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CAPÍTULO 2 - O SISTEMA DE AVALIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR DA MÚSICA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E OPÇÕES METODOLÓGICAS 1– PERSPECTIVAS TEÓRICAS 1.1 – A ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA O projecto de investigação realizado adoptou a perspectiva construtivista, que vê a realidade social como “construída (e não como ‘natural’ ou ‘dada’ de uma vez por todas)” (Corcuff, 1995, 6, sublinhado no texto) e que procura ultrapassar a perspectiva dicotómica dessa realidade - baseada em conceitos antagónicos tais como material/ideal, objectivo/subjectivo, colectivo/individual - perspectiva essa própria das ciências sociais desde os seus primórdios (id., 8). A uma visão da realidade social realista e objectiva, que considera que o mundo existe e pode ser conhecido tal como é, de facto, através de processos racionais, e que dá à colectividade (sociedade ou organizações) o papel de primazia, contrapõe-se uma visão subjectivista, para a qual o mundo existe como construção, “invenção” dos diferentes indivíduos, sendo estes as unidades básicas da realidade social, as quais, agindo com o recurso a determinados reportórios de significados (crenças, valores, regras), constroem o sentido do seu mundo e da acção nele desenvolvida (Greenfield, 1993, 7). Na perspectiva construtivista, “as realidades sociais são apreendidas como construções históricas e quotidianas dos actores individuais e colectivos” (Corcuff, 1995, 17), nas quais o mundo objectivo, exterior, não deixa de condicionar e de colaborar na construção do mundo subjectivo dos actores. Com efeito, este mundo constrói-se a partir de pré- construções passadas, de formas sociais estruturadas pelas práticas e interacções da vida quotidiana dos actores, que se servem “de palavras, de objectos, de regras, de instituições, etc., legados pelas gerações anteriores”, transformando-os e criando outros novos, num duplo movimento de “interiorização do exterior e de exteriorização do interior” (id., 18). A análise estratégica insere-se nesta perspectiva, ao considerar que a acção social dos actores individuais ou colectivos se inscreve num sistema de acção concreto, definido como “um conjunto humano estruturado, que coordena as acções dos seus participantes através de mecanismos de jogos relativamente estáveis e que mantém a sua estrutura, isto é, a estabilidade dos seus jogos e as relações entre estes, por meio de mecanismos de regulação que constituem outros jogos” (Crozier & Friedberg, 1977, 286). A centralidade atribuída ao actor não implica, pois, ignorar ou minimizar o papel determinante que o “exterior” (as práticas formalizadas ou estruturas) tem na construção da acção. A noção de sistema de acção concreto foi utilizada na sua reformulação mais recente como sistema de acção social organizada. Tais sistemas são entendidos como “ contextos 57

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CAPÍTULO 2 - O SISTEMA DE AVALIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR DA MÚSICA: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E OPÇÕES METODOLÓGICAS 1– PERSPECTIVAS TEÓRICAS 1.1 – A ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA O projecto de investigação realizado adoptou a perspectiva construtivista, que vê a realidade social como “construída (e não como ‘natural’ ou ‘dada’ de uma vez por todas)” (Corcuff, 1995, 6, sublinhado no texto) e que procura ultrapassar a perspectiva dicotómica dessa realidade - baseada em conceitos antagónicos tais como material/ideal, objectivo/subjectivo, colectivo/individual - perspectiva essa própria das ciências sociais desde os seus primórdios (id., 8). A uma visão da realidade social realista e objectiva, que considera que o mundo existe e pode ser conhecido tal como é, de facto, através de processos racionais, e que dá à colectividade (sociedade ou organizações) o papel de primazia, contrapõe-se uma visão subjectivista, para a qual o mundo existe como construção, “invenção” dos diferentes indivíduos, sendo estes as unidades básicas da realidade social, as quais, agindo com o recurso a determinados reportórios de significados (crenças, valores, regras), constroem o sentido do seu mundo e da acção nele desenvolvida (Greenfield, 1993, 7). Na perspectiva construtivista, “as realidades sociais são apreendidas como construções históricas e quotidianas dos actores individuais e colectivos” (Corcuff, 1995, 17), nas quais o mundo objectivo, exterior, não deixa de condicionar e de colaborar na construção do mundo subjectivo dos actores. Com efeito, este mundo constrói-se a partir de pré-construções passadas, de formas sociais estruturadas pelas práticas e interacções da vida quotidiana dos actores, que se servem “de palavras, de objectos, de regras, de instituições, etc., legados pelas gerações anteriores”, transformando-os e criando outros novos, num duplo movimento de “interiorização do exterior e de exteriorização do interior” (id., 18). A análise estratégica insere-se nesta perspectiva, ao considerar que a acção social dos actores individuais ou colectivos se inscreve num sistema de acção concreto, definido como “um conjunto humano estruturado, que coordena as acções dos seus participantes através de mecanismos de jogos relativamente estáveis e que mantém a sua estrutura, isto é, a estabilidade dos seus jogos e as relações entre estes, por meio de mecanismos de regulação que constituem outros jogos” (Crozier & Friedberg, 1977, 286). A centralidade atribuída ao actor não implica, pois, ignorar ou minimizar o papel determinante que o “exterior” (as práticas formalizadas ou estruturas) tem na construção da acção. A noção de sistema de acção concreto foi utilizada na sua reformulação mais recente como sistema de acção social organizada. Tais sistemas são entendidos como “ contextos

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de acção marcados pela interdependência estratégica entre os actores” (Friedberg, 1993, 15), os quais são permanentemente actualizadas por estes dentro das condicionantes impostas pelas estruturas pré-existentes e em função dos seus interesses estratégicos, que visam quer “melhorar a sua capacidade de acção” quer “ preservar as suas margens de manobra” (Amblard et al., 1996, 25). Atendendo a que se tratava de considerar sistemas de avaliação do ensino superior de música e não apenas as organizações de ensino da música que são objecto dessa avaliação, afigurou-se pertinente adoptar esta noção, segundo a qual “já não é apenas a ‘organização’ que está em causa, mas, de modo mais geral, a ‘acção organizada’, da qual a ‘organização’ é apenas uma das modalidades” (id., 1996, 41) A acção organizada é definida pela capacidade de acção dos diversos actores/jogadores, num dado sistema e depende do grau de poder de que cada um dispõe. Se “não há sistemas sociais inteiramente regulados ou controlados” (Crozier & Friedberg, 1977, 29) as possibilidades de acção dos actores estão, contudo, limitadas e dependentes da “ margem de liberdade de que dispõe cada um dos parceiros implicados numa relação de poder” (id., 69). Essa margem de liberdade (ou porção de poder) do actor está, por sua vez, condicionada pela “zona de incerteza que a imprevisibilidade do seu próprio comportamento lhe permite controlar relativamente aos seus parceiros”, devendo essa zona de incerteza ser “pertinente”face ao problema e aos interesses em presença (id., 72). A questão do poder pode, contudo, ser vista de duas maneiras : como utilidade ou como identidade. A segunda perspectiva permite passar duma visão do poder como algo de que o actor se serve estrategicamente, um mero recurso “exterior” que mobiliza, para uma concepção “interiorizada” do poder, que considera que o actor se constrói, enquanto tal, quando “luta pelo reconhecimento da sua identidade, que se manifesta na acção”, passando a luta simbólica a substituir-se à luta estratégica. O actor é, simultaneamente, “dado e a construir, nos jogos dos avatares sucessivos da vida quotidiana das relações em organização” (Amblard et al., 1996, 50-51). A actividade estratégica dos actores ganha em ser compreendida mobilizando a noção de contexto ou “situação de acção” desenvolvida pela “Sociologia das lógicas de acção”, que é elementarmente definida pela seguinte equação: actor + situação de acção = lógicas de acção” (Amblard et al., 1996, 187, 204). O actor, aqui, deve ser considerado não só como um ser estratégico, identitário e cultural, mas também sócio-histórico, grupal e pulsional (id., 206-210), isto é, em todas as suas dimensões pessoais e sociais, enquanto indivíduo e enquanto membro de um grupo e de uma comunidade. Por sua vez a situação de acção implica o conhecimeno do seu contexto histórico e institucional, sem esquecer a instância simbólica ou mítica, apreensível através não só de diversos símbolos visíveis, mas também na retórica dos actores (id., 212,213). Os “actores em situação” desenvolvem, em interdependência, os mecanismos para a acção colectiva, os quais assumem a forma de regras, mais ou menos formalizadas. Para a apreensão dos diversos planos da regulação num dado sistema, parece útil recorrer à distinção feita por Lima (1991,3) entre o plano das orientações para a acção e o plano da acção, uma vez que, em coerência com a perspectiva construtivista adoptada, parto do

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postulado de que as orientações para a acção, com os seus valores e objectivos próprios, não são cumpridas tal e qual ou de igual modo por todos os destinatários, que na actualização concreta dessas orientações, as interpretam e recriam de acordo com os seus valores e objectivos específicos, os seus interesses estratégicos e em função das suas margens de poder. Transpondo para os modelos de avaliação do ensino superior a categorização feita por Lima (1998, 594 e seguintes) relativamente aos modelos organizacionais, irei considerar os modelos decretados, os interpretados, os recriados e os praticados. Segundo este autor, no plano das orientações para a acção, os modelos decretados ou orientados para a reprodução são os que se encontram formalizados, representando “um conjunto de orientações hieraquicamente produzidas e de textos injuntivos, no pressuposto de que os diversos níveis e agentes da administração os passarão a conhecer e a observar, isto é, que os passarão a reproduzir em conformidade com a sua letra e o seu espítrito” ( id., 595, sublinhados no texto). Quanto aos modelos interpretados ou de recepção são os “resultantes de processos de recontextualização [...] fortemente condicionados pelos contextos e pelos actores envolvidos” e que, mesmo quando respeitando as regras estabelecidas e orientados para a conformidade, acrescentam sempre algo aos modelos decretados (id., 596). Por seu lado, os modelos recriados ou orientados para a produção, traduzem-se “numa interpretação não conforme às regras formais estabelecidas, ao ponto de se produzirem novas regras” (id., 596). Finalmente, e porque todas estas regras formais podem ou não ser total ou parcialmente actualizadas no plano da acção, uma vez que essa formalização “nunca é senão a parte visível” da regulação efectiva (Friedberg, 1993, 151), importa ainda “focalizar as práticas” (Lima, 1998, 598), isto é, estudar também os modelos praticados, pois só estes permitem apreender “o conjunto das práticas, que nem sempre respeitam as prescrições” ditadas pelas estruturas formais (Friedberg, 1993, 145). Para efeitos do presente trabalho, considerarei os modelos interpretados e os recriados como partes integrantes dos modelos praticados, distinguindo apenas entre estes e os modelos formais. Com efeito, as práticas dizem respeito à acção local, e esta é determinada, em parte, pela “letra” das regras formais, mas também pela interpretação dessas regras (traduzidas muitas vezes em regras informais) e pela produção de regras formais locais, fazendo ambos estes tipos de regras parte integrante dessas práticas, enquanto orientação para a acção local. As formas como são produzidas, reproduzidas, interpretadas e aplicadas as regras que estabilizam um determinado sistema de acção social serão consideradas na perspectiva da teoria da regulação social formulada por Reynaud (1997). Esta teoria, que foi formulada a partir da análise das relações profissionais, tem sido considerada pertinente para a análise das organizações e dos sistemas sociais, em geral, (Maggi, 2003, 303) e começou recentemente a ser utilizada também em Educação, em vários países (Barroso, 2006, 15), existindo em Portugal diversos trabalhos que, embora não centrados nos processos de

