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1 Cardinais Transfinitos A “Possança” ou o número de elementos de um conjunto infinito Ernesto von Rückert (Trabalho apresentado em 1968, como parte das exigências para aprovação na disciplina “Fundamentos da Matemática” do primeiro ano do Curso de Matemá- tica da Universidade Presidente Antônio Carlos em Barbacena, Minas) Não é minha pretensão escrever um tratado sobre a possança dos conjuntos que esgote completamente o assunto. Quero simplesmente fazer al- guns comentários da matéria colhida aqui e acolá, um pouquinho em cada li- vro, que estejam ao alcance do leigo, sem tampouco faltar ao rigor matemático que o assunto exige. À medida que se desenvolve o raciocínio da criança, ela vai obser- vando os seres e fenômenos da natureza e tirando as suas conclusões. Uma das coisas mais importantes que ela passa a compreender é a manifestação da uni- dade, da variedade e da pluralidade. Ao contemplar uma ninhada de gatinhos, por exemplo, a criança começa a perceber que, além de ser cada gatinho um ente individual, há um certo “quê” que é o comum a todos, isto é, o fato de se- rem gatos de uma mesma ninhada. Em geral, sempre que ela percebe um grupo de indivíduos ou coisas, que possuem alguma propriedade comum, ela os agru- pa em um conjunto e lhes associa a sua propriedade comum. Por exemplo, con- junto de pessoas da sua família, conjunto de móveis do seu quarto e assim por diante. Evento semelhante ocorreu com a espécie humana, fazendo a ana- logia entre sua evolução e a da criança. A idéia de conjunto e de elemento foi sendo gravada cada vez mais caracterizadamente na inteligência dos povos pré- históricos. Mais tarde, com a complexidade crescente das atividades do ho- mem, outra noção matemática foi surgindo em sua mente. O bicho-homem que era nômade fixou-se e, de caçador, passou às atividades gregárias da agricultu- ra e da pecuária. Nesta última, necessário se fazia manter um rígido controle sobre o gado, para estar a par das atividades dos animais e, mesmo, dos ho- mens predadores. Assim sendo, ao soltar as reses pela manhã, ele associava a cada cabeça uma pedrinha e a colocava em uma sacola. À noite, ao recolhê-las, fazia nova associação e assim podia verificar se estavam intactas. Observemos que a cada animal correspondia uma pedrinha e cada pedrinha associava-se a um único animal. Esta correspondência é chamada correspondência bi-unívoca ou correspondência um-a-um nos dois sentidos.

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    Cardinais Transfinitos A Possana ou o nmero de elementos de um conjunto infinito

    Ernesto von Rckert

    (Trabalho apresentado em 1968, como parte das exigncias para aprovao na

    disciplina Fundamentos da Matemtica do primeiro ano do Curso de Matem-tica da Universidade Presidente Antnio Carlos em Barbacena, Minas)

    No minha pretenso escrever um tratado sobre a possana dos

    conjuntos que esgote completamente o assunto. Quero simplesmente fazer al-guns comentrios da matria colhida aqui e acol, um pouquinho em cada li-vro, que estejam ao alcance do leigo, sem tampouco faltar ao rigor matemtico que o assunto exige.

    medida que se desenvolve o raciocnio da criana, ela vai obser-vando os seres e fenmenos da natureza e tirando as suas concluses. Uma das coisas mais importantes que ela passa a compreender a manifestao da uni-dade, da variedade e da pluralidade. Ao contemplar uma ninhada de gatinhos, por exemplo, a criana comea a perceber que, alm de ser cada gatinho um ente individual, h um certo qu que o comum a todos, isto , o fato de se-rem gatos de uma mesma ninhada. Em geral, sempre que ela percebe um grupo de indivduos ou coisas, que possuem alguma propriedade comum, ela os agru-pa em um conjunto e lhes associa a sua propriedade comum. Por exemplo, con-junto de pessoas da sua famlia, conjunto de mveis do seu quarto e assim por diante.

