CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

32
Saute et al, 2018 CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética Autores: Jonas Alex Morales Saute, José Luiz Pedroso, Marcondes C. França Junior, Sarah Camargos A neurogenética clínica pode ser considerada como um campo de atuação da neurologia, neuropediatria e genética médica que é dedicado ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de indivíduos e famílias com condições genéticas (monogênicas ou genômicas) em que a manifestação principal será relacionada a alterações no desenvolvimento ou será secundária a degeneração ou disfunção do sistema nervoso central, periférico ou de ambos. É importante diferenciar a neurogenética clínica do termo neurogenética, o qual tem significado mais amplo, sendo entendido como a ciência que estuda a variação genética que traz repercussões nas funções neurológicas. A neurogenética; portanto, engloba a neurogenética clínica e o estudo de doenças multifatoriais ou poligênicas (Geschwind, 2018; Fogel, 2018). A Figura 1 diferencia os mecanismos principais das condições monogênicas das doenças multifatoriais/poligênicas. Figura 1 Fisiopatologia de doenças monogênicas versus multifatoriais

Transcript of CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Page 1: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

CAPÍTULO

Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Autores: Jonas Alex Morales Saute, José Luiz Pedroso, Marcondes C. França

Junior, Sarah Camargos

A neurogenética clínica pode ser considerada como um campo de atuação da

neurologia, neuropediatria e genética médica que é dedicado ao diagnóstico,

tratamento e acompanhamento de indivíduos e famílias com condições

genéticas (monogênicas ou genômicas) em que a manifestação principal será

relacionada a alterações no desenvolvimento ou será secundária a

degeneração ou disfunção do sistema nervoso central, periférico ou de ambos.

É importante diferenciar a neurogenética clínica do termo neurogenética, o qual

tem significado mais amplo, sendo entendido como a ciência que estuda a

variação genética que traz repercussões nas funções neurológicas. A

neurogenética; portanto, engloba a neurogenética clínica e o estudo de

doenças multifatoriais ou poligênicas (Geschwind, 2018; Fogel, 2018). A Figura

1 diferencia os mecanismos principais das condições monogênicas das

doenças multifatoriais/poligênicas.

Figura 1 – Fisiopatologia de doenças monogênicas versus multifatoriais

Page 2: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Legenda Figura 1 - As setas verdes indicam variantes em genes que conferem

proteção e as setas vermelhas variantes em genes que conferem risco a uma

dada condição. A espessura das setas indica o tamanho do efeito da variante

sobre o desenvolvimento do fenótipo.

Considerações Iniciais Sobre o Estudo da Neurogenética Clínica

A neurologia é considerada por muitos estudantes de medicina, médicos e

seus professores como umas das especialidades médicas mais difíceis e

complexas. Esta imagem, associada ao estigma reproduzido quase que

diariamente nas enfermarias, inclusive por parte dos neurologistas, da falta de

tratamentos específicos para a maior parte das condições neurológicas,

contribui para afastar o estudante do aprofundamento e especialização neste

campo fascinante de atuação. A genética clínica, de modo similar, também é

rechaçada por muitos estudantes e profissionais por razões similares, mas

talvez o cenário seja ainda mais adverso, devido a organização dos currículos

dos principais cursos de medicina no Brasil e fora que colocam a genética

apenas como disciplina do currículo básico, não havendo quase nenhum

contato posterior ao longo do curso com a especialidade genética médica. Tal

cenário explica facilmente a imagem distorcida de que o médico geneticista

seria um profissional de laboratório que realizaria apenas exames

complementares e que não teria atuação clínica. Este panorama intimidativo no

campo da neurologia e genética médica é muitas vezes ampliado pela postura

dos professores e preceptores que se distanciam do aluno ao exaltarem a

complexidade e dificuldade das áreas e, portanto, ao exaltarem suas

capacidades cognitivas de lidarem com síndromes de tamanha complexidade,

mas que deixam de apresentar os princípios básicos do método clínico de

raciocínio diagnóstico (Rooper, Samuels and Klein, 2014), que poderiam

auxiliar na superação da maioria das dificuldades de compreensão destas

áreas do conhecimento. Podemos imaginar, portanto, o cenário assustador que

o estudante de medicina ou o médico residente encontrará ao deparar-se pela

primeira vez com o termo neurogenética clínica.

O objetivo do presente capítulo será propor uma organização do raciocínio

diagnóstico aplicável à neurogenética clínica, a qual, a partir deste ponto, será

Page 3: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

referida apenas como neurogenética. Esperamos com este capítulo, aproximar

o leitor desta área de atuação. Despretensiosamente, também buscamos

apresentar esta forma de organização do raciocínio diagnóstico de modo que

possa ser utilizada também em futuros modelos que porventura venham a

utilizar ferramentas computacionais avançadas para esta tarefa.

Classificação das Doenças Neurogenéticas

Antes de iniciarmos a elaboração de hipóteses diagnósticas em neurogenética,

necessitamos entender primeiro como estas doenças são agrupadas. Uma das

classificações mais práticas das doenças neurogenéticas seguirá o diagnóstico

topográfico como principal definidor dos grupos de condições. A Figura 2 tenta

simplificar um pouco esta classificação ao mostrar que as doenças genéticas

que afetam como topografia principal os músculos são chamadas

(intuitivamente) de miopatias hereditárias ou de distrofias musculares; já as

condições em que múltiplos nervos periféricos serão o maior alvo do processo

patológico serão chamadas de neuropatias hereditárias, e assim por diante.

Figura 2 – Classificação das Doenças Neurogenéticas

Page 4: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

O maior desafio para que esta classificação seja útil no processo diagnóstico

será a coleta adequada da anamnese e a realização de exame neurológico

detalhado (em geral focado na queixa principal do paciente) e sua

interpretação. Em alguns casos será necessária a solicitação de exames

complementares, como a eletroneuromiografia ou exames de neuroimagem

como ressonância magnética encefálica ou muscular, para um refinamento ou

confirmação do diagnóstico topográfico (sem necessariamente ter implicações

ainda na definição causal da condição). A realização adequada deste processo

será o passo inicial, fundamental para a adequada classificação e elaboração

das hipóteses diagnósticas a seguir. Conhecimentos do exame neurológico

focado de acordo com os principais grupos de condições e topografias serão

dados ao longo de praticamente todos os capítulos deste livro e serão

fundamentais na correta interpretação da topografia envolvida.

Classificação de acordo com a idade de início dos sintomas

Cerca de 90% das condições monogênicas iniciam na infância, e apenas ao

redor de 10% iniciarão após a puberdade, e 1% na vida adulta, após o período

reprodutivo (Nussbaum, 2008). Apesar de haver um menor número de

condições monogênicas de início tardio, estas em geral são mais prevalentes

na população geral, e muitas delas, por terem um padrão de herança

autossômico dominante e afetarem um grande número de indivíduos por

família, representam um impacto social, familiar e pessoal maior do que seria

esperado.

Em geral as doenças neurogenéticas de início congênito ou na infância estarão

relacionadas a 1) defeitos no desenvolvimento do sistema nervoso (Ex: defeitos

de migração neuronal), em geral de curso estático e não progressivo; 2)

doenças metabólicas: que podem iniciar precocemente de modo agudo com

sinais de intoxicação; ou envolver quadros intermitentes associados a

episódios de maior demanda metabólica, como nos distúrbios do metabolismo

energético; ou ainda podem ter curso degenerativo como nas doenças por

defeitos no metabolismo de moléculas complexas (Saudubray et al, 2006), e 3)

Page 5: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

defeitos de neurotransmissores, de apresentação variada com sinais de

encefalopatia, epilepsia e síndromes piramidais e extrapiramidais (Kurian et al,

2011). A maior parte das doenças de início tardio ou de início a partir da

adolescência estará associada a neurodegeneração como mecanismo

principal, em geral apresentando curso lentamente progressivo.

