Capítulo 5 - A Didaquê e 1 Clemente

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A Didaquê e 1 Clemente A Didaquê O único manuscrito sobrevivente do antigo escrito cristão agora comumente conhecido como a Didaquê, dá à obra dois títulos: “O ensino [Didaquê] dos Doze Apóstolos” e “O Ensino do Senhor aos gentios pelos Doze Apóstolos”. O erudito bizantino Philotheos Bryennios descobriu este manuscrito em 1873; antes da disso a existência obra tinha sido conhecida apenas pelas referências na literatura cristã antiga. O historiador da Igreja, Eusébio, referiu-se a ela como estando entre os escritos que não foram aceitos como estando no cânon nem foram rejeitados como heréticos. 1 Atanásio também a descreveu como não-canônica, mas a recomendou para leituras dos recém convertidos. 2 Desde sua publicação por Bryennios em 1883, a obra, especialmente de quando foi escrita, tem sido objeto de intensa discussão entre os estudiosos. Enquanto alguns põem sua origem tão tarde quanto o terceiro século, muitos comentaristas agora datam a redação final da obra por volta do fim do primeiro século. J.P. Audet favorece uma data mais antiga (50-70), 3 enquanto Kurt Niederwimmer sugere uma data tardia (110-20), 4 e o consenso aponta uma data em algum lugar entre esses limites. Outra discussão foca sobre o lugar de origem; alguns a tem localizado no Egito, mas a visão mais comum agora é que ela foi escrita na Síria ou na Palestina. Essa obra pode ser descrita como um manual de instruções preparado pelas comunidades cristãs que deve ter sido muito recentemente estabelecido, julgando-se a partir da natureza básica das instruções das a eles. Ela consiste de quatro partes de gêneros literários bem diferentes: (1) catequese batismal sobre “as duas formas”; (2) instruções sobre liturgia; (3) instruções sobre a ordem da igreja; e (4) predições sobre “os últimos dias”. É conhecido a partir de outras fontes que o tratado sobre “as duas formas” era originalmente usada para a instrução moral dos gentios convertidos ao judaísmo; o escritor da Didaquê a adaptou como uma catequese para candidatos para o 1 História Eclesiástica 3.25 2 “Epístola Festiva” 39, em E. Preuschen, Anacleta. Kurzere Text zur Geschichte der alten Kirche und des Kanone. II Zur Kanongeschichte. 2ª d. (Tubingen, 1910), p.45. 3 J.P. Audet, La Didaché: Instructions des Apôtres, Études Bibliques (Paris: J. Gabalda, 1958), p. 199. 4 Kurt Niederwimmer, The Didache: A Commentary, Hermeneia, tr. Linda M. Maloney (Minneapolis: Fortress Press, 1998), p. 53.

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A Didaqu e 1 Clemente

A Didaqu

O nico manuscrito sobrevivente do antigo escrito cristo agora comumente conhecido como a Didaqu, d obra dois ttulos: O ensino [Didaqu] dos Doze Apstolos e O Ensino do Senhor aos gentios pelos Doze Apstolos. O erudito bizantino Philotheos Bryennios descobriu este manuscrito em 1873; antes da disso a existncia obra tinha sido conhecida apenas pelas referncias na literatura crist antiga. O historiador da Igreja, Eusbio, referiu-se a ela como estando entre os escritos que no foram aceitos como estando no cnon nem foram rejeitados como herticos.[footnoteRef:1] Atansio tambm a descreveu como no-cannica, mas a recomendou para leituras dos recm convertidos.[footnoteRef:2] [1: Histria Eclesistica 3.25] [2: Epstola Festiva 39, em E. Preuschen, Anacleta. Kurzere Text zur Geschichte der alten Kirche und des Kanone. II Zur Kanongeschichte. 2 d. (Tubingen, 1910), p.45.]