    Evento semelhante ocorreu com a espcie humana, fazendo a ana-logia entre sua evoluo e a da criana. A idia de conjunto e de elemento foi sendo gravada cada vez mais caracterizadamente na inteligncia dos povos pr-histricos.

    Mais tarde, com a complexidade crescente das atividades do ho-mem, outra noo matemtica foi surgindo em sua mente. O bicho-homem que era nmade fixou-se e, de caador, passou s atividades gregrias da agricultu-ra e da pecuria. Nesta ltima, necessrio se fazia manter um rgido controle sobre o gado, para estar a par das atividades dos animais e, mesmo, dos ho-mens predadores. Assim sendo, ao soltar as reses pela manh, ele associava a cada cabea uma pedrinha e a colocava em uma sacola. noite, ao recolh-las, fazia nova associao e assim podia verificar se estavam intactas. Observemos que a cada animal correspondia uma pedrinha e cada pedrinha associava-se a um nico animal. Esta correspondncia chamada correspondncia bi-unvoca ou correspondncia um-a-um nos dois sentidos.

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    A observao e a experincia cotidiana nos dizem que muito fcil estabelecer esta correspondncia: a cada pessoa corresponde o seu nome ra-ramente haver numa coletividade duas pessoas com o mesmo nome, cada bo-to corresponde sua casa, cada residncia ao seu endereo etc. Estamos to acostumados a isto que no percebemos que quando chamamos Joo quem nos atende no a palavra Joo e sim a pessoa correspondente.

    Se os elementos de dois conjuntos podem ser postos em correspon-dncia bi-unvoca, os conjuntos denominam-se equivalentes. Desta maneira so equivalentes as reses e as pedrinhas do embornal do nosso homem pr-histrico. Agora observemos: Posso tomar um conjunto de livros e correspon-d-lo bi-univocamente a um conjunto de bananas, associar a cada banana uma pessoa diferente, a cada pessoa uma estrela e assim sucessivamente, associar bi-univocamente os livros com qualquer conjunto definido por qualquer esp-cie de elementos. No entanto, apesar da diversidade dos conjuntos, uma coisa mantm-se constante e propriedade comum a todos esses conjuntos. Tal coisa o nmero de elementos do conjunto. Para definirmos mais precisamente o que seja este nmero, vamos partir de umas consideraes bsicas e elementa-res.

    Certos conjuntos podem ser dispostos de tal maneira que seus ele-mentos possuam uma certa ordem, isto , de tal maneira que eu possa dizer se um elemento anterior ou posterior a outro. Por exemplo: o conjunto de anda-res de um prdio. Quando houver dois elementos a e b desse tal conjunto, a anterior a b, para os quais no exista elemento posterior a a nem ante-rior a b, este conjunto chamado discreto e o elemento b o seguinte de a, sendo a o antecedente de b. Pode haver um conjunto discreto e orde-nado em que exista um dado elemento especial, nomeado primeiro elemento, que no possua antecedente ou que no seja seguinte de nenhum outro elemen-to do conjunto considerado anlogamente poder haver um ltimo elemen-to. Vejamos um conjunto muito importante em matemtica, no qual esses con-ceitos que vimos se realizam.

    Chamemos este conjunto de Conjunto dos Nmeros Naturais, re-presentando-o por N e vamos defini-lo:

    Seja zero simbolizado por 0 o primeiro dos elementos de N.

    N de tal maneira que, qualquer que seja um elemento de N que consideremos, haver, em N , um seguinte para este elemento.

    Cada elemento s possui um seguinte e cada elemento, com exce-o do zero, seguinte de um nico elemento, dentro do conjunto N.

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    Se houver alguma propriedade de que goze o primeiro elemento de N e, se o fato de um certo elemento qualquer de N gozar dessa propriedade a-carretar que o elemento seguinte tambm goze, ento todos os elementos de N gozam dessa propriedade.

    Analisemos os itens da definio, ao mesmo tempo em que procu-ramos dar uma noo intuitiva de nmero natural.