Apesar de ter uma utilidade prática com relação ao profissional que na maioria

das vezes atenderá inicialmente estes pacientes; se de início infantil,

neuropediatras; se de início adulto, neurologistas; a classificação das doenças

neurogenéticas de acordo com a faixa etária, na opinião dos autores, fará mais

sentido se utilizada junto com o curso da condição dentro dos grupos de

diagnósticos topográficos. Esta informação etária será fundamental inclusive na

avaliação do rendimento das técnicas moleculares para obtenção de

diagnóstico definitivo. Por exemplo, hoje sabemos que o rendimento de painéis

de sequenciamento de nova geração (NGS) ou do sequenciamento completo

do exoma (WES) difere de acordo com a faixa etária para uma mesma

síndrome/topografia, apresentando maior rendimento nos casos de ataxia de

início infantil ou de hipoplasia cerebelar (Ohba et al, 2014; Sawyer et al, 2014)

quando comparado as ataxias hereditárias de início tardio (Fogel et al, 2014;

Coutelier et al, 2017). Note que neste caso iniciamos pela classificação em

doenças hereditárias que envolvem as vias cerebelares (ataxias hereditárias) e

apenas depois dividimos pela faixa etária a fim de buscar informações sobre

qual a resolutividade das provas diagnósticas que serão solicitadas para

identificar qual a condição específica do paciente.

Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética Clínica versus Raciocínio

Diagnóstico Neurologia.

O raciocínio diagnóstico em neurologia em geral é dividido na seguinte ordem:

diagnóstico sindrômico, que consiste no reconhecimento dos sinais e sintomas

que compõe as diferentes síndromes neurológicas (síndrome motora piramidal,

extrapiramidal, etc.); seguido do diagnóstico topográfico ou anatômico (em

geral tenta-se encontrar apenas um local de lesão que explique os sinais e

sintomas do paciente); e, por fim, o diagnóstico etiológico, em que o curso da

apresentação clínica e informações demográficas do paciente e

Page 6: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

epidemiológicas darão as pistas principais para identificação da causa

subjacente (causas vasculares, infecciosas, neoplásicas, degenerativas,

iatrogênicas, congênitas, imunes, funcionais, etc.) (Chaves, 2008; Rooper,

Samuels and Klein, 2014). No caso das doenças neurogenéticas, ou no caso

de uma avaliação solicitada para o neurogeneticista, o processo será um pouco

distinto. A primeira distinção é que a ordem do processo já estará invertida, ou

seja, parte-se do pressuposto que já houve a suspeição de uma condição

genética como base etiológica ou de que é necessário descartar uma condição

genética, ou seja, o processo inicia-se enviesado a partir do diagnóstico

etiológico. Mesmo que se faça um grande esforço mental e se consiga manter

a ordem do raciocínio da neurologia clássica, quando de fato estivermos frente

a um paciente com uma condição neurogenética será muito frequente a

simultaneidade de síndromes neurológicas e de topografias distintas em um

único paciente ou família. Lembre-se que muitas das proteínas que estão

afetadas pela mutação causal destas condições terá expressão ubíqua, ou terá

uma maior expressão ou atividade em múltiplos tecidos e populações celulares,

sendo frequente o envolvimento simultâneo de múltiplos sistemas neurológicos

bem como o envolvimento extra neurológico (sistêmico). Cabe ressaltar que,

apesar do viés cognitivo associado à etiologia genética, sempre devemos ter

em mente que causas tratáveis (no sentido de que hajam medidas mais

específicas que modifiquem o curso da doença), sejam elas adquiridas (Ex:

deficiência de vitamina B12, hipotireoidismo, infecções, síndromes de

desregulação imunológica) ou genéticas (Ex: algumas doenças metabólicas,

ataxia por deficiência de vitamina E, polineuropatia amiloidótica familiar,

distrofia muscular de Duchenne, atrofia muscular espinhal, etc.) devem ser as

primeiras a ser descartadas, seguindo o mesmo princípio utilizado na

neurologia geral (Rooper, Samuels and Klein, 2014).

Desta forma, para organizar o raciocínio diagnóstico em neurogenética,

sugerimos uma abordagem diferente da neurologia clássica e iniciamos

respondendo às seguintes perguntas:

1) Qual a síndrome neurológica principal? Ex: motora piramidal, motora de

2º neurônio, motora cerebelar, motora parkinsoniana, etc.

Page 7: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

2) Há síndromes neurológicas coadjuvantes? Se sim, quais? Ex: motora

piramidal, motora de 2º neurônio, motora cerebelar, motora

parkinsoniana, etc.

3) Há acometimento de outros órgãos e tecidos (em especial achados não

usuais)? Se sim, quais? Ex: visceromegalia, ictiose, telangiectasias,

acalasia, xantomas, cardiopatia, catarata, retinopatia, etc.

4) O curso clínico da condição é compatível com uma doença

neurogenética? Lembre-se que a maior parte das condições

neurogenéticas de início após a infância tem curso degenerativo, ou

seja, lentamente progressivo e de início insidioso. Já as condições que

alteram o desenvolvimento do sistema nervoso tendem a apresentar

curso estático. São raras as exceções a esta regra de curso clínico, e

muitas destas condições terão um curso de apresentação estereotipado

que pode auxiliar na suspeita diagnóstica (Ex: distonia-parkinsonismo de

início rápido associada a mutações no gene ATP1A3, Brashear et al,

2018)

Seguindo ou sendo antecedido pela definição do padrão de herança.

5) Qual o padrão de herança provável? Ex: autossômica dominante,

autossômica recessiva, ligada ao X, mitocondrial, esporádica. Ver o

Quadro 1 para mais detalhes e Figura 3 para exemplos dos diferentes

padrões de herança.

Figura 3 – Exemplos de heredogramas dos padrões de herança.

Page 8: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Legenda da Figura 3 - Autossômica Recessiva; B) Autossômica Dominante,

atente para a transmissão da condição (símbolo preenchido de preto) de um

homem para outro homem (II-4 para III-5) que define este padrão de herança;

C) Ligada ao X (os pontos indicam mulheres portadoras); D) Mitocondrial, com

transmissão exclusivamente materna.

Em geral, a resposta à pergunta 1) definirá a classificação ou grupo de

condições que estará relacionada ao fenótipo do paciente e as demais

perguntas auxiliarão no estabelecimento do diagnóstico específico, como

veremos a seguir.

Organização do raciocínio diagnóstico em neurogenética

Após o processo descrito acima, iremos organizar o raciocínio diagnóstico em

achados “positivos”, ou seja que estão presentes no paciente ou familiares

afetados, e achados “negativos” ou seja que estão ausentes no paciente ou

familiares afetados. Entre os achados “positivos” e “negativos” devem entrar

informações de anamnese e exame físico e de exames paraclínicos de imagem

e laboratoriais que não sejam confirmatórios, mas que auxiliem em uma melhor

caracterização fenotípica. Importante ressaltar que a lista aqui não precisa ser

extensa, mas sim focada na apresentação principal do paciente considerando

dados que são relevantes tanto quando presentes, quanto quando ausentes.

Em geral os achados positivos principais, somados a um achado positivo

específico (caso haja) serão os responsáveis pela formulação das hipóteses

diagnósticas e os achados negativos servirão para descartar diagnósticos

diferenciais ou reduzir marcadamente suas probabilidades. Aqui cabe a

ressalva de que este método continuará a ser útil, ou tornar-se-á ainda mais

útil, com o advento de algoritmos diagnósticos computacionais melhores do

que os disponíveis atualmente, servindo como uma forma de entrada de dados

que possibilitará as listagens de diagnósticos diferenciais e de exames que

possam elucidar o caso. Mesmo que o uso de novas tecnologias

computacionais diagnósticas tornem-se uma realidade na prática clínica, é

pouco provável que na neurogenética elas substituam o papel crítico do clínico

na correta realização da anamnese, história familiar e exame físico e sua

interpretação.

Page 9: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Quadro 1 - Coleta da História Familiar Os capítulos 1 (Princípios Básicos em Genética) e 16 (Aconselhamento genético) – abordam os principais padrões de herança e a importância da história familiar no processo diagnóstico e de aconselhamento genético. Aqui cabe uma ressalva sobre a importância de “ganhar tempo” e orientar a investigação com uma obtenção detalhada da história familiar. As perguntas abaixo são fundamentais na obtenção desta história:

1) Há recorrência familiar? A recorrência de quadros semelhantes e pouco usuais na mesma família é uma pista fundamental para o diagnóstico de condições genéticas (Ex: pai e filho com história de doença de Alzheimer de início próximo dos 50 anos). Ao encontrar recorrência, tentar coletar informações sobre o maior número possível de familiares acometidos. Por vezes, será necessário examinar estes familiares para confirmar a confiabilidade da informação. Lembrar que o histórico familiar de quadros de doenças comuns, como cefaleia, hipertensão arterial, diabetes mellitus e demência de início tardio, deve ser valorizado com bastante parcimônia; não tendo, na maioria das vezes, relevância para modificar a suspeita diagnóstica.

