Direito, do Império Romano com a ideia de “law
of the land” para estrangeiros, atravessando a época pré-medieval e medieval, passando pela
concentração de fontes jurídicas no século XVIII, pós Revolução Francesa, para novamente
emergir como paradigma renovado a partir da segunda metade do século XX.
A defesa da ideia de pluralismo jurídico realizada pelo jurista Santi Romano
(2008), em sua Teoria dos Ordenamentos Jurídicos, publicada na Itália em 1946, partindo da
perspectiva das instituições, oferece contribuição relevante para a compreensão do fenômeno
contemporâneo da descentralização administrativa para órgãos independentes e autônomos.
Considera o autor que a existência de instituições decorre da diferenciação de corpos sociais
dentro do sistema jurídico, compondo, portanto, cada instituição um ordenamento jurídico
diferenciado, perspectiva discutida por diversos autores. Em posição oposta, estão outros
autores que defendem que, em última instância, o Estado deterá sempre domínio da fonte
originária do Direito, sendo as demais fontes derivadas.
A Teoria dos Ordenamentos Sociais, desenvolvida inicialmente pelo publicista
italiano Massimo Severo Giannini (1970), inspirada na obra de Santi Romano, aparece como
apreensão sistematizada dessa nova realidade, marcando o debate a respeito da concepção dos
ordenamentos setoriais como categoria autônoma da Teoria Geral do Direito e do Direito
108
regulatório do Estado. Essa teoria ao lado de construções doutrinária a respeito de nova
abordagem para o princípio da legalidade e para a tradicional divisão de poderes caracterizam
pontos de inflexão para a consolidação de uma nova compreensão das relações envolvendo o
direito administrativo.
A noção proposta pela ideia de ordenamentos setoriais e os institutos a ele
correlacionados apresentam um interessante caminho para se pensar como ocorre a interface
entre o direito, a economia e a política, partindo das transformações das relações sociais e seu
impacto direto no Direito Público. Nessa direção, aparecem como questões relevantes: a
pluralização das fontes normativas, que deixam de ter sua sede exclusiva no parlamento; o
funcionamento, ao lado dos poderes tradicionais do Estado, de órgãos e instituições dotados
de independência e autonomia como parte essencial de subsistemas jurídicos; e a adoção de
mecanismos gerenciais, finalísticos e autônomos como forma de flexibilização do modelo
tradicional, verticalizado e hierárquico de Administração Pública (ARAGÃO, 2013, p. 7).
Os ordenamentos setoriais configuram uma espécie do gênero ordenamentos
jurídicos derivados do ordenamento jurídico central, o Estado, estabelecendo com esse um
necessário diálogo. Normalmente os ordenamentos jurídicos setoriais são criados pelo Estado
como resposta a demandas impostas por relações sociais muito específicas e técnicas no
âmbito da economia ou da política, e por consequência, para resguardar aspectos sensíveis ao
interesse coletivo que não devem ficar à disposição do arbítrio privado (ARAGÃO, 2013, p.
98).
Compreende Alexandre Aragão (2013) que os ordenamentos setoriais teriam por
função a regulação das atividades empresariais ou profissionais, por imposição da economia e
da técnica. Será assumido nesse trabalho que, ao lado da atividade regulatória do Estado por
exigências do sistema econômico, esta também se impõe por força do sistema político e
jurídico, e por consequência, das relações sociais que precisam de garantias para o exercício
de direitos fundamentais. O entrelaçamento entre interesses específicos de um grupo social
com um interesse estatal sensível faz com que tais interesses sejam elevados à categoria de
interesse público passando a compor a esfera de interesses tutelados pelo Estado.
A multiplicação de interesses públicos técnicos e específicos, nesse sentido, faz
com que sejam criados pelo Estado ordenamentos setoriais especializados, politicamente
independentes de sua administração central, ou seja, sem relação de hierarquia ou de controle
direto, mas ainda assim submetidos às normas do sistema jurídico central.
109
Tais ordenamentos setoriais podem ser conferidos entidades públicas ou privadas
que passarão a regular as atividades relacionadas a determinado interesse público específico,
ficando vinculados todos os envolvidos ao novo subsistema jurídico estabelecido (ARAGÃO,
2013, p. 23). Como exemplo de ordenamentos setoriais atribuídos pelo Estado a instituições
independentes e autônomas em relação ao poder central estatal, mas ainda assim vinculados
ao sistema jurídico central, podemos citar, no Brasil, as agências reguladoras e, em especial
para esta pesquisa, a Justiça Eleitoral (questão que a ser discutida na segunda parte). Em
outros países podemos citar as autoridades independentes francesas, italianas, espanholas e as
commissions nos Estados Unidos (ARAGÃO, 2013, p. 18).
Indivíduos ou pessoas jurídicas estarão vinculadas a ordenamentos setoriais
sempre que desejarem exercer atividades que demandam autorizações, licenças, permissões,
registro, concessões, ato ou contrato administrativo anterior, habilitação especifica, enfim,
sempre que tais atividades estiverem submetidas às normas e condições específicas
determinadas por instituição regulatória autônoma.
O microssistema jurídico de um ordenamento setorial é integrado por todos
aqueles que participam da atividade ou que sejam atingidos pelo interesse tutelado, as partes
interessadas. Assim, órgãos, instituições, particulares, empresas, estarão todos submetidos à
atividade regulatória deste microssistema e sobre ele exercerão influência. Nos ordenamentos
setoriais, então, poderão sempre ser identificados um elemento organizacional, uma produção
normativa própria e uma pluralidade de sujeitos que participam do funcionamento da
instituição (ARAGÃO, 2013, p. 19).
Normatização própria, na acepção proposta por Giannini, pressupõe a criação de
normas pelo próprio grupo e a respectiva submissão a estas por todos os sujeitos envolvidos
na atividade regulada. E tais normas devem ser parte de um subsistema, que como tal precisa
necessariamente se organizar segundo princípios capazes de garantir sua integridade, e de
coordenar-se com o sistema jurídico central.
Nesse ponto vale consignar um primeiro pré-requisito essencial para futura
avaliação da legitimidade do órgão regulador: a norma do ordenamento setorial precisa ser
elaborada com a possibilidade de participação influente de todos os envolvidos, este será o
meio para garantir o filtro de legitimidade para a produção normativa do sistema. Garantir
canais efetivos para validação das normas regulatórias é a primeira pré-condição de
legitimidade do ordenamento setorial.
110
Como aponta Alexandre Aragão (2013, p. 20), os órgãos ou entidades de
ordenamentos setoriais criados por lei, praticam grande variedade de poderes: poderes
normativos, propriamente ditos ou de natureza concreta; poderes para solução de conflitos de
interesses; poderes investigativos; poderes fomentadores; poderes de fiscalização preventiva
ou repressiva; e poderes inclusive para afastar ou impedir a participação de sujeitos do
ordenamento setorial. Vale registrar que o conjunto de poderes atribuídos às autoridades
administrativas independentes constituem poderes para verdadeiramente criar e implementar,
em maior ou menor grau, políticas públicas especificas para os setores sociais regulados.
A “teoria da gradação da positividade jurídica”, é uma outra alternativa proposta
contemporaneamente por Miguel Reale (2000, p. 303 e ss.) na tentativa de encontrar um meio
termo para compatibilizar e coordenar a possibilidade de um pluralismo de instituições
autônomas com a soberania estatal, diferenciando-se as instituições por graus distintos de
estabilidade e coercitividade, apresentando grau máximo de positividade apenas aquelas
criadas ou reconhecidas pelo próprio Estado.
O que se tem verificado na prática é que o compartilhamento de um espaço de
convivência comum por cidadãos de uma sociedade complexa, cada vez mais dinâmica e
diferenciada, tem dado ensejo à multiplicação de espaços normativos desocupados e muito
especializados não alcançados pelo poder político centralizado. Estes espaços diferenciados
socialmente, se relevantes, serão preenchidos cada vez mais por instituições – privadas,
públicas ou semi-públicas – autônomas e com produção normativa própria.
A avaliação da atividade regulatória do Estado contemporâneo precisa então ser
compreendida exatamente através do paradigma renovado do pluralismo político e dos
ordenamentos setoriais, ou seja, partindo de uma perspectiva que permita a compatibilização
entre órgãos reguladores com autonomia jurídico-normativas diferenciada e o Estado
Democrático de Direito; que favoreça diálogo permanente e equacionamento das tensões entre
os diversos subsistemas jurídicos e o sistema central, para permanente elaboração de
resultados politicamente legítimos.
O Estado sempre teve entre suas funções essenciais a regulação. Se antes a
regulação aparecia de forma centralizada, com o Poder Legislativo fornecendo as diretrizes
através de políticas públicas escolhidas que deveriam ser implementadas pelo Poder
Executivo, agora com a emergência e consolidação de uma sociedade plural e complexa, a
111
atribuição regulatória do Estado adotou novas feições, alterando-se as tradicionais formas de
intervenção do Estado.
A prestação de serviços públicos, mecanismo mais intenso de regulação social,
que antes alinhava-se com a ideia de monopólio de determinadas atividades pelo Estado, sofre
de forma permanente alterações conforme o contexto socioeconômico e jurídico e por
consequência o seu conceito não é exatamente unânime e estável.
O foco da tradicional e forte intervenção estatal alterou-se: de interventor direto
como prestador de serviços públicos o Estado assumiu papel regulador das atividades sociais,
passando a coordenar múltiplos e atomizados centros de interesse, através de órgão e entes
técnicos especializados e independentes.
Nesse contexto, a concepção de serviço público é ampliada e flexibilizada para
contemplar a nova realidade. Nesse sentido, explica Alexandre Aragão (2013, p. 147):
“O conceito de serviço público, tradicionalmente o mais forte mecanismo de regulação social, tem passado por grandes desafios: se mantido o seu conceito tradicional de atividade exclusiva da esfera pública, cujo mero exercício poderia ser delegado a particulares, terá as sua esfera bastante reduzida; se ampliado o seu conceito para todas as atividade, ainda que não exclusivas do Estado, em que este exerça uma regulação ordenadora, o serviço público alcançara uma amplitude tal que dispersará o seu conceito, abrangendo realidades díspares.”
Torna-se necessário, então, compreender o conteúdo nuclear do serviço público
(publicatio) que o diferencia da atividade econômica latu sensu, circulação de bens e/ou
serviços do produtor ao consumidor: serviço público é a atividade econômica latu sensu
assumida pelo Estado para atendimento direto de necessidades ou utilidade públicas,
norteadas pelos princípios de universalidade e igualdade, com objetivos de justiça e
solidariedade social (ARAGÃO, 2013, p. 147).
Ao contrário do serviço público (publicatio), as atividades econômicas strictu
sensu são aquelas que apresentam interesse fiscal ou estratégico para o Estado e que, em
algumas hipóteses constitucionais podem ser monopolizadas. Nesta perspectiva o Estado atua
de forma empresarial e econômica, concorrendo com os demais agentes da iniciativa privada.
A grande dificuldade que se apresenta é verificar se todos os serviços públicos são
atividades monopolizadas pelo Estado ou se estariam abrangidas também como serviços
públicos as atividades privadas que, em razão de obedecerem aos princípios da universalidade
e igualdade, com impacto direto em toda a coletividade, são de interesse público e, portanto,
sujeitas à coordenação e rígida regulação estatal. Estas são atividades privadas de interesse
público autorizadas, sujeitas à ordenatio. Como explica Alexandre Aragão (2013, p. 150): “as
112
atividades econômicas que estamos abordando atendem diretamente à coletividade, estando
sujeitas a uma autorização prévia operativa, que, além de possibilitar ao particular o exercício
da atividade, investe o Poder Público de uma série de poderes de direção sobre a atividade
sem que a titularize. ”
O princípio da proporcionalidade e o princípio da subsidiariedade são os
parâmetros que devem orientar a intervenção do Estado nas relações sociais. Sempre que a
intervenção estatal puder se dar de forma menos gravosa para a iniciativa privada, esta deve
ser a opção eleita. As atividades privadas de interesse público autorizadas aparecem
exatamente como reflexo do princípio da proporcionalidade e da subsidiariedade: se para
alcance dos objetivos e finalidade coletivos, com maior eficiência, a iniciativa privada pode
realizar atividades de interesse coletivo e prestar serviços essenciais, esta deve ser a forma
escolhida, cabendo ao Estado a conformação dessas atividades e serviços às finalidades
públicas.
Assim, a execução de serviços públicos de titularidade estatal pode ser atribuídos
à iniciativa privada através dos institutos da concessão e da permissão, e as atividades
privadas de interesse público são ordenadas pelo Estado mediante o instituto da autorização.
Após estas considerações torna-se compreensível a sustentação realizada por
Alexandre Aragão (2013, p. 153) de que os serviços públicos podem ser conceituados de
forma ampla no sistema jurídico brasileiro, considerando-se como tais “todas as atividades de
interesse da coletividade sujeitas aos princípios da continuidade, universalidade, sejam elas
titularizadas pelo Estado ou pela iniciativa privada. ” Explica ainda o autor que na hipótese
de transferência da execução de serviços públicos mediante concessão ou permissão, é
estabelecida uma relação endógena entre a regulação estatal e o particular permissionário ou
concessionário, na medida em que o Estado normatiza a prestação do serviço.
Na hipótese de atividade de interesse público autorizada, a relação que se
estabelece entre o particular autorizado e o Estado é exógena, visto que não será o serviço
público normatizado, mas sim direcionado para que a execução da atividade atinja sua
finalidade pública.
O que irá diferenciar o serviço público prestado pelo Estado do serviço público
prestado pela iniciativa privada será o regime jurídico à qual cada um estará submetido,
publicatio ou ordenatio, visto que ambos buscam suprir necessidades da coletividade.
As atividades privadas de interesse público autorizadas, também conhecidas como
serviços públicos impróprios ou virtuais, são assim caracterizadas pelo impacto que
apresentam junto à coletividade ou por causar assimetrias de informação para os sujeitos
113
envolvidos. Estas atividades normalmente estão submetidas a processo regulatório específico,
correspondente a um ordenamento setorial e a uma autoridade regulatória independente.39
A atividade regulatória estatal, no Estado Democrático de Direito, busca ajustar
de forma permanente a tensão existente entre o exercício da autonomia individual e o alcance
de finalidades públicas, em cenário social diferenciado e em permanente transformação.
Busca uma forma de compatibilizar o pluralismo e o princípio majoritário, sendo este o
contexto para a multiplicação de órgãos ou entidades especializadas com amplos poderes
regulatórios, guiados por princípios e finalidades legais, mas com certa distância do aparato
político eleitoral.
As novas perspectivas que se apresentam para o Direito Público ainda não
encontram consenso na doutrina, havendo ainda amplo debate quanto à natureza e
legitimidade dos novos institutos e seus respectivos órgãos e instituições. Conforme alerta e
Paulo Todescan Mattos (2006, p.40):
“As consequências desse fenômeno (delegação legislativa) são significativas para o funcionamento do sistema jurídico, especialmente no que se refere a problemas de legitimidade decisória e racionalidade da decisão. ”
“O fenômeno da delegação legislativa para órgãos do Poder Executivo tem consequências ainda mais profundas. Coloca em evidência a relação entre norma enquanto instrumento de controle – inclusive controle sobre a ação regulatória do Estado (normas procedimentais, por exemplo) – e discricionariedade administrativa enquanto diminuição do controle sobre as decisões políticas tomadas pelos órgãos do Poder Executivo – o que conduz a problemas de legitimidade decisória e de racionalidade do conteúdo da regulação administrativa. Se por um lado a “inflação legislativa” ou “juridificação” decorrente do fenômeno da delegação legislativa coloca em evidencia o Poder Executivo enquanto espaço privilegiado para organização da economia e da vida social, respondendo a demanda por expertise e eficiência na edição de normas, por outro lado aumenta a necessidade de controle democrático da ação do Estado regulador. ”
“Assim, sendo, o que passa a estar em questão é: como se dá a decisão sobre o conteúdo da regulação e quem controla a regulador? Ou, em outras palavras, qual racionalidade legal pode dar conta da legitimação de políticas públicas definidas no contexto da ação regulatória do Estado e como tal racionalidade pode ser institucionalizada? ”
39 Para Alexandre Aragão (2013, p.175), “a grande gama regulatória incidente sobre as atividades privadas de interesse público é evidenciada pelo fato de, após uma primeira geração de agências reguladoras de serviços públicos desestatizados, terem surgido agências reguladoras de atividades econômicas mediante o mecanismo de autorizações operativas, principalmente na área de saúde - a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (Lei 9782/99), a Agencia Nacional de Saúde Complementar – ANS (Lei 9.961/2000) – e de transportes– Agencia Nacional de Transportes Terrestres – ANTT e a Agencia de Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ (Lei 10.233/2001). Dentro da mesma perspectiva poderíamos também colocar as atividades sujeitas à ação regulatória do Banco Central do Brasil – BACEN (Lei nº 4.595/64).”
114
No entanto, considerando-se que instituições autônomas diversas são partes
integrantes relevantes do sistema jurídico brasileiro, a ausência de consenso doutrinário não
pode ser, de forma nenhuma, argumento para impedir a utilização, reconhecimento e
aperfeiçoamento de instrumental analítico da atividade regulatória do Estado. O esforço para
compreensão, compatibilização e coordenação dos subsistemas jurídicos e de seus institutos
com as escolhas políticas consensualizadas na carta magna é pré-requisito para uma
metalinguagem jurídica que se pretende legítima, pois somente dessa forma, pelo
reconhecimento jurídico de tais transformações, é que se pode criar os mecanismos
necessários e correspondentes de controle e responsabilização, vetores para a busca de um
sistema justo.
3.3 Autoridades reguladoras contemporâneas
A diferenciação de funções estatais, ao longo da história do Direito, não pode ser
compreendida adequadamente se não for considerada sob a perspectiva social, econômica,
jurídica e histórica, como formas distintas de distribuição de poder político entre os diversos
sujeitos sociais. Como apresentado no ponto anterior, o dogma da separação de poderes,
conforme proposto por Montesquieu, há muito vem sendo flexibilizado e transformado para
adequar-se às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e dinâmica.
Teorias contemporâneas sobre diálogos institucionais (SILVA, 2010) e a própria
realidade fática demonstram as intensas transformações do sistema jurídico que já não
comportam os limites forjados pelo liberalismo político para superar o absolutismo das
monarquias dos séculos XVII e XVIII. Modelos de ordenação e organização do estado não
são estáticos e não podem ser cristalizados sob pena de se tornarem obsoletos, sendo sua
plasticidade essencial para lidar com as transformações das relações políticas, econômicas,
sociais e jurídicas.
A proliferação de órgãos auxiliares e com perfis técnicos dotados de
independência funcional para o exercício de funções de governo aparecem como aspecto
essencial da concepção contemporânea de distribuição de funções estatais, de separação de
poderes. Se antes a tradicional separação de poderes se dava pela divisão de funções estatais
típicas entre os três poderes centrais típicos com atribuições amplas, genéricas e abstratas de
115
coordenação de toda a estrutura política e burocrática, atualmente a divisão de funções
estatais parece se diferenciar por “centros de interesse público específico”, que como
subsistemas especializados, recebem amplos poderes para regular e garantir interesses
públicos bastante específicos.
Essa radicalização da funcionalização da distribuição de poderes por “centros de
interesse público específico” aparece como forma renovada da tradicional tripartição de
poderes: amplos poderes concedidos a diversas unidades autônomas independentes com
atribuição de regular um conjunto delimitado de interesses públicos. Novos e múltiplos
centros de circulação e processamento de poder político são criados ao lado do poder central
do Estado, capilarizando e multiplicando as fontes do sistema normativo e os centros de
criação e coordenação de políticas públicas, como resposta a uma sociedade cada vez mais
plural e com demandas cada vez mais diferenciadas. Os cidadãos e instituições participam de
tantos subsistemas quantos sejam seus centros de interesses públicos diferenciados, todos
inter-relacionados com uma fonte estatal central, que cada vez mais será desafiada a
diferenciar tais centros de interesse e a coordenar esforços para manter a integridade do tecido
social plural e a legitimidade da circulação do poder político.
A legitimidade para exercício dos poderes públicos se funcionaliza. Se antes o
sistema de freios e contrapesos operava entre poderes e a legitimidade para o exercício de
cada poder do Estado se dava pela forma específica prevista de circulação de poder em cada
esfera com seus respectivos controles e filtros sociais, a legitimidade agora passa também a
ser aferida de forma atomizada através dos meios e procedimentos previstos para cada
instituição, para cada sistema setorial.
O sistema de freios e contrapesos também se torna fragmentado: cada subsistema
precisa ter normas claras de funcionamento e previsão de mecanismos de participação de
todos os envolvidos, tanto para a elaboração dessas normas quanto para aferição e garantia de
partição integral de todas as partes interessadas. Nesse contexto, transparência e
accountability tornam-se conceitos chave para a legitimação de todo o processo e das relações
estabelecidas nesses centros de interesse diferenciados.
Acrescenta Alexandre Aragão (2013, p. 23 e ss) que o afastamento do caráter
mítico e absoluto da clássica separação de poderes, permite compatibilizar a autonomia das
entidades administrativas independentes e dos respectivos ordenamentos setoriais com a
116
divisão de funções estatais previstas pelas constituições contemporâneas e como valores do
Estado de Direito.40
Os poderes atribuídos em graus variados às autoridades reguladoras
contemporâneas, chamadas pela doutrina também de autoridades administrativas
independentes, são bastante amplos, concentrando estas instituições poderes típicos da
clássica tripartição de poderes oitocentista, com graus de liberdade mais amplos do que os
tradicionalmente exercidos pelos poderes típicos centrais do Estado. Essa forma
diferenciada de exercício da função regulatória, que atribui a entes autônomos poderes
administrativos, persecutórios, jurisdicionais e legislativos, suscita questionamentos diversos,
principalmente quanto á constitucionalidade e legitimidade de seu exercício, com relevo
especial para o princípio da separação de poderes.41
3.3.1 Autoridades reguladoras no direito estrangeiro
Os Estados Unidos da América foram os primeiros a adotar o modelo de
autoridades administrativas independentes, com a concepção de agencia reguladora
independente, fato que se coordena perfeitamente com sua tradição liberal e não estatizante,
em oposição aos países, como por exemplo, França, Espanha, Brasil e Argentina que tiveram
no Direito Administrativo francês a sua inspiração, que somente passaram a adotar tal modelo
de forma vigorosa na última quadra do século passado. Esse movimento se deu muito mais
pelas diferentes circunstancias político-econômicas desses países do que a um pretenso atraso
na transformação de seus institutos (ARAGÃO, 2013, p. 229).
40 “Bem ao contrário disto, as competências complexas das quais as agências reguladoras independentes são dotadas fortalecem o Estado de Direito, vez que, ao retirar do emaranhado das lutas políticas a regulação de importantes atividades sociais e econômicas, atenuando a concentração de poderes na Administração Pública central, alcançam, com melhor proveito, o escopo maior – não meramente formal – da separação e poderes, qual seja, o de garantir eficazmente a segurança jurídica, a proteção da coletividade e dos indivíduos empreendedores de tais atividades ou por elas atingidos” (ARAGÃO, 2013, p. 24).41 Não é objeto da presente pesquisa realizar amplo levantamento bibliográfico ou histórico a respeito da criação de autoridades reguladoras ou autoridades administrativas independentes no direito comparado ou no Brasil, sendo de interesse especifico a contextualização desses novos entes na sociedade contemporânea. Para maiores229) informações sobre o tema ver: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico, 2013; NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito Regulatório, 2003; CARDOZO, José Eduardo Martins e outros (org.). Curso de Direito Economico.Volumes I, II e III, 2006; ROSANVALLON, Pierre. Democratic Legitimacy: Impartiality, reflexivity, proximity, 2011 ; MATTOS, Paulo Todescan L. Mattos (org.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Europeu, 2006; MATTOS, Paulo Todescan L. Mattos (org.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Americano, 2006.
117
A primeira agência reguladora independente americana nasceu em 1887 para
regulamentar os serviços interestaduais de transporte, a Interstate Commerce Comission, em
contexto histórico bastante diverso do ocorrido no final do século XX (ROSANVALLON,
2011; NETO, 2003).
Esse modelo de agencia independente se consolidou de tal forma nos Estados
Unidos, a partir da década de 30, que se tornou objeto de estudo do Direito Administrativo
norte-americano e muitas vezes se confunde com o estudo da atividade regulatória.42 A ideia
de que autoridades administrativas independentes exerceriam funções administrativas “quase
judiciais” e “quase legislativas” já se apresentava no debate americano, estimulando
questionamentos quanto à legitimidade do exercício simultâneo pelo mesmo órgão de funções
típicas dos tradicionais três poderes do Estado, questão hoje já pacificada no entendimento de
que tais funções das agências reguladoras caracterizam a função administrativa em sua
concepção mais ampla (ARAGÃO, 2013, p. 235).
Devem ser ressaltados o Administrative Procedure Act – APA de 1946,43 que
garantiu a participação às partes envolvidas nos processos decisórios e normativos das
agências, assim como a Executive Order nº 12.886/93 – Regulatory Planning and Review,44
editada no governo Clinton, para determinar procedimentos obrigatórios para as agencias, que
devem comunicar suas intenções para o Regulatory Working Goup, que supervisiona e orienta
a definição de políticas públicas pelas agências, e ainda a orientação para que a lei traga os
parâmetros mínimos para balizar as funções normativas das agências reguladoras, intelligible
principle doctrine (ARAGÃO, 2013, p. 237-238).
A expressão “autoridades administrativas independentes” para designar as
atividades de entes equivalentes às agências reguladoras no ordenamento brasileiro foi fixada
na França. A título de exemplo, vale registrar a definição e as explicações dadas pela Direcion
42 Vale registrar a explicação de Maria Silvia Di Pietro (2012, p. 395-399) sobre o termo agência que nos Estados Unidos caracteriza órgãos da administração pública federal que não estão sob o comando do Presidente da República, pela forma diferente de organização política : “Foi importado do direito norte-americano, onde tem sentido mais amplo, que abrange “qualquer autoridade do Governo dos Estados Unidos, esteja ou não sujeita ao controle de outra agência, com exclusão do Congresso e dos Tribunais”, conforme consta expressamente da Lei de Procedimento Administrativo (Administrative Procedure Act). Por outras palavras, excluídos os três Poderes do Estado, todas as demais autoridades públicas constituem agências. Nos Estados Unidos, falar em Administração Pública significa falar nas agências, excluída do conceito a própria Presidência da República, ao contrário do que ocorre no Brasil, em que o Chefe do Poder Executivo integra a Administração Pública, estando colocado no seu ápice, orientando e dirigindo seu funcionamento. ”43 In: http://www.justice.gov/sites/default/files/jmd/legacy/2014/05/01/act-pl79-404.pdf. Acesso em 30/10/2014.44 In: http://www.archives.gov/federal-register/executive-orders/pdf/12866.pdf. Acesso em 30/10/2014.
118
de I’Information Légale e Administrative45 francesa a respeito das Autoridades
Administrativas Independentes:
“Uma autoridade administrativa independente (AAI) é uma instituição do Estado responsável por, em seu nome, assegurar a regulação de setores considerados como essenciais e onde o governo pretende evitar intervir diretamente. As AAI são uma categoria jurídica relativamente nova porque, ao contrário da tradição administrativa francesa, elas não estão submetidas à autoridade hierárquica de um ministro. Foi na Lei de 6 de janeiro de 1978 que criou a Comissão Nacional de Informática e de Liberdades (CNLL) que o termo surgiu pela primeira vez. O número varia de acordo com os autores, em função dos critérios para definição adotados. Elas dividem-se em duas categorias, aquelas encarregadas da regulação de atividades econômicas e aquelas encarregadas de proteger os direitos dos cidadãos. As AAI apresentam três características, que são:. Autoridades: elas dispõem de um certo número de poderes (recomendações, decisões, regulação, sanção);. Administrativas: elas agem em nome do Estado e algumas competências atribuídas à administração lhes são delegadas (ex: o poder regulamentar). Independentes: dos setores regulados e também das autoridades públicas. Elas são, portanto, alocadas fora das estruturas administrativas tradicionais e não são submissas ao poder hierárquico. As autoridades públicas não podem lhes dirigir ordens, diretrizes ou mesmo simples conselho e seus membros não podem ser demitidos. Elas constituem-se, portanto, como uma exceção ao artigo 20 da Constituição segundo o qual a Administração se subordina ao Governo.”
São consideradas autoridades administrativas independentes aqueles entes com
competência decisória para regular setor social específico através da estipulação das “regras
do jogo”, sem que façam parte da hierarquia central do Poder Executivo. Vale ressaltar que,
na França, a atuação de tais órgãos além da regulação de setores econômicos ou de serviços
públicos delegados a particulares, destinam-se também à proteção de direitos fundamentais e
à proteção dos cidadãos frente à Administração Pública. Na mesma linha de pensamento,
também na Espanha e em Portugal as autoridades administrativas independentes são criadas
para além de regular setores da economia, atuar na proteção de direitos fundamentais ou de
valores e interesses constitucionalmente protegidos.
Embora a doutrina no Brasil analise a atuação de autoridades administrativas
independentes, agências reguladoras, dando ênfase em sua atuação como forma de
intervenção do Estado no âmbito econômico, é importante ressaltar que tal modelo
organizativo volta-se para a regulação de serviços públicos e atividades privadas de interesse
45 Ver: http://www.vie-publique.fr/decouverte-institutions/institutions/administration/organisation/etat/aai/. Acesso em 30/10/2014.
119
público sensíveis para a coletividade, áreas que normalmente suscitam fortes, múltiplos e
conflitantes interesses de todos os envolvidos.
3.3.2 Autoridades reguladoras no Brasil
O estudo das autoridades reguladoras no Direito Positivo Brasileiro, apresenta
como desafio realizar releitura de antigos institutos que já vigoravam na legislação pátria
antes do Programa Nacional de Desestatização – PND, que trouxe o fenômeno da
multiplicação de tais entes, no formato de agências, pós Constituição de 1988. Antes da
década de 90, o sistema jurídico brasileiro já contava com órgãos reguladores como, por
exemplo, o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores
Mobiliários (ARAGÃO, 2013, P. 269 e ss).
Na verdade, é possível dizer que a criação de entes voltados para a regulação de
áreas de interesse ou assunto específico no Brasil sofreu impacto direto de movimentos
ocorridos principalmente nos Estados Unidos e na Europa.
Em 1835, através do Decreto de Governo nº 101, foi estabelecida a possibilidade
de criação de companhias de estrada de ferro para realizar a ligação entre o Rio de Janeiro,
Capital do Império, às capitais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia, através das
Cartas de Privilégio (CARDOZO, 2006, p. 258), o que pode ser atribuído às influências
americanas e inglesas.
Nos Estados Unidos, no período pós quebra de 1929, como resultado de novas
formas de administração pública que priorizavam o planejamento indicativo, o sistema de
fomento e os processos associativos entre os setores público e privado, ou seja, a intervenção
do governo para buscar equilíbrio econômico e social, foi criado um grande número de
agências: a Food and Drug Administration – FDA em 1932, a Agriculture Adjustment
Admnistration – AAA, em 1933, a Security and Exange Comission-SEC de 1933 entre muitas
outras (NETO, 2003, p.75). Esse movimento foi amplamente influenciado pelas ideias
keynesianas, que ganharam relevo na proposta política-econômica do New Deal, no governo
Franklin Roosevelt (CARDOZO, 2006, p.259; MATTOS, 2006, p.69 e ss.) novamente a
influência americana pôde ser sentida no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. No primeiro
governo Vargas, é possível identificar a primeira onda regulatória voltada para a
“modernização” da administração pública, que embora tenha se inspirado no modelo norte-
americano, foi feita com características bastante distintas, principalmente em razão das
120
diferenças de organização político-administrativa, como já mencionado. Nessa época, foram
criados diversos órgãos no Brasil, entre os quais podem ser citados a título de exemplo:
Instituto Nacional de Estatística, em 1934, Departamento Administrativo do Serviço Público
(Dasp) em 1938, Conselho Federal do Comércio Exterior (CFCEX) de 1934, a Coordenação
de Mobilização Econômica (CME) de 1942, o Conselho Nacional de Política Industrial e
Comercial (CNPIC) de 1944, a Comissão de Planejamento Econômico (CNE) de 1944,46 e
muito importante, para esta pesquisa, a Justiça Eleitoral, em 1932 que deixaria de funcionar
em 1937 para retomar suas atividades em 1945,47 durante novo período de democratização.
Posteriormente, na década de 1960, outra onda regulatória emergiu. Nesta época
foram criados órgãos como por exemplo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica,
em 1962, o Banco Central do Brasil, em 1964, o Conselho Monetário Nacional, em 1964, e
diversas estatais como a Eletrobrás, criada em 1962. O Decreto Lei 200/1967 também foi de
especial importância ao registrar e reconhecer explicitamente a existência de atividades
governamentais autônomas e descentralizadas. Embora a Justiça Eleitoral já estivesse em
funcionamento nesse período, data de 1965 a criação do Código Eleitoral em vigor até a
presente data.
No período posterior, no último quarto do século XX, o Brasil passa por nova e
significativa reforma no período pós regime militar, novamente, influenciado por
acontecimentos ocorridos na Europa e nos Estados Unidos. Os processos de privatização
ocorridos no cenário europeu na década de 1980 em diante e a política de desregulação e re-
regulação da economia nos Estados Unidos, no mesmo período, fixaram os fundamentos
teóricos e práticos para o processo de reforma de Estado brasileiro. Estes processos foram as
respostas dos países desenvolvidos aos desafios trazidos pela crise do Estado contemporâneo
e pela globalização econômica na década de 1990 (Mattos, 2006, p.140).
A Recomendação de 31 de maio de 1996 do Conselho de reforma do Estado,
Decreto 1.738/1996, fixou as diretrizes para o Estado regulador pátrio e contribuiu com
síntese elucidativa sobre o tema: “O projeto de reforma do Estado visa substituir o antigo
estatismo pelo moderno Estado regulador. O aparato regulatório existente é enorme, obsoleto,
burocratizante e, em essência, intervencionista, sendo necessário primeiro desregular para, a
seguir regular por novos critérios e formatos mais democráticos, menos intervencionistas e
burocratizados. ”
46In:http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2642:catid=28&Itemid=23. Acesso em 30/10/2014.47 In: http://www.tse.jus.br. Acesso em 30/10/2014.
121
Os marcos mais expressivos desse processo foram a nova ordem inaugurada pela
Constituição de 1988, o Programa Nacional de Desestatização, trazido pela Lei 8031/1990,
alterado pela Lei 9491/1997, e a Reforma Gerencial de 1995. Esses marcos foram decisivos
para a criação e consolidação de autoridades administrativas independentes, ou autoridades
reguladoras, no formato que se discute atualmente. A positivação da regulação no Brasil se
deu no nível constitucional em 1995 – com a Emenda Constitucional nº 8, de 16 de agosto de
1995, que criou o “órgão regulador” para disciplinar os serviços de telecomunicação e com a
Emenda Constitucional nº 9, de 10 de novembro de 1995, que criou outro “órgão regulador”
relacionado ao setor de hidrocarbonetos monopolizados pela União - e no nível legal a partir
de 1996 (MOREIRA NETO, 2003, p. 189-190).
Vale registrar que a Lei da Eleições, Lei 9504, foi publicada em 1997. Este ponto
será abordado na parte II.
A existência de órgãos ou entidades com graus de autonomia variados em relação
ao governo central, como demonstrado, não é novidade para a legislação brasileira. O ponto
principal de debate, a novidade em relação aos entes criados no último quarto do século XX
relaciona-se com a vedação de exoneração ad nutum dos dirigentes das autoridades
reguladoras independentes e a ausência de ingerência hierárquica da Administração Central
em face dos atos decisórios de tais entes, autonomia orgânica e autonomia funcional
respectivamente. Como explica Aragão (2013, p. 270-271) - utilizando-se os termos
“agência”, “reguladora” e “independente” para reflexão - o grande divisor de águas em
relação a outras entidades há muito existentes é a “independência”, já acolhida pelo
legislador, mas até então afastada pela jurisprudência. A conjugação da independência e das
competências regulatórias é que caracteriza uma entidade como uma agencia reguladora
independente.
Quanto à natureza institucional das agências reguladores, em primeiro lugar, é
essencial registrar que sua denominação ou personalidade jurídica não é suficiente para
classificar um ente como autoridade reguladora independente. O que irá classificar um órgão
ou entidade como autoridade reguladora independente são as normas que irão garantir suas
funções específicas e a sua independência orgânica e funcional, ou seja, o regime jurídico
objetivamente fixado pela lei criadora do órgão ou entidade que garante as diversas
prerrogativas materiais de autonomia. Em princípio, na legislação brasileira, todas as
agências reguladoras receberam natureza jurídica de “autarquias especiais” (ARAGÃO, 2013,
p. 278).
122
Nesse sentido, Alexandre Aragão (2013, p. 281) conceitua as agências
reguladoras independentes como “autarquias de regime especial, dotadas de considerável
autonomia frente à Administração centralizada, incumbidas do exercício de funções
regulatórias e dirigidas por colegiado cujos membros são nomeados por prazo determinado
pelo Presidente da República, após prévia aprovação pelo Senado Federal, vedada a
exoneração ad nutum”; Diogo de Figueiredo (NETO, 2003, p. 167-169) ressalta que as
agências reguladoras são identificadas através da distinção de certas características teóricas
sensíveis da regulação em razão da dificuldade de se realizar uma síntese sistemática em face
da diversidade de órgãos regulatórios, possuindo, no entanto, em comum a preocupação
finalística de exercer alguma forma de intervenção estatal deslegalizada nas atividades sociais
e econômicas; e Paulo Todescan Mattos (2006, p. 143-144) indica que o principal elemento
de transformação jurídico-institucional trazido pelo projeto de reforma do Estado no Brasil
refere-se ao novo papel de agente regulador, enfatizando que as agências reguladoras possuem
desenho institucional e procedimentos decisórios muito diferentes dos demais órgãos
reguladores existentes no Brasil até então.48
Buscando compreender, qualificar e diferenciar o fenômeno da emergência de
entes reguladores autônomos no Estado contemporâneo, alguns autores buscam definir
critérios para identificação e classificação de autoridades administrativas independentes ou
autoridades reguladoras.
Propõe Alexandre Aragão (2013, p.317) seja verificado se há entidades ou órgãos
investidos de competências regulatórias (ordenação da atividade econômica desenvolvida por
particulares, inclusive através de amplos poderes normativos autorizados em lei), dotados de
autonomia orgânica e funcional nos termos das agências reguladoras independentes criadas na
década de 90. Sendo que a autonomia aqui buscada é aquela autonomia reforçada, maior que a
autonomia regular das entidades da administração indireta, que garante a efetiva
independência.
Ou seja, somente seriam consideradas agências reguladoras independentes, ou
autoridades reguladoras, aqueles órgãos ou entidades que conjugarem, ao mesmo tempo,
todos os atributos abaixo: 1) atribuição de competências regulatórias, com respectivos
poderes; 2) impossibilidade de exoneração ad nutum dos seus dirigentes; 3) organização
colegiada; 4) formação técnica; 5) impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios.
48 Para outros conceitos de agência reguladora independente ver: CARVALHO FILHO, 2012, p. 484-485; DI PIETRO, 2012, p. 525; MATTOS, 2006, p. 143-144.
123
Interessante notar que Alexandre Aragão,49 antes de realizar a análise do Conselho
Monetário Nacional-CMN, do Banco Central do Brasil – BACEN, da Comissão de Valores
Mobiliários – CVM, Conselho Administrativo de Defesa Econômica-CADE, Universidade
Públicas, Conselhos Profissionais50 e das Agências Executivas, já adianta que, para além das
entidades denominadas agências reguladoras, não haveria qualquer outra entidade da
administração indireta que pudesse ser enquadrada como agência reguladora independente.
Diogo de Figueiredo (NETO, 2003, p.168-169) considera que alguns princípios
básicos da regulação devem ser considerados para caracterização da atividade regulatória e
classificação das agências reguladoras: 1 – Competência regulatória (a partir da deslegalização e da
adoção de funções híbridas); 2 – Independência regulatória (a funcional, a dos agentes e a financeira);
3 – Participação regulatória (pela publicidade e pela processualidade aberta).
Na mesma linha de pensamento, Fernando Fróes (2006, p. 509 e ss) indica como
requisitos para a identificação de um órgão de regulação os seguintes:1 - competência; 2 -
independência; 3 - interdependência; 4 - composição de conflitos; 5 - especialização; 6 -
participação do usuário; 7 - controle administrativo e judicial de seus atos. Já, Paulo Mattos
(2006) ao avaliar as mudanças legislativas ocorridas para institucionalizar a reforma do
Estado, assinala que o modelo de agência reguladora adotado no Brasil possui quatro
características essenciais: decisão por órgãos colegiados; autonomia decisória do órgão
regulador; ampliação do poder normativo e jurisdicional da administração indireta; e criação
de mecanismos de participação pública nos processos decisórios no interior das agências. Para
49 Nos termos do autor: “podemos afirmar que não são agências reguladoras independentes: (a) o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central em razão de, apesar de serem reguladores, não possuírem independência;(b) a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, porque, malgrado ser uma entidade reguladora e possuir autônima orgânica, não tem autonomia funcional suficiente, estando sujeita a recursos para a Administração Direta; (c) o CADE é independente e, ao nosso ver, apesar de ser matéria bastante discutida, também possui competências regulatórias; (d) as universidades públicas são entes até mais independentes que as agencias, mas não são reguladores; (e) os Conselhos Profissionais, sem embargo da sua elevada independência, por serem manifestações da autorregulação, não da regulação em sentido estrito; e (f) as agencias executivas não constituem espécie de pessoa jurídica da Administração Pública, sendo mera qualificação dada pelo Poder Executivo para tornar possível o aumento da autonomia de órgãos ou entidades da União” (ARAGÃO, 2013, p. 331).50 A inovação normativa através de fontes de segundo grau, sobre direitos fundamentais, no contexto jurídico atual, é uma realidade que não pode ser mais ignorada. A título de exemplo é possível citar a Resolução CFM2.013/2013, revogada pela Resolução CFM 2.121/2015, ambas do Conselho Federal de Medicina, a respeito de técnicas de reprodução assistida. Esta resolução caracteriza atividade normativa de segundo grau e relaciona-se diretamente com o § 4º do art. 199 da Constituição de 1988, que dispõe que “a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” Questões sobre direitos fundamentais envolvem problemas éticos, transformações de costumes, que exigem novas arenas e mecanismos para justificação, deliberação e validação sob pena de criação de normas e realização de escolhas carentes de legitimidade e, portanto, arbitrárias. Escolhas arbitrárias padecem de meios e parâmetros para responsabilização, e no limite, impedem o controle social, constituindo-se como claro problema de democracia.
124
o autor, as agências reguladoras caracterizam um novo lócus de poder decisório e de
formulação de políticas públicas, com dinâmica diferente da administração estatal direta,
principalmente por institucionalizar a participação do cidadão no conteúdo da regulação.
As autoridades reguladoras são identificadas principalmente pela ausência de
submissão à uma hierarquia superior capaz de rever suas decisões e pela autonomia decisória
e financeira, ficando a autoridade administrativa independente responsável pelo conteúdo
político e decisório das políticas públicas que implementa. É certo que estes órgãos estão
vinculados ao sistema jurídico estatal vigente e seus princípios, mas também é inquestionável
que a estes são atribuídas competências específicas para coordenar e regular o funcionamento
das atividades ligadas ao interesse público por elas tutelado.
A autonomia reforçada, conforme registra Alexandre Aragão, é atributo essencial
para que um ente ou órgão possa ser classificados como autoridade administrativa
independente ou como uma autoridade reguladora independente. É a independência ou
autonomia reforçada que tal entidade deve possuir em face aos Poderes centrais do Estado que
a diferencia.
Normalmente, esta característica é assegurada pelo mandato por prazo fixo pré-
determinado, atribuído aos seus dirigentes e com garantias para o exercício do mandato, entre
as quais deve ser ressaltada a vedação de exoneração ad-nutum de seus dirigentes. Essa
característica ao lado da proibição de recurso impróprio em relação aos atos e decisões do
órgão regulador, estabelecem atributos muito significativos para garantia de autonomia e
independência.
A autonomia reforçada das autoridades administrativas independentes, no entanto,
não impede a definição de diretrizes, mediante aprovação de normas pelo Poder Legislativo, a
supervisão do Tribunal de Contas ou o acesso ao Poder Judiciário para composição de
conflitos. As políticas públicas traçadas pelo agente regulador devem estar alinhadas com os
princípios constitucionais, não podendo desviar-se de tais vetores de conformação.
É essencial registrar que o grau de liberdade da autonomia atribuída a agentes
públicos, será definida por lei e esta somente poderá ser reduzida ou ampliada pela mesma
fonte normativa que inicialmente a circunscreveu.51
51 Nas palavras de Alexandre Aragão (2013, p.212-213): “Não há, portanto, antagonismo entre a autonomia de entidades e órgãos materialmente descentralizados com a unidade da Administração, muito pelo contrário: a Administração Pública contemporânea, para cumprir suas funções e atender aos valores e princípios constitucionais a ela impostos, deve atuar, ao mesmo tempo, coordenada e descentralizadamente. Vemo-nos diante de um Direito Administrativo mais complexo e plural, que abandona a ideia de que uma atividade
125
A segunda característica conferida às autoridades administrativas independentes é
a diversidade de funções a estas atribuídas pela norma que as institui: atividade normativa,
atividade regulatória, atividade fiscalizadora, atividade sancionatória e atividade julgadora.
A função regulatória autônoma tem por finalidade fixar e delimitar o conteúdo da
regulação. No exercício da função regulatória, a entidade atua de forma prospectiva visando a
efetivação das políticas públicas por ela traçadas, e a consolidação das melhores práticas para
as relações desenvolvidas dentro do ordenamento setorial.
A competência fiscalizatória poderá incidir sobre serviços públicos concedidos,
sobre exploração privada de monopólio ou bem público de natureza contratual, ou ainda sobre
agentes que desempenham atividade privada de interesse público, sendo a fiscalização nesta
hipótese, em regra, decorrente do exercício do poder de polícia.
A competência sancionatória decorre da competência fiscalizatória que, ao
identificar descumprimento de normas ou contratos aplica as sanções previstas. Esta
competência do ente regulador precisa ter amparo legal, ainda que atribuída de forma
genérica. A mediação e composição de conflito é atribuição essencial das autoridades
reguladoras independentes, produzindo tais entidades Direito assim como o Poder Judiciário,
no exercício da sua legitimidade reflexiva.
Assim como a função fiscalizatória, a função julgadora também precisa ter
fundamento legal. Flexibilidade e consensualidade são características que devem pautar o
exercício da atividade regulatória, de forma que, sempre que possível, negociações e
consensos pautem as ações de todos os personagens envolvidos na atividade regulatória.
Todos os envolvidos precisam ter espaço garantido para participação influente no processo
decisório do ordenamento setorial, construindo pontes para soluções diferentes da via
contenciosa, afinal a função regulatória tem por finalidade maior coordenar interesses, alinhar
ações para garantia de direitos fundamentais e realização dos valores e princípios
consensualizados na ordem jurídica.
O exercício da função julgadora com a composição de conflitos por forma
alternativa precisa de previsão legal e formas de controle muito bem estabelecidas sob pena
de captura dos envolvidos e desvio da finalidade regulatória. O ordenamento setorial se
caracteriza por conter subsistema jurídico especializado que demanda conhecimento técnico e
administrativa só é racional na medida em que estiver previamente prevista, detalhadamente normatizada e sujeita a uma linha hierárquica; que a substitui por técnicas de análise, de gestão e responsabilidades estratégicas.”
126
científico para desenvolvimento de atividade regulatória capaz de atender a múltiplas e
complexas demandas. Claramente a escolha de uma solução entre as diversas disponíveis
reveste-se de caráter político e precisará estar alinhada com as políticas públicas apresentadas
para o subsistema.
Assim, novos instrumentos de integração e regulação social vão paulatinamente
sendo reconhecidos no âmbito do Direito Administrativo modificando inclusive as formas de
controle necessárias das atividades que passam a ser menos hierárquicas e mais finalísticas,
mas também mais plural e atomizadas. E o caráter finalístico incorporado às atividades
regulatórias, nesse novo contexto, passa a exigir o planejamento estratégico de ações e a
responsabilização de agentes, na medida em que os critérios tradicionais para avaliação dos
atos administrativos se transformam.
Se no Direito Administrativo tradicional a prática de atos administrativos devia
ser exercida nos limites da legalidade administrativa estrita, pois tratavam-se de políticas
públicas amparadas em requisitos racionalmente pré-estabelecidos por lei, em circunstâncias
complexas e plurais, no paradigma do Estado Democrático de Direito que pretende assumir
uma postura proativa de transformação social, o Direito Administrativo também precisa ser
atualizado e legitimado.
Não será possível implementar apenas meios, medidas e controles típicos de
práticas jurídicas que funcionem olhando apenas para o passado, serão necessários
instrumentos e práticas que permitam olhar para o futuro, uma ação regulatória prudencial,
com objetivos, metas e responsabilidades compartilhadas, passíveis de avaliação reflexiva por
todos os sujeitos envolvidos.
O pluralismo e a complexidade social, ao lado da globalização, tem sido a porta
de entrada para as técnicas que rapidamente estão invadindo a prática administrativa da
administração pública, sem a correspondente atualização e incorporação dos novos institutos à
legislação administrativa em tempo adequado: planejamento estratégico, definição de metas,
governança, gestão de projetos, gestão de processos, gestão eletrônica de informações, gestão
por competência, entre tantos outros.52
52 Como assinala Alexandre Aragão (2013, p.35): “Nos vemos diante de um Direito Administrativo mais complexo e plural, que abandona a ideia de que uma atividade administrativa só é racional na medida em que estiver previamente prevista e detalhadamente normatizada; que a substitui por técnicas de análise, gestão e reponsabilidade estratégica”.
127
Permanecem, no entanto, pendentes de avaliação os mecanismos para legitimação,
controle e responsabilização das relações transformadas que estão sendo construídas pelas
práticas da burocracia estatal, sem ainda total correspondência teórica e normativa.53
Por fim, resta discutir a questão do amplo poder normativo atribuído às
autoridades administrativas independentes e o fenômeno da delegificação.
A teoria das fontes para criação de normas legítimas de convivência assumiu
feições diversas ao longo da história das sociedades. Como outra face da mesma moeda, a
evolução da teoria das fontes pode também ser compreendida como a história da
discricionariedade. Desde justificativas divinas, passando por fundamentação amparada na
hereditariedade, até chegar ao império da lei, para finalmente deslocar seu eixo para o
fenômeno do constitucionalismo contemporâneo - que agrega postulados políticos, princípios
e valores vitoriosos, de uma sociedade cada vez mais plural - a teoria das fontes encontra-se
agora perante o desafio de manter a integridade do sistema jurídico perante práticas sociais
plurais dinâmicas e complexas, que apresentam como correspondente uma pluralidade de
fontes emanada dos múltiplos centros de interesses especializados e das práticas cada vez
mais atomizadas da burocracia estatal contemporânea
As limitações do absoluto e estrito império da lei apartadas de questões éticas
morais, nos termos da tradição herdada dos séculos XVIII e XIX, evidenciou-se através de
eventos marcantes na história da humanidade, sendo o século XX recheado de exemplos
contundentes das consequências de um direito sem compromissos com a justiça: nazismo,
fascismo, ditaduras, etc. As experiências vividas no período pós segunda guerra
demonstraram o amplo grau de discricionariedade e os perigos embutidos em discursos
jurídicos pretensamente isentos e teoricamente descomprometidos com a realidade fática. As
lacunas do sistema que anteriormente eram preenchidas pelo “juiz boca da lei” que “decidia
conforme sua própria consciência”, pelos costumes e por princípios,54 na verdade
53 Por exemplo: como compatibilizar banco de horas com a Lei 8812/98? Como compatibilizar o direito disciplinar dos servidores públicos federais com a gestão por projetos, que por definição flexibiliza prazos e compromissos e se organiza de forma apartada do organograma institucional, e, portanto, fora das competências previstas? Como compatibilizar a gestão por competência de servidores e a diferenciação de funções, se grande parte dos servidores é concursada para cargos de provimento efetivo com descrição genérica de suas atribuições? Todas essas perguntas registram apenas um vislumbre dos desafios que o Direito Administrativo vem enfrentando não só no âmbito das autoridades administrativas independentes, mas na burocracia estatal como um todo. A burocracia estatal brasileira é hierarquizada, pautada pela legalidade estrita dos atos administrativos e da distribuição de competências previa e rigidamente estabelecida. A incorporação avassaladora de práticas da ciência da administração pelo Estado gerencial não conseguiu ainda encontrar amplo respaldo teórico e legal.54 No Brasil, pela Lei de Introdução ao Código Civil.
128
demonstraram ser verdadeiros cheques em branco para que o sistema pudesse ser considerado
absoluto e pleno. Diversos foram os institutos e teorias criados para encobrir as limitações de
um sistema jurídico amparado em normas gerais e abstratas com a pretensão de abranger toda
a realidade fática. São exemplos dessa prática, como cita Alexandre Aragão (2013, p. 36), a
progressiva construção jurisprudencial que insere no sistema jurídico novos institutos como a
teoria da imprevisão, a responsabilidade civil do Estado, o desvio de finalidade, etc.
O Estado Liberal apresenta como estrutura jurídica correspondente um sistema de
direitos que para ser legítimo não precisa ser necessariamente substancialmente democrático,
ou de outra forma, que, para efeitos de legitimidade, conforma-se com uma legalidade formal
sem compromisso com aspectos materiais das normas produzidas.
O Estado democrático de direito apresenta exigências e compromissos maiores.
Enquanto o Estado Liberal de direito contenta-se com formas e estruturas jurídicas
descompromissadas previstas em lei, o Estado Democrático ampara-se numa ordem
axiológica da sociedade que se manifesta através dos princípios. Para ser legítimo o direito
democraticamente produzido precisa legitimar-se em arenas deliberativas com procedimentos
previamente identificados e institucionalizados, precisa ainda alinhar-se com os valores
consensualizados pelo processo político e consolidados pelo sistema jurídico na forma de
princípios (ARAGÃO, 2013, p. 38).
Uma teoria das fontes que pretenda tratar da legitimação de normas produzidas
por centros de poder atomizados no seio social, em especial nesta pesquisa as normas
produzidas por autoridades administrativas independentes, ou em outros termos, das
condições de legitimidade do fenômeno da delegificação, precisa necessariamente considerar
o princípio da legalidade por novas lentes.
O processo de transformação do princípio da legalidade, nos termos previstos pelo
Estado Liberal, desenrolou-se e aprofundou-se com a proliferação de normas expedidas pelo
parlamento e com a atribuição de poderes normativos à administração, também pelo próprio
parlamento. O advento do Estado gerencial ou regulador, como resultado do aprofundamento
das responsabilidades assumidas pelo Estado do bem-estar social e do correspondente
fracasso para lidar com tantas exigências, precisou incorporar à função administrativa poderes
normativos de caráter ainda mais amplo para conseguir gerir múltiplas atividades sociais e
econômicas (ARAGÃO, 2013, p. 37 e ss).
129
Nesse contexto, as transformações impostas pela contemporaneidade à teoria
liberal das fontes ultrapassa o aspecto formal da produção normativa - não se trata apenas de
que órgão ou poder estatal possui competência para criar normas jurídicas válidas - para
alcançar seu conteúdo material, na medida em que, as aspirações liberais de uma produção
normativa geral e abstrata, produzida por um poder legislativo central, capaz de conter toda a
facticidade, paulatinamente vão sendo substituídas por uma realidade na qual a produção
normativa é crescentemente mais especializada, atomizada e pluralizada (ARAGÃO, 2013, p.
38).
A realização dos princípios constitucionais e a garantia do devido processo legal,
formal e material, para a produção de normas jurídicas são os vetores que determinam a
legitimidade da norma jurídica produzida. Nessa linha de pensamento é que deve ser
abordado o fenômeno da atribuição de competência normativa e correlato grau de
discricionariedade atribuído às autoridades reguladoras independentes.