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regulação1, apresentam contributos significativos para a compreensão desta questão (id., 16). A teoria da regulação afigura-se um instrumento conceptual especialmente adequado à compreensão do sistema de avaliação em causa, que considerei enquanto sistema de acção social. Para Reynaud, a estabilização de um sistema social passa pela resolução dos conflitos através de negociações traduzidas sobretudo na manutenção, modificação ou supressão de regras, tornando estas o objecto principal da acção dos actores (Reynaud, 1997, 13) e fazendo da regulação o processo de estruturação do sistema social (Maggi, 2003, 305). Segundo aquele autor, toda a acção social é, por definição, uma regulação e só pode ser compreendida no contexto em que se inscreve, na sua finalidade, na opção que selecciona entre várias possibilidades e no sentido que atribui a si própria (Reynaud, 2003, 400, 403). É esta a abordagem que desenvolverei na secção seguinte. 1.2 – A TEORIA DA REGULAÇÃO 1.2.1- O CONCEITO DE REGULAÇÃO O conceito de regulação é “particularmente complexo e polissémico” (Dupriez & Maroy, 1999, 12) e é utilizado em diversas acepções, no âmbito das ciências sociais como no de outras (Barroso, 2005, 64). Para efeitos do presente trabalho, ele será entendido como a actividade de produção de regras, na perspectiva de Reynaud (1997) ou, para usar a definição proposta, na linha de Reynaud, por Maroy e Dupriez (2000, 75) como “o processo de produção de regras e de orientação dos comportamentos dos actores num espaço social determinado”, sendo esta definição um bom ponto de partida para a compreensão do sistema de avaliação do ensino superior da música enquanto sistema multirregulador das políticas e das práticas nesse domínio. A regra é entendida por Reynaud num sentido amplo, como uma “capacidade real para regular interacções”, quer ela se apresente como uma injunção ou uma interdição que vise determinar de forma estrita um comportamento, quer tome a forma de um guia, de um modelo para orientar a acção, como acontece mais frequentemente (id., 75) As interaccções duradouras pelas quais um sistema se estabiliza assentam no reconhecimento mútuo dos actores enquanto tais e no seu consentimento para a acção recíproca, pelo que a participação desses actores numa actividade interactiva deste tipo compreende simultaneamente o exercício de um poder e a procura de uma legitimidade (Reynaud, 2003, 403). Por um lado, cada actor procura mobilizar todos os seus recursos, numa interacção que é uma troca, geralmente desigual e na qual o poder será tanto maior quanto maior for o número de fontes desse poder que o actor domina (poder como utilidade) ou o número de oportunidades que terá para se construir como actor, no 1 Refira-se, como excepção, o trabalho realizado por uma autora portuguesa, ainda que não em Portugal: Bettencourt, 2005

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decurso das interaccções (poder como identidade). Por outro lado, as interacções só perduram se os actores em situação aceitam, mesmo que de forma provisória, um quadro comum de regras, que os legitimem como actores dos jogos em curso, enquanto construtores/produtores individuais desse quadro, mas nos limites colectivamente construídos e impostos por este. Este quadro comum, sem o qual seria impossível “qualquer forma de troca” é definido pela corrente convencionalista como “convenção” e entendida como um “sistema de expectativas recíprocas entre as pessoas sobre os seus comportamentos” (Amblard et al., 1996, 73), podendo também ser considerado uma “convenção comum”, um conjunto de regras que é, em si próprio, constitutivo do actor social, na medida em que define a posição deste no jogo e as condições em que ele o pode jogar (Reynaud, 1988, 13). Estas regras constroem-se, assim, na intersecção entre os comportamentos individuais e formas institucionais globais (Gilly & Pecqueur, 2002, 397), devendo ser apreendidas simultaneamente como o resultado das acções individuais e como um quadro coercivo sobre os sujeitos (Reynaud, 1997, 61-63). Esta formulação permite evidenciar que a regra é não só o resultado de uma negociação, mas também a própria condição da negociação (Hatchuel, 2003, 292). Segundo Reynaud (2003,a),180) a negociação caracteriza-se (i) pelo carácter explícito da discussão das regras e (ii) pela conclusão de um acordo, traduzido na criação de um dispositivo, considerando este autor que a acção pública apresenta estas duas características. A acção pública é hoje dominada por um Estado caracterizado não tanto por relações de dominação mas, cada vez mais, por relações de troca e negociação entre instâncias diversificadas e situadas em diversos níveis, o que torna o modelo burocrático insuficiente para explicar as interaccções sociais em curso. A regulamentação racional-legal dominante do Estado, imposta hierarquicamente com base na sua legitimidade enquanto Estado-Providência, foi substituída pela necessária negociação a múltiplas “vozes”. A mobilização da noção de regulação permite, justamente, dar conta da pluralidade de actores em presença no que diz respeito a qualquer tipo de acção social pública onde, como foi desenvolvido no capítulo precedente, o Estado perdeu o monopólio da decisão. Ao paradigma da relação sujeito-objecto substitui-se, em matéria de política pública, o da interacção entre actores governantes (Lallement, 1997, 300) e, como assinala Hatchuel (2003, 293), Reynaud sublinha esta passagem duma sociedade dominada pela racionalização weberiana para uma sociedade de regulação, onde o estabelecimento de regras já não é “apanágio duma élite esclarecida ou o resultado de grandes revoluções populares”, sendo agora reservado ao Estado sobretudo o papel de organizar os locais, as condições e os limites duma regulação exigida pela crescente diversidade dos mundos em presença. O Estado é uma categoria singular, mas “entra numa lógica de facetas múltiplas em companhia de outras categorias com o mesmo estatuto lógico” (Delorme, 2002, 180). Neste contexto, a proposta de Reynaud no sentido de se alterar a perspectiva sociológica relativamente à fonte dos valores capazes de fundarem a unidade social pode

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revelar-se um instrumento de relevante valor heurístico para apreender os processos sociais em curso nos países ocidentais. Numa perspectiva tradicional, a Sociologia considerava que só valores comuns permitiam uma instituição comum, a unidade social. Reynaud propõe que se parta da pluralidade e da oposição dos actores sociais, substituindo a hipótese de uma consciência colectiva pelo compromisso, que estabiliza os pontos de encontro e as regras mutuamente admitidas, e colocando no lugar duma regulação geral da sociedade por valores sociais um conjunto “nem coerente, nem contínuo, de regulações conjunta pontuais, por actores sociais” (Reynaud, 1979, 371). A multiplicação crescente das “vozes” na acção social, que é um dado verificado nas últimas décadas obriga, pois, ao reconhecimento da diversidade dos valores e à necessidade de compreender os modos como essa acção se pode construir com o mínimo de estabilidade e coordenação, de forma a integrar vozes diversas e muitas vezes díspares numa “partitura polifónica” que garanta a “harmonia” suficiente para a composição da acção colectiva, através da criação de uma “zona de consenso” (id., 374). Para essa comprensão, na perspectiva de Hatchuel (2003), a noção de regra utilizada por Reynaud é adequada a um paradigma de decisão próprio dos “mundos de produção”, mas desajustado ao paradigma de “mundos de concepção”, tais como o da investigação e o das artes, os quais este autor considera “emblemáticos das nossas sociedades”, uma vez que a acção colectiva hodierna integra cada vez mais actividades de investigação e de criação artística, verificando-se, assim, nas sociedades contemporâneas, uma passagem de mundos de produção a mundos de concepção (id., 297). Este autor propõe, por isso, em substituição da noção de regra, os conceitos de “prescrição” e de “relação de prescrição”, como aqueles que se afiguram mais capazes de explicar os processos colectivos nos mundos de concepção. Considerando que a noção de regra, tal como é concebida por Reynaud, assenta nos princípios (i) de um colectivo de indivíduos implicados, (ii) de uma duração de referência (ainda que muitas vezes indeterminada) e (iii) da delimitação de espaços de referência para a acção, Hatchuel questiona se ela terá força explicativa num contexto em que o colectivo se torna indeterminado e em que as regras têm uma vida muito reduzida ou se tornam rapidamente obsoletas, propondo considerar a regra como uma das formas dum conceito mais geral que designa como “prescrição/relação de prescrição”. A noção de “prescrição” é definida como “todo o saber que nos vem de outrém e que se destina a ser tomado em conta na nossa acção” e a “relação de prescrição” como a natureza da relação que se forma entre o autor duma prescrição e o seu destinatário” (id., 295). Estas definições conduzem a considerar a regulação como “um caso particular da acção colectiva regeneradora de prescrições e de relações de prescrição” e permite, segundo o autor, uma melhor compreensão “das formas particulares de accção colectiva que são, paradoxalmente, pouco reguladas ao mesmo tempo que fortemente prescritas”, como o mundo das artes ou as comunidades científicas (id., 298). Nestes mundos, nos quais a acção visa criar “o inesperado” ou “ultrapassar velhas verdades” é difícil conformar a acção a regras, pelo que o domínio destas é reduzido, e

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mesmo as relações de prescrição só raramente são autoritárias. Nos mundos onde a regulação não é central, a noção de regra afigura-se restritiva enquanto instrumento para a compreensão duma acção colectiva caracterizada cada vez mais por actividades de concepção, relativamente às quais “a própria definição do trabalho enquanto actividade normatizada por regras” se aplica de forma cada vez mais desajustada, tornando difícil, por exemplo, uma gestão empresarial com base unicamente nas regras e nos procedimentos. Mesmo no mundo industrial, onde persistem formas de gestão “fayolianas”, é necessário misturar uma lógica de funcionamento pelas regras, respeitando a dinâmica de conformidade e a hierarquia, com uma lógica de aprendizagem colectiva imposta pela investigação e pela inovação, do que resulta que a actividade de concepção não é redutível a um processo de decisão. Não se trata apenas de fazer escolhas, mas também de “fazer emergir conceitos e formas, passar destas a dispositivos materiais e simbólicos e imaginar provas” (id., 298), num processo colectivo de “prescrição recíproca” em que cada indivíduo implicado é simultaneamente prescritor e prescrito numa relação de “trabalho cooperativo e conflitual sobre os objectos em elaboração” (id., 299). O contributo de Hatchuel pretende, assim, alargar o quadro teórico da regulação desenvolvido por Reynaud com base na noção de regra, substituindo este conceito pelo de “prescrição/relação de prescrição” que permitiria explicar formas de acção colectivas pouco reguladas. Embora me pareça que Hatchuel parte de uma definição de regra na obra de Reynaud demasiado restritiva, considerando-a apenas ou sobretudo como um dispositivo formalizado a que contrapõe a noção de prescrição, que poderá ser entendida também como uma regra (uma regra informal), a sua insistência na importância da regra informal no “mundo da concepção” onde se situa o presente estudo (o das artes) e a chamada de atenção para a passagem do paradigma do mundo da produção para o mundo da concepção na sociedades contemporâneas revelam-se de especial interesse para as questões da Educação, em geral, e em especial para as do ensino superior da música, designadamente quanto aos objectivos e à avaliação deste, embora nestes mundos não deixe de se verificar a pluralidade de fontes de regulação, num confronto onde estão presentes relações de poder imanentes à troca social que define as regras do jogo (Reynaud, 2003, b), 105). Como assinala Reynaud, em resposta a Hatchuel, a prescrição recíproca é um exercício de poder, pelo qual cada um tenta defender e impor aos outros a sua especialidade, afirmando o seu estatuto. Nem todas as relações de poder revestem a forma da subordinação (id., 105). No que diz respeito mais concretamente à acção pública em Educação, a noção de regulação remete, como assinalam Dutercq & Van Zanten (2001/2, 5), para as alterações nos modos de orientação, coordenação e controlo dos sistemas educativos, permitindo dar conta das tendências emergentes no domínio da acção pública, designadamente (i) a alteração do papel do Estado, que determina e é o resultado da (ii) pluralidade dos actores e das instâncias de decisão em presença e (iii) a diversidade das formas de intervenção.