2) Há consanguinidade? Ao coletar o histórico, atente para casamentos consanguíneos na família do probando (que podem sugerir uma herança autossômica recessiva) e tente definir o grau de parentesco.

3) Isolados geográficos? O local de nascimento do probando, seus pais e avós também podem ser de relevância para o diagnóstico, tanto pela possibilidade de haver alguma forma de condição mais frequente naquela região (Ex: efeitos fundadores da Doenças de Machado Joseph no Sul do Brasil (Souza et al, 2016), da polineuropatia amiloidótica familiar no Rio de Janeiro (Cruz, 2012) e de famílias com esclerose lateral amiotrófica relacionada ao gene VAPB na região sudeste (Nishimura et al 2004; Chadi et al, 2017), como por revelar potencial consanguinidade distante desconhecida.

4) Possibilidade de recorrência oculta? - falecimento precoce do genitor: atentar para a idade de falecimento dos pais. Lembrar que o falecimento precoce de um dos genitores (antes da idade prevista de manifestar a doença) pode ocultar o histórico familiar da condição. Na experiência dos autores, é frequente o distanciamento do lado da família relacionado ao indivíduo falecido precocemente, motivado em geral pela contexto traumático da perda precoce. - paternidade duvidosa: a paternidade duvidosa também pode ocultar o histórico familiar. Devemos ter em mente a possibilidade de paternidade duvidosa e, caso haja posterior confirmação de uma condição genética em que este cenário seja possível, o assunto deverá ser abordado de forma cuidadosa, no momento e condições propícias. Lembre-se que a paternidade duvidosa não é de interesse médico por si só, e sua busca pode gerar conflitos familiares.

Todos os dados acima, irão auxiliar no estabelecimento do provável mecanismo de herança. Entretanto, salientamos que a ausência destes fatores não excluirá a possibilidade de condições genéticas por diversos motivos (Ex: mutações de novo, penetrância incompleta, heterozigose composta para doenças recessivas, etc.). Deve-se, portanto, evitar em falar que história familiar é negativa e sim informar as respostas das perguntas acima.

Page 10: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Uma ferramenta atualmente disponível que ajuda a exercitar este modelo de

diagnóstico e que muitas vezes pode de fato auxiliar no diagnóstico diferencial

de doenças neurogenéticas é o SimulConsult®, uma plataforma online de

acesso livre curada por pesquisadores da Harvard Medical School e disponível

no site https://simulconsult.com/. Veja os Quadros 2 e 3 para ver exemplos de

como o raciocínio diagnóstico pode ser realizado pelo clínico e pelo clínico com

auxílio de plataformas como a citada. É importante frisar que não temos

qualquer conflito de interesse relacionado a este site, que existem outros sites

e programa com funções semelhantes (Ex: Oxford Medical Databases: London

Neurogenetics Database, etc), e que certamente serão desenvolvidas outras

ferramentas no futuro com objetivos semelhantes e ainda mais acuradas e que

poderão ser utilizados de acordo com a preferência do usuário.

Hipóteses diagnósticas e solicitação de exames confirmatórios

Para a formulação das hipóteses diagnósticas iniciaremos com a organização

dos achados “positivos” e “negativos”, como já vimos, e após perguntaremos:

1) Qual a síndrome neurológica principal do paciente? Ou seja, trata-se de

um quadro de deficiência intelectual, ataxia cerebelar, paraparesia

espástica, distonia, etc.? Este passo é fundamental, pois ele orientará o

estudo do caso e dos possíveis diagnósticos diferenciais.

2) Há uma suspeita diagnóstica principal? Ou, em outras palavras, existem

achados ou achado no paciente específicos o suficiente para sugerirem

uma única ou poucas etiologias genéticas prováveis?

- Sim. Caso haja uma suspeita principal, deve-se idealmente partir para

um teste de confirmação diagnóstica. Aqui também podemos pensar que

a probabilidade pré-teste (para novos exames) é muito alta e que

apenas um teste confirmatório ou que seja capaz de excluir a condição

terá alguma utilidade diagnóstica.

- Não. Há apenas a definição do grupo de doenças. Revisar as

apresentações clínicas principais deste grupo e se há algum achado de

exame clínico ou paraclínico que não foram avaliados e que poderiam

auxiliar.

Page 11: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Quadro 2:

Caso clínico: Homem de 21 anos, refere início de alteração do equilíbrio ao redor do 15 anos de idade com curso progressivo desde então, necessitando

atualmente do auxílio de bengalas para deambular. Negava quadros semelhantes em sua família ou história de consanguinidade dos pais. No exame físico

você encontra ataxia de marcha e de membros, bem como percebe disartria. O acompanhamento do olhar não é suave e ocorre em sacadas. A força é

levemente reduzida nos membros inferiores, os reflexos miotáticos profundos são abolidos distalmente e apresenta sinal de Babinski bilateralmente. A

sensibilidade vibratória é reduzida nos membros inferiores.

Organização do Raciocínio Clínico: Os dados positivos seriam ataxia cerebelar (talvez sensitiva também), redução de força, reflexos abolidos distalmente,

presença do sinais de Babinski e hipopalestesia. O quadro de ataxia sem dúvida lhe pareceu o fenótipo principal e, portanto, você inicia com a hipótese de

uma ataxia cerebelar. Ao seguir o modelo que apresentamos você adicionalmente classifica como síndromes coadjuvantes os sinais de neuropatia periférica

(arreflexia, redução de reflexos) e possivelmente de envolvimento do cordão posterior, e uma síndrome motora piramidal (sinal de Babinski e paresia), que

parece estar em parte oculta pela neuropatia periférica. Com base nestes dados, com a informação de que é uma condição crônica com ao menos 6 anos de

evolução, que o início ocorreu na adolescência e que é um caso isolado você pode realizar a hipótese de uma ataxia cerebelar hereditária, possivelmente

recessiva. Ao revisar o Capitulo 3.3 (Ataxias) você verifica que a Ataxia de Friedreich é a forma mais comum de ataxia hereditária autossômica recessiva e

que o paciente apresenta sua tríade clínica de ataxia, arreflexia e sinal de Babinski, mas que existe uma forma semelhante de ataxia que é a ataxia por

deficiência de vitamina E (AVED), uma condição tratável, e outras formas mais raras que mimetizam o quadro. Ou seja, você define que há uma hipótese

principal, mas ela não é específica e não é uma condição com tratamento específico. Você opta por solicitar um exame confirmatório, a dosagem da

vitamina E (afinal doenças tratáveis devem sempre ser consideradas primeiro), e os exames de caracterização fenotípica ecocardiograma e teste de

tolerância à glicose, que podem ter alterações na Ataxia de Friedreich, e dosagem da alfa-fetoproteina e do perfil lipídico, exames de baixo custo e que dão

importantes pistas para o diagnóstico das ataxias hereditárias. O resultado da dosagem de vitamina E e dos demais exames laboratoriais foram normais,

entretanto o ecocardiograma demonstrou sinas de miocardiopatia hipertrófica. A presença de miocardiopatia hipertrófica associada ao quadro clinico do

paciente é suficientemente específica para Ataxia de Friedreich e deve sugerir solicitação de exame confirmatório. Com estes dados você solicitou a análise

molecular específica para a Ataxia de Friedreich, a qual detectou expansões GAA em homozigose no gene FXN, confirmando o diagnóstico.

Page 12: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Ferramentas Informáticas. Note que pelo SimulConsult® aos colocarmos os achados iniciais do paciente a suspeita principal é de Ataxia de Freidreich e em

segundo lugar a AVED, e que o programa sugere alguns exames complementares, mas que não sugere o ecocardiograma. Na imagem seguinte, ao

adicionarmos apenas a informação da miocardiopatia hipertrófica, vemos que o único diagnóstico com alta probabilidade é a Ataxia de Freidreich, sendo

sugerido a realização do exame molecular confirmatório.

Page 13: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Quadro 3:

Caso clínico: Mulher de 39 anos é encaminhada para avaliação por quadro de quedas e fraqueza nas pernas desde os 25 anos de idade. Na consulta ela

refere também alteração na fala (fala anasalada) e dificuldade de deglutição desde a infância, tendo realizado diagnóstico de acalasia, com necessidade de

correção cirúrgica há 10 anos. Sua irmã apresentava quadro similar, também com acalasia corrigida cirurgicamente, negavam outros casos na família ou

consanguinidade parental. No exame físico você encontra marcha espástica com espasticidade moderada e leve fraqueza distal nos membros inferiores.