A atividade reguladora autônoma, diferente do que prescreve a estrita legalidade
administrativa, não tem apenas por finalidade disciplinar as atividades dos sujeitos que
participam da atividade regulada e todas as circunstâncias em que esta pode ser praticada. A
atividade reguladora autônoma tem por principal finalidade estabelecer condições para que o
exercício de interesses privados seja alinhado com a finalidade pública protegida dos
interesses tutelados. Daí a extensão dos poderes normativos concedidos à autoridade
administrativa independente, visto que esta é responsável por implementar políticas públicas
para os ordenamentos setoriais, a fim de que a livre iniciativa privada promova as atividades
reguladas com ampla liberdade, mas alinhadas com o interesse público e com os princípios
constitucionais.
Como a tutela dos interesses protegidos pelos ordenamentos setoriais precisa
acompanhar as relações estabelecidas nas práticas cotidianas de cada setor específico, com
metas e diretrizes que se ajustem na velocidade de tais relações, o poder normativo concedido
por lei ou pela constituição às autoridades reguladoras independentes, para integração do
conteúdo da vontade parlamentar, tende a ser bastante amplo, utilizando-se de textos abertos e
com expressões de conteúdo indeterminado (ARAGÃO, 2013, p. 37 e ss).
A utilização de normas de baixa densidade normativa, nesta hipótese, é uma
estratégia para tratar relações sociais, que por sua própria natureza, se apresentam de forma
volátil e em permanente mutação. Esta lei produzida mediante o instituto da delegificação ou
130
deslegalização tem por finalidade atribuir poder regulamentar para órgãos distintos do poder
legislativo para tratar, mediante atividade regulamentar autônoma, matérias que anteriormente
tinham reserva de lei.
A norma produzida pela deslegalização não apresenta conteúdo material de
regulamentação ou afigura-se como norma que precisa ser completada. Sua função primordial
é transferir para outra sede normativa a regulação preponderantemente técnica de determinada
matéria, não havendo qualquer inconstitucionalidade nesta prática, visto que o balizamento e
a coordenação destas regulações plurifórmicas e pluricêntricas permanecem na esfera de
influência política do parlamento (ARAGÃO, 2013, p. 43). A própria Constituição brasileira
reconhece em seu bojo a delegificação de diversas matérias para entidades estatais e não
estatais.55
Em que pese a competência normativa técnica dos entes reguladores autônomos, é
preciso reconhecer que, no limite, parte significativa da produção normativa regulatória será
expedida sem a correspondente e estrita previsão legislativa. Aqui aparece um dos problemas
essenciais do poder regulamentar concedido às autoridades administrativas independentes:
muitas normas expedidas por estes entes irão de fato inovar a ordem jurídica, apresentando
força primária (ARAGÃO, 2013, p.39). Será, então essencial, a delimitação de
procedimentos para o devido processo normativo, a instituição formal de canais e arenas para
legitimação de tais normas e a criação de mecanismos de controle da atuação do agente
regulador.
3.4 Parâmetros para identificação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral
Conforme visto nos pontos anteriores, a atividade regulatória sempre foi uma das
funções essenciais do Estado e a prestação de serviço público a manifestação mais intensa de
regulação social. Os principais fatores responsáveis pela transformação da regulação
tradicional foram: o fracasso do Estado para fazer face a todas as demandas sociais
paulatinamente reconhecidas pela administração publica ao longo do século XX; o
aprofundamento da complexidade das relações sociais em razão da multiplicação e
55 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: art. 21, XI, serviços de telecomunicações; artigo 177,§2º, III, exploração do petróleo; art. 207, universidades; art. 217, I, entidades desportivas privadas; art. 17, III, prestação de contas de partidos políticos.
131
diversificação do que se compreende por minorias; as múltiplas faces que a ideia de bem
comum passou a incorporar; o fracasso das cortes judiciais para fazer face à multiplicação de
demandas de natureza coletiva e massificada; e, finalmente, o reconhecimento sucessivo pelos
ordenamentos jurídicos ao redor do mundo das novas exigências substanciais trazidas por
princípios internacionais de direitos humanos, com enorme impacto para o que se compreende
por democracia e para o papel do Estado.
O Estado Liberal possuía como referenciais jurídicos mais relevantes a eficácia e
a legalidade formal, manifestados principalmente através da estruturação de uma burocracia
estatal, com acesso mediante concurso público; de eleições periódicas para autorizar agentes
políticos a exercerem mandatos e a tomarem decisões em nome de todos; e pelo império da
lei. Nesse contexto, legitimidade e efetividade eram referenciais metajurídicos, não
abrangidos por uma legalidade que se legitimava mediante critérios estritamente formais.
O constitucionalismo contemporâneo modificou tal perspectiva, reconheceu
finalidades concretas de justiça social, estabeleceu uma constelação de princípios como vetor
de orientação para ações legitimas, e trouxe para a gestão de interesses públicos novos
referenciais democráticos.
Um dos resultados dessas transformações foi o compartilhamento de
responsabilidades para execução de serviços e atividades de interesse público. A proteção e
criação de reais possibilidades para o exercício de direitos humanos passou a ser
responsabilidade compartilhada entre Estado e iniciativa privada.
A atribuição de atividades e serviços que mantiveram a natureza de interesse
público para a iniciativa privada, em razão do interesse coletivo que os caracterizam, criou
nova e diferenciada função regulatória para o Estado: a função regulatória autônoma. Esse
novo estado com funções gerenciais e finalidades de justiça social, foi classificado pela
doutrina constitucional contemporânea como Estado Democrático de Direito.
A função regulatória autônoma assim identificada pode relacionar-se tanto com
atividades de interesse público com fins econômicos quanto com atividades voltadas para
proteção e concretização de direitos fundamentais, conforme princípios de direitos humanos
traçados por tratados e convenções internacionais.
Diante de todo o exposto neste terceiro capítulo, torna-se agora necessário
consolidar os parâmetros que serão utilizados na segunda parte dessa pesquisa para
132
identificação e avaliação da nova função regulatória autônoma da Justiça Eleitoral. Nessa
linha de pensamento, três são os parâmetros que precisam ser estabelecidos:
(i) o conceito de serviço público;
(ii) o que se compreende por função regulatória autônoma;
(iii) os atributos para classificação de um ente como autoridade reguladora
autônoma.
(i) O conceito de serviço público a ser utilizado na segunda parte da pesquisa será
delimitado conforme a definição apresentada por Alexandre Aragão ao longo deste capítulo.
O conceito de atividade será, no entanto, ampliado para além da atividade econômica, nos
termos propostos pelo autor, para abranger também atividades que tenham por finalidade a
proteção e concretização de direitos fundamentais.
Assim, considera-se serviço público todas as atividades de interesse da
coletividade sujeitas aos princípios da continuidade, universalidade, sejam elas titularizadas
pelo Estado ou pela iniciativa privada.
O regime jurídico, publicatio ou ordenatio, ao qual o serviço público está
vinculado é que irá diferenciar o serviço público prestado pelo Estado do serviço público
prestado pela iniciativa privada. São modalidades de serviço público:
- A prestação de serviço público oferecida diretamente pelo próprio Estado (regime
jurídico - publicatio);
- A execução de serviço público de titularidade estatal atribuída à iniciativa privada,
através dos institutos da concessão ou permissão (regime jurídico - ordenatio);
- A atividade privada de interesse publico, ou serviço público impróprio, ordenada
pelo Estado mediante autorização (regime jurídico – ordenatio).
Importante recordar que as atividades privadas de interesse público autorizadas
são caracterizadas pelo impacto que apresentam junto à coletividade ou por causar assimetrias
de informação para os sujeitos envolvidos. Essas atividades normalmente estão submetidas a
processo regulatório especifico e correspondente a um ordenamento setorial e a uma
autoridade reguladora independente. Por possuir impacto direto em toda coletividade, tais
atividades privadas de interesse público sujeitam-se à autorização previa operativa, que além
de possibilitar ao particular o exercício de tal atividade, investe o poder público de uma série
de poderes para rígida regulação ainda que não seja seu titular.
133
(ii) Tradicionalmente, o ato de regular está associado com o exercício de função
normativa e com o exercício da função jurisdicional e tem por focos principais a legalidade e
a eficácia. Tal regulação pressupõe ciclos temporais idealizados conforme o modelo racional e
abstrato da tradicional separação de poderes, cuja vontade soberana é também igualmente
abstrata e idealizada, cabendo ao poder legislativo a edição de normas primárias para regular a
convivência social e ao poder judiciário a avaliação das condutas que não respeitam tais
normas. A regulação tradicional também está firmemente associada à figura do Estado que,
diretamente, presta serviços e desempenha atividades de interesse público.
No entanto, o fracasso do Estado para fazer face a tantas demandas, o acirramento
da complexidade social e das novas exigências de criação de condições materiais para
garantia e exercício de direitos fundamentais, obrigaram o Estado a compartilhar com a
iniciativa privada a responsabilidade pela execução de serviços e atividades de interesse
público. Tais circunstâncias criaram para o Estado a correspondente responsabilidade de
regular a prestação de serviços e o exercício de atividades atribuídas à particulares norteados
pelos princípios da universalidade e da igualdade. E a operacionalização de tal
responsabilidade, deu origem à criação de centros de interesse múltiplos e atomizados, através
de órgãos e entes técnico-especializados e independentes, com poderes híbridos.
Outros fatores também contribuíram para a transformação da função regulatória
do estado, figurando entre os principais o reconhecimento da incapacidade do poder
legislativo para obter informações detalhadas dos sistemas que precisam ser regulados e a
capacidade para deliberar sobre todos os aspectos relacionados à regulação de um
determinado fato social no tempo adequado; a incapacidade do poder judiciário para lidar com
direitos coletivos e demandas massificadas através de um processo judicial estruturado para
solucionar problemas de natureza individual. Tais constatações trouxeram exigências
concretas de delegação de poder normativo, com a correspondente atribuição de função
regulatória autônoma e demais poderes associados.
Assim, é possível afirmar que haverá função regulatória autônoma sempre que
houver a existência de atividade privada classificada como de interesse público, sujeita à
autorização para funcionamento, e a existência de polo de poder administrativo e político
descentralizado, tecnicamente especializado e diversificado, com a atribuição de cuidar de um
específico campo de atividade considerado em seu conjunto, com poderes para condicionar,
coordenar e disciplinar a atividade privada, com a finalidade de realizar direitos fundamentais.
134
A função regulatória autônoma compreende o conjunto de medidas normativas,
administrativas, abstratas ou concretas através das quais o Estado induz, restringe, determina,
controla ou influencia o comportamento de agentes particulares, com os especiais fins de
resguardar interesse público indisponível e de promover a dignidade da pessoa humana.
A função regulatória autônoma abrange, portanto: o poder normativo, para impor
moldura normativa geral e abstrata à atividade regulada; o poder para habilitar o particular a
prestar serviço público ou exercer atividade privada de interesse público (mediante
autorização, permissão ou concessão); o poder para assegurar sua aplicação, mediante poder
de polícia e decisões individuais proferidas na avaliação do caso concreto; poder para reprimir
infrações, através da solução de disputas concretamente consideradas.
Há três dimensões específicas da função regulatória autônoma que precisam ser
destacadas:
1) Poder normativo autônomo – possibilidade de expedir normas como
consequência de delegação legislativa para regular centro específico de direito público - estas
normas, por sua natureza autônoma, necessitam de procedimento suplementar para sua
legitimação em fóruns criados para participação informada e influente das partes interessadas
na regulação, como, por exemplo, audiências públicas;
2) Mecanismos de enforcement – mecanismos efetivos para gerar incentivos e
alinhar comportamentos com as finalidades da regulação - mecanismos e procedimentos
concretos para controlar, impor restrições e punir desvios de finalidade no exercício da
atividade regulada – esta dimensão está associada aos demais poderes relacionados à
atividade regulatória;
3) Eficiência da regulação – identificação de critérios para avaliar se a regulação
está atingindo seu objetivo, se o processo regulatório persegue as finalidades sociais previstas
e se entrega os resultados esperados.
A legitimidade da função regulatória autônoma dependerá, portanto dos
mecanismos previstos para legitimar o direito regulador produzido através da participação
influente dos interessados em fórum adequado; dependerá, ainda, da existência de
responsabilidades delimitadas na legislação e de mecanismos de enforcement com capacidade
para gerar resultados eficientes em tempo adequado, sob pena de tornar-se a regulação
ineficiente, e, portanto, ilegítima.
A legitimidade da função regulatória não resulta apenas de uma regulação bem-
sucedida, mas também da percepção de legitimidade e de eficiência do processo regulatório
pela sociedade. Não basta que a regulação seja legítima e eficiente, ela deve ser percebida
135
como legítima e eficiente pela sociedade, pelos cidadãos. Para atender à essa dimensão torna-
se relevante criar instrumentos objetivos para avaliação dos resultados da regulação e dar
transparência à sociedade sobre tais indicadores.
(iii) A classificação de um órgão ou ente como autoridade reguladora autônoma
depende da identificação dos seguintes atributos:
. Órgão ou ente investido de função regulatória autônoma para ordenar atividade
privada de interesse público desenvolvida por particular, mediante autorização, através de
amplos poderes normativos autorizados em lei - deslegalização e funções híbridas: atividade
normativa, atividade regulatória, atividade fiscalizadora, atividade sancionatória e atividade
julgadora;
. Decisão por órgãos colegiados;
. Autonomia orgânica, funcional e financeira (autonomia decisória reforçada da
autoridade reguladora, com atribuição de mandato sem possibilidade de exoneração ad nutum;
impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios e autonomia financeira);
. Criação de mecanismos de participação pública no conteúdo nos processos
decisórios (participação regulatória pela publicidade e pela processualidade aberta).
A nova atividade regulatória autônoma busca ajustar de forma permanente a
tensão existente entre o exercício da autonomia individual e o alcance de finalidades públicas,
a tensão entre pluralismo e princípio majoritário, em cenário social diferenciado, em
permanente transformação, com sujeitos e temporalidades bastante distintos da tradicional
partição de poderes. A nova atividade regulatória volta-se para a garantia de iguais condições
de acesso a todos, de igual oportunidade. É nesse novo sentido que a atividade regulatória
autônoma deve ser compreendida.
PARTE II
REGULAÇÃO ELEITORAL E INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES
CAPÍTULO 4
GOVERNANÇA ELEITORAL, REGULAÇÃO AUTÔNOMA E
INTEGRIDADE DAS ELEIÇÕES
A adoção de eleições como forma de escolha de representante eleitos disseminou-
se largamente nos últimos trinta anos, sendo indiscutível que os valores da democracia
representativa se incorporaram amplamente à pauta política contemporânea. Sucessivamente
diversos regimes fizeram a transição para a democracia como forma de governo e adotaram
eleições como forma legitima de acesso a cargos políticos (NORRIS, 2014, p. 192). No
entanto, a consolidação da governança democrática apresenta-se como um dos maiores
desafios do século XXI tanto para democracias recentes como para democracias já
estabelecidas, independentemente de seu grau de amadurecimento (GLOBAL COMISSION
ON ELECTIONS, 2012, p.7).
O crescimento das desigualdades sociais, as crises econômicas internacionais, a
globalização, as crises sociais locais, a livre circulação de capitais, o crime organizado, o
aumento dos níveis de corrupção, a interferência do dinheiro na política, as pressões por
melhoras na qualidade de vida das pessoas e o desrespeito aos direitos humanos são exemplos
de alguns dos diversos obstáculos concretos para o aprofundamento da convivência
democrática e para o alcance de soluções pacíficas de integração do tecido social no século
XXI (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 5-6).
Embora possam existir divergências quanto à forma como tais fatores impactam o
desenvolvimento econômico e social, não há grandes controvérsias quanto a existência desse
impacto. O reconhecimento da relação existente entre esses fatores e a governança eleitoral,
impondo a exigência de eleições integras como condição para a estabilidade social, entretanto,
constitui-se uma novidade.
Durante muito tempo as eleições foram consideradas como eventos periódicos e
independentes de manifestação essencial à democracia, mas sem que o impacto de seu aspecto
processual e cíclico fosse levado em conta. Nos últimos anos esse quadro vem mudando com
a multiplicação de pesquisas a respeito de eleições, do seu arcabouço jurídico, das instituições
envolvidas e do impacto destas no processo democrático.
Cada vez mais as eleições têm sido percebidas como processo, como ciclos
eleitorais interligados, com forte impacto sobre a governança democrática e sobre as práticas
138
políticas dos diversos países. Cada vez mais o campo de estudo abrangido pela governança
eleitoral se destaca como campo de pesquisa autônomo diferenciado, indicando a
transformação de seu objeto.
A terceira onda democrática ocorrida nas últimas décadas do século XX, os
diversos conflitos políticos ao redor do globo, o esforço para transformar a transição
democrática em prática consolidada e o envolvimento de cortes constitucionais/especializadas
e de autoridades eleitorais autônomas aparecem como questões de ordem política e jurídica
que abriram novos questionamentos e novas frentes de pesquisa sobre governança eleitoral.
Em diversos países da América Latina, na África do Sul e no Leste Europeu, há
exemplos consolidados de adoção de autoridades autônomas para gerir o processo eleitoral
como forma de superar e reduzir os impactos de interesses políticos circunstanciais e
imediatistas tão nocivos para a consolidação democrática. São exemplos as instituições
eleitorais do Uruguai, da Costa Rica, do México e, como se pretende defender aqui nesta
pesquisa, do Brasil.
Nessa linha de pensamento, começam a ganhar importância as instituições que
participam do processo político em geral e do processo eleitoral em especial. As instituições,
as “leis da democracia” (SCHLEICHER, 2011, p.75) e o processo eleitoral passam a
importar. Há o reconhecimento de que eleições impactam o processo político e o processo
político impacta a estabilidade social. Começa-se a perceber de forma mais direta que eleições
e governança eleitoral não são neutras em relação ao ambiente político e econômico. Ao
contrário: alterações no processo eleitoral possuem o potencial de influenciar o processo
político e a governança democrática, ampliando ou reduzindo as conquistas da democracia
contemporânea, fortalecendo-a ou enfraquecendo-a (NORRIS, 2014).
A ideia de integridade eleitoral nasce associada a esse contexto e indica uma nova
e inversa relação de causalidade: eleições íntegras funcionam como salvaguarda e aprofundam
a democracia, ao contrário do senso comum de que a democracia garante eleições íntegras. E
por esta razão a integridade das eleições, enquanto objeto de um tipo específico de
governança eleitoral, vem ganhando destaque como campo de estudo autônomo. (NORRIS,
2014, p. 191 e ss).
Como explicam Heather K. Gerken e Michael S. Kang (2011, p. 88) a estrutura do
processo político e da disputa eleitoral colaboram para determinar os resultados substanciais
do processo democrático. Há cada vez maior consenso de que os procedimentos adotados pelo
139
processo político, sob suas diversas perspectivas, dão forma e determinam as políticas
implementadas, os candidatos que são eleitos e as reformas que são aprovadas. Essa
perspectiva é bastante significativa na medida em que torna evidente que os procedimentos
adotados pelo parlamento e pelas autoridades eleitorais autônomas na condução do processo
eleitoral, ou seja, a governança eleitoral, impactam e direcionam substancialmente o processo
político.
Outro aspecto que vem ganhando relevo é o fato de que o processo político tem
sido tradicionalmente avaliado pela perspectiva de instituições enquanto origem de
manifestações de vontade homogêneas: o parlamento, o poder executivo, o poder judiciário, o
ministério público, etc. Esta visão hoje, sob a perspectiva dos fundamentos democráticos, tem
sido vista como problemática (GERKEN, 2010, p. 18).
Para diversos estudiosos contemporâneos das leis e das instituições da democracia
as instituições são percebidas como uma coleção de atores políticos que ao desempenhar as
funções estatais para as quais foram eleitos ou ao desempenhar atribuições partidárias não se
despem de seus interesses partidários e particulares, sendo aqui identificadas hipóteses
clássicas de regulação, circunstâncias nas quais há potenciais conflitos de interesse e falhas de
comunicação, sendo necessário instituir incentivos para que ações comandadas por interesses
privados sejam alinhadas com melhores escolhas públicas. Essa abordagem coloca o papel
das autoridades eleitorais autônomas e das cortes constitucionais/especializadas em nova
perspectiva (GERKEN, 2010, p. 18 e ss).
No mesmo sentido, Habermas apresenta e discute os problemas decorrentes de
agentes que atuam orientados por uma lógica estratégica e o compartilhamento do espaço
comum que deve ser construído por uma lógica de cooperação para emancipação do cidadão,
em contexto de democracia deliberativa (HABERMAS, 2003). Pierre Rosanvallon também
ressalta a importância do reconhecimento da existência de instituições de conflito e de
instituições de consenso e das lacunas de legitimidade que precisam ser preenchidas no
âmbito de uma democracia complexa (ROSANVALLON, 2011).
A literatura sobre governança eleitoral expressamente identifica o problema da
produção de normas eleitorais pelo congresso para atender a interesses partidários e privados,
com a intenção de reduzir a competição eleitoral e perpetuar no poder a maioria vigente. Há o
expresso reconhecimento de que as normas eleitorais impactam a correlação de forças
políticas, modificando a forma de funcionamento do sistema político e as possibilidades de
140
acesso aos cargos eletivos, alterando inclusive as pautas para elaboração de políticas públicas.
As leis da democracia determinam quem pode chegar ao poder e de que forma (GERKEN e
KANG, 2011).
É nessa linha de desenvolvimento que aparecem estudos sobre “politics as
market” (ISSACHAROFF E PILDES, 1998), sobre a “lei da democracia” (SCHLEICHER,
2011) e sobre o “institucional turn” (GERKEN e KANG, 2011, p. 90), voltados para o estudo
da disputa política eleitoral e para o papel que a lei eleitoral desempenha na governança
política.
Os debates voltam-se para questões como a necessidade de regulação da disputa
política a fim de que o processo eleitoral seja protegido de normas elaboradas pelo parlamento
que possam trazer danos à competição política, reduzindo as condições equitativas de acesso
ao poder. Voltam-se ainda para o estudo do impacto da governança eleitoral e das decisões
adotadas ao longo do processo eleitoral, a fim de investigar como estas influenciam as
eleições e as estruturas democráticas, ou seja, como candidatos são eleitos e como o poder
político é exercido.
Assim, entram em perspectiva o papel atribuído às cortes constitucionais, às
cortes eleitorais especializadas e às autoridades eleitorais autônomas, em matéria eleitoral,
com enfoque diferenciado do papel que lhes tem sido tradicionalmente atribuído.
Há autores como Issacharoff e Pildes (1998), que argumentam de forma mais
radical que a cortes responsáveis pela matéria eleitoral deveriam rever a legislação eleitoral
aprovada pelo parlamento da mesma forma que os reguladores antitruste supervisionam os
atos praticados por monopolistas, questionando se a legislação eleitoral apresenta efeitos
anticompetitivos injustificáveis. Estas abordagens tomam a representação, enquanto resultado
de competição política ampla e legítima, como o objetivo das eleições e buscam analisar
como o agente regulador das eleições deveria tratar da legislação eleitoral anticompetitiva,
gerada por legisladores voltados para seus próprios interesses. Enfatizam os autores a
importância de se compreender como a legislação eleitoral constrói incentivos entre partidos,
candidatos, eleitores e terceiros interessados, e como tais normas poderiam ser usadas para
gerar resultados antidemocráticos ou mais democráticos.
Os autores da corrente conhecida como “ The Institucional Turn in Elections Law
Scholarship” (GERKEN e KANG, 2011, p. 86 e ss) pretendem avançar e estuar o processo de
elaboração das normas que regem o processo eleitoral e como este poderia ser aperfeiçoado,
141
propondo ferramentas para que sejam compreendidos e identificados os incentivos que
impactam o comportamento individual e partidário com força para dirigir a competição
política.
Os requisitos da democracia apreciados pelas cortes constitucionais e pelas
autoridades eleitorais autônomas no exercício de suas atribuições englobam uma dimensão
mais ampla que a proteção de direitos políticos individuais através da mobilização de
argumentos e fundamentos típicos para avaliação da esfera de direitos pela perspectiva da
autonomia privada. Na medida em que os conflitos levados à jurisdição constitucional e
eleitoral normalmente envolvem interesse público indisponível e o exercício de direitos
eleitorais em dimensão coletiva, o impacto das decisões tomadas alcança na maioria das vezes
efeitos transindividuais. Normalmente as questões discutidas buscam marcar posições,
defender interesses privados e partidários, de cunho político, com amplo impacto na esfera
coletiva dos direitos eleitorais e para o processo político como um todo.
Ao dar forma e significado à legislação eleitoral e ao seu conteúdo e, portanto, ao
regular o processo eleitoral, as cortes constitucionais e as autoridades especializadas lidam
com especificidades e aspectos políticos bastante particulares, pois lidam com a competência
para atuar nas fronteiras do exercício democrático. Ao delinear procedimentos e realizar
substantivamente os direitos eleitorais, tais instituições funcionam como salvaguardas das
estruturas da democracia, fortalecendo-a. Quando não o fazem, tornam ilegítimo o processo
eleitoral, bloqueiam o acesso dos interesses que permeiam o tecido social à arena adequada
para disputas e enfraquecem os pilares democráticos.
Os estudos sobre a governança eleitoral demonstram que não basta garantir
inclusão civil. O alcance da igualdade passa pelo empoderamento político efetivo de todos as
partes interessadas, é um processo intermediário que precisa ser percorrido, sustentado e
reconhecido como essencial à democracia A igualdade política efetiva - a garantia de
participação influente, o “nivelamento do campo de batalha político” e a garantia de reais
possibilidades de acesso a todos os interesses - não é uma questão apenas de garantir direitos
a minorias passivas que precisam de proteção judicial, mas de garantir mecanismos para que
as diversas minorias encontrem meios para proteger a si mesmas através do processo político
legitimo, para que façam suas demandas chegar às instâncias políticas adequadas (GERKEN,
2010).
142
O que se está começando a perceber é que, na prática, a existência de uma nova
forma de governança eleitoral, desempenhada por autoridade eleitoral autônoma com força
para regular e dar forma ao processo eleitoral, é capaz de induzir um ciclo virtuoso de
consolidação e aprofundamento democrático: quanto mais se tem eleições percebidas como
íntegras e legítimas, mais resistente e respeitado se torna o sistema de direitos e estável é o
equilíbrio social (NORRIS, 2014, p. 191 e ss).
Em outras palavras, quanto mais se tem eleições percebidas como íntegras e
legítimas, maior é a tendência de se utilizar de instituições e meios democráticos para
compatibilizar e resguardar o exercício de autonomia individual e da soberania popular, e para
alcançar a convivência social pacífica. Maior é a estabilidade do tecido social. A proteção da
democracia aprofunda a democracia. Nesse sentido, fica muito claro: o voto é fonte de
integração social e a qualidade das eleições é fator crítico para a estabilidade democrática.
4.1 Governança Eleitoral e regulação tradicional
O ato de votar é precedido pela fixação de uma série de normas e regras, sejam as
normas gerais e abstratas previstas na Constituição e na legislação eleitoral que definem as
condições estruturais para o exercício de direitos eleitorais, sejam as normas previstas para
cada eleição elaboradas pelo parlamento e pelos órgãos eleitorais responsáveis.
O ato de votar é precedido ainda do registro de partidos, de eleitores e de
candidatos da competição eleitoral e da implementação de toda a logística necessária para a
votação, apuração e validação de resultados. Posteriormente às eleições, existem muitas
outras etapas até que os resultados finais sejam proclamados, os candidatos diplomados e os
ciclos eleitorais encerrados.
Durante todo o ciclo eleitoral as pretensões e intervenções das partes interessadas
devem ser consideradas e respostas adequadamente fundamentadas devem ser dadas, sejam
estas através de decisões judiciais ou administrativas, ou ainda através de consultas destinadas
a ouvidorias ou qualquer outro procedimento de participação estabelecido. Informações sobre
eleições, sobre o processo eleitoral e sobre as atividades dos órgãos eleitorais devem estar
organizadas, disponíveis e acessíveis para todas as partes interessadas, pesquisadores e a
sociedade em geral. Tanto em razão da necessidade de participação informada, e, portanto,
influente, como em razão das exigências de transparência como fonte de credibilidade e
143
confiança na instituição gestora do processo eleitoral. Ao longo de todos esses complexos
procedimentos há uma série de elementos que precisam ser corretamente identificados para
que todo o processo eleitoral possa ser compreendido e para que seja possível fixar
parâmetros para sua legitimação, monitoramento e controle.
Em geral, apreciações sobre o sistema político e, mais especificamente, sobre o
sistema eleitoral, não costumam ir tão longe. Análises sobre o sistema político costumam
deter-se em aspectos relacionados à política, partidos, voto e proporcionalidade (PASTOR,
1999), com ênfase para os sistemas de governo e fórmulas eleitorais, enquanto análises
jurídicas sobre eleições costumam voltar-se para aspectos do direito eleitoral, sem que maior
atenção seja dada ao papel da governança eleitoral e sua respectiva importância para a entrega
de resultados eleitorais legítimos (HARTLYN, 2008).
Mesmo no Brasil onde a matéria eleitoral é objeto de um ramo especializado do
direito, o direito eleitoral, o enfoque que costuma ser dado à essa disciplina volta-se para seus
institutos jurídicos, discutindo-se os aspectos materiais e processuais do direito eleitoral, sob a
perspectiva de direitos subjetivos, principalmente enquanto direitos individuais e de defesa,
sem que sejam discutidos explicitamente os papéis das instituições envolvidas no processo
eleitoral e o impacto sistêmico das decisões tomadas nos processos.
Essa realidade vem mudando nas últimas décadas. A adoção generalizada de
eleições ao redor do globo, a constatação de desequilíbrios sociais associados às eleições
enfrentados pelas democracias emergentes ao longo da terceira onda democrática e os
escândalos e irregularidades envolvendo a apuração de resultados eleições em democracias
estabelecidas, como a controvertida apuração realizada na Flórida em 2000 durante a eleição
presidencial, são alguns dos principais fatores que contribuíram para colocar a governança
eleitoral e suas instituições na pauta de questionamentos e na agenda de pesquisa.
O estudo das “leis da democracia”, das instituições e dos procedimentos que
lidam com eleições, como campo autônomo de investigação, vem ganhando relevância. Ainda
que fosse possível imaginar a organização do processo eleitoral com níveis muito baixos de
irregularidades e fraudes, apenas a infraestrutura e a logística necessárias para sua realização,
no tempo adequado, e com os recursos necessários disponíveis, a um custo razoável, já
deveriam ser fontes de ampla atenção, pois tratam-se de procedimentos bastante complexos
(MOZZAFFAR e SHEDLER, 2002).
144
Em 2002, a governança eleitoral começou a ter seu objeto formalmente
delimitado. A International Political Science Association - IPSA, através de iniciativa
pioneira, consolidou artigos sobre a governança eleitoral em uma edição de seu periódico
International Political Science Review - volume 23, nº 1. Nessa publicação, Shaeen Mozaffar
e Andreas Schedler (2002), no artigo introdutório intitulado “The Comparative Study of
Electoral Governance – Introduction” sistematizaram um conceito de governança eleitoral
que vem sendo usado pela literatura política como referência desde então.
Em 2008, no artigo “Electoral governance matters: explaining the quality of
elections in contemporary Latin America”, Hartlyn, McCoy e Mustillo (2008) buscaram
demonstrar que a estrutura das instituições associadas à governança eleitoral impacta a
qualidade das eleições. O interessante para essa pesquisa é que o artigo utiliza como campo de
investigação os países da América Latina.
As considerações apresentadas nos dois artigos serão utilizadas como ponto de
partida para se estabelecer a relação existente entre a regulação eleitoral tradicional e as
transformações trazidas para a governança eleitoral contemporânea pelo uso de direito
regulador.
Compreendem Mozaffar e Schedler (2002, p.7) que a governança eleitoral pode
ser conceituada como o “conjunto de atividades relacionadas que envolve a elaboração da lei,
aplicação da lei e adjudicação da lei. Ela identifica a provisão de certeza procedimental para
assegurar a incerteza substantiva das eleições democráticas como a principal tarefa da
governança eleitoral. ”
No mesmo sentido, Hartlyn, McCoy e Mustillo (2008) definem a governança
eleitoral como “a interação entre normas constitucionais, legais e institucionais e práticas
organizacionais que determinam as normas básicas dos procedimentos eleitorais e da
competição eleitoral; organiza campanhas, alistamento eleitoral, votação e apuração; resolve
disputas e certifica resultados” (HARTLYN et al, 2008).
A incerteza substancial, enquanto resultado esperado para eleições legítimas,
pressupõe que a governança eleitoral assegure que as regras do jogo sejam respeitadas e que a
competição por cargos políticos seja legítima garantindo que quaisquer tentativas de excesso
no exercício de direitos, fraude ou manipulação sejam adequadamente tratados ou, em outras
palavras, que o processo eleitoral seja alinhado a princípios democráticos e à legislação
eleitoral, que respeite o devido processo eleitoral.
145
Em razão da complexidade envolvida, todo processo eleitoral traz imperfeições e
manter o grau de imperfeição dentro de parâmetros não significativos é a meta que se
apresenta. Sem a catalogação suficiente de dados sobre processos eleitorais e a definição de
parâmetros para sua aferição, os problemas de governança eleitoral, em geral, somente são
identificados quando o sistema eleitoral já teve a sua credibilidade ou integridade afetada.
Estas são algumas das razões que justificam a necessidade de mapeamento dos componentes
da governança eleitoral e de definição de indicadores relevantes para as etapas do ciclo
eleitoral, de forma que seja possível monitorá-los antes que a credibilidade ou integridade do
processo sejam abaladas (MOZZAFFAR e SHEDLER, 2002, p. 6 e ss).
Nesse sentido, o valor da governança eleitoral tende a ser percebido somente
quando ocorrem problemas ao longo do processo eleitoral: ou porque este passa
sistematicamente a incorporar deficiências, erros, inexatidões e irregularidades, como ocorre
em democracias estáveis, ou porque a complexidade de coordenar centenas de tarefas para
criar um ambiente estável para a competição eleitoral periodicamente afeta os resultados das
eleições, em razão de falhas e fracassos ao longo desse processo (MOZZAFFAR e
SHEDLER, 2002, p. 6).
A governança eleitoral, então, traz em si um paradoxo sob a perspectiva da
“institucionalização da incerteza”, na medida em que a garantia de incerteza substancial dos
resultados eleitorais pressupõe a garantia da certeza procedimental. Mozaffar e Shedler
(2002, p. 11) ressaltam que a principal tarefa da governança eleitoral decorre exatamente
desse paradoxo: “organizar a incerteza eleitoral através da garantia de certeza procedimental”.
Na mesma linha de pensamento, apontam Pastor (1999, p. 80) e Hartlyn (2008,
p.74) que a dimensão operacional e administrativa das eleições dificilmente é adequadamente
considerada. A estrutura e a logística das eleições não recebem a devida atenção. A
quantidade de múltiplas e diferenciadas atividades, aliada a prazos curtos e corridos, em
conjunto com sucessivas etapas encadeadas e ordenadas do ciclo eleitoral, tornam a
organização da logística das eleições bastante complexa sendo crítico para a credibilidade e
continuidade de eleições legítimas o papel da governança eleitoral.
A complexidade e as possibilidades de falhas nascem da quantidade de elementos
que precisam ser geridos e sincronizados dentro de um determinado espaço e tempo. Há
enorme esforço para agregar e legitimar a participação de todas as partes interessadas, no
prazo correto, em cada fase do ciclo eleitoral. A logística do processo eleitoral, com todas as
146
suas etapas e atividades, é, portanto, um dos fatores críticos para a legitimidade e o sucesso
das eleições. Mozzaffar e Schedler (2002, p. 6) avaliam que “esse papel é importante, mas
não é examinado e compreendido nas democracias estáveis. Mas apresentam especial
ressonância nas democracias emergentes, nas quais a manipulação eleitoral é deliberada e
sistematicamente fraudada por legisladores autoritários relutantes em abrir mão do poder”.
A governança eleitoral ainda tem sido considerada como atividade estritamente
operacional e técnica e as eleições como procedimento neutro que apenas organiza de forma
isenta a escolha de representantes eleitos, sem que sejam discutidos os papeis,
responsabilidades e incentivos das partes envolvidas, as etapas e os procedimentos adotados,
enfim, sua legitimidade substancial, no horizonte do estado democrático prospectivo que
possui uma pauta muito clara voltada para justiça social e dignidade da pessoa humana.
Estudos sobre a governança eleitoral objetivam preencher estas lacunas através da
compreensão de seus elementos e de seu significado para o processo de estabilização social e
para aprofundamento da democracia, assim como para encontrar e definir parâmetros para o
seu monitoramento e aperfeiçoamento. A governança eleitoral deve ser alvo de estratégias de
estudo que permitam questionamentos conceituais teóricos e metodológicos sobre seu
significado, sua localização institucional no sistema político-jurídico, com a desagregação de
seu conteúdo em procedimentos e variáveis estruturais pesquisáveis (MOZZAFFAR e
SCHEDLER, 2002, p.7).
A governança eleitoral sozinha não consegue assegurar boa representação política,
mas sem a boa governança eleitoral já se sabe que não é possível assegurar resultados
eleitorais íntegros e estabilidade social prolongada.
Realizadas estas considerações iniciais e considerando-se que a governança
eleitoral é a ampla gama de atividades que cria e mantém a estrutura institucional na qual
ocorre a competição eleitoral para escolha de representantes políticos, assinalam Mozzaffar e
Schedler (2002, p.7 e ss.) que é possível identificar três níveis para seu funcionamento:
elaboração de normas, aplicação de normas e adjudicação de normas. Registram ainda os
autores que acima do primeiro nível, a elaboração de normas, há as normas constitucionais
que definem quem tem competência para definir as normas para a governança eleitoral, sendo
este um ponto problemático em regimes de transição democrática.
Discutir a estrutura constitucional de sistemas eleitorais não é o objetivo dessa
etapa, mas sim compreender como a governança eleitoral pode ser decomposta e analisada e
147
ainda como a distribuição de competências a ela relacionada impacta o seu funcionamento.
Com este objetivo, a seguir, será apresentado quadro sistemático com a identificação dos três
níveis de governança eleitoral, conforme proposto por Mozzafar e Schedler (2002, p.8). Note-
se que este quadro é uma referência para o estudo pois a diferença de sistema e de legislação
eleitoral impacta bastante na distribuição dos elementos. Interessa aqui compreender os
níveis da governança eleitoral e conhecer os possíveis elementos de sua composição.
Quadro 1: Três níveis de Governança Eleitoral
Três Níveis de Governança Eleitoral
Níveis Elementos
1. Elaboração de normasEscolha e definição das principais regras do jogo eleitoral
(a) Normas da Competição Eleitoral - Fórmula eleitoral- Circunscrições eleitorais- Tamanho do parlamento- Calendário eleitoral- Direitos políticos
(b) Normas de Governança Eleitoral - Alistamento eleitoral- Registro de partidos de candidatos- Financiamento de campanhas e regulação- Observação das eleições- Modelo de cédula eleitoral- Seções eleitorais- Votação e apuração de votos- Órgãos de gestão eleitoral- Autoridades para disputas eleitorais
2 . Aplicação de NormasOrganização do jogo eleitoral - Registro de eleitores, candidatos e partidos
- Registro de observadores das eleições- Educação de eleitores- Organização eleitoral- Votação, apuração e proclamação de votos
3. Adjudicação de NormasCertificação dos resultados da eleição e solução dedisputas Recebimento de denúncias e
reclamações Processamento de feitosPublicação e implementação de decisões
Fonte: Mozzaffar e Shedler, 2002.
148
O nível Elaboração de Normas abrange a definição das normas da competição
eleitoral, que definem as condições estruturais do processo político, e as normas de
governança eleitoral, em sentido estrito, que definem as condições estruturais e
procedimentais do processo eleitoral. Nessa pesquisa, em nome da clareza conceitual e dos
objetivos que se pretende atingir nesse capítulo, as normas de governança eleitoral, em
sentido estrito, serão chamadas de normas de regulação eleitoral.
Mozaffar e Shedler chamam atenção para o fato de que estudantes de sistemas
eleitorais normalmente voltam-se para as consequências políticas das normas da competição
eleitoral - como por exemplo, para as normas que definem o direito de sufrágio, normas com
especificação dos critérios de representação, normas que definem a circunscrição eleitoral, ou
a definição da quantidade de cadeiras para o poder legislativo, tamanho do colégio eleitoral ou
sistemas de votação-, negligenciando completamente a importância das normas de regulação
eleitoral.
As normas de regulação eleitoral basicamente regulam a atuação das partes
interessadas - eleitores, candidatos, partidos políticos e terceiros interessados – e o
funcionamento do microssistema eleitoral: detalham os requisitos e operacionalizam as
condições para alistamento eleitoral, para a determinação de elegibilidade e inelegibilidade,
viabilizando ou não o registro de candidatos; detalham os requisitos e operacionalizam a
forma como será feita a observação e monitoramento do processo eleitoral, o financiamento
político e o acesso à mídia, como por exemplo as normas de prestação de contas partidárias e
de campanha, as normas de propaganda eleitoral, e ainda as normas que detalham o
funcionamento, procedimentos e operacionalização dos órgãos de gestão eleitoral e dos
órgãos de solução de disputas eleitorais.
O nível Aplicação de Normas tem por foco a administração e o funcionamento de
toda a logística do processo eleitoral, com vistas a estabelecer uma base institucional sólida
para a competição eleitoral e a votação.
Trata-se de mapear todas as etapas do processo, criar as condições para
operacionalizar a legislação eleitoral, criando meios para solução dos problemas que venham
a aparecer e integrar pessoas, atividades e prazos. A governança eleitoral, no nível de
implementação de normas, enfrenta como desafios gerenciar a eficiência administrativa, a
neutralidade política e a accountability pública. Tais desafios, pela natureza de cada um,
implicam na impossibilidade de otimizar qualquer um deles sem que os demais tenham
149
resultados reduzidos. A governança eleitoral cumprirá seu papel de dar credibilidade e
legitimidade ao processo eleitoral se, independente de ambientes de escassez material e de
desconfiança política, for capaz enfrentar tais desafios e encontrar uma forma para equilibrá-
los (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p.8).
A eficiência administrativa aparece como enorme desafio em razão da
complexidade e magnitude do processo eleitoral, da quantidade de atividades e tarefas e do
número de pessoas envolvidas, que precisam trabalhar de forma integrada e nos prazos
determinados. É exatamente no nível operacional que o processo eleitoral está sujeito a maior
quantidade de erros e falhas. Eleições implicam na maior mobilização popular em tempos de
paz e sua organização e condução envolvem uma logística complexa com severas restrições
de tempo que, para funcionar, dependem de um alto nível de coordenação e planejamento
estratégico (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p. 8 e ss).
Garantir sufrágio universal e igual chance de participação no processo eleitoral
implica, em primeiro lugar, em disponibilizar meios físicos para o exercício dos direitos
políticos de participação. Desde a implementação de condições para alistamento e votação,
aquisição de bens e serviços, passando pela contratação de pessoas em número suficiente e
com treinamento adequado, por exemplo, até a criação de condições reais para defesa de
direitos, para monitoramento e acompanhamento do financiamento político e da propaganda
eleitoral, tudo isso no prazo adequado.
A participação de todos implica na necessidade de criação de locais de votação
próximos dos eleitores, distribuídos em unidades diversas por todo o país, em meios para
inscrição e controle do cadastro eleitoral e partidário, implica ainda em logística complexa
para aquisição e distribuição de bens e serviços, para monitoramento e fiscalização de
partidos e candidatos, assim como para alocação de pessoas capacitadas para lidar com suas
tarefas e atribuições. Apenas o desafio físico para enfrentar barreiras geográficas já pode se
apresentar como impedimento muito significativo da universalização do sufrágio e para
exercício dos direitos políticos de participação.
A neutralidade política, enquanto manifestação de atuação imparcial perante todos
que tomam parte na competição eleitoral, aparece como desafio significativo para o processo
eleitoral na medida em que este fica exposto a permanentes interferências ilegítimas e
manipulações por partes interessadas com poder político ou econômico, seja através do
exercício de poder normativo, seja através de interferências diretas que podem impactar o
150
aspecto operacional, como por exemplo imposições ilegítimas de restrição orçamentária e de
legislação restritiva.
Como a busca de legitimação pelas urnas pode levar à manipulação do processo
eleitoral por autoridades no exercício do poder político que pretendem manter seus mandatos,
a autoridade eleitoral precisa pautar suas atividades pela transparência, integridade e justiça a
fim de demonstrar que não funciona apenas como uma marionete na reprodução das
condições do regime político, capaz de assegurar verdadeira incerteza substancial e certeza
procedimental para os resultados eleitorais (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p. 8 e ss). Há
diretrizes especificas para a conduta de gestores e dirigentes da autoridade eleitoral voltadas
para garantir a neutralidade política (IDEA, 2014, p. 23).
A eficiência administrativa e operacional reconhecida e a transparência das
atividades aparecem como fundamentos para a credibilidade da autoridade eleitoral, na
medida em que sustentam sua imparcialidade em relação às disputas políticas, e, portanto,
consagra-se como requisito do devido processo eleitoral. Interessante notar que falhas
operacionais podem ser percebidas pelas partes interessadas no processo eleitoral como
indícios de fraude ou abusos, ferindo a credibilidade do processo, a confiança nos resultados
eleitorais, e, portanto, colocando em questão a legitimidade de todo o procedimento. A
desconfiança política aliada à incompetência técnica pode causar enormes danos a todo o
procedimento eleitoral.
Uma governança eleitoral efetiva precisa ser bem-sucedida na tarefa de separar
aspectos operacionais de questões políticas, criando mecanismos adequados e diferentes tanto
para monitoramento operacional quanto para prevenção de fraudes e abusos políticos. E esse
tratamento diferente para problemas diferentes precisa ficar claro e ser bem compreendido por
todas as partes interessadas com a finalidade de mitigar a exposição permanente do processo
eleitoral a questionamentos relacionados à confiança e à segurança.
Imparcialidade, nesse sentido, não significa atuar de forma passiva e reativa, mas
sim dar tratamento equitativo às demandas e alinhar condutas com os princípios democráticos
contemporâneos. A neutralidade política em relação a todos os participantes da competição
eleitoral não significa que sua atuação seja neutra em relação a princípios e diretrizes
constitucionais. Esta, inclusive é uma das diferenças marcantes entre uma atuação conforme o
modelo de Estado Liberal e o modelo de Estado Democrático de Direito.
151
A autoridade eleitoral deve atuar de forma comprometida com a efetivação dos
direitos eleitorais, concebendo e implementando inclusive políticas públicas. Sua atuação,
por consequência, pauta-se por nível considerado de discricionariedade que somente pode ser
legitimada se forem estabelecidos os procedimentos adequados e correspondentes de
legitimação. Os mecanismos de accountability pública aparecem como os meios por
excelência para legitimação de sua atuação operacional, visto que são estes os mecanismos
que permitem aferir sua eficiência administrativa e sua imparcialidade política. A
accountability possui três dimensões essenciais: informação, motivação e incentivo
(enforcement), sendo que normalmente as autoridades eleitorais privilegiam apenas a
dimensão da informação. Apenas dar ciência de suas ações não é suficiente. As autoridades
eleitorais precisam explicitar a razão de suas escolhas e possuir meios para alinhar
comportamentos e punir desvios.
Nesse sentido, a construção de canais para participação efetiva das partes
interessadas, a abertura de espaço para participação da imprensa e para pesquisas acadêmicas
exige das autoridades eleitorais motivação e alinhamento permanente de suas ações com
princípios e normas constitucionais e eleitorais.
O nível Adjudicação de Normas visa a legitimidade processual com o julgamento
oportuno e imparcial das disputas e conflitos eleitorais, sejam estes decorrentes de
ambiguidades da legislação eleitoral ou de problemas operacionais ao longo de todo o
processo eleitoral. A previsão de mecanismos para compor conflitos e solucionar pendências
do processo eleitoral, assegurando às partes interessadas meios institucionalizados para defesa
de direitos, é etapa significativa para credibilidade e confiança nos resultados eleitorais e para
legitimidade de todo o processo (MOZZAFAR e SCHEDLER, 2002, p. 8 e ss).
A adjudicação de normas funciona como uma válvula de segurança para o
processo eleitoral: se a legislação eleitoral e a operacionalização de seus procedimentos não
forem capazes de garantir certeza procedimental e incerteza substantiva, os procedimentos
para resolução de disputas e conflitos e para certificação de resultados eleitorais devem
funcionar como mecanismos adicionais de legitimação dos procedimentos eleitorais na
medida em que forem capazes de restaurar e manter a confiança no processo eleitoral.
A legislação eleitoral presume-se ter sido elaborada através do devido processo,
sendo em princípio, legítima. No entanto, por se caracterizar a disputa eleitoral por ações
estratégicas, qualquer fase do ciclo eleitoral pode ser alvo de condutas e interpretações legais
152
contingentes e parciais pelas partes interessadas, o que atribui à atividade adjudicatória a
responsabilidade de funcionar como filtro de racionalidade deliberativa, alinhando a cada ato
e decisão as condutas e questionamentos da parte interessada aos princípios guias do devido
processo eleitoral.
4.2 Integridade das eleições como objeto da regulação eleitoral
A disseminação das eleições como forma de escolha de representantes, a
existência de conflitos políticos em diversos estados soberanos, as dificuldades associadas à
transição democrática e problemas transnacionais envolvendo corrupção e fraudes político-
econômicas são eventos que deram origem a um grupo crescente de pesquisadores que busca
compreender porque eleições falham e o que pode ser feito para alcançar a integridade das
eleições (NORRIS, 2014, p.10).
Na esteira desse debate, entram na pauta questões muito controvertidas sobre
direitos humanos, como por exemplo a possibilidade de regulação do financiamento do
dinheiro na política com a finalidade de equilibrar a competição versus a liberdade de
expressão; a moralidade eleitoral versus direitos individuais; o financiamento público/privado
de campanha com limites versus a liberdade de autodeterminação e a liberdade de expressão;
a legitimidade de um agente regulador eleitoral versus a decisão da maioria parlamentar, entre
muitas outras. Todas essas questões conduzem a debates sobre princípios normativos e sobre
direitos humanos (NORRIS, 2015, p. 4 e ss).
Os problemas associados com a escolha de representantes eleitos não são novos.
Fraudes, irregularidades e corrupção, entre muitas outras, são dificuldades que sempre
estiveram associadas a eleições. No entanto, a multiplicação de problemas da mesma natureza
em escala mundial e para além das fronteiras de estados soberanos, ao lado de clamores
substanciais de direitos humanos e de dignidade da pessoa humana, questões do
constitucionalismo contemporâneo, levaram para uma escala mais ampla os problemas
recorrentes das eleições.
As fraudes, as falhas comuns, as irregularidades e ilegalidades que
constantemente fizeram parte do histórico das eleições, que antes eram consideradas como
problemas técnicos isolados e pontuais de procedimentos que deveriam atender apenas a uma
legitimidade formal, passaram a ser objeto de estudo relevante e identificadas como
153
fenômenos com potencial para influenciar não só a governança eleitoral como também a
governança democrática, atingindo sua legitimidade substancial.
A governança eleitoral e a corrupção política associada, na virada do novo século,
deixou de caracterizar preocupação de natureza doméstica para os diversos estados soberanos
para ser alçada à pauta permanente de organismos internacionais e organizações não
governamentais.
A constatação desses fenômenos resultou em uma agenda emergente de pesquisa
sobre integridade eleitoral, sobre questionamentos a respeito de procedimentos e instituições
envolvidos no processo eleitoral e sobre os potenciais vínculos que estes poderiam ter com a
governança democrática, com o funcionamento legítimo do sistema político e com a
estabilidade social.
Atualmente, caminha-se para o consenso de que embora as eleições não
caracterizem condição suficiente para o exercício da democracia, constituem-se como
condição necessária (NORRIS, 2015, p. 4). Embora eleições com integridade no sentido
contemporâneo sejam um objeto de estudo novo, a experiência prática e as pesquisas em
andamento direcionam-se no sentido de evidenciar que um determinado tipo de processo
eleitoral, aquele conforme normas e parâmetros internacionais de direitos humanos, possui
potencial para induzir e aprofundar processos democráticos. E, de forma oposta, eleições
conduzidas com desrespeito aos padrões internacionais de direitos humanos possuem
potencial para induzir e aprofundar crises do sistema político (GLOBAL COMISSION ON
ELECTIONS, 2012).
Eleições fazem diferença para a democracia (MOZAFFAR e SHEDLER, 2002,
p.5) e a governança eleitoral estabelecida também (HARTLYN, 2008, p.74). A noção de
integridade eleitoral ou de eleições íntegras nasce associada a esse novo contexto de maior
inclusão política, com acirramento da complexidade da convivência social, e de maiores
desafios impostos pela dinâmica global.
4.2.1 Conceito de integridade eleitoral
Eleições são a materialização e operacionalização dos direitos políticos de
participação, dos direitos eleitorais. Direitos eleitorais são direitos políticos, que integram a
categoria de direitos humanos, e pretendem garantir a todos os cidadãos de uma dada
154
comunidade a realização de eleições livres, justas, genuínas e periódicas através do sufrágio
direto, universal, livre e secreto (IDEA, 2010, p.12).
Estão abrangidos no conceito de direitos eleitorais o direito de votar e de
concorrer a cargos eletivos através de eleições periódicas, justas, livres e genuínas, através do
voto universal, livre, secreto e direto; o direito de ter acesso, em condições de igualdade a
cargos públicos eletivos; o direito de associação política para fins eleitorais; e outros direitos
diretamente correlacionados como o direito de liberdade de expressão, de liberdade de
associação e de petição, e ainda o direito de acesso à informação em matéria político eleitoral.
Os direitos eleitorais expressam o conjunto de direitos políticos de participação que garantem
aos cidadãos a participação na condução de matérias públicas ou através de representantes
eleitos livremente (IDEA, 2010, p. 12 e ss).
Importante ressaltar que os princípios e garantias relativos ao direito de acesso à
justiça previstos nos instrumentos internacionais de direitos humanos aplicam-se também aos
direitos eleitorais e aos órgãos judiciais constituídos para proteção e defesa dos direitos
eleitorais. Entre esses princípios, cabe distinguir o direito a uma decisão efetiva perante uma
corte imparcial e previamente constituída, o direito ao devido processo legal e à audiência
pública na qual a defesa de direitos eleitorais seja garantida a todas as partes interessadas de
forma igual.
Existem diversos tratados e convenções internacionais que expressamente fazem
previsão dos direitos políticos eleitorais como parte integrante dos direitos humanos e,
portanto, fornecem princípios e diretrizes universais para a delimitação do conceito de
integridade eleitoral.
A existência de parâmetros internacionais bastante claros e já normalizados sobre
o exercício de direitos políticos em geral, e sobre eleições em particular, contidos nos tratados
e acordos internacionais sobre direitos humanos, ratificados por parcela significativa de
estados, oferece um sólido ponto de partida para se estabelecer um conceito de integridade
eleitoral (NORRIS, 2014; IDEA, 2010 e GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012).
No quadro, a seguir, podem ser identificados alguns dos principais princípios
previstos em acordos e tratados internacionais sobre eleições.
155
Quadro 2: Princípios relacionados aos direitos eleitorais previstos em convenções e tratados internacionais.
PARÂMETROS INTERNACIONAS PARA ELEIÇÕESPRINCÍPIO INTERPRETAÇÃO
Direitos e oportunidades de participar das atividades do Estado
Referem-se a direitos e oportunidades de participar nas atividades do Estado através de partidos políticos, de organizações da sociedade civil e através do voto para escolha de representantes eleitos
Direitos e iguais oportunidades de voto Tais direitos e oportunidades devem sujeitar-se apenas a restrições razoáveis, como, por exemplo, a idade mínima para qualificação do eleitor
Direitos e oportunidades de ser eleito
Tais direitos e oportunidades relacionam-se com a livre escolha de candidatos, sem restrições discriminatórias, como por exemplo, a utilização de requisitos não razoáveis de filiação política, educacional ou residencial
Eleições periódicasRelaciona-se com a definição de mandatos e a definição objetiva de prazos para os eventos do ciclo eleitoral
Sufrágio universalO direito de votar deve ser o mais inclusivo possível para todos os cidadãos adultos
Sufrágio igualA relação uma pessoa/um voto afeta a delimitação da circunscrição eleitoral e a distribuição de assentos correspondentes na eleição de representantes eleitos
Voto secretoProibe a conexão entre a identidade do eleitor e as escolhas realizadas em sua votação, para previnir coerção, corrupção ou intimidação.