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1.2.2 - REGULAÇÃO DE CONTROLO, REGULAÇÃO AUTÓNOMA, REGULAÇÃO CONJUNTA A pluralidade de actores em interacção nos sistemas sociais implica a construção de estratégias colectivas, num jogo que é balizado por regras que Reynaud distingue em regras de controlo e regras de autonomia. À dicotomia tradicional sistema formal- sistema informal este autor prefere as noções de regulação de controlo e de regulação autónoma. Estaremos perante a primeira sempre que um indivíduo ou um grupo tem capacidade para intervir sobre a actividade dum outro grupo, isto é, sempre que se verifica uma situação de poder exterior a um grupo, a qual é pertinente para a regulação desse grupo (Reynaud, 1988, 11;1997, 111) A regulação autónoma verifica-se quando, no interior duma organização ou dum sistema, um grupo tem oportunidade para uma regulação comum, que lhe permite constituir-se como comunidade e reivindicar uma autonomia (id., 111). Como assinala Reynaud relativamente às relações profissionais, pode dizer-se que também na ordem social, em geral, o sistema de relações hierarquizado foi substituído por um sistema com diversos níveis de iniciativas autónomas e dessa multiplicação de inciativas normativas resulta um bricolage institucional (2003, 242) construído, em cada situação, a partir da participação dos diversos grupos implicados. A repartição de poderes entre esses diversos grupos não se faz, geralmente, de forma pacífica, o que obriga a negociações entre as partes e ao estabelecimento de acordos e convenções. Estes dispositivos são o resultado daquilo a que Reynaud chama a regulação conjunta (id., 118). As regras vigentes num determinado momento em determinado sistema social (as “regras efectivas”, na terminologia do autor, 1991, 17) são, assim, as que resultam do “concurso” ou da “concorrência” entre as regulações oriundas das diferentes fontes de regulação em presença e nos processos de negociação conducentes à criação dessas regras ocorre uma aprendizagem colectiva (id., 98) pela construção, em comum, de sentido, sem a qual não é possível legitimar essas regras, isto é, fazê-las aceitar pelos diversos grupos em presença e garantir a estabilidade social. Este compromisso entre o controlo e a autonomia está na origem das regulações “reais”, muitas vezes instáveis e na qual os modos e o peso da participação variam segundo as fases da decisão conjunta (Reynaud, 1988, 17). Paradeise (2003, 43) acentua a distinção entre o “conjunto” e o “comum” neste tipo de regulação: o conjunto é necessariamente comum, mas o contrário pode não se verificar, pois uma regulação de controlo pode exercer-se numa situação comum sem resultar de uma construção conjunta da regulação. Se esta é sempre uma regulação de controlo, o mesmo não acontece com a regulação de controlo, que pode não ser conjunta, o que leva a autora a perfilhar a perspectiva de Yves Lichtenberger, reservando o termo “conjunto” para a co-construção de super-regras entre actores antagónicos e utilizando o termo de regulação de controlo “comum” no que se refere à concorrência das regulações.

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O conjunto destas interacções reguladas pode ser visto como um sistema aberto e contingente, sujeito a constantes transformações, construções e destruições e é, ele próprio, constitutivo do jogo social em que participam os actores, fixando as condições necessárias para que eles participem ou sejam excluídos dum determinado sistema social (id., 21). Os recursos de poder de cada uma das partes envolvidas podem ser, e são na maior parte dos casos, desiguais e assimétricos (Reynaud, 1997, 112), variando em função das formas de regulação dominantes. 1.2.3 – FORMAS DE REGULAÇÃO EM EDUCAÇÃO A multiplicidade dos actores e das vozes na acção social obriga a reconhecer a necessidade de pensar as formas de coordenação e regulação dessa acção para além da trilogia “clássica”: Estado, mercado e hierarquias. Hollingsworth & Boyer (Boyer, 2002, 539), situando-se na perspectiva das relações económicas, propõem uma taxonomia onde, para além do Estado e do mercado, introduzem quatro outras formas de coordenação: as alianças, as hierarquias privadas, as comunidades e as redes. Por alianças os autores entendem um modo de governo ( no sentido do termo inglês governance) sustentado pelo acordo entre as partes e que opera num registo económico, tal como o mercado. As alianças visam, sobretudo, partilhar as incertezas ligadas às mudanças. As hierarquias privadas (por exemplo, as grandes firmas integradas verticalmente) desempenham um papel crescente, podendo optimizar custos e favorecer a inovação. As comunidades agregam “comunas, clãs, distritos ou clubes” e actuam com base na adesão dos actores a regras de jogo válidas ao nível de grupos de pequena dimensão, assentes na confiança. As redes correspondem a associações profissionais, sindicatos e outros espaços privados constituídos a partir do desmembramento do Estado em domínios de actividade que tradicionalmente lhe competiam, podendo ser também construídas no espaço das relações sociais, como a família ou o grupo. Segundo os autores, esta taxonomia permite ultrapassar a visão dicotómica Estado/mercado, a qual é fundamentada quer (i) nos motivos da acção, que seriam, numa perspectiva económica, o interesse individual e, numa perspectiva sociológica, o sentimento de obrigação, quer (ii) no carácter horizontal e igualitário vs. uma componente hierárquica e desigual do processo de coordenação. Embora, como se disse, esta tipologia tenha sido construída para pensar a coordenação no mundo económico, ela pode ser aplicada ao mundo da Educação (Dupriez & Maroy, 1999). Dupriez (2004, 7, 8) propõe uma adaptação da taxonomia de Hollingsworth & Boyer às formas de coordenação no sistema educativo, distinguindo, por um lado, a coordenação por imposição e a coordenação por implicação e, por outro, uma lógica estratégica, com base nos interesses e uma lógica de integração, com base nas normas e nos valores. A escola poderá, assim, ser considerada como o locus onde se cruzam as acções: (i) do Estado, autoridade pública legitimada pelo escrutínio, que pode definir e impor o que

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“parece corresponder ao interesse geral”, geralmente através da lei (coordenação por imposição/lógica estratégica); (ii) do estabelecimento, enquanto organização hierárquica (coordenação por imposição/lógica estratégica); (iii) do mercado (ou quase-mercado escolar) como sistema de relações entre a oferta e a procura (coordenação por implicação/lógica estratégica); (iv) das associações, que remetem para uma participação voluntária visando construir ou defender um interesse comum (coordenação mista/lógica da integração); (v) da comunidade educativa, enquanto sistema de identificação com uma cultura comum (coordenação por implicação/lógica de integração). As duas formas de coordenação, bem como as lógicas referidas, estão presentes em graus diversos nos vários sistemas educativos, numa “montagem compósita” onde são determinantes os poderes organizados e os actores locais (id., 9). Ainda no que respeita à aplicação do conceito de regulação no domínio da Educação e mais especificamente aos processos de estruturação e coordenação das políticas e das práticas educacionais, Barroso (2005, 67) propõe uma dupla distinção das formas de regulação, em função da sua origem e em função das suas modalidades. No primeiro caso, o autor distingue três níveis de regulação (transnacional, nacional e local), identificando três grandes tendências, evidenciadas em diversos estudos de educação comparada e que são : (i) o aumento da regulação transnacional; (ii) o hibridismo da regulação nacional e (iii) a fragmentação da regulação local, quer a intermédia, quer a que ocorre entre escolas, quer a que se verifica no interior de cada escola. A regulação transnacional resulta não só da inserção dos Estados em instâncias supra- nacionais, como a União Europeia, por exemplo, mas também de orientações e recomendações subjacentes aos programas de apoio, cooperação e desenvolvimento de diversos organismos internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a OCDE, o Conselho da Europa, etc., que regulamentam indirectamente os sistemas educativos por via das regras de financiamento que asseguram se e quando essas recomendações/imposições forem seguidas. Mesmo quando não têm poderes executivos directos ou quando os têm de forma subsidiária relativamente aos Estados nacionais – como é o caso da União Europeia em matéria de Educação - o domínio sobre avultados recursos financeiros permite a estas instâncias regular os sistemas educativos, determinando as condições que devem ser cumpridas para a sua afectação, as quais são definidas numa perspectiva global que “universaliza as políticas e apaga as diferenças entre países e regiões”, negando “a capacidade de as tradições locais, as instituições e os valores culturais mediarem, negociarem, reinterpretarem e transformarem o modelo dominante de globalização” (Olssen & Peters, 2005, 330). Daqui decorrem “modelos de pronto-a-vestir” utilizados pelos especialistas nacionais quando são chamados a propor soluções, num processo de recurso às referências internacionais designado por alguns autores como “educational policy borrowing”, e que está em crescendo por efeitos da internacionalização das instâncias de decisão política e

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pela importância cada vez maior das agências internacionais, dominadas pelos ‘países centrais’, nos programas destinados aos países ‘periféricos’(Barroso, 2005, 68, 69). O recurso a modelos externos tem uma tripla função: (i) a de “justificação (de valores e ideologias)”; (ii) a “de auto-legitimação (dos estudos educacionais enquanto campo académico)”; e (iii) a “de imputação (dos fracassos das reformas)” (Schriewer, cit. por Barroso, 2005, 68, 69), o que justifica a crescente “ ‘contaminação’ internacional de conceitos, políticas e medidas, postas em prática, em diferentes países, à escala mundial”(id., 69). A regulação nacional, que diz respeito ao modo como as autoridades públicas de cada país exercem a orientação e o controlo dos diferentes sistemas sociais (actores, acções e resultados), é o produto “de diferentes lógicas, discursos e práticas na definição e acção políticas”, numa composição híbrida, que realça o seu carácter “ambíguo e compósito” (Barroso, 2005, 69). Este carácter demonstra que a recepção, por cada país (e designadamente pelos países periféricos), dos modelos concebidos pelos países centrais ou pelas instâncias supra-nacionais não é tão acrítico e automático como estes eventualmente desejariam, sendo traduzidos em função dos contextos de acção e das lógicas dos diferentes grupos de actores a nível nacional e, por outro lado, evidencia que no mesmo país podem coexistir modos de regulação baseados em modelos diferentes, com preponderância actualmente dos modelos do quase-mercado e do Estado Avaliador, que se combinam em doses diferentes em cada país, conforme o seu contexto institucional específico (Maroy, 2005, 21). A regulação local diz respeito ao modo como, num determinado campo, a acção é coordenada, sendo esse processo determinado pelas lógicas e estratégias dos diferentes grupos em presença, quer a nível local (dentro da organização ou sistema e entre organizações e sistemas em interdependência) quer a nível vertical (relações hierárquicas). Esta capacidade de produção local de normas pode dar origem a efeitos “mosaico” no interior dos sistemas sociais (e designadamente nos sistemas educativos nacionais) que contribuem para reforçar a sua diversidade, mas também a sua desigualdade, tornando necessário encontrar soluções para que esses espaços de regulação autónoma sejam integrados de forma a dar coerência nacional e sentido colectivo às decisões localmente tomadas (Barroso, 2005, 71). Quanto às diversas modalidades que a regulação em Educação pode assumir, Barroso (id., 73) identifica três, resultantes das transformações das relações entre o Estado, os professores e os pais dos alunos e dos papéis que cada um destes actores vem desempenhando nessas relações. A primeira dessa modalidade é a regulação burocrático-profissional, onde o Estado assume o principal protagonismo, com maior ou menor peso e em articulação privilegiada com os docentes. O papel destes tem-se tornado mais ambíguo, situando-se, conforme os casos, ao longo daquilo a que se poderia chamar um continuum de estatuto profissional, cujos extremos seriam o funcionário e o profissional. Esta aliança entre o