Apresentava também hiperreflexia generalizada com presença do sinal de Babinski bilateralmente.

Organização do Raciocínio Clínico: Os dados positivos seriam paraparesia espástica, acalasia, alteração da fala e recorrência familiar. O quadro neurológico

principal sem dúvida é a paraparesia espástica, inclusive foi o que motivou o encaminhamento, porém a presença de acalasia precoce em 2 irmãs é uma

informação nada usual, que poderia sugerir algum diagnóstico específico. A recorrência sugere fortemente a etiologia genética. Ao revisar sobre formas

genéticas de acalasia você encontra a síndrome Triplo A, uma síndrome autossômica recessiva caracterizada por acalasia, insuficiência adrenal, e alacrimia e

em que posteriormente foram descritos achados neurológicos como parte do fenótipo da condição. No retorno da paciente você questiona sobre a

possibilidade de alacrimia e surpreende-se com a notícia de que a paciente e sua irmã nunca choraram, nem mesmo na infância, mas que negam olho seco.

Você solicita exames de função adrenal que foram normais. Diante da suspeita da síndrome do Triplo A e sabendo que existem outras 2 formas, mas mais

raras de acalasia familiar (genes GMPP1 e TRAPPC11), você solicita o sequenciamento do gene AAAS que demonstra mutações bi-alélicas, confirmando o

diagnóstico.

Ferramentas Informáticas: Note que pelo SimulConsult® aos colocarmos os achados iniciais da paciente a suspeita principal seria da síndrome de Alacrimia

e Acalasia associada a Deficiência intelectual relacionada ao gene GMPPA (possivelmente pois o programa valoriza mais sintomas neurológicos para esta

síndrome) e que a síndrome do Triplo A viria em segundo lugar. Ao colocarmos os dados de alacrimia e função adrenal normal, a probabilidade da condição

inicialmente sugerida ficou ainda maior. Caso fosse seguido a sugestão do programa iniciaríamos com o sequenciamento do GMPP1 e em sendo negativo

seria procedido a análise do AAAS.

Page 14: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Page 15: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

a) Se houver algum achado mais específico não avaliado, considerar

marcar reavaliação do paciente e de seus familiares afetados ou solicitar

o exame paraclínico que possa auxiliar na melhor caracterização

fenotípica. Caso esta avaliação resultar em uma suspeita diagnóstica

principal, solicitar o teste de confirmação diagnóstica.

b) Se a caracterização clínica detalhada não for especifica ou houver

múltiplas causas prováveis considerar solicitar exames que avaliem

múltiplos genes ou regiões simultaneamente.

3) Eu tenho conhecimentos básicos de genética suficientes para explicar

de maneira adequada o teste que solicitarei, bem como possíveis

implicações previamente a sua realização e tenho conhecimentos

suficientes para interpretar o laudo do teste na maioria dos cenários?

- Sim para as 3 perguntas. Solicite o exame

- Não para qualquer uma das 3 perguntas. Considere referenciar para

outro especialista que melhor atenda aos requisitos acima. Este campo

é complexo e, por isso, o trabalho multiprofissional e entre múltiplas

especialidades é altamente recomendado, mesmo que você já seja um

especialista. Não se esqueça que o objetivo principal do atendimento é

auxiliar o paciente e sua família e não o de acertar um diagnóstico difícil

sozinho.

4) Qual o custo e qual o tempo médio para obtenção dos resultados do

teste a ser solicitado? Em artigo recente de Sarah Bowdin e

colaboradores foram realizadas recomendações para a integração da

genômica na prática clínica (Bowdin S. et al, 2016) e um dos pontos

considerados de informação básica pelos autores, pelo menos no

contexto dos Estados Unidos, foi a questão do custo dos exames,

exigindo conhecimentos de se o exame é coberto pelo seguro saúde, ou

qual seria o custo do exame caso o mesmo fosse pago diretamente pelo

paciente ou por sua família. Na opinião dos autores, no contexto

brasileiro esta informação torna-se de igual relevância tanto em

consultas privadas quanto em consultas do Sistema Único de Saúde.

Muitas vezes os pacientes irão preferir pagar por um exame que não

estaria disponível no SUS ou convênio ou irão acionar o Estado ou plano

de saúde na tentativa de que o mesmo arque com este gasto. Para que

Page 16: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

o paciente e sua família estejam o mais informados sobre estas

questões, será fundamental discutir abertamente com os mesmos sobre

a necessidade do exame e sobre os eventuais custos envolvidos. Uma

postura de isenção sobre discutir valores, coberturas, disponibilidade

dos exames por parte do profissional em geral contribuirá apenas para

aumentar a desinformação sobre a condição (que na maioria das vezes

já é rara e pouco conhecida), com potenciais repercussões negativas

para o paciente. Sabemos também que há diferenças regionais no Brasil

sobre a solicitação de exames não previstos no SUS em instituições

públicas e que; portanto, esta discussão não poderá ser aplicada em

todos os contexto de modo igual. Consideramos que as implicações

sobre custos e tempo de espera do resultado para testes genômicos e

testes focados (gene único, mutação familiar) são basicamente as

mesmas. O Quadro 4 mostra um exemplo de como podemos avaliar

este ponto de modo racional na solicitação de exames.

5) Qual o impacto do resultado para o paciente e sua família? Nem sempre

um exame genético confirmatório será necessário assistencialmente,

como nos casos em que o diagnóstico clínico bem como as informações

do heredograma podem ser suficientemente acurados. Ou seja, além de

informar questões sobre o custo e potencial resolutividade (e geração de

incertezas do exame) a ser solicitado, será importante conversar sobre o

momento da solicitação e qual será o possível impacto da confirmação

ou exclusão do diagnóstico em questão. Lembre-se que caso a principal

hipótese diagnóstica não tenha tratamento modificador no momento da

solicitação, sempre é possível aguardar para a confirmação diagnóstica

em momento mais oportuno. O custo dos testes genéticos tem reduzido

ao longo dos anos, bem como a sua disponibilidade tem aumentado

tanto no contexto de atenção pública quanto privada. Por outro lado a

confirmação diagnóstica em geral permitirá um aconselhamento

genético mais acurado e os potenciais benefícios relacionados ao

mesmo (Ver capítulo 16 – Aconselhamento Genético), bem como

possibilitará em alguns casos a participação em ensaios clínicos que

avaliem novos tratamentos e estejam em fase de recrutamento. Lembre-

se e lembre o paciente que mesmo que não haja tratamento

Page 17: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

modificador, sempre haverá alguma forma de tratamento e que este em

geral não dependerá da etiologia específica, mas sim da caracterização

clínica dos sintomas e esta você já fez ao longo de toda a sua avaliação.

6) Você já descartou causas tratáveis para esta condição? Nunca esqueça

de condições esporádicas e genéticas tratáveis! Salientamos que com o

advento dos exames genômicos na prática clínica cada vez mais nos

deparamos com apresentações diferentes dos fenótipos classicamente

descritos nas condições genéticas, ou seja uma apresentação atípica

pode ser tão frequente ou mesmo mais frequente, do que a dita

apresentação clássica de dada condição. Ex: a paraparesia espástica

tipo 7 (SPG7) foi descrita inicialmente como uma forma pura de

paraparesia espástica familiar, após o conhecimento do gene e de séries

maiores de famílias com a condição, ficou evidente de que a

apresentação mais comum não era a inicial, mas sim de uma forma de

paraparesia espástica complicada por ataxia. E mais recentemente este

gene foi associado a formas de ataxia cerebelar autossômica recessiva

e dominante (Synofzik & Schüle, 2017) e mesmo a formas de neuropatia

óptica de início precoce (Marcotulli et al, 2014). Ou seja, um cenário

similar pode ocorrer para condições genéticas tratáveis e desta forma,

mesmo que não sejam as hipóteses mais prováveis, estas devem ser as

primeiras a serem pesquisadas, salvo em situações em que outra

suspeita diagnóstica for muito alta.

7) A Figura 4 resume o passo a passo da elaboração de hipóteses e

solicitação de exames confirmatórios. No caso da solicitação de exames

genômicos sem hipótese específica (aCGH - hibridização genômica

comparativa baseada em microarranjos, WES, painéis de genes) o

conhecimento do rendimento diagnóstico por grupo de condições e

custo irá nortear a ordem de solicitação dos exames. Pistas como um

padrão de herança sugestivo de doença monogênica (consanguinidade,

herança dominante, ou ligada ao X) em geral favorecerão exames que

avaliam alterações em nível gênico (WES ou painéis) em detrimento de

exames que avaliam microdeleções/duplicações como aCGH, mesmo

quando classicamente alguns autores sugiram uma investigação

padronizada para todos os pacientes (Ex: deficiência intelectual).