Liberdade de discriminação e igualdade perante a lei
Proibe discriminação baseada em raça, cor, sexo, lingua, religiao, opiniao politica, nacionalidade, propriedade, nascimento, ou qualquer outro status , essencial para garantir que candidatos, partidos e eleitores possam participar em igualdade de condições
Igualdade entre homens e mulheres
Inclui assegurar que as mulheres tenham iguais oportunidades de participação em eleições. A CEDAW reconhece inclusive o uso de medidas temporárias voltadas para acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres, tal como políticas de quota de gênero.
Liberdade de associação
Inclui o direito de formar partidos politicos e outras organizações civis, embora sejam reconhecidas como legítimas pelo ICCPR restrições relacionadas à garantia de segurança nacional, ordem pública e segurança pública.
Liberdade de assembleia
Inclui direitos dos candidatos relacionados à organização de encontros de campanha eleitoral embora algumas restrições sejam reconhecidas pelo ICCPR como razoaveis em face de interesses de segurança nacional ou ordem pública
Liberdade de locomoçãoReconhece que candidatos devem ser livres para fazer campanha sem restrições e os eleitores devem ser livres para exercerem seu direito de voto
Liberdade de opinião e de expressão Esse direito aplica-se à imprensa, mas também a partidos e candidatos
Direito à segurança da personalidadeEsse direito inclui proibição de injuria, intimidação, prisao arbitrária ou detenção, incluindo candidatos e ativistas, durante as campanhas
Transparência e direito à informaçãoAutoridades eleitorais possuem a obrigação de dar transparência às suas atividades, assim como todas as partes interessadas, tais como, partidos políticos, candidatos e a sociedade civil organizada
Prevenção de corrupção
Os Estados são obrigados a prevenir a corrupção, inclusive a que ocorre durante o processo eleitoral. A UNCAC enfatiza que os Estados devem adotar medidas para fomentar a transparencia no diancimento de campanhas e de partidos políticos.
Estado de direitoInclui igualdade perante a lei, a independencia e a imparcialidade do Poder Judiciário
Direito à remedio efetivoInclui acesso à revisão judicial para pretensões relacionadas às eleições, para garantir a confiança publica no processo eleitoral e em seus resultados
Direito à audiência justa e públicaEstados são obrigados a fornecer tratamento eficiente e temporalmente adequado através de tribunais independentes e imparciais
Estados devem adotar as medidas necessárias para efetivação de direitos
Estados são obrigados a adotar as medidas necessárias para dar efetividade a direitos no ICCPR, tanto abstendo-se de restringir direitos como protegendo-os
Fonte: Domenico Tuccinardi, ed. 2014. International Obligations for Elections: Guidelines for Legal Frameworks. Internationa IDEA: Stockholm. Capítulo 4
Os princípios apresentados na tabela possuem alta carga de abstração, como é
característico da linguagem de acordos e tratados internacionais, e por isso torna-se necessário
a contextualização e densificação de seus conteúdos, a tradução desses princípios em normas
e procedimentos aplicáveis e verificáveis em cada país (NORRIS, 2015, p. 6-7).
A análise das normas, procedimentos e práticas relacionados a eleições é premissa
para compreensão do porquê eleições são bem-sucedidas e porque eleições falham, ou seja, é
156
preciso que o fenômeno em observação possa ser descrito, operacionalizado e analisado.
(NORRIS, 2014 e GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012).
Pippa Norris (2014), no livro Why Electoral Integrity Matters, propõe que o
conceito de integridade eleitoral seja construído de forma ampla a partir dos princípios
previstos em normas e tratados internacionais, portanto com fundamento em parâmetros
universais de direitos humanos, aplicados globalmente, vinculantes para todos os países
signatários, com aplicação durante todas as fases do ciclo eleitoral. Registre-se por hora que
dois são os elementos relevantes: o conjunto de princípios que servem de vetor para delinear
uma governança eleitoral legítima e o que se compreende por ciclo eleitoral.
Como explica a autora, essa forma de conceituar integridade eleitoral permite a
construção de uma base sólida comum para avaliação das eleições de acordo com padrões
normativos universais que alcançaram amplo consenso. A adoção dos direitos humanos como
parâmetro para avaliação de eventos de competição política permite, ainda, o detalhamento e
a consolidação de diretrizes sobre aspectos práticos do processo eleitoral, à medida que
consensos sejam alcançados por órgãos internacionais de observação e apoio eleitoral.
A integridade eleitoral seria então atributo de eleições realizadas conforme os
parâmetros previstos nas normas internacionais e que, portanto, respeitam direitos humanos,
por outro lado, irregularidades eleitorais seriam atributos de eleições que falham em atender
tais parâmetros (NORRIS, 2015, p. 4).
Em setembro de 2012, em razão da relevância do tema, representantes da Global
Comission on Elections, Democracy and Security (GLOBAL COMISSION ON
ELECTIONS, 2012), comissão de especialistas criada pela International Institute for
Democracy and Electoral Assistance - International IDEA e pela Kofi Annan Foundation,
reuniram-se e publicaram relatório no qual foi delimitado e fixado um sentido comum para o
que se compreende por eleições com integridade:
“Definimos eleições com integridade como qualquer eleição baseada nos princípios democráticos do sufrágio universal e da igualdade política conforme refletidos nos padrões e tratados internacionais, e que seja profissional, imparcial e transparente em sua organização e administração durante todo o ciclo eleitoral. ”
Como visto, os tratados e convenções internacionais especificam padrões
internacionais básicos de integridade eleitoral. Seu principal fundamento está no artigo 21 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
157
“Artigo 21: 1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto. ”
Desse artigo decorrem direitos e princípios inequívocos tais como o de que a
autoridade governamental legitima decorre da vontade do povo expressa através de eleições
legítimas realizadas em intervalos periódicos, com sufrágio universal e igual, através de voto
secreto e livre.
O Pacto Internacional sobre Direitos Políticos e Civis, adotado pela XXI Sessão
da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, apresenta orientações
específicas que colaboram para delimitar o conceito de integridade eleitoral em especial as
contidas nos artigos 1, 2, 3, 25 e 26 com a previsão autodeterminação, de tratamento
igualitário e sem discriminação de qualquer natureza, de participação nos assuntos públicos
direta ou indiretamente por representantes livremente escolhidos, de votar e ser votado em
eleições periódicas, autênticas e realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto
secreto, que assegurem a manifestação de vontade livre dos eleitores.
Posteriormente outras normas de direitos humanos com previsões mais explícitas
e detalhadas foram publicadas. Na Conferência de Cooperação e Segurança na Europa -
CSCE de 1990 (OSCEOSCE, 1990) foi elaborado o documento de Copenhagen com previsão
especifica para eleições livres em intervalos regulares, eleição popular para todos os assentos
em pelo menos uma das câmaras; sufrágio universal e igual, o direitos de estabelecer partidos
políticos e sua clara separação do estado, a realização de campanhas em ambiente livre e
justo, livre acesso à imprensa, voto secreto com contagem e apuração conduzida de forma
honesta, divulgação pública dos resultados apurados, garantia de instalação dos vencedores e
do exercício de seus respectivos mandatos.
O Código de Boa Conduta em Matéria Eleitoral apresentado pela Comissão de
Veneza de 2002 (VENICE COMMISSION, 2002) detalha questões relativas às eleições,
apresentando diversas implicações relacionadas ao sufrágio universal e igual, abordando
desde questões como a igualdade de contagem de votos, passando pela igualdade de
oportunidades, a livre formação da vontade e correspondente expressão pelo eleitor, até a
158
necessidade de combate à fraude eleitoral e de organização de eleições verdadeiramente
democráticas e periódicas.
No mesmo sentido, as Nações Unidas – UN e a Organização dos Estados
Americanos – OEA também publicaram normas com diretrizes e orientações sobre eleições.
A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003, em seu artigo 7
(UNDOC) estabelece:
“Artigo 7 – Setor Público2. Cada Estado Participante considerará também a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, a fim de estabelecer critérios para a candidatura e eleição a cargos públicos. 3. Cada Estado Participante considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e administrativas apropriadas, em consonância com os objetivos da presente Convenção e de conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, para aumentar a transparência relativa ao financiamento de candidaturas a cargos públicos eletivos e, quando proceder, relativa ao financiamento de partidos políticos. 4. Cada Estado Participante, em conformidade com os princípios de sua legislação interna, procurará adotar sistemas destinados a promover a transparência e a prevenir conflitos de interesses, ou a manter e fortalecer tais sistemas. ”
A Resolução 63/163 de 12 de abril de 2012, publicada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas reconhece que “a democracia é um valor universal baseado na livre expressão
da vontade do povo para determinar seus próprios sistemas políticos, econômicos, social e
cultural e a completa participação em todos os aspectos de seu funcionamento. ” Além de
explicitar seu comprometimento com o princípio democrático a resolução estabelece ainda a
responsabilidade dos estados membros para “garantir eleições livres e justas, livre de
intimidações, coerção e adulteração na contagem de votos e que todos esses atos sejam
punidos adequadamente”.
Na abordagem apresentada para construção do conceito de integridade eleitoral,
as convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos são o ponto de partida, são o
vetor de orientação para o desenvolvimento de ações e procedimentos concretos com objetivo
de alcançar a integridade e reduzir irregularidades durante todo o ciclo eleitoral.
Problemas de integridade eleitoral com capacidade para danificar a legitimidade
de eleições abrangem tanto irregularidades decorrentes de atos ilícitos como de atos
formalmente legais; decorrem das diretrizes estabelecidas em normas que podem restringir
demais direitos ou de normas que não os protegem adequadamente; podem ser resultado tanto
159
de escolhas políticas como decorrentes de problemas de gestão, da falta de recursos ou de
falhas técnicas. Como a integridade eleitoral é um atributo complexo, multidimensional e
estreitamente ligado ao constitucionalismo contemporâneo e aos direitos humanos, a
especificação de seu conteúdo e alcance ainda carece de maior desenvolvimento e enfrenta
muitas limitações pela ausência de acordos internacionais sobre temas eleitorais relevantes.
Questões como financiamento político, propaganda eleitoral, competências e funções
associadas à gestão das eleições, entre muitos outros, são temas novos que ainda não foram
suficientemente detalhados e descritos em normas internacionais de ampla aceitação, embora
diversas pesquisas e diretrizes com esta finalidade estejam em elaboração. (NORRIS, 2014)
A definição de um conceito de integridade eleitoral consistente e de aceitação
ampla, conforme normas internacionais, é o primeiro marco significativo de esforços no
sentido de se estabelecer um parâmetro sólido para aferição de legitimidade da governança
eleitoral e democrática. O passo seguinte é a tradução de tais princípios e diretrizes em formas
concretas de governança eleitoral, em ações, políticas públicas e procedimentos concretos
passíveis de monitoramento.
4.2.2. Porque adotar a integridade das eleições como objetivo a ser perseguido pela regulação eleitoral?
Atualmente, diversos órgãos internacionais - tais como as Nações Unidas/ONU, a
Organização dos Estados Americanos/OEA, a Organização para Organização e Segurança da
Europa/OSCEOSCE, a Comissão Europeia para a Democracia / Venice Commission -,
organizações não governamentais - como por exemplo a International Institute for
Democracy and Electoral Assistance – IDEA e o Carter Center -, estudos acadêmicos e
pesquisas estão voltados para compreender porque eleições falham e o que pode ser feito para
que processos eleitorais se tornem mais íntegros.
Essas ações integram esforços direcionados para a redução de conflitos políticos e
de instabilidades sociais, com as principais finalidades de ampliar a convivência democrática
e promover as condições essenciais para plena concretização de direitos humanos e da
dignidade da pessoa humana. Estas são as razões intuitivas que justificam a adoção da
integridade eleitoral como parâmetro de adequação para realização de eleições.
Argumentos racionais para a adoção da integridade das eleições como parâmetro
são apresentadas por Pippa Norris (2014) no livro intitulado Why Electoral Ingegrity Matters.
160
Este livro é o primeiro de uma série de três obras que consolidarão os resultados do projeto
The Electoral Integrity Project, em desenvolvimento ao longo de cinco anos, com
pesquisadores de diversas partes do mundo e dirigido pela pesquisadora. O projeto busca
compreender porque eleições falham, o que pode ser feito a respeito e de que forma a
qualidade das eleições se relaciona com a estabilidade democrática.
No primeiro livro publicado pela equipe do projeto, a tese defendida é a de que a
qualidade procedimental da competição eleitoral faz diferença para o comportamento político
e para o comportamento das massas. A pesquisadora apresenta um modelo sobre integridade
eleitoral, cujas hipóteses foram testadas por pesquisas empíricas, para demonstrar que a
qualidade das eleições e da democracia apresenta impactos significativos para o
comportamento de agentes do sistema político.
Embora não seja objeto da presente pesquisa discutir o modelo e os respectivos
fundamentos apresentados pela autora, entende-se que sua breve apresentação colabora para
imediata compreensão do vínculo estabelecido entre a qualidade das eleições/qualidade da
democracia e a estabilidade social, em contexto de complexas relações humanas determinadas
pela radical fragmentação do que se compreende por bem comum, consequência da
universalização do sufrágio e da ampla inclusão política ocorrida ao longo do século XX e
especialmente nos últimos trinta anos.
A identificação desse vínculo contribui decisivamente para demonstrar a
importância de se estabelecer a integridade das eleições como horizonte regulatório para
alinhar interesses estratégicos a objetivos cooperativos, para orientar as relações entre
instituições de conflito e instituições de consenso na esfera eleitoral, pois fica muito claro que
não é qualquer tipo de eleição que atende ao princípio democrático contemporâneo.
O modelo sequencial apresentado retrata uma reação em cadeia a partir da
percepção pública sobre a qualidade das eleições e da democracia que pode culminar com
maior participação popular no processo político e estabilidade social; ou em protestos
populares com graus de intensidade diferenciados que tem por consequência alterações da
legislação política e eleitoral para inserir reformas e adequações ao sistema político eleitoral;
ou ainda em protestos vigorosos e turbulentos que levam a profundos problemas sociais que
podem resultar inclusive na ruptura do regime vigente.
PERCEPÇÃO PÚBLICA DE INTEGRIDADE ELEITORAL E DE IRREGULARIDADES ELEITORAIS
LEGITIMIDADE POLÍTICA
COMPARECIMENTO ÀS URNAS
DEMONSTRAÇÕES PACÍFICAS DE PARTICIPAÇÃO
PROTESTOS VIOLENTOS
rotina de retroalimentação (feedback loop) rotina de retroalimentação (feedback loop)
QUALIDADE DAS ELEIÇÕES E DA DEMOCRACIA
CONCESSÕES INSTITUCIONAIS, REPRESSÃO ESTATAL OU MUDANÇAS DE REGIME
161
Ou seja, a percepção pública de integridade eleitoral está diretamente relacionada
com sentimentos de legitimidade política e essa percepção tem consequências muito
significativas para o processo políticos.
A seguir serão apresentadas breves considerações sobre alguns aspectos do
modelo central de integridade eleitoral especialmente significativos para a pesquisa
desenvolvida (NORRIS, 2014, p. 11).56
Figura 1: Modelo Central de Integridade EleitoralFonte: Norris, 2014.
A premissa inicial do modelo é a de que a comunidade internacional se engajou
no fortalecimento da integridade eleitoral em razão da proliferação dramática de competições
multipartidárias aliada ao aparecimento persistente de irregularidades eleitorais semelhantes
ao redor do mundo (NORRIS,2014, p. 11).
Dessa premissa decorrem três proposições:
1) onde as disputas falham no atendimento a parâmetros internacionais de
integridade, espera-se que cidadãos comuns percebam as falhas eleitorais;
2) espera-se que a percepção massiva de integridade eleitoral tenha impacto na
legitimidade política, através do fortalecimento da confiança pública nas instituições
eleitorais, do senso de efetividade da política externa e da satisfação com a performance da
democracia;
3 ) a percepção pública de integridade eleitoral (sentimentos de legitimidade
política) tem impacto no ativismo político: tanto pode aumentar o comparecimento de
56 O modelo central sobre integridade eleitoral não foi apresentado na presente pesquisa de forma completa. Para apresentação integral do modelo e de todas as hipóteses testadas ver NORRIS, 2014.
CONDIÇÕES DE MEDIAÇÃO
162
eleitores às urnas enquanto reduz a propensão para participar de ações e protesto ou conflitos
violentos, na medida em que acomoda todos os grupos através do canal eleitoral, reduzindo os
ressentimentos subjacentes que desencadeiam a violência social, as revoltas populares e
guerras civis; como sua ausência, ou seja, a existência de irregularidades eleitorais, pode
desencadear a redução do comparecimento às urnas e favorecer o aparecimento de conflitos
sociais, na medida em que os canais eleitorais não são eficientes para acomodar os interesses
divergentes.
As consequências desse processo em cadeia podem ser diversas a depender da
capacidade dos regimes políticos estabelecidos em cada estado soberano para dar respostas ao
descontentamento das massas. Os efeitos da integridade eleitoral e das irregularidades
eleitorais não são sempre automáticos ou diretos, pois dependem do grau de maturidade
democrática e institucional de cada país para lidar com as circunstâncias políticas, ou seja,
depende das condições de mediação estabelecidas.
Nas democracias estáveis, a preocupação pública persistente sobre irregularidades
eleitorais tais como escândalos financeiros ou fraudes eleitorais podem levar a protestos
públicos que terão como resultado concessões da classe política, que poderão culminar até
mesmo na implementação de reformas institucionais e procedimentais.
Em ambientes menos estáveis, a resposta a protestos públicos decorrentes de
irregularidades eleitorais pode ser a catalizadora para atos de repressão com o evidente
objetivo de calar as críticas e a livre manifestação da oposição. No limite, o descontentamento
popular pode levar até mesmo a transição de regime.
A primeira hipótese do modelo sugere que eventos do mundo real modelam as
percepções públicas. Falhas nas atividades das instituições democráticas e nos processos
democráticos oferecem uma base racional para percepções públicas sobre processos eleitorais
fraudulentos, desonestos ou injustos.
Diferente das atividades políticas que ocorrem no parlamento e no poder
executivo, com alta complexidade normativa e procedimental sem a participação direta do
cidadão, eleições também são eventos com alta complexidade, mas que possuem uma
interface direta para participação de todos os cidadãos, com razões e fundamentos de justiça
ou injustiça discutidos pelos candidatos e partidos, de forma concentrada, no período eleitoral,
e com ampla cobertura e divulgação pela mídia.
163
Cada cidadão tem a oportunidade de experimentar diretamente eventos ligados às
eleições, desde o alistamento eleitoral, o registro de candidatos e partidos, a propaganda
política, a divulgação de pesquisas eleitorais, até a compra de votos, falhas na votação ou a
devida solução de problemas.
Embora, os cidadãos possam saber ou se importar muito pouco com a legislação
eleitoral, com aspectos abstratos ou técnicos de sua realização, a experiência direta de cada
cidadão com as eventos eleitorais, a manifestação de formadores de opinião, de líderes
partidários, de organizações não governamentais, entre outros fatores, modelam uma
percepção pública mais informada sobre integridade ou irregularidades eleitorais, do que
sobre outras atividades políticas, oferecendo oportunidades e experiências diretas de
integridade ou irregularidade do processo eleitoral para cidadãos e demais interessados.
A segunda hipótese do modelo sequencial pressupõe que a percepção pública de
integridade eleitoral induz sentimentos mais amplos de legitimidade política, sendo este um
indicador crítico para a qualidade da democracia, na medida em que ampliam os sentimentos
dos cidadãos sobre a legitimidade dos políticos eleitos, das instituições democráticas e de seus
princípios e procedimentos. Se a integridade eleitoral tem a capacidade de fomentar a
aceitação popular dos resultados das urnas e das ações dos representantes eleitos, as
irregularidades eleitorais possuem o efeito oposto podendo enfraquecer sentimentos de
legitimidade política e afetar a confiança no processo eleitoral, nas autoridades eleitorais e nos
representantes eleitos.
A legitimidade e estabilidade política dependem de sentimentos de pertencimento
a uma comunidade nacional, de apoio aos princípios democráticos, de avaliações positivas
sobre a performance da democracia, de confiança nas instituições do estado – entre estas os
partidos políticos, as autoridades eleitorais e os representantes eleitos para cargos públicos
(NORRIS, 2014, p. 13).
A principal conclusão da pesquisa realizada por Pipa Norris, em colaboração com
diversos outros pesquisadores e após variados testes empíricos descritos na obra, é a de que a
qualidade das eleições teria capacidade para influenciar atitudes, a percepção de legitimidade
democrática e o padrão de participação política - comparecimento às urnas e participação em
movimentos ativistas/protestos.
A pesquisa sugere que há um “elo perdido” negligenciado entre a qualidade das
eleições/democracia e o engajamento político, entre eleições e a manifestação das massas
164
(NORRIS, 2014, p. 196). A legitimidade e a estabilidade do regime democrático relacionam-
se com a integridade das eleições, enquanto que manifestações populares e revoltas sociais
seriam resultado indireto de irregularidades eleitorais.
Portanto, a integridade eleitoral teria alcance mais amplo do que votações
eleitorais pontuais. A integridade das eleições ou falhas associadas a eleições poderiam
potencializar efeitos positivos ou negativos sobre o funcionamento do sistema político com
consequências bastante drásticas e inversas, estabilidade social ou acirramento do conflito
social.
No mesmo sentido, vale registrar as conclusões da reunião realizada em 2012 pela
Global Comission on Elections, Democracy and Security (GLOBAL COMMISSION ON
ELECTIONS, 2012, p. 3 e ss). O relatório elaborado durante o encontro registra que a
governança democrática, e, portanto, a estabilidade social, depende de paz e segurança, do
desenvolvimento econômico e do estado de direito com respeito aos direitos humanos, e,
portanto, às suas instituições. Registra ainda que a preservação da governança democrática no
estado democrático de direito depende diretamente da governança eleitoral direcionada para
garantia de integridade eleitoral, na medida em que eleições são um dos pilares da
democracia, pois determinam quem tem acesso ao poder político e de que forma. Eleições
íntegras forjam o elo de legitimidade entre os cidadãos e o sistema político.
Embora tais relações não estejam completamente identificadas, descritas,
comprovadas e normalizadas, já se sabe que uma governança eleitoral deficiente mina alguns
dos pilares da governança democrática e ameaça sua estrutura a partir de dentro, na medida
em que afasta suas salvaguardas e permite que interesses estratégicos contaminem o sistema
de direitos minando sua legitimidade e colocando em risco o seu funcionamento.
A democracia, o desenvolvimento econômico e a segurança pública dependem de
eleições íntegras. Onde existe integridade nas eleições os pilares da democracia são honrados:
há igualde política substancial, os cidadãos escolhem de fato seus representantes e esses
representantes prestam contas de seus atos – partidos políticos e campanhas políticas são
regulados para funcionar a servido de princípios democráticos. Sem integridade eleitoral e
sem regulação há desequilibro da competição eleitoral: somente acessam cargos políticos
aqueles que possuem influência política ou econômica, os cidadãos não conseguem de fato
escolher seus líderes visto que estes não possuem chances reais de participar da competição
política, não há transparência nem monitoramento efetivo com a correspondente
165
responsabilização na condução de atividades partidárias e de campanhas eleitorais, sendo por
todas essas razões negada a possibilidade de igual participação a todos para influenciar o
processo político (GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 4).
Confiança e credibilidade por parte dos cidadãos nas eleições são os atributos que
garantem aos governantes eleitos legitimidade substancial. Eleições apenas formalmente
legitimas ameaçam a integridade do tecido social pois impede a circulação de poder político
substancialmente legitimo e a legitima ordenação de pautas para políticas públicas. Eleições
dão vida e tornam concretos parte dos direitos humanos previstos na Declaração Universal
dos Direitos dos Homens e na Convenção de Direitos Civis e Político e criam condições para
implementação dos demais.
A habilidade democrática para solucionar conflitos e compor interesses de forma
pacífica pressupõe eleições íntegras, ou seja, pressupõe reais condições fazer chegar à esfera
política representantes dos diversos interesses sociais e a correspondente prestação de contas.
A integridade do processo eleitoral é, portanto, catalizadora do aprofundamento
democrático e da deliberação pública legítima (NORRIS, 2014, p. 163 e ss), sendo esta a
razão pela qual a integridade das eleições justifica-se como vetor de orientação para
realização e avaliação do processo eleitoral, durante todo o seu ciclo.
4.3 Regulação, jurisdição e ineficiência: lacunas de legitimidade no processo eleitoral contemporâneo como fonte de instabilidade política
A tendência para utilização de instituições e mecanismos judiciais para gestão do
processo eleitoral e para solução das disputas eleitorais teve início no final do século XIX e
firmou-se ao longo do século XX.
A transferência de competências para organizar e compor conflitos do processo
eleitoral a membros do poder judiciário justificou-se pela necessidade de se afastar ou pelo
menos reduzir a influência de interesses políticos na condução das eleições a fim de que seus
resultados pudessem ter credibilidade.
A institucionalização de meios e procedimentos judiciais para solução de litígios
eleitorais trouxe maior segurança jurídica para os sistemas políticos e permitiu a
institucionalização de práticas objetivas voltadas para a estabilização democrática. A forma
jurisdicional de resolver litígios em matéria política trouxe racionalidade e segurança ao
procedimento diferenciando-os dos meios e procedimentos políticos de resolução de conflitos,
166
uma vez que os procedimentos e argumentos disponíveis eram diferentes para o poder
judiciário e para o poder legislativos.
Durante a maior parte do século XX, a jurisdição caracterizou-se como uma das
principais formas de regulação eleitoral.
A consolidação e sofisticação dos meios constitucionais e legais para solução de
disputas políticas eleitorais, a partir da terceira onda de democratização ocorrida no final do
século XX, principalmente em democracias emergentes, colaboraram para fortalecer o papel
de protagonista de órgãos eleitorais na consolidação de valores e procedimentos
democráticos.
O protagonismo de cortes eleitorais especializadas teve por fundamento a entrega
de soluções de igualdade, a preservação da liberdade de expressão, a mitigação das
assimetrias de informação no processo eleitoral, o combate a fraudes e abusos, enfim,
contribuiu para o livre e justo exercício formal dos direitos políticos eleitorais. As cortes
especializadas em matéria eleitoral, nesse sentido, alçaram-se à condição de pedras angulares
da democracia ao assegurar legalidade e confiança no processo eleitoral.
No mesmo sentido, a história da América Latina de forte ingerência política sobre
as eleições fez com que o processo político necessitasse de salvaguardas especiais com o
objetivo de garantir eleições justas e confiáveis. A fórmula encontrada para cumprir esse
objetivo seguiu a tendência adotada em outros países de entregar a cortes judiciais a
competência para cuidar do processo eleitoral (ISSACHAROFF, 2010, p. 978).
Nos países dessa região esta opção foi ainda mais radicalizada na medida em que
a responsabilidade pela condução de todo o processo eleitoral foi entregue a órgãos com
autonomia e independência funcional para a condução de todos os procedimentos para
escolha dos representantes eleitos, sendo o exemplo mais contundente a entrega do processo
eleitoral para um órgão ou para um conjunto órgãos gestores das eleições, independente e
com poderes judiciais para conduzir, regular e direcionar o processo eleitoral do início ao fim
(ISSACHAROFF, 2010, p. 978 e ss).
No entanto, a regulação eleitoral de natureza jurisdicional, amparada em
parâmetros que foram eficientes no paradigma de Estado anterior, precisa ser revista no
contexto atual. Se durante o século XX, o modelo jurisdicional de controle do processo
eleitoral mostrou-se eficiente, em suas últimas décadas tal modelo começou a demonstrar
sérias limitações.
167
Na primeira parte do século XX, como visto no segundo capítulo, a legitimidade
democrática, nos termos apresentados por Pierre Rosanvallon (2011), amparava-se no acesso
ao serviço público mediante concurso e na realização de eleições periódicas, enquanto eventos
isolados para autorizar a representação política, investindo em mandatos aqueles que
deveriam tomar decisões em nome do povo. O Estado de Direito era burocrático, técnico e
obediente à uma lógica estritamente formal, cujos parâmetros de legitimidade também
obedeciam a uma legitimidade estrita. Sob essa perspectiva, o interesse público ou vontade
popular apresentava caráter homogêneo e monológico, sendo sua principal forma de
expressão o parlamento.
Nesse contexto, a regulação eleitoral tradicional, como foi visto, era feita através
da jurisdição e funcionava tendo por parâmetro o modelo racional e abstrato de separação de
poderes que também tinha por pressuposto um sujeito soberano, igualmente idealizado e
abstrato. A regulação eleitoral tradicional, realizada através da jurisdição, tinha por missão
avaliar e garantir a legalidade formal de procedimentos, resguardando principalmente direitos
individuais e de defesa. O voto ainda estava em processo de universalização.
A terceira onda democrática do final do século XX, resultado das transformações
inauguradas e disseminadas pela pauta principiológica do constitucionalismo contemporâneo,
como resposta às lacunas abertas por um modelo jurídico desconectado da facticidade e com
baixo potencial para realizar justiça social, inaugurou um novo paradigma de Estado.
No Estado Democrático de Direito, resultado das democracias representativas
contemporânea com clamores de justiça formal e substancial, na qual o cidadão assume duplo
papel, de autor e destinatário das normas produzidas, as condições de legitimidade
democrática tornaram-se mais complexas. Ainda na linha apresentada de Pierre Rosanvallon
(2011), a legitimidade democrática incorporou outras dimensões: a legitimidade da
imparcialidade, a legitimidade da reflexividade e a legitimidade da proximidade, como
consequência da universalização do voto e correspondente reconhecimento da miríade de
minorias e diferenças que agora compõe o heterogêneo tecido social. Tais circunstâncias
radicalizaram a fragmentação da ideia de bem comum e levaram para outro patamar as
disputas para acesso à arena política e a políticas públicas, e criaram novos espaços
deliberativos para além do parlamento.
O reconhecimento de instituições de conflito e de instituições de consenso, com o
correspondente redimensionamento de seus papéis, ao lado da manifestação complexa dos
168
sujeitos e tempos da democracia, levaram ao redimensionamento das condições de
legitimidade eleitoral.
Se no Estado de Direito a regulação tradicional do processo eleitoral, mediante
exercício da jurisdição, pautava-se por uma legalidade estrita, pela verificação de condições
formais para alistamento e candidatura e pela credibilidade formal da votação e apuração, que
deveriam ser livres de fraudes, com foco para os atos ilícitos, no Estado contemporâneo a
nova regulação das eleições mantém os objetivos do passado acrescidos da integridade.
A regulação eleitoral como conceito novo expandiu-se para o controle da disputa,
para o alistamento e comportamento de eleitores, para as condições de acesso à arena
eleitoral, para o registro de candidaturas, para as regras de financiamento e de propaganda,
para o funcionamento da mídia, para a repressão aos abusos econômicos, políticos e
ideológicos-religiosos e para o controle e fiscalização da atividade partidária. Expandiu-se
para o controle de todo o ciclo eleitoral.
A nova regulação eleitoral tornou-se contingente e complexa, e por isso necessita
de estrutura autônoma e ativa para dar conta da “realidade” não captada ou resolvida nos
ciclos de temporalidade “idealizados” do modelo racional e abstrato de separação de poderes
tradicional.
Em contexto de enorme complexidade do processo eleitoral, essas são exatamente
a maiores dificuldades da regulação eleitoral contemporânea, o fator crítico para a realização
de eleições íntegras: ser eficiente e legítima.
Eleições íntegras, ou seja, o devido processo eleitoral, pressupõe: logística
eficiente e segura; participação informada e influente do cidadãos, atividade partidária e
candidaturas legítimas e resultados legítimos.
A logística eficiente e segura pressupõe mecanismos para organizar e
operacionalizar o processo eleitoral. Significa criar as condições materiais adequadas para que
as etapas do ciclo eleitoral aconteçam no prazo previsto, com a menor quantidade possível de
falhas.
A participação informada e, por consequência, influente do cidadão, depende de
uma série de medidas de transparência ativa que fomentem o acesso efetivo a informações
sobre o processo eleitoral e ações educacionais voltadas para o fortalecimento da cidadania.
169
A entrega de atividade partidária e de candidaturas legítimas à sociedade significa
funcionamento partidário e candidaturas em compliance com as regras do jogo democrático
no prazo adequado. Partidos políticos enquanto instituições de conflito por excelência, cujas
ações são pautadas por lógica estratégica, geram para a sociedade enormes assimetrias de
informação pois seus interesses de acesso e permanência ao poder conflitam diretamente com
a lógica do entendimento que deve vigorar no exercício dos cargos políticos. Os órgãos
eleitorais possuem a responsabilidade de criar incentivos adequados para alinhar as ações de
partidos e candidatos com os objetivos da regulação eleitoral expressos no conceito de
integridade das eleições.
Resultados legítimos pressupõem livre manifestação de vontade com esforço
contínuo para redução das desigualdades e construção da participação influente. Os cidadãos
assumem duplo papel, autor e destinatário das normas de convivência comum, e, portanto,
atuam em duas dimensões sociais comuns: na esfera privada e na esfera pública. Suas ações
podem orientar-se também por lógica estratégica ou por lógica de consenso.
Em contexto de enormes desigualdades sociais, a manifestação livre e consciente
do voto constantemente é afetada por circunstâncias diversas que impedem a manifestação
equitativa: violência, pobreza, ausência de serviços públicos, desigualdade material de
oportunidades. As condições para exercício da cidadania, para livre exercício da soberania
popular, podem ficar seriamente comprometidas (SHEUERMAN, 2005).
A regulação eleitoral contemporânea, nos termos em que vem sendo discutida
nesta pesquisa, relaciona-se com as três dimensões da governança eleitoral. Muitos são os
debates sobre a logística eficiente e segura do processo eleitoral e sobre as condições que
precisam ser implementadas para garantir integridade. Já se sabe também que os problemas
mais evidentes envolvendo eleições no mundo contemporâneo relacionam-se com o papel do
dinheiro na política e com a disseminação da corrupção nos sistemas políticos ao redor do
planeta (FGV/IDEA, 2015). Estes são, na esfera dos direitos políticos, as maiores fontes de
instabilidade social e os maiores riscos para a integridade das eleições.
As principais dificuldades para enfrentamento das lacunas de legitimidade geradas
pelo dinheiro e pela corrupção relacionam-se com a ausência de mecanismos de enforcement,
uma das dimensões da regulação autônoma, conforme apresentado no capítulo 3.4 (GLOBAL
COMMISSION ON ELECTIONS, 2012; IDEA, 2014). Há legislação farta sobre o tema, mas
170
o maior problema relaciona-se com sua aplicação, com os mecanismos para gerar os
incentivos corretos e para punir desvios em tempo adequado.
A regulação eleitoral através da jurisdição, que funcionou como alternativa bem-
sucedida para regular o processo eleitoral durante o século XX, aparece agora como
problema: a regulação eleitoral mediante procedimentos jurisdicionais, com foco e
mecanismos voltados apenas para proteção de direitos individuais e para aspectos formais de
legitimidade, tem sido ineficiente. Os mecanismos, procedimentos e temporalidades da
jurisdição tradicional, por si só, são inadequados e insuficientes para as exigências da
complexa regulação eleitoral contemporânea.
Importante registrar que esse não é um fenômeno exclusivamente relacionado à
direitos políticos. A sociedade de massa, com relações profundamente diversificadas e de
natureza coletiva, tem induzido transformações significativas na estrutura do sistema jurídico
enquanto mecanismo de comunicação social.
Nesse sentido, em artigo publicado no ano 2010, Andrei Shleifer, do
Departamento de Economia da Universidade de Harvard, sustenta que a universalização da
adoção de procedimentos regulatórios no mundo contemporâneo tem muito mais a ver com o
fracasso das cortes em solucionar disputas de forma barata, previsível e imparcial do que
propriamente com falhas de mercado e assimetrias de informação. A multiplicação de
mecanismos de regulação, que no presente trabalho tem sido chamada de regulação
autônoma, e por consequência a multiplicação de autoridades reguladoras independentes,
seria uma adaptação institucional mais eficiente à um mundo mais complexo.
Explica o autor que a regulação contemporânea, de natureza autônoma, não é
necessariamente preferível à jurisdição, existindo custos e benefícios associados com cada
forma de regulação das relações sociais, sendo ambas as alternativas imperfeitas. O que existe
são circunstâncias nas quais uma forma de regular é mais eficiente do que outra. Quando
litigar se torna mais caro, imprevisível e ineficiente, cria-se espaço para a regulação
autônoma. Em poucas palavras, diz o autor, “a hipótese de regulação eficiente ampara-se no
fracasso das cortes” (SHLEIFER, 2010, p. 4).
A observação feita pelo autor oferece perspectiva bastante interessante para a
compreensão do fenômeno contemporâneo da multiplicação de órgãos eleitorais
especializados com poderes jurisdicionais, da multiplicação de órgãos eleitorais que, embora
171
possuam competência jurisdicional, pela natureza de suas atividades, assemelham-se em
competências e estrutura a autoridades reguladoras.
A atividade regulatória autônoma funciona através da padronização de requisitos
para condutas adequadas das partes envolvidas e, embora tal padronização muitas vezes possa
ser considerada rígida, há um efeito associado de redução do esforço para adequação às
normas. Reduz-se o aparato de controle e punição tradicional, a posteriori e caso a caso,
através da uniformização de condutas e ações em regulamentos autônomos voltados para
tratar eventos massificados, na maior parte das vezes de natureza transindividual e coletiva.
A regulação autônoma também afeta os custos envolvidos em eventual
judicialização das questões que não consegue resolver, na medida em que fornece critérios
mais objetivos e específicos para avaliar fatos que de outra forma ficariam sujeitos à avaliação
subjetiva e complexa dos envolvidos.
Ao especificar critérios objetivos e tangíveis para o objeto regulado, a regulação
contemporânea reduz a amplitude das questões discutidas, tornando os comportamentos das
partes envolvidas mais previsíveis e o custo para solução de divergências menor, gerando
maior incentivo para adesão às normas pelos envolvidos.
Outro argumento, trazido pelo autor, que se adequa bastante à presente reflexão, é
o de que a emergência do estado regulador foi amplamente fomentada pela “desigualdade de
armas” no contexto da sociedade de massas, no qual as cortes foram incapazes de lidar com as
profundas e complexas mudanças econômicas.
Assim, grandes empresas e consumidores, fábricas e trabalhadores, são exemplos
de relações na qual uma das partes é hipossuficiente e está em franca desvantagem, gerando
não apenas problemas de cunho individual, mas claramente de natureza coletiva. Não por
acaso, atualmente as relações de consumo e de trabalho figuram entre algumas das relações
mais reguladas pelo Estado. Quanto maior a quantidade de envolvidos, quanto maior a
quantidade de demandas repetitivas, maior é o incentivo para que a relação social seja
regulada de forma autônoma a fim de que os ônus da judicialização sejam reduzidos. Essa
mesma avaliação é adequada para a esfera político-eleitoral. Há uma clara relação de
hipossuficiência entre partidos políticos e candidatos de um lado e eleitores/cidadãos de outro.
A regulação autônoma, obviamente legitimada pelos procedimentos adequados,
com os correspondentes mecanismos de enforcement, pode ser muito mais eficiente para
regular fatos sociais de abrangência coletiva do que múltiplas e longas batalhas judiciais.
172
Nestas hipóteses, os fatos são mais complexos e correspondem a conhecimentos e incentivos
muito especializados. A judicialização pressupõe equivalência de meios e recursos para as
partes envolvidas mas falha largamente quando uma das partes é hipossuficiente, quando a
desigualdade de armas é esmagadora. As relações de natureza transindividual e coletiva em
geral apresentam essa característica.
Registra Shleifer (2010, p. 24) que a eficiência é fator crucial para a sobrevivência
das instituições. Se órgãos e cortes eleitorais são instituições de consenso - que têm por
missão dar voz e oportunidade a todos, para que a imparcialidade, enquanto condição de
acesso igual, e a reflexividade, enquanto meio para construção compartilhada de conteúdos e
significados dos direitos eleitorais – a eficiência e legitimidade para entrega dos resultados
esperados, eleições íntegras, não pode ser ignorada.
Todas as considerações relacionadas à eficiência da regulação, seja ela econômica
ou social, são muito oportunas para o debate sobre a atividade regulatória autônoma das
instituições, e, em especial para órgãos eleitorais.
As relações estabelecidas no âmago do processo eleitoral para escolha de
representantes políticos apresentam extrema desigualdade entre as principais partes
envolvidas: cidadãos e partidos políticos.
A pauta internacional de princípios ligada a eleições, aponta a separação entre
Estado e partidos políticos como um dos pressupostos de legitimidade do processo eleitoral.
Nesse contexto, os partidos políticos são entes de natureza jurídica privada que exercem
atividade de interesse público, ao mediar as relações entre cidadãos e cargos públicos, que
precisa ser regulada.
Há claramente uma relação de hipossuficiência estabelecida, na qual existem
chances concretas de “captura da democracia” por interesses estratégicos. Assimetrias de
informação, falhas e externalidades, causadas por abuso de poder político, econômico ou
ideológico, sem desconsiderar o enorme impacto das desigualdades sociais, são fontes
potenciais de ilegitimidade que ameaçam a integridade das eleições.
A regulação eleitoral eficiente e a entrega de resultados eleitorais íntegros
dependem ainda de respeito aos prazos dos ciclos eleitorais. Questões essenciais da disputa
política não podem ser prolongadas indefinidamente por processos judiciais sem que tal
circunstância afete a legitimidade dos resultados das urnas. A regulação eleitoral ineficiente
173
gera desequilíbrio sistêmico e interfere na qualidade da democracia criando espaço para a
instabilidade social.
O processo eleitoral, embora extremamente complexo, possui fases e problemas
bastante previsíveis, que podem ser bastante beneficiados pela regulação autônoma, inclusive
com redução ou simplificação significativa da litigiosidade.
Os procedimentos previstos para o exercício da jurisdição foram construídos para
funcionar em temporalidade diferente dos ciclos eleitorais e para atender a objetivos
completamente diferentes dos objetivos da regulação eleitoral autônoma. A jurisdição
tradicional foi construída sob alicerces de direitos individuais e o processo eleitoral envolve,
por excelência, procedimentos de natureza coletiva, em razão dos sujeitos da democracia
envolvidos. Tais diferenças eram pouco relevantes no paradigma anterior de Estado, mas são
muito importantes no contexto atual.
A conclusão a que se chega é que a regulação eleitoral de natureza jurisdicional -
que não só foi eficiente ao longo do século XX, como colaborou amplamente para a
estabilização democrática - deixou de ser eficiente no contexto atual e precisa ser revista.
A regulação eleitoral contemporânea engloba, para além da competência
jurisdicional, a competência normativa autônoma, decorrente do instituto da deslegalização,
mas necessariamente abrange também a dimensão de enforcement, de mecanismos concretos
para gerar incentivos de adesão a normas e para punição de desvios, sob pena tornar-se
ineficiente. A nova regulação autônoma, como discutido no terceiro capítulo, envolve a
atribuição de competência normativa e de poderes híbridos, com diferente estrutura de
apropriação de discursos, novas exigências para produção de direito legítimo e novos
mecanismos de regulação social.
4.4 Governança Eleitoral, regulação autônoma e integridade das eleições
A ideia de eleições justas e genuínas foi construída ao longo do século XX
associada a padrões de legalidade, enquanto que as irregularidades estariam ligadas a atos
ilícitos, ou seja, com foco em ações fraudulentas tipificadas na legislação eleitoral doméstica
de cada país.
A abordagem normativa e jurisdicional dos problemas ligados a eleições deu
racionalidade aos procedimentos eleitorais e permitiu a implementação de parâmetros práticos
174
e concretos para solução das divergências emergentes durante os procedimentos eleitorais
(NORRIS, 2014). Esta perspectiva esteve completamente coerente com a teoria jurídica e o
modelo de estado predominantes no período, a teoria jurídica positivista e o Estado de Direito.
No mesmo período, a complexidade do processo eleitoral deu ensejo a introdução
de técnicas gerenciais voltadas para a mitigação de falhas e erros decorrentes das rotinas de
trabalho dos órgãos eleitorais, normalmente associados à ineficiência, incompetência,
problemas na máquina burocrática, etc. A profissionalização dos órgãos eleitorais foi o meio
encontrado em diversos países para agregar credibilidade às eleições.
A legalidade e a especialização técnica das atividades eleitorais percorreram o
caminho natural de agregação de legitimidades às democracias representativas do Estado
Liberal, tal como proposto por Pierre Rosanvallon (2011).
Embora estas abordagens tenham contribuído de forma significativa para a
ampliação da legitimidade do processo eleitoral, com o advento do constitucionalismo
contemporâneo e dos direitos humanos, que incorporaram à democracia uma pauta
principiológica prospectiva, tais abordagens deixaram de ser suficientes pois contemplam
apenas aspectos formais e técnicos sem alcançar aspectos de justiça substancial.
Eleições podem ser perfeitamente legais e administrativamente eficientes e ainda
assim violar padrões internacionais de direitos humanos (NORRIS, 2014), se não puderem
garantir igual oportunidade e participação influente a todos.
Por ser prospectiva, contingente e possuir dimensão coletiva, a integridade
eleitoral contemporânea não pode amparar-se apenas em procedimentos judiciais com
parâmetros formais para solucionar conflitos individuais e em questões gerenciais. Estes
parâmetros são insuficientes para promover o necessário alinhamento de todas as fases do
processo eleitoral com os princípios democráticos previstos em tratados e convenções
internacionais sobre direitos políticos.
E é nesse sentido que a integridade das eleições aparece como objetivo a ser
perseguido pela governança eleitoral, na medida em que o processo eleitoral também passa a
ser prospectivo e precisa funcionar, a todo tempo, a serviço da concretização de princípios
democráticos e de direitos humanos.
A integridade das eleições deixa de ser apenas atributo normativo formal e
técnico, aferível a posteriori, para transformar-se em atributo de natureza substancial que
precisa ser acompanhado ao longo de todo o processo eleitoral.
175
Há uma alteração de perspectiva: é insuficiente olhar apenas para trás e verificar
onde o processo eleitoral falhou. É preciso agregar ao espelho retrovisor do órgão eleitoral um
painel com instrumentos para navegação durante todo o percurso. É preciso agregar à
perspectiva backward looking do procedimento judicial, que funciona voltada para o passado,
a perspectiva foward looking da regulação prospectiva, voltada para o futuro, para uma ação
prudencial que tenha por finalidade o equilíbrio da competição política, o alinhamento das
eleições com padrões de integridade durante o todo o ciclo eleitoral e a redução da amplitude
da litigiosidade.
A integridade das eleições passa a ser objeto da função regulatória autônoma
originada no final do século passado, conforme discutido na primeira parte dessa pesquisa.
Sem função regulatória autônoma não há regulação prudencial eficiente visto que as
temporalidades associadas aos três poderes tradicionais do estado, por si só, não permitem a
criação de mecanismos e procedimentos eficientes para lidar com uma realidade contingente.
Perseguir a integridade eleitoral significa criar, mediante exercício imparcial e
reflexivo, normas de governança eleitoral voltadas para a redução da litigiosidade, para a
eficiência da regulação prudencial, significa ainda aperfeiçoar os meios para que as partes
interessadas do processo eleitoral tenham interesse em alinhar suas ações com finalidades
cooperativas, com padrões internacionais de direitos humanos. Então é possível afirmar que o
objetivo da regulação eleitoral é perseguir a integridade das eleições durante todo o ciclo
eleitoral.
Atualmente a condução de eleições com integridade enfrenta diversos desafios
regulatórios em todo o mundo: a regulação do financiamento político de partidos, a regulação
do financiamento de campanhas, a representação de minorias, a igualdade de gêneros, o
desenvolvimento de novas tecnologias, a regulação da propaganda eleitoral, a regulação da
atuação da imprensa, entre muitos outros.
Uma análise mais apurada demonstrará que todos estes desafios apresentam uma
face regulatória que não poderá ser corretamente enfrentada se não houver o explícito
reconhecimento de função regulatória autônoma em matéria eleitoral para orientar as
circunstâncias emergentes através de mecanismos eficientes e temporalmente adequados.
O relatório publicado pela Global Comission on Elections, Democracy and
Security em 2012 (GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 6) apresenta os
cinco maiores desafios a serem superados para a condução de eleições com integridade:
176
- a construção de estrutura normativa para atender a clamores substanciais de
direitos humanos e justiça eleitoral;
- a criação de Órgãos de Gestão Eleitoral (EMBs) profissionais, competentes,
com total independência de ação para administrar as eleições que sejam transparentes e
mereçam a confiança pública;
- a construção de instituições e a criação de normas para a competição
multipartidária e para divisão de poderes que assegurem a democracia como um sistema de
segurança mútuo entre os competidores políticos;
- a remoção de barreiras – legais, administrativas, políticas, econômicas e
sociais- para a participação universal e igual; e
- a regulação do financiamento político descontrolado, opaco e não divulgado.
O relatório consolida orientações e diretrizes voltadas para alcance e
aperfeiçoamento da integridade das eleições. Ao desenvolver o tema, o relatório aborda
objetivamente a questão da regulação do processo eleitoral, e em especial a regulação do
financiamento político.
O relatório não entra na questão da função regulatória autônoma como
desenvolvido nessa pesquisa, mas as ao discorrer sobre as instituições envolvidas na
condução do processo eleitoral deixa muito claro os requisitos de independência, autonomia,
transparência e confiança pública de tais instituições, características que, no formato
apresentado, remetem imediatamente às características de autoridades reguladoras autônomas
e aos componentes de legitimidade a estes associados. Em razão da importância dos temas
tratados no relatório para a pesquisa, a seguir estão resumidas as principais considerações
relacionadas aos desafios acima apresentados.
A construção de estrutura normativa para atender a clamores substanciais de
direitos humanos e justiça eleitoral possui diretrizes e princípios já bem definidos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Internacional de Direitos Civis e
Políticos, cujos países signatários comprometeram-se a honrar. No entanto, se tais diretrizes e
princípios não forem traduzidos e detalhados em normas e procedimentos aplicáveis,
passíveis de monitoramento e verificação, com mecanismos correspondentes para efetivo
alinhamento de condutas e responsabilização dos infratores, no tempo adequado, o aspecto
177
substancial não terá reais possibilidades de materialização (GLOBAL COMMISSION ON
ELECTIONS, 2012, p. 6 e ss).
A tradução de princípios e diretrizes em normas e procedimentos aplicáveis e
passiveis de monitoração e verificação, com mecanismos correspondentes para efetivo
alinhamento de condutas e responsabilização de infratores no tempo adequado pressupõe a
institucionalização de uma governança eleitoral cíclica e contínua com meios e medidas
concretos para sua materialização, pressupõe, portanto, a existência de uma autoridade
reguladora autônoma atuante com os correspondentes poderes de enforcement.
A confiança de todas as partes interessadas na condução do processo eleitoral é
elemento chave para a integridade das eleições. A criação de autoridades gestoras do processo
eleitoral (EMBs) profissionais, competentes, transparentes e com total independência de ação
para administrar eleições é pressuposto para o merecimento da confiança pública, na medida
em que as ações dos envolvidos na condução do processo eleitoral precisam ser auditáveis
pelas partes interessadas (GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p.20 e ss).
Não basta que as eleições sejam tecnicamente confiáveis, é necessário que estas
sejam percebidas como livres, justas e confiáveis e essa percepção somente pode existir se
houver procedimentos e parâmetros de avaliação estabelecidos para o acompanhamento e
monitoramento das diversas atividades que compõem todas as fases do processo eleitoral
(GLOBAL COMMISSION ON ELECTIONS, 2012. p. 6). Definir os diversos processos de
trabalhos envolvidos nas eleições, as decisões e resultados deles decorrentes com seus
respectivos registros (documentos), tornando-os disponível para o público com linguagem
acessível é etapa fundamental para a construção da confiança.
A independência de ação para administrar as eleições, em nível nacional, significa
criar instituições eleitorais profissionais, competentes, com total independência para conduzir
o processo eleitoral – isso significa acesso a recursos financeiros suficientes para realizar
eleições e mandatos para organizar eleições transparentes que mereçam confiança e
credibilidade pública (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 21). Mais uma
vez há referência a requisitos para a autoridade eleitoral que remetem à natureza jurídica de
uma autoridade reguladora independente.
A construção de instituições e a criação de normas para a competição
multipartidária e para divisão de poderes que assegurem a democracia como um sistema de
segurança mútuo entre os competidores políticos implica que vencedores tenham autoridade
178
legitima e que perdedores tenham segurança política e física (GLOBAL COMISSION ON
ELECTIONS, 2012, p. 24 e ss). A democracia é uma sucessão de ciclos eleitorais com
posições vencedoras ou perdedoras de curto prazo que em escalas de tempo maior podem se
modificas pela organização e pela mobilização.
Um sistema de segurança mútuo pressupõe que partidos políticos e candidaturas
sejam monitorados e que exista um código de responsabilidade política para avaliação de suas
condutas, e esse monitoramento no contexto contemporâneo não pode mais ser feito somente
pelo próprio poder político visto que interesses contingentes e vitoriosos podem desconsiderar
parcela significativa de interesses públicos legítimos não representados.
A oxigenação permanente do sistema político pressupõe a escolha de parâmetros
claros para regular a competição política de forma que: os interesses estratégicos de partidos
e candidatos sejam sucessivamente alinhados com diretrizes e princípios constitucionais, com
princípios democráticos e de direitos humanos; os pressupostos da competição política
legítima sejam preservados – acesso e participação influente de todos os cidadãos, igualdade
política, segurança para perdedores, limites para vencedores, etc.; a atuação de autoridades
reguladoras do processo eleitoral ocorra também de forma alinhada com princípios de
integridade eleitoral.
Eleições íntegras permitem que as disputas entre os diversos interesses ocorram
em arenas racionalizadas com potenciais para compor e dissolver conflitos ao invés de
potencializá-los. A nível nacional, recomenda-se que sejam desenvolvidos procedimentos
para deter a violência associada a eleições, a implementação de mecanismos efetivos de
responsabilização de infratores das normas eleitorais, a implementação de políticas para
impedir supervalorização dos vencedores e desvalorização dos perdedores da competição
política (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 24).
A remoção de barreiras legais, administrativas, políticas, econômicas e sociais
para a participação universal e igual implica em primeiro lugar no reconhecimento dessas
barreiras, a seguir na delimitação de políticas públicas legitimadas em fóruns adequados para
definição de critérios aceitos por todo, que tenham por finalidade tornar mais equitativo o
acesso à arena política. Nesse sentido, eleições com integridade significam eleições com
possibilidade real de acesso a candidaturas, a recursos para campanha política, à estrutura
mínima para representação política viável. A possibilidade de participar como candidato em
eleições por si só não assegura que os diversos interesses sociais sejam representados. A
179
ausência de regulação partidária com exigências mínimas para políticas de inclusão, por
exemplo, garante a manutenção do poder nas mãos de uma mesma família ou de um mesmo
grupo por gerações, dificulta o acesso de minorias e perpetua o desequilíbrio de gênero
(GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 29).
O financiamento político descontrolado é atualmente uma das mais fortes ameaças
para a integridade das eleições e, portanto, para a estabilidade social e para a legitimidade do
sistema político. Situações de crise ou de desagregação de sistemas políticos contemporâneos
têm sido continuamente associadas a escândalos políticos e corrupção, e o elo entre essas
circunstâncias e a integridade das eleições apenas começou a ser descrito (GLOBAL
COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 33).
O controle do financiamento político abrange o financiamento de campanhas, as
finanças partidárias e todos os aspectos relacionados com o financiamento e o gasto de
partidos políticos e candidatos em campanhas eleitorais. Compra de votos, suborno de
candidatos em troca de favores políticos, abuso de poder econômico e político, influência do
crime organizado e de organizações paraestatais através de doações ilícitas para campanhas
políticas, contabilidade paralela, são todos exemplos de problemas gerados por financiamento
político sem controle, de dinheiro na política sem adequada regulação.
Em nível doméstico, regular o financiamento político significa controlar
efetivamente doações e gastos partidários e de campanhas políticas, significa alinhar e
monitorar o financiamento público de partidos e de campanhas políticas com os princípios
democráticos estabelecidos conforme direitos humanos, garantir a divulgação e transparência
das doações e gastos e a penalização por não adequação a normas e procedimentos (non-
compliance) (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 62 e ss).