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Estado e os professores reforçou as características das escolas como organizações profissionais, na terminologia de Mintzberg (id., 75). A segunda modalidade é a regulação pelo mercado, na qual o Estado privilegia a relação com os pais, tendendo a acção destes a variar “entre a dependência do ‘súbdito’, o individualismo do ‘cliente’, a confiança do ‘consumidor’ e o interesse colectivo do ‘cidadão’” (id., 72). A terceira modalidade é a regulação comunitária, cujos principais protagonistas são os professores e os pais, assistindo-se a uma menor intervenção estatal. Este modo de regulação pode privilegiar uma dimensão sobretudo cívica, numa perspectiva política e de integração social ou uma dimensão mais corporativa, visando a defesa de intereses de um grupo ou de uma classe (id., 77). O autor sublinha que, na prática, em cada um destes modos de regulação se verifica uma aliança bipolar, da qual resulta um terceiro excluído: no primeiro caso, os pais, no segundo os professores e no terceiro o Estado (id., 73). As evoluções nos modos de regulação da acção em matéria de Educação, bem como as formas que assumem actualmente nos diversos países ocidentais decorrem do contexto político e económico já referido no capítulo anterior, designadamente da crise de legitimidade do Estado- Providência e da crise económica que favoreceu a emergência das teorias neo-liberais e as consequentes preocupações com a eficiência e com a eficácia das instituições escolares. Neste contexto, Maroy (2005) conclui, a partir dos estudos sobre o ensino secundário efectuados em cinco países europeus no âmbito do projecto Reguleducnetwork (2004), que as formas de regulação hoje dominantes em Educação, desenvolvidas a partir do modelo burocrático-profissional, são a do Estado Avaliador e a do “quase-mercado”. No primeiro caso, o Estado define centralmente os grandes objectivos do sistema e deixa a gestão corrente nas mãos de unidades locais às quais é atribuída uma maior autonomia, gestão essa controlada por avaliações externas que têm como atribuição verificar se os resultados desejados foram atingidos. No segundo caso, o Estado também não desaparece, competindo-lhe definir os grandes objectivos e o conteúdo do currículo pegagógico (no ensino não superior) , mas alargando as possibilidades de livre escolha da escola pelos pais e atribuindo um financiamento às escolas baseado no número de alunos inscritos. As escolas ficam, assim, situadas num mercado em que competem por alunos e no qual são escrutinadas através de agências especializadas, que fornecem informações aos “clientes” sobre o desempenho de cada uma, com vista a facilitar a escolha. (id., 10, 11). A predominância actual destes dois modelos não exclui a existência de outros, como o modelo comunitário, que critica o intervencionismo excessivo do Estado, bem como a lógica de mercado, fundada na satisfação do interesse individual à custa do interesse social, constituindo-se assim este modelo como uma “terceira via” relativamente a estas

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duas instituições (Barroso, 2005, 78), a qual assenta no sentimento de pertença a um grupo que partilha valores, crenças e interesses. O modelo comunitário fundamenta uma regulação sócio-comunitária onde o nível local ganha protagonismo, e que, em Educação, põe a escola no centro da acção, tornando-a o espaço a partir do qual os diversos actores implicados (Estado/Administração, professores, alunos e famílias) constroem as regras do agir colectivo. A diversidade, acima assinalada, de fontes e modos de regulação impede que a regulação dos sistemas sociais possa ser vista como um conjunto de princípios, orientações e normas emanadas de um único actor: o Estado. Embora não deixe de ter um papel determinante na definição das regras e condições para as diversas regulações, (num papel de metaregulação) o Estado é um actor entre outros e esta nova repartição de poderes e de capacidades de intervenção está na origem do conceito de governação2, conceito que se presta a várias interpretações mas que pretende dar conta desta multiplicidade de intervenientes em processos outrora dominados pelo Estado (governação vs. governo). Sendo, pois, na interacção de uma diversidade de actores e dos ajustamentos constantes entre os vários dispositivos reguladores que se constrói a regulação, esta será melhor definida como uma multirregulação (Barroso, 2006, 59, 64), onde se cruzam as diferentes lógicas dos mundos em presença. 1.3 – OS “MUNDOS” EM PRESENÇA NO SISTEMA DE ACÇÃO SOCIAL MUSICAL A abordagem do sistema de acção social musical foi feita, no presente trabalho, a partir do conceito de “mundo” (Boltansky & Thévenot, 1991) com vista à descrição, análise e interpretação dos seis “mundos” que parecem mais pertinentes para o objectivo do presente trabalho, a saber, o “mundo cívico” e o “mundo industrial” (id., 231) do sistema político (o quadro jurídico-administrativo aplicável), o “mundo da inspiração” (id., 200) do sistema de formação (as organizações de ensino superior da música) e o “mundo da “opinião” (id., 222), o “mundo comercial” (id., 252) e o “mundo por projectos” (Boltanski & Chiapello, 1999, 158) que se cruzam no sistema de produção (o mercado de trabalho). Na sua tentativa de modelizar as situações sociais, Boltanski & Thévenot tipificam seis “mundos”, formas ideais que consistem em sistemas de equivalências ou significados partilhados que permitem às pessoas que a eles pertencem “encontrar referências (objectos, indivíduos, relações) que vão guiar as suas relações em situação, fornecer-lhes elementos para a caracterização desta”, sendo a partir desta representação/justificação das pessoas que é possível compreender as situações (Amblard et al., 1996, 78). Posteriormente, Boltanski & Chiapello (1999) identificaram mais um “mundo”, que

2 A tradução do termo inglês “governance” não tem ainda uma forma estabilizada em Português (Barroso, 2006, 61), sendo indiferentemente utilizados os termos governação ou governança.

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consideram actualmente em formação e que não é subsumível em nenhum dos anteriores: o “mundo” ou “cidade por projectos”. Como ideais-tipo, os diversos “mundos” (o da inspiração, o doméstico, o da opinião, o cívico, o mercantil, o industrial e o mundo por projectos) não se encontram, na sua forma pura, na realidade social, mas parecendo-me uma ferramenta útil para a compreensão das lógicas de orientação para a acção e para a própria acção, descreverei sumariamente as características que os citados autores atribuem àqueles que acima referi como pertinentes no contexto deste estudo e que me parecem dominantes em cada um dos sistemas a considerar, como oportunamente justificarei. O “mundo cívico” é aquele em que a predominância é dada não às pessoas humanas mas “às pessoas colectivas que elas compõem pela sua reunião” (Boltanski & Thévenot, 1991, 231). Esta dimensão colectiva determina nos indivíduos uma consciência colectiva que os leva a “subordinar a sua vontade própria à vontade geral” (id., 231)3, permitindo-lhes participar duma verdadeira acção colectiva, que é mais do que uma simples justaposição de iniciativas individuais (id., 232). Esta acção colectiva desenvolve-se no espaço público, através dos “seres grandes ” que são, neste mundo, as “massas” e os “colectivos”, as quais actuam através dos seus representantes. Estes beneficiam de um mandato que os autoriza a exprimirem-se enquanto porta-vozes dos outros, tendo por missão traduzir as aspirações das massas (id., 238). É um mundo que “não pode desenvolver-se fora de um Estado” e cujas formas mais perfeitas são “a República e [...] a democracia, que garantem a representação dos cidadãos reunidos em corpo eleitoral” (id., 239), sendo a lei a forma de evidência reconhecida neste mundo, enquanto expressão da vontade geral patente em “textos que podem ser invocados e em regras jurídicas susceptíveis de serem aplicadas” (id., 240). No “mundo industrial” predominam “a eficácia dos seres, o seu desempenho, a sua produtividade, a sua capacidade de assegurar uma função normal, de responder utilmente às necessidades” (id., 254). Neste mundo, os seres são “grandes” se forem “funcionais, operacionais ou profissionais” e a eficácia inscreve-se “numa ligação regular entre causa e efeito” (id., 254). A acção colectiva, no mundo industrial, “apresenta-se como uma tarefa de produção” na qual é mobilizada “uma panóplia de utensílios, de organizações, de métodos, de metodologias...”integrados “num mesmo plano homogéneo, regulamentado por eixos, linhas directivas, dimensões, graus, níveis” e cuja articulação “supõe uma capacidade de definição armada com uma medida”. Os instrumentos de medida “estandardizam ao produzir, a partir de uma definição e de uma pesquisa, objectos em boa e devida forma cuja função pode ser apreendida por critérios ou características” (id., 256, 257).

3 Nas citações desta obra, as palavras em “itálico” correspondem a palavras em “itálico”, no original, que são, por sua vez, extraídas do corpus dos manuais examinados pelos autores (segundo nota da página 200). Tal como estes autores pretenderam assinalar expressamente as palavras-chave/conceitos que estão na base dos mundos que construíram, também aqui se optou o mais possível pela citação directa da obra, de forma a permitir ao leitor, para além das considerações feitas pela autora do presente trabalho, identificar e reconhecer os ditos conceitos e expressões nos discursos dos actantes e dos actores dos sistemas em análise.

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A adaptação ao meio ambiente é um factor de eficácia, de acordo com a lógica industrial, e para garantir essa eficácia “O programa geral é adaptado a cada terreno particular e todas as suas fases são redefinidas em função das características próprias desse terreno, sendo mantida a trama geral”, tornando-se necessária “uma visão correcta deste espaço em que se inscreve o problema, de forma a detectar, descobrir, identificar, evidenciar, medir, analisar, decompor os elementos pertinentes” (id., 260). Os resultados da acção são apreendidos pelos traços que deixam neste espaço, codificados por “operações de estandardização, de formalização” e “numerados, aptos a serem tratados, acumulados, adicionados” (id., 260), de forma a avaliar os desempenhos a partir dos “efeitos provocados”. A harmonia, no mundo industrial, “exprime-se na organização de um sistema, de uma estrutura na qual cada ser tem a sua função, em resumo, de um ‘universo tecnicamente previsível’ “ (id., 261). O “mundo da inspiração” privilegia a singularidade: o estado de “grande” é atribuído àqueles que “sabem reconhecer e acolher o que é misterioso, imaginativo, original, indizível, que não se pode nomear, etéreo ou invisível e que estão à vontade nas situações informais” (id., 201). É grande “o que se subtrai à autoridade e, particularmente, o que escapa à medida, sobretudo nas suas formas industriais [...], à razão, à determinação, às certezas da técnica” e que “se afasta do comum das coisas para ‘tomar atitudes bizarras’ ”(id., 201). Neste mundo – ao qual pertencem as crianças, as mulheres, os ingénuos, os loucos, os poetas, os artistas (id., 201) – o acesso à “grandeza inspirada” implica a rejeição de “formas de estabilização” presentes noutros mundos, sendo necessário “ ‘fugir ao hábito e à rotina’, ‘aceitar correr riscos’, rejeitar [...] as normas, os princípios sacro-santos’, ‘abandonar uma atitude mental racional’” (id., 202,203). Não basta, porém, toda esta renúncia para se atingir a “grandeza”, que é sempre “‘uma sequência de acasos singulares’” e que exige “a humildade que permite ‘ultrapassar a orgulhosa segurança do especialista’”: é preciso passar por muitas derrotas e recomeçar inúmeras vezes (id., 203). Na sua singularidade, o ser inspirado compreende os outros seres, “englobando-os e realizando-os”, não por representar o que têm todos em comum, mas ao afirmar a sua singularidade, sendo através “daquilo que têm de mais original e de mais singular, quer dizer, pelo seu próprio génio, que se dão aos outros e servem o bem comum” (id., 203). O caminho para a inspiração é “um caminho mal definido” e segui-lo é “encontrar as suas próprias vias”, que conduzirão “à experiência de estados particulares” (id., 205). Assim, “os conhecimentos adquiridos através da educação, a rotina escolar ou o hábito familiar tornam-se [...] obstáculos àquilo que leva ao estado de grandeza: o encantamento ou o entusiasmo” e o mundo desfaz-se quando “a tentação do regresso à terra leva a melhor sobre o voo” (id., 206) No “mundo da opinião” ou do renome a celebridade faz a grandeza, sendo os seres “grandes” na medida em que “se distinguem, são visíveis, célebres, reconhecidos, reputados (‘desbanalizados’) (id., 223). O acesso ao estado de “grande” faz-se através da opinião e esta pode ser formada a partir quer da personalidade das pessoas, quer de