Page 18: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Figura 4 – Modelo de organização de hipóteses diagnósticas e solicitação

de exames em neurogenética. aCGH, hibridização genômica

comparativa baseada em microarranjos; MLPA, amplificação de sondas

dependente de ligação; NGS, sequenciamento de nova geração; WES,

sequenciamento completo do exoma; WGS, sequenciamento completo do

genoma.

Page 19: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Quadro 4:

Caso clínico: Mulher de 46 anos é encaminhada para avaliação de quadro de

demência rapidamente progressiva. Início do quadro com sintomas depressivos

que seguiram-se por alterações em memória e linguagem (afasia global)

proeminentes com marcado prejuízo das atividades de vida diária, já não

obedecendo mais a comandos após 6 meses do início do quadro. No exame físico

apresentava, além das alterações cognitivas, hiperreflexia difusa, associada a

espasticidade e sinais de Hoffmann e Babinski bilateralmente. Realizou

ressonância magnética de crânio que demonstrou sinais de leucodistrofia de

predomínio frontal, com algumas zonas de restrição na sequência de difusão (DTI)

na substância branca. Curiosamente o irmão mais novo da paciente apresentou

quadro semelhante há alguns anos, estando atualmente acamado e sem vida de

relação. O diagnóstico prévio do irmão havia sido de Doença de Marchiafava-

Bignami. Ao solicitarmos os exames de neuroimagem do irmão ficou claro que o

padrão de leucodistrofia era similar, porém no exame do irmão os achados eram

mais grave com importante comprometimento do esplênio do corpo caloso,

também com zonas de restrição na DTI. O pai deles havia falecido precocemente

aos 50 anos e a mãe, com 79 anos, não tinha sintomas semelhantes. Negavam

outros casos na família.

Organização do Raciocínio Clínico: Os dados positivos seriam demência

rapidamente progressiva, recorrência familiar (herança recessiva ou dominante,

oculta pelo falecimento precoce do pai ou por penetrância incompleta),

leucodistrofia de predomínio frontal, envolvimento do corpo caloso e restrição à

difusão. Foi iniciado investigação de leucodistrofias metabólicas, com exclusão de

leucodistrofia metacromática e o envolvimento similar de homens e mulheres

argumentava contrariamente ao diagnóstico da variante frontal da

adrenoleucodistrofia. Ao revisar a literatura a hipótese principal que explicaria os

achados da paciente seriam a leucoencefalopatia do adulto com esferoides axonais

e glia pigmentar causada por mutações de ponto no gene CSF1R (Konno et al,

2017), e mais recentemente por mutações no gene AARS (Lynch et al, 2016).

Decisão do exame a ser solicitado: Ao ser avaliado o custo do sequenciamento

do gene CSF1R em diferentes laboratórios ficou claro que este era maior do que o

custo de painel de NGS para genes associados a leucodistrofias que incluía os

genes CSF1R, AARS e GFAP, este último relacionado a Doença de Alexander do

adulto, um diagnóstico diferencial possível que ainda não teria sido descartado. Ao

ser conversado com a família foi optado pela realização do painel de genes, o qual,

após poucas semanas, identificou mutação patogênica em heterozigose no gene

CSF1R confirmando o diagnóstico de leucoencefalopatia do adulto com esferoides

axonais e glia pigmentar, uma condição autossômica dominante. Foi realizado

aconselhamento genético e oferecido teste pré-sintomático para familiares em

risco.

Page 20: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Quadro 5 - Discussão pré-clínica em Neurogenética

No Hospital de Clínicas de Porto Alegre temos realizado há muitos anos no contexto da preceptoria dos residentes em genética médica e mais recentemente de neurologia o modelo de discussão pré-clínica dos casos atendidos ambulatorialmente. Ou seja, alguns dias antes do atendimento do paciente e de sua família, o médico que realizará a consulta revisa a história clínica do paciente e faz a organização do raciocínio diagnóstico e apresenta estes dados em reunião com os preceptores. Nos casos sem diagnóstico etiológico específico serão discutidos quais dados adicionais poderiam auxiliar na redução do número de hipóteses diagnósticas, bem como serão definidos quais seriam os exames mais adequados para prosseguir a investigação. Lembre-se que a investigação diagnóstica em geral é complexa e que muitas vezes os pacientes já realizaram muitas avaliações e exames complementares tanto externos quanto internos na instituição de saúde. A revisão detalhada do caso em geral auxilia a otimizar o processo investigativo e na escolha mais racional dos exames complementares a serem solicitados a seguir. O objetivo final será o de realizar uma abordagem custo e tempo efetiva, de acordo com o melhor julgamento clínico, contexto e preferências das famílias. Este modelo pode ser aplicado também no atendimento individual público ou privado, com a revisão do caso previamente ao atendimento, já levando a um direcionamento da investigação diagnóstica.

Conhecimento sobre mecanismos de mutações e exames moleculares

Em capítulos anteriores deste livro foram discutidos os princípios básicos em

genética (Capítulo 1) e os principais exames diagnósticos que podemos

solicitar (Capítulos 2.1 a 2.4). Aqui não iremos repetir o que já foi discutido,

mas tentaremos tornar este conhecimento mais prático. No caso apresentado

no Quadro 2, a suspeita principal era de Ataxia de Friedreich. Ao revisarmos o

Capítulo 3.3 (Ataxias) veremos que esta condição é causada em cerca de

90% dos casos por expansão em homozigose do trinucleotídeo GAA no íntron

1 do gene FXN. Ou seja, caso inadvertidamente optemos pela realização do

WES para o diagnóstico do paciente, o exame solicitado não será capaz de

confirmar o diagnóstico, pois a mutação está em região intrônica e porque as

expansões de trinucleotídeos ainda não são corretamente identificadas pelas

plataformas atuais de NGS. Com o conhecimento da base molecular da doença

pode-se optar por técnicas como PCR longo ou Triplet primed-PCR para a

detecção da expansão envolvida, técnicas disponíveis em diversos laboratórios

e de menor custo. Do mesmo modo, outras doenças neurogenéticas frequentes

como a distrofia muscular de Duchenne (DMD) e Atrofia Muscular Espinhal

(AME) relacionada ao SMN1 por serem causadas na maioria dos casos por

Page 21: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

variações de número de cópias dos genes envolvidos também não seriam

detectadas em exames convencionais de NGS como WES ou mesmo painéis

de genes, exceto nos casos em que se realizar análise específica para esta

finalidade. Apesar de estudos recentes mostrarem que o NGS pode ser um

teste diagnóstico inicial para DMD (Wei et al, 2014), a realização do Multiplex

Ligation-dependent Probe Amplification (MLPA) parece ter melhor perfil de

custo e benefício como teste inicial, conseguindo detectar duplicações do gene,

que em geral são perdidas pelo NGS. No caso da AME-SMN1 a dificuldade do

NGS está tanto no fato de ser uma deleção de éxon inteiro do gene, quanto no

fato de haver um gene parálogo, praticamente idêntico ao SMN1, chamado de

SMN2, gerando erros de alinhamento dos dados do sequenciamento,

inviabilizando a identificação da deleção em análises que não sejam

específicas para esta finalidade (Feng et al, 2017). Neste exemplo, novamente

o MLPA ou qPCR parecem técnicas com melhor perfil de custo benefício para

diagnóstico individual. Contudo, com a evolução das técnicas de NGS (Ver

Capitulo 2.4) e com a redução do custo associada a esta tecnologia, é muito

provável que seja possível a detecção de expansões de nucleotídeos (Liu et al,

2017; Bahlo et al, 2018), bem como sejam resolvidos os problemas de

alinhamento de genes parálogos e pseudogenes, havendo tendência de uma

solicitação cada vez maior de WES e de sequenciamento completo do genoma

(WGS) como exames iniciais, porém com análises focada de acordo com as

hipóteses principais.