A criação de uma estrutura normativa para atender a clamores substanciais de
direitos humanos e justiça eleitoral, a criação de normas para garantir equilíbrio e
legitimidade na competição multipartidária, a remoção de barreiras para a participação
universal e igual, e o financiamento político descontrolado, opaco e não divulgado são claras
hipóteses para regulação autônoma que ganharam forma e se intensificaram após a terceira
onda de democratização do final do século XX em razão da complexidade social, da
universalização do voto e da inclusão política, do novo constitucionalismo prospectivo e das
novas exigências de legitimidade que se apresentaram para as sociedades contemporâneas.
180
Apenas fortes requisitos de transparência não são suficientes para garantir a
integridade eleitoral e o controle do dinheiro na política. A existência de uma autoridade
eleitoral independente para o monitoramento e supervisão do financiamento político com
poderes para responsabilização e alinhamento de interesses eleitorais é fator crítico para a
realização de eleições com integridade. Deve haver previsão normativa e de procedimentos
concretos para recebimento, exame e auditoria das declarações financeiras dos partidos
políticos e candidatos, com poderes para monitorar a contabilidade dos partidos, para
investigar potenciais violações da legislação eleitoral e para impor rígidas sanções em
hipótese de descumprimento de normas e procedimentos.
O poder e a competição para acesso ao poder devem ser regulados. Não é
suficiente que governos criem instituições; a sobrevivência e legitimidade do sistema político
depende de que todas as partes interessadas respeitem e salvaguardem a independência e o
profissionalismo das instituições eleitorais (GLOBAL COMISSION ON ELECTIONS,
2012).
As considerações apresentadas no relatório demonstram claramente o
deslocamento e ampliação do foco da discussão: se antes bastava discutir o funcionamento do
sistema político eleitoral em relação à estrutura legal associada, agora discutir os incentivos e
motivações enfrentados pela autoridade reguladora eleitoral e pelas partes interessadas do
processo eleitoral, discutir o objeto da regulação eleitoral e a estrutura da governança eleitoral
tornaram-se questão prementes.
A integridade das eleições é então o objetivo a ser perseguido pela regulação
eleitoral na medida em que esta deve funcionar a serviço da concretização de princípios
democráticos e de direitos humanos. Por todo o exposto é possível defender-se a tese de que o
objeto da nova função regulatória autônoma, em matéria eleitoral, é garantir a integridade das
eleições durante todo o ciclo eleitoral, sendo um de seus aspectos mais relevantes a regulação
do financiamento político, que possui conteúdo econômico evidente.
Definido o objeto da regulação eleitoral, faz-se necessário agora compreender
como regulação e governança eleitoral se relacionam.
4.5 Regulação autônoma: nova dimensão da Governança Eleitoral
A função regulatória autônoma, como visto na primeira parte dessa pesquisa, é
resultado da nova onda regulatória, fenômeno que emergiu da reconfiguração de relações
181
entre estado, esfera pública e mercado, no contexto de uma sociedade múltipla, radicalmente
diferenciada, voltado para preencher déficits de legitimidade com a busca de elementos
substanciais de justiça social. Resulta ainda de uma nova forma de correlacionar os poderes
tradicionais do estado, decorrente da descentralização e pulverização de suas fontes e
atividades.
A função regulatória autônoma, exercida por autoridades reguladoras
independentes, para gerenciamento de centros específicos de interesse público, implica no
exercício integrado de poderes híbridos : poder normativo, ao qual corresponde a imposição
de quadro normativo geral e abstrato às atividades reguladas, o poder de assegurar sua
aplicação, como aplicação concreta de regras, através de decisões individuais, caso a caso; e o
poder de reprimir infrações, compondo disputas e conflitos, através da apreciação concreta,
caso a caso. A regulação autônoma busca suprir lacunas que a regulação tradicional não
consegue preencher.
É importante recordar que a regulação autônoma se diferencia da regulação
tradicional em razão de sua fonte, visto que decorre do fenômeno da delegificação; em razão
da incorporação de objetivos finalistas, que exigem atuações estatais positivas, em perfeita
sincronia com os propósitos do Estado Democrático de Direito, circunstância que justificaria
a ampliação dos poderes concedidos às autoridades reguladoras independentes, conforme
apontado por Alexandre Aragão (2013); e em razão da temporalidade e da complexidade das
relações atuais, relações de massa que exigem soluções mais rápidas, com menor litigiosidade
e maior previsibilidade do comportamento do Estado.
A incorporação de objetivos finalistas à regulação contemporânea, como resultado
de constitucionalismo prospectivo voltado para a justiça substantiva, com fundamento na
dignidade da pessoa humana, é uma das principais justificativas para a existência e atribuição
de função regulatória autônoma, destacada dos tradicionais poderes legislativo e executivo.
Tais objetivos finalistas, com maior previsibilidade das respostas estatais e
preservação de igual oportunidade a todos, buscam preencher as lacunas de legitimidade da
democracia representativa em seu estado atual.
No mesmo sentido, o objetivo finalista de alcançar eleições com integridade é a
principal justificativa para a incorporação da função regulatória autônoma como o quarto
elemento integrante da governança eleitoral contemporânea.
A proposta pioneira apresentada por Mozzafar e Shedler (2002), embora seja
inovadora ao dar nome e importância para a governança eleitoral, tornando-a objeto de
182
estudo, apresenta dificuldade metodológica ao decompor os elementos da governança eleitoral
conforme a tradicional tripartição de poderes napoleônica sem considerar explicitamente o
uso de direito regulador, o correspondente aparecimento da função regulatória autônoma
nascida no final do século XX, e o florescimento de autoridades reguladoras independentes
como consequência da reorganização de princípios do sistema de direitos e como forma de
atender a novas e precárias formas de legitimidade.
O interessante é que os autores distinguem o conjunto normativo que aborda
questões relacionadas aos partidos políticos, fórmulas eleitorais, voto e proporcionalidade, ou
seja, diferencia as normas primárias que tratam do desenho do sistema político do conjunto
normativo que regula a competição eleitoral, identificando exatamente as normas de
governança eleitoral, em sentido estrito, aqui tratadas como normas de regulação eleitoral,
como o conjunto normativo negligenciado.
Embora seja recorrente nos textos sobre governança e integridade eleitoral a
menção à independência das autoridades eleitorais, aos poderes, funções e competências que
estas devem possuir para gerenciar eleições alinhadas com os princípios democráticos
contemporâneos, a referência aos prazos exíguos e à complexidade e tecnicidade do processo
eleitoral, à necessidade de alinhar o exercício de interesses da competição política com a
pauta internacional de direitos humanos, enfim, ao reconhecimento implícito de que o sistema
eleitoral é um micro sistema jurídico especializado, um centro de interesse público específico,
não há o expresso reconhecimento das normas de regulação eleitoral como produto da função
regulatória autônoma atribuída à autoridades eleitorais. (Essa ausência, no contexto
americano, não é tão relevante, visto que o poder executivo daquele país possui estrutura
diferente da estrutura brasileira, mas no Brasil faz toda a diferença).
Eleições caracterizaram eventos complexos ao longo de todo o século XX, fraudes
e irregularidades eleitorais já existiam e nem por isso a governança eleitoral foi objeto de
interesse até o final do período. A diferença é que no contexto anterior do Estado de Direito, a
legitimidade das eleições tinha natureza formal e a lisura e a integridade dos procedimentos
eram aferidas por padrões de legalidade estrita e de eficiência sem conteúdo finalístico.
Questionamentos sobre fraudes e irregularidades eleitorais ganharam nova
dimensão somente em face do Estado Democrático de Direito, do estado gerencial, da
globalização, das relações de massa e da nova onda regulatória, circunstâncias que alteraram o
parâmetro de integridade para aferição de eleições passando a abranger aspectos substanciais
de justiça social e aspectos finalísticos para a competição política.
183
Uma análise satisfatória da governança eleitoral contemporânea deve abranger a
nova dimensão regulatória autônoma sob pena de não ser possível compreender a proliferação
de órgãos eleitorais independentes nos diversos países, principalmente nas democracias que se
consolidaram com a terceira onda democrática e em meio à nova onda regulatória. Mas mais
do que isso: sob pena de não ser devidamente legitimada a nova função regulatória e ficar esta
atrelada somente a padrões de eficiência e de legalidade, sem a correspondente legitimação de
seus discursos e viabilidade de controle social.
A identificação de eleições como potencial fator de indução do equilíbrio ou de
desequilíbrio social concedeu ao voto novo status: este passou a ser elemento de agregação
social diferenciado. Voto e dinheiro são fortes e sensíveis elementos de agregação social no
mundo contemporâneo e por isso devem ser regulados. Política monetária e política eleitoral
são temas que atualmente integram as pautas econômica e política mundiais pois apresentam
enormes potenciais de equilíbrio para as diversas democracias representativas ou enormes
potenciais de destruição. E esse impacto, em um mundo globalizado, ultrapassa as fronteiras
dos estados nacionais. Crises financeiras e corrupção política, atualmente, são problemas de
natureza global que alcançam a relação dinheiro/política das diversas democracias
contemporâneas. Por estas razões é que o debate sobre a independência e o papel dos bancos
centrais apresenta enorme apelo e pelas mesmas razões o debate sobre a independência e o
papel das autoridades eleitorais também começam a apresentar.
O impacto do dinheiro no financiamento político e os múltiplos escândalos
relacionados à corrupção envolvendo eleições e partidos em diversos países vem
demonstrando que dinheiro e voto são elementos cada vez mais próximos e mais
significativos para a estabilidade social.
Nesse contexto, a distribuição de funções/poderes entre órgãos eleitorais é fator
determinante para a governança eleitoral, sendo inclusive capaz de alterar a natureza jurídica
dos órgãos eleitorais (este ponto será tratado no próximo capítulo) e a natureza das relações
estabelecidas no sistema político eleitoral. Por estas razões, a decomposição de seus
elementos deve contemplar todas as dimensões de fato existentes e, em especial, a nova
dimensão regulatória autônoma. Caso contrário, a análise da governança eleitoral
contemporânea permanecerá refém da perspectiva tradicional e centralizada de partição de
poderes e o correspondente diagnóstico será limitado e incapaz de apontar as reais e novas
lacunas de legitimidade decorrentes da regulação eleitoral tradicional e os controles que
deveriam ser associados com a nova regulação.
184
O nível Elaboração de Normas seria então decomposto em dois: Normas da
Competição Eleitoral e Normas de Regulação Eleitoral. Mozzafar e Shedler (2011)
decompõem o nível elaboração de normas em normas da competição eleitoral e normas de
governança eleitoral. Como registrado anteriormente, haveria uma governança eleitoral em
sentido amplo, que abrange o conjunto das dimensões da governança eleitoral, e normas de
governança eleitoral em sentido estrito. Em nome da clareza e em razão do conteúdo que se
pretende atribuir às normas de governança eleitoral em sentido estrito nessa pesquisa, adotou-
se a expressão normas de regulação eleitoral para referência à normas produzidas por órgãos
eleitorais. A proposta desta pesquisa é que se adote a fonte normativa e o uso de direito
regulador como pontos centrais de avaliação e diferenciação entre ambas.
As normas da competição eleitoral seriam aquelas normas genéricas e abstratas
que determinam a moldura da competição eleitoral, aprovadas mediante o devido processo
legislativo. As normas de regulação eleitoral abrangeriam as normas produzidas por órgãos
eleitorais no exercício de sua competência normativa, enquanto manifestação de função
regulatória, com a finalidade de alinhar os procedimentos eleitorais com as diretrizes da
integridade eleitoral.
A função regulatória autônoma está relacionada com o tipo de poder normativo
concedido aos órgãos eleitorais, com uso ou não de direito regulador. A competência
normativa concedida pode ser limitada e associada aos tradicionais poderes administrativos
do estado, nesse caso, abrangerá a função regulatória tradicional, devendo respeitar seus
limites e sem espaço para inovar a ordem legal.
No entanto, a função regulatória atribuída ao órgão eleitoral poderá decorrer de
uso de direito regulador pelo parlamento com a correspondente atribuição de função
regulatória autônoma para órgãos eleitorais. Nessa segunda hipótese será mais ampla e poderá
inovar a ordem jurídica, mas necessitará de procedimentos de legitimação mais exigentes que
garantam a participação influente de todos os interessados, ou seja, exigirá a legitimação dos
discursos correspondentes em arenas específicas destinadas a esse fim, como por exemplo a
realização de audiências públicas com procedimentos próprios à legitimação do direito assim
produzido.
A arquitetura institucional do sistema eleitoral e a correspondente atribuição de
competências é que determinará a extensão e a natureza da atividade regulatória atribuída. É
importante, entretanto, frisar que, uma governança eleitoral prospectiva e alinhada com
185
princípios democráticos, em razão das características do processo eleitoral e de suas
exigências de legitimidade, dificilmente poderá ser bem-sucedida se estiver somente
amparada em uma estrutura de poder tradicional.
A complexidade e especialização das eleições, o timing das decisões envolvidas e
a incapacidade de regular eleições somente mediante procedimentos voltados para corrigir o
passado impossibilitam a adoção somente dos tempos, meios e medidas das estruturas
tradicionais de poder. O ciclo eleitoral possui tempos e objetos muito particulares que
demandam novos procedimentos, novas formas de legitimação e atuação prospectiva e
prudencial.
Há ainda um aspecto de extrema relevância a ser considerado. Por ser a
competição política por cargos eletivos caracterizada por ações tipicamente estratégicas, esta
impacta diretamente as decisões legislativas em matéria eleitoral e as ações dos representantes
eleitos que ocupam o poder executivo. Não é por acaso que a influência dos ciclos eleitorais
na política e na economia são amplamente discutidos e reconhecidos na literatura política e
econômica. Assim, outra justificativa para o exercício de função regulatória autônoma por
órgãos eleitorais refere-se à necessidade de se instituir freios e contrapesos para a atuação dos
partidos políticos.
O interesse pela manutenção de poder político por partidos e representantes
eleitos pode criar claros déficits de legitimidade tanto para a legislação política e eleitoral
aprovada como para políticas públicas previstas e implementadas. E essa ação estratégica
precisa ser compensada pela ação de outra instituição ou de intuições que atuem conforme a
lógica colaborativa, para produzir uma razão que seja procedimentalizada, e, portanto,
legitima. Os órgãos eleitorais, através de ações pautadas pela legitimidade da imparcialidade e
da reflexividade, são as instituições legitimadas para suprir tais lacunas através do uso de
função regulatória autônoma em matéria eleitoral.
A Declaração de Direitos Civis e Políticos determina claramente como princípio
democrático fundamental a separação entre partidos políticos e estado. Essa independência é
da essência da democracia. No entanto, os partidos políticos são instituições independentes
que exercem ações relacionadas com interesse público extremamente relevante e indisponível:
direitos fundamentais políticos, pilares da democracia representativa e do sistema de direitos.
E essa razão por si só já legitimaria a necessária regulação estatal. Mas além disso, os partidos
186
políticos no exercício de suas atribuições, devem funcionar alinhados com princípios
democráticos e orientados à concretização de direitos humanos.
A legislação eleitoral, como qualquer norma comum na tradição de direito
positivado, é elaborada pelo parlamento, pelos representantes políticos investidos em
representação popular, mas, em matéria eleitoral, estes representantes, que alcançam o poder
pelo sucesso nas eleições, possuem interesses específicos de cunho estratégico no conteúdo a
ser legislado.
O parlamento, em regra, atua como uma instituição de consenso, como arena
política para construção de ações cooperativas em face das divergências e desacordos que
representa. Mas a disputa eleitoral é marcada pela atuação de instituições de conflito por
excelência, os partidos políticos, que possuem interesses estratégicos muito específicos de
permanência ou de acesso aos centros de exercício de poder político. Os partidos políticos
atuam de forma independente através de bancadas no parlamento que lutam constantemente
para manter níveis elevados de influência.
A independência dos partidos político em relação ao Estado não descaracteriza o
caráter claramente público do interesse tutelado: a escolha de representantes da sociedade
para concorrer a cargos eletivos e atuar como agentes políticos a serviço da democracia.
A natureza independente dos partidos políticos não pode servir de argumento para
seu livre arbítrio. As regras partidárias precisam garantir igual acesso procedimental e
substancial dos cidadãos aos espaços políticos. Sem dúvida haverá um espaço de
discricionariedade atribuído aos partidos políticos para que elaborem e formulem os diversos
interesses sociais em disputa na sociedade, e, por consequência, matérias de cunho interno
que serão da livre escolha de cada um. Mas a garantia de igual acesso a todos deve estar
alinhada com as diretrizes da integridade eleitoral que precisarão ser respeitadas por todos os
partidos.
Nesse sentido, é possível afirmar que, em matéria eleitoral, há a inversão de
papéis entre o poder legislativo e os órgãos eleitorais responsáveis por regular o processo
eleitoral. Nesta específica hipótese, de produção normativa eleitoral, o poder legislativo
assume uma posição contra majoritária visto que tende a legislar em interesse próprio, pela
ampliação de poderes e vantagens de partidos e candidatos vitoriosos. Nesta hipótese, o
parlamento tende a abandonar sua função de proteção do espaço vazio reservado à razão
pública, à deliberação legítima de natureza cooperativa, de nivelar o campo de batalha político
187
para garantir a igualdade de oportunidade e acesso à arena de disputas políticas legítimas. Por
outro lado, os órgãos eleitorais ocupam a posição majoritária de defesa dos pilares da
democracia representativa e de justiça substancial, e ainda mais relevante, garantem as
condições de legitimidade para a disputa política eleitoral.
Especificamente em matéria eleitoral, a atuação do órgão eleitoral e a atuação do
parlamento funcionam com polos invertidos: o parlamento atua de forma contra majoritária na
medida em que tende a elaborar normas políticas eleitorais orientadas por interesses
estratégicos de manutenção do poder, enquanto o órgão eleitoral, ao defender as condições
para o exercício democrático representativo, atua de forma majoritária para resguardar os
interesses da maioria, os interesses da cidadania e manter abertas reais oportunidades de
acesso a todos.
Essa hipótese-premissa somente se justifica em razão do objeto da governança
eleitoral ser a proteção da integridade das eleições, durante todo o ciclo eleitoral, e, portanto,
parte significativa das condições para funcionamento do sistema democrático representativo.
A autoridade eleitoral atua como um dos mecanismos de freio e contrapeso às ações
estratégicas particulares em matéria eleitoral dos integrantes do parlamento, em nome de uma
razão pública.
Quando o parlamento elabora normas atinentes à competição política ele o faz
enquanto instituição de conflito, por esta razão é tão difícil realizar acordos em relação a
reformas políticas. E o órgão eleitoral deveria funcionar, nesta específica hipótese, como
instituição de consenso, como rede de segurança.
Se os partidos políticos controlam o acesso do cidadão à competição eleitoral,
quem regula e condiciona as ações dos partidos políticos? Na hipótese investigada, o órgão
eleitoral é que deve deter a competência para regular e alinhar a atuação partidária com os
princípios constitucionais e, portanto, democráticos.
Não se está a propor que o parlamento abra mão de determinar a moldura jurídica
e os princípios que devem reger a competição eleitoral determinados através de uma
legislação geral e abstrata que fixem as diretrizes e estrutura do sistema político eleitoral.
Mas sim que se reconheça que a previsão e uso de direito regulador em matéria eleitoral tem
por finalidade resguardar os pilares da democracia de maiorias circunstanciais interessadas no
acesso e permanência do poder.
188
Nesse sentido, a legislação eleitoral deve criar os meios efetivos para que as
normas de governança eleitoral tenham a amplitude e os instrumentos necessários para regular
efetivamente questões da competição eleitoral, para protegê-la de interesses estratégicos de
maiorias contingentes diretamente afetados pelos resultados da competição política.
Garantir o alinhamento de ações de partidos políticos e candidatos com padrões
internacionais de integridade eleitoral é tarefa de governança eleitoral, mais especificamente é
tarefa de regulação autônoma, regulação com finalidade específica e com ações positivas. A
proliferação de órgãos eleitorais autônomos bem-sucedidos é a evidência mais contundente
desses fatos e das transformações de legitimidade associadas ao sistema político eleitoral na
virada do século XX.
A Regulação através de Normas, dimensão regulatória da governança eleitoral,
abrange, portanto, o exercício de função regulatória autônoma destinada a “densificar” o
conteúdo dos direitos eleitorais, para tornar concretos procedimentos orientados para a
integridade eleitoral. Abrange ainda as duas dimensões da nova regulação autônoma,
conforme descrito no terceiro capítulo: a aplicação dos mecanismos de enforcement previstos
e a avaliação da eficiência da regulação em face do parâmetro integridade eleitoral.
A estrutura da governança eleitoral será determinada pela combinação das
competências descritas nos três níveis da governança eleitoral. O nível da Regulação através
de Normas e sua abrangência estão diretamente ligados à distribuição de competência entre os
órgãos eleitorais e à amplitude dos poderes concedidos. A combinação dos três níveis da
governança eleitoral, conforme a distribuição de competências e poderes entre órgãos
eleitorais, resulta em formas diferenciadas de regulação do processo eleitoral e em graus de
autonomia também distintos, podendo alcançar o quarto nível da governança eleitoral.
A dimensão da Regulação através de Normas existirá sempre que houver uso de
direito regulador pelo parlamento em matéria eleitoral e atribuição de função regulatória
autônoma para o órgão eleitoral. Essa atribuição possui ligação direta com o tipo de órgão
eleitoral que a exerce pois somente órgãos que atendem aos requisitos de uma autoridade
reguladora autônoma ou independente poderão exercer de fato tal função.
189
4.6 Dimensões temporais da Governança Eleitoral - Ciclos Eleitorais
A governança eleitoral pode ser decomposta para fins de análise em quatro níveis
conforme apresentado no item anterior. Esta avaliação permite identificar como os princípios
do estado de direito são instituídos e de que forma são dispostas e apropriadas as
correspondentes formas de discurso. Essa abordagem permite uma apreciação de legitimidade
do processo eleitoral sob o ponto de vista da democracia deliberativa.
Outra forma relevante de apreciação da governança eleitoral refere-se ao ponto de
vista associado com a pluralidade de sujeitos e com a pluralidade de temporalidades da
democracia complexa.
Nesse sentido, vale registrar de início que, normalmente, cada eleição tende a ser
analisada como um evento isolado e independente, parte do processo político. No entanto,
avaliar cada eleição como evento isolado retira o conjunto de disputas eleitorais da
perspectiva da democracia como um processo.
Observar as eleições a partir do ponto de vista de ciclos eleitorais que se sucedem
no processo democrático de médio ou longo prazo, enquadrando-os como partes dinâmicas e
significativas do processo político, colabora para redimensionar seu peso e valor para a
prática representativa assim como permite identificar as relações que as sustentam e a
manifestação de seus múltiplos sujeitos.
Mozzafar e Schedler (2002) ressaltam a importância das eleições sobre a dinâmica
de democratização, ao apontar que, curiosamente, mesmo em ambientes de eleições
manipuladas e ambíguas a existência do processo eleitoral por si pode colaborar para o
exercício democrático, na medida em que os profundos questionamentos sobre as etapas do
processo eleitoral podem funcionar como gatilho para uma espiral retroalimentada de
democratização através das eleições. Pippa Norris (2014), demonstra que a qualidade das
eleições tem potencial tanto para influenciar a estabilidade social como para levar a crises do
regime político representativo. E Pierre Rosanvallon (2011) explica que a soberania popular
contemporânea se manifesta de forma complexa através de múltiplos sujeitos - do povo
eleitoral, do povo social e do povo como princípio - e de múltiplas temporalidades.
Por estas razões, a realização de eleições íntegras não pode ser considerada como
mero acaso ou como mera etapa operacional pontual pois a escolha de representantes eleitos
configura-se como uma das atividades núcleo da democracia representativa em permanente
190
mutação e adaptação. O processo político e o exercício dos poderes políticos do estado além
da legitimidade das urnas precisam ainda de mecanismos mais sofisticados, diferenciados,
permanentes e cíclicos para legitimação das suas atividades e essas exigências servem
também para a governança eleitoral, e, por consequência, para o exercício das atividades de
regulação do processo eleitoral.
Quando se fala em eleições, pelo menos dois níveis de legitimidade precisam ser
identificados. O primeiro nível refere-se à legitimidade na escolha de representantes eleitos, à
garantia da certeza procedimental como garantia da incerteza substancial, à legitimidade das
urnas propriamente dita, refere-se à integridade dos resultados eleitorais.
O segundo nível refere-se à legitimidade do devido processo eleitoral, não
enquanto responsável por entregar resultados livres de fraudes, mas como procedimento capaz
de agregar esforços comunicativos para produção de conteúdos e significados comuns
relacionados aos direitos eleitorais, como mecanismo eficiente para ordenação de interesses e
para escolha de políticas públicas, na medida em que escolhe representantes eleitos aceitos
por todos – que realizam acordos e mantém desacordos em níveis toleráveis.
Nessa segunda perspectiva, o conjunto de processos eleitorais passa a assumir um
novo conteúdo, passa a ser lugar de processos deliberativos e de formação e exercício de
vontades. Passa a ser lócus de manifestação das novas formas de legitimidade conforme
identificado por Pierre Rosanvallon: imparcialidade, reflexividade e inclusão do outro.
Enfim, passa a ser espaço potencial para participação influente de todas as partes interessadas,
em todas as suas etapas.
O estudo das eleições como processo cíclico e dinâmico de aprofundamento de
convivência democrática, como parte significativa do processo político, exige reflexões a esse
respeito. O primeiro desafio é compreender cada eleição como um bem definido ciclo
eleitoral. Os ciclos eleitorais deveriam ser sucessivos e independentes entre si no tempo, mas
como é possível que um ciclo eleitoral se inicie antes do anterior haver terminado, deve ficar
registrado que a ocorrência de superposição de ciclos precisa ser considerada. Esse ponto não
pode ser negligenciado visto que a autoridade gestora das eleições estará diante do desafio de
coordenar esforços direcionados para múltiplas etapas de ciclos eleitorais distintos.
O próximo ponto a ser apreciado é a contextualização dos ciclos eleitorais em
relação aos mandatos eletivos e às políticas partidárias, o médio prazo. Eventos que em uma
primeira análise parecem independentes, misturam-se quando se verifica que a atividade
191
partidária e de candidatos, principalmente atividades financeiras e atividades políticas, estão
sujeitas à regulação e fiscalização da autoridade eleitoral.
Na produção acadêmica das ciências sociais não é incomum a apreciação dos
ciclos eleitorais sob o enfoque dos impactos políticos e econômicos, reciprocamente
considerados. Aqui, a perspectiva é outra, mais específica. Propõe-se a delimitação de tais
ciclos como horizonte de tempo no qual deveria ser investigado se há alguma correlação entre
os ciclos eleitorais de médio prazo e a governança eleitoral, em outras palavras, se e como a
ação regulatória da justiça eleitoral e a atuação dos poderes representativos impactam ou
seriam capazes de impactar de alguma forma o comportamento de partidos políticos, de
potenciais candidatos a cargos políticos, da própria autoridade reguladora e demais
interessados, e principalmente analisar os incentivos e falhas associados a atuação de
autoridades reguladoras eleitorais e demais partes interessadas nesse processo.
Por fim, há um ciclo mais extenso da dinâmica política eleitoral que pode ser
compreendido como de longo prazo, no qual a interação entre as partes interessadas do
processo eleitoral pode ser apreendida sob uma perspectiva mais ampla. Sob esta ótica torna-
se possível compreender a dinâmica interinstitucional em matéria de regulação política
eleitoral, analisar a criação e implementação de políticas públicas, diagnosticar o
comportamento da autoridade eleitoral e como este influencia o processo democrático no
longo prazo, analisar a governança eleitoral para identificar fraquezas a fim de corrigi-las e
virtudes com o objetivo de resguardá-las.
Enfim, a compreensão dos ciclos eleitorais de curto, médio e longo prazo -
segmentação metodológica para fins de análise - oferece a possibilidade de se apreciar sob a
perspectiva das eleições a dinâmica do processo democrático.
O contexto para este tipo de análise pode se modificar bastante conforme a
estrutura de governança e o tamanho das legislaturas previstas para cada país. Por isso, esta
etapa será realizada levando-se em conta a legislação eleitoral, o tamanho dos mandatos
eleitorais e o horizonte constitucional no Brasil, pós Constituição de 1988.
Os ciclos eleitorais de curto prazo referem-se ao conjunto de atividades e etapas
previstas para cada processo eleitoral, para cada eleição.
192
O ciclo eleitoral de curto prazo é composto pela sequência de etapas sucessivas
conforme indicado na figura a seguir (NORRIS, 2015, p. 12):57
Figura 2: Ciclo eleitoralFonte: Pippa Norris, 2015
Conforme visto ao longo deste capítulo, o conceito de ciclo eleitoral abrange
todas as fases do processo eleitoral e não apenas o período compreendido entre o registro de
candidatos e a votação. A integridade das eleições está associada com cada uma dessas fases.
Essa noção colabora para resolver questões envolvendo a competência e extensão
de poderes da autoridade reguladora no tempo, como por exemplo questionamentos
relacionados ao período para exercício de poder de polícia legitimo. Sob esta perspectiva, a
autoridade reguladora possuiria poder de polícia durante todas as fases, assim como suas
demais competências e poderes também alcançariam todo o ciclo eleitoral.
As etapas acima indicadas abarcam as principais fases do ciclo eleitoral que
podem ser desdobradas em muitas outras atividades, como por exemplo: a previsão de
orçamento e financiamento para as eleições; a publicação da legislação eleitoral que irá
57 No mesmo sentido ver: Electoral Cycle (ACE PROJETC); The Electoral Cycle (IDEA, 2010, pag. 16).
193
regular a competição; a expedição das normas que irão regular a competição eleitoral;
publicação do calendário eleitoral; o planejamento do processo eleitoral e de sua logística
operacional e de infraestrutura; o alistamento de eleitores; o registro de partidos políticos; a
capacitação e treinamento de todos os envolvidos; as campanhas públicas educativas, a
aquisição de bens e serviços; a regulação e supervisão das ações de partidos políticos e pré-
candidatos; a definição da lista de eleitores que cumprem as condições para votar nas
eleições; o registro de candidatos; a definição dos candidatos, partidos e coligações que irão
disputar as eleições; a propaganda eleitoral; o acompanhamento e supervisão da propaganda
eleitoral; o registro, acompanhamento e supervisão de pesquisas eleitorais; o
acompanhamento e a supervisão do financiamento de campanhas; a preparação e entrega da
logística e da infraestrutura para a realização da votação e apuração dos votos; a resolução das
disputas que emergirem durante essa fase do processo eleitoral; a prestação de contas de
campanha e sua apreciação; a proclamação e a diplomação dos eleitos. Note-se que toda a
atividade partidária relacionada à escolha dos candidatos que irão concorrer ao próximo pleito
está abrangida pelo ciclo eleitoral.
A última fase, relacionada aos órgãos eleitorais, abrange a avaliação de
planejamentos, estratégias, reformas, revisões e avaliações em relação à legislação eleitoral, à
atuação da autoridade gestora e das partes interessadas no processo eleitoral a fim de que
ações voltadas para aperfeiçoamento de procedimentos e processos sejam realizadas.
Cada ciclo eleitoral deveria, em tese, estar completo antes do início do ciclo
seguinte de forma que a legitimação dos resultados eleitorais fosse definitiva antes da
diplomação dos eleitos. No entanto, em razão da complexidade dos procedimentos
regulatórios, de limitações financeiras e de tempo, os ciclos eleitorais tendem a funcionar de
forma sobreposta, podendo, no tempo, haver condução simultânea de etapas de ciclos
eleitorais de curto prazo diferentes, e ainda a mistura de procedimentos de eleições com
consultas populares, referendos ou plebiscitos, ou eleições suplementares.
Os ciclos eleitorais de médio prazo podem ser avaliados sob a perspectiva dos
mandatos eleitorais. No Brasil, as eleições ocorrem a cada dois anos, sendo realizadas as
eleições gerais para cargos eletivos estaduais e federais a cada quatro anos e as eleições
municipais, também a cada quatro anos, de forma que há ciclos eleitorais de curto prazo no
Brasil a cada dois anos e de médio prazo a cada quatro anos.
194
A sobreposição natural dos ciclos de médio prazo com ciclos de curto prazo já
ocorre, no Brasil, em razão da legislação eleitoral, que prevê eleições gerais e municipais
intercaladas a cada dois anos. Imagine-se agora a sobreposição de ciclos eleitorais de curto
prazo, seja por não terem sido concluídos no prazo previsto ou pela existência de ciclos
eleitorais de curto prazo extraordinários, como eleições suplementares e consultas populares.
Esta situação faz com que os diversos ciclos, tanto de curto quanto de médio prazo, sejam
sobrepostos impactando diretamente as atividades e prazos da governança eleitoral, que
precisará trabalhar em níveis diferenciados de ação simultaneamente.
Sobre os ciclos eleitorais de médio prazo, seriam pertinentes estudos para
estabelecer as relações de causa e consequência entre o tipo de eleição, se geral ou municipal,
e as normas produzidas; os impactos de cada tipo de eleição para a governança de médio
prazo; a participação e influência das partes interessadas na legislação eleitoral; verificar se há
vínculos estabelecidos entre as partes interessadas que possam interferir na composição das
autoridades eleitorais; analisar se há diferença substancial no padrão de governança
democrática no médio prazo e suas causas; verificar quais são os atores com participação
influente e que mecanismos de participação funcionam e quais são insuficientes.
Há uma ampla agenda de pesquisa sobre ciclos eleitorais no médio prazo que ao
ser estabelecida pode trazer informações relevantes para aperfeiçoamento da governança
eleitoral.
Os ciclos eleitorais de longo prazo são formados a partir das relações que se
consolidam ao longo do tempo como resultado das práticas adotadas pela governança
eleitoral, em um horizonte constitucional. Em geral, a análise de políticas públicas de longo
alcance e de grande impacto são pensadas levando-se em conta esta dimensão. É possível
realizar um corte metodológico para se avaliar os ciclos de longo prazo considerando-se o
passado e o futuro.
Para análise do passado, é factível o estudo de cada ciclo constitucional. Para
avaliação de perspectivas do futuro não há como ser previsto o horizonte de funcionamento da
constituição em vigor, assim, sugere-se que um bom parâmetro para se analisar ciclos de
longo prazo, voltados para o futuro, é a adoção do parâmetro de tempo proposto pelo Ace
Project (ACE PROJECT) que indica que a arquitetura e funcionamento da governança
eleitoral deve ser avaliada pensando-se nos próximos dez anos, ao invés de apenas reagir a
cada evento eleitoral. Outra possibilidade seria realizar cortes metodológicos para os ciclos
195
de longo prazo, considerando-se os diversos períodos de governo dos partidos vencedores nas
eleições presidenciais, estaduais ou municipais, a depender do enfoque que se pretenda
priorizar. Assim, os ciclos de longo prazo poderiam ser considerados sob pelo menos três
perspectivas distintas: a perspectiva do horizonte constitucional, a perspectiva do horizonte de
tempo em que cada partido ou coligação vencedora permaneceu ocupando o poder e ainda a
perspectiva de se pensar e observar tais ciclos a cada dez anos.
Independente da perspectiva adotada, é importante ressaltar que rotinas para
supervisão do cadastro de eleitores, solução de disputas que emergem fora do período
eleitoral, acompanhamento e supervisão das atividades políticas e financeiras de partidos
políticos, aperfeiçoamento do sistema de votação e dos diversos aspectos da governança
eleitoral, definição de políticas públicas para regulação do processo eleitoral como um todo, e
não apenas como um evento isoladamente considerado, são atividades constantes dos órgãos
gestores das eleições que funcionam de forma permanente e portanto precisam também ser
articuladas levando-se em conta horizonte temporal mais longo do que os ciclos de curto e
médio prazo.
Trata-se de abordar a governança eleitoral sob a perspectiva de aprofundamento
do processo democrático e da manutenção e garantia das condições que permitam a existência
de competição eleitoral íntegra, ou seja, que garantam a certeza dos procedimentos para
garantir a incerteza dos resultados.
O funcionamento do sistema eleitoral é complexo e somente pode ser
compreendido adequadamente em suas múltiplas perspectivas de tempo, de sujeitos e das
instituições envolvidas. Todos estes componentes formam uma ampla rede de relações que se
desenvolve no tempo e apresentam marcos significativamente interligados.
Eleições significam na verdade uma das pontas do iceberg chamado democracia.
As grandes mobilizações que se realizam para um dia de votação a cada eleição - esta é
sempre a aparência -, a um observador desavisado, pode parecer uma sequência de momentos
isolados que no tempo renovam a representação política. No entanto, a ideia de ciclos
eleitorais demonstra que esse é um longo e permanente processo político construído de etapas
que se sucedem para marcar no tempo os acordos sociais, políticos e econômicos de uma
determinada sociedade, através dos quais uma ampla miríade de interesses é escalonada e
divergências são acomodadas por canal político pacífico.
196
As fases dos ciclos eleitorais compõem-se de uma vasta e complexa lista de
atividades que precisam ser adequadamente identificadas, encadeadas e monitoradas a fim de
se garantir a integridade do processo eleitoral. A lisura e a realização adequada de uma fase
são pré-requisitos para o sucesso e legitimidade da fase seguinte, o que demonstra que a
questão da legitimidade do processo eleitoral necessita ser permanentemente construída a
cada ciclo que se inicia, em suas três dimensões temporais. Esse é o desafio que aqui se
registra como relevante: compreender como a atuação da autoridade eleitoral, enquanto
agente regulador do processo eleitoral, pode contribuir para a legitimidade da representação
política, em sua gênese, ou seja, na escolha legitima de seus representantes.
Os desafios técnicos, políticos e jurídicos existentes em cada ciclo eleitoral
demonstram sua complexidade e colaboram para vencer a avaliação ingênua de que eleições
são apenas uma questão de logística para levar eleitores a escolher candidatos no dia das
eleições.
Os mandatos eleitorais, a legislação eleitoral, as partes interessadas do processo
eleitoral, a influência do dinheiro na política, os interesses econômicos e políticos divergentes
são componentes que impactam diretamente os ciclos eleitorais e a atuação institucional do
agente regulador desse processo. Ao lado dos mecanismos de legitimação de suas ações,
aparecem como pontos chave para manter o equilíbrio dessas relações oferecer credibilidade e
confiança no processo eleitoral, assim como garantir a estabilidade das relações políticas e de
sua renovação.
Autoridades eleitorais funcionam como salvaguardas do processo eleitoral, dos
princípios constitucionais e dos direitos eleitorais fundamentais e apresentam função essencial
para a democracia que somente são efetivamente percebidas em momentos de crise. Ter
instituições que consigam resolver disputas e conciliar interesses políticos através de eleições,
respeitando as regras do jogo previamente definidas, com aceite dos resultados pelos
participantes vencidos é um dos maiores desafios democráticos contemporâneos.
As autoridades eleitorais atuam como instâncias indutoras da estabilização do
processo político e como fonte de garantia e de legitimação dos direitos políticos eleitorais.
Os consensos intersubjetivos legítimos que vão se estabelecendo através das decisões dos
órgãos eleitorais e através da regulação eleitoral sedimentam e enraízam na sociedade a
construção do conceito de cidadania e de legitimidade democrática, colaborando para a
consolidação da democracia.
197
Os desafios para autoridades eleitorais não são pequenos: instituir mecanismos e
procedimentos claros, fazer rodar os ciclos eleitorais de forma legitima e chegar a resultados
aceitos por todos. Tais desafios são imensos e requerem comprometimento e aperfeiçoamento
constante, maturidade institucional e boa governança.
CAPÍTULO 5
INSTITUIÇÕES DE REGULAÇÃO ELEITORAL
No início do século XX, as competências em matéria eleitoral eram inseridas na
estrutura de poder conforme as funções típicas de estado associadas a órgãos já estabelecidos
que acumulavam as funções de organizar eleições. As transformações verificadas ao longo do
mesmo século, derivadas da reorganização de forças dentro do Estado, trouxeram radicais
mudanças na arquitetura institucional do sistema eleitoral, sendo a mais evidente a separação
dos órgãos eleitorais das estruturas tradicionais de poder com as correspondentes atribuições
de autonomia e independência.
A transformação da arquitetura institucional de sistemas eleitorais ocorreu em
todo o mundo e, após a terceira onda democrática, nos últimos anos do século XX, apresentou
amplo impacto para diversos países da América Latina, do Leste Europeu e na África do Sul.
Esse fenômeno que despertou a atenção de estudiosos e de organismos
internacionais teve como um de seus resultados a definição de alguns critérios mínimos para
comparação e avaliação das autoridades eleitorais nos diversos países. Rafael López-Pintor
publicou em 2000 a obra “Electoral Management Bodies as Intitutions of Governance”, e a
International IDEA – Institute for Democracy and Electoral Assistance (2010, 2014) publicou
em 2007 dois manuais: “Electoral Management Design: The International IDEA Handbook”,
revisto e atualizado em 2014, e “Electoral Justice: The International IDEA Handbook”,
revisto em 2010.
Esta análise é crítica na medida em que o modelo de governança eleitoral adotado
por um país é determinante para o funcionamento do sistema eleitoral. E o modelo de
governança eleitoral é diretamente impactado pela distribuição de competências entre os
órgãos eleitorais.
As diferentes formas de distribuição de competências em matéria eleitoral criam
sistemas de gestão eleitoral distintos, e, portanto, instituições eleitorais com naturezas
jurídicas muito diferentes. E tais diferenças apresentam consequências significativas na
medida em que diferentes formas de distribuição de funções requerem também formas
alternativas de legitimação dos respectivos discursos, sob pena de enfraquecimento e
deslegitimação do sistema de direitos.
199
A International IDEA – Institute for Democracy and Electoral Assistance é uma
organização internacional que busca consolidar princípios e orientações sobre o núcleo
mínimo e essencial que deve compor uma arquitetura para organização legitima do processo
eleitoral.
Pela expertise desta organização, que estuda o processo eleitoral no mundo, em
conjunto com diversos pesquisadores e com outras organizações, entendeu-se que o
conhecimento por ela sistematizado constitui-se como um sólido ponto de partida para
referenciar a análise que ora se pretende desenvolver.
O manual Electoral Justice publicado pela International, apresenta os
componentes essenciais de um Sistema de Justiça Eleitoral institucionalizado: legislação
eleitoral, sistema eleitoral, sistema partidário e cultura política (IDEA, 2010, pag. 4). Já o
manual Financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais também da International
IDEA - traduzido em 2015 para o português através do esforço conjunto realizado pelo
Tribunal Superior Eleitoral e pela Fundação Getúlio Vargas - registra que os objetivos e a
cultura política de um determinado país influenciam as metas políticas estabelecidas e por
consequência a forma como as normas eleitorais são aprovadas e como eleições são
conduzidas.
Assim, tendo por parâmetro tais elementos e para fins de análise e
contextualização da exposição, algumas premissas serão adotadas.
A primeira premissa adotada é a de que um Sistema Eleitoral institucionalizado
tem seu núcleo composto pelos seguintes elementos (IDEA, 2010, p.4):
- Legislação Eleitoral - Constituição e normas eleitorais e partidária: arcabouço
jurídico que define princípios e diretrizes do Estado, sistema de governo, forma de governo,
garantias e direitos políticos de participação individuais e coletivos, sistema partidário,
sistema eleitoral, mandatos e atribuições de competência política, enfim, as fronteiras e
normas gerais do jogo político e do processo eleitoral;
- Arquitetura Institucional Eleitoral: indicação das principais instituições
responsáveis pela condução do processo eleitoral e as competências a estas atribuídas;
- Sistema Partidário: estrutura de partidos políticos e suas normas internas;
- Sociedade civil e cidadãos: indicação dos principais sujeitos da democracia;
- Outras partes interessadas no processo eleitoral: todos os envolvidos com
responsabilidades e direitos relacionados ao processo eleitoral e ainda a rede de observadores
209
internos e externos do processo eleitoral que colaboram para o alinhamento das práticas
eleitorais à legislação;
- Cultura política: contexto no qual se insere o processo eleitoral, os objetivos e
metas do sistema político.
O foco desse capítulo é discutir teoricamente as possibilidades de configuração da
arquitetura institucional eleitoral e sua associação com as dimensões da governança
eleitoral, para identificar em que hipóteses a distribuição de competências entre os órgãos ou
instituições que a compõe pode resultar na criação de uma autoridade reguladora eleitoral e na
adição da dimensão regulatória autônoma à governança eleitoral.
Esse ponto é central para a pesquisa pois permitirá o desenvolvimento de critérios
objetivos para responder se a Justiça Eleitoral brasileira é, de fato, um órgão regulador híbrido
ou se sua atuação deve restringir-se apenas às suas funções judiciais tradicionais e se isso
convém, em um Estado Democrático, ou sé é sinal de uma distorção que compromete o
equilíbrio perseguido com a separação das funções-poder do Estado Constitucional.
A segunda premissa adotada assume que a arquitetura institucional eleitoral de um
determinado país, o desenho institucional das autoridades responsáveis pela condução do
processo eleitoral, é determinado pela distribuição de competências associadas às quatro
dimensões da governança eleitoral: elaboração de normas, aplicação de normas, adjudicação
de normas e regulação através de normas.
A organização de eleições pressupõe o desenvolvimento de uma série de
atividades especializadas e complexas que por esta razão normalmente são atribuídas a uma
instituição ou instituições que ficam responsáveis por sua execução.
Assim, para melhor compreensão dessas instituições, será apresentada uma síntese
dos principais pontos relevantes para esta pesquisa, que foram retirados do manual intitulado
“Electoral Management Design: The International IDEA Handbook” (IDEA, 2014) - este
manual trata do órgão responsável pela organização das eleições -, e do manual “Electoral
Justice: The International IDEA Handbook” (2010) - que aborda a estrutura de sistemas para
solução das disputas que emergem do processo eleitoral.
No manual “Electoral Management Design” é cunhado o termo “Electoral
Management Body - EMB” para referir-se a um órgão gestor das eleições, independente da
natureza jurídica da instituição que organiza seus procedimentos. Cabe registrar que no
201
LEGISLAÇÃO ELEITORALARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORALSOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOSPARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL
CULTURA POLÍTICA
GOVERNANÇA ELEITORAL
OGE - ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORALSJE - SISTEMA DE JUSTIÇA ELEITORAL
SISTEMA ELEITORAL
SISTEMA PARTIDÁRIO
Brasil, no manual da International IDEA - Financiamento de partidos políticos e campanhas
eleitorais (2015) - o termo foi traduzido como Órgão de Gestão Eleitoral – OGE.
O termo “Electoral Dispute Resolution System – EDRS” refere-se ao Sistema de
Justiça Eleitoral, sistema responsável por solucionar as disputas e compor os conflitos
emergentes durante o processo eleitoral, sendo o termo “Electoral Dispute Resolution Body –
EDRB” utilizado para referir-se à instancia de último recurso para decidir as questões em
matéria eleitoral.
Ou seja, a arquitetura institucional eleitoral é composta por uma instituição ou
instituições responsáveis pela gestão eleitoral e por um sistema de justiça eleitoral.
Figura 3: Composição da arquitetura institucional eleitoralFonte: elaborado pelo autor
As diversas possibilidades para institucionalização da gestão eleitoral e do sistema
de justiça eleitoral dão origem a arquiteturas institucionais eleitorais distintas, e, por
consequência, a órgãos ou instituições eleitorais diferenciados, sendo a institucionalização de
um autoridade reguladora eleitoral resultado de formas específicas de composição dos níveis
de governança eleitoral, ou seja, da forma como são combinadas e institucionalizadas as
atribuições de uma instituição de gestão eleitoral com um sistema de justiça eleitoral. É o que
será visto a seguir.
202
5.1 Órgão de Gestão Eleitoral - OGE
O órgão de gestão eleitoral tem a competência constitucional/legal para gerir as
fases e os elementos essenciais do processo eleitoral assim como dos instrumentos de
participação direta previstos pelo ordenamento jurídico, como referendos e plebiscitos no caso
brasileiro, e o recall nos países que adotam este mecanismo de controle político. Pode haver
uma única autoridade de gestão eleitoral com todas as atribuições ou podem ser designadas
diversas instituições ou vários órgãos com as competências de gestão eleitoral distribuídas
entre eles.
Existem basicamente três modelos de gestão eleitoral: o Modelo Independente, o
Modelo Governamental e o Modelo Misto (IDEA, 2014, p. 6 e ss).
O Modelo Independente considera a existência de uma instituição responsável
pela gestão eleitoral independente e com autonomia administrativa e financeira, sem
ingerência ou submissão ao Poder Executivo. Diversas democracias emergentes e recentes,
nos últimos vinte e cinco anos, escolheram esse modelo. São exemplos de países que adotam
esse modelo: Armênia, Bósnia Herzegovina, Canadá, Costa Rica, Índia, Indonésia, Brasil,
Polônia, África do Sul, Tailândia e Uruguai. Há países que adotam dois órgãos independentes
para gestão eleitoral, distribuindo entre estes as competências de gestão do processo eleitoral:
um órgão fica responsável pelas decisões políticas e outro fica responsável pela efetiva
administração e implementação do processo eleitoral. Exemplo: Jamaica e Romênia (IDEA,
2014, pag. 7).
No Modelo Governamental as eleições são organizadas por um órgão do Poder
Executivo, podendo ser organizadas de forma nacional e/ou local. São exemplos de países que
utilizam esse modelo de órgão de gestão eleitoral: Suécia, Suíça, Dinamarca, Reino Unido,
Estados Unidos (IDEA, 2014, pag. 7).
O Modelo Misto de gestão eleitoral apresenta uma dupla composição: há um
órgão independente responsável por definir políticas, monitorar ou supervisionar o processo
eleitoral, como no Modelo Independente, e um órgão responsável pela organização e
implementação do processo eleitoral ligado ao Poder Executivo, como no Modelo
Governamental. Neste modelo o órgão responsável pela organização e implementação é
supervisionado pelo órgão independente. Exemplo de países que adotam este modelo:
França, Japão, Espanha.
COMISSÃO ELEITORAL
COMISSÃO ELEITORAL
CENTRAL Ad hoc + MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA
CONSELHO ELEITORAL + MINISTÉRIO
DO INTERIOR
AUTORIDADE LOCAL
203
Note-se, mais uma vez, que no Modelo Misto ficam evidentes as competências
atribuídas a órgãos de gestão eleitoral para definição de políticas públicas, monitoramento ou
supervisão do processo eleitoral, o que implica na supervisão e fiscalização da ação dos
agentes envolvidos. Neste modelo há uma clara distinção entre as atribuições de gestão,
regulação e supervisão do processo eleitoral e as atividades de logística, ou seja, as atividades
operacionais para organização e implementação das etapas do processo eleitoral.
Uma pesquisa realizada pela International IDEA em 2014 com 217 países buscou
mapear o perfil dos órgãos de gestão eleitoral nos diversos países estudados. O mapeamento
realizado mostrou a seguinte distribuição: 67% dos países adotam o Modelo Independente,
23% adotam o Modelo Governamental e 12% adotam o Modelo Misto, 2% dos países não
adotam eleições no nível nacional (IDEA, 2014, pag. 8).
Serão apresentados a seguir dois quadros que resumem os três modelos de gestão
eleitoral mais difundidos e suas principais características, sendo que todos os quadros foram
retirados do Handbook on Electoral Management Design (IDEA, 2014, pag. 10-11):
TRÊS MODELOS DE GESTÃO ELEITORAL
MODELO INDEPENDENTE MODELO GOVERNAMENTAL
ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE INDEPENDENTE
ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE GOVERNAMENTAL
ou ou ou
Figura 4: Três principais Modelos de Gestão Eleitoral
Fonte: IDEA, 2014.
COMO POR EXEMPLO COMO POR EXEMPLO COMO POR EXEMPLO
TRIBUNAL ELEITOR
MINISTÉRIO DO
INTERIOR
MODELO MISTO
ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL
- OGE
ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE
GOVERNAMENTAL
204
Quadro 3: Características dos principais Modelos de Gestão Eleitoral
CARACTERÍSTICAS DOS TRÊS MODELOS DE GESTÃO ELEITORAL MAIS DIFUNDIDOS
ASPECTOS DO MODELO DE
GESTÃO ELEITORAL
MODELO INDEPENDENTE
MODELO GOVERNAMENTAL
MODELO MISTO
COMPONENTE INDEPENDENTE
COMPONENTE GOVERNAMENTAL
- OGE(s)OGE INDEPENDENTE OGE GOVERNAMENTAL
OGE - COMPONENTE INDEPENDENTE
OGE - COMPONENTE GOVERNAMENTAL
ARRANJO INSTITUCIONAL
É institucionalmente independente do poder
executivo
Está subordinado a um departamento de Estado
e/ou ao governo local
É institucionalmente independente do poder
executivo
Está subordinado a um departamento de
Estado e/ou ao governo local
Possui autonomia para A implementação está
IMPLEMENTAÇÃO DA ELEIÇÃO
Possui total responsabilidade pela
implementação
A implementação está sujeita às diretrizes do
poder executivo
monitorar ou supervisionar, e em alguns casos para
determinar a política de
sujeita às diretrizes do poder executivo, e em algumas situações às
diretrizes e supervisãoimplementação do órgão independente
Não se reporta ao poder Não se reporta ao poderexecutivo mas com executivo mas com
ACCOUNTABILITYFORMAL
algumas exceções é formalmente accoutable
para a legislatura, o
Totalmente accountable para o poder executivo.
algumas exceções é formalmente accoutable
para a legislatura, o
Totalmente accountable para o poder executivo.
judiciário ou para o judiciário ou para oresponsável pelo estado responsável pelo estado
PODERES
Possui poderes para desenvolver a moldura
regulatória de forma independente conforme
a legislação.*
Os poderes são limitados à implementação
Em geral, possui poderes para desenvolver a
moldura regulatória de forma independente
conforme a legislação.Monitora ou supervisiona
aqueles que implementam as eleições
Os poderes são limitados à
implementação
COMPOSIÇÃO
É composto por membros que estão fora
do poder executivo enquanto atuam no
órgão eleitoral
É conduzido por ministro ou servidor público. Com
algumas exceções não possui "membros",
apenas uma secretaria.
É composto por membros que estão fora do poder
executivo enquanto atuam no órgão eleitoral.
É conduzido por ministro ou servidor
público. Com algumas exceções não possui
"membros", apenas um secretaria.
MANDATO
Possui garantias para o mandato, mas não necessariamente
mandato fixo
Usualmente não possui membros, então não se
aplica. A equipe da secretaria é de
servidores públicos sem garantias de mandato.
Possui garantias para o mandato, mas não necessariamente
mandato fixo
O mandato não possui garantias.
ORÇAMENTOPossui orçamento
proprio e autonomia orçamentária
O orçamento é parte do orçamento do ministério ou da autoridade local.
Possui orçamento separado.
O orçamento é parte do orçamento do
ministério ou da autoridade local.
* Poucos países que utilizam o modelo Independente ou Misto de gestão eleitoral não possuem EMBs independentes com poderes regulatórios
Fonte: IDEA, 2014.
205
Note-se que, em relação ao Modelo Independente, modelo de maior relevância
para esta pesquisa, o manual apresenta as seguintes características: independência do órgão
em relação ao poder executivo, ampla responsabilidade pela implementação das eleições,
responsabilização formal, sem subordinação a órgão do poder executivo, perante órgão do
poder judiciário ou legislativo (controle/accountability), forma de composição e garantias de
mandato expressa e autonomia orçamentária.
Importante ainda registrar que no manual é assumido explicitamente que no
Modelo Independente de gestão eleitoral o órgão eleitoral possui poderes para determinar a
moldura regulatória eleitoral de forma independente, com o devido respeito à legislação,
sendo que poucos países que adotam o Modelo Independente ou Misto de gestão eleitoral não
possuem órgãos de gestão eleitoral, OGE, com poderes regulatórios. Aqui, por tudo que já foi
dito nos capítulos anteriores, assume-se que quando o manual faz referência a poderes para
desenvolver a moldura regulatória eleitoral de forma independente e nos limites da lei, o
manual está se referindo à utilização de direito regulador pelo órgão de gestão eleitoral, e,
portanto, ao uso de função regulatória autônoma.