Desde sua publicao por Bryennios em 1883, a obra, especialmente de quando foi escrita, tem sido objeto de intensa discusso entre os estudiosos. Enquanto alguns pem sua origem to tarde quanto o terceiro sculo, muitos comentaristas agora datam a redao final da obra por volta do fim do primeiro sculo. J.P. Audet favorece uma data mais antiga (50-70),[footnoteRef:3] enquanto Kurt Niederwimmer sugere uma data tardia (110-20),[footnoteRef:4] e o consenso aponta uma data em algum lugar entre esses limites. Outra discusso foca sobre o lugar de origem; alguns a tem localizado no Egito, mas a viso mais comum agora que ela foi escrita na Sria ou na Palestina. [3: J.P. Audet, La Didach: Instructions des Aptres, tudes Bibliques (Paris: J. Gabalda, 1958), p. 199.] [4: Kurt Niederwimmer, The Didache: A Commentary, Hermeneia, tr. Linda M. Maloney (Minneapolis: Fortress Press, 1998), p. 53.]

Essa obra pode ser descrita como um manual de instrues preparado pelas comunidades crists que deve ter sido muito recentemente estabelecido, julgando-se a partir da natureza bsica das instrues das a eles. Ela consiste de quatro partes de gneros literrios bem diferentes: (1) catequese batismal sobre as duas formas; (2) instrues sobre liturgia; (3) instrues sobre a ordem da igreja; e (4) predies sobre os ltimos dias. conhecido a partir de outras fontes que o tratado sobre as duas formas era originalmente usada para a instruo moral dos gentios convertidos ao judasmo; o escritor da Didaqu a adaptou como uma catequese para candidatos para o batismo cristo. A quarta parte se assemelha ao discurso apocalptico de Jesus em Mateus 24.1-31, e alguns estudiosos tem pensado que ele depende desse evangelho. Todavia, mais provvel sobre uma tradio apocalptica que tanto Mateus quanto o autor da Didaqu fizeram uso independente um do outro.[footnoteRef:5] [5: Ibid., p. 212.]

Por causa da minha preocupao com a informao dada pela Didaqu quanto ao ministrio no inicio do perodo ps-apostlico, limitarei a discusso a parte dois e trs desta obra, focando sobre o que ela diz a respeito dos ministrios do batismo e da eucaristia; sobre os apstolos, profetas e mestres; e sobre os episkopoi [bispos] e diakonoi [diconos]. Cada poro do texto ser seguida de meus comentrios.[footnoteRef:6] [6: A traduo dos textos que eu citarei da Didaqu, 1 Clemente, das cartas de Incio, da carta de Policarpo, de O Martrio de Policarpo e do O Pastor de Hermas, sero extradas de J.B. Lightfoot, J.R. Harmer e M.W. Holmes, eds., The Apostolic Fathers, 2 Ed. (Grand Rapids: Baker Book House, 1992).]

Instruo sobre o BatismoCaptulo VII1.Quanto ao batismo, faa assim: depois de ditas todas essas coisas, batize em gua corrente, em nome do Pai e do Filho e do Esprito Santo. 2.Se voc no tiver gua corrente, batize em outra gua. Se no puder batizar com gua fria, faa com gua quente. 3.Na falta de uma ou outra, derrame gua trs vezes sobre a cabea, em nome do Pai e do Filho e do Esprito Santo. 4.Antes de batizar, tanto aquele que batiza como o batizando, bem como aqueles que puderem, devem observar o jejum. Voc deve ordenar ao batizando um jejum de um ou dois dias.

ComentrioNa primeira linha, a palavra batismo est no plural, indicando que a instruo endereada comunidade. Mas nas linhas seguintes, as instrues so endereadas a um indivduo, presumivelmente o aquele que batiza da sentena 4. H, portanto, um ministro de batismo na comunidade, que o que deve jejuar antes do batismo. Um indivduo (aquele que batiza?) tambm instrues ao candidato quanto ao jejum. Os verbos no singular apontam para um ministro de batismo reconhecido na comunidade, mas nenhuma informao adicional dada sobre essa pessoa.