Interpretação dos Resultados de Exames genéticos

Após termos realizado a organização do raciocínio diagnóstico em achados

positivos e negativos, e termos elaborado a lista de hipóteses diagnósticas,

estaremos aptos a escolher os exames mais adequados para

confirmação/exclusão dos diagnósticos. Ao escolhermos o exame, após

discussão conjunta com o paciente sobre custos e implicações de resultados e

após termos realizado o aconselhamento pré-teste, finalmente dentro de

algumas semanas a alguns meses (dependendo do teste a ser realizado e do

laboratório executor) receberemos o tão esperado resultado. Focaremos nesta

seção na interpretação de alterações gênicas, ou seja, de variantes causais de

Page 22: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

condições monogênicas. Segundo diretrizes do American College of Medical

Genetics and Genomics (ACMG) de 2015 (Richards et al, 2015) as variantes

devem ser classificadas em patogênicas, provavelmente patogênicas, de

significado incerto (VUS), provavelmente benignas e benignas. A categoria de

maior controvérsia e que irá gerar mais dúvidas de interpretação será a de

VUS. No caso das variantes provavelmente patogênicas e provavelmente

benignas a chance da classificação da alteração ser verdadeira (patogênica ou

benigna) é maior do que no 90%, o que é considerado suficientemente forte

para confirmar ou refutar um diagnóstico. Foge ao escopo do capítulo fazer

uma descrição detalhada da forma de classificação das variantes, sendo

sugerida a leitura integral do artigo de Richards e colaboradores para tal

(Richards et al, 2015). Nos interessa apenas a menção de que existem critérios

considerados muito fortes, fortes, moderados e de suporte para esta

classificação, e que a sua combinação definirá em qual categoria a variante

será enquadrada. Salientamos que é bem possível que estes critérios sejam

atualizados em poucos anos e desta forma, sugere-se ao leitor que sempre

revise se novas diretrizes de classificação de variantes de sociedades como o

ACMG ou outras iniciativas estão disponíveis. A seguir, veremos uma sugestão

de como podemos iniciar uma análise de variantes e de como podemos lidar

com o resultado de uma VUS.

O ponto de partida para a análise das variantes em geral será a busca de sua

frequência na população, para isso podem ser usadas bases de dados

internacionais como Exome Aggregation Consortium (ExAC, disponível em

http://exac.broadinstitute.org/), que disponibiliza dados de WES de cerca de 60

mil indivíduos não relacionados de estudos populacionais ou de doenças

específicas multifatoriais; Genome Aggregation Database (gnomAD, disponível

em http://gnomad.broadinstitute.org/) que disponibiliza dados de WES de cerca

de 123 mil indivíduos não relacionados e de WGS de cerca de 15 mil indivíduos

não relacionados de estudos populacionais ou de doenças específicas

multifatoriais; a base de dados 1000 genomes; e bases nacionais como o

Brazilian Initiative on Precision Medicine (BIPMED, disponível em

http://www.bipmed.org/). É importante salientar que a base ExAC foi

disponibilizada em outubro de 2014 e o gnomAD dois anos depois, sendo

Page 23: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Quadro 6 – Revisão de variantes

Durante a investigação de um caso isolado de um paciente com suspeita de distrofia muscular do tipo cinturas foi encontrada a variante c.479C>G (p.Ala160Gly) no gene CAPN3 (transcrito NM_000070.2, associado à distrofia muscular de cinturas tipo 2A, LGMD2A) em heterozigose. Esta variante foi previamente classificada como patogênica e está registrada na base HGDM com o código CM041734. Quando revisamos a literatura sobre a LGMD2A, uma doença autossômica recessiva, vemos que não é infrequente que seja encontrada apenas 1 variante patogênica quando realizado o sequenciamento das regiões codificantes do CAPN3 (a outra variante poderia ser intrônica ou uma deleção/duplicação e não ter sido detectada pela técnica empregada) tornando este diagnóstico muito provável. Entretanto, ao buscarmos esta variante na base ExAC vemos que sua frequência alélica geral é de 0,004, mas que na população africana a frequência da variante é de 5% (frequência corrigida de 4,6%) e que existem 13 indivíduos homozigotos para a variante em cerca de 10 mil africanos. No gnomAD as frequências são similares, com 24 indivíduos homozigotos para a variante. Lembre-se que nenhum dos bancos usados no ExAC ou gnomAD é de distrofias musculares e desta forma podemos considerar os critérios fortes de benignidade (ACMG 2015) BS1 em que a frequência alélica é maior do que a esperada para a doença (para mais detalhes sobre este critério recomendamos a leitura do artigo de Whiffin e colaboradores de 2017) e BS2 observada em homozigose em indivíduos saudáveis (ou sem a clínica da condição). Ao revisarmos a referência original vemos que o artigo é de 2004 e que não havia análise funcional relacionada. Ao buscarmos no CLINVAR (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/clinvar) vemos que entre 2013 e 2018 a variante foi relatada 8 vezes, em 3 delas sendo classificada como provavelmente benigna e em 5 delas como benigna. A presença dos critérios BS1 e BS2 já permitiriam a classificação da variante como benigna e os dados do CLINVAR corroboram com a classificação preenchendo o critério de probabilidade BP6. Ao avaliarmos a predição de patogenicidade in silico da variante vemos que o Mutation Taster e o SIFT sugerem que a variante seja patogênica e o GERP++ indica que a variante é altamente conservada. Já o Poly-Phen2 considera a variante como tolerada e o M-CAP não avalia a variante, pois considera apenas variantes com frequência alélica <1%. Neste caso não pontuaríamos o item PP3, pois há discordância de predição entre algoritmos, contudo, mesmo que considerássemos a patogenicidade por análise in silico, ainda assim a variante seria classificada como benigna pelos critérios BS1 e BS2 citados acima. Desta forma devemos descartar a variante como causal e outras condições devem ser buscadas para o diagnóstico do paciente.

frequente que anteriormente a estas datas os pesquisadores considerassem

como um dos critérios de patogenicidade a ausência de determinada variante

em uma população de cerca de 100 indivíduos controles. Com a

disponibilidade destas grandes bases dados tornou-se frequente a

reclassificação de variantes consideradas anteriormente como patogênicas e

registradas em bases como o Human Gene Mutation Database em variantes

benignas. O Quadro 6 apresenta um exemplo deste cenário.

Page 24: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Após conhecermos a frequência alélica, avaliaremos o tipo da variante

encontrada. Salientamos que o dado de maior força para classificação de

patogenicidade de variantes será a presença de uma variante nula (mutações

sem sentido, por mudança de matriz de leitura - frameshift - e em sítios

canônicos de splicing) relacionada a uma condição em que a perda de função é

o mecanismo fisiopatológico causal. O sítio canônico de splicing está

localizado 1-2 nucleotídeos antes do início ou após o término de um

determinado éxon. Mutações que possam alterar o sítio de splicing, mas que

não estejam nestas posições, receberão pontuação de predição de alteração

de splicing, no item PP3. Este item, PP3 é um item de suporte para a

classificação de patogenicidade da variante, ou seja, tem um peso fraco para

esta determinação. É neste item que pontuarão os diferentes algoritmos in

silico de predição de patogenicidade. Diversos algoritmos podem ser utilizados

para este fim, entre eles citamos SIFT (disponível em http://sift.jcvi.org),

PolyPhen-2 (disponível em http://genetics.bwh.harvard.edu/pph2), CADD

(http://cadd.gs.washington.edu), Mutation Taster (disponível em

http://www.mutationtaster.org), M-CAP (disponível em

http://bejerano.stanford.edu/mcap/) para variantes de troca de sentido; Human

Splice Finder 3.1 (disponível em http://www.umd.be/HSF3/) e ESE Finder

(disponível em http://rulai.cshl.edu/) para predição de sítio de splicing; e

GERP++ para predição de conservação do nucleotídeo (disponível em

http://mendel.stanford.edu/SidowLab/downloads/gerp/). No artigo de Richards e

colaboradores (Richards et al, 2015) há uma lista mais completa dos algoritmos

que podem ser utilizados. Ressaltamos que se costuma dar um peso excessivo

para o resultado de predição de patogenicidade in silico e isso pode levar a

classificações equivocadas, ver a discussão do Quadro 6.