O Modelo Independente de Gestão Eleitoral, como dito anteriormente, é utilizado
por 63% dos 214 países pesquisados (IDEA, 2014, p. 8) o que conduz à constatação de que
em cada um dos países, a depender de diversos fatores, o órgão de gestão eleitoral terá
especificidades muito próprias e graus de autonomia diferenciados. No entanto, já é possível
perceber que as características associadas às instituições de gestão eleitoral, conforme o
Modelo Independente, aproximam-se bastante das características associadas a autoridades
reguladoras autônomas que se consolidaram no final do último século.
Os órgãos de gestão eleitoral podem ser permanentes ou temporários a depender
da frequência das atividades eleitorais, independente do modelo escolhido. Os seguintes
países apresentam órgãos permanentes de gestão eleitoral: Brasil, Armênia, Austrália,
Canada, Indonésia, México, Filipinas, África do Sul e Tailândia, entre outros (IDEA, 2014, p.
30).
Em países com estrutura federativa, os órgãos de gestão eleitoral podem ter
natureza nacional e local. A relação estabelecida e a distribuição de funções e
responsabilidades entre o conjunto de órgãos eleitorais irão depender da legislação. Na
Austrália e no Canadá, o órgão de gestão eleitoral nacional é responsável pelas eleições
nacionais e os órgãos locais possuem a atribuição de conduzir as eleições em sua
206
circunscrição. Na Índia, o órgão de gestão eleitoral nacional supervisiona controla as eleições
regionais. Na Nigéria a competência para conduzir eleições nacionais, estaduais e realizar
referendos é responsabilidade do órgão eleitoral nacional e os órgãos locais conduzem apenas
a eleição local. Na Suíça, o órgão de gestão eleitoral tem competência para realizar a
coordenação política e as autoridades locais possuem competência para conduzir as eleições
(IDEA, 2014, p. 18).
Os órgãos de gestão eleitoral podem ainda ser classificados como centralizados ou
descentralizados. Pode existir um órgão central responsável por todo o processo eleitoral ou
uma estrutura hierárquica de órgãos de gestão do processo eleitoral legalmente definida,
responsável pelas atividades nacionais, regionais e locais, com atribuições e competências
previamente definidas para cada nível.
Uma estrutura de órgão de gestão eleitoral descentralizada e permanente está mais
apta a garantir a continuidade das atividades eleitorais, assim como maior inclusão e
transparência na governança eleitoral.
5.1.1 Princípios que devem reger as atividades dos Órgãos de Gestão Eleitoral
A legitimidade, credibilidade e integridade do processo eleitoral estão diretamente
relacionadas às garantias atribuídas às instituições responsáveis pela gestão das eleições, das
consultas populares e dos mecanismos de controle político adotados, nos termos da
competência a estas relacionada.
Assim, a atuação legítima do órgão de gestão eleitoral deve pautar-se pelos
seguintes princípios, como fundamentos para a administração do processo eleitoral e garantia
de sua integridade: independência, imparcialidade, integridade, transparência, eficiência,
profissionalismo e comprometimento com os serviços prestados (IDEA, 2014, p. 21). Vale
registrar que uma atuação conforme tais princípios normalmente é favorecida pelo Modelo
Independente de órgão gestor das eleições. Aqui já é possível iniciar uma comparação entre os
princípios para uma atuação legitima do órgão eleitoral indicados pelo Manual e os requisitos
para que uma instituição seja considerada uma autoridade reguladora independente, conforme
descrito no terceiro capítulo.
207
O atributo de independência do órgão ou órgãos de gestão eleitoral pode ser
descrito sob duas perspectivas distintas: como independência estrutural prevista pela lei ou
pela Constituição, como no Modelo Independente de gestão eleitoral, e como independência
funcional, enquanto a capacidade do órgão de gerir o processo eleitoral e tomar decisões de
fato independentes das pressões ou influências governamentais e políticas. Mais uma vez
está registrada a questão da independência reforçada do órgão eleitoral.
Tanto uma cultura de preservação de independência nas decisões quanto o
compromisso dos membros do órgão de gestão das eleições para respeito ao devido processo
de formação das decisões são elementos cruciais para assegurar a independência em seu
aspecto material. Em alguns países como Brasil, Costa Rica, Austrália e Zâmbia membros do
Poder Judiciário são nomeados para o órgão de gestão eleitoral, a fim de garantir esses
objetivos.
A imparcialidade é o atributo que garante a confiança no processo eleitoral e,
portanto, o respeito e acolhimento ao resultado das eleições por todos os envolvidos. A
confiança de todos os participantes do jogo eleitoral depende da credibilidade na
imparcialidade do órgão gestor das eleições quanto às suas decisões e ações.
A imparcialidade garante o equilíbrio entre todos os participantes da disputa
eleitoral, tanto perdedores como vencedores, fazendo com que o resultado do processo
eleitoral possa ser aceito e respeitado por todos, nos termos das regras do jogo previamente
definidas.
Existem procedimentos que colaboram significativamente param uma atuação
imparcial do órgão gestor das eleições e, principalmente, para a percepção de imparcialidade
por cidadãos e pela sociedade civil: a adoção de códigos de conduta com fortes sanções para
os gestores e autoridades com competência decisória, a fiscalização de suas ações, a
instituição de mecanismos de transparência e de responsabilização de todas as partes
envolvidas no processo eleitoral (IDEA, 2014, pag. 20 e ss).
Nesse ponto, a imparcialidade descrita pelo manual pode ser correlacionada com a
legitimidade da imparcialidade descrita por Pierre Rosanvallon (2011). A confiança mútua de
todas as partes interessadas no processo eleitoral depende de garantir a todos reais e
equitativas possibilidades de participação. Pode ser ainda avaliada pela perspectiva de
Habermas, quanto à instituição do sistema de direitos e à institucionalização de mecanismos
para legitimar os discursos produzidos.
A maior responsabilidade por garantir a integridade do processo eleitoral cabe à
instituição gestora de tal processo, esta é a maior responsável por criar as condições de aferir
208
se seus agentes e os demais envolvidos estão agindo de forma íntegra e, portanto, protegendo
a lisura do processo eleitoral. A legislação eleitoral, incluída a legislação produzida a partir de
poderes regulatórios atribuídos à autoridade gestora do processo eleitoral, deve prever normas
para garantir a integridade do processo eleitoral e, por consequência, para prevenir corrupção
e desvio de interesses nas ações de todos os agentes envolvidos neste processo (ACE
PROJECT).
A transparência é o mecanismo pelo qual as políticas públicas, a atividade
regulatória e a administração operacional e financeira do órgão gestor das eleições podem ser
acompanhadas. É ainda o mecanismo através do qual cidadãos podem acompanhar e
monitorar os ciclos eleitorais em suas distintas dimensões temporais.
A instituição de mecanismos de transparência colabora para identificação e
implementação de boas práticas assim como para identificação de tentativas de fraude
financeira ou eleitoral, de má gestão ou de captura do agente regulador, permitindo o
adequado tratamento de desvios e o aumento da credibilidade e da reputação da instituição.
A institucionalização de práticas de governança eleitoral, tanto regulatórias, como
administrativas e financeiras, para acompanhar a execução das atividades do órgão de gestão
eleitoral é pratica essencial para avaliação de sua eficiência.
O processo eleitoral demanda diversos conhecimentos técnicos e especializados
que precisam ser coerentemente organizados para funcionar em escalas de tempo definidas
pelo calendário eleitoral. A capacitação e envolvimento de dirigentes, gestores, servidores e
demais envolvidos no processo eleitoral é ponto crítico para o sucesso de uma eleição e para
credibilidade em seus procedimentos.
A prestação de serviços eleitorais e a regulação das atividades privadas de
interesse público na esfera eleitoral, pela instituição de gestão das eleições, é a razão essencial
de sua existência. O claro delineamento de tais serviços e atividades, assim como a definição
de metas e parâmetros gerenciais para aferir e acompanhar a sua execução permitem o
aperfeiçoamento dos processos de trabalho, contribuindo para aumentar a confiança no
processo eleitoral e o seu controle.
Com o objetivo de síntese, apresenta-se abaixo princípios indicados pelo manual
Handbook on Electoral Management Design (2014, p. 47) que deveriam estar previstos na
Constituição, relacionados aos órgãos de gestão eleitoral:
- Independência do OGE;- Composição do OGE;- Mandato dos membros do OGE;- Funções e poderes do OGE;
209
- Direitos associados ao sufrágio ou requisitos para qualificação do eleitor;- Direitos dos partidos políticos;- Parâmetros para delimitação da circunscrição eleitoral ou autoridade
competente;- Sistema para eleição presidencial;- Sistema para eleição do órgão legislativo nacional;- Direitos ou qualificação exigida para concorrer a cargo eletivo;- Periodicidade das eleições;- Mecanismos para organização das disputas eleitorais.
No mesmo sentido, apresenta-se abaixo um checklist elaborado pelo International
IDEA (2014, p.49) relacionado à estrutura legal para órgãos de gestão eleitoral com a
finalidade de verificar se há estrutura normativa (legal framework) adequada no país:
a. A estrutura normativa garante que o OGE seja constituído como uma instituição independente e imparcial?
b. A estrutura normativa capacita o OGE para operar de forma imparcial e transparente?
c. A estrutura normativa protege os membros e servidores de dispensa arbitrária?d. A estrutura normativa estabelece o sistema de accountability, poderes, funções
e responsabilidades do OGE em cada um dos níveis e as relações entre os diversos níveis?
e. A estrutura normativa adequadamente estabelece a relação entre o OGE e as partes interessadas externas?
f. A estrutura normativa estabelece diretrizes claras para todas as atividades do órgão de gestão eleitoral e ainda assim permite flexibilidade prática para suas implementações?
g. A estrutura normativa permite revisão exequível e oportuna das decisões do OGE?
h. A estrutura normativa estabelece prazo suficiente para organização eficaz dos eventos eleitorais?
i. A estrutura normativa garante que o OGE tenha recursos suficientes e oportunos para gerir suas funções e responsabilidades eficazmente?
Os princípios que orientam a previsão e delimitação de órgãos de gestão
eleitoral na Constituição e o checklist fornecidos pelo International IDEA buscam prover
referenciais objetivos e de fácil análise para avaliação da estrutura normativa relacionada à
arquitetura institucional da gestão eleitoral de um determinado país. Essas diretrizes foram
consolidadas a partir das boas práticas e de experiências bem-sucedidas identificadas no
estudo dos 217 países que integram a base de dados da organização e dos estudos realizados
nos últimos anos sobre governança eleitoral. Por esta razão configuram-se como um sólido
referencial para análise de um órgão de gestão eleitoral no caso concreto.
210
5.1.2 Funções atribuídas aos Órgãos de Gestão Eleitoral
A história da formação de instituições de gestão eleitoral na América Latina
apresenta peculiaridades que contribuem de forma significativa para a análise dessas
autoridades e para a compreensão da arquitetura da governança eleitoral, e por consequência
para a identificação dos poderes, funções e responsabilidade atribuídos estes órgãos (IDEA,
2014, ISSACHAROFF, 2010, p. 978).
A escolha do Modelo Independente de órgãos para gestão das eleições nos países
da América Latina foi uma tendência que se consolidou não apenas no Brasil, como em
diversos outros países da região e em outras democracias recentes. A necessidade de entregar
a organização e administração do processo eleitoral a uma autoridade independente dos
órgãos compostos por agentes eleitos, principalmente independente do Poder Executivo,
apareceu como forma de enfrentar e reduzir a dominação de poderes historicamente
oligárquicos ou de regimes de exceção (IDEA, 2014, ISSACHAROFF, 2010, p. 978 e ss).
Essa estratégia teria permitido a quebra de um ciclo de resolução de disputas de
poder político e conflitos eleitorais através da violência, muitas vezes por meio de conflitos
armados, para buscar forma de solucionar desacordos políticos através de uma linguagem
racionalizada, por meio do Estado de Direito e, portanto, por regras do jogo previamente
definidas. Nestes países, a busca por mecanismos de garantia de eleições livres e justas, ou
seja, por um processo eleitoral íntegro, fez com que a legislação eleitoral fosse tratada de
forma setorizada, como um microssistema, concedendo-se à instituição gestora do processo
eleitoral amplas competências, funções e responsabilidades, independência, autonomia e os
meios para tratar de todo o processo eleitoral (SCHLEICHER, 2011; ISSACHAROFF, 2007,
2010, p. 978).
Pelas razões expostas, amplos poderes foram concedidos às autoridades gestoras
independentes do processo eleitoral, ficando em alguns países tais entes conhecidos como
“quarto poder” do governo, a exemplo do Uruguai e da Costa Rica. Nestes dois países, às
autoridades independentes foram atribuídos poderes para expedir normas regulatórias e
diretrizes, para revisão das normas vinculantes do processo eleitoral, para convocar e conduzir
eleições, para certificar e anular seus resultados, assim como para solucionar todos os
conflitos e disputas eleitorais, sendo que todas as suas decisões são decisões finais e não
podendo ser revistas nem mesmo pelo poder judiciário.
Embora nem todas as instituições eleitorais dos países da América Latina tenham
a mesma extensão dos poderes e funções atribuídos aos órgãos do Uruguai e da Costa Rica,
211
uma vez que suas decisões não estão sujeitas ao controle judicial, ainda assim, alguns destes
órgãos gestores do processo eleitoral possuem poderes para normatizar e regular, com efeitos
vinculantes, todas as atividades do processo eleitoral, assim como para direcionar a
participação de todas as principais partes interessadas – eleitores, partidos políticos,
candidatos, mídia e observadores. Algumas destas autoridades claramente possuem poderes
executivos, legislativos e judiciais explicita ou implicitamente previstos.
Em geral configuram o núcleo essencial das funções das instituições gestoras do
processo eleitoral os poderes para (IDEA, 2014. Pag. 75 e ss):
. Determinar quem pode votar: o exercício da cidadania mediante voto é uma das
pedras fundamentais da democracia. Assegurar que apenas os cidadãos no exercício regular
de seus direitos políticos possam votar é premissa para a legitimidade do processo eleitoral
(essa função abrange a identificação e registro de eleitores, a identificação e registro de
eleitores vivendo em outros países, o desenvolvimento e manutenção de cadastro eleitoral
nacional);
. Registro de candidatos e partidos para a eleição – o direito de concorrer a cargo
público eletivo é um direito político fundamental, e garantir que todos os participantes
obedeçam às normas eleitorais colabora para conferir legitimidade às eleições (estão
abrangidas competências, como por exemplo, para: registro de partidos políticos, regulação
do financiamento partidário, supervisão política das convenções partidárias para escolha de
pré-candidatos);
. Condução do processo de votação – a habilidade de votar com segurança é
atividade fundamental das eleições (abrange poderes para estabelecer o planejamento e
implementação da logística eleitoral, organizar a participação e a capacitação da equipe
envolvida no processo eleitoral, treinamento de delegados de partidos e candidatos, coordenar
a logística de segurança do processo eleitoral, acreditação e regulação da participação de
observadores, adjudicação de disputas eleitorais, organizar a votação em território
estrangeiro);
. Contagem/apuração de votos – garantir que os resultados eleitorais de fato
reflitam a vontade dos eleitores;
. Totalização de votos – conforme o sistema eleitoral para que os vencedores
sejam identificados (envolve poderes para anunciar e certificar resultados eleitorais);
. Condução da organização das eleições de forma que esta obtenha credibilidade
(abrange poderes para promover políticas eleitorais nacionais e regionais, planejar os serviços
212
eleitorais, treinar a equipe envolvida, revisar e aperfeiçoar a estrutura normativa eleitoral e
para realizar auto avaliação da performance do OGE após as eleições.
É necessário registrar que, para fins de classificação de uma instituição como
Órgão de Gestão Eleitoral - OGE, é a competência para realizar as atribuições previstas no
núcleo essencial acima descrito que caracteriza um órgão como uma instituição de gestão
eleitoral - OGE, no sentido indicado pelo manual. Órgãos com competências eleitorais que
não alcançam as atribuições essenciais não são considerados órgãos de gestão eleitoral –
OGEs, como por exemplo as cortes eleitorais (IDEA, 2014, pag. 6).
Além das hipóteses acima, também costumam ser atribuídas à instituição gestora
das eleições funções e poderes para (IDEA, 2014. Pag. 76-77):
. Realizar políticas públicas e elaborar diretrizes eleitorais nacionais ou regionais,
(making electoral policies);
. Planejar serviços eleitorais;
. Capacitar todas as pessoas envolvidas no processo eleitoral;
. Realizar campanhas educativas e informacionais sobre processo eleitoral e
direitos políticos;
. Delimitar as circunscrições eleitorais;
. Planejar e implementar a logística do processo de votação e das demais
atividades do processo eleitoral;
. Coordenar os procedimentos para alistamento eleitoral para adequada e correta
identificação dos eleitores;
. Alistamento eleitoral - desenvolvimento e manutenção de um cadastro eleitoral
nacional;
. Coordenar os procedimentos de registro e de filiação partidária;
. Regular e supervisionar a atividade financeira partidária (regulation of financing
of political parties - political party regulation);
. Registrar convenções partidárias;
. Regular e supervisionar a conduta de partidos políticos e candidatos (regulating
the conduct of the political parties and candidates);
. Regular e supervisionar o comportamento da mídia durante a eleição;
. Regular e fiscalizar as pesquisas de opinião;
. Treinar delegados/observadores de partidos políticos e de candidatos (training
political parties and candidates poll watchers);
213
. Acreditar e regular a ação de observadores do processo eleitoral;
. Proclamar e certificar os resultados das eleições;
. Adjudicar as disputas eleitorais (the adjudication of electoral disputes);
. Revisar e avaliar para adequação a legislação eleitoral e a performance do órgão
gestor das eleições;
. Aconselhar o governo e o parlamento sobre questões de reforma eleitoral;
. Participar em serviços de assistência eleitoral internacional.
O sistema jurídico de alguns países apresenta em sua legislação eleitoral, além dos
poderes e funções atribuídos à autoridade gestora das eleições, previsões quanto às
responsabilidades, obrigações e mecanismos de controle – sistema de accountability -, tais
como a obrigação de prestar contas para um órgão externo, por exemplo.
Outros elementos normativos podem também abranger a previsão de códigos de
conduta, a obrigação de prestar serviço adequado e tratamento justo a todas as partes
interessadas no processo eleitoral, a determinação de padrões de qualidade para os serviços e
materiais de eleição, a obrigatoriedade de manutenção de arquivos eleitorais abrangentes, a
obrigação de transparência e de suas atividades e de prestar contas regularmente, entre outros
(IDEA, 2007. Pag. 69).
A ausência de transparência operacional e regulatória colabora decisivamente para
enfraquecimento da confiança no processo eleitoral assim como para desvios de finalidade e
ações com conflitos de interesse. É exigência para o adequado exercício dos direitos políticos
eleitorais a implementação de mecanismos de accountability que permitam dotar o processo
eleitoral de transparência, boa governança, e, consequentemente, de integridade e confiança.
O princípio de accountability significa que a autoridade gestora das eleições
necessita fornecer periodicamente evidencias às partes interessadas, bem como para o público
em geral, de que suas atividades são efetivas e que estão adequadas aos padrões legais, éticos
e financeiros assim como os serviços prestados são fornecidos com qualidade e presteza.
Transparência ativa a respeito de suas políticas, de ações e serviços previstos, de recursos
utilizados, de avaliação de sua performance, integram os temas que devem constar em
relatórios periódicos de desempenho.
A previsão de mecanismos de auditorias internas e externas, periódicas, também
contribuem para a identificação de fraudes, corrupção e mal feitos, assim como para
aperfeiçoamento de suas práticas e melhor desempenho no exercício de suas atividades
(IDEA, 2007, p. 231 e ss). Essa observação vale inclusive para a atividade partidária.
214
As instituições de gestão eleitoral, enquanto gestores da implementação de
princípios democráticos são diretamente responsáveis por garantir as condições para uma
competição eleitoral justa e íntegra, ou seja, por garantir o devido processo eleitoral. A gestão
eleitoral precisa, portanto, pautar-se pela prestação de contas de seus atos, pela
institucionalização de canais para comunicação e participação efetiva das partes interessadas,
pela instituição de mecanismos para prevenção de comportamentos inadequados e de
conflitos de interesse, e pelo desenvolvimento sustentável do processo eleitoral, enquanto um
dos pilares democráticos.
Entre as funções essenciais da autoridade gestora das eleições, encontra-se ainda:
a necessidade de desenvolvimento de um planejamento estratégico e operacional, para
identificação de parâmetros de avaliação e controle de suas atividades e desempenho (IDEA,
2007, p. 140); assim como a obrigação de proteger a história institucional e a memória
eleitoral coletiva, através da implementação de políticas para gestão e arquivamento de seus
registros, processos e documentos com a finalidade de garantir que estes permaneçam
estruturados, preservados, íntegros e acessíveis (IDEA, 2007, p. 188). Trata-se do princípio
de transparência ativa, que permite efetivo controle social. Se não há planejamento e
parâmetros previamente definidos e nem registros de suas atividades organizados, não há
como ser realizado uma verdadeira responsabilização por atividades nem controle social.
Quanto à avaliação do comportamento de todas as partes envolvidas na
organização e implementação das eleições, constitui boa prática a adoção de códigos de
conduta, pois a ciência deste pelos atores do processo eleitoral favorece avaliação futura de
sua conduta e responsabilização. São elementos essências para normatização dos códigos de
conduta:
. O compromisso de manter a integridade de todo o processo eleitoral;
. A garantia de não participação em atividade partidária;
. Afastamento de conflitos de interesse;
. Comprometimento com a prestação de serviços qualidade para eleitores e partes interessadas;
. Ciência e adesão às diretrizes regulatórias e de gestão.
Por todo o exposto, a moldura constitucional e legal do processo eleitoral deveria
definir a estrutura, os poderes, as funções e as responsabilidades da autoridade gestora com a
finalidade de garantir a independência e a integridade do processo eleitoral, sua adequada
215
governança assim como a participação informada e influente de cidadãos, partidos políticos e
sociedade civil (IDEA, 2007, pag. 43 e ss).
Diversas constituições apresentam previsões legais quanto a órgãos de gestão
eleitoral e normalmente estas previsões abrangem diversos temas. Para funcionamento
adequado da instituição gestora das eleições, a legislação eleitoral deve considerar a
explicitação dos seguintes pontos: independência e imparcialidade da instituição gestora do
processo eleitoral; garantias para o funcionamento imparcial e transparente; garantia contra
exoneração arbitraria de seus dirigentes; identificação dos órgãos envolvidos na gestão do
processo eleitoral e definição de responsabilidades, poderes, funções e controles associados
para cada órgão componente da arquitetura eleitoral e definição da relação existente entre
estes; definição da relação existente entre a instituição gestora do processo eleitoral e os
interessados externos; definição de diretrizes claras para a autoridade gestora e atribuição a
esta de flexibilidade e competência para implementação dos atos necessário à gestão do
processo eleitoral; definição de critérios e prazos para controle das ações da autoridade
gestora; garantia de tempo e de recursos financeiros suficientes para gestão efetiva do
processo eleitoral à autoridade gestora.
É importante que a constituição e a lei abordem os conteúdos acima indicados e
claramente atribua a competência de gestão e regulação para a instituição responsável pelo
detalhamento e operacionalização dos procedimentos eleitorais. É importante ainda que os
poderes, responsabilidades e funções atribuídos estejam claramente previstos. Parte da
moldura normativa eleitoral normalmente é elaborada através de poderes concedidos para
expedir normas à instituição gestora do processo eleitoral, uso de direito regulador. A
legislação eleitoral precisa permitir que o órgão gestor das eleições tenha flexibilidade para
lidar com as mudanças das circunstancias eleitorais.
Em alguns países, à autoridade gestora do processo eleitoral é especificamente
atribuída a competência para regulamentar o processo eleitoral, sendo autorizada a produção
de normas novas ou a criação de normas e regulamentos para complementar a norma primaria
existente. Nesta hipótese, os órgãos gestores do processo eleitoral são investidos de poderes
legislativos (poderes para normatizar o processo eleitoral), poderes judiciais (poderes para
interpretar e revisar normas com efeito vinculante) e poderes executivos para coordenar e
organizar operacionalmente o processo eleitoral.
No Uruguai a competência normativa para regular o processo eleitoral é exclusiva
e não pode ser revista por qualquer outro órgão do governo. O mais comum, no entanto, é
216
que a competência normativa e regulatória seja atribuída ao órgão gestor das eleições, mas
com possibilidade de revisão por uma instancia judicial.
É essencial registrar que o poder para exercer atividade regulatória concedido à
autoridade administradora das eleições deve estar sempre alinhado com a constituição e a
legislação eleitoral, sendo igualmente importante a criação de controles para aferir se seu
exercício é consistente com princípios e valores do ordenamento jurídico (IDEA, 2014, p. 44).
A atividade regulatória abrange áreas críticas de atuação tais como: circunscrição
eleitoral, alistamento eleitoral e controle do cadastro eleitoral, registro e fiscalização
partidária, fixação de parâmetros e monitoramento das campanhas eleitorais, prestação de
contas e processo de votação.
A atividade regulatória pode ainda abranger áreas de atuação tais como:
formulação de políticas administrativas e diretrizes operacionais relacionadas ao seu próprio
corpo funcional, a ações afirmativas, à performance administrativa, desenvolvimento e
capacitação de seu quadro funcional, e a ações voltadas para as partes interessadas externas.
São partes interessadas externas, por exemplo, os eleitores, o Ministério do Planejamento, o
parlamento, os partidos políticos, organizações da sociedade civil e mídia.
Por sua natureza complexa e técnica, as atividades do processo eleitoral
necessitam de estruturação e padronização mínimas, a fim de que a compreensão de
conceitos, procedimentos e direitos sejam adequadamente apreendidos por todos os
envolvidos. A compreensão da arquitetura eleitoral, das atividades envolvidas, de seu
funcionamento por todas as partes interessadas é premissa para a consistência, credibilidade e
aceitabilidade dos resultados eleitorais.
A fim de preservar a instituição gestora das eleições de intervenções e
manipulações inadequadas por partidos políticos que estejam no poder, é crucial que a
arquitetura do sistema eleitoral, funções e atribuições do órgão eleitoral estejam claramente
previstos na legislação eleitoral. A atividade regulatória deve ser exercida de forma
transparente, respeitando o princípio da publicidade, e com mecanismos institucionalizados
para participação das partes interessadas na sua produção e para seu controle, inclusive de
revisão judicial. O poder regulamentar deve ser exercido de forma que a flexibilidade para
dar respostas efetivas conforme as exigências e circunstancias temporais do processo eleitoral
mantenham o equilíbrio e a consistência com as diretrizes da legislação correspondente
(IDEA, 2014, p. 51).
217
5.1.3 Partes interessadas no processo eleitoral
O processo eleitoral envolve a participação de diversos atores. Participam
diretamente do processo eleitoral, estando, portanto, submetidos à legislação eleitoral, o órgão
eleitoral e as seguintes partes interessadas (IDEA, 2014, p. 229 e ss):
- Eleitores e futuros eleitores;
- Partidos políticos e candidatos;
- Quadro funcional e autoridades gestoras do órgão de gestão eleitoral;
- Poder Executivo;
- Poder Legislativo;
- Ministério Público
- Órgãos de solução de disputas eleitorais;
- Sistema Judicial
- Monitores e observadores nacionais e internacionais do processo eleitoral;
- Mídia / imprensa;
- Organizações da sociedade civil;
- Doadores de campanha e agencias de assistência eleitoral.
Também aparecem como partes interessadas do processo eleitoral, de forma
secundária, e na medida em que destes vierem a participar ou na medida em que tiverem
interesses afetados, e, portanto, submetendo-se a seu subsistema jurídico, as seguintes partes:
fornecedores de bens e serviços para o órgão de gestão eleitoral, o público em geral, os
fornecedores de bens e serviços para partidos políticos e candidatos58 e as redes de
cooperação regional ou internacional em matéria eleitoral.
A credibilidade e legitimidade do órgão de gestão eleitoral está diretamente
relacionada com os canais de comunicação e mecanismos de diálogo efetivo que este venha a
implementar para garantir uma relação transparente, imparcial, profissional e comprometida
com a integridade do processo eleitoral. Inciativas como encontros, debates de políticas
públicas e diretrizes, organização de seminários temáticos, ações de instrução e capacitação,
consultas e audiências públicas para abordar temas como, por exemplo, políticas e diretrizes,
regulamentações, calendários eleitorais, procedimentos eleitorais e reformas eleitorais, são
ações que colaboram para garantir a participação informada e influente de todos os
58 Item acrescentado pela autora em razão da legislação brasileira.
218
interessados no processo eleitoral, assim como a efetividade dos direitos políticos de
participação, dos direitos eleitorais.
O estabelecimento de procedimentos para efetiva participação das partes
interessadas durante todo o processo eleitoral cria salvaguardas para o sistema eleitoral e
constrói as bases para o funcionamento legitimo do sistema. A rede de interação formada e
institucionalizada através de procedimentos claros, com normas de funcionamento
previamente estabelecidas e meios para efetiva responsabilização política de todos os
participantes envolvidos no processo eleitoral é o mecanismo que cria condições para
realização de eleições com integridade.
A legitimidade do Sistema Eleitoral decorre do equilíbrio estabelecido entre todos
os seus participantes, dos mecanismos de freios e contrapesos estipulados para todas as partes
integrantes desse subsistema e dos mecanismos disponibilizados para a participação e
responsabilização efetiva de todos os envolvidos. Aqui é de extrema relevância registrar tema
que ainda não alcançou a consideração devida: a responsabilidade eleitoral, aqui
compreendida como a responsabilidade atribuída a cada parte integrante do sistema eleitoral.
Um Sistema Eleitoral que não identifica, define e explicita claramente, ao lado
dos direitos, as responsabilidades eleitorais conferidas a cada participante do sistema
apresenta lacunas de legitimidade que impedem o alcance de integridade eleitoral em seu
sentido amplo.
5.2 Sistema de Justiça Eleitoral - EJS
As organizações internacionais de assistência eleitoral compreendem as eleições
como um dos pilares dos processos democráticos, sendo o Sistema de Justiça Eleitoral fator
crítico para a sua credibilidade (ACE PROJECT, 2013, p. 73 e ss).
A institucionalização de mecanismos e procedimentos para garantir o exercício de
direitos políticos eleitorais e a igualdade de condições na competição política, capazes de
mitigar desigualdades ou percepções de desigualdades pelos agentes envolvidos, são
elementos chave para garantir o devido processo eleitoral e a legitimação dos representantes
eleitos, visto que somente eleições percebidas como imparciais, justas e íntegras apresentam
resultados passíveis de aceitação e respeito pelas partes interessadas no processo eleitoral.
A complexidade técnica das eleições, as etapas sucessivas com prazos exíguos e
bem demarcados no calendário eleitoral, a natureza competitiva e as disputas por posições e
interesses políticos divergentes, são elementos que fazem com que as diversas fases do
219
processo eleitoral estejam vulneráveis à abusos e fraudes, a contestações e a questionamentos
por todas as partes interessadas.
A previsão de um sistema para prevenção e solução de disputas e conflitos, ao
lado do órgão gestor das eleições, aparece como uma condição procedimental da democracia,
na medida em que as regras do jogo democrático necessitam de um árbitro para aferir seu
legitimo funcionamento.
A organização International IDEA desenvolveu o manual Electoral Justice: The
International IDEA Handbook (IDEA, 2010) com o objetivo de explorar as considerações
técnicas e legais envolvidas na arquitetura de um sistema de resolução de disputas eleitorais
como, por exemplo, a classificação dos diversos sistemas existentes nos países estudados, os
elementos, princípios e garantias que devem pautar sua atuação, considerando ainda os
mecanismos judiciais e os mecanismos alternativos de resolução de disputas que tem sido
utilizados.
A International IDEA, ao desenvolver este estudo, teve por objetivo aumentar a
compreensão da importância de um Sistema de Justiça Eleitoral nacionalmente
comprometido, robusto e sensível ao contexto, e ainda examinar como a variedade de
mecanismos utilizados por seus órgãos para defesa e proteção dos direitos políticos eleitorais
funcionam, enfatizando o quanto é crucial a legitimação pelos cidadãos das instituições
encarregadas de administrar a justiça eleitoral.
Para tanto, identifica como variáveis chave da legitimidade do sistema eleitoral a
importância do consenso político na definição da estrutura e composição do órgão eleitoral
que irá compor conflitos e solucionar disputas, assim como as características essenciais de
transparência e independência para sua atuação. Registra ainda que a criação de instituições
eleitorais fortes, de caráter permanente, com independência e autonomia funcional e
financeira, além de fator legitimador, deve ser percebida como um investimento na qualidade
da democracia (IDEA, 2010, p. 4 e ss).
Como anteriormente registrado, a tendência para utilização de instituições e
mecanismos judiciais para solução de conflitos e disputas eleitorais teve início no final do
século XIX e firmou-se ao longo do século XX, embora, inicialmente a composição de
conflitos em matéria eleitoral e a certificação de resultados eleitorais tenham sido atribuições
exclusiva de órgãos do poder legislativo.
A transferência de competências para organizar e compor conflitos do processo
eleitoral a membros do poder judiciário também foi explicada pela necessidade de se afastar
ou pelo menos reduzir a influência de interesses políticos na condução das eleições. A
220
institucionalização de meios e procedimentos judiciais para solução de litígios eleitorais
trouxe maior segurança jurídica para os sistemas políticos permitindo maior aprofundamento
e enraizamento de práticas democráticas.
No mesmo sentido, registrou Habermas (HABERMAS, 2002), que a forma
jurisdicional de resolver litígios em matéria política agrega racionalidade e segurança ao
procedimento distinguindo-o dos meios e procedimentos políticos de resolução de conflitos,
pois os procedimentos e argumentos disponíveis são diferentes para o poder judiciário e para
o poder legislativo.
Nos países da common law a entrega de jurisdição eleitoral foi normalmente feita
para órgãos integrantes da justiça comum, prática que se disseminou por outros países. Após
as duas grandes guerras, tal responsabilidade passou a fazer parte das atribuições de diversas
cortes constitucionais, em países da Europa Continental, da África e da Ásia, para então, a
partir das últimas décadas do século XX, passar a fazer parte de cortes eleitorais
especializadas em países da América Latina, da África, Ásia e Europa.
A consolidação e sofisticação dos meios constitucionais e legais para solução de
disputas políticas eleitorais, a partir da terceira onda de democratização ocorrida no final do
século XX, principalmente em democracias emergentes, colaboram para fortalecer o papel de
protagonista dos Sistemas de Justiça Eleitoral na consolidação de valores e procedimentos
democráticos.
Como visto, esse protagonismo teve por fundamento entregar soluções de
igualdade, preservar a liberdade de expressão, mitigar as assimetrias de informação do
processo eleitoral, combater fraudes e abusos, enfim, de garantir o livre, justo e íntegro
exercício dos direitos políticos de participação - o devido processo eleitoral.
A Justiça Eleitoral colabora para assegurar, por consequência, as condições para o
devido processo democrático, garantindo as condições para que a democracia prospere e se
consolide. Esta contribui diretamente para a interação de forças políticas e para a estabilidade
social.
O Sistema de Justiça Eleitoral, nesse sentido, é pedra angular da democracia e tem
por função assegurar a legalidade e constitucionalidade do processo eleitoral como assegurar
o exercício dos direitos políticos eleitorais dos cidadãos59 (IDEA, 2010, p.1).
59 “Electoral justice is at the cornerstone of democracy in that it safeguards both the legality of the electoral process and the political rights of citizens. It has a fundamental hole in the continual processo f democratization and catalyses the transition from the use of violence as a mean for resolving political conflict to the use of lawful means to arrive at a fair solution” (IDEA, 2010, p. III). Nesse sentido, ver o projeto BRIDGE – Building Resources for Democracy, Governance and Elections e ACE Electoral Knowledge network (ACE PROJECT).
221
5.2.1 Conceito de Sistema de Justiça Eleitoral
A concepção de um Sistema de Justiça Eleitoral nasceu vinculada à defesa e
garantia dos direitos políticos eleitorais e ao afastamento de ilícitos que porventura viessem a
ser praticadas ao longo do processo eleitoral. Seus meios e mecanismos foram previstos
basicamente para: 1) garantir que cada ação, procedimento e decisão relacionados ao processo
eleitoral observem o devido processo eleitoral, alinhando-os com a legislação correlata; 2)
proteger e restaurar o gozo dos direitos políticos eleitorais, dando às pessoas que acreditam ter
sofrido violação ou lesão a seus direitos os meios para apresentar suas demandas ou
reclamações, ser ouvido e receber uma adjudicação (IDEA, 2010, p. 1).
Nesse sentido, o Sistema de Justiça Eleitoral institucionaliza os meios para
composição dos conflitos decorrentes da disputa eleitoral e é o lócus por excelência do
exercício reflexivo de construção dos sentidos e conteúdos relacionados à cidadania.
Nas democracias, a garantia de adesão às regras do jogo democrático para escolha
dos representantes eleitos e a estabilidade do sistema político são diretamente afetados pela
atuação do Sistema de Justiça Eleitoral, sendo seu papel reconhecidamente fundamental em
todas as democracias emergentes ou já estabelecidas.
Um sistema político robusto e aberto à participação de todos os envolvidos no
processo de concorrência a cargos políticos representativos deve lidar com a competição, com
as estratégias e com a as disputas de interesses contrapostos emergentes desse processo,
através de canais legitimamente instituídos. Tais demandas e disputas não devem ser vistas
como fraqueza do sistema político ou como evidencia de deficiência ou manipulação do
processo eleitoral, ao contrário, devem ser incorporadas ao processo eleitoral e normalizados
os procedimentos para fazer face a estes desafios (IDEA, 2010).
A legitimidade do processo eleitoral, o devido processo eleitoral, não emerge da
ausência de questionamentos ou demandas ao longo de suas etapas, mas, ao contrário, emerge
da institucionalização de mecanismos legítimos para lidar com disputas de múltiplos
interesses estratégicos, a fim de que estes sejam filtrados por uma razão deliberativa capaz de
conduzi-los para uma solução cooperativa.
Nesse sentido, a atuação da Justiça Eleitoral transcende o papel de garantidora de
normas, no sentido tradicional, visto que suas decisões interferem diretamente no processo
eleitoral e no modo como se comportam todas as partes interessadas. Independência,
imparcialidade, autonomia, transparência, acessibilidade, efetividade e justiça eleitoral em
222
tempo adequado aparecem como requisitos para uma atuação capaz de conferir credibilidade,
segurança e legitimidade aos resultados eleitorais.
As partes interessadas devem acreditar que se seus direitos políticos eleitorais
vierem a ser violados, estas terão acesso aos meios para registrar demandas ou reclamações,
para ser ouvidas e para receber uma resposta que proteja ou restaure seus direitos. Um
Sistema de Justiça Eleitoral depende de meios tanto para prevenir quanto para lidar com
efetivas violações à legislação eleitoral.
Nessa linha de pensamento, um Sistema de Justiça Eleitoral pode ser assim
conceituado (IDEA, 2010, p. 9):
“Sistema de justiça eleitoral é o conjunto de meios e mecanismos disponíveis em um pais especifico para garantir e verificar que ações eleitorais, procedimentos e decisões estejam de acordo com o sistema jurídico, e para proteger e restaurar o gozo dos direitos políticos. Um sistema de justiça eleitoral é instrumento chave do estado de direito e a garantia última de observância dos princípios democráticos de eleições livres, justas e genuínas.”
5.2.2 Classificação dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais - SRDE
O manual elaborado pela organização International IDEA, “Electoral Justice:
International Idea Handbook” (IDEA, 2010) utiliza o termo Sistema de Resolução de
Disputas Eleitorais – SRDE para designar o conjunto de meios e mecanismos institucionais
técnico-legais disponíveis para acionar ou supervisionar ações eleitorais, procedimentos e
decisões através de órgãos administrativos, judiciais ou legislativos ou mesmo órgãos
internacionais em matéria eleitoral (IDEA, 2010, p. 37).
O objetivo de um Sistema de Resolução de Disputas Eleitorais é garantir que o
processo eleitoral funcione conforme a legislação eleitoral ou que respeite os direitos
eleitorais, em última instância, busca garantir a integridade do processo eleitoral (IDEA,
2010, p. 37).
O manual apresenta ainda uma classificação para os Sistemas de Resolução de
Disputas Eleitorais - SRDE, assim como os princípios estruturais e garantias procedimentais
que aparecem como fatores críticos para adequada institucionalização e funcionamento da
justiça eleitoral, ressaltando que um sistema de resolução de disputas eleitorais eficiente é
fator determinante para um sistema eleitoral bem-sucedido e funcional (IDEA, 2010, p. 60).
O critério utilizado no manual para realizar a classificação dos SRDEs adota como
referência a natureza jurídica do órgão competente para emitir a decisão final sobre eleições –
223
para proclamar seus resultados – e/ou para julgar o último recurso em matéria eleitoral, em
eleições nacionais. Esse critério considera como ponto de partida para classificação dos
SRDEs o órgão responsável pela palavra final sobre o processo eleitoral nacional de um
determinado país. Ou seja, a decisão do órgão da qual não seja mais cabível recurso.
Utilizando-se deste critério, foram identificados quatro modelos principais, ou
seja, a resolução final de disputas eleitorais e a competência para proclamar os resultados
eleitorais e dar posse a candidatos eleitos pode ser da competência de (IDEA, 2010, p. 61):
- Órgão do Poder Legislativo (o parlamento ou qualquer outra assembleia
política);
- Órgão do Poder Judiciário:
. Tribunal da justiça comum, parte do Poder Judiciário;
. Tribunal Constitucional;
. Tribunal Administrativo;
. Tribunal eleitoral especializado;
- Órgão de gestão eleitoral com poderes judiciais;
- Órgãos ad-hoc criados para um processo eleitoral específico com apoio
internacional ou como uma solução institucional nacional para uma eleição
específica.
Dessa forma, um SRDE pode ser composto por instituição ou órgão de natureza
jurídica administrativa, judicial ou legislativa. Pode ainda ser composto por um sistema misto
com decisões tomadas e revistas por órgãos de natureza legislativa-judicial, legislativa-
administrativa ou judicial-legislativa (IDEA, 2010, p. 65).
Os primeiros sistemas de resolução de disputas e conflitos eleitorais apareceram
conjuntamente com a instalação das primeiras democracias representativas, ficando a decisão
final sobre eleições atribuída a assembleias legislativas. A modificação dessa prática teve
início com a transferência da competência para dar a última palavra em questionamentos
relativos a procedimentos e resultados eleitorais para órgãos da justiça comum, procedimento
inaugurado pelo Reino Unido na segunda metade do século XIX, em 1868, com a
judicialização das demandas e questionamentos sobre o processo eleitoral para representantes
do parlamento (IDEA, 2010, p. 62 e ss).
Essa prática se difundiu, sendo por fim adotada por diversas democracias
representativas ao longo do século XX, ainda que alguns países tenham mantido a forma
original de atribuir a órgãos políticos as decisões finais sobre os questionamentos do processo
224
eleitoral ou adotado a prática de compartilhar poderes para solução de conflitos entre órgãos
do poder legislativo e executivo ou entre o poder legislativo e o poder judiciário.
O modelo que atribui a órgãos políticos a responsabilidade por decidir a respeito
dos conflitos eleitorais foi adotado, por exemplo, pela França ao longo do século XVIII até a
constituição de 1958, e nos Estados Unidos desde 1787. A motivação para o estabelecimento
deste modelo era a separação e independência dos poderes tradicional, mas o abuso de tais
prerrogativas levou à necessidade de transferir o arbitramento de disputas eleitorais para um
órgão que fosse visto como neutro em relação a disputas políticas.
A judicialização dos procedimentos eleitorais ganhou destaque no mundo
contemporâneo com a competência em matéria eleitoral atribuída à justiça comum, a cortes
constitucionais, administrativas ou especializadas em matéria eleitoral. Colaborou
decisivamente para essa transformação a adoção do sistema presidencialista por diversos
países e a necessidade de solucionar problemas em nível nacional nas votações para
presidente. Assim, a adoção do modelo que atribui a órgãos do poder judiciário a palavra final
sobre disputas, conflitos e resultados eleitorais difundiu-se amplamente durante o século XX.
A lógica, a racionalidade e a estrutura de funcionamento do poder judiciário são percebidas
como forma legitima para compor conflitos e certificar resultados eleitorais. Muitos são os
países que adotam esse modelo (IDEA, 2010, p. 76 e ss).
A jurisdição eleitoral final é conferida a órgãos regulares do poder judiciário ou a
cortes constitucionais, entre outros, nos seguintes países: Áustria, Alemanha, Brasil, Reino
Unido, Austrália, Paquistão, Jamaica, Canada, Índia. Note-se que para esta hipótese há uma
ampla variedade de possibilidades conforme o sistema estabelecido para cada país, visto que
as decisões podem ser tomadas por órgãos do poder judiciário e questionadas em última
instância na suprema corte, como no Brasil, ou podem ser tomadas, por exemplo, por órgãos
de gestão eleitoral – OGEs independentes e questionados em última instância na corte
suprema ou corte constitucional, como ocorre na Austrália, Canadá e Índia. Alguns países
entregaram a jurisdição eleitoral a cortes administrativas, como por exemplo Colômbia e
Finlândia.
O modelo de SRDE que adota corte especializada em matéria eleitoral com
independência funcional, tanto como parte do Poder Judiciário ou como uma corte
independente dos três poderes governamentais, confere a estes órgãos poderes para solução
final de disputas eleitorais. Este modelo foi inicialmente adotado no Uruguai, em 1924, com a
criação da Corte Eleitoral do Uruguai, sendo em seguida previsto pela constituição chilena no
ano 1925 com a criação do Tribunal Certificador das Eleições do Chile.
225
A longo do século XX, a adoção do modelo de SRDE com corte eleitoral
especializada e independente difundiu-se em diversos países da América Latina, contribuindo
significativamente para o processo de democratização e consolidação democrática dos países
da região, especialmente a partir da terceira onda de democratização do último quarto do
século. Pelo critério apresentado acima, somente integram a categoria de cortes eleitorais
especializadas aqueles tribunais que possuem a decisão final sobre as disputas e resultados
eleitorais e da qual não caibam mais recurso para qualquer outra instancia judicial ou
constitucional. Estes órgãos são cortes eleitorais especializadas, autônomas e independentes
com a função exclusiva de resolver disputas do processo eleitoral, não tendo qualquer
responsabilidade de gestão sobre as eleições. Adotam este modelo, por exemplo, os seguintes
países: Chile, Republica Dominicana, Equador, México, Peru, Albânia, Grécia, Autoridade
Palestina, África do Sul e Suécia. Vale registrar que a autoridade julgadora pode integrar ou
não o Poder Judiciário, sendo requisitos essenciais ser órgão especializado em julgar matéria
eleitoral e a independência (IDEA, 2010, p. 74).
Diferenciam-se do modelo de corte eleitoral especializada aqueles sistemas de
justiça eleitoral que possuem órgãos judiciais eleitorais especializados cujas decisões podem
ser questionadas em termos constitucionais perante a corte constitucional ou perante outro
órgão do Poder Judiciário. Há ainda SRDE com órgão independente de Justiça Eleitoral, mas
que pode ter sua decisão final questionada por corte constitucional, hipótese de países como
El Salvador, Honduras, Panamá e Guatemala. As cortes eleitorais especializadas do Brasil e
do Paraguai integram o Poder Judiciário sendo as demais cortes eleitorais especializadas
independentes (IDEA, 2010, p. 74).
Quando é atribuído ao mesmo órgão ou conjunto de órgãos a responsabilidade
para gerir o processo eleitoral e para solucionar as disputas que emergem ao longo deste
processo – sendo deste a decisão final -, ou seja, agem como Órgão de Gestão Eleitoral –
OGE e como Sistema de Resolução de Disputas Eleitorais - SRDE, estes devem ser
classificados como órgão de gestão eleitoral com poderes judiciais. Nesta hipótese figuram as
justiças eleitorais dos seguintes países: Costa Rica, Nicarágua e Uruguai (IDEA, 2010, p. 74).
Na América Latina encontram-se cortes eleitorais especializadas com poderes
para resolução final das demandas eleitorais. Muitos órgãos eleitorais autônomos e
independentes da região concentram poderes administrativos, judiciais e mesmo regulatórios.
Entretanto, estas atribuições podem estar divididas entre duas autoridades especializadas,
independentes e autônomas, ficando os aspectos administrativos, operacionais, de gestão e
supervisão com o órgão gestor das eleições – OGEs – e a competência para solucionar
226
conflitos e questionamentos quanto ao processo e ao resultado das eleições com a autoridade
especializada autônoma e independente com poderes jurisdicionais, SRDEs.
Alguns sistemas combinam a possibilidade de apresentação de demandas para um
órgão gestor das eleições com posterior apelo para um órgão judicial eleitoral independente e
autônomo – como no Chile, Republica Dominicana e Equador – e em outros o órgão de
apelação faz parte do próprio judiciário – como por exemplo no México e na Venezuela.
As cortes eleitorais especializadas da África do Sul, Suécia e Autoridade Palestina
funcionam de forma autônoma e independente de qualquer poder do Estado (IDEA, 2010, p.
75).
Os órgãos gestores das eleições da Costa Rica e do Uruguai apresentam-se como
modelos de extremo sucesso de independência e autonomia na condução do processo
eleitoral, uma vez que são detentores de enorme credibilidade e profissionalismo na condução
de suas atividades (IDEA, 2014, p. 77).
5.2.3 Princípios e garantias dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais - SRDE
A independência e autonomia dos Sistemas de Resolução de Disputas Eleitorais –
SRDE depende diretamente da expressa previsão de garantias estruturais e de garantias
judiciais na legislação eleitoral, como é explicado no manual. Tais garantias permitem que o
órgão de justiça eleitoral possa atuar livre de pressões políticas do parlamento, da
administração governamental, de partidos políticos e demais partes interessadas, tomando
decisões orientadas por critérios racionais, imparciais e constitucionais (IDEA, 2010, p. 83).
As garantias estruturais são definidas conforme os seguintes princípios para
condução das atividades de um sistema de justiça eleitoral (IDEA, 2010, p. 89):
- independência do SRDE;
- independência e imparcialidade dos membros do SRDE;
- regime de accountability e responsabilização do SRDE e de seus membros;
- integridade e profissionalismo dos membros e do corpo funcional do SRDE;
- independência financeira e sustentabilidade do SRDE.
A independência e autonomia no desempenho das atribuições do sistema de
justiça eleitoral normalmente são previstas na Constituição. Diz-se que há independência
funcional quando sua estrutura está separada de qualquer outro órgão e age sem subordinação
227
institucional, ou seja, a independência funcional caracteriza-se pela ausência de subordinação
das decisões da instituição outro órgão hierarquicamente superior, ficando estas subordinadas
apenas à legislação eleitoral e à constituição. A revisão constitucional de suas decisões não
descaracteriza a independência funcional.
O fato do SRDE pertencer ao poder judiciário, no qual existam órgãos superiores
como supremas cortes ou cortes constitucionais, não significa a caracterização da
possibilidade de recurso improprio, hipótese capaz de afetar o atributo de independência. A
revisão de suas decisões em bases constitucionais perante a corte constitucional não
descaracteriza a independência do órgão.
Como exemplo de independência de uma corte eleitoral especializada é possível
citar o Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, a mais alta autoridade judicial
no México em relação à matéria eleitoral.
Outro exemplo interessante de independência de um SRDE é o previsto na
constituição da Costa Rica que atribui ao Supremo Tribunal Eleitoral a competência exclusiva
para organizar, dirigir e supervisionar todo o processo eleitoral, ou seja, esta instituição
funciona tanto como órgão gestor das eleições como também funciona como órgão
responsável pela resolução de disputas eleitorais, ou seja, como OGE e como EDRB. No
Brasil o Tribunal Superior Eleitoral e a Justiça Eleitoral também funcionam de forma
independente, com atribuições de gerir o processo eleitoral e resolver os conflitos e disputas
dele emergentes. A diferença é que na Costa Rica a competência da justiça eleitoral é
exclusiva não cabendo sequer recursos com questionamentos constitucionais para a corte
constitucional, como ocorre no Brasil (IDEA, 2010, p. 89 e ss).
Vale registrar ainda que a legislação eleitoral de alguns países atribui
significativos poderes normativos às cortes eleitorais especializadas dotando-a de poderes
para expedir normas, resoluções, instruções ou regulamentos e para responder a consultas.
Alguns órgãos gestores das eleições com competência jurisdicional eleitoral também recebem
poderes normativos como, por exemplo, as autoridades eleitorais da Republica Dominicana,
de El Salvador e do Uruguai. No Equador e no Peru são concedidos poderes inclusive para
apresentação de projetos de lei em matéria eleitoral (IDEA, 2010, p. 89 e ss).
Relacionam-se ainda com a independência e imparcialidade dos sistemas
eleitorais a previsão expressa das seguintes garantias: previsão de independência e
imparcialidade na Constituição, a fixação prévia do processo de escolha de seus membros e a
definição de requisitos técnicos e profissionais, a previsão de estabilidade, remuneração
228
adequada, a previsão das incompatibilidades com o exercício do cargo, a previsão de regras
para afastamento por impedimento ou suspeição (IDEA, 2010, p. 89 e ss).
A previsão de estrutura de prestação de contas e de responsabilização,
accountability, das atividades da justiça eleitoral e de seus membros é essencial para o
comprometimento da instituição com um processo eleitoral íntegro, sendo seus princípios
guia a transparência e a publicidade das atividades institucionais e dos atos de seus dirigentes
e do seu corpo funcional.
A credibilidade da autoridade eleitoral é diretamente impactada pela transparência
e publicidade em relação à performance das diversas atividades do órgão, sejam estas de
gestão, jurisdicional e ou quanto à utilização e alocação de recursos. É importante que suas
atividades possam ser acompanhadas pela sociedade, constituindo boa prática a elaboração e
divulgação periódica de relatórios demonstrando que sua atuação está alinhada com a
constituição e com a legislação eleitoral.
Quanto à estrutura de responsabilização esta garante que os membros e os
integrantes do quadro funcional tenham independência para atuar, na medida em que assegura
sua permanência e remoção nos termos previamente previstos em lei e através do devido
processo legal, fixando ainda mecanismos para imposição de responsabilização civil, penal e
administrativa para desvios de função ou na hipótese da prática de ilícitos, funcionando estas
como garantias para a instituição.
A integridade institucional ampara-se no compromisso público e explicito que os
gestores e o corpo funcional assumem de manter conduta íntegra e de prestar serviços
eleitorais de excelência. A explicitação das razões de decidir, a adequada fundamentação de
seus atos e o alinhamento com os princípios constitucionais e de direitos humanos, e ainda
com a legislação eleitoral permitem entregar à sociedade maior grau de certeza jurídica e
coerência, favorecendo a confiança nas ações institucionais, a proteção dos direitos políticos
eleitorais e a integridade do processo eleitoral.
Ao lado das garantias estruturais, as garantias procedimentais visam a prévia
fixação e a correta compreensão das normas e procedimentos eleitorais, de forma que as
regras do jogo sejam dadas antecipadamente e fiquem claras para todas as partes interessadas.
Configuram-se como garantias procedimentais: transparência, clareza e simplicidade das
normas que regulam os procedimentos para acesso à justiça eleitoral e defesa dos direitos
políticos eleitorais; a publicidade e consistência na aplicação dessas normas aos
procedimentos; acesso efetivo em termos de espaço, tempo, custo e oportunidade à um
sistema de resolução de conflitos e disputas eleitorais efetivo que garanta a todos o direito de
229
ser ouvido e de receber uma resposta; direito de defesa ou de audiência com previa definição
do devido processo para os litigantes; pleno respeito às decisões e julgamentos; consistência e
integridade na interpretação e aplicação da lei (IDEA, 2010, p. 89 e ss).
A consistência, coerência e racionalidade na interpretação e aplicação de
princípios e normas eleitorais é resultado de uma atuação independente e autônoma do
sistema de justiça eleitoral, livre de pressões política ou quaisquer outras circunstancias que
possam interferir na formação legitima de decisões sobre o processo eleitoral.
Os requisitos de acesso à justiça e de certeza jurídica dependem de clara
compreensão pelas partes interessadas do devido processo e dos mecanismos disponíveis para
defesa de seus direitos políticos eleitorais durante todas as etapas do processo eleitoral.