Instruo sobre a EucaristiaCaptulo IX1.Celebre a Eucaristia assim: 2.Diga primeiro sobre o clice: "Ns te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste atravs do teu servo Jesus. A ti, glria para sempre". 3.Depois diga sobre o po partido: "Ns te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste atravs do teu servo Jesus. A ti, glria para sempre. 4.Da mesma forma como este po partido havia sido semeado sobre as colinas e depois foi recolhido para se tornar um, assim tambm seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino, porque teu o poder e a glria, por Jesus Cristo, para sempre". 5.Que ningum coma nem beba da Eucaristia sem antes ter sido batizado em nome do Senhor, pois sobre isso o Senhor disse: "No dem as coisas santas aos ces".

Captulo X1. Aps ser saciado[footnoteRef:7], agradea assim: 2."Ns te agradecemos, Pai santo, por teu santo nome que fizeste habitar em nossos coraes e pelo conhecimento, pela f e imortalidade que nos revelaste atravs do teu servo Jesus. A ti, glria para sempre. 3.Tu, Senhor onipotente, criaste todas as coisas por causa do teu nome e deste aos homens o prazer do alimento e da bebida, para que te agradeam. A ns, porm, deste uma comida e uma bebida espirituais e uma vida eterna atravs do teu servo. 4.Antes de tudo, te agradecemos porque s poderoso. A ti, glria para sempre. 5.Lembra-te, Senhor, da tua Igreja, livrando-a de todo o mal e aperfeioando-a no teu amor. Rene dos quatro ventos esta Igreja santificada para o teu Reino que lhe preparaste, porque teu o poder e a glria para sempre. 6.Que a tua graa venha e este mundo passe. Hosana ao Deus de Davi. Venha quem fiel, converta-se quem infiel. Maranatha. Amm." 7.Deixe os profetas agradecerem vontade. [7: A traduo de Lightfoot traz: Aps teres o bastante.]

ComentrioA palavra traduzida por agradecer [dar graas] nestas oraes eucharistein, o verbo de eucaristia que encontrada em 9.1,5. Eucharistia indubitavelmente significa uma beno ou ao de graas antes de vir a ser usada mais e mais exclusivamente para a orao de ao de graas par excellence, que ns conhecemos como a eucaristia. O uso da palavra aqui no quer dizer necessariamente que o orador apresentado no captulo 10 da Didaqu aqueles ns hoje chamaramos de orador eucarstico. Tem havido muitos teorias sobre ele, mas h um crescente consenso que as palavras Aps ser saciado em 10.1 quer dizer que o orador apresentado em 10.12-6 uma bno ou ao de graas que conclui a refeio gape. As palavras em 10.6, Venha quem fiel so entendidas como um convite a vir celebrao da eucaristia que toma lugar aps a refeio. Alguns tm sugerido que a orao da bno que precede a eucaristia pode ser visto como sua viglia ou prefcio. Enquanto que essas oraes so de importncia primria para a histria da liturgia eucarstica, estamos mais concentrados aqui na instruo contida em 10.7: Deixe os profetas agradecerem [eucharistein] vontade. Seguindo imediatamente sobre as oraes dadas em 9-10, a palavra mas[footnoteRef:8]* (de) indica uma diferena entre o que os profetas fazem e o que os outros fazem. Ao que parece, as oraes do texto so propostas para o uso daqueles que no possuem o dom de oraes inspiradas que os profetas possuem. Os ltimos podem improvisar; os outros no so esperados que o faam. Em todo caso, est claro que os profetas foram considerados qualificados pelos seus dons carismticos de pronunciar bnos e oraes de aes de graa em favor da comunidade, e isso inclua presidir a eucaristia. Se outros alm dos profetas tambm presidiam a eucaristia, no nos dito neste ponto quem eram esses outros. Essa questo respondida mais tarde, em 15, onde a comunidade instruda a escolher para si mesma superintendentes e diconos que exeram o ministrio de profetas e mestres. [8: * Estou usando neste trabalho a traduo em lngua portuguesa da Didaqu feita por Carlos Martins Nabeto que no inclui a conjuno mas como faz a traduo inglesa usada pelo autor neste trecho [N. do T.].]