Se, após realizarmos a classificação segundo os critérios atuais de 2015, a

variante for considerada uma VUS, precisamos lembrar que existem algumas

informações que podem ajudar a mudar esta classificação para o lado de

patogenicidade ou de benignidade. Uma delas, mas que é pouco prática

assistencialmente (exceto no caso de algumas formas de distrofias

musculares), seria a chamada análise funcional. Para esta análise é necessário

Page 25: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

estabelecer em modelo in vitro ou in vivo se a variante encontrada causa ou

não dano ao gene ou ao produto do gene envolvido. Apesar de a análise

funcional gerar a evidência de maior força de patogenicidade ou benignidade

dos critérios que abordaremos, as 2 estratégias mais factíveis na pratica clínica

na opinião dos autores são: 1) a busca em base de dados especificas de

variantes da condição ou do gene em questão, a qual pode ser mais

informativa do que bases genéricas (Ex: Leiden Muscular Dystrophy pages

versus Human Gene Mutation Database para variantes em distrofias

musculares), bem como o contato com especialistas internacionais na

condição, que pode revelar a informação de outros casos com a mesma

variante ainda não relatados na literatura; e 2) a análise de segregação, que

buscará a variante encontrada em outros familiares afetados e em familiares

que não apresentam sintomas. A ausência da alteração em familiar com a

mesma síndrome clínica é uma forte evidência de benignidade da variante, já a

presença em múltiplos familiares afetados poderá tornar-se evidência forte de

patogenicidade (Richards S. et al, 2015). Existem sistemas semelhantes de

classificação para microdeleções e microduplicações, ver Kearney e

colaboradores, 2011.

Revisando as Hipóteses Diagnósticas

Caso após a investigação, as provas diagnósticas resultarem negativas,

considere refazer o processo diagnóstico do início. Muitas vezes será

necessário coletar a história novamente com perguntas abertas e revisar de

forma mais ampla o exame físico a fim de confirmar ou modificar o diagnóstico

sindrômico inicial e toda a organização do raciocínio que vem a seguir (Ex: um

tremor pode ter sido considerado como sinal de ataxia ou a fadiga pode ter sido

interpretada como sinal de fraqueza muscular). Mesmo que todo o processo

tenha sido realizado de modo adequado, um número considerável de pacientes

não terá seu diagnóstico final determinado. Como os exames genéticos são

relativamente recentes e como as técnicas genômicas, que estão

revolucionando o diagnóstico e a descoberta de novas condições, são mais

recentes ainda é possível que a condição do paciente de fato seja monogênica,

mas que sua base genética ainda não tenha sido descrita.

Page 26: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Contudo, também é possível que alguns atalhos tenham ocorrido no processo

do raciocínio diagnóstico, ocasionados por vieses cognitivos, sendo importante

conhecê-los para tentar evitá-los (Rooper, Samuels and Klein, 2014). Veremos

alguns destes vieses cognitivos abaixo:

1) Ordenamento das informações: a ordem de apresentação das

informações influencia nosso processo de tomada de decisão, desta

forma ao ordenar uma lista de problemas ou de hipóteses diagnósticas

tendemos a valorizar mais as informações e hipóteses listadas

primeiramente. O peso excessivo dado a este ordenamento pode levar a

erros no processo diagnóstico.

2) Ancoramento heurístico: neste caso a hipótese principal é considerada

tão forte que o clínico não consegue elaborar hipóteses alternativas ou

não permite mudanças na hipótese principal com o surgimento de novos

fatos.

3) Impacto de diagnósticos recentes: o diagnóstico recente de alguma

condição aumentará a chance de considerar este diagnóstico como

provável para o caso em avaliação. É comum ouvirmos diversos colegas

falarem que uma doença rara em geral vem aos pares. Cuidado, pois

esta frase é falaciosa e apenas implica que ao detectarmos uma

condição rara em dado paciente estaremos mais atentos a ela no

período que virá logo a seguir. Isto pode ser positivo e levar a uma

diagnóstico correto, ou pode induzir a distorções na elaboração das

diferentes hipóteses diagnósticas e aos pesos dados a elas, levando

também por vezes a solicitação de exames desnecessários. Em geral,

tendemos a lembrar apenas dos nossos acertos, e esquecer dos casos

que foram negativos.

4) Heurística representativa: ocorre quando perdemos a perspectiva da

frequência da condição na população e utilizamos outros fatores para

nortear nossas hipóteses. É bem possível que cometamos este erro

frequentemente em neurogenética, pois em nossa avaliação geralmente

partiremos do pressuposto que é provável se tratar de condição genética

neurológica, e essas condições são muito mais raras na população do

que doenças multifatoriais comuns. De qualquer modo, este tipo de viés,

Page 27: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

deve ser relativizado ou melhor contextualizado, pois na situação citada

o cenário populacional seria o da prevalência do diagnóstico de uma

condição neurogenética entre os encaminhamentos realizados para esta

especialidade. Certamente, a prevalência de condições neurogenéticas

neste contexto será marcadamente maior do que a prevalência na

população geral.

5) Obediência cega: acontece quando damos valor excessivo a autoridade

de terceiros (Ex: não permitimos, ou não nos permitem, mudar a

hipótese diagnóstica principal, se ela foi realizada por um profissional

mais experiente do que nós) ou ao resultado de exames diagnósticos.

Neste último caso podemos citar como exemplos a postura de organizar

as hipóteses diagnósticas com base em resultados de

eletroneuromiografia, mesmo que estes sejam conflitantes com o

diagnóstico topográfico do exame neurológico; e confiar cegamente na

confirmação do diagnóstico por análise molecular, mesmo quando a

evolução do quadro no tempo contradiga o diagnóstico realizado. Os

autores já viram alguns casos de erros em diagnóstico molecular, seja

na coleta do exame, seja por trocas de amostras no laboratório, ou por

erros inerentes a tecnologia utilizada ou à interpretação de seus

resultados. Estes erros só foram descobertos com a observação clínica

ao longo do tempo e porque houve contestação de que o quadro do

paciente não seria melhor explicado pela condição que supostamente

teria confirmação molecular.

O papel do seguimento clínico nos casos sem diagnóstico definitivo

Ao longo do capítulo vimos a importância da organização e sistematização do

raciocínio diagnóstico em neurogenética. Entretanto, sabemos que mesmo

seguindo este modelo um número razoável de pacientes não chegará a um

diagnóstico definitivo e se ao revisitarmos nossas hipóteses (ou se algum

colega o fizer) não encontrarmos hipóteses alternativas ainda não descartadas,

a principal informação virá do seguimento clínico, que poderá levar meses ou

mesmo anos.

Page 28: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

A busca de condições tratáveis como passos iniciais da investigação ajudará

não apenas ao evitarmos atrasos na instituição do tratamento eficaz no caso da

confirmação diagnóstica, mas também ajudará ao retirar a necessidade de

urgência no estabelecimento do diagnóstico final. Desta forma, precisamos

deixar claro ao paciente que muitas vezes o diagnóstico específico não irá

mudar o seu tratamento e que as medidas de tratamento sintomático que já

estão sendo realizadas independem da definição etiológica. Também vale

reforçar para o paciente (e para nós mesmos) que muitas das condições

neurológicas comuns não tem exames diagnósticos de certeza que possam ser

utilizados na prática clínica para confirmar o diagnóstico definitivo (Ex: doença

de Parkinson idiopática, doença de Alzheimer, enxaqueca, etc.) e que o

diagnóstico provável dessas condições é realizado com base nos sinais e

sintomas clínicos e muitas vezes com exames de exclusão de outras causas.

Certamente, ao finalizarmos a investigação de um paciente com suspeita de

condição neurogenética teremos realizado o diagnóstico sindrômico principal e

conseguiremos estabelecer em qual grupo de condições se encaixa a

apresentação do paciente. Ou seja, também teremos um diagnóstico clínico

provável, assim como no caso das doenças multifatoriais, apenas não teremos

a confirmação da alteração genética causal específica. Ter um exame

diagnóstico (confirmatório) disponível clinicamente e que seja o padrão-ouro

para o diagnóstico na verdade é um privilégio de quem trabalha com

neurogenética clínica e em pesquisas em neurogenética.

Em outras palavras, não diremos ao paciente que ele não tem diagnóstico, mas

sim que a causa do diagnóstico dele (seja qual for a apresentação) ainda não

foi encontrada, mas que isso ocorre na hipertensão arterial, diabetes mellitus,

doença de Parkinson, etc., e iremos propor seu seguimento clínico.

Entretanto salientamos que na maioria das vezes tentaremos chegar ao

diagnóstico definitivo. A confirmação do diagnóstico etiológico

(independentemente de haver ou não tratamento específico) em geral oferece

algum conforto para o paciente ou familiar, pois a angústia de estar seguindo

um caminho errado ou perdendo tempo para iniciar um tratamento seria

mitigada pelo diagnóstico definitivo. Além disso, com o diagnóstico definitivo

teremos informações mais acuradas para realizarmos adequadamente o

Page 29: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

aconselhamento genético, e para darmos informações prognósticas,

educacionais e de reabilitação (Tifft CJ & Adams, 2014).