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actividades desenvolvidas por porta-vozes “encarregados de valorizar a grandeza do renome” (como os líderes de opinião, os jornalistas, os propagandistas, etc.) quer de objectos ( como uma marca, uma etiqueta) e a extensão do renome implica uma comunicação alargada da opinião de cada um. Isto é conseguido através de um dispositivo que comporta um “emissor, um receptor e um medium, intermediário encarregado de veicular a mensagem ao público visado” (id., 225). Os “grandes” deste mundo têm que renunciar ao “secreto”, porque “existe uma verdadeira alergia do secreto por parte dos públicos” (id., 226), que exigem que tudo, sobre as vedetas que admiram, lhes seja revelado. Esta relação que se estabelece entre os “seres grandes” do mundo da opinião e os seus públicos exprime-se em termos de influência, a qual consiste em “agarrar, atrair, despertar, arrastar a adesão ou um movimento de opinião, persuadir, tocar, sensibilizar, mobilizar o interesse, informar, seduzir” (id., 227). A opinião torna-se uma moda, “circula como um rumor num aparelho de comunicação” e tem efeitos de valorização por contaminação: “Basta que uma empresa consiga convidar personalidades [...] vedetas, para que toda a notoriedade destas personalidades se reflicta na empresa” (id., 227). Neste mundo, “onde tudo o que tem valor é imediatamente conhecido e visível” (id., 227), as comparações são constantes, criando-se redes que fazem circular as informações e as opiniões, redes essas que podem alimentar ou destruir reputações. Nó importante nessa rede é o público que, nesta perspectiva, desempenha simultâneamente dois papéis, o de espectador e o de actor: o primeiro enquanto receptor duma mensagem à qual adere, fica indiferente ou que rejeita e o segundo quando transmite a outros a informação e a sua opinião (id., 228). Por outro lado, a reputação constrói-se pela visibilidade, pela “apresentação ‘aos olhos do público’, que se deve revestir de um “ambiente, clima, atmosfera” que permita “criar um acontecimento” (id., 229), tornar esse momento de exposição pública (seja ele uma manifestação artística, uma conferência, uma inauguração) numa ocasião privilegiada que permita que os seres deste mundo acedam à “grandeza”, sob os olhares dos outros, nas melhores condições. No mundo da opinião é evidente o que é conhecido e ser “pequeno” é ser “banal [...] ter uma imagem fluida, deteriorada, esbatida, perdida; estar esquecido, escondido, ‘confrontar-se com a indiferença ou a oposição, numa palavra, desaparecer’” (id., 230). No “mundo comercial” o princípio de coordenação é a concorrência, com os “indivíduos a procurar satisfazer desejos, sendo sucessivamente clientes, concorrentes, compradores ou vendedores, estabelecendo uns com os outros relações de homens de negócios” (id., 244, 247). Um negócio é composto por “pelo menos dois indivíduos e por um objecto de que eles negociam a compra e a venda” e esta transacção supõe que “as pessoas tenham um distanciamento suficiente e que o objecto seja suficientemente distante para permitir o jogo da concorrência com os outros” (id., 250). No mundo comercial as pessoas estão “desligadas umas das outras [...] libertas, de forma a sujeitarem-se de bom grado a toda e qualquer oportunidade de transacção,

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estando os sujeitos “tão disponíveis no mercado como os bens” (id., 248). Neste mundo, as acções são “movidas pelos desejos dos indivíduos, que os levam a possuir os mesmos objectos, bens raros cuja propriedade é alienável” (id., 244). O “mundo por projectos” é definido como uma extensão, à organização geral da sociedade de hoje, da organização por projectos, a qual “evoca uma empresa cuja estrutura é constituída por múltiplos projectos que associam pessoas variadas, das quais muitas participam em diversos projectos” (Boltanski & Chiapello, 1999, 158). Segundo estes autores, “a vida social já não se apresenta sob a forma de uma série de direitos e deveres para com uma comunidade familiar alargada, como no mundo doméstico, nem sob a do salariado no seio de um conjunto hierárquico cujos degraus se vão subindo, onde se realiza toda a carreira e no qual a actividade profissional está claramente separada do domínio privado, como num mundo industrial”(id., 156). Presentemente, a vida social reveste a forma reticular, na qual se verifica uma multiplicação de conexões temporárias, “mas reactiváveis” entre grupos diversos, operando a distâncias sociais, profissionais, geográficas e culturais que podem ser muito amplas (id., 157). O mundo por projectos é caracterizado como um sistema de constrangimentos que pesa sobre um mundo em rede, o qual “só incita a tecer laços e a estender ramificações” se e quando estes forem justificados pelos projectos (id., 161). No “mundo por projectos” o princípio superior comum é a actividade, a qual visa gerar projectos ou integrar projectos da iniciativa de outrém, de forma a evitar o isolamento e a multiplicar as oportunidades de encontro com pessoas que poderão, por sua vez, proporcionar nova ocasião de gerar outro projecto: a sucessão de projectos multiplica as conexões, permitindo a extensão da rede (id., 166, 167). No mundo actual, aquele que não tem um projecto ou não explora as redes está excluído e não conseguirá “o desenvolvimento de si próprio e da sua empregabilidade”, que é “o projecto pessaol a longo prazo que está subjacente a todos os outros” (id., 168). Os “grandes” deste mundo são aqueles que sabem empenhar-se num projecto, ao mesmo tempo que são capazes de se libertar dele, uma vez que, por definição, os projectos são temporários e é necessário estar permanentemente disponível para novas ligações, novos empenhamentos, mostrando flexibilidade e capacidade de mobilidade e de polivalência. A mediação é uma “grandeza” em si, enquanto actividade desenvolvida por um actor que sabe estabelecer relações, criar laços e tecer redes (id., 162). O “grande” é activo e autónomo, capaz de optimizar o seu bem mais precioso- o tempo -, de forma a seleccionar os seus contactos e as suas fontes de informação. Neste mundo em rede, “o capital social e do capital de informação estão correlacionados” (id., 170) e o estado de “grande” define-se também pela capacidade de mobilizar os outros, de os implicar em projectos “ao serviço do bem comum” (id., 172), não numa perspectiva de chefe hierárquico, mas enquanto líder carismático cuja visão suscita entusiasmo e adesão, um mediador que “desempenha um papel activo na

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expansão e animação das redes” e que pode revestir as formas de “gestor intuitivo”, de treinador ou de especialista, neste último caso porque a sua competência é feita de saberes não estandardizados, mas de conhecimentos pessoais e incorporados (id., 173, 174). Para a manutenção do mundo em projectos, que serve o bem comum, é necessário que ele não se feche em si mesmo, restringindo-se ao serviço de apenas alguns, muitas vezes sob a forma de redes de privilégios, de burocracia ou de corrupção (id., 180, 181). O grande mediador da “cidade por projectos” deve manter-se constantemente activo na procura de novos contactos, fazendo circular a informação pertinente entre os membros da rede e alargando esta, “para conservar uma vantagem comparativa da qual depende a sua grandeza” (id., 180). Os modos de regulação das relações no interior e entre os diversos mundos acima sumariamente descritos podem assumir várias formas, distinguindo os convencionalistas (Amblard et al.,94) três instrumentos para resolver os conflitos que surgem num mesmo mundo ou entre mundos informados por lógicas diferentes, conforme a resolução é encontrada no interior dum mundo ou obriga a negociações entre mundos diferentes. No primeiro caso, a negociação mobiliza apenas os princípios de um único mundo, ao qual pertencem todos os implicados, chegando-se a uma solução que tem por base os recursos simbólicos comuns desse mundo. No caso de confronto entre dois mundos diferentes, estaremos perante um “arranjo” se os actores permanecem nos seus mundos próprios, mas são capazes de negociar um entendimento sobre uma questão local, ainda que provisório e muito dependente das pessoas envolvidas ou das contingências da situação (id., 96). No caso de controvérsias entre mundos diferentes que são resolvidas através de acordos mais duradouros, estaremos perante um compromisso, o qual “visa um bem comum que ultrapassa as ‘grandezas’ em presença” (id., 97). 1.4– O SISTEMA DE AVALIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR DE MÚSICA COMO SISTEMA “POLIFÓNICO” DE REGULAÇÃO De acordo com as perspectivas teóricas acima sumariamente descritas, e sem perder de vista a centralidade da instituição de ensino superior de música – locus onde pude apreender as lógicas em acção nos vários sistemas a considerar - irei abordar a avaliação do ensino superior de música enquanto sistema de multirregulação das políticas e das práticas deste ensino, na intersecção de três sistemas, cada um organizado e actualizado segundo as suas lógicas próprias (fundamentadas nos princípios dos seus “mundos”), mobilizando recursos materiais e simbólicos que utiliza estrategicamente, de forma mais ou menos directa, na manutenção ou no alargamento das suas respectivas margens de poder, resultando das interacções desses três mundos um “concerto polifónico” onde as diferentes “vozes” se fazem ouvir com intensidades diversas.