O conteúdo da legislação eleitoral deve ser amplamente divulgado e os
procedimentos para exercício e defesa de direitos devem ser claros, assim como deve ser
transparente e consistente a atuação dos dirigentes da justiça eleitoral. O direito fundamental
de acesso à justiça eleitoral somente possui efetividade se todas as partes interessadas tiverem
condições de compreender adequadamente o funcionamento do sistema eleitoral e seus
procedimentos, seus prazos e se for possível ter acesso efetivo, no tempo adequado, ao órgão
jurisdicional e a uma resposta efetiva para sua demanda.
O fator tempo, a oportunidade, é questão determinante para a defesa e efetividade
dos direitos políticos eleitorais e para os procedimentos eleitorais, na medida em que os
prazos do processo eleitoral são muito curtos e ininterruptos. Os procedimentos eleitorais
devem ser oportunos, ou seja, a resposta a uma demanda deve ser dada prontamente, nos
marcos temporais previstos na legislação e no calendário eleitoral. Decisões tomadas fora do
prazo legal são fontes de injustiça e podem trazer máculas impossíveis de serem sanadas
afetando diretamente a legitimidade do processo eleitoral e dos resultados das eleições.
O EDRS precisa levar em conta os períodos de tempo extremamente exíguos que
se sucedem entre as diversas fases do processo eleitoral e à necessidade de encerramento de
cada fase antes do início da subsequente. O equilíbrio entre prazos curtos e as garantias do
devido processo eleitoral demandam estrutura adequada para funcionamento dos sistemas de
justiça eleitoral e obediência estrita aos prazos para apresentar demandas e para apresentação
de solução, sob pena de danos ao processo eleitoral.
230
5.3 Autoridade Reguladora Eleitoral
O desenho institucional das autoridades que irão cuidar do processo eleitoral é
uma das decisões mais importantes para a implementação de uma estrutura de democracia
representativa, visto que será destas autoridades a responsabilidade por criar e sustentar as
condições para o aprofundamento democrático e a responsabilidade por garantir integridade
ao processo eleitoral.
Ao longo do século XX eleições foram realizadas por órgãos incumbidos de
organizar sua logística e por dirimir seus conflitos, e nesse contexto já foi possível perceber,
desde a primeira metade do século, movimentos de separação entre as atividades de órgãos
compostos por poderes políticos eleitos e as atividades de órgãos eleitorais, como forma de
estabilizar o sistema político e reduzir conflitos, enfim, como forma de legitimar e tornar
aceitos os resultados das urnas.
Inicialmente, a responsabilidade pela condução do processo eleitoral respeitou a
clássica tripartição de poderes com atribuição dessa atividade para órgãos do poder
legislativo. A seguir, ainda respeitando esta ideia, o julgamento de conflitos decorrentes de
disputas eleitorais foi entregue a cortes judiciais.
Em um segundo momento, os novos desafios contemporâneos para a realização de
eleições íntegras e para manutenção da coesão social radicalizaram esse movimento e levaram
a uma ruptura com a estrutura tradicional de partição de poderes, o que resultou na separação
funcional e na independência de diversos órgãos eleitorais em diversos países.
Na prática, significou o uso de direito regulador e a correspondente atribuição de
função regulatória autônoma pelo parlamento para órgãos eleitorais. Essas circunstâncias
trouxeram expressivas transformações para os sistemas eleitorais impondo a reorganização do
sistema político. Estudos sobre Governança Eleitoral passaram a ser relevantes nesse novo
contexto.
Após analisar os principais componentes da arquitetura institucional eleitoral –
Órgão de Gestão Eleitoral e o Sistema de Justiça Eleitoral -, é chegado o momento de
correlacionar a arquitetura eleitoral com a institucionalização dos níveis de governança
eleitoral previamente apresentados e verificar as consequências decorrentes.
A governança eleitoral tradicional e a correspondente arquitetura institucional
eleitoral podem ser representadas conforme figura a seguir.
LEGISLAÇÃO ELEITORALARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORALSOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOSPARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL
CULTURA POLÍTICA
GOVERNANÇA ELEITORAL TRADICIONAL
ELABORAÇÃO DE NORMASAPLICAÇÃO DE NORMASADJUDICAÇÃO DE NORMAS
PODER LEGISLATIVOOGE - ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORALEJS - SISTEMA DE JUSTIÇA ELEITORAL
SISTEMA ELEITORAL
SISTEMA PARTIDÁRIO
231
Figura 5: Governança Eleitoral TradicionalFonte: elaborado pelo autor.
A governança eleitoral tradicional prevê a distribuição de competências conforme
o modelo tradicional de partição de poderes e, nessa perspectiva, a atribuição de elaboração
de normas é exclusiva do poder legislativo. O órgão de gestão eleitoral é responsável pela
aplicação de normas e quanto às normas de gestão eleitoral cabe a estes apenas o poder
regulamentar tradicional. O sistema de justiça eleitoral é responsável pela adjudicação de
normas e pela tradicional regulação eleitoral.
A arquitetura institucional conforme o modelo de governança eleitoral tradicional
é construído respeitando a distribuição clássica de poderes do Estado: o poder legislativo é
responsável pela elaboração de normas, há um ou mais órgãos responsáveis pela gestão das
eleições e um sistema de justiça eleitoral previsto para solucionar as disputas que resultam do
processo eleitoral. A normatização das eleições é integralmente realizada pelo poder
legislativo no uso de suas atribuições regulares e os demais órgãos quando utilizam poder
regulamentar apenas o fazem através de poder regulamentar tradicional e limitado.
Como visto, as transformações das relações sociais e da atuação estatal, ao longo
do século XX, culminaram com a radicalização da separação dos órgãos eleitorais das
estruturas tradicionais de poder político e com a atribuição de função regulatória autônoma
para tais instituições em graus variados. Essa foi a fórmula encontrada para reduzir conflitos,
LEGISLAÇÃO ELEITORAL ARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORAL SOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOS
PARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL
CULTURA POLÍTICA
NOVA GOVERNANÇA ELEITORAL
ELABORAÇÃO DE NORMASAPLICAÇÃO DE NORMAS ADJUDICAÇÃO DE NORMASREGULAÇÃO ATRAVÉS DE NORMAS
SISTEMA ELEITORAL
SISTEMA PARTIDÁRIO
AUTORIDADE REGULADORA ELEITORAL
232
buscar consensos políticos mínimos e garantir patamares aceitáveis de integridade para o
processo eleitoral frente à acirradas disputas de interesses contingentes.
Sem dúvida a universalização do sufrágio e a inclusão de parcela cada vez mais
significativa da sociedade no processo político contribuiu para essa solução, visto que o poder
legislativo como manifestação vitoriosa de forças políticas circunstanciais deixou de
representar exclusivamente a tão fragmentada vontade popular contemporânea.
Os órgãos eleitorais ao longo do século XX transformaram-se para fazer face a
novas exigências de legitimidade e ganharam vestes de autoridades reguladoras e de cortes
judiciais, enquanto canais de legitimação e representação das novas formas de legitimidade.
O impacto de tais transformações foi a configuração de uma nova forma de governança
eleitoral com alteração da natureza jurídica dos órgãos eleitorais e a exigência de novas
formas de legitimidade para sua atuação, sob pena de enfraquecimento e até mesmo ruptura
do sistema de direitos, acirramento de conflitos e desintegração dos canais de circulação de
poder político.
A definição da arquitetura institucional eleitoral consideradas as diferentes e
novas formas de combinar os níveis de governança eleitoral e da correspondente atribuição de
poder regulamentar autônomo mudou a natureza dos órgãos eleitorais e atribuiu a estes graus
diferenciados de autonomia. Nesse contexto, foram criadas autoridades reguladoras eleitorais,
semelhantes em alguns aspectos ao formato de agência. A figura abaixo indica essa
transformação.
Figura 6: Nova Governança EleitoralFonte: elaborado pelo autor
233
Para esta avaliação, assume-se que a distribuição de competências relacionadas à
dimensão de Elaboração de Normas – Normas da Competição Eleitoral e Normas de
Regulação Eleitoral – é determinante para caracterizar um órgão eleitoral como uma
autoridade reguladora eleitoral ou não, na medida em que as normas de governança eleitoral
podem resultar do exercício de poder regulamentar tradicional ou do exercício de função
regulatória autônoma. Como visto anteriormente, na hipótese de atribuição de função
regulatória autônoma para um órgão eleitoral, uma nova dimensão é adicionada à governança
eleitoral: a dimensão de regulação através de normas.
Note-se que aqui está sendo discutida a dimensão elaboração de normas da
Governança Eleitoral apenas quanto às normas de regulação eleitoral, sendo certo que não há
qualquer dúvida quanto à competência do poder legislativo para elaborar normas da
competição eleitoral.
A arquitetura institucional eleitoral de Sistemas Eleitorais pode assumir variados
formatos para atender às peculiaridades do sistema político-jurídico de cada país. A partir da
consulta aos manuais publicados pela International IDEA e conforme a base de dados
disponibilizada pela mesma instituição a partir da pesquisa elaborada junto a 217 órgãos
eleitorais, Global Database on Elections and Democracy, verifica-se que, em geral, a
arquitetura institucional eleitoral de um país é composta pelas múltiplas formas de se
combinar a distribuição de funções/poderes entre um Órgão Gestor das Eleições - OGE e um
Sistema de Justiça Eleitoral – SJE.
A correta identificação de uma autoridade reguladora eleitoral e do papel que esta
representa dependem então da forma como a arquitetura do sistema eleitoral é estabelecida,
ou seja, de como a governança eleitoral é instituída e de que instituições eleitorais ela é
composta. Os órgãos ou instituições eleitorais podem então assumir naturezas jurídicas
diversas conforme a combinação dos níveis de governança eleitoral e o uso ou não poder
regulador pelo poder legislativo com atribuição de função regulatória autônoma para órgãos
eleitorais. Algumas possibilidades são apresentadas no quadro a seguir.
234
Quadro 4: Natureza do Órgão Eleitoral conforme distribuição dos Níveis de Governança Eleitoral
NIVEIS DE GOVERNANÇA ELEITORAL
ÓRGÃOS ELEITORAISELABORAÇÃO DE NORMAS
APLICAÇÃO DE NORMAS
ADJUDICAÇÃO DE NORMASREGULAÇÃO ATRAVÉS DE NORMAS
NATUREZA DO ÓRGÃO ELEITORALNORMAS DE REGULAÇÃO
ELEITORAL - FUNÇÃO REGULATÓRIA TRADICIONAL
NORMAS DE REGULAÇÃO ELEITORAL - FUNÇÃO
REGULATÓRIA AUTÔNOMA
PODER ADMINISTRATIVO
PODER JURISDICIONAL
ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE - COM PODER REGULAMENTAR
TRADICIONALSIM NÃO SIM NÃO NÃO NÃO
ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA
TRADICIONAL
ÓRGÃO DE GESTÃO ELEITORAL - OGE - COM FUNÇÃO REGULATÓRIA
AUTÔNOMASIM SIM SIM SIM NÃO SIM ÓRGÃO REGULADOR ELEITORAL
ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS COM PODER
REGULAMENTAR TRADICIONALSIM NÃO NÃO SIM NÃO NÃO
ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS ADMINISTRATIVO
ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS COM PODER
REGULAMENTAR TRADICIONAL E PODER JURISDICIONAL
SIM NÃO NÃO NÃO SIM NÃOÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE
DISPUTAS ELEITORAIS JUDICIAL
ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTASELEITORAIS COM FUNÇÃO
REGULATÓRIA AUTÔNOMA SEM PODER JURISDICIONAL
SIM SIM NÃO SIM NÃO SIM ÓRGÃO REGULADOR ELEITORAL
ÓRGÃO DE RESOLUÇÃO DE DISPUTAS ELEITORAIS COM FUNÇÃO
REGULATÓRIA AUTÔNOMA E PODERES JURISDICIONAIS
SIM SIM NÃO NÃO SIM SIMÓRGÃO REGULADOR ELEITORAL
COM PODER JURISDICIONAL
ÓRGÃO ELEITORAL COMCOMPETÊNCIAS DE OGE E SRDE COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA SEM PODER JURISDICIONAL - SUJEITO
A CONTROLE JUDICIAL
SIM SIM SIM SIM NÃO SIMAUTORIDADE REGULADORA
ELEITORAL
ÓRGÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIAS DE OGE E DE SRDE
COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA,COM A PALAVRA FINAL EM MATÉRIA ELEITORAL
SIM SIM SIM SIM NÃO SIMAUTORIDADE REGULADORA
ELEITORAL HÍBRIDA DE NATUREZA JURÍDICA ADMINISTRATIVA
ÓRGÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIAS DE OGE E DE SRDE
COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA E PODER JURISDICIONAL
SUJEITO APENAS A CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
SIM SIM SIM SIM SIM SIMAUTORIDADE REGULADORA
ELEITORAL HÍBRIDA, DE NATUREZA JURÍDICA JUDICIAL
ÓRGÃO ELEITORAL COM COMPETÊNCIAS DE OGE E DE SRDE
COM FUNÇÃO REGULATÓRIA AUTÔNOMA E PODER JURISDICIONAL
COM A PALAVRA FINAL EM MATÉRIA ELEITORAL
SIM SIM SIM SIM SIM SIMAUTORIDADE REGULADORA
ELEITORAL HÍBRIDA, DE NATUREZA JURÍDICA JUDICIAL
Fonte: preparado pelo autor.
A combinação dos dois primeiros níveis de governança eleitoral, Elaboração de
Normas e Aplicação de Normas, através da atribuição das respectivas competências para um
mesmo ente pode ter pelo menos dois resultados: um Órgão de Gestão Eleitoral com
competência regulamentar tradicional ou um Órgão Regulador Eleitoral com competência
regulamentar autônoma. Tal órgão regulador poderá ter características de agência reguladora
se atender aos critérios de autonomia e independência previstos pela literatura jurídica,
conforme apresentado na primeira parte desse trabalho.
A combinação do primeiro nível e do terceiro nível da Governança Eleitoral,
Elaboração de Normas e Adjudicação de Normas, através da atribuição dos respectivos
poderes para um mesmo ente pode ter pelo menos quatro resultados: um Órgão de Resolução
de Disputas Eleitorais Administrativo com competência regulamentar tradicional, um Órgão
235
de Resolução de Disputas Eleitorais Judicial com competência regulamentar tradicional e
poderes jurisdicionais, ou um Órgão Regulador Eleitoral com poderes semelhantes aos de
uma agência reguladora se atender aos critérios de autonomia e independência mas sem
poderes jurisdicionais, ou ainda um Órgão Regulador Eleitoral com Poder Jurisdicional, e
portanto com poderes mais amplos do que o de uma agência reguladora contemporânea.
A associação de poder regulamentar autônomo a qualquer dos outros níveis da
governança eleitoral implica na criação do seu quarto nível: regulação através de normas.
A última combinação que se deseja explorar é a conjugação de todos os níveis de
Governança Eleitoral em um mesmo órgão – Elaboração de Normas, Aplicação de Normas e
Adjudicação de Normas. Nesta quarta hipótese, são quatro as possibilidades: Um Órgão
Eleitoral com poderes de OGE e de SRDE, com função regulatória autônoma sem poder
jurisdicional, sujeito à revisão judicial de seus atos, equivalente a uma autoridade reguladora
independente – Autoridade Reguladora Eleitoral; um Órgão Eleitoral com poderes de OGE e
de SRDE, com poder regulamentar autônomo, com a palavra final em matéria eleitoral –
Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida de natureza jurídica administrativa; um Órgão
Eleitoral com poderes de OGE e de SRDE, com poder regulamentar autônomo e poder
jurisdicional, sujeito apenas a controle de constitucionalidade – Autoridade Reguladora
Eleitoral híbrida, de natureza jurisdicional; um Órgão Eleitoral com poderes de OGE e de
SRDE, com poder regulamentar autônomo e poder jurisdicional, com a palavra final sobre
conflitos eleitorais – Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida, de natureza jurisdicional.
A combinação dos três níveis de governança eleitoral em um mesmo ente, com
uso de direito regulador, necessariamente implica na criação do quarto nível de Governança
Eleitoral, Regulação através de Normas, e na atribuição de independência e autonomia.
Um órgão eleitoral que exerça todas as dimensões da governança eleitoral e que
faça uso de função regulatória autônoma, necessariamente configura-se como uma autoridade
reguladora autônoma, pois necessariamente agrega seus poderes típicos e atende aos
requisitos de autonomia e independência.
Os órgãos eleitorais que detém todos os níveis da governança eleitoral, possuem
autonomia e independência, com poder regulamentar autônomo, sujeitos apenas a controle de
constitucionalidade ou com a palavra final em matéria eleitoral, constituem um tipo especial
de autoridade reguladora independente: constituem-se como uma Autoridade Reguladora
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Eleitoral híbrida pois além de funcionar como autoridade reguladora independente também
funcionam como poder jurisdicional ou como instância final de decisão em matéria eleitoral.
Como é possível observar no quadro apresentado, a combinação dos níveis de
governança eleitoral e a correspondente distribuição de competências entre órgãos eleitorais
resultam em instituições eleitorais de natureza jurídica distinta, com diferentes gradações de
autonomia e independência, e, portanto, com diferentes graus e formas de apropriação de
discursos. Resta claro que os requisitos para uma atuação legítima de órgãos eleitorais irão
depender do tipo de arquitetura eleitoral instituída e da forma como a governança eleitoral foi
estabelecida pelo ordenamento jurídico em análise, pois a cada um corresponderá exigências
diferentes de legitimidade.
Os constantes debates sobre os limites para a atuação de instituições eleitorais e
sobre sua eficiência/ineficiência para regular o processo eleitoral devem considerar os
diferentes incentivos e circunstâncias que se apresentam para os órgãos eleitorais, conforme
sua natureza. Sem essa avaliação, é muito difícil aferir adequadamente os desafios que se
apresentam para a governança eleitoral contemporânea.
A função regulatória autônoma em matéria eleitoral, em geral, tem sido atribuída
ou em conjunto com a competência para gerir o processo eleitoral, ou em conjunto com a
competência para solucionar disputas, ou ainda conjugada às duas competências
simultaneamente, como identificado na base de dados da International IDEA.
A consequência é que a adição da nova dimensão regulatória à governança
eleitoral, pela atribuição de função regulatória autônoma à autoridade eleitoral, modifica a
natureza jurídica do órgão eleitoral e, portanto, modifica a institucionalização de princípios do
Estado de direito relacionados ao Sistema Eleitoral, exigindo uma nova institucionalização do
princípio da separação de poderes, com correspondentes procedimentos de legitimação.
E como apontado acima, a natureza jurídica do órgão eleitoral não só é
modificada como são criadas instituições com graus diferenciados de autonomia, sendo
possível reconhecer desde órgãos eleitorais reguladores independentes, com características e
poderes semelhantes a agências reguladoras, passando por Autoridades Reguladoras Eleitorais
e Autoridades Reguladoras Eleitorais com poderes jurisdicionais, que somente podem ser
questionados em bases constitucionais, até Autoridades Reguladoras Eleitorais com a palavra
final em matéria eleitoral. Nas duas últimas hipóteses, a Autoridade Reguladora Eleitoral
pode ser classificada como uma autoridade híbrida por possuir poderes ainda mais amplos do
que os associados às autoridades reguladoras no formato contemporâneo, visto que possuem
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poder jurisdicional especializado e exclusivo em matéria eleitoral. E essa questão pode ser
ainda mais complexa se for considerada a hipótese na qual membros das cortes
constitucionais venham a integrar tais órgãos eleitorais autônomos, caso do Brasil.
O reconhecimento da existência de autoridades reguladoras eleitorais muda
completamente a perspectiva para análise de órgãos eleitorais e principalmente, para esta
pesquisa, da Justiça Eleitoral brasileira. Avaliar o desempenho de uma Justiça Eleitoral que
detém todos poderes da governança eleitoral, como é o caso brasileiro, conforme padrões
tradicionais de análise do Poder Judiciário no mínimo desconsidera variáveis extremamente
relevantes para o seu desempenho e na pior das hipóteses encobre lacunas diversas de
legitimidade, dificultando o alinhamento de sua atuação com padrões de integridade eleitoral
e o devido controle de seus atos.
Uma autoridade reguladora eleitoral que se auto programa, porque autônoma e
independente, a partir do uso de direito regulador delegado pelo poder legislativo, deve criar
os meios para compensar legitimamente a ausência de imperatividade do direito assim
formulado.
E o primeiro passo é reconhecer que a autoridade eleitoral faz uso de função
regulatória autônoma.
Os discursos de aplicação gerados a partir da função regulatória autônoma pelas
autoridades eleitorais, para serem legítimos, necessitam da correspondente complementação
dos discursos de fundamentação, necessitam, portanto, de legitimação suplementar em fóruns
para solução de controvérsias públicas com a participação informada e influente dos
envolvidos.
As normas de efeito vinculante expedidas pelos órgãos eleitorais, no uso de
função regulatória, necessitam de validação em arenas adequadas a fim de que sejam
construídos consensos intersubjetivos e densificados sentidos capazes de estabilizar o
exercício dos direitos políticos de participação, o devido processo eleitoral e o sistema de
direitos.
Órgãos eleitorais que exercem função regulatória autônoma então possuem o ônus
de realizar escolhas políticas, escalonar bens e finalidades e implementar programas de leis
abertos que demandam a utilização de argumentos normativos.
Isso significa que o órgão regulador, na hipótese em que atua como autoridade
reguladora eleitoral, atua de forma política, realiza escolhas e abandona a pretensa
neutralidade da clássica tripartição de poderes. Deixa de ser mero intermediário entre
cidadãos e Estado, como no modelo de Estado Liberal, para adotar postura prospectiva.
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Essa mudança de configuração da arquitetura eleitoral equivale à uma mudança na
estrutura de circulação de poder político do Sistema Eleitoral e implica necessariamente em
novos requisitos de legitimidade e em novas formas de análise e de avaliação dos órgãos
eleitorais.
Aqui há a possibilidade real de mobilização de argumentos de justificação, ou
seja, de função quase-legislativa por juízes e por órgãos eleitorais especializados, tornando-se
imperativa a institucionalização de procedimentos voltados para suprir o déficit de
legitimidade decorrente dessa exigência suplementar de formas comunicacionais adequadas, a
fim de que a atuação dos órgãos eleitorais seja transparente e passível de controle.
Se não há apropriada identificação de autoridades reguladoras eleitorais e do
exercício de função regulatória autônoma correspondente, o Sistema Eleitoral fica sujeito à
insuficiente institucionalização do princípio da separação de poderes e, por consequência,
sujeito à insuficiente institucionalização de procedimentos de monitoramento e controle pelos
sujeitos da democracia. Fica refém de parâmetros arbitrários de eficiência e descolado de suas
fontes de legitimidade.
Este é o primeiro argumento racional para se identificar e nomear autoridades
reguladoras eleitorais. Esse primeiro argumento tem por referencial a democracia deliberativa.
A segunda razão teórica para se identificar e nomear autoridades reguladoras
eleitorais e autoridades reguladoras eleitorais com poderes híbridos refere-se ao papel que as
autoridades reguladoras independentes passaram a desempenhar no contexto contemporâneo,
na virada do século. Essa segunda justificativa tem por referencial a democracia complexa,
nos termos propostos por Pierre Rosanvallon.
A democracia representativa contemporânea, e por consequência o Sistema
Eleitoral, constrói sua coesão e legitimidade sobre elementos constitutivos múltiplos:
legitimidade eleitoral, legitimidade do serviço público, legitimidade da imparcialidade,
legitimidade da reflexividade e legitimidade de atenção ao particular. Como registrado
anteriormente, a soberania popular se manifesta de forma complexa através de múltiplos
sujeitos e múltiplas temporalidades.
Nesse sentido, o Sistema Eleitoral também passou a possuir dimensões temporais
múltiplas, assim como formas de expressão diferenciadas: o exercício de direitos eleitorais, no
curto prazo de um processo eleitoral e na forma e no tempo das urnas; sua configuração e
reconfiguração pelos influxos recebidos da esfera pública deliberativa, na dimensão temporal
e espacial de médio prazo dos mandatos políticos e dos ciclos eleitorais de médio prazo para
elaboração de normas e regulação de atividades eleitorais e partidárias; os direitos individuais
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e coletivos na linguagem e no tempo dimensionados para os devidos processos
administrativos e judiciais, no longo tempo da jurisprudência constitucional e das políticas
públicas produzidas.
O funcionamento atual do Sistema Eleitoral resulta de forças ambivalentes e
opostas, resulta da atuação de instituições de conflito e da atuação de instituições de consenso.
As instituições eleitorais de conflito, relacionadas às práticas partidárias subjetivas
da competição eleitoral-representativa, de um lado, e as instituições eleitorais de consenso,
relacionadas ao mundo objetivo das instituições da democracia indireta, as cortes
constitucionais/especializadas e as autoridades eleitorais independentes, de outro. Conflito e
consenso são duas faces da convivência democrática contemporânea que necessitam de igual
reconhecimento e legitimação.
Nesse contexto, as cortes constitucionais/especializadas em matéria eleitoral e as
autoridades eleitorais independentes funcionam para alinhar de forma dinâmica e permanente
as ações e políticas públicas em matéria eleitoral com o projeto constitucional e com o
horizonte da integridade eleitoral, permitindo a expressão da vontade geral sob perspectiva
múltipla, complexa e diferenciada. Fornecem corpo e voz para alcance das novas e precárias
formas de legitimidade.
A legitimidade eleitoral tradicional ampara-se no reconhecimento e aceitação
popular da “regra da maioria”, representando uma generalidade agregada de identificação que
se manifesta em termos quantitativos. Já a legitimidade eleitoral do sistema democrático
representativo contemporâneo implica na criação de espaços para a realização desinteressada
dos interesses de todos, ou seja, cidadãos preferem ser governados por princípios e interesses
voltados para a eliminação de privilégios e para a garantia de igual possibilidade a todos.
Nesse sentido, órgãos eleitorais tem por função assegurar condições de
legitimidade para produção do consenso, para o resultado legitimo do embate de ideias
eleitorais. A atuação legítima de órgãos eleitorais, enquanto instituições de consenso, permite
o alcance de resultados íntegros para o exercício de poder político pelas instituições de
conflito. E mais: se há autoridade reguladora autônoma é porque há atividade a ser regulada.
O não reconhecimento de autoridades reguladoras eleitorais impede o
reconhecimento de que a atividade partidária e intrapartidária, o acesso à arena política e o
impacto do dinheiro na política precisam ser regulados, para que o acesso à cargos políticos e
o exercício dos direitos eleitorais estejam alinhados com os princípios prospectivos de
integridade eleitoral.
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A ausência de marcos institucionais claros para regulação, fiscalização,
supervisão e controle da atividade partidária e do impacto do dinheiro na política sob o
argumento de que o poder legislativo deve ser soberano não se coaduna com a democracia
contemporânea. No Estado Liberal o poder legislativo detinha amplos poderes para
determinar como o processo eleitoral formal deveria funcionar, no Estado Democrático de
Direito o funcionamento do processo eleitoral, o devido processo eleitoral, somente pode ser
tido como legítimo se for conforme diretrizes de integridade eleitoral.
A separação dos órgãos eleitorais do poder político ocorreu exatamente pela
incapacidade do poder político de se autorregular perante uma vontade soberana fragmentada,
pela necessidade de existir um terceiro imparcial que regule a competição política para
garantir o “nivelamento do campo de batalha”, para que permaneçam abertas as possibilidades
de acesso à arena política para todos e para que a competição política seja percebida como
legítima por vencedores e perdedores.
Os órgãos eleitorais autônomos, nesse sentido, correspondem a uma forma de
poder representativo embora não sejam integradas por agentes eleitos. A representatividade
das autoridades reguladoras eleitorais ampara-se na acessibilidade, nos canais de diálogo
efetivo que estabelece com os sujeitos da democracia, para compor interesses, informar e
solucionar conflitos eleitorais. A legitimidade de sua atuação depende dos mecanismos de que
dispõe para proporcionar a todos os interessados influência nos processos de escolha das
formas pelas quais os conflitos eleitorais serão resolvidos. Depende ainda de estabelecer
procedimentos eleitorais que permitam levar em consideração todos os argumentos das partes
interessadas buscando superar perspectivas particulares e individuais para alcançar uma forma
de generalidade específica, a generalidade negativa. À esta generalidade corresponde a
legitimidade da imparcialidade, que pretende satisfazer a uma nova e complexa demanda por
unanimidade.
Sistemas Eleitorais e órgãos eleitorais também se relacionam com a generalidade
da multiplicação e com a correlata exigência de legitimidade reflexiva. A perspectiva
reflexiva exige a pluralização de manifestação do poder político, ao invés da separação, e a
regulação dos mecanismos do sistema majoritário. O exercício do direito de petição com os
correspondentes direitos de ser ouvido e de receber uma resposta fundamentada da autoridade
competente é por excelência procedimento de legitimidade reflexiva. O sistema de direitos é
também construído e legitimado pelo debate processual, pela interação entre as partes
interessadas e os órgãos de regulação eleitoral. A realização de consultas em tese, pelas
partes, com a respectiva resposta da autoridade reguladora mediante procedimento específico,
241
e a participação em audiências públicas dos órgãos eleitorais para validar normas e
procedimentos para eleições apresentam-se como novas formas de manifestação de soberania
e de legitimação do sistema de direitos.
Na mesma linha de pensamento, no livro Juez y Democracia (SAGER, 2007), as
reflexões realizadas por Lawrece G. Sager buscam demonstrar que a prática democrática
contemporânea incorporou diferentes alternativas ao exercício monista da vontade popular
pelo parlamento previsto pela teoria liberal tradicional. Estas reflexões também são bastante
oportunas para a presente pesquisa. O autor volta sua atenção para a questão mais geral de
como a prática constitucional responde às críticas inspiradas no ideal democrático,
compreendendo que a teoria baseada na justiça é a que melhor sustenta o constitucionalismo
robusto em face de dúvidas democráticas. Para ele, a democracia direta, a democracia
representativa e os sistemas de governo que incluem juízes com autoridade e responsabilidade
de garantir a Constituição são diferentes alternativas para o exercício democrático.
Uma judicatura com competência constitucional, explica Sager (2007), possui
elementos que permitem o debate adequado sobre os direitos, tendo essa percepção levado
diversos Estados democráticos modernos a adotar Constituições escritas e a conferir à
instituição judicial a sua garantia, apontando como características promissoras desse modelo,
sob o ponto de vista epistêmico: a desvinculação dos juízes e dos tribunais dos interesses
imediatos dos membros de sua comunidade política; a atuação dos juízes como se fossem
“inspetores de qualidade” por cumprirem função especializada e redundante ao identificar
fundamentos de justiça política que sejam importantes e que sirvam de fundamento para o
regime constitucional e para o controle da legislação; o “equilíbrio reflexivo” que decorre das
fundamentações através de princípios em uma sucessão de casos, que precisam ser coerentes
no tempo, resultando como meio para equilibrar a reflexão normativa e para concretizar a
exigência moral de generalização. A seguir, Sager induz reflexão a respeito de duas formas
pelas quais as pessoas são capazes de participar como iguais no processo deliberativo de
direitos (SAGER, 2007): a igualdade eleitoral e a igualdade deliberativa.
A igualdade eleitoral seria garantida através do exercício em condições de
igualdade do direito de eleger os representantes políticos que tomam as decisões sobre os
direitos, ressaltando que esta é uma forma perigosa por ser influenciada pelo poder dos votos
e do dinheiro desviando-se da pretensão de determinado grupo ou indivíduo. A igualdade
deliberativa seria assegurada aos participantes nos processos de debates sobre direitos, ou
seja, a consideração séria por quem tenha autoridade deliberativa dos seus direitos e
242
interesses, estando implícito nessa forma de igual participação o direito de ser ouvido e de
obter resposta fundamentada, como, por exemplo, nos processos judiciais. Essas duas formas
de igualdade seriam complementares para o exercício democrático e não excludentes como se
poderia imaginar.
A abordagem plural dos sujeitos, das formas e dos procedimentos eleitorais,
através da multiplicação de expressões parciais – seja através de ouvidorias, disque-denúncia,
ações de transparência ativa, procedimentos judiciais e administrativos ou ainda outros canais
estabelecidos - permite uma aproximação mais efetiva da generalidade democrática. Se a
sociedade possui mecanismos para interferir e para legitimar o exercício dos poderes das
autoridades eleitorais, então a generalidade social encontra-se, pelo conjunto, no comando. O
alcance da generalidade social pressupõe a manifestação da soberania popular em suas três
dimensões contemporâneas, conforme identificado por Pierre Rosanvallon (2011): o povo
eleitoral, o povo social e o povo como princípio. E a arquitetura institucional do Sistema
Eleitoral precisa prever mecanismos e procedimentos para dar voz às múltiplas dimensões do
sujeito democrático.
O conceito de mandato político já não é suficiente para suprir a defasagem entre
governo e sociedade e estabelecer o grau de proximidade necessário. Cidadãos já não se
contentam apenas com o sistema representativo eleitoral tradicional como forma de
participação, no qual somente participam no dia da votação. Há uma exigência por maior
intervenção em todos os momentos e em todas as dimensões do sistema político eleitoral.
Há demanda por canais estabelecidos para troca efetiva de informações entre
governo e sociedade com dupla função: para o governo, os canais de comunicação servem
como instrumento de ação para construção de sua legitimidade junto aos cidadãos e, para as
partes interessadas no processo eleitoral, funcionam como mecanismo de reconhecimento e
controle. A participação popular já não se restringe às urnas e assume formas variadas de
manifestação durante os ciclos eleitorais em suas diversas temporalidades.
A identificação de parâmetros para aferição da legitimidade dos procedimentos
eleitorais relaciona-se com a arquitetura institucional do Sistema Eleitoral. Autoridades
Reguladoras Eleitorais possuem referenciais de legitimidade bastante diferentes dos
tradicionais poderes do estado. Elas podem tanto atuar em nome de uma generalidade
negativa como em nome de uma generalidade reflexiva, a depender das atribuições que
incorpore. Isso implica ainda em atuação subjetiva e temporalmente complexa, na medida em
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que suas ações se desenrolam em ciclos eleitorais com tempos diferenciados, assim como
através de formas distintas de manifestação da soberania popular.
No contexto do Estado Democrático de Direito, do constitucionalismo
principiológico, sob perspectiva deliberativa, e em horizonte de soberania complexa, no qual
os procedimentos institucionais equivalem à caixa de ressonância dos anseios sociais, a
autoridade eleitoral autônoma realiza políticas públicas, age conforme e para conformar ações
com princípios e diretrizes constitucionais na busca de efetivação e proteção de direitos
políticos eleitorais, atua para avalizar a integridade de todo o processo eleitoral, a cada ciclo, e
para a estabilidade política de longo prazo .
Quando se atribui a uma mesma autoridade eleitoral poderes normativos,
administrativos, fiscalizatórios e judiciais para gerir todo o processo eleitoral altera-se a
verdadeira natureza jurídica das atividades e das autoridades que a implementam, ainda que
estas normativamente sejam classificadas como órgãos do poder judiciário, legislativo,
executivo ou como órgão autônomo e independente.
A conjugação de todos esses poderes atribuídos a uma mesma autoridade, aliados
à garantia de independência, mandato fixo e impossibilidade de recurso impróprio de suas
decisões, caracterizam a típica função regulatória autônoma contemporânea, nos moldes da
nova função regulatória que surgiu nas últimas décadas do século XX e qualificam a
instituição responsável por gerir o processo eleitoral como autoridade reguladora autônoma
do processo eleitoral.
A autoridade reguladora eleitoral assim constituída ainda pode ter poderes
jurisdicionais, e, nessa hipótese, será uma autoridade reguladora híbrida pois concentra
poderes regulatórios e poderes judiciais caracterizando um órgão de natureza diferenciada dos
demais órgãos que compõem os poderes do Estado. O surgimento de um órgão regulador
eleitoral híbrido apresenta enormes desafios de legitimidade e controle que que somente
podem ser corretamente identificados no contexto de um Sistema Eleitoral concretamente
estabelecido.
Antes de prosseguir, é importante registrar e sistematizar as conclusões até aqui
apresentadas. Para tanto segue abaixo quadro sintético com a arquitetura institucional de um
Sistema Eleitoral com Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida.
LEGISLAÇÃO ELEITORALARQUITETURA INSTITUCIONAL ELEITORAL SOCIEDADE CIVIL E CIDADÃOSPARTES INTERESSADAS NO PROCESSO ELEITORAL
CULTURA POLÍTICA
NOVA GOVERNANÇA ELEITORAL
ELABORAÇÃO DE NORMASAPLICAÇÃO DE NORMASADJUDICAÇÃO DE NORMASREGULAÇÃO ATRAVÉS DE NORMAS
SISTEMA ELEITORAL
SISTEMA PARTIDÁRIO
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OGE + SJE = AUTORIDADE REGULADORA
ELEITORAL HÍBRIDA
REQUISITOS DIFERENCIADOS E MAIS EXIGENTES DE
LEGITMAÇÃO E CONTROLE
Figura 7: Autoridade Reguladora Eleitoral híbridaFonte: elaborado pelo autor.
Nesta hipótese a instituição responsável por conduzir todo o processo eleitoral
aparece como agente regulador autônomo, como autoridade reguladora independente,
responsável por resguardar direitos políticos eleitorais ou de participação, nivelar a
competição eleitoral, planejar e implementar políticas públicas, alinhar interesses com as
finalidades da integridade eleitoral e solucionar as disputas emergentes com poderes
jurisdicionais.
Enfim, a autoridade reguladora eleitoral híbrida apresenta competência para atuar
nas fronteiras do sistema democrático, assegurando que soberania popular e direitos humanos
mantenham o equilíbrio mínimo exigido para manutenção, preservação e oxigenação do
sistema de direitos, impedindo que este venha a ser colonizado por padrões de condutas
voltados para objetivos de maiorias contingentes.
245
Em tese, a autoridade reguladora eleitoral híbrida seria capaz de “ansiar pela
nação”, atuaria voltada para o consenso, voltada para resguardar a integridade e as condições
de legitimidade do sistema representativo, preservando a possibilidade de confronto legítimo
de ideias e interesses contrapostos, assim como atuaria para a construção do equilíbrio
reflexivo, tal como proposto por Sager (2007).
O aparecimento de órgãos eleitorais autônomos híbridos é uma realidade
incontestável da governança eleitoral contemporânea, o que conduz a inevitáveis reflexões
sobre as condições de legitimidade para sua atuação, com questionamentos diversos sobre
limites, poderes e procedimentos envolvidos.
Até aqui buscou-se demonstrar que o constitucionalismo contemporâneo
prospectivo, que possui na dignidade da pessoa humana seu maior vetor de direcionamento e
alinhamento do diálogo social, trouxe impacto significativo para o sistema democrático em
geral e para o sistema eleitoral em especial.
Nesse contexto, a integridade das eleições tornou-se o objetivo a ser perseguido
para a realização de eleições democraticamente legítimas, enquanto horizonte regulatório e
vetor de adequação para o devido processo eleitoral, material e formalmente considerados.
A agregação da dimensão substancial de legitimidade como condição para um
processo eleitoral legítimo teve impacto direto para a governança eleitoral na medida em que,
para garantir a integridade das eleições e aprofundar a percepção de legitimidade democrática
pelos cidadãos, diversos órgãos eleitorais ganharam autonomia em face dos tradicionais
poderes eleitos do Estado. E esse fenômeno deu origem a novos questionamentos sobre
poderes e limites dos órgãos eleitorais.
Nesse contexto, é que a presente tese busca responder se a Justiça Eleitoral
brasileira se caracteriza como uma autoridade reguladora eleitoral híbrida e se essa arquitetura
institucional convém em face do paradigma de Estado Democrático de Direito adotado pelo
Brasil a partir de 1988. Essa avaliação será feita a seguir.
CAPÍTULO 6
REGULAÇÃO ELEITORAL NO BRASIL
Nesta etapa da pesquisa será realizada reflexão sobre a arquitetura institucional
adotada no Brasil para regular o processo eleitoral no contexto da Constituição de 1988,
utilizando-se como referencial os marcos teóricos da democracia procedimental, da
democracia reflexiva, com ênfase no papel do Direito e sua relação com a Política, tal como
formulado por Habermas e Pierre Rosanvallon.
Busca-se, nesse contexto, avaliar o impacto da nova carta para a governança
eleitoral, as características e os desafios apresentados para a Justiça Eleitoral brasileira, assim
como seu grau de maturidade frente às novas exigências de legitimidade contemporânea.
Pretende-se, em última instancia, verificar se a regulação eleitoral brasileira atual
preenche os pressupostos de adequação e justiça, nos termos das teorias da democracia
apresentadas e das exigências de integridade determinadas pela pauta internacional de direitos
humanos.
A teoria da democracia procedimental apresenta meios para avaliação das
condições de comunicação e para identificação das formas de institucionalização de discursos
em matéria eleitoral a fim de que seja verificada se há legitimidade do direito assim
produzido. Ou seja, permite identificar se há, do ponto de vista normativo, mecanismos que
garantam a fundamentação racional das decisões e a possiblidade de participação influente
das partes interessadas no processo eleitoral no que se refere à formulação do conteúdo da
regulação. Nesta etapa a legitimidade da regulação será analisada quanto ao aspecto da
produção normativa, do respeito aos procedimentos para construção legitima do sistema de
direitos.
A teoria da democracia reflexiva explica que as instituições reguladoras e as
cortes constitucionais multiplicaram-se como resultado do aumento da complexidade e da
fragmentação social para fazer face aos novos e precários aspectos da legitimidade
democrática que emergiram no mundo contemporâneo: legitimidade da imparcialidade,
legitimidade da reflexividade e legitimidade da atenção ao particular.
Sob esse ponto de vista, as autoridades reguladoras tornaram-se as instituições
responsáveis por garantir a todos igual oportunidade de participação nos processos sociais,
igual oportunidade de acesso. Já as cortes judiciais passaram a ser lócus de participação
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social, através do exercício da reflexividade, na medida em que o processo judicial oferece às
partes interessadas mecanismos de participação na discussão, construção e sedimentação do
conteúdo do direito em “funcionamento” e, portanto, da regulação aplicada mediante os
diversos procedimentos estabelecidos para aferir e corrigir o processo regulatório, alinhando-o
com a pauta de direitos humanos. Aqui, a legitimidade da regulação é avaliada no que se
refere à existência de mecanismos efetivos de participação, controle, fiscalização e incentivo,
colocados à disposição do órgão regulador para garantir a participação influente e informada
de múltiplos sujeitos, em múltiplas temporalidades, com reais possibilidade de assegurar a
legitimidade substancial ao longo de todo o processo eleitoral.
Garantir a legitimidade do processo eleitoral significa então possibilidade
concreta de legitimar o direito produzido pelo órgão regulador e a possibilidade concreta de
participar, controlar, fiscalizar e gerar incentivos para alinhar comportamentos de todos os
atores envolvidos, inclusive do órgão regulador, aos princípios da integridade durante todas as
fases do ciclo eleitoral.
Nessa linha de desenvolvimento, faz-se necessário identificar a natureza do órgão
eleitoral brasileiro, ou seja, como foi feita a distribuição de competências da governança
eleitoral no Brasil. Essa primeira análise torna possível avaliar se a Justiça Eleitoral funciona
apenas como um órgão tradicional integrante do Poder Judiciário, ou se a Justiça Eleitoral de
fato funciona também como uma autoridade reguladora híbrida por ser um órgão regulador
com poderes jurisdicionais, tese dessa pesquisa.
A próxima etapa tem por finalidade identificar se a arquitetura institucional
eleitoral do Brasil convém ao estado democrático de direito, ou seja, se há mecanismos
institucionalizados para tornar legitima a sua atuação. Faz-se necessário refletir sobre as
condições de legitimidade para produção de políticas públicas em matéria de regulação
eleitoral no Brasil pós Constituição de 1988, considerando o desenho institucional da Justiça
Eleitoral, e os respectivos procedimentos decisórios colocados `a sua disposição para
fundamentação racional de suas decisões e para participação do cidadão na formulação do
conteúdo da regulação (MATTOS, 2006, p. 27).
A seguir, busca-se compreender se a regulação eleitoral atende aos requisitos da
nova regulação autônoma levando-se em conta suas três dimensões: poder normativo e
poderes híbridos, previsão de mecanismos de enforcement e eficiência. Ou seja, a pretensão é
avaliar se a Justiça Eleitoral detém poderes normativos autônomos; se possui mecanismos
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efetivos para controlar, fiscalizar e fornecer incentivos concretos para alinhamento do
comportamento das partes interessadas envolvidas no processo eleitoral com o vetor de
integridade estabelecido pelas normas internacionais de direitos humanos e as lacunas
porventura existentes; se dispõe de instrumentos para dar transparência aos resultados da
regulação; e se o resultados da regulação eleitoral é eficiente.
6. 1 Governança Eleitoral pós Constituição de 1988
Uma breve análise das competências atribuídas à Justiça Eleitoral, desde sua
criação em 1932, demonstra que, no Brasil, esta instituição já nasceu responsável por gerir
todas as fases do processo eleitoral (CÓDIGO ELEITORAL 1932).
Como apontado na primeira parte desse trabalho, as ondas regulatórias que
influenciaram os países europeus e os Estados Unidos, durante o século XX, tiveram ampla
repercussão no Estado brasileiro. Nas décadas de 1930, 1960 e 1980 e seguintes, tais efeitos
são bastante evidentes sobre as instituições brasileiras e de uma forma ou de outra, sua
influência também pode ser verificada sobre a governança eleitoral, ainda que à primeira vista
essa relação não seja tão evidente.
O distanciamento histórico e o acompanhamento das atividades desenvolvidas
demonstram que a Justiça Eleitoral foi criada em 1932 e recriada em 1945 para responder a
demandas de institucionalização do diálogo político, de redução da violência social e de
estabilização democrática. Foi criada com o intuito de assegurar, através da linguagem e dos
procedimentos jurisdicionais, maior racionalidade e legitimidade para o sistema
representativo nacional.
Nessa linha de argumentação, é possível dizer que à Justiça Eleitoral, desde a sua
criação, foi atribuída a tarefa de regulação do processo eleitoral. O que se pretende
demonstrar é que, se no início, a regulação eleitoral no Brasil foi preponderantemente
jurisdicional, no período pós Constituição de 1988, a regulação eleitoral - ainda que de
natureza jurisdicional, em razão da natureza jurídica do órgão gestor das eleições - teve sua
estrutura alterada e ampliada no contexto do Estado Democrático de Direito.
A transformação da regulação eleitoral tradicional para a regulação eleitoral de
natureza autônoma ocorreu como resultado dos diversos fatores já apontados ao longo da
presente investigação: a paulatina universalização do voto; a maior complexidade das relações
249
sociais fragmentadas e de massa; o novo papel do cidadão enquanto autor e destinatário das
normas de convivência comum na democracia contemporânea; das novas e precárias formas
de legitimidade; do reconhecimento da existência de instituições de conflito e de instituições
de consenso; da pauta principiológica do constitucionalismo contemporâneo voltado para
condições materiais de dignidade da pessoa humana e portanto prospectiva; da mudança para
o paradigma de Estado Gerencial; e da mudança de natureza jurídica de partidos políticos,
após a Constituição de 1988.
Todos os fatores indicados buscam explicar por que a regulação eleitoral
contemporânea se desprendeu da estrutura tradicional e centralizada de partição de poderes
para uma estrutura pulverizada e especializada, conforme os diversos e fragmentados
interesses públicos geridos de forma compartilhada entre Estado e particulares, após 1988.
Para demonstrar a alteração da regulação eleitoral no Brasil, após a nova carta
constitucional, serão analisadas, a seguir, a Governança Eleitoral, a arquitetura institucional
do Sistema Eleitoral brasileiro e o ciclo da criação e legitimação das normas eleitorais.
A estrutura da Governança Eleitoral brasileira está prevista na CRFB/1988 e na
Legislação Eleitoral posterior, conforme identificado abaixo:
. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – artigos 118 a 121;
. Código Eleitoral – Lei 4.737, de 15 de julho de 1965, e alterações posteriores;
. Lei de Inelegibilidades – Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, e
alterações posteriores;
. Lei das Eleições – Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, e alterações
posteriores;
. Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995, e alterações
posteriores;
. Legislação Eleitoral e Partidária complementar.
No primeiro nível da Governança Eleitoral, Elaboração de Normas, que abrange a
escolha e definição das principais regras da disputa eleitoral, as Normas da Competição
Eleitoral no Brasil foram previstas pelo legislador constituinte na Constituição de 1988, como
por exemplo o sistema eleitoral, os direitos políticos, o sistema partidário, o prazo dos
mandatos, os cargos eletivos. A competência para editar normas gerais e abstrata primárias
sobre eleições foi atribuída ao Poder Legislativo na própria Constituição de 1988 e a
250
competência dos órgãos eleitorais foi remetida para a edição de lei complementar. A Justiça
Eleitoral é o único conjunto de órgãos do Poder Judiciário cuja competência não foi descrita
na Constituição de 1988.
A competência para editar Normas de Regulação Eleitoral foi concedida à Justiça
Eleitoral mediante a legislação eleitoral, que conferiu a essa justiça especializada poder
regulamentar para editar resoluções e instruções com força de lei para assegurar a organização
e o exercício dos direitos políticos, conforme previsto no artigo 1º, parágrafo único e no artigo
23, IX do Código Eleitoral e também pelos artigos 105 da Lei das Eleições - Lei 9.504/97 e
61 da Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/95.
Note-se que o poder regulamentar conferido à Justiça Eleitoral pelo Código
Eleitoral de 1965, recepcionado pela Constituição de 1988 com status de Lei Complementar
ao artigo 121 da Constituição de 1988, no contexto da nova carta constitucional dirigente,
ganhou status de função regulatória autônoma. Essa conclusão decorre de uma interpretação
sistemática do sistema jurídico criado em matéria eleitoral pela nova carta, visto que a
recepção de uma lei feita em 1965, no contexto de outra constituição, precisa ter seu conteúdo
reinterpretado em face do novo contexto normativo.
A possibilidade de regulação autônoma foi inclusive reconhecida pela doutrina e
jurisprudência ao reconhecer que as Resoluções e Instruções expedidas pela Justiça Eleitoral
para normatizar o processo eleitoral possuem força de lei, com capacidade de inovar o sistema
jurídico, cabendo inclusive controle de constitucionalidade das normas assim editadas
(CERQUEIRA, 2006, p. 7 e 8).
A competência relacionada ao segundo nível da Governança Eleitoral, Aplicação
de Normas, que envolve a organização e concretização de todas as fases do ciclo eleitoral,
também foi atribuída à essa Justiça especializada, conforme infere-se das normas previstas
artigo primeiro e seguintes do Código Eleitoral, Lei 4.734/1965.
Este nível abrange claramente o planejamento das eleições, a organização da
logística eleitoral, a adoção de todas as medidas necessárias à sua implementação, inclusive o
exercício de poder de polícia. Tradicionalmente, também seria possível associar este segundo
nível da Governança Eleitoral no Brasil com os principais procedimentos relacionados ao
processo eleitoral: alistamento de eleitores, o registro de partidos políticos, o controle da
filiação partidária, fiscalização da propaganda eleitoral, prestação de contas de campanha e
prestação de contas anual, votação, apuração, proclamação dos eleitos e diplomação.
251
O terceiro nível da Governança Eleitoral, Adjudicação de Normas, que envolve a
certificação de resultados e a solução de disputas decorrentes o processo eleitoral, também foi
atribuída à Justiça Eleitoral, como pode ser depreendido do artigo 121, §º 4 da Constituição de
1988 e dos artigos 22, 23, 29, 30, 35, 40 Código Eleitoral. A regulação eleitoral tradicional
resultava principalmente da implementação de atividades relacionadas ao nível adjudicação
de normas, ou seja, dos procedimentos jurisdicionais que faziam o controle de legalidade e
punia os ilícitos praticados em matéria eleitoral.
Tradicionalmente, no contexto anterior à Constituição de 1988, os procedimentos
eleitorais estariam submetidos à regulação tradicional que tinha como foco a legitimidade
formal: a punição de ilícitos e a credibilidade de resultados. Legitimidade aqui compreendida
como ampla possibilidade de alistar-se como eleitor e registrar-se como candidato, no sentido
de inclusão e participação de todos os cidadãos reconhecidos nos termos da carta
constitucional. Credibilidade compreendida como votação e apuração livre de fraude. A
regulação tradicional tinha por finalidade apurar atos ilícitos, impedir fraudes e impor
sanções, após avaliação formal das condutas praticadas.
O quarto nível da Governança Eleitoral, Regulação Através de Normas, nos
termos propostos no quarto capítulo dessa pesquisa, resulta da forma como o novo sistema de
direitos brasileiro foi previsto pelo legislador constituinte de 1988, das normas de direitos
humanos aos quais o Brasil vinculou-se no plano internacional e da legislação eleitoral
posterior a nova carta constitucional. Enfim, resulta das profundas transformações sociais
trazidas pela universalização do voto ao longo de todo o século XX e do que se passou a
compreender por convivência democrática nos últimos anos desse período.
Nesse novo contexto, à regulação eleitoral tradicional, mantidos os objetivos do
passado, adicionou-se a integridade, que expandiu a necessidade de controle e alinhamento de
todas as fases do ciclo eleitoral com princípios de direitos humanos. Igual acesso e
participação influente em todo o processo eleitoral passou a abranger circunstâncias
procedimentais materialmente legítimas com efetiva repressão a abusos econômicos,
políticos, ideológico-sociais e religiosos.
O ponto de inflexão mais significativo para a transformação da regulação eleitoral
contemporânea resultou da alteração da natureza jurídica dos partidos políticos pós
constituição de 1988. Ao declarar que os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito
privado e que a filiação partidária é condição de elegibilidade para acesso a cargos
252
representativos, o constituinte fez evidente opção pela entrega da tutela de interesse público
indisponível à particular. Ao fazê-lo, criou, em contrapartida, para o poder público, a
obrigação de regular as relações decorrentes da nova sistemática eleitoral para que estas sejam
alinhadas com os princípios constitucionais e com a pauta internacional de direitos humanos.
Ao estabelecer a clara distinção entre partidos políticos e Estado, decisão
totalmente conforme tratados e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, o
constituinte de 1988 estabeleceu uma nova correlação de forças para o Sistema Eleitoral.
A efetiva supervisão e regulação da atividade partidária, a supervisão e controle
da influência do dinheiro na política, em razão da prática de atividade de interesse público por
ente privado, tornaram-se novas condições de legitimidade para o processo eleitoral e para o
alcance de eleições íntegras, ao lado da regulação de todas as fases do ciclo eleitoral, que com
estas relações estão diretamente ligadas.
Partidos políticos e campanhas eleitorais são financiados com dinheiro público e
com dinheiro de terceiros, seja diretamente através de doações privadas e doações do Fundo
Partidário, seja indiretamente pelo horário eleitoral gratuito ou pela prestação direta de outros
serviços. Somente o controle de receitas e despesas, envolvendo bens públicos e bens de
terceiros, respectivamente, recebidas e realizadas por partidos políticos e candidatos, já seriam
fundamento suficiente para justificar a regulação e supervisão de órgão eleitoral. O
funcionamento partidário e campanhas eleitorais claramente possuem dimensão econômica
significativa, embora nela não se esgote. (No mesmo sentido, em âmbito global, normas mais
rigorosas e mecanismos de combate a corrupção e à lavagem de dinheiro estão se
disseminando para regular fluxos financeiros, mercados de ações, operações bancárias,
governança de empresas de capital aberto, etc.).
Some-se a estas questões a enorme capacidade que o dinheiro e as normas
intrapartidárias possuem para influenciar os resultados do processo eleitoral, e, portanto,
quem chega ou não ao poder, e que políticas públicas são ou não aprovadas, resta
demonstrada a premente e urgente necessidade de regulação autônoma da atividade partidária
e do ciclo eleitoral em toda a sua extensão.
A tese defendida na presente pesquisa é a de que, no Brasil, as competências para
controlar, supervisionar e criar os incentivos necessários para alinhar o comportamento das
partes interessadas no processo eleitoral aos princípios de direitos humanos foram atribuídas à
Justiça Eleitoral. Inclusive a regulação e supervisão da atividade financeira partidária. Essa
253
conclusão decorre de interpretação sistemática do conjunto normativo publicado após a
Constituição de 1988: Lei de Inelegibilidade – Lei Complementar 64/90, Lei dos Partidos
Políticos – Lei 9.096/1995 e da Lei das Eleições – Lei 9.504/1997, e respectivas alterações
posteriores.