Conclusão

Esperamos que a leitura deste capítulo permita a organização do raciocínio

diagnóstico em neurogenética, resultando em uma elaboração mais racional de

hipóteses e em maior resolutividade e eficiência da investigação diagnóstica.

Acreditamos que o capítulo pode aproximar as diferentes especialidades que

atuam na área, ao tranquilizar o neurologista e o neuropediatra na solicitação

de múltiplos exames paraclínicos que sirvam para uma melhor caracterização

do fenótipo e não necessariamente para a confirmação diagnóstica e ao

auxiliar o médico geneticista a manter raciocínio diagnóstico similar ao de

doenças genéticas extra-neurológicas e informá-lo sobre a necessidade de

conhecer o exame neurológico dos principais grupos de condições ou

topografias antes de iniciar o processo investigativo. Salientamos, que além de

estarmos vivenciando uma revolução nos aspectos diagnósticos das condições

genéticas nos últimos anos com o advento do NGS e do aCGH, também

estamos vivendo uma era de revolução nos tratamentos modificadores destas

condições, em alguns casos inclusive com a descrição de tratamentos

mutação-específicos. Neste cenário, é bem provável que nos próximos anos

haja uma importância ainda maior da confirmação do diagnóstico molecular das

doenças neurogenéticas para o estabelecimento do plano terapêutico. Espera-

se também que as técnicas de reprodução assistida como o diagnóstico pré-

implantacional, que dependem do diagnóstico molecular prévio da condição

familiar, e que podem ser uma das opções dos casais em risco de terem filhos

afetados pela mesma condição, tenham performances ainda melhores, com

menores custos, e com maior acesso em especial na atenção pública à saúde

nos diferentes países.

Page 30: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

Referências

1. Bahlo M, Bennett MF, Degorski P, et al. Recent advances in the

detection of repeat expansions with short-read next-generation

sequencing. F1000Res. 2018 Jun 13;7.

2. Bowdin S, Gilbert A, Bedoukian E, et al. Recommendations for the

integration of genomics into clinical practice. Genet Med. 2016

Nov;18(11):1075-1084.

3. Brashear A, Sweadner KJ, Cook JF, et al. ATP1A3-Related Neurologic

Disorders. 2008 Feb 7 [Updated 2018 Feb 22]. In: Adam MP, Ardinger

HH, Pagon RA, et al., editors. GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA):

University of Washington, Seattle; 1993-2018.Available from:

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK1115/

4. Chadi G, Maximino JR, Jorge FMH, e al. Amyotroph Lateral Scler

Frontotemporal Degener. 2017 May;18(3-4):249-255.

5. Chaves MLF. Raciocínio Diagnóstico em Neurologia. Em: Chaves MLF,

Finkelsztejn A, Stefani MA. Rotinas em Neurologia e Neurocirurgia. 1ª

Edição. Artmed. 2008

6. Cruz MW. Regional differences and similarities of familial amyloidotic

polyneuropathy (FAP) presentation in Brazil. Amyloid. 2012 Jun;19 Suppl

1:65-7.

7. Coutelier M, Coarelli G, Monin ML, et al. A panel study on patients with

dominant cerebellar ataxia highlights the frequency of channelopathies.

Brain. 2017 Jun 1;140(6):1579-1594.

8. Feng Y, Ge X, Meng L, The next generation of population-based spinal

muscular atrophy carrier screening: comprehensive pan-ethnic SMN1

copy-number and sequence variant analysis by massively parallel

sequencing. Genet Med. 2017 Aug;19(8):936-944.

9. Fogel BL, Lee H, Deignan JL, et al. Exome sequencing in the clinical

diagnosis of sporadic or familial cerebellar ataxia. JAMA Neurol. 2014

Oct;71(10):1237-46.

10. Fogel BL. Genetic and genomic testing for neurologic disease in clinical

practice. Handb Clin Neurol. 2018;147:11-22.

Page 31: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

11. Geschwind DH. Evolving views of human genetic variation and its

relationship to neurologic and psychiatric disease. Handb Clin Neurol.

2018;147:37-42.

12. Kearney HM, Thorland EC, Brown KK, et al. American College of

Medical Genetics standards and guidelines for interpretation and

reporting of postnatal constitutional copy number variants. Genet Med.

2011 Jul;13(7):680-5.

13. Konno T, Yoshida K, Mizuno T, et al. Clinical and genetic

characterization of adult-onset leukoencephalopathy with axonal

spheroids and pigmented glia associated with CSF1R mutation. Eur J

Neurol. 2017 Jan;24(1):37-45.

14. Kurian MA, Gissen P, Smith M, Heales S Jr, Clayton PT. The

monoamine neurotransmitter disorders: an expanding range of

neurological syndromes. Lancet Neurol. 2011 Aug;10(8):721-33.

15. Liu Q, Zhang P, Wang D, Gu W, Wang K. Interrogating the

"unsequenceable" genomic trinucleotide repeat disorders by long-read

sequencing. Genome Med. 2017 Jul 18;9(1):65.

16. Lynch DS, Zhang WJ, Lakshmanan R, et al. Analysis of Mutations in

AARS2 in a Series of CSF1R-Negative Patients With Adult-Onset

Leukoencephalopathy With Axonal Spheroids and Pigmented Glia.

JAMA Neurol. 2016 Dec 1;73(12):1433-1439.

17. Marcotulli C, Leonardi L, Tessa A, et al. Early-onset optic neuropathy as

initial clinical presentation in SPG7. J Neurol. 2014 Sep;261(9):1820-1.

18. Nishimura AL, Mitne-Neto M, Silva HC, et al. A mutation in the vesicle-

trafficking protein VAPB causes late-onset spinal muscular atrophy and

amyotrophic lateral sclerosis. Am J Hum Genet. 2004 Nov;75(5):822-31.

19. Nussbaum RL, McInnes RR, Willard HF. Thompson & Thompson

Genetics in Medicine. 8th Edition. Elsevier; 2015.

20. Ohba C, Osaka H, Iai M, Yamashita S, et al. Diagnostic utility of whole

exome sequencing in patients showing cerebellar and/or vermis atrophy

in childhood. Neurogenetics. 2013 Nov;14(3-4):225-32.

21. Ropper AH, Samuels MA, Klein JP. Approach to the Patient with

Neurologic Disease. In: Adams and Victor´s Principle of Neurology, 10th

Edition. McGraw-Hill education. 2014.

Page 32: CAPÍTULO Raciocínio Diagnóstico em Neurogenética

Saute et al, 2018

22. Richards S, Aziz N, Bale S, et al. Standards and guidelines for the

interpretation of sequence variants: a joint consensus recommendation

of the American College of Medical Genetics and Genomics and the

Association for Molecular Pathology. Genet Med. 2015 May;17(5):405-

24.

23. Saudubray JM, Sedel F, Walter JH. Clinical approach to treatable inborn

metabolic diseases: an introduction. J Inherit Metab Dis. 2006 Apr-

Jun;29(2-3):261-74.

24. Sawyer SL, Schwartzentruber J, Beaulieu CL, et al. Exome sequencing

as a diagnostic tool for pediatric-onset ataxia. Hum Mutat. 2014

Jan;35(1):45-9.

25. Synofzik M, Schüle R. Overcoming the divide between ataxias and

spastic paraplegias: Shared phenotypes, genes, and pathways. Mov

Disord. 2017 Mar;32(3):332-345.

26. Souza GN, Kersting N, Krum-Santos AC, et al. Spinocerebellar ataxia

type 3/Machado-Joseph disease: segregation patterns and factors

influencing instability of expanded CAG transmissions. Clin Genet. 2016

Aug;90(2):134-40.

27. Tifft CJ, Adams DR. The National Institutes of Health undiagnosed

diseases program. Curr Opin Pediatr. 2014 Dec;26(6):626-33.

28. Wei X, Dai Y, Yu P, et al. Targeted next-generation sequencing as a

comprehensive test for patients with and female carriers of DMD/BMD: a

multi-population diagnostic study. Eur J Hum Genet. 2014 Jan;22(1):110-

8.

29. Whiffin N, Minikel E, Walsh R, et al. Using high-resolution variant

frequencies to empower clinical genome interpretation. Genet Med. 2017

Oct;19(10):1151-1158.