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FIGURA 1 - MODELO DE ANÁLISE DO SISTEMA DE AVALIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR DE MÚSICA

AVALIAÇÃO Modelos formais Modelos praticados

Sistema Politico-Administrativo

Sistema de Produção Artística/Musical

Sistema de Formação

O primeiro sistema a considerar é o sistema político-administrativo, consubstanciado nos modelos formais decretados nos três países em análise e onde se reflectem, de forma mais ou menos explícita, os princípios desse “mundo”, as orientações para a acção formuladas pelos poderes públicos como quadro balizador dessa acção. O sistema político - administrativo será analisado não só enquanto instância de regulação central obedecendo a determinadas lógicas de legitimação do Estado-Providência em crise mas também na perspectiva de que as regras globalmente impostas, numa lógica cívica, não às pessoas humanas, mas “às pessoas colectivas que elas compõem pela sua reunião” (Boltanski & Thévenot, 1991, 231) são “actantes” (Amblard et al., 1996) que estruturam a acção nas organizações, acção essa cujo estudo permite averiguar “em que medida [...] o seu [das regras] impacte é filtrado, inflectido, até mesmo anulado pelas regulações locais produzidas pelo construído político que mediatiza e torna possível a cooperação concreta dos actores em torno de um problema igualmente concreto” (Friedberg, 1993, 178) – no caso vertente, a avaliação. Sede máxima da regulação de controlo, o sistema político-administrativo não deixa de ser também o resultado da regulação conjunta entre a Administração e os administrados, na medida em que, como se viu, o Estado é agora um entre vários outros, sendo obrigado a ter em consideração, ainda que muitas vezes nos limites mínimos, os seus parceiros na acção social. O segundo sistema é o da produção artística/musical, enquanto “mundo” que determina e é determinado pelo sistema de formação. Se a interacção entre os mundos da produção

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e da formação se verifica ou deve verificar em quase todas as áreas do ensino superior - sendo essa uma das recomendações mais constantes das políticas actuais - na área da Música e das Artes, em geral, ela reveste-se de características especiais, determinadas pela “natureza” do trabalho artístico/musical, conforme procurarei demonstrar, com consequências relevantes do ponto de vista da avaliação do ensino superior da Música. O sistema de produção artístico-musical será analisado como um sistema de mediações, onde se cruzam a lógica da inspiração, a lógica do renome e a lógica de projecto dos criadores/“produtores” e as diversas lógicas dos mediadores em acção e dos públicos destinatários/consumidores da obra artística. Enquanto “produtores” duma obra os artistas necessitam de uma série de mediadores que a ajudem a alcançar o(s) seu(s) público(s), os “consumidores”, uma vez que “o consumo completa a produção e “no limite, a obra não existe, a obra acontece em cada interacção com o receptor” (Monteiro, 1992, 79, 80). Esta perspectiva construtivista é especialmente pertinente no que diz respeito ao espectáculo ao vivo, “que não está completo senão no momento da sua recepção” (Guy, 1992, 92) e muito particularmente no que se refere à Música, “essa arte de mediadores obrigatórios” (Hennion, 1992, 117), porque “a música como objecto é invisível [...] e é o cortejo das mediações que, pelo contrário, está omnipresente” (id., 118). Esse “cortejo de mediações” compreende actantes diversos, de que se podem citar o palco (ou espaço de apresentação/representação), o instrumento, a partitura e a gravação (id., 131), bem como um conjunto de entidades e organizações: agentes, produtores, programadores, críticos, animadores musicais, jornalistas, mecenas individuais e institucionais, organizações artísticas e culturais tais como orquestras, companhias de ópera, teatros, centros culturais e ainda o Estado e as colectividades locais. As configurações actuais do “mundo” da produção artística/musical e o modo como funciona o referido “cortejo de mediações” foram analisados no presente estudo, com o intuito de permitir compreender se e em que medida esse sistema é tido em conta pelo sistema de formação e pelo modelos de avalição do ensino superior de música. O terceiro sistema é o de formação, que compreende as instituições de ensino superior, as quais, para além das suas características individuais próprias, apresentam alguns traços identitários comuns, que permitem identificar uma instituição-tipo, informada por princípios de um “mundo” comum, que ultrapassa instituições e fronteiras. Esta instituição-tipo será analisada enquanto organização, procurando-se comprendê-la através do recurso a um conjunto de teorias explicativas, pois nenhuma organização pode ser totalmente explicada, interpretada e compreendida a partir de uma única teoria ou modelo, sendo necessário “o recurso à pluralidade de modelos para apreender a pluralidade das lógicas” (Amblard et al.1996, 204). Essa análise será feita na perspectiva de que as instituições de ensino são o contexto onde os modelos de avaliação normativos são actualizados em modelos praticados, os

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quais incorporam os modos como os modelos formais são interpretados, recriados e executados. É pois no contexto instituição de ensino superior de música que estes modelos serão apreendidos, quer na sua vertente formal quer nas representações dos actores sobre esses mesmos modelos.

2– OPÇÕES METODOLÓGICAS 2.1 – PERSPECTIVA METODOLÓGICA A perspectiva construtivista que sustentou o projecto de investigação desenvolvido determinou a adopção de uma metodologia qualitativa para a sua concretização. Com efeito, a hipótese de que se partiu foi a de que os modelos de avaliação “decretados”- que consubstanciam as orientações políticas para a acção - não são literalmente aplicados, no plano da acção, das práticas, nos estabelecimentos de ensino que são os seus destinatários finais, sendo nestes interpretados, recriados e actualizados pelos actores locais em função dos seus interesses e estratégias. Esta acção colectiva de “tradução” das normas centralmente determinadas dá origem à construção de uma ordem específica, construção essa assente em lógicas de acção localmente contextualizadas. Uma metodologia de investigação congruente com este paradigma construtivista deverá ser “pragmática, interpretativa e baseada nas experiências vividas pelas pessoas” (Marshall & Rossman, 1999, 2), permitindo “investigar os fenómenos em toda a sua complexidade e em contexto natural” e facultando a “compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação” (Bogdan & Biklen, 1994, 16). Deste ponto de vista, a abordagem adequada para satisfazer tais condições é a abordagem qualitativa, que se afigura especialmente pertinente para o estudo de “complexidades e processos”, das “ligações e processos informais e não-estruturados nas organizações” e de “fenómenos pouco conhecidos” (Marshall, cit. Marshall & Rossman, 1999, 57). Também para Stake (1995, 47) a investigação qualitativa, dado o seu carácter holístico, empírico e interpretativo, é a que permite (i) desenvolver a contextualidade do estudo, (ii) orientar para o campo de forma naturalista não intervencionista e (iii) considerar a intuição, em sintonia com o facto de a investigação ser considerada uma interaccção investigador-objecto da investigação.

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O objectivo do presente trabalho é o de estudar a Avaliação enquanto locus de multirregulação das políticas e das práticas no ensino superior da Música. Na configuração que vem assumindo nas últimas décadas nos sistemas de ensino superior europeus, a Avaliação é um processo pouco estudado, em geral, e no campo da Música em particular, não tendo sido por mim identificado qualquer trabalho de investigação neste último domínio, conforme anteriormente referido. Trata-se, assim, de “investigar fenómenos pouco compreendidos, identificar ou descobrir categorias de sentido importantes, gerar hipóteses para investigação posterior” (Marshall & Rossman, 1999, 33), numa perspectiva descritiva e exploratória que permita “construir descrições ricas de circunstâncias complexas, que estão inexploradas na literatura” (id., 33). As características atribuídas por Bogdan & Bliken (1994, 47) à investigação qualitativa demonstram como esta abordagem se afigura pertinente para os propósitos do presente estudo. Segundo estes autores, a investigação qualitativa: (i) tem como fonte directa de dados o ambiente natural, isto é, o contexto da acção; (ii) é descritiva, sendo os dados recolhidos sob a forma de palavras ou imagens a partir dos quais eles são analisados em toda a sua riqueza, em vez de reduzidos a números; (iii) interessa-se mais pelo processo do que pelo resultado ou produto, procurando o sentido das atitudes e comportamentos; (iv) analisa os dados de forma indutiva, construindo “as abstracções [...] à medida que os dados particulares que foram recolhidos se vão agrupando”; (v) atribui um valor central ao significado, procurando apreender as diferentes perspectivas e conferindo com os participantes o modo como estes interpretam os significados. Em resumo, uma atitude de abertura aos e de escuta dos contextos e interacções, que permite ao investigador uma postura hermenêutica no avanço em territórios pouco explorados. 2.2 – A ESTRATÉGIA DE INVESTIGAÇÃO Definida a perspectiva metodológica deste estudo – que se pretende, como ficou dito, descritivo e exploratório – importa explicitar a estratégia de investigação a adoptar. De entre as várias estratégias possíveis em investigação qualitativa, Yin (1994, 4) propõe uma selecção baseada em três critérios : ( i) “ o tipo de questão de investigação posta”, (ii) “a extensão do controlo que o investigador tem sobre os acontecimentos comportamentais efectivos” e (iii) “o grau de focalização em acontecimentos contemporâneos em oposição a acontecimentos históricos”, concluindo que a estratégia apropriada é o estudo de caso quando “ se põe a pergunta “como” ou “porquê” a propósito de um conjunto de acontecimentos sobre os quais o investigador tem pouco ou nenhum controlo” (id., 9). Para Marshall & Rossman (1999, 61), o design da estratégia está directamente relacionado com o tipo de investigação e o foco do estudo, considerando estas autoras

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que se se trata de um trabalho nos domínios da sociedade e da cultura, focalizado em grupos e organizações, a estratégia adequada é o estudo de caso. Relativamente aos estudos de caso, os autores distinguem entre estudos de caso intrínsecos, quando o que nos interessa é o caso em si e estudos de caso instrumentais, quando se procura uma compreensão geral de um fenómeno e se considera que o estudo de um caso particular poderá contribuir para essa compreensão (Stake, 1995, 3). Assim, e atendendo às características e finalidades do presente estudo, decidi efectuá-lo no âmbito de um estudo de caso organizacional múltiplo de carácter instrumental, a realizar em três escolas escola superiores de música em Portugal, na Inglaterra e na Holanda. 2.3 – A ESCOLHA DOS LOCAIS A escola portuguesa escolhida foi a Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) pelas razões que a seguir se enunciam e que foram norteadas pela preocupação de se fazer uma opção realista, na perspectiva de que o investigador tem que ser prático (Bogdan & Biklen, 1994, 86) ou, no dizer de Arborio & Fournier, (1999, 26) na medida em que necessita de se reger por “critérios de pertinência prática” (sublinhado no texto). Na referida escola foram desenvolvidos processos de avaliação entre 1995 e 2005. A forma marginal, periférica como estes processos apareceram e ocorreram, a falta de envolvimento dos actores internos, a falta de clareza, para estes, do papel e da actividade dos actores externos, o destino e o uso (ou melhor, o não uso) das conclusões desses processos despertaram o meu interesse pelo estudo desta inovação organizacional e pelas razões do seu quase nulo impacte na ESML, onde tal inovação nem sequer suscitou as reservas que se têm verificado nalguns dos actores mais reflexivos de escolas de música europeias congéneres, onde a mesma inovação foi introduzida há mais tempo. A este interesse por investigar um sistema emergente de acção colectiva, inovador nesta escola como nas restantes do ensino superior português e ainda pouco estudado, num tipo de organização muito específico e também pouco abordado sob o ponto de vista organizacional, juntou-se o facto de eu ter entretanto assumido funções directivas na ESML, tendo-me sido atribuído (pelo interesse que manifestei) o “pelouro” da Avaliação. Da intersecção entre a “lógica do desejo” e a “lógica da necessidade” referidas decorreram vantagens e inconvenientes para o meu trabalho de investigação: por um lado, toda a “formação em contexto de trabalho” que fiz para efeitos de coordenação do processo de Avaliação na ESML foi pertinente e muito útil para a minha “formação em contexto de investigação”, e traduziu-se em não dispiciendas economias de tempo e de esforço intelectual; por outro lado, a condição de docente e dirigente da organização “contaminou”, certamente, a minha condição de investigadora no seio dessa organização, em termos que nunca poderão ser claramente avaliados, mas cuja verificação é necessário salientar.