A Constituição de 1988 e a legislação acima indicada deram origem a um novo
sistema normativo eleitoral, um novo ordenamento setorial, que tem por finalidade delinear as
regras do jogo para a competição política de acesso ao poder, tornando mais estável e
previsível as circunstâncias para o desenvolvimento dos ciclos eleitorais.
Como visto no terceiro capítulo, um microssistema jurídico de um ordenamento
setorial é integrado por todos aqueles que participam da atividade ou que sejam atingidos pelo
interesse tutelado, as partes interessadas. Assim, órgãos, instituições, particulares, empresas,
estarão todos submetidos à atividade regulatória desse microssistema e sobre ele exercerão
influência. Em um ordenamento setorial sempre será identificado um elemento
organizacional, uma produção normativa própria e uma pluralidade de sujeitos que participam
do funcionamento da instituição para legitimar sua atuação. Normatização própria, na acepção
proposta por Giannini, referência para os microssistemas jurídicos de um ordenamento
setorial, pressupõe a criação de normas pelo próprio grupo e a respectiva submissão a estas
por todos os sujeitos envolvidos na atividade regulada. E tais normas devem ser parte de um
subsistema, que como tal precisa necessariamente se organizar segundo princípios capazes de
garantir a sua integridade, legitimidade e de coordenar-se com o sistema jurídico central. A
regulação como instituto novo marca ponto de inflexão quanto à irresponsabilidade política e
incorpora novos referenciais democráticos na gestão de interesses públicos conduzidos por
particulares.
A Justiça Eleitoral no contexto da carta de 1988 é exatamente o elemento
organizacional, com competência para produção normativa própria, cujo funcionamento
legítimo pressupõe a instituição de mecanismos de participação de todos os interessados no
funcionamento da instituição. Uma análise do calendário e das atividades eleitorais mostra
que cada vez mais mecanismos de transparência e participação têm sido inseridos nos
procedimentos da Justiça Eleitoral, durante as diversas fases do ciclo eleitoral. A título de
exemplo, é possível indicar o “calendário da transparência” e o aplicativo para
acompanhamento de apuração criados pelo Tribunal Superior Eleitoral para as eleições de
2016. Tais sucessivas modificações não são apenas melhorias de gestão, mas sim respostas a
novas demandas por legitimidade do sistema político eleitoral.
254
A criação pela nova Carta desse novo microssistema jurídico estabeleceu nova
correlação de forças entre as partes interessadas da competição política e alçou a Justiça
Eleitoral à condição de autoridade reguladora autônoma do processo eleitoral, com a
correspondente redefinição do papel de todos os envolvidos.
A regulação eleitoral, enquanto atividade regulatória autônoma delegada à Justiça
Eleitoral, passou a envolver as seguintes fases do ciclo eleitoral: a definição da moldura
regulatória através da expedição de resoluções e instruções eleitorais, a definição das
circunscrições eleitorais, a regulação do alistamento e do cadastro eleitoral, a regulação do
registro partidário e do registro de candidaturas, a regulação de campanhas eleitorais, a
regulação da propaganda eleitoral e da atuação da mídia, a regulação de pesquisas eleitorais, a
regulação do processo de votação, a regulação da votação e a regulação da proclamação dos
resultados. A criação do novo modelo regulatório levou para outro patamar a exigência de
responsabilização política e de novos referenciais democráticos para a gestão dos interesses
públicos em matéria eleitoral.
A regulação eleitoral autônoma, regulação através de normas, resultou, portanto
do exercício integrado de todas as dimensões da governança eleitoral em razão da nova
dinâmica estabelecida: de um lado, a atribuição de atividades de interesse público a
particulares, e, de outro, a correspondente obrigação do Estado de regular a atividade privada.
A legitimidade do novo sistema eleitoral depende exatamente dos novos papéis e
responsabilidades, em matéria eleitoral, atribuídos às partes interessadas desse microssistema
jurídico. Em conjunto, a Justiça Eleitoral, o Ministério Público Eleitoral, os partidos
políticos, os candidatos, os eleitores, empresas, a imprensa, os observadores do processo
eleitoral e os representantes da sociedade civil, formam um espaço deliberativo,
especializado, no qual a interação de todos deve resultar na produção de uma razão
procedimentalizada. Deve resultar em um sistema de freios e contrapeso às recíprocas
atuações a fim de que o sistema eleitoral funcione como filtro deliberativo dos interesses em
disputa, com reconhecimento recíproco de que o equilíbrio encontrado entre acordos e
desacordos sociais pode ser aceito e respeitado por todos.
A tensão existente entre as partes, os canais de comunicação institucionalizados,
os procedimentos estabelecidos e o vetor de integridade eleitoral é que, em conjunto, criam a
concreta possibilidade para uma governança eleitoral legitima e reais possibilidade para
255
escolha de representantes capazes de refletir e reproduzir a correlação de forças existente no
tecido social.
6.2 Justiça Eleitoral como Autoridade Reguladora Eleitoral
A atribuição concentrada de competências relacionadas à Governança Eleitoral
para a Justiça Eleitoral brasileira, conforme analisado no ponto anterior, aliada à
correspondente atribuição de função regulatória autônoma que resulta dessa concentração de
poderes, conforme proposição realizada no capítulo 5, e a entrega de atividade de interesse
público para particulares, tem por corolário a criação de uma autoridade reguladora eleitoral
com poderes híbridos.
A pretensão nesta etapa da pesquisa é verificar se esta proposição pode ser
comprovada na prática. É preciso então, conforme critérios estabelecidos no terceiro capítulo
para identificação da atividade regulatória da Justiça Eleitoral, analisar:
- Se existe serviço ou atividade de interesse público de natureza econômica ou de
natureza protetiva e garantidora de direitos humanos atribuída a particular, em matéria
eleitoral;
- Se a função regulatória atribuída à Justiça Eleitoral tem natureza autônoma;
- Se a Justiça Eleitoral se enquadra nos atributos para classificação de uma
autoridade reguladora como autoridade reguladora independente.
Os direitos eleitorais abrangem principalmente os direitos de votar e ser votado.
Se antes, tais direitos deveriam obedecer apenas a referenciais normativos formais, com o
advento do constitucionalismo principilógico e com a pauta de direitos humanos
internacionais, a legitimidade para o exercício de tais direito passou a vincular-se a finalidade
específica, aqui definida como integridade eleitoral, com parâmetros concretos para sua
aferição.
Processos e procedimentos eleitorais, nesse sentido, ganharam novo significado
para aferição da legitimidade que deixou de ser considerada apenas no que se refere aos
resultados da disputa eleitoral e à ausência de condutas ilícitas.
256
A forma como se desenrola a competição político-eleitoral e a conduta dos
sujeitos envolvidos são condições para o alcance de resultados legítimos. O devido processo
eleitoral tornou-se mais complexo.
Assim, é importante apontar que a participação dos sujeitos da democracia no
exercício de direitos eleitorais e das partes interessadas no processo eleitoral tornaram-se
objeto de regulação eleitoral.
Cidadãos, como sujeitos por excelência da democracia, enquanto detentores de
título eleitoral, cujo alistamento é compulsório no Brasil, exercem atividade de interesse
público por previsão Constitucional, sujeita à regulação pela Justiça Eleitoral.
A Justiça Eleitoral é responsável por verificar o atendimento ou não das condições
para o indivíduo alistar-se como eleitor e para investi-lo na condição de cidadão, em sentido
estrito, e por coibir condutas irregulares no exercício de direitos de participação. A Justiça
Eleitoral autoriza o exercício de direitos políticos através do registro do eleitor no cadastro
eleitoral e a emissão do título de eleitor.
A gestão do cadastro eleitoral implica em uma série de atividades regulatórias e
na escolha de políticas públicas para garantir sua lisura. A adoção do registro biométrico de
eleitores resultou exatamente dos diversos problemas decorrentes do alistamento eleitoral. A
definição de procedimentos para composição de mesas de votação, de juntas eleitorais e o
combate à venda de votos, ente diversos outros, são exemplos de regulação eleitoral
envolvendo a participação de cidadãos no processo eleitoral.
Partidos políticos, enquanto exclusivos legitimados para escolha de candidatos à
competição política e enquanto usuários de recursos públicos e de terceiros, exercem
atividade de interesse público coletivo sujeita à regulação, como já apontado. A Justiça
Eleitoral autoriza ou não a atividade partidária, que depende da avaliação de atendimento aos
requisitos legais, assim como autoriza a constituição de órgãos partidários nacionais,
regionais e municipais. Os partidos políticos somente estão legitimados a funcionar após
registro na forma da lei civil e registro na Justiça Eleitoral.
Institutos de pesquisa, mídia e redes sociais, prestadores de serviço para partidos e
campanhas eleitorais, e observadores do processo eleitoral, enquanto participantes ativos, de
natureza privada, no processo eleitoral, exercem atividade de interesse público sujeita à
regulação pela Justiça Eleitoral. A participação da mídia e de observadores no processo
eleitoral se dá mediante autorização prévia da Justiça Eleitoral.
257
Quanto à identificação de função regulatória autônoma, esta existirá sempre que
houver a existência de atividade privada classificada como de interesse público e a existência
de polo de poder administrativo e político descentralizado, com poder regulamentar delegado,
tecnicamente especializado e diversificado com a atribuição de cuidar de um especifico
campo de atividade considerado em seu conjunto, com poderes para condicionar, coordenar e
disciplinar a atividade privada, com a finalidade de realizar direitos fundamentais.
A existência de função regulatória autônoma em matéria eleitoral pode ser
verificada mediante a identificação dos diversos tipos de atividades privadas relacionadas com
o processo eleitoral, cujo exercício seja de evidente interesse público.
A identificação da Justiça Eleitoral enquanto polo de poder administrativo e
político descentralizado, com poder regulamentar delegado, tecnicamente especializado com a
atribuição de cuidar de um especifico campo de atividade considerado em seu conjunto - a
competição eleitoral para a escolha de representantes políticos -, resulta da previsão de
poderes para condicionar, coordenar e disciplinar a atividade privada de interesse público e
para alinhá-la à finalidade de realizar direitos fundamentais: eleições íntegras.
A função regulatória autônoma abrange, então, o poder normativo para impor
moldura normativa geral e abstrata à atividade regulada – Resoluções e Instruções sobre
eleições -; o poder para habilitar o particular a exercer atividade privada de interesse público:
a investidura do cidadão como eleitor, a autorização para criação de órgãos partidários; a
autorização de funcionamento para representantes da imprensa, a acreditação de observadores
do processo eleitoral, etc.; o poder para assegurar sua aplicação, mediante decisões
individuais proferidas na avaliação do caso concreto – processamento dos feitos eleitorais;
poder para reprimir infrações, através da solução de disputas concretamente consideradas –
exercício de poder de polícia e processamento judicial e administrativo dos feitos eleitorais.
Tais prerrogativas dependem da verificação do atendimento aos atributos para
classificação de um órgão ou ente como autoridade reguladora autônoma. Ou seja, é preciso
verificar se a Justiça Eleitoral atua como instituição do Estado responsável por regular setor
considerado como essencial e no qual o governo pretende evitar intervir diretamente para
regulação de atividades econômicas ou para proteger direitos dos cidadãos, se possui a
preocupação finalística de exercer algum tipo de intervenção estatal deslegalizada nas
atividades sociais ou econômicas. É o que será feito a seguir, mediante avaliação do órgão
258
com a última palavra em matéria eleitoral, critério adotado pela International IDEA para
avaliação de órgãos eleitorais.
Em primeiro lugar, será avaliado se o Tribunal Superior Eleitoral atende aos
requisitos identificados nos capítulos 3 e 4 para classificação de uma instituição como
autoridade reguladora autônoma e, em segundo lugar, verificar-se-á se o Tribunal Superior
Eleitoral detém as competências relacionadas com um Órgão de Gestão Eleitoral e com um
Sistema de Justiça Eleitoral, indicadas no capítulo 5.
Os requisitos identificados no capítulo 3 para classificação de uma instituição
como autoridade reguladora independente ou autônoma são os seguintes:
1. Atribuição de competências regulatórias (uso de direito regulador e adoção de
funções híbridas);
2. Decisão por órgão colegiado;
3. Autonomia orgânica, funcional e financeira (autonomia decisória reforçada da
autoridade reguladora, com atribuição de mandato sem possibilidade de
exoneração ad nutum, impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios e
autonomia financeira);
4. Existência de mecanismos de participação publica no conteúdo da regulação
(participação regulatória pela publicidade e pela processualidade aberta).
1. Atribuição de competência regulatória
O regime democrático inaugurado pela Constituição de 1988, em conjunto com a
legislação eleitoral posteriormente publicada, em especial a Lei de Inelegibilidade – Lei
Complementar 64/1990, a Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/1995 e a Lei das Eleições –
Lei 9.504/97, trouxe para o sistema jurídico pátrio nova uma sistemática em matéria de
regulação eleitoral.
O legislador constituinte, no Capítulo VI, Dos Direitos Políticos, da CRFB/1988,
determinou a nova estrutura da competição política e os novos princípios regulatórios que a
governam ao determinar que : a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos; as condições de elegibilidade e as
condições que de inelegibilidade; a possibilidade de impugnação do mandato eleitoral ante à
Justiça Eleitoral; as hipóteses de perda e suspensão dos direitos políticos; a liberdade para
259
criação, fusão, incorporação e extinção de partidos, resguardados a soberania nacional, o
regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana,
observados o caráter nacional, a proibição de recebimento de recursos financeiro de entidades
ou governos estrangeiros, a prestação de contas à Justiça Eleitoral, autonomia partidária,
registro partidário na forma da lei civil e no Tribunal Superior Eleitoral, acesso dos partidos
políticos ao fundo partidário, ao rádio e à televisão, na forma da lei.
A deslegalização da matéria eleitoral, com a recepção do Código Eleitoral de
1965 pela Constituição de 1988, foi confirmada e ampliada em face das alterações
introduzidas pela nova legislação sobre a matéria sendo claramente conferidas à Justiça
Eleitoral competência normativa (deslegalização) e funções híbridas: atividade normativa,
atividade regulatória, atividade fiscalizadora, atividade sancionatória e atividade julgadora.
A delegação normativa está registrada na legislação eleitoral que concede a essa
justiça especializada poder regulamentar para editar resoluções e instruções com força de lei
para assegurar a organização e o exercício dos direitos políticos, conforme previsto no artigo
1, parágrafo único e no artigo 23, IX do Código Eleitoral e, também, pelos artigos 105 da Lei
das Eleições - Lei 9.504/97 e 61 da Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/95.
Uma análise sistemática aplicada à Constituição de 1988, ao Código Eleitoral, à
Lei das Eleições e à Lei dos Partidos Políticos, permite inferir que o Tribunal Superior
Eleitoral possui competência regulatória autônoma para normatizar o processo eleitoral,
competências para organizar sua logística, para solucionar as disputas dele decorrentes e para
exercer atividades de controle, supervisão e compliance, com o objetivo específico de alinhar
o comportamento das partes interessadas com a finalidade integridade das eleições, e
correspondentes poderes para aplicar de sanções.
2. Independência regulatória (a funcional, a dos agentes, a financeira)
A independência regulatória está prevista no Capítulo III – Do Poder Judiciário,
da CRFB/88, especialmente nos artigos 92 a 99 que enuncia as garantias dos juízes, a
autonomia administrativa e financeira dos tribunais e nos artigos 118 a 121 que especifica os
órgãos que compõe a Justiça Eleitoral, a forma para designação de seus membros e a extensão
de seus mandatos. Os artigos 121, §§ 1 e 2 registram as garantias e o prazo do mandato para a
corte eleitoral, consignando, portanto, mandato com prazo determinado e a impossibilidade de
260
exoneração ad nutum de seus dirigentes, garantindo, por consequência, a autonomia reforçada
do órgão eleitoral.
O artigo 121, §3º, expressamente determina que são irrecorríveis as decisões dos
Tribunal Superior Eleitoral, com exceção das que contrariem a Constituição e as denegatórias
de habeas corpus ou mandado de segurança, restando afastada a previsão de recurso
hierárquico impróprio para as decisões prolatadas pelo órgão eleitoral. Note-se que, nesta
hipótese, o poder conferido à Justiça Eleitoral é ainda mais amplo do que o das agências
reguladoras autônomas brasileiras, visto que suas decisões além de estarem resguardadas da
possibilidade de modificação por recurso impróprio, apresentam natureza judicial.
Importante mencionar que a partir da década de 1990, o quadro de servidores
efetivos da Justiça Eleitoral foi paulatinamente ampliado, permitindo a especialização técnica
em matéria eleitoral. Registre-se que a natureza jurídica da Justiça Eleitoral enquanto
conjunto de órgãos do Poder Judiciário foi uma opção política do poder constituinte
originário, que, como visto nos capítulos 4 e 5, poderia ter optado por formato diverso.
Como visto, a natureza jurídica do órgão eleitoral, por si só, não é determinante
para definir sua competência, se apenas de órgão jurisdicional, de órgão de gestão das
eleições ou de autoridade reguladora eleitoral. O conjunto de competências atribuído, ou seja,
a forma de institucionalização da governança eleitoral, e o uso de direito regulador é que
permitem a identificação de uma autoridade reguladora eleitoral. A Justiça Eleitoral brasileira,
embora dotada de autonomia orgânica, funcional e financeira, sujeita-se à diversos
mecanismos de controle no exercício de suas atividades, como por exemplo a fiscalização de
suas atividades administrativas pelo Tribunal de Contas da União, a definição de metas e
diretrizes para sua atuação pelo Conselho Nacional de Justiça, a participação do Ministério
Público Eleitoral em todas as fases do processo eleitoral, o controle social e da imprensa.
3. Decisão por órgão colegiado
Como visto no ponto anterior, a composição colegiada do Tribunal Superior
Eleitoral, com mandato fixo sem possibilidade de exoneração ad nutum, está prevista o artigo
119 e parágrafos, da CRFB/88.
261
4. Mecanismos de participação pública no conteúdo da regulação (participação regulatória
pela publicidade e pela processualidade aberta);
A Lei das Eleições, Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997, em seu artigo 105
explicitamente enunciou que até o dia 05 de março do ano da eleição, o Tribunal Superior
Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções
distintas das previstas em seu texto, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua
fiel execução, ouvidos, previamente em audiência pública, os delegados ou representantes dos
partidos políticos.
Outro mecanismo de participação pública no conteúdo da regulação é a
competência para responder, em matéria eleitoral, às consultas que ao Tribunal Superior
Eleitoral forem dirigidas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de
partido político, nos termos previstos pelo art. 23, XII do Código Eleitoral.
Por ser a Justiça Eleitoral uma autoridade reguladora eleitoral híbrida, com
poderes regulatórios e jurisdicionais, a avaliação do conteúdo da regulação se dá por meio de
diversos procedimentos, na medida em que decisões judiciais e administrativas, como
resultado de procedimentos em contraditório e de audiências públicas, durante todo o ciclo
eleitoral, dão ensejo a modificações das Resoluções e Instruções sobre eleições para o período
seguinte. Há um exercício conjugado de atividades relacionadas à legitimidade da
imparcialidade e à legitimidade da reflexividade, que resulta em alterações cíclicas do
conteúdo da regulação, com participação de todas as partes interessadas.
O calendário eleitoral, aprovado para cada eleição pelos órgãos eleitorais, também
apresentam diversas formas de participação, como por exemplo, as audiências públicas em
diversas etapas de elaboração, validação e lacração dos sistemas eleitorais; a possibilidade de
impugnação pelos diversos legitimados de candidaturas, da composição das mesas receptoras
de votos, dos integrantes das juntas eleitorais e de escrutinadores; as audiências públicas de
Votação Paralela; a possibilidade de acompanhamento do registro de candidatos e de partidos
políticos para concorrer à eleição, e da prestação de contas eleitorais ao longo do processo
eleitoral, visto que os dados são disponibilizados pela internet para dar transparência e
viabilizar questionamentos oportunos pelas partes interessadas legitimadas. Outro mecanismo
de participação popular é a ouvidoria eleitoral, que recebe denúncias e consultas diversas
sobrea as várias etapas do processo eleitoral. Os procedimentos eleitorais obedecem aos
parâmetros de processamento para processos judiciais e administrativos, com ampla
262
publicidade das decisões. Todas as fases do processo eleitoral são públicas e dispõem de
mecanismos de transparência e publicidade para acompanhamento e participação de todos os
interessados.
Em conjunto, tais atributos criam para a Justiça Eleitoral um novo lócus de poder
decisório e de definição e implementação de políticas públicas, com instrumentos
diferenciados de legitimação para o direito produzido, ao prever a institucionalização de
canais para participação das partes interessadas na definição do conteúdo da regulação. Seja
através de audiências públicas ou através do processamento formal de todas as demandas
recebidas.
Registre-se que, diferente dos processos judiciais das demais esferas do Poder
Judiciário, o processamento judicial dos feitos eleitorais no Brasil não se restringe à
apreciação de pretensões resistidas ou de atos ilícitos, mas alcança, de forma dinâmica, todos
os principais eventos do ciclo eleitoral. O processamento de registros de candidato, das
prestações de conta de campanha e das representações previstas na legislação eleitoral, são
claros exemplos da adoção de metodologia judicial para alcançar consenso mínimo e
estabilidade nas diversas fases do processo eleitoral. Os exemplos citados e muitos outros
caracterizam modalidades de procedimentos nos quais o conteúdo da regulação eleitoral é
discutido continuamente durante o ciclo das eleições, pois a judicialização de tais
procedimentos relaciona-se muito mais à criação de canais institucionalizados para exercício
da imparcialidade e reflexividade quanto à regulação eleitoral do que propriamente a solução
de pretensões resistidas.
A legitimidade de muitas ações eleitorais relaciona-se mais com a possibilidade
de construção de conteúdos e acordos intersubjetivos relacionados à legislação eleitoral do
ciclo eleitoral em desenvolvimento do que propriamente à solução de conflitos decorrentes do
processo eleitoral propriamente dito. Ou seja, diversos feitos eleitorais funcionam, na
verdade, como espaço para debate, delimitação e legitimação do conteúdo da regulação
eleitoral.
A adoção de uma pauta de princípios com finalidade específica de garantir
direitos humanos em geral, e direitos políticos em especial, com a participação influente de
cidadãos enquanto autores e destinatários das normas de convivência comum, e a atribuição
de personalidade jurídica aos partidos políticos, com a exigência de filiação partidária como
263
condição de elegibilidade, caracterizam-se como os principais elementos de transformação
jurídico-institucional inseridos pelo nova forma de Estado no âmbito eleitoral em 1988.
Os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito previstos na carta
constitucional de 1988, em seu primeiro artigo - soberania, cidadania, dignidade da pessoa
humana e do pluralismo político – investiram a Justiça Eleitoral no papel de autoridade
reguladora autônoma do processo eleitoral com o objetivo de garantir as condições para a
realização de eleições íntegras. Então, é possível afirmar que o Tribunal Superior Eleitoral
atende aos requisitos identificados no terceiro e quarto capítulos para ser classificado como
autoridade reguladora autônoma do processo eleitoral.
A segunda análise, refere-se à identificação dos órgãos investidos das
competências correspondentes à Gestão Eleitoral e ao Sistema de Justiça Eleitoral, no Brasil,
conforme descrito no quinto capítulo.
É admissível considerar que o Brasil adota o Modelo Independente de gestão
eleitoral, na medida em que existe no país uma estrutura de órgãos permanente, responsável
pela gestão eleitoral, independente, com autonomia administrativa e financeira, sem
ingerência ou submissão ao Poder Executivo.
O núcleo essencial das funções que caracterizam instituições gestoras do processo
eleitoral está contemplado entre as competências atribuídas à Justiça Eleitoral brasileira:
organizar eleições e consultas populares; gerir o cadastro eleitoral e determinar quem pode
votar; registrar candidaturas e partidos políticos para as eleições; conduzir o processo de
votação, apuração e totalização dos votos.
Importante registrar que as demais funções e poderes tipicamente atribuídos à
órgãos de gestão eleitoral também integram as competências da Justiça Eleitoral brasileira: a
realização de políticas públicas e a elaboração de diretrizes eleitorais nacionais ou regionais,
como por exemplo o recadastramento eleitoral biométrico e a elaboração de um calendário
eleitoral unificado; o planejamento dos serviços eleitorais; a capacitação das pessoas
envolvidas no processo eleitoral; a realização de campanhas educativas e informacionais
sobre o exercício de direitos políticos; a delimitação de circunscrições eleitorais; o
planejamento e implementação da logística eleitoral; o alistamento eleitoral; o registro de
partidos políticos e de filiação partidária; a regulação e supervisão da atividade financeira
partidária; a regulação e supervisão da conduta de partidos políticos e candidatos durante o
processo eleitoral; a regulação e supervisão do comportamento da mídia durante as eleições; a
264
fiscalização de pesquisas de opinião relacionadas ao processo eleitoral; a acreditação e
regulação da ação de observadores do processo eleitoral; a proclamação e certificação dos
resultados das eleições; a adjudicação das disputas eleitorais; a revisão e avaliação para
adequação da legislação eleitoral – Instruções e Resoluções – e a performance do órgão de
gestão eleitoral. Verificou-se que o Brasil ainda não adota códigos de ética ou códigos de
conduta para as partes interessadas no processo eleitoral, nem para seus membros e
servidores.
Uma consulta ao sítio da Justiça Eleitoral demonstra que há planejamento
estratégico e projetos estratégicos em andamento para esse ramo especializado de Justiça,
sendo, no entanto, interessante verificar que ainda não há acordos consolidados nos órgãos de
gestão eleitoral quanto aos objetivos e respectivos conteúdos, relacionados ao processo
eleitoral. A Cadeia de Valor (documento que registra os macroprocessos eleitorais) e os
Mapas Estratégicos (documentos que registram a missão, a visão, os valores e os objetivos
institucionais) publicados pelo TSE e pelos Tribunais Regionais evidenciam tanto os acordos
quanto as divergências que ainda permanecem vigentes sobre a compreensão do que significa
e abrange a expressão processo eleitoral.
Entende-se que tais divergência decorrem tanto da diferença de competência entre
os órgãos da Justiça Eleitoral, mas principalmente das transformações do papel da Justiça
Eleitoral no contexto contemporâneo. Ainda não há consenso sobre a natureza regulatória das
atividades dessa justiça especializada. Por ser integrante do Poder Judiciário e adotar a
metodologia jurisdicional na condução de diversos procedimentos do ciclo eleitoral, a
natureza regulatória de suas atividades fica encoberta.
O sistema de resolução de disputas e conflitos eleitorais no Brasil foi atribuído a
órgãos regulares do Poder Judiciário, especializados em matéria eleitoral, circunstância que
atribui à Justiça Eleitoral poderes jurisdicionais.
Como visto no quinto capítulo, a conjugação de todos esses poderes atribuídos a
uma mesma autoridade, em conjunto com os atributos para criação de uma autoridade
reguladora autônoma, e com finalidade específica – integridade das eleições -, caracterizam a
atribuição da típica função regulatória autônoma e qualifica o órgão eleitoral como autoridade
reguladora eleitoral híbrida.
Assim, por todo o exposto, classifica-se o Tribunal Superior Eleitoral como
Autoridade Reguladora Eleitoral híbrida do processo eleitoral brasileiro.
265
6.3 Transição inacabada: regulação eleitoral, jurisdição e lacunas de legitimidade
A terceira onda democrática, ao final do século XX, trouxe para o Brasil,
importantes transformações no âmbito dos direitos fundamentais e coletivos, como visto em
capítulos anteriores. A Constituição de 1988, elaborada sob os influxos do constitucionalismo
contemporâneo e das mudanças paradigmáticas relacionadas à democracia nesse novo
contexto, privilegiou um extenso catálogo de direitos e garantias fundamentais, alinhando-se
com princípios internacionais de direitos humanos voltados para a concretização da dignidade
da pessoa humana em suas dimensões formal e substancial.
Na esfera dos direitos de cidadania, dos direitos políticos e dos direitos eleitorais,
não foi diferente. A influência dessa nova abordagem está registrada ao longo de todo o texto
constitucional. No entanto, embora estejam pulverizados na nova carta diversos direitos e
garantias associados a eleições, estes não foram explicitamente organizados (CARVALHO,
2010).
O sistema normativo relacionado à esfera eleitoral, pós Constituição de 1988, foi
delineado a partir da recepção do Código Eleitoral de 1965 - Lei 4.7.37/1965, como Lei
Complementar ao art. 121 da CRFB/1988, da publicação da Lei de Inelegibilidade – Lei
Complementar nº 64 /1990, da Lei dos Partidos Políticos – Lei 9.096/1996 e da Lei das
Eleições – lei 9.504/1997. Embora não tenha sido elaborado um novo, completo e integrado
conjunto de normas destinado a reger as eleições, claramente a legislação eleitoral criada
entre 1990 e 1997 resultou de esforços voltados para a sistematização das regras do jogo
eleitoral, com a intenção de prever e adequar as normas eleitorais à nova realidade
constitucional.
A previsão constitucional para o funcionamento partidário conforme o regime
democrático e os direitos fundamentais da pessoa humana; de prestação de contas à Justiça
Eleitoral, art. 17 e incisos da CRFB/88; de possibilidade de impugnação de mandato eletivo
ante essa corte especializada como consequência do abuso de poder econômico, corrupção ou
fraude, art. 14, §10 da CRFB/88; a previsão de audiências públicas para validar as resoluções
e instruções eleitorais, art. 105 da Lei das Eleições, são exemplos de atualizações legislativas
alinhadas com a tutela de interesses públicos entregues a pessoas jurídicas de direito privado.
No mesmo sentido, foi feita a inclusão do §9º na Constituição de 1988, pela Emenda
Constitucional de Revisão nº 4/1994, que tem por finalidade a proteção da probidade
administrativa, da moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do
266
candidato, e a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou
emprego na administração direta e indireta.
Todos os exemplos normativos acima citados confirmam a transformação
correlação de forças entre as partes interessadas no sistema eleitoral, nos últimos anos do
século XX, e a consequente inauguração de novas relações regulatórias.
No entanto, a extensão dos poderes conferidos à Justiça Eleitoral e as diretrizes e
os limites para atuação partidária não foram suficientemente definidos na legislação
infraconstitucional, tornando-se estas as maiores fontes de tensão do atual sistema eleitoral
brasileiro. Tal circunstância fica muito clara quando se leva em consideração os princípios
identificados pela International IDEA para a previsão e delimitação de órgãos de gestão
eleitoral na Constituição e o checklist elaborado pela mesma instituição, com a finalidade de
verificar se há estrutura normativa (legal framework) adequada no país em análise. Tais
diretrizes buscam apresentar parâmetros racionais para a institucionalização da gestão
eleitoral voltada para a integridade eleitoral, a partir das boas práticas registradas conforme
avaliação dos 217 órgãos que compõem a base de estudo daquele instituto.
Conforme apresentado no quinto capítulo, foram identificados como princípios
relacionados à institucionalização de órgãos eleitorais que devem ser observados pelo
conjunto normativo constitucional de cada país os seguintes: independência do OGE;
composição do OGE; mandato dos membros do OGE; funções e poderes do OGE; direitos
associados ao sufrágio ou requisitos para qualificação do eleitor; direitos dos partidos
políticos; parâmetros para delimitação da circunscrição eleitoral ou autoridade competente;
sistema para eleição presidencial; sistema para eleição do órgão legislativo nacional; direitos
ou qualificação exigida para concorrer a cargo eletivo; periodicidade das eleições;
mecanismos para organização das disputas eleitorais. Como parâmetro de análise da estrutura
normativa relacionada ao Órgão de Gestão Eleitoral, também o checklist apresentado pela
International IDEA (2014) trouxe as seguintes questões:
a. A estrutura normativa garante que o OGE seja constituído como uma instituição independente e imparcial?
b. A estrutura normativa capacita o OGE para operar de forma imparcial e transparente?
c. A estrutura normativa protege os membros e servidores de dispensa arbitrária?d. A estrutura normativa estabelece o sistema de accountability, poderes, funções
e responsabilidades do OGE em cada um dos níveis e as relações entre os diversos níveis?
267
e. A estrutura normativa adequadamente estabelece a relação entre o OGE e as partes interessadas externas?
f. A estrutura normativa estabelece diretrizes claras para todas as atividades do órgão de gestão eleitoral e ainda assim permite flexibilidade prática para suas implementações?
g. A estrutura normativa permite revisão exequível e oportuna das decisões do OGE?
h. A estrutura normativa estabelece prazo suficiente para organização eficaz dos eventos eleitorais?
i. A estrutura normativa garante que o OGE tenha recursos suficientes e oportunos para gerir suas funções e responsabilidades eficazmente?
A avaliação desses princípios e perguntas em face da legislação eleitoral brasileira
conduz à avaliação de que a Justiça Eleitoral foi concebida como órgão independente e
imparcial, mas não permite afirmar que o órgão de gestão eleitoral brasileiro esteja capacitado
para operar de forma imparcial e transparente na extensão necessária que a integridade
eleitoral demanda. A estrutura normativa pátria, em matéria eleitoral, não possui mecanismos
regulatórios suficientemente descritos e nem mecanismos para prevenir conflitos de interesses
entre as partes interessadas e outras formas de captura da regulação. Embora seja possível
considerar que o item c esteja atendido os demais itens precisam ser submetidos a avaliação
contextualizada frente aos desafios contemporâneos. A extensão de poderes e funções dos
órgãos de gestão eleitoral, a relação com as partes interessadas, as diretrizes claras para todas
as atividades da gestão eleitoral, a revisão oportuna e exequível das de suas decisões
(inclusive a estrutura recursal) e o prazo para organização eficaz dos eventos eleitorais são
questões que ainda precisam ser seriamente consideradas, pois carecem de normatização
adequada e adaptação ao novo paradigma de estado.
A análise de tais questões relacionadas à legislação eleitoral brasileira evidencia
que o Brasil possui estrutura normativa insuficiente para garantir a governança eleitoral
necessária e as prerrogativas que um órgão de gestão eleitoral precisa ter para tornar o
processo eleitoral íntegro em toda a extensão requerida.
A competência regulatória da Justiça Eleitoral em 1965, regulação tradicional, era
muito diferente da competência regulatória da Justiça Eleitoral pós 1988, regulação de
natureza autônoma, com compromissos de responsabilização política e de inserção de
referenciais democráticos na gestão de interesses públicos conduzidos por agentes privados.
A competência em matéria eleitoral não foi prevista na carta constitucional e a norma
complementar que deveria delinear a extensão e limites dos novos poderes conferidos à
Justiça Eleitoral não foi produzida pelo parlamento, sendo tal lacuna colmatada com a
268
recepção do Código Eleitoral de 1965, norma designada para tratar da competência da Justiça
Eleitoral, e de forma indireta pela legislação eleitoral posterior.
A atuação partidária, como visto, também sofreu profundas transformações na
nova conjuntura constitucional e mais uma vez a legislação eleitoral deixou lacunas em aberto
ao delinear de forma insuficiente a responsabilidade eleitoral de partido políticos e candidatos
no exercício de atividade privada de interesse público. A ausência de mecanismos de
responsabilização eleitoral inviabiliza ações positivas da Justiça Eleitoral e do Ministério
Público Eleitoral para alinhar as ações das partes interessadas no processo eleitoral com os
parâmetros contemporâneos de integridade das eleições, e, portanto, com princípios
relacionados a direitos fundamentais da pessoa humana.
A fragmentação relacionada à previsão de direitos eleitorais pela carta
constitucional e a ausência de sistematização suficiente pela legislação infraconstitucional pós
1988 dificultam uma precisa delimitação de deveres, limites e responsabilidades em matéria
eleitoral tanto para a Justiça Eleitoral quanto para partidos políticos e candidaturas, em
desacordo evidente com novo ordenamento constitucional.
A estrutura de regulação autônoma em matéria eleitoral foi inaugurada pela nova
carta magna ao dar aos partidos políticos natureza jurídica de direito privado, ao determinar
que a filiação partidária é condição de elegibilidade e que partidos políticos prestam conta de
suas atividades para a Justiça Eleitoral. No entanto, os procedimentos relacionados à nova
estrutura regulatória permaneceram sem as adaptações correspondentes na legislação
infraconstitucional. A nova regulação autônoma em matéria eleitoral ainda possui
institucionalização precária das suas três dimensões: poderes e funções delimitados,
mecanismos de enforcement previstos e eficiência avaliada em relação às fases dos ciclos
eleitorais. Esses são os pontos críticos relacionados à transição inacabada para um novo
sistema eleitoral legitimo.
As evidências encontradas ao longo dessa pesquisa demonstram que a transição
para o novo marco regulatório em matéria eleitoral iniciada pela Constituição de 1988 não
chegou a ser integralizada, visto que as funções e limites para a atuação da Justiça Eleitoral
jamais chegaram a ser tratados adequadamente e a responsabilidade eleitoral, principalmente
a partidária e de candidatos, não foi suficientemente contemplada pela legislação
infraconstitucional posterior.
269
A Constituição de 1988 e a legislação eleitoral produzida na década de 1990
inauguraram um novo ciclo regulatório em matéria eleitoral e, embora o procedimento
jurisdicional como mecanismo de manifestação da regulação eleitoral tenha sido mantido, sua
natureza foi completamente alterada. No Brasil, como visto, a Justiça Eleitoral funciona tanto
como Órgão de Gestão Eleitoral quanto como Sistema de Justiça Eleitoral, atende aos
requisitos para ser classificada como autoridade reguladora autônoma, reúne todas as
competências ligadas às dimensões da governança eleitoral e, portanto, pode ser classificada
como Autoridade Reguladora Eleitoral com poderes híbridos, uma vez que suas decisões
possuem natureza jurisdicional.
Por ser a Justiça Eleitoral integrante do Poder Judiciário, conforme infere-se do
artigo 118 da CRFB/1988, a nova regulação também se utiliza de linguagem jurídica e a
maioria de dos feitos eleitorais são processados como se judicial fossem, ainda que não
possuam natureza contenciosa (os procedimentos são autuados, distribuídos para juízes,
entram em sessão, recebem decisões, recursos, enfim, respeitam procedimentos equivalentes
aos dos processos judiciais independente de sua natureza jurídica). Essa constatação fica
muita clara quando se analisa a Resolução 22.676, de 13 de dezembro de 2007, que dispõe
sobre a classificação dos feitos e a formação das siglas processuais no âmbito da Justiça
Eleitoral, e a Lei 12.034/2009, que definiu a natureza do procedimento de prestação de contas
como jurisdicional. Como exemplo da adoção de procedimento equivalente ao procedimento
judicial para as principais atribuições da Justiça Eleitoral – sejam estas
normativas/regulatórias, administrativas, ou judiciais - elenca-se abaixo algumas das
previsões do artigo terceiro da Resolução 22.676/2007:
- a classe Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) compreende as ações que incluem o pedido previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90;
- a classe Apuração de Eleição (AE) engloba também os respectivos recursos;
- a classe Conflito de Competência (CC) abrange todos os conflitos que ao Tribunal cabe julgar;
- a classe Correição (Cor) compreende as hipóteses previstas no art. 71, §4º do Código Eleitoral;
- a classe Criação de Zona Eleitoral ou Remanejamento (CZER) compreende a criação de zona eleitoral e quaisquer outras alterações em sua organização;
- a classe Embargos à Execução (EE) compreende as irresignações do devedor aos executivos fiscais impostos em matéria eleitoral;
- a classe Execução Fiscal (EF) compreende as cobranças de débitos inscritos na dívida ativa da União;
270
- a classe Instrução (Inst) compreende a regulamentação da legislação eleitoral e partidária, inclusive as instruções previstas no art. 8º da Lei 9.709/98;
- a classe Prestação de Contas (PC) abrange as contas de campanhas eleitorais e prestação anual de contas dos partidos políticos;
- a classe Processo Administrativo (PA) compreende os procedimentos que versam sobre requisições de servidores, pedidos de créditos e outras matérias administrativas encaminhadas por juiz ou tribunal e que devam ser submetidos a julgamento no Tribunal;
- a classe Propaganda Partidária (PP) refere-se aos pedidos de veiculação de propaganda partidária gratuita em bloco ou em inserção na programação das emissoras de rádio e televisão;
- a Reclamação (Rcl) é cabível para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões, e nas hipótese previstas na legislação eleitoral e nas instruções expedidas pelo Tribunal;
- a classe Recurso Especial Eleitoral (REspe) engloba o recurso de registro de candidatos, quando se tratar de eleições municipais (art. 12, parágrafo único, da LC nº 64/90);
- a classe Recurso Ordinário (RO), relativa às eleições federais e estaduais, compreende os recursos que versam sobre elegibilidade, expedição de diploma e anulação ou perda de mandato eletivo (art. 121, §4º, III e IV, da Constituição Federal);
- a classe Revisão de Eleitorado (RvE) compreende as hipóteses de fraude em proporção comprometedora no alistamento eleitoral, além dos casos previstos na legislação eleitoral);
- não se altera a classe do processo pela interposição de Agravo Regimental (AgR), de Embargos de Declaração (ED), de Embargos Infringentes (EI) opostos em Execução Fiscal e de Embargos Infringentes e de Nulidade (EIN) relativos ao processo penal nos tribunais regionais eleitorais;
- não se altera a classe do processo pela impugnação ao registro de candidatura;
- os recursos de Embargos de Declaração (ED) e Agravo Regimental (AgR), assim como a Questão de Ordem (QO), terão suas siglas acrescidas às siglas das classes processuais em que forem apresentados.
Outras classes processuais relacionadas à procedimentos típicos da Justiça
Eleitoral também estão contempladas na Resolução 22.676/2007: Ação de Impugnação de
Mandato Eleitoral, Ação de Investigação Judicial Eleitoral, Cancelamento de Registro de
Partido Político, Propaganda Partidária, Recurso contra Expedição de Diploma, Recurso
Eleitoral, Registro de Candidatura, Registro de Órgão de Partido Político em Formação,
Registro de Partido Político.
Uma breve análise da tabela contida na Resolução e da legislação eleitoral
apontadas permite a percepção imediata de algumas questões peculiares à Justiça Eleitoral e à
nova regulação em matéria eleitoral que as diferenciam substancialmente das demais justiças
e das outras autoridades reguladoras autônomas que existem no Brasil: todos os principais
271
processos e procedimentos típicos do processo eleitoral são “judicializados” -
independentemente de ter ou não natureza judicial formal - mesmo os que em tese possuiriam
natureza administrativa ou regulatória como o registro de candidatura, a fiscalização da
propaganda eleitoral, a prestações de contas eleitorais, o registro de partido político e a
consequente autorização para funcionamento da atividade partidária, etc. Até mesmo a
atividade normativa, a produção de normas de regulação eleitoral e o processamento de
consultas, é realizada mediante procedimento equivalente ao de processo judicial, na classe
Consultas (Cta) e Instruções (Inst).
Por um lado, a utilização da racionalidade judicial, o uso de procedimentos
análogos aos procedimentos judiciais para gerir os eventos mais relevantes do ciclo eleitoral e
a adoção de audiências públicas para diversos eventos do calendário eleitoral
institucionalizam formas de discurso correspondentes às diversas funções da governança
eleitoral tornando-a legitima sob este aspecto – há procedimento previsto para validar as
Resoluções e Instruções produzidas pelo TSE, há previsão de participação de todas as partes
interessadas, os procedimentos são conduzidos por Juízes e Desembargadores Eleitorais
especificamente designados para sua tarefa, há garantia de participação de representante do
Ministério Público em todas as etapas do processo eleitoral e legitimidade para que esta
instituição se manifeste em nome da sociedade e da proteção dos princípios democráticos
Por outro lado, a multiplicação de feitos eleitorais, pós constituição de 1988 - em
razão do novo sistema eleitoral instaurado pelo novo regime jurídico trazido pelas
modificações legislativas já indicadas - tornaram o procedimento regulatório eleitoral de
natureza estritamente judicial altamente ineficiente, criando novas lacunas de legitimidade na
medida em que o processo eleitoral tem dificuldades de entregar, no prazo adequado,
representantes eleitos com percepção de legitimidade popular.
A título de exemplo, em 1994 a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro autuou menos
do que 50 processos relacionados a registro de partidos e candidaturas para as eleições gerais
daquele ano, na capital do estado. Em 2014, a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro protocolou,
só na capital, mais de 3.000 pedidos de registro para as eleições gerais e quantidade
equivalente de processos de prestação de contas. Sem considerar documentos protocolados
relacionados a esses procedimentos, os recursos correspondentes e os demais feitos eleitorais
protocolados no período. As exigências da nova regulação eleitoral, o controle de agentes
privados no exercício de atividades de interesse publico, alteraram significativamente o
volume e a natureza das atividades da Justiça Eleitoral, inclusive dos feitos de natureza
272
criminal. A reformulação da legislação eleitoral, aliada às novas exigências materiais de
integridade – como, por exemplo, a avaliação de abuso de poder político ou econômico e a
avaliação de moralidade na vida pregressa para o exercício do cargo - trouxe impactos
consideráveis para o processamento dos feitos eleitorais, multiplicando questionamentos e
aumentando drasticamente a quantidade processada.
Esse impacto ainda não foi dimensionado a contento. Uma avaliação dos
relatórios do Justiça em Números, gerados pelo Conselho Nacional de Justiça, revela que as
séries históricas sobre processos eleitorais levam em conta os mesmos parâmetros e medidas
dos processos judiciais das demais justiças: processos autuados, processos baixados, taxa de
congestionamento, etc. A produtividade da Justiça Eleitoral é medida da mesma forma que as
demais justiças sem que seja considerada a temporalidade dos ciclos eleitorais, que
modificam radicalmente os parâmetros para julgamentos eficientes. A efetividade do processo
judicial eleitoral relaciona-se diretamente com o atendimento ou não dos prazos fixados para
as etapas do ciclo eleitoral. Não é qualquer aumento de produtividade e redução para
julgamento de prazos que atende à legitimidade das eleições. Mas sim aquela que respeita o
calendário eleitoral e entrega candidaturas e diplomações com questionamentos resolvidos no
prazo previsto.
Consulta realizada junto aos Tribunais Regionais Eleitorais, entre setembro e
outubro de 2015, durante o desenvolvimento da presente pesquisa, sobre a quantidade de
processos autuados entre 1994 e 2014 - nas classes processuais relacionadas a Registro de
Candidaturas, a Prestação de Contas, a Ação de Impugnação de Mandato Eleitoral, a Ação de
Investigação Judicial Eleitoral, a Recurso Contra Expedição de Diploma e à Representações –
revelou diversas dificuldades envolvidas no dimensionamento da nova atividade regulatória
da Justiça Eleitoral. Funcionalidades para controlar o trânsito em julgado dessas ações
somente foram implementadas no sistema de acompanhamento processual da Justiça Eleitoral
recentemente, em 2014. Entre 20 Tribunais Regionais Eleitorais consultados, apenas 6
responderam aos questionamentos. Um TRE respondeu que não pode realizar esse
levantamento sem prejuízo de suas atividades, outro informou que os processos estão à
disposição para consulta do pesquisador, três enviaram parcialmente as informações com a
ressalva de que a ausência de filtros específicos nos sistemas de acompanhamento impede a
geração dos resultados relacionados à consulta.
Os resultados da consulta realizada indicam que ainda não existem séries
históricas estruturadas para avaliação da atividade regulatória contemporânea da Justiça
273
Eleitoral. Indicam ainda que os parâmetros de avaliação da atividade regulatória eleitoral
ainda são aqueles relacionados regulação jurisdicional tradicional (importante registrar que
esse não é um problema exclusivo da Justiça Eleitoral, visto que a ausência informações de
qualidade para avaliar o desempenho de órgãos estatais no exercício de sua atividade fim
ainda tem sido a regra no Brasil, a transparência das ações estatais ainda está relacionada, em
sua maioria, às atividades meio dos órgãos públicos: orçamento, licitações, vencimento de
servidores, etc.). O ponto que se pretende enfatizar é que sequer se pensa a ação da Justiça
Eleitoral sob a perspectiva da eficiência da regulação eleitoral, ou seja, ainda não se mede se
os julgamentos dos feitos eleitorais respeita as fases do ciclo eleitoral e se entrega resultados
satisfatórios: representantes eleitos percebidos como legítimos, nos prazos do calendário
eleitoral. Uma das tentativas pioneiras nesse sentido foi a previsão pela Lei 12.034/2009, no
que se refere às ações que resultem em perda de mandato, para fixar o prazo de um ano como
tempo de duração razoável. No entanto, tal previsão não trouxe ferramentas concretas para
evitar recursos protelatórios e tornar tal projeto uma realidade (CONJUR, 2010).
Verifica-se que o aumento significativo do número de processos eleitorais não
trouxe o correspondente aumento de estrutura para processamento das ações e nem alteração
dos prazos e mecanismos para sua apreciação. Ao contrário, a Lei 13.165/2015 reduziu em 40
dias o prazo para julgamento de registros de candidatos para as eleições de 2016, deixando
apenas 45 dias para processamento desses feitos em todas as instâncias até a data da eleição
no primeiro final de semana de outubro. Considerando-se que as eleições são municipais, as
chances de os processos de registro questionados terem sido julgados em 45 dias em 3
instâncias é bem pequena.
Conforme registrado, as alterações inseridas pela nova sistemática eleitoral
aumentaram significativamente a quantidade de procedimentos eleitorais judiciais, e este
aumento multiplicou demandas semelhantes, de natureza coletiva e massificada. Nesse
contexto, o uso da regulação jurisdicional tradicional, mediante processamento de feitos
eleitorais, tornou-se ineficiente pois a estrutura de processos judiciais, construídos sob
parâmetros de direitos individuais, com ampla proteção à garantias individuais como a
presunção de inocência – parâmetro típico de direito de defesa -, começaram a produzir
enormes lacunas de legitimidade na medida em que decisões judiciais seguras e definitivas,
começaram a ultrapassar a temporalidade associada com ciclos eleitorais de curto prazo e
mesmo a temporalidade do ciclos eleitorais de médio prazo.
274
As lacunas de legitimidade da regulação jurisdicional tradicional resultam do
tempo associado com as decisões proferidas nos feitos eleitorais e da proteção insuficiente
dos sujeitos da democracia: eleitores ficam sujeitos a representação questionável. A
ilegitimidade da regulação eleitoral não decorre do reconhecimento de direitos e garantias
individuais, mas dos mecanismos de avaliação amplos e subjetivos que prolongam
indefinidamente os procedimentos eleitorais, submetendo a proteção de direitos coletivos a
critérios que não se coadunam com sua natureza. Não é incomum que no dia da eleição
candidatos sem registro definitivo concorram às eleições; que candidatos sejam diplomados
sem que seu registro ou suas contas tenham sido julgados em caráter definitivo ou sem que as
ações que questionam sua candidatura ou eventos de sua candidatura tenham sido resolvidas.
Como explicou Silvana Batini, Procurador Eleitoral em 2010 no Rio de Janeiro, em entrevista
à CONJUR, “a segurança jurídica não pode ser preservada à custa da lisura do processo
eleitoral” (CONJUR, 2010).
A título de exemplo, é possível citar matéria do Jornal O Globo, de 10/10/2015,
Escândalos em Série – Ações semelhantes à de Dilma punem pouco - sobre Ações de
Impugnação de Mandato Eleitoral / AIME, prevista no artigo 14, §10 e §11. Segundo a
matéria, que levantou dados em 23 dos 27 Tribunais Regionais Eleitorais, “mais da metade
das Ações de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) instauradas nas eleições de 2010 e
2014 foi arquivada ou teve o acusado inocentado. Até hoje, apenas dois processos decidiram
pela cassação de mandato. Em ambos, a decisão é de primeira instância e os impugnados
estão recorrendo. ”
De acordo com a reportagem, desde 2010, 96 AIMES foram instauradas para
avaliar a conduta de candidatos a governador, senador e deputados. Dessas, 30 foram
arquivadas sem julgamento de mérito, sendo que a maioria por “perda de objeto”, em razão do
término do mandato. Ex-governadores do Amazonas, Omar Aziz, do Piauí, Wilson Martins, e
de Roraima, José Anchieta Júnior, completaram seus mandatos sem que a ação tenha sido
concluída. Seriam 96 ações abertas, 3 casos de cassação de mandato em primeira instância,
nenhuma condenação definitiva, 55 processos com absolvição ou arquivamento e 41 em
andamento. (Jornal O Globo, 2ª edição, sábado 10.10.2015, página 8, Ano XCI – nº 30.014,
Rio de Janeiro. Ações Semelhantes à de Dilma punem pouco – Levantamento do Globo em 23
TREs aponta morosidade, três políticos foram condenados em primeira instância. Silvia
Amorim e Tiago Dantas).
275
Outra forma de ilegitimidade associada ao processo eleitoral decorre da ausência
de previsão normativa que contemple a contento a responsabilidade eleitoral das partes
interessadas que agem em desacordo com os princípios e normas que norteiam o processo
eleitoral. Ao contrário, a responsabilidade eleitoral tem sido sucessivamente reduzida por
legislações casuísticas produzidas a cada ciclo eleitoral. Alguns, entre muitos exemplos, são
apontados a seguir:
- A Lei 11.694/2008, que trata sobre a responsabilidade civil dos Partidos
Políticos, alterando o Código Civil e a Lei 9.096/1995, estabelece a responsabilização do
órgão que deu causa ao fato, no âmbito municipal, estadual ou nacional, sendo excluída a
solidariedade de outros órgãos ou direção;
- A Lei 12.034/2009 definiu que a natureza do procedimento de prestação de
contas é jurisdicional, o que permite a possibilidade de recursos diversos e sucessivos. No
mesmo diploma está a previsão de prazo decadencial de cinco anos, a possibilidade de
apresentação de reconsideração do julgado, o efeito suspensivo para os recursos que versem
sobre desaprovação total ou parcial da prestação de contas dos órgãos partidários; definiu o
prazo de 15 dias, contados da diplomação, para entrar com ação contra candidato eleitor
quando há irregularidade na prestação de contas, praticamente inviabilizando a ação;
- A Lei 12.034/2009 excluiu a responsabilidade subsidiária entre órgãos
partidários, seccionando a responsabilidade civil, trabalhista, tributária e eleitoral para cada
esfera de organização partidária, conforme previsão estatutária; vedou a ação civil pública em
matéria eleitoral; reduziu a abrangência das Resoluções e Instruções produzidas pelo TSE,
praticamente determinando que a regulação autônoma da Justiça Eleitoral volte aos
parâmetros da regulação tradicional;
- A Reforma Política de 2015. Lei 13.165/2015, reduziu ainda mais o tempo para
apreciação dos processos de Registro de Candidaturas, passando o último dia de registro do
dia 05 de julho do ano eleitoral para o dia 15 de agosto, com a possibilidade de registro de
candidatos até 30 dias antes do pleito; praticamente afastou a ilicitude de propagandas
eleitorais extemporâneas e praticamente tornou a prestação de contas de campanhas e partidos
um mero procedimento formal de apresentação de contas;
- A Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE ou Reclamação, previstas no
artigo 22 da Lei de Inelegibilidades – Lei 64/1990, traz previsão das seguintes sanções;
cassação de Registro do Candidato ou do diploma e inelegibilidade por 8 anos, contados da
data da eleição e não do trânsito em julgado da sentença definitiva. O prazo para sua
276
propositura deveria ser de pelo menos seis meses após a diplomação para dar tempo razoável
ao Ministério Público para averiguar as irregularidades e levantar provas e os seus efeitos
deveriam ser o termo inicial contado da data do trânsito em julgado e não da data da eleição, o
que tem levado à extinção do processo por perda de objeto. Outro problema envolvendo as
AIJEs é que apenas fatos graves possuem consequências jurídicas, o desrespeito reiterado a
normas eleitorais em geral, é um nada jurídico;
- As prestação de contas de campanhas eleitorais fazem girar uma caríssima
máquina administrativa e judicial com poucos efeitos, na medida em que a legislação eleitoral
não prevê qualquer forma de sanção ou consequência jurídica para candidatos não eleitos.