Instrues sobre Mestres, Apstolos e Profetas

Captulo XI

1.Se vier algum at voc e ensinar tudo o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido. 2.Mas se aquele que ensina perverso e ensinar outra doutrina para te destruir, no lhe d ateno. No entanto, se ele ensina para estabelecer a justia e conhecimento do Senhor, voc deve acolh-lo como se fosse o Senhor. 3.J quanto aos apstolos e profetas, faa conforme o princpio do Evangelho. 4.Todo apstolo que vem at voc deve ser recebido como o prprio Senhor. 5.Ele no deve ficar mais que um dia ou, se necessrio, mais outro. Se ficar trs dias um falso profeta. 6.Ao partir, o apstolo no deve levar nada a no ser o po necessrio para chegar ao lugar onde deve parar. Se pedir dinheiro um falso profeta.

Comentrio... Se algum vier at voc e ensinar o que foi dito anteriormente, deve ser acolhido. As comunidades as quais a Didaqu foi endereada evidentemente estavam acostumadas a serem ensinadas pelos itinerantes que viam a eles, bem como por mestres residentes. Tudo o que foi dito seria uma referncia dissertao sobre as duas formas, e tambm instruo sobre a orao e a eucaristia.Mas se aquele que ensina perverso... A palavra traduzida por aquele que ensina no didaskalos, mas a forma participial do verbo: aquele que ensina. Isso no faz, necessariamente, referncia a uma pessoa reconhecida como um didaskalos, como outros poderiam ensinar. As boas-vindas deveriam ser dadas a tais mestres itinerantes dependendo do efeito do seu ensino: se leva destruio ou justia e conhecimento do Senhor. ...conforme o princpio do Evangelho... voc deve acolh-lo como se fosse o Senhor. Compare isso com Mateus 10.40: Quem vos recebe, a mim me recebe; e quem me recebe a mim, recebe aquele que me enviou.[Todo apstolo que vem at voc] ... no deve ficar mais que um dia... A Didaqu usa o termo apstolo para se referir aos missionrios que trabalhavam na evangelizao aps a morte dos apstolos originais. Muito comumente igrejas crists bem estabelecidas enviavam-nos a espalharem o Evangelho nas cidades e vilarejos onde ainda no haviam pregado. Pode-se reconhecer tais missionrios nos irmos a quem o Presbtero de 3 Joo impulsiona Gaio a ajudar a continuar a jornada deles, Porque pelo seu Nome saram, nada tomando dos gentios (3 Joo 7). Enquanto o Presbtero no os chama de apstolos, em outros aspectos a mensagem a mesma: Missionrios devem ser bem-vindos em comunidades crists e deve ser dado o que necessitam para sua jornada, mas deles esperado seguir adiante. Outras fontes crists antigas chamam tais missionrios mais de evangelistas do que de apstolos.[footnoteRef:9] O autor da Didaqu no compartilha da tendncia de Lucas e outros de restringir o termo apstolo aos doze; por outro lado, ele usou a palavra num sentido mais amplo do que outros escritores antigos. [9: Veja HE 3.37]

... Se ficar trs dias um falso profeta... ... Se pedir dinheiro um falso profeta. Conquanto ainda encontremos poucos exemplos do termo falsos apstolos nos escritores antigos (cf. 2Co 11.13), ele muito raro; o termo falso profeta, pelo contrrio, foi comumente aplicado a todos aqueles que falsamente falavam em nome de Deus. O termo como usado aqui, portanto, muito provavelmente tem esse significado genrico. A falsidade manifestada pelas exigncias do visitante de mais do que um genuno apstolo teria direito de receber. O preceito do Evangelho era ainda mais rigoroso: E ordenou-lhes que nada tomassem para o caminho... nem alforje, nem po, nem dinheiro... (Marcos 6.8). O resto da sesso 11 explica como os profetas devem ser tratados.