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Relativamente às escolas estrangeiras houve, em primeiro lugar, que seleccionar os países cuja situação se afigurasse com mais interesse para os propósitos visados, tendo eles sido escolhidos por razões que têm a ver com a sua história em matéria de avaliação. Por um lado, em Inglaterra (e no Reino Unido, em geral) a retórica e as práticas de avaliação em ensino superior têm uma já longa “tradição”, com a vantagem, para efeitos dos objectivos aqui pretendidos, de as instituições de ensino superior de música terem estado incluídas no processo. A posição do Reino Unido como líder histórico, na Europa, neste domínio, aconselha uma atenção especial aos desenvolvimentos que neste país as questões da avalição e da acreditação vão apresentando, na certeza de que eles influenciarão, em grande parte, os modelos dos restantes países europeus. Por outro lado, os Países Baixos foram escolhidos porque o modelo de avalição português do ensino superior foi inspirado no modelo holandês, sendo que também neste país ele fora já aplicado às instituições de ensino superior de música as quais, tal como em Portugal, fazem parte do subsistema não universitário. Assim, verificava-se que era possível, em qualquer dos dois países em questão, encontrar instituições que já tivessem passado por uma ou mais experiências de avaliação, encontrando-se num estádio mais avançado do processo. A análise da situação nesses países permitia completar a curta experiência portuguesa e melhor identificar as dinâmicas em acção neste processo de multirregulação em marcha na Europa. Para seleccionar escolas pertinentes nos países estrangeiros escolhidos, contactei a AEC (Association Européenne des Conservatoires, Écoles de Musique et Musikhochschulen), organismo de que a Escola Superior de Música de Lisboa é membro e que reune mais de duas centenas das principais escolas superiores de música europeias. Pelo Director Executivo da referida associação foram-me indicados os nomes de dois especialistas com bastante experiência nestas matérias, em escolas também já com experiência consolidada de processos de avaliação: o Royal College of Music, em Londres e o Noord-Nederlands Conservatorium, da Hanzahogeschool de Groningen. Os contrastes entre estas duas instituições também se apresentavam como uma potencialidade hermenêutica significativa. A primeira é um dos mais, se não o mais prestigiado conservatório do Reino Unido, com renome mundial, situado num grande centro e que atrai uma elevada percentagem de estudantes de todo o mundo. O segundo, na configuração que tinha à data do trabalho empírico realizado, era um conservatório com uma história recente, sendo essa história determinada pela sua pequena dimensão e pela sua localização fora do eixo central do país (Amsterdão, Haia, Roterdão), atraindo apenas alunos locais ou de zonas transfronteiriças. Os contactos realizados revelaram-se frutíferos, tendo-se mostrado ambos os especialistas entusiasmados com um projecto que consideraram poder vir a revelar-se de utilidade também para as suas instituições e para o ensino superior da música, em geral, dado o seu carácter inovador nesta área.

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A adesão destes especialistas ao projecto era fundamental não só para as negociações preliminares com as direcções das respectivas escolas, no sentido de permitirem o meu acesso às próprias escolas e à informação que pretendia recolher, mas também para o apoio às visitas que faria com vista a entrevistar alguns informantes-chave que me seriam, como foram, por eles indicados. 2.4 – OS INSTRUMENTOS DA INVESTIGAÇÃO Num estudo de caso, os instrumentos de recolha da informação adequados são a observação, a entrevista e a análise documental (Stake, 1995, 60, 64, 68; Yin, 1994, 81, 84, 86, 87; Marshall & Rossman, 1995, 106, 108, 116) e foram os dois últimos aqueles que utilizei no presente estudo, por me parecerem os mais pertinentes em função da questão de pesquisa. Com efeito, não se tratando de acompanhar nenhum processo de avaliação, mas de identificar as representações e as interpretações dos diversos actores envolvidos nesse tipo de processos, a observação não tinha aqui lugar enquanto instrumento metodológico, embora ela nunca deixasse de estar presente na pessoa da investigadora, na sua condição de “instrumento” estético que mediatiza, através das percepções dos sentidos, a compreensão dos fenómenos descritos e das percepções transmitidas pelos actores entrevistados. Nas visitas que fiz às instituições em questão e maxime na minha própria instituição, “produzi” observações informais, por vezes de forma intencional mas muitas vezes sem ter disso plena consciência, as quais não deixaram certamente de influenciar o modo como interpretei os discursos dos actores, quer os produzidos nas entrevistas, quer os contidos na documentação analisada. As visitas às instituições estrangeiras realizaram-se em 2004, de 20 a 22 de Abril ao Noord-Nederlands Conservatorium e a 18 de Maio ao Royal College of Music. 2.4.1 – A ENTREVISTA O trabalho empírico centrou-se na entrevista, instrumento que se afigura “particularmente pertinente quando se pretende analisar o sentido que os actores dão às suas práticas, aos acontecimentos de que puderam ser testemunhas activas e quando se quer evidenciar os sistemas de valores e os normativos a partir dos quais eles se orientam e se determinam” (Blanchet & Gotman, 1992, 27). No pressuposto de que a utilização da entrevista “se inscreve [...] num quadro conceptual específico” (id., 8) optei - em congruência com as opções teóricas e metodológicas do estudo - por um modelo de entrevista semi-directiva, na perspectiva segundo a qual ela deverá ser uma “improvisação regulada” (id., 22). Tal perspectiva implica que o desenho da entrevista deverá ser construído de forma flexível, iterativa e contínua (Rubin & Rubin, 1995, 45), isto é, partindo de objectivos que, à partida, se afiguram os mais pertinentes para responder às questões de pesquisa deve, por um lado,

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garantir que esses objectivos são suficientemente latos para não “afunilar” excessivamente as respostas dos actores e, por outro, permitir adaptá-los em função daquilo que vai acontecendo ao longo de cada entrevista em concreto, acolhendo desenvolvimentos não previstos inicialmente mas que contribuam para esclarecer essas questões de pesquisa. As entrevistas tinham como objectivo elucidar os aspectos relacionados com as subquestões referentes aos modelos praticados e aos efeitos dos processos de avaliação nos três estabelecimentos considerados. A grelha construída para responder a essas subquestões foi a apresentada no Quadro 1. Na selecção dos entrevistados, considerei pertinente obter as perspectivas da gestão de topo, dos responsáveis directos pelos processos de avaliação, de docentes e de estudantes, pelo que solicitei aos dois especialistas das escolas estrangeiras que me indicassem os informantes pertinentes. Ambos estranharam o meu interesse em ouvir docentes, na medida em que estes “não têm qualquer intervenção directa nos processos de avaliação”. Embora eu não compreendesse totalmente, nessa fase inicial do meu trabalho, o significado destas afirmações, não deixei de insistir, até por querer investigar o que é que os professores pensavam dessa situação. Face à minha insistência, foram-me indicados na escola não “meros” docentes, mas professores responsáveis pela gestão intermédia: no caso de Londres, a Directora dos Cursos de Graduação e no caso de Groningen, o Chefe do Departamento de Música Clássica (que, aliás, não desempenha quaisquer funções docentes). Em Londres entrevistei ainda (i) a então directora, há longos anos no cargo, (ii) o subdirector, responsável pela Avaliação, (iii) o secretário, que coordena todos os processos de avaliação e (iv) dois estudantes, que eram então o presidente e o vice-presidente da Associação dos Estudantes. Em Groningen entrevistei não o director, à data recém chegado à instituição, mas (i) a anterior directora, com quem tinham sido iniciados no conservatório os processos de avaliação, (ii) o responsável pela coordenação destes processos e (iii)dois alunos. Tive ainda encontros com dois responsáveis pela Avaliação a nível da Hanzehogeschool, onde o conservatório está integrado. Em Lisboa, ouvi (i) a directora, (ii) o anterior director, em cujo mandato tinham sido iniciados os processos de avaliação e que tinha sido coordenador de um deles, (iii) dois docentes que tinham coordenado outros dois processos e (iv) dois estudantes. As condições da selecção dos entrevistados tornaram patentes, desde logo, algumas semelhanças e diferenças dos modelos e das práticas nas três instituições. Por um lado, os casos inglês e holandês evidenciaram semelhanças no que respeita a uma maior “profissionalização” dos processos, coordenados por um responsável institucional investido expressamente nessas funções (ainda que, em nenhum dos casos, em exclusividade). No caso português, a coordenação dos processos foi mais “adhocrática”,

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com o professor responsável pela coordenação da área/curso em avaliação a ser nomeado, geralmente, como responsável directo pelo processo, o que determinou a entrevista de três pessoas, nesta qualidade, e não de uma única, como nos outros dois casos.

QUADRO 1 - GUIÃO DAS ENTREVISTAS

BLOCO OBJECTIVOS TÓPICOS

A

LEGITIMAÇÃO DA ENTREVISTA E

MOTIVAÇÃO DO ENTREVISTADO

Informar sobre o enquadramento da entrevista Informar sobre o objectivo da entrevista Realçar a importância do contributo do

entrevistado Garantir a confidencialidade

Esclarecer qual o tema em investigação

Papel do entrevistado enquanto actor dos modelos/processos em

estudo B

OS MODELOS

Descrever e caracterizar os modelos praticados

Identificar as zonas de autonomia relativamente aos modelos

normativos C

OS PROCESSOS

Descrever as dinâmicas.,estratégias e dispositivos dos processos de avaliação

Identificar o tipo e grau de participação dos

actores dos processos

Relativamente a cada fase dos processos:

Informação quem fornece a I; a quem; quando; como; para quê

Participação

quem é chamado aos processos; por quem; quando; como; para quê

Negociação

quem intervem; quando; como; para quê

Decisão

-quem decide -sobre o quê

D

OS EFEITOS

Identificar quais os efeitos sobre os contextos organizacionais percepcionados pelos actores como resultantes dos processos de avaliação

Finalidades Produção (desenvolvimento

curricular e projectos educativos) Estruturas Rotinas

Recursos Sistema relacional

Gestão Cultura organizacional

Dinâmicas da acção colectiva Motivação

Mudança/inovação Por outro lado, em Portugal, os docentes estão mais directamente envolvidos no processo, pelo menos a nível formal, sendo ouvidos designadamente através de questionário, o que não acontece em nenhuma das outras duas instituições, onde apenas os estudantes são consultados através deste instrumento. No entanto, para garantir uma certa coerência metodológica, optei por, também em Lisboa, não entrevistar nenhum actor enquanto “mero” docente.