    H certos conjuntos que no possuem elementos. Por exemplo, o conjunto dos brasileiros de origem lusa, nascidos no sculo XII. Ora, como sa-bemos, os portugueses chegaram nossa ptria no ano de 1500, sendo impos-svel que houvesse brasileiros descendentes de portugueses antes dessa data no Brasil. Este , ento, um tipo de conjunto vazio, melhor dizendo, O, conjunto vazio, pois que nico, j que um conjunto definido por seus elementos e no existem diferentes tipos de ausncia de elementos. Portanto, ele s pode estar correspondendo bi-univocamente consigo mesmo, se pudssemos dizer que a cada nenhum elemento corresponde elemento algum. Logo, se quiss-semos comparar esse conjunto com algum conjunto padro, por exemplo, as pedrinhas do embornal, teramos que colocar nenhuma pedrinha. Ou, em outras palavras: colocar zero pedrinhas no embornal. Este zero, abstrao feita da quantidade de elementos de um conjunto vazio, o primeiro elemento dos n-meros naturais. O conceito de unidade tambm intuitivo. Chamaremos unida-de a cada elemento individualmente. Ele um elemento do conjunto. O con-junto que possui menor nmero de elementos aquele que tem um elemento. Esse um o seguinte do zero nos nmeros naturais. E assim por diante. Co-locamos vrios conjuntos equivalentes e associamos um-a-um seus elementos com a sucesso dos nmeros naturais a partir do um. Procedemos assim a uma contagem dos elementos do conjunto. Se o conjunto possuir um ltimo ele-mento supusemos tacitamente que ele possui o primeiro elemento, ento o nmero natural que estiver em correspondncia com esse elemento o nmero de elementos do conjunto, ou melhor, o nmero cardinal do conjunto. Zero o nmero cardinal do conjunto vazio. O nmero natural chamado dez o nmero cardinal do conjunto dos dedos das mos; o nmero natural chamado sete o nmero cardinal do conjunto dos dias da semana.

    interessante notar que o nmero natural existe independentemente do nome que se d a ele ou do smbolo que a ele se associa. Porm, como foi dito antes, j estamos to habituados correspondncia um-a-um, que invoca-mos um nmero natural pelo seu numeral isto , os sinais grficos e fonti-cos com que o designamos sem que isto cause a mnima perturbao.

    Voltando ento ao nmero cardinal, simples concluir que qualquer conjunto finito possui para cardinal um nmero natural. Mesmo o conjunto de

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    gros de areia das praias ou o conjunto de estrelas do Universo, ou o conjunto de molculas de gua do oceano pode ser colocado em equivalncia com uma parte dos nmeros naturais que vai do um at o nmero cardinal do conjunto. Isto , estes conjuntos so finitos. Que seria um conjunto finito?

    Em primeiro lugar, um conjunto finito discreto. Em segundo lu-gar, possui primeiro e ltimo elementos. O conjunto de instantes do tempo en-tre dois instantes dados, apesar de possuir primeiro e ultimo elementos, no finito, pois no discreto, isto , denso ou, em outras palavras: entre dois ins-tantes quaisquer existe pelo menos um instante intermedirio. Esse intervalo de tempo no pode ser colocado em equivalncia com uma parte dos nmeros na-turais que possua um ultimo elemento para ser seu cardinal.

    O quarto item da definio de nmero natural chamado Princpio da Induo Completa. A sua importncia diretamente proporcional sua in-compreenso por parte de muita gente. Posso provar que certo vago qualquer de um trem vai parar quando o semforo estiver fechado sem sequer mencion-lo. Basta que eu prove que o primeiro vago, isto , a locomotiva ir parar no sinal e que se um vago parar, o seguinte tambm pra. Com efeito, parando a mquina, o segundo vago pra. Parando este, o terceiro pra, o que faz o quar-to parar e assim por diante, todos os carros pararo. Logicamente o carro con-siderado tambm para.

    Isto usado para facilitar muitas demonstraes em matemtica. J que falamos em nmero cardinal, equivalncia e