Não há previsão de responsabilidade eleitoral pelos atos de campanha para candidatos não
eleitos e nem mecanismos para impedir atos protelatórios indefinidos e a litigância de má fé.
Todas essas circunstâncias contribuem para a ineficiência da regulação eleitoral.
O expressivo ajuizamento de ações eleitorais, sem efeitos práticos, sem consequências
jurídicas, aumenta apenas o custo da regulação e a torna largamente ineficiente.
A nova regulação eleitoral caracteriza fenômeno que resultou, assim como as
demais formas de regulação autônoma contemporâneas, da entrega de atividade de interesse
público a particulares, do fracasso da regulação jurisdicional tradicional para fazer face à nova
temporalidade das relações sociais e da multiplicação de demandas massificadas e repetitivas,
de natureza coletiva.
Como visto no terceiro capítulo, a regulação de natureza autônoma
contemporânea pressupõe uma dimensão normativa e uma constelação de poderes associados,
poder regulador delegado pelo poder legislativo à autoridade reguladora, uma dimensão de
enforcement / compliance, que significa a existência de mecanismos efetivos para supervisão,
fiscalização, incentivo e sanção, colocados à disposição das autoridades reguladoras e uma
dimensão de eficiência, que deve ter a capacidade de tornar o processo regulado percebido
como legitimo pela sociedade. Como visto no quinto capítulo, a arquitetura institucional de
sistemas eleitorais deve atender a pressupostos mínimos para viabilizar uma governança
eleitoral conforme exigências de integridade eleitoral, como condição para a estabilidade
social.
Assim, a regulação eleitoral autônoma depende do delineamento da
responsabilidade eleitoral, com consequências para os atos praticados durante o ciclo eleitoral,
independente da candidatura ter sido bem-sucedida ou não. A normalidade e a legitimidade
das eleições, ou seja, a integridade eleitoral, caracteriza interesse público indisponível e por
277
isso a não adesão às normas deve ter consequências, independente do exercício do mandato e
independente de sua duração.
Como apontado no quarto capítulo, a hipótese de regulação autônoma eficiente
ampara-se no fracasso da regulação jurisdicional tradicional frente aos desafios
contemporâneos. A uniformização de condutas e ações das partes envolvidas no processo
eleitoral em regulamentos autônomos, em Resoluções e Instruções eleitorais detalhadas, e
feitas a priori, resultam da necessidade de se especificar critérios objetivos e tangíveis para o
objeto regulado, reduzindo a amplitude das questões discutidas, a fim de tornar os
comportamentos das partes envolvidas mais previsíveis e o custo para solução de divergências
menor.
O uso da regulação eleitoral autônoma deveria gerar maiores incentivos para
adesão às normas regulatórias por todos os envolvidos, na medida em que reduziria a
subjetividade para interpretação da norma eleitoral pela decisão judicial, tornando mais
objetiva e célere a sua aplicação. Não é o que tem ocorrido na prática. O maior exemplo é a
alteração do art. 105 da Lei das Eleições pela Lei 12.034/2009 que reduziu a amplitude do
poder regulamentar da Justiça Eleitoral, caminhando em sentido completamente oposto à
necessidade de fortalecimento da atuação dos órgãos de regulação eleitoral, previsto por
tratados e acordos internacionais.
A Constituição de 1988 e a legislação da década de 1990, ao inaugurarem
sistemática diferente de regulação eleitoral, deram origem a um novo ciclo de produção
normativa e de legitimação do sistema de direitos, em matéria eleitoral:
- A quantidade de decisões judiciais proferidas durante um ciclo eleitoral (T1) de
curto prazo pacifica entendimentos, produzindo acordos semânticos quanto ao conteúdo da
regulação eleitoral, como manifestação da reflexividade em processos judiciais;
- Os conteúdos sedimentados em no ciclo eleitoral (T1), levam a inovações na
regulação eleitoral no ciclo posterior (T2), que se manifestam mediante alterações das
Resoluções e Instruções expedidas pelo TSE para regular o processo eleitoral, resultado de
normas que pretendem garantir a imparcialidade e igual acesso às partes interessadas. O lócus
de legitimação dessas normas são as audiências públicas realizas conforme o artigo 105 da
Lei das Eleições, que criam a possiblidade de participação influente para validação do direito
regulador assim produzido, os “precedentes” criados nas decisões dos feitos eleitorais e o
próprio procedimento para elaboração e processamento de Resoluções e Instruções eleitorais;
278
- A regulação produzida pelo TSE muitas vezes sofre questionamentos perante o
Supremo Tribunal Federal, que, na maioria das vezes tem validado as normas produzidas pelo
TSE. É possível identificar esse procedimento como outra fonte de legitimação, pois há
oportunidade das partes se manifestarem e o Ministério Público necessariamente atua como
representante da sociedade;
- As alterações introduzidas através do uso de direito regulador pela Justiça
Eleitoral, no ciclo eleitoral subsequente, dão ensejo a modificações da legislação eleitoral
produzida pelo parlamento (T3). O maior problema de legitimidade aparece em (T3), na
medida em que, muitas vezes, as alterações da legislação eleitoral produzida pelo parlamento
têm apresentado natureza casuística e acabam por neutralizar a regulação produzida pela
Justiça Eleitoral. Muitas dessas alterações deveriam ser objeto de questionamento quanto à
sua constitucionalidade pois ferem direitos e garantias fundamentais e alteram dispositivos
que deveriam ser tratados por lei complementar, como por exemplo a vedação de ação civil
pública em matéria eleitoral e reiteradas modificações e reduções dos poderes regulatórios da
Justiça Eleitoral (matéria relacionadas à competência da Justiça Eleitoral).
O ciclo de produção normativa que se iniciou virtuoso, após a Constituição de
1988, durante a década de 1990, tornou-se vicioso na virada do século. As principais razões
para questionamentos de legitimidade do processo eleitoral relacionam-se com a ausência de
clara definição de papéis, poderes e deveres dos partidos políticos e da Justiça Eleitoral e com
a ausência de uma legislação que reconheça e trate de forma sistemática a responsabilidade
eleitoral.
O sistema eleitoral brasileiro está incompleto. Nos últimos anos, a legislação
eleitoral tornou-se uma colcha de retalhos em razão da permanente disputa de interesses
envolvendo questões eleitorais e partidárias. É preciso reconhecer o enorme conflito de
interesses existente na produção de normas eleitorais e partidárias pelo parlamento, visto que
há interesse direto dos representantes eleitos, autores da norma, na legislação produzida. A
atuação da sociedade civil, através de iniciativas populares, tem buscado suprir as lacunas de
legitimidade em matéria eleitoral abertas pelo parlamento como reação à atividade regulatória
da Justiça Eleitoral. Os maiores avanços em matéria eleitoral têm sido resultado de leis que
resultam da iniciativa popular e do poder regulamentar da Justiça Eleitoral.
As alterações da legislação eleitoral, produzidas nos últimos anos, inclui, por um
lado os avanços decorrentes das leis de iniciativa popular e das Resoluções e Instruções da
279
Justiça Eleitoral. Por outro lado, é compensada pela inclusão de diversos mecanismos
protelatórios ou de neutralização da regulação eleitoral, que permite a judicialização de
diversos conteúdos de natureza indeterminada da legislação eleitoral, tornando intermináveis
e sem efeito seus procedimentos. Como exemplo é possível citar o conceito de “quitação
eleitoral”, o conceito de “contas prestadas”, entre muitos outros, que tornam a regulação
eleitoral completamente ineficiente.
A vedação de Ação Civil Pública e a redução do poder regulamentar da Justiça
Eleitoral, expressamente trazida pela Lei nº 12.034/2009 – Lei da Ficha Limpa, já
mencionadas, são exemplos da ambivalência da legislação eleitoral, decorrente da disputa de
forças entre a sociedade e o parlamento. Esta lei resultou de iniciativa popular, mas durante
sua aprovação, o artigo 105 recebeu nova redação restritiva e o art. 105-A foi inserido para
impedir a utilização de Ação Civil Pública em matéria eleitoral, em clara afronta aos
princípios constitucionais. A redução do poder regulamentar da Justiça Eleitoral e a vedação
de ação civil pública limitam a proteção de direitos políticos eleitorais de natureza coletiva e
retiram da Justiça Eleitoral e do Ministério Público a chance de protege-los com ferramentas
adequadas. Em última instância, impede a proteção suficiente do estado democrático. A
garantia da legitimidade do processo eleitoral, missão da Justiça Eleitoral brasileira, ainda
requer enorme amadurecimento das instituições eleitorais e delimitação mais clara de
competências e responsabilidades.
As alterações da legislação eleitoral demonstram que, na década de 1990, houve
enorme esforço do Congresso Nacional para institucionalização de um sistema eleitoral
previsível e estável, com regras do jogo claras, e com “um campo de batalha nivelado”.
A virada do século - principalmente a última década – trouxe novos desafios para
a estabilidade democrática. A legislação eleitoral passou a ser produzida de forma casuística,
conforme interesses contingenciais predominantes, com sucessivas tentativas de neutralizar a
atuação da Justiça Eleitoral. Contudo, muito pouco se discute sobre o papel da Justiça
Eleitoral no Brasil e sobre a redução sistemática de seus poderes regulatórios pelo parlamento.
O debate mais arrojado conduzido pelas instituições de conflito, os partidos
políticos, sobre limites e poderes da Justiça Eleitoral, normalmente, pretende defender a
autonomia e independência partidária, a presunção de inocência de candidatos e a
irresponsabilidade eleitoral de partidos políticos, como se autonomia fosse fundamento
adequado para afastamento do controle e supervisão do Estado. O senso comum parece
280
colocar em polos antagônicos os partidos políticos enquanto instituições dotadas de
autonomia e a Justiça Eleitoral, enquanto órgão tradicional do Poder Judiciário, que tenta
judicializar a política ou exacerbar seus poderes através de ativismo indevido.
Essa confusão decorre exatamente da incompleta compreensão do papel da Justiça
Eleitoral no contexto atual: a Justiça Eleitoral não é um órgão equivalente aos demais órgãos
do Poder Judiciário. Sua função preponderante não é apenas a função jurisdicional tradicional.
O uso de procedimento judicial como meio para processamento da regulação eleitoral não
descaracteriza seus poderes e a amplitude que sua ação regulatória deve ter. A Justiça
Eleitoral brasileira é uma Autoridade Reguladora Eleitoral, com funções híbridas, e sua
missão é assegurar a legitimidade do processo eleitoral, é garantir a integridade das eleições.
Uma nova estrutura do sistema de direitos relacionados à eleição, com alocação dos
respectivos discursos para legitimá-lo, e a delimitação de um conceito de responsabilidade
eleitoral mais amplo é que precisam ser discutidos.
O devido processo eleitoral pressupõe mecanismos que consigam entregar
resultados eficientes e legítimos a cada fase do ciclo eleitoral de curto, médio e longo prazo.
O processo judicial tradicional atua em um horizonte de tempo muito diferente e o ritmo da
Justiça Eleitoral ainda está distante do ideal (CONJUR, 2010).
A regulação autônoma é o mecanismo contemporâneo que tem por finalidade
suprir tais lacunas de legitimidade, tornando os feitos eleitorais mais céleres e objetivos,
mediante regulação prévia. Mas seus resultados serão inexistentes se não houver meios para
dar efetividade à regulação. Os mecanismos destinados a estes fins, poder normativo derivado
e mecanismos de enforcement previstos pela legislação eleitoral, estão sendo paulatinamente
reduzidos pelo parlamento sem que haja qualquer questionamento constitucional a este
respeito.
O reconhecimento da personalidade jurídica de direito privado para partidos
políticos, pela Constituição de 1988, deu-lhes autonomia para definir seus estatutos, mas não
afastou o controle estatal sobre atividades de interesse público. Ao contrário, como visto,
criou a correspondente obrigação de supervisão e fiscalização pelo Estado e a instituição que
recebeu parte significativa desta incumbência constitucional foi a Justiça Eleitoral.
A ausência de enfrentamento correto dessa questão, de adequada previsão legal
quanto a extensão de poderes da Justiça Eleitoral e da responsabilidade eleitoral das partes
envolvidas, resulta na imaturidade do sistema eleitoral brasileiro que fica refém da legislação
281
eleitoral casuística produzida pelo parlamento e de uma ação cada vez menos efetiva do órgão
gestor das eleições, afogado em demandas repetitivas intermináveis.
O interesse pela manutenção de poder político por partidos e representantes
eleitos pode criar claros déficits de legitimidade tanto para a legislação política e eleitoral
aprovada como para políticas públicas previstas e implementadas. E essa ação estratégica
precisa ser compensada pela ação de outra instituição ou de intuições que atuem conforme a
lógica colaborativa, para produzir uma razão que seja procedimentalizada, e, portanto,
legitima. Trata-se da institucionalização de um sistema de controle mútuo, um dos cinco
maiores desafios relacionados ao alcance de eleições com integridade.
A Autoridade Reguladora Eleitoral, através de ações pautadas pela legitimidade
da imparcialidade e da reflexividade, é a instituição legitimada para suprir tais lacunas através
do uso de função regulatória autônoma. O Ministério Público Eleitoral é outra instituição
legitimada visto que possui a responsabilidade constitucional de proteger o estado
democráticos e o exercício de direitos humanos, mas por outros meios que também dependem
de previsão expressa de efeitos jurídicos para os atos praticados em afronta à legislação
eleitoral, ou seja, delimitação da responsabilidade eleitoral e previsão de sanções para seu
descumprimento.
A atuação da Justiça Eleitoral está submetida a controle pela rede de relações
estabelecida no Sistema Eleitoral, na medida em que sua atuação está vinculada à participação
do Ministério Público Eleitoral, pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Conselho Nacional de
Justiça, pelos Tribunal de Contas da União, por partidos políticos e candidatos, pela imprensa,
por organizações da sociedade civil, cuja interação processual já foi aceita como amicus
curiae em ADPF 144 a respeito de matéria eleitoral – moralidade da vida pregressa de
candidatos a cargo eletivo - (CARVALHO, 2010, p. 127) e por cidadãos que atuam nas mesas
eleitorais e através da ouvidoria.
Há uma extensa rede de relações estruturadas no sistema eleitoral que busca
garantir a existência de um sistema mútuo de controle e segurança e essa rede funciona para
controlar as atividades da Justiça Eleitoral mas tem falhado no controle e proteção da
atividade regulatória da Justiça Eleitoral, em razão de lacuna legislativa e da não compreensão
de sua extensão, e no controle do acesso à representação política, da atividade intrapartidária e
no controle do impacto do dinheiro na política.
282
Não se está a propor que o parlamento abra mão de determinar a moldura jurídica
e os princípios que devem reger a competição eleitoral através de uma legislação geral e
abstrata que fixe as diretrizes e estrutura do sistema político eleitoral. Mas sim que se
reconheça existência de direito regulador em matéria eleitoral e que as normas de regulação
eleitoral necessitam ter a amplitude e os instrumentos necessários para regular efetivamente
questões da competição eleitoral, que precisam ser resguardadas de interesses estratégicos de
maiorias oportunistas diretamente interessadas nos resultados da competição política. As
alterações da legislação infraconstitucional que aniquila funções e poderes da Justiça
Eleitoral, e, portanto, enfraquece as salvaguardas democráticas, é claramente inconstitucional.
Garantir o alinhamento de ações de partidos políticos e candidatos com padrões
internacionais de integridade eleitoral é tarefa de governança eleitoral, mais especificamente é
tarefa de regulação autônoma, regulação com finalidade específica e com ações positivas. A
proliferação de órgãos eleitorais autônomos bem-sucedidos é a evidência mais contundente
desses fatos e das transformações de legitimidade associadas ao sistema político eleitoral na
virada do século XX.
A ausência de reconhecimento de tais circunstancias impede a institucionalização
de procedimentos para lidar com os problemas relacionados a autoridades reguladoras
autônomas, como por exemplo o risco de captura aos órgãos reguladores pelos agentes
regulados. Impede ainda a identificação dos problemas relacionados à concentração de
funções correspondentes às tarefas de gestão e de sistema de justiça para um mesmo órgão.
Apenas para ilustrar, não existe na legislação qualquer impedimento para que
advogados que atuam no âmbito do direito eleitoral integrem a Justiça Eleitoral na qualidade
de membro do plenário, também não há previsão de “quarentena” para o jurista que se afasta
das Cortes Eleitorais e volta ao exercício da atividade advocatícia na área eleitoral. A lei
inclusive excepciona a atividade na Justiça Eleitoral como causa de impedimento da atuação
de advogados nas cortes eleitorais. Também não existem mecanismos institucionalizados para
reduzir a influencia de partidos políticos sobre Tribunais Eleitorais. Para compreender a
extensão de tais relações, basta registrar que a composição dos Tribunais Eleitorais recebe
indicações do chefe do Poder Executivo. Se por um lado a participação de integrantes do meio
jurídico colaboram para legitimar a atividade eleitoral, por outro abre possibilidades para
influencias indevidas no processo eleitoral se não houver instrumentos de controle
disponíveis, como por exemplo a existência de códigos de ética e de conduta para os membros
que integram os Tribunais Eleitorais e as partes interessadas no processo eleitoral.
283
No mesmo sentido, os interesses e paradoxos associados à gestão podem ser
bastante conflitantes com os interesses associados ao sistema de resolução de disputas
eleitorais. Tais decisões operam em tempos diferenciados e atendem a objetivos distintos que
necessariamente implicam na avaliação dos custos / benefícios associados. Há uma tensão
permanente quanto à ênfase que deve ser dada às funções de gestão e de jurisdição. Se os
recursos são escassos e limitados, certamente haverá escolhas quanto a que aspecto deverá ser
privilegiado em detrimento dos demais. Para Autoridades Reguladoras Eleitorais, esse é um
problema concreto: a regulação eleitoral de curto prazo bem-sucedida, na medida em que
exige a maior parte dos recursos, abre a oportunidade para problemas de gestão e de equilíbrio
do sistema de justiça eleitoral de longo prazo, ou vice-versa.
Importante ainda frisar que, em contexto mais amplo, atualmente, diversas são as
medidas registradas em acordos e tratados internacionais para enfrentar desequilíbrios sociais,
políticos e econômicos associados com a ausência de regulação satisfatória. O combate à
corrupção e a promoção de transparência para redução de crimes associados à lavagem de
dinheiro, ao exercício ilegítimo de poder político-estatal e ao impacto descontrolado do
dinheiro na política, tem gerado novos acordos e obrigações para as diversas nações
signatárias, entre as quais se encontra o Brasil. Vide, em especial, as medidas associadas com
o combate à corrupção derivadas de acordos e tratados internacionais, que paulatinamente
vem sendo incorporadas legislação pátria. Tais medida tem gerado um novo ciclo de gestão
para entes públicos e privados através da produção de normas e de novas práticas associadas à
gestão de ricos, controles internos, compliance, sustentabilidade, exigências de auditorias
internas/externas, tanto para atividades de natureza pública quanto para atividades privadas de
interesse público que possuem impacto coletivo, ou envolvam interesses de terceiros, em
âmbito nacional e internacional. A Lei Anticorrupção, Lei 12.846/2013 é um dos exemplos
mais expressivos.
Esse recente movimento, com produção de novas normas e regulamentos
nacionais e internacionais, está estabelecendo e consolidando novas práticas de gestão de
riscos, controles internos e compliance para pessoas jurídicas, com novas exigências quanto à
implementação de controles para evitar fraudes, aumentar a adesão à normas e criar maior
estabilidade para as relações políticas e econômicas. Como exemplo é possível citar:
- em 2003 foi publicada a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,
tendo entrado em vigor em 2005; em 2009, representantes dos países signatários se reuniram
em Doha para acordar formas de monitoramento da implementação da Convenção contra a
284
Corrupção, tendo por resultado um ciclo de acompanhamento a cada 5 anos, através da
aplicação de checklist e elaboração de relatório específico com as medidas implantadas por
cada país;
- em junho de 2014 foi emitido o AS18 que estabelece requisitos sobre a
identificação, contabilização e divulgação de relacionamentos e transações entre a companhia
e suas partes relacionadas e em setembro de 2014 foi emitido o Alerta 12, que define
procedimentos necessários aos testes de receita/testes substantivos, ambos pelo PCAOB
(Public Company Accounting Oversight Board, corporação americana sem fins lucrativos
estabelecida pelo Congresso para supervisionar auditores de companhias públicas, com a
finalidade de proteger investidores e o interesse público, através de relatórios de auditoria
independentes certificados. As diretrizes estabelecidas pelo PCAOB estabelecem parâmetros
para auditoria externa e condicionam o comportamento de empresas, órgãos, público e etc.
Pela importância e efetividade de suas diretrizes, e pela globalização de mercados, tais normas
balizam ações de auditoria externa e comportamentos de empresas mesmo fora das fronteiras
americanas, inclusive no Brasil);
- em outubro de 2014 a Comissão de Valores Mobiliários estabeleceu a norma
CVM 552 para as empresas de capital aberto que cria a necessidade de reportar publicamente
as deficiências de controles internos identificadas pelo auditor externo e pelo auditor interno
(vigência a partir de janeiro de 2016);
- em janeiro de 2015, o BNDES institui novos requerimentos sobre compliance
para obtenção de crédito e financiamento para empresas interessadas em empréstimos;
- em março de 2015 a Controladoria Geral da União editou a norma CGU 909
com a definição de critérios para avaliação dos programas de integridade das empresas como
requisito para concessão de redução no valor de multas.
No mesmo sentido, O Tribunal de Contas da União e o Conselho Nacional de
Justiça vêm estabelecendo para o Poder Judiciário em geral, e para a Justiça Eleitoral em
especial, diretrizes diversas para implementação de planejamento estratégico, gestão de riscos,
aumento de transparência, etc. Entre estas destaca-se o novo objetivo estratégico para o Plano
Estratégico do Poder Judiciário para o período 2016-2020: combater a corrupção e a
improbidade administrativa. Este objetivo, no âmbito da Justiça Eleitoral está diretamente
relacionado com o artigo 7º da Convenção de Combate à Corrupção das Nações Unidas,
285
incorporada à legislação pátria pelo Decreto 5.687/2006, que orienta a adoção de medidas
legislativas e administrativas para aumento da transparência e prevenção de corrupção
associadas às disputas eleitorais e ao financiamento político.
Ações relacionadas a prevenção e combate à corrupção e à maior transparência de
relações públicas e privadas caracterizam fenômeno novo no século XX por sua intensidade e
abrangência pois abarca relações nacionais e transnacionais e está intrinsecamente ligado à
necessidade de estabilização de mercados e de sistemas políticos. E umas das principais
características desse fenômeno é exatamente a identificação do vínculo existente entre
eleições íntegras e estabilidade social.
Nessa linha de desenvolvimento, a regulação da atuação de partidos políticos e do
impacto do dinheiro na política é elemento chave para a estabilidade social e para a
estabilidade econômica. O estabelecimento de diretrizes para suas atividades e o efetivo
controle de seu funcionamento, em face das novas perspectivas, assim como tem ocorridos
com bancos, empresas de capital aberto e órgãos públicos, aparecem como questões de
primeira ordem para a estabilidade política e social. Partidos políticos também deveriam
obedecer às normas e padrões internacionais mínimos de auditoria e controle interno e
externo, de gestão de risco, de compliance, e a Justiça Eleitoral deveria ter competência para
estabelecer diretrizes para seu funcionamento conforme tais diretrizes e padrões de
integridade eleitoral.
No mesmo sentido, a estrutura para processamento de alguns crimes eleitorais
deveria ser revista. A Justiça Eleitoral, enquanto autoridade reguladora eleitoral com poderes
híbridos, com sua estrutura atual, possui atribuições regulatórias muito específicas que não se
coadunam com o processamento de crimes eleitorais na dimensão que estes adquiriram no
contexto atual. Os ilícitos eleitorais contemporâneos envolvendo abuso de poder político ou
econômico alcançaram circunstâncias muito mais complexas e amplas que aquelas anteriores
à 1988, sendo certo que a condução de processos criminais dessa magnitude exige
especialização e estrutura adequada que atualmente a Justiça Eleitoral está longe de possuir.
Entra em pauta uma necessária consideração a respeito da separação das esferas de
responsabilidade eleitoral e criminal, para que cada uma respeite ao devido processo com seus
meios, medidas e especificidades. Este é um desafio muito significativo quando se acompanha
o que vem acontecendo no cenário político brasileiro nos últimos dez anos.
286
A ausência de reconhecimento de tais circunstâncias gera o enfraquecimento da
democracia e da dinâmica eleitoral assim produzida. Se é verdade que a estabilidade social
depende da qualidade das eleições e da democracia, se é verdade que a atuação do órgão
regulador eleitoral é fator determinante para a estabilidade democrática, torna-se premente
levar adiante essa nova pauta de investigação para que adequações da legislação eleitoral
sejam realizadas e procedimentos orientados para a integridade das eleições previstos.
A regulação eleitoral brasileira atual ainda não atende em toda a extensão
necessária aos requisitos da nova regulação autônoma, levando-se em consideração suas três
dimensões, conforme indicado no capítulo 3: poder regulatório de natureza híbrida,
mecanismos de enforcement e eficiência.
O poder regulatório autônomo da Justiça Eleitoral tem sido sucessivamente
neutralizado ou mesmo reduzido pelo parlamento, fazendo com que o processo eleitoral não
seja regulado com a extensão necessária. A legislação eleitoral ainda não enfrentou com o
alcance exigido o tema da responsabilidade eleitoral para colocar à disposição da Justiça
Eleitoral instrumentos para tornar efetiva a regulação eleitoral mediante previsões normativas
que gerem efeitos no mundo jurídico para não compliance com as normas eleitorais.
A eficiência da regulação deve ser avaliada segundo as etapas dos ciclos
eleitorais. A regulação será eficiente quando entregar definitivamente julgados registros de
candidaturas antes do dia da votação, contas prestadas e aprovadas antes da diplomação;
quando consequências para o descumprimento da legislação eleitoral tiverem efeitos
jurídicos; quando questionamentos relacionados à campanhas forem julgados antes da
diplomação; quando questionamentos sobre diplomações tiverem prazo razoável para
julgamento, por exemplo, no primeiro ano do mandato; quando partidos também adotarem
procedimentos internos voltados para o respeito a princípios de direitos humanos e princípios
relacionados à eleições íntegras (democratização intrapartidária).
O contexto atual requer alteração de perspectiva para avaliação da arquitetura
institucional do sistema eleitoral brasileiro, principalmente no que se refere aos papéis,
competências e responsabilidades relacionados com a Justiça Eleitoral, partidos políticos e
demais partes interessadas no processo eleitoral, com a finalidade de alinhar suas ações com
os requisitos de adequação e justiça da nova ordem constitucional. Eleições, partidos
políticos e candidaturas devem ser efetivamente regulados. A regulação deve atender aos
pressupostos da regulação autônoma legítima, tanto no que se refere à produção normativa
287
quanto aos mecanismos de enformcement previstos e à eficiência. Sem essas adequações, a
realização de eleições com integridade fica profundamente comprometida e o sistema
democrático sujeito à erosão de seus fundamentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicação de analise discursiva à atuação da Justiça Eleitoral evidenciou as
tensões existentes entres os diversos papéis sob a responsabilidade da instituição. Elaborar
normas, implementar procedimentos, julgar conflitos e solucionar disputas, são atribuições
que, quando consideradas em conjunto, carecem de formas especificas de discurso e meios
próprios e específicos de legitimação para cada atividade.
Uma análise discursiva da questão, à primeira vista, demonstra então os diversos
déficits de legitimidade que seriam decorrentes da institucionalização de uma mesma
autoridade com os três poderes típicos do Estado. Habermas, em sua obra Direito e
Democracia, ressalta os problemas resultantes desse tipo de instituição e a possibilidade de
enfraquecimento da estrutura democrática pela multiplicação de órgãos desse tipo se a
dimensão da eficiência for colocada acima da necessidade de legitimação dos discursos
correspondentes que fundamentam e sustentam o sistema de direitos.
A abordagem discursiva, no entanto, demonstrou o caráter radicalmente
democrático do projeto político contemporâneo e enfatiza a importância da comunicação
como fonte de integração social, da institucionalização de arenas e procedimentos
deliberativos, da importância de mecanismos de transformação de ações estratégicas em ações
cooperativas. Ou seja, a importância da institucionalização de formas para produção de razão
procedimentalizada como meio para legitimação da convivência.
A proposta teórica desenvolvida por Pierre Rosanvallon na obra Democratic
Legitimacy também permitiu um novo olhar para a Justiça Eleitoral enquanto instituição e
para o problema da legitimidade a ela associado. Nesse sentido, alguns pontos ressaltados
pelo autor foram de especial interesse para essa pesquisa: a) a legitimidade da democracia
representativa contemporânea que para ser corretamente compreendida e analisada precisa ser
decomposta em seus múltiplos elementos constitutivos: legitimidade eleitoral, legitimidade do
serviço público, legitimidade da imparcialidade, legitimidade da reflexividade e legitimidade
da atenção ao particular; b) a generalidade social ou a percepção de bem comum, que deixou
de ser unânime em razão de uma maioria composta por uma “miríade de minorias”
deslocando o foco para a necessidade de entendimento e de compartilhamento de prioridades
que levem em conta as circunstâncias de todos; c) a soberania popular contemporânea com
sua manifestação complexa: múltiplos sujeitos e múltiplas temporalidades; d ) o sistema de
289
direitos que, por consequência, também possui dimensões temporais e espaciais múltiplas,
assim como formas de expressão diferenciadas: o exercício de direito eleitorais, no curto
prazo de um processo eleitoral e na forma e no tempo das urnas; a
configuração/reconfiguração do sistema de direitos pelos influxos recebidos da esfera pública
deliberativa, na dimensão temporal e espacial de médio prazo dos mandatos políticos e dos
ciclos eleitorais para elaboração de normas; os direitos individuais e coletivos na linguagem e
no tempo dimensionados para os devidos processos administrativos e judiciais, e no longo
prazo da jurisprudência constitucional; d ) o papel das autoridades reguladoras e das cortes
constitucionais enquanto agentes críticos para a percepção e manifestação das novas e
precárias formas de legitimidade contemporâneas: legitimidade da imparcialidade,
legitimidade da reflexividade e legitimidade da proximidade; e ) a exigência contemporânea
de reconhecimento para instituições de conflito e para instituições de consenso.
A sociedade e o Estado contemporâneos encontram-se perante uma crise,
conforme alertou Habermas e, por consequência, perante transformações do direito que atuam
sobre seus fundamentos estruturais e abstratos: há de fato uma mudança paradigmática na
forma de funcionamento do processo político e na emergência de novas instituições estatais
com características e pressupostos legitimadores profundamente diferenciados. Como visto,
no Estado Democrático de Direito, o lugar simbólico de uma “soberania diluída pelo
discurso” deve permanecer vazio, e em tempos de mudanças paradigmáticas do sistema de
direitos essa condição tem como pré-requisito a institucionalização de procedimentos que
possam suplementar os déficits de legitimidade trazidos pelas mudanças no Estado de Direito
em sua versão contemporânea.
Autoridade reguladores e cortes constitucionais ganharam protagonismo nessa
nova circunstância, enquanto novas formas de articulação social e novos espaços deliberativos
para composição do interesse comum. Como apontado por Rosanvallon, os representantes do
povo deveriam ser autoridades independentes, imparciais e com competência diferenciada em
relação a eleitores, características que atualmente descrevem muito mais órgãos reguladores
independentes e cortes constitucionais do que o parlamento contemporâneo. Nesse sentido, as
autoridades reguladoras autônomas configuram uma forma de poder representativo embora
não sejam integradas por agentes eleitos. Em sociedades fragmentadas e complexas, a
multiplicação de expressões parciais da democracia permite uma aproximação mais efetiva da
generalidade democrática. Se a sociedade possui mecanismos para interferir e legitimar os
290
poderes estatais de forma contínua, então a generalidade social se encontra, pelo conjunto, no
comando.
Na mesma linha de argumentação, o processo eleitoral é tão importante porque
oferece meio objetivo legitimo de desejar em comum, de reduzir periodicamente a diversidade
a um denominador comum, estando tal função agregativa das eleições no centro do processo
deliberativo democrático. O aparecimento de autoridades reguladoras eleitorais autônomas se
alinha com este propósito, na medida em que tais entes voltam-se para a missão de assegurar
confiança e justiça a todas as fases do processo eleitoral, reconhecendo-se a necessidade de
uma terceira parte imparcial e reflexiva como premissa fundamental para legitimação de todo
o procedimento, cujo resultado é a escolha legítima de representantes eleitos. Nesse sentido, a
legitimidade das eleições significa resultado aceito por perdedores e vencedores, percepção de
legitimidade por todos os envolvidos para os representantes eleitos, redução de conflitos a
níveis toleráveis através de processo deliberativo racional.
Na sociedade contemporânea a pluralização da temporalidade e do espaço
deliberativo para o exercício democrático é uma exigência cada vez maior. A permanente
mutação social torna o pensamento de curto prazo uma ameaça constante, sendo necessário
para a manutenção dos laços sociais um parâmetro estável, função ocupada pela representação
através de princípios. A imparcialidade e a reflexividade são assim formas de representação
democrática que permitem a redução do abismo entre as escolhas majoritárias e a prática
democrática concreta, colaborando para o fortalecimento do sistema representativo como um
todo. Ao permitir a construção da vontade geral, enquanto resultado de acordos deliberativos
sob a forma de discursos diversos, em escalas de tempo e de espaço diferentes do momento
das urnas e dos mandatos políticos, tais manifestações concedem aos cidadãos e à sociedade
civil outras formas de controle sobre o poder político.
O processo eleitoral, nesse sentido, seria por excelência um canal complementar
para cidadãos realizarem controle social sobre a legislação eleitoral produzida e sobre os
resultados eleitorais alcançados, na medida em que concede às partes interessadas nas eleições
poderes para questionarem a atuação da própria Justiça Eleitoral e para apresentar pontos de
vista divergentes para a interpretação das normas eleitorais, colaborando para a construção de
sentidos e conteúdos legítimos associados aos sistema eleitoral. O processo eleitoral
funcionaria, nesse sentido, como espaço permanente para justificação das decisões políticas
envolvidas na escolha de representantes eleitos, como arena racional para redução de
desacordos políticos à níveis toleráveis.
291
Os cidadãos já não se contentam em participar apenas no dia da votação, há uma
exigência por maior intervenção em todos os momentos e em todas as dimensões do exercício
democrático. Há exigências de implementação de meios para um intercâmbio aberto e efetivo,
para reconhecimento da batalha que se trava diariamente pela justificação de ações políticas e
governamentais em matéria eleitoral. Há ainda exigência de garantia de meios para troca
efetiva de informações entre a Justiça Eleitoral a e sociedade, que serve para o órgão eleitoral
como instrumento de ação para construção de sua legitimidade e para os cidadãos como
mecanismo de reconhecimento e controle. A justificação e a troca de informações são
processos interativos que se constituem como elementos essenciais da legitimidade da atuação
da Justiça Eleitoral contemporânea.
Nessa linha de pensamento, a atribuição de função regulatória autônoma à Justiça
Eleitoral deveria incorporar ao processo eleitoral novos aspectos democráticos para a gestão
de interesses privados, com ênfase para a legitimidade, efetividade, eficiência,
responsabilidade e controle. Não se trata mais de simplesmente punir fraudes e ilícitos
eleitorais, mas sim de direcionar o desenvolvimento do processo eleitoral conforme interesses
públicos juridicamente definidos, conforme as diretrizes da integridade eleitoral. O que, mais
uma vez, implica dizer: com níveis aceitáveis e racionalizados de desacordos que mantenham
os canais comunicativos do sistema político-jurídico preservados.
Todas essas considerações colaboraram para delimitar e redimensionar os
parâmetros de legitimidade para aferição de uma atuação legítima da Justiça Eleitoral.
Enquanto instituição de consenso, a Justiça Eleitoral atua para regular instituições de conflito,
ou seja, atua para regular a competição para acesso a cargos representativos. Embora
Habermas e Pierre Rosanvallon tenham elaborado seus argumentos partindo de pontos de
vista teóricos claramente distintos, ambos ofereceram colaborações muito significativas para
se pensar a atividade regulatória e a jurisdicional da Justiça Eleitoral. Todos os referenciais
teóricos utilizados tiveram por finalidade objetivos comuns: identificar o fio condutor que
possibilita a convivência democrática legitima e que fundamentos tornam legitimo o exercício
da atividade regulatória na democracia contemporânea. A regulação autônoma nos termos
aqui apresentada constitui-se como fenômeno novo que precisa ser avaliado quanto a seus
potenciais democráticos, caracterizando assim um problema de democracia.
Assim como para Habermas a divisão de poderes nas democracias
contemporâneas funda-se em princípios do Estado do Direito, nas formas de apropriação de
discursos e nos correspondentes processos exigidos para sua legitimação, diferenciando-se o
292
exercício do poder político no Estado Democrático de Direito significativamente do exercício
desse poder no Estado Liberal e do Estado Social, também Pierre Rosanvallon elabora
reflexões sobre a democracia contemporânea na perspectiva das transformações sociais, em
face do aprofundamento da complexidade e velocidade das relações estabelecidas, para
demonstrar como tais transformações tiveram impacto e transformaram a arena política
trazendo novas exigências de legitimação.
As duas análises são encaminhadas no sentido de que o funcionamento de
autoridades reguladoras independentes e da jurisdição constitucional apresentam questões
novas no contexto da democracia contemporânea, caracterizando-se como questões que
precisam ser adequadamente problematizadas e analisadas com novos instrumentos e não com
as ferramentas teóricas tradicionalmente utilizadas pela cultura jurídica positivista, pela
tradição liberal.
O poder regulador tradicionalmente abordado pelo direito administrativo
apresenta-se como manifestação de uma burocracia prevista como neutra, como mera
executora de programas e políticas previstas pelo parlamento. A atividade regulatória
contemporânea não se enquadra nessa figura e refere-se à atuação da administração e da
justiça enquanto entes que se auto programam e, portanto, elaboraram políticas públicas,
realizam escolhas políticas entre meios e fins, perdendo sua característica de intermediários
neutros, ficando sujeitos à instrumentalização de suas práticas, se não houver suplementação
adequada de legitimidade para suas ações.
A atividade regulatória autônoma legítima funciona a serviço dos direitos
humanos previstos em tratados internacionais, a serviço dos princípios constitucionais e
precisa atuar como vetor para alinhamento de ações com as escolhas políticas e jurídicas
originadas do devido processo, com escolhas políticas e jurídicas que reflitam os anseios
sociais e que tenham sido filtradas por um processo racional.
Não há consenso firmado a respeito dos papéis de tais instituições, autoridades
reguladoras independentes e cortes constitucionais, que atuam ao lado dos poderes
tradicionais do Estado como novos centros deliberativos. Não há ainda consenso a respeito de
formas de legitimação para suas respectivas atuações, ou seja, trata-se de fenômeno em
desenvolvimento que não foi suficientemente compreendido e teorizado. A questão se torna
ainda mais complicada quando envolve a análise da atuação da Justiça Eleitoral, visto que tal
instituição tem por atribuição resguardar parte do processo político fundamental para o
293
exercício democrático, ou seja, atua diretamente sobre um dos pilares da democracia
representativa: eleições periódicas.
Assim, vale ressaltar que tanto Habermas como Pierre Rosanvallon colocaram no
centro de suas análises a importância das eleições e dos direitos de participação no processo
democrático, tendo sido estas uma das principais razões para as teorias expostas pelos autores
terem sido escolhidas como referencial para se pensar criticamente a atividade da Justiça
Eleitoral.
Ambos apresentam ainda reflexões sobre legitimidade no exercício dos poderes
do Estado, sobre a divisão de poderes e apresentam propostas para análise das figuras
institucionais que passam a ganhar relevo no final do século XX, as agências reguladoras ou
autoridades reguladoras independentes e as cortes constitucionais, priorizando as
transformações na atuação e nos novos papéis, e colaborando decisivamente para a
compreensão da atuação da Justiça Eleitoral e das exigências de legitimidade que se
apresentam em tempos atuais.
A pluralização de microssistemas jurídicos em face da tradicional tripartição de
poderes napoleônica, ao lado do exercício cotidiano ampliado de debates a respeito de temas
constitucionais e jurídicos nas cortes judiciais, trouxeram mudanças significativas para as
sociedades contemporâneas, e em especial para o Brasil. Não é à toa que houve uma explosão
de demandas perante o judiciário, a multiplicação de agências reguladoras, a multiplicação de
ouvidorias, movimentos evidentes em direção à transparência e maiores exigências de
accountability.
A ideia de sistemas setoriais e todo o desenvolvimento jurídico teórico a respeito
da atividade regulatória autônoma convergiram com as teorias da democracia apresentadas.
Há divergências que sempre precisarão ser reconhecidas, mas como ficou demonstrado, a
atividade regulatória autônoma com todas as transformações pontuadas de fato representa um
fenômeno novo e é nessa linha de desenvolvimento que se escolheu prosseguir.
Esses novos centros atomizados de manifestação de poder político deram
expressão a demandas por legitimidade que se encontravam reprimidas na sociedade e
construíram novos canais de expressão para a cidadania, aproximando-a do Estado. Nesse
formato, interesses mais sensíveis e imediatos encontraram meios para serem formulados.
No caso especifico da Justiça Eleitoral brasileira, objeto de estudo neste trabalho,
ficou clara a necessidade de contextualização democrática para sua análise. Um diagnóstico
294
de suas competências em face do modelo normativo de democracia deliberativa evidenciou os
déficits de legitimidade que a atribuição das três competências típicas do Estado pode trazer
se não forem estabelecidas as formas correspondentes para formulação de discurso e
respectiva legitimação para cada uma dessas competências. Ficou claro ainda, os problemas
apontados por Habermas para instituições que dispõem simultaneamente de discursos de
fundamentação e de aplicação de normas, ou seja, que se auto programam sem os respectivos
procedimentos de legitimação.
Como a existência de autoridades reguladoras independentes é um fenômeno que
tem se multiplicado na contemporaneidade, colaborou ainda para compreensão do fenômeno
o ponto de vista específico apresentado sobre o tema por Pierre Rosanvallon. Ao propor o
autor o reconhecimento das dimensões múltiplas de uma democracia reflexiva, este reforçou a
importância de se ampliar exigências para uma dinâmica democrática para outras arenas
políticas tradicionais, demonstrando claramente que a prática deliberativa precisa ser
reconhecida como mecanismo democrático em outros espaços significativos para além do
parlamento.
Tanto a perspectiva de Habermas, democracia deliberativa, como a de Pierre
Rosanvallon, democracia reflexiva, convergem para a identificação do Estado Democrático de
Direito como um novo paradigma de Estado, no qual a busca pelo consenso - pela
coexistência, pela resolução harmônica e racional das divergências - e a participação
apresentam novas reivindicações de legitimidade e, portanto, novas exigências para a coesão
social.
A linguagem e a perspectiva de processo histórico apareceram como parâmetros
que balizam esforços para superação do paradigma de estado liberal e da filosofia da
consciência, para apreensão e inclusão dos elementos fáticos que sistematicamente “sobram”
na abordagem positivista. Há uma dimensão cooperativa claramente reconhecida que se
alimenta e se ampara em uma concepção de sistema jurídico radicalmente comprometida com
valores democráticos, reconhecidos inclusive em convenções e tratados internacionais de
direitos humanos, que após serem filtrados pelo devido processo deliberativo, ganha desenho
institucional sob a forma de princípios e de uma constituição prospectiva que irá orientar e
vincular todo o seu funcionamento. Há também um processo democrático histórico, que como
um romance em cadeia, conecta dimensões temporais e espaciais diferentes, resultando e
sendo resultado das diversas interações que ocorrem no tecido social. O direito assim como a
295
democracia são feitos de linguagem e de ciclos temporais, e como tal, somente podem ser
conhecidos e fazer sentido em tempo, espaço, cultura e circunstâncias concretas.
Por outro lado, há uma dimensão estratégica que precisa ser considerada, e para
essa dimensão é que funcionam as ferramentas e modelos de análise, que podem servir de
grande auxílio para a realização de diagnósticos. As ferramentas contemporâneas disponíveis
para avaliação de processos regulatórios encaixam-se aqui: análises sobre assimetrias de
informação, falhas de mercado, externalidades, análises qualitativas e quantitativas, etc.,
fazem parte desse esforço.
Os modelos econômicos, sociais e políticos voltados para compreensão da questão
regulatória, se abordados de forma isolada do contexto atual, certamente podem levar a
conclusões bastante descoladas da realidade. Daí a importância de se estabelecer marcos
teóricos de democracia para apreciação crítica de instituições e de fenômenos jurídicos,
políticos e sociais. Não há inferência descomprometida, ou, de outra forma, se a ponte entre
fatos e normas, entre fatos e teorias, não for estabelecida, o que haverá, certamente, será
espaço preservado para a discricionariedade e para déficits de legitimidade.
Por esta razão é possível dizer que não há exatamente conflito entre a dimensão
cooperativa voltada para o entendimento com a participação influente de todos e a dimensão
estratégica voltada para fins. O próprio Habermas reconhece que o ser humano desempenha
papéis diversos, sendo um deles o de cidadão.
Lógica cooperativa e lógica estratégica, soberania popular e direito humanos,
direitos individuais e direitos coletivos, princípio majoritário e constitucionalismo,
instituições de conflito e instituições de consenso, são todas faces de uma mesma moeda.
O grande desafio que se apresenta é compreender como se estrutura um sistema
de direitos legítimo em meio a uma sociedade cada vez mais complexa e globalizada,
enquanto mecanismo de diálogo democrático, e para qual direção este e suas instituições
devem se orientar. E isso implica dizer que no Estado contemporâneo outros vetores devem
ser agregados à estrita legalidade formal para que suas ações sejam percebidas como
legítimas. Em relação ao objeto de estudo escolhido por esta pesquisa, a Justiça Eleitoral, o
vetor identificado foi o da integridade das eleições, tal como previsto por tratados e
convenções internacionais.
A gravidade e complexidade dos problemas contemporâneos ligados a corrupção
e desequilíbrios financeiros, em escala global, com potencial para enfraquecer as instituições
296
e os valores da democracia, da ética e da justiça, trouxeram ameaças novas para a estabilidade
e a segurança das democracias contemporâneas.
A governança eleitoral e a realização de eleições com integridade, nesse sentido,
ganharam novo significado enquanto elo de ligação entre a qualidade da democracia e a
estabilidade social. A governança eleitoral atual, com seu objetivo de perseguir a integridade
eleitoral, tornou-se um dos novos e maiores desafios para a estabilidade democrática
contemporânea em face da fragmentação do interesse público e do enorme impacto que o
dinheiro desregulado, de origem indefinida passou a ter na política. Tais circunstâncias
levaram para outro patamar as relações estabelecidas no sistema eleitoral, atribuindo à
governança eleitoral atual papel radicalmente diferenciado e à missão institucional da Justiça
Eleitoral brasileira significado inteiramente novo.
Nesse novo contexto, órgãos eleitorais tiveram sua natureza modificada e
passaram a funcionar como autoridades reguladoras eleitorais representando uma nova forma
de manifestação de soberania popular, um dos meios para manter o interesse público no
comando. A nova arquitetura dos sistemas eleitorais deve ter por finalidade resguardar a
integridade e as condições de legitimidade do sistema representativo, preservando a
possibilidade de confronto legítimo de ideias e de interesses contrapostos, assim como a
construção do equilíbrio reflexivo.
O aparecimento de órgãos eleitorais autônomos é uma realidade incontestável da
governança eleitoral contemporânea, o que conduz a inevitáveis reflexões sobre as condições
de legitimidade para sua atuação, com questionamentos diversos sobre seus paradoxos,
insuficiências, limites, poderes e procedimentos envolvidos; sobre a emancipação cada vez
maior da esfera eleitoral de responsabilidades. A governança eleitoral, nesse sentido, é um
problema de democracia.
A transformação da regulação eleitoral tradicional para a regulação eleitoral de
natureza autônoma, no Brasil, ocorreu como resultado dos diversos fatores já apontados ao
longo da presente investigação: a paulatina universalização do voto; a maior complexidade
das relações sociais fragmentadas e de massa; o novo papel do cidadão enquanto autor e
destinatário das normas de convivência comum na democracia contemporânea; das novas e
precárias formas de legitimidade; do reconhecimento da existência de instituições de conflito
e de instituições de consenso; da pauta principiológica do constitucionalismo contemporâneo
voltado para condições materiais de dignidade da pessoa humana e portanto prospectiva; da
297
mudança para o paradigma de Estado Gerencial; e em especial pela mudança de natureza
jurídica de partidos políticos, após a Constituição de 1988. Todos esses fatores explicaram as
modificações trazidas para o sistema eleitoral brasileiro.
Nesse novo contexto, após análise da institucionalização da governança eleitoral
no Brasil, da estrutura e características de sua arquitetura institucional, conforme parâmetros
construídos ao longo da pesquisa, o órgão eleitoral brasileiro foi classificado como
Autoridade Reguladora Eleitoral com poderes híbridos. Essa estrutura de regulação autônoma
em matéria eleitoral foi inaugurada pela nova carta magna ao dar aos partidos políticos
natureza jurídica de direito privado, ao determinar que a filiação partidária é condição de
elegibilidade e que partidos políticos prestam conta de suas atividades para a Justiça Eleitoral.
No entanto, verificou-se que a esfera normativa e os procedimentos relacionados à nova
estrutura regulatória permaneceram sem as adaptações correspondentes na legislação
infraconstitucional. A nova regulação autônoma em matéria eleitoral ainda possui
institucionalização precária das suas três dimensões: poderes e funções delimitados,
mecanismos de enforcement previstos e eficiência avaliada em relação às fases dos ciclos
eleitorais. Esses foram os pontos críticos identificados relacionados à transição inacabada para
um novo sistema eleitoral legitimo, no Brasil.
A legitimidade do sistema eleitoral contemporâneo está diretamente relacionada
com o alinhamento do seu funcionamento a princípios internacionais de direitos humanos e
aos princípios constitucionais preconizados pela Constituição de 1988. Sem o
reconhecimento e institucionalização de todas as dimensões da regulação autônoma no âmbito
do sistema eleitoral, torna-se praticamente impossível gerar os incentivos necessários para a
realização de eleições integras, na extensão que tal conceito, atualmente, implica.
A realização de eleições íntegras abrange aspectos formais e substanciais e para
tanto pressupõe a institucionalização de instrumentos adequados e eficientes para alinhamento
e controle das ações de todos os envolvidos no processo eleitoral com as finalidades
constitucionais do sistema eleitoral. A realização de eleições íntegras é condição necessária
para a estabilidade social com respeito à dignidade humana, para funcionamento do estado
orientado pelo vetor justiça.
Como visto, a estabilidade social depende de paz e segurança, do
desenvolvimento econômico e do funcionamento do estado de direito com respeito aos
direitos humanos e, portanto, da credibilidade, reputação e funcionamento de suas
298
instituições, conforme as finalidades do estado democrático contemporâneo. Por estas
precisas razões, a governança democrática, no estado democrático de direito, correlaciona-se
diretamente com a governança eleitoral direcionada para garantir a integridade das eleições,
na medida em que eleições são um dos pilares da democracia, pois determinam quem tem
acesso ao poder político e de que forma. Eleições determinam quem terá acesso à ordenação
da pauta de políticas públicas, priorizando ou preterindo interesses públicos diversos,
conduzindo a níveis toleráveis ou não as divergências sociais.
Eleições íntegras forjam o elo de legitimidade entre os cidadãos e o sistema
político. Eleições íntegras funcionam como um dos principais canais de acesso à arena
política, para organização e composição de interesses públicos. Eleições íntegras funcionam
como um dos meios de integração do tecido social, ao lado do dinheiro, e, portanto, como um
dos principais canais comunicativos para solução não violenta de conflitos. Representantes
eleitos sem legitimidade popular percebida pelos cidadãos colocam em risco as vias
democráticas para construção de consensos e ameaçam a estabilidade social. A qualidade da
governança eleitoral afeta a qualidade da democracia. A percepção de integridade eleitoral
possui o condão de influenciar os resultados do processo político com aumento ou redução da
legitimidade representativa. E a atuação dos órgãos eleitorais é uma das variáveis críticas para
a estabilidade democrática que já não pode mais ser ignorada ou subestimada.
A promoção de eleições com integridade pressupõe órgãos eleitorais
independentes, profissionais e eficientes com capacidade para conduzir processos eleitorais
transparentes, com credibilidade técnica que entreguem eleições percebidas como livres,
justas e confiáveis. Pressupõe órgãos eleitorais e práticas partidárias que assegurem a todos
reais possibilidades de acesso à arena política para ordenação e composição dos diversos
interesses públicos. A competência dos órgãos eleitorais e a percepção popular a respeito da
sua atuação delimitam a percepção e a confiança na integridade das eleições, e, portanto, nos
seus resultados, legitimando ou não os representantes eleitos. Nos países em processo de
amadurecimento e estabilização democrática, como o Brasil, a atuação dos órgãos de gestão
eleitoral é especialmente importante.
A estrutura regulatória institucionalizada pela legislação eleitoral, a governança
eleitoral, determina a forma e a velocidade com a qual os órgãos eleitorais poderão lidar com
questionamentos e desvios de finalidade do processo eleitoral. A ausência de estrutura
regulatória suficientemente prevista para a competição eleitoral – e, portanto, a definição de
papéis e responsabilidades para todos os envolvidos - demonstra carência de
299
comprometimento político e a adoção de reformas políticas de fachada, sem empenho real
para abraçar o ethos democrático que torna um órgão de gestão eleitoral efetivo (GLOBAL
COMMISSION ON ELECTIONS, 2012, p. 5).
Em síntese, verifica-se uma necessária mudança de perspectiva para avaliação da
governança eleitoral brasileira, com especial ênfase para a avaliação dos papéis, competências
e responsabilidades associadas com os partidos políticos, com a Justiça Eleitoral e demais
partes interessadas, a fim de alinhar suas ações com os pré-requisitos de adequação e justiça
da nova ordem constitucional.
Nessa nova perspectiva, a Justiça Eleitoral não é um órgão equivalente aos demais
órgãos do Poder Judiciário. Sua função preponderante não é apenas a função jurisdicional
tradicional. O uso de procedimento análogo ao judicial como meio para processamento da
regulação eleitoral não descaracteriza seus poderes e a amplitude que sua ação regulatória
deve ter, ao contrário, torna mais complexa uma análise crítica de sua atuação legítima. A
Justiça Eleitoral brasileira é uma Autoridade Reguladora Eleitoral, com funções híbridas, e
sua missão é assegurar a legitimidade do processo eleitoral, é garantir a integridade das
eleições em todas as fases do ciclo eleitoral, consideradas suas diferentes temporalidades.
Essa constatação abre uma nova frente para pesquisas e impõe a utilização de
novas lentes para avaliação e adequação do sistema eleitoral brasileiro, tanto para
enfrentamento de suas lacunas de legitimidade; como para justificação das escolhas
envolvidas na condução dos assuntos eleitorais pela Justiça Eleitoral que, em razão da forma
como a arquitetura do sistema eleitoral brasileiro foi institucionalizada, forma de Autoridade
Reguladora Eleitoral híbrida, apresenta permanente conflito no exercício de todas as suas
atribuições.
A Justiça Eleitoral tem por missão regular, organizar e solucionar as disputas
decorrentes do processo eleitoral. O exercício conjunto de tais atividades implica no manejo
concomitante das diversas formas de discurso próprias do sistema de direitos, que envolvem
forma de legitimação diferenciadas. O exercício conjunto de tais atividades pelo mesmo órgão
eleitoral necessariamente implica na avaliação de custos e benefícios, quanto à ordenação de
prioridades para atendimento a essas diversas funções. Uma ordenação equivocada de
prioridades, principalmente em razão da escassez de recursos, e das enormes exigências dos
ciclos eleitorais de curto prazo, podem comprometer a legitimidade da regulação eleitoral de
curto, médio e longo prazo, e, portanto, a estabilidade social.
300
Eleições, partidos políticos e candidaturas devem ser efetivamente regulados. A
regulação deve atender aos pressupostos da regulação autônoma legítima, tanto no que se
refere à produção normativa quanto aos mecanismos de enforcement previstos e à eficiência.
Sem essas adequações, reformas políticas são insuficientes, a realização de eleições com
integridade fica profundamente comprometida e o sistema democrático sujeito à erosão de
seus fundamentos.
É preciso completar a transição.
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