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Considerando que “a entrevista é sempre uma relação social, uma situação de interlocução e um protocolo de investigação” (Blanchet & Gotman, 1992, 69) considerei com especial atenção esta tripla dimensão no planeamento e na realização das entrevistas. Enquanto relação social, a entrevista desenvolve-se num determinado ambiente, cujos parâmetros podem ser pensados “segundo a metáfora teatral, utilizada por numerosos autores[...]: a programação temporal (unidade de tempo), a cena (unidade de lugar) e a distribuição dos actores (unidade de acção)” (id., 69). Relativamente ao tempo, há que definir a duração da entrevista, sendo igualmente relevante o momento em que ela se realiza, no contexto das actividades diárias do entrevistado. Tendo definido a duração de uma hora para cada entrevista, consegui respeitar esta duração em todas, excepto no caso da directora do Royal College of Music que, por compromisso superveniente, não pôde conceder-me mais que 20/30 minutos. Por outro lado, enquanto na escola portuguesa pude escolher a hora do dia, em articulação com os entrevistados, nos casos estrangeiros sujeitei-me ao horário definido localmente pelo especialista de contacto com as pessoas a entrevistar. Quanto ao lugar, enquanto em Lisboa todas as entrevistas foram realizadas no meu gabinete, em Groningen e Londres elas tiveram lugar nos gabinetes dos entrevistados e, no caso dos alunos, numa pequena sala de reuniões e no bar, respectivamente. Também em termos de escolha do lugar apenas tive possibilidade de intervenção activa no caso de Lisboa, mas mesmo aqui fui condicionada pela escassez de espaços na escola, tendo que utilizar o local que menos desejaria, por ser aquele que menos contribuiria para distinguir simbolicamente, perante os entrevistados, o meu estatuto de dirigente do meu estatuto de investigadora. No que respeita à distribuição dos actores, ela foi determinada em quase todos os casos por “inerência”, sendo seleccionadas pessoas com papel activo nos processos em análise, quase sempre decorrente das funções que exerciam nas instituições. Apenas no caso dos estudantes portugueses pude seleccionar livremente, tendo escolhido dois que me pareciam ser capazes de produzir um discurso crítico que assinalasse os aspectos eventualmente considerados positivos mas também os negativos, sem grandes constrangimentos perante o “poder hierárquico” que eu representava. No que se refere ao quadro conceptual da comunicação, que deve começar pela explicitação dos motivos e objectivos da entrevista (id., 75), importa assinalar que este procedimento foi cumprido com especial cautela, tendo sido bem esclarecido que não seria possível garantir o anonimato (excepto nos casos dos estudantes holandeses e portugueses), pelo que se insistiu na leitura atenta das transcrições das entrevistas e para uma indicação precisa de cortes ou alterações que o entrevistado entendesse por bem fazer. Ninguém se mostrou incomodado pelo facto, nem propôs alterações, após leitura das suas entrevistas. As entrevistas foram gravadas em boas condições, acusando algumas deficiências no caso de Londres, por ruídos exteriores não detectados no momento das gravações ou por ruídos detectados, mas impossíveis de suprimir (no caso

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das entrevistas no bar), sendo que neste último caso houve vários minutos que foi totalmente impossível reconstituir. Por outro lado, sendo o tema da entrevista um dos parâmetros determinantes, no quadro conceptual da comunicação, pelo facto de pôr “em jogo a especialização ou a não-especialização dos interlocutores” (id., 76), o tema avaliação fez os diversos actores revelarem, através dos conteúdos e sobretudo, da extensão dos respectivos discursos, o seu grau de familiaridade com o tema, num continuum que tem, num extremo, os coordenadores e, no outro, os estudantes, designadamente os holandeses, embora neste caso o défice de “especialização” possa também ser interpretado como dizendo igualmente respeito à dificuldade (expressamente manifestada por um deles) de utilização de uma língua estrangeira (o inglês). Esta diversidade de graus de “especialização” dos entrevistados foi tida em conta nos modos de intervenção da entrevistadora, a quem compete “favorecer a produção dos discursos” (id., 78) no decorrer destas “conversações guiadas” que são as entrevistas (Rubin & Rubin, 1995,122). A análise da estrutura das entrevistas permite perceber que enquanto aos entrevistados mais especializados bastou apresentar um número reduzido de questões, logo desenvolvidas em respostas longas e bem articuladas, junto de outros o diálogo teve que ser alimentado por um maior número de questões por parte da entrevistadora. Muitas dessas questões não eram directamente relacionadas com o tema, mas foram postas porque podiam contribuir, de forma indirecta, para a sua compreensão, ao mesmo tempo que permitiam situar os entrevistados num campo onde se sentiam mais à vontade (mais “especializados”), no pressuposto de que “uma boa pergunta, na entrevista, deve contribuir tematicamente para a produção de conhecimento e dinamicamente para promover uma boa interacção na entrevista [...] uma interacção positiva, que mantenha o fluxo da conversação e motive as pessoas a falarem das suas experiências e sensações” (Kvale, 1996, 129, 130). Na transcrição de extractos das entrevistas o registo alfabético identifica o tipo de registo (E = entrevista) e a categoria do entrevistado (D = director, C = coordenador, P = Professor, E = Estudante). A dupla identificação numérica identifica a ordem de realização da entrevista e a página donde é extraída a citação ( Ex: EE 2,3, o que significa entrevista a estudante, segunda entrevista a esta categoria de entrevistado, número da página do registo). As entrevistas com os informantes das instituições estrangeiras foram realizadas e transcritas em Inglês, tendo-se procedido à sua tradução para Português nos excertos citados. Na transcrição das entrevistas foram, tanto quanto possível, introduzidos os aspectos não verbais dos discursos (pausas, hesitações, risos ou sorrisos), bem como mantidas as “imperfeições” formais dos mesmos (bordões de linguagem, interjeições, frases corrigidas), tendo sido apenas alteradas as frases que dificultavam ou impediam a compreensão do seu sentido tal como ficaram gravadas (ver Anexo I , Vol. II).

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Esta opção de “fidelidade”, com inclusão dos aspectos literais e simbólicos das narrativas, não alterou a condição das transcrições como “conversações descontextualizadas [...] destemporalizadas” que “congelam num texto escrito” “uma conversação viva” (id., 167), mas foi tomada no pressuposto não só de que permite à investigadora, no momento da análise, uma reconstituição mais perto da realidade do discurso ao vivo, como também de que ajuda a estimular a observação participante do leitor através de um “processo heurístico baseado na evocação” (Strati, 1999, 11), tanto mais facilitado quanto maior for o número de elementos que alimentam “a capacidade imaginativa do sujeito” (id., 13). O “corpus” constituído pelo conjunto das transcrições das entrevistas foi submetido ao procedimento da análise de conteúdo com base na grelha de categorização apresentada no Quadro 2, a qual seguiu a estrutura das entrevistas, uma e outra construídas a partir da questão e subquestões de pesquisa.

QUADRO 2 - GRELHA DE CATEGORIZAÇÃO

CATEGORIAS SUBCATEGORIAS CÓDIGOS

MODELOS AUTONOMIA MA PROCESSOS INFORMAÇÃO

PARTICIPAÇÃO NEGOCIAÇÃO

DECISÃO

PI PP PN PD

EFEITOS FINALIDADES PRODUÇÃO

ESTRUTURAS ROTINAS

RECURSOS SISTEMA RELACIONAL

GESTÃO CULTURA

ORGANIZACIONAL DINÂMICAS DA ACÇÃO

COLECTIVA MOTIVAÇÃO

MUDANÇA/INOVAÇÃO

EF EP EE

ERO ERE ESR EG

ECO

EDAC

EM EM/I

Na categoria MODELOS pretendi identificar os aspectos dos modelos praticados que se afastavam dos modelos normativos; na categoria PROCESSOS tentei apreender os graus e formas de participação dos diversos actores nos processos de avaliação, num continuum entre a simples informação e o poder de decisão; na categoria EFEITOS procurei ouvir as percepções dos entrevistados sobre os efeitos que os processos da avaliação tinham tido ou podiam vir a ter em diversos aspectos das suas instituições.

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Para categorizar esses aspectos utilizei o chamado “Modelo dos 10 sistemas” concebido por Fernandes (1992), tendo considerado os que me pareceram aqueles onde seria possível apreender os efeitos dos processos de avaliação, a saber: o das Finalidades, o da Produção, o das Estruturas, o das Rotinas, o dos Recursos, o Relacional, o da Gestão e , po fim, o Informal, que subdividi nos aspectos referentes (i) à Cultura Organizacional, (ii) às Dinâmicas da Acção Colectiva, (iii) à Motivação e (iv) à Mudança /Inovação. 2.4.2 – A ANÁLISE DOCUMENTAL A análise documental centrou-se sobre um corpus constituído por documentos legais e institucionais, cujo conteúdo foi analisado de acordo com as seguintes categorias: (i) os sistemas de ensino superior dos países em questão; (ii) os modelos de ensino superior em cada um dos países; (iii) as orientações produzidas sobre ensino superior, ensino superior de música e sua avaliação por parte de organismos internacionais e europeus; (iv) as instituições em causa; (v) os processos desenvolvidos internamente por estas sobre a matéria em análise; (v) os processos desenvolvidos nestas pelas agências de avaliação (ver Anexo II, Vol.II). Dado o momento que se vive no ensino superior europeu em consequência do implemento, em curso desde 1999, do chamado Processo de Bolonha, a produção documental tem-se revelado superabundante, obrigando a uma permanente actualização da informação sobre este ensino e designadamente sobre a sua avaliação, uma vez que esta é uma das vertentes mais fortes do dito processo. Por outro lado, quer nos Países Baixos, quer sobretudo na Inglaterra, o grau de formalização da regulamentação dos vários aspectos do ensino superior é superlativo, o que tornou morosa a selecção da informação pertinente. Acresce que, no que se refere à documentação holandesa, essa morosidade se acentuou por eu não ter conhecimentos prévios da língua neerlandesa, cujo estudo iniciei para efeitos do presente trabalho. O facto de eu dominar incipientemente esta língua implicou que a leitura de textos legais e regulamentares só fosse possível com o constante recurso ao dicionário, o que me obrigou ao duplo esforço da leitura/tradução e da vigilância sobre o rigor dessa leitura, de forma a não ser tentada a ignorar, por força da dificuldade e do excesso de tempo dispendido, informação que pudesse ser útil. 2.5– A ORGANIZAÇÃO E OS LIMITES DO TRABALHO Com base no enquadramento teórico e nas opções metodológicas acima explicitados, foi realizado o trabalho cujos resultados a seguir se apresentam, o qual consiste na descrição, comparação e interpretação dos modelos de avaliação normativos e praticados, bem como dos efeitos da avaliação percepcionados nos três estabelecimentos de ensino superior da música considerados.

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Embora o trabalho empírico se tivesse desenvolvido nas instituições de ensino, operacionalizadoras centrais dos modelos de avaliação, estes, quer na sua versão formal, quer na sua versão praticada, só são compreensíveis no âmbito dos sistemas de accção social político-administrativos dos respectivos países e em articulação com os sistemas de produção sócio-musical que alimentam e de que se alimentam. Daí a necessidade de analisar os referidos sistemas para investigar, de forma tão completa quanto possível, a dimensão multirreguladora da Avaliação no domínio das retóricas e das práticas neste domínio. A descrição, interpretação e análise dos modelos formais centrou-se (i) nos contextos e nas origens, (ii) nos objectivos, (iii) nos processos e instrumentos e (iv) nos resultados, por me parecerem ser os eixos que permitem entender a singularidade de cada modelo. Quanto aos modelos praticados foram considerados (i) o contexto, (ii) o processo de avaliação interna, (iii) o processo de avaliação externa e (iv) as representações dos actores sobre os processos de avaliação, dimensões através das quais é possível apreender as formas e as lógicas de interpretação, recriação e actualização dos modelos normativos. O trabalho apresentado não descreve a “realidade” analisada. Como acentua Stake (Abma & Stake, 2001, 16) “os investigadores são intérpretes do mundo”, tradutores que são, eles próprios instrumentos da investigação. Através duma actividade cultural e estética, que recorre ao seu “fundo de experiências” cultural, social, emocional e imaginativo, os investigadores “ouvem”, de forma situada e em determinado contexto, os fenómenos da vida social (Beaty, 1999, 283) e o produto da sua investigação não é mais do que a interpretação pessoal possível desses fenómenos. Deste ponto de vista, oposto ao do realismo, postula-se que o conhecimento que se pode obter e comunicar é sempre relativo e construído num contexto social determinado, o que obriga a aceitar o carácter múltiplo da realidade (Abma & Stake, 2001, 18), ao mesmo tempo que impede a generalização das conclusões decorrentes da investigação realizada num particular tempo e lugar dos fenómenos sociais analisados. O presente trabalho não aspira a mais do que a dar um contributo para o conhecimento da realidade multifacetada que é o sistema de acção social artístico/musical, aqui analisado nas suas dimensões político-administrativa, produtiva e formativa, para efeitos da compreensão do modo como os processos de avaliação em curso determinam as políticas e as práticas do ensino superior da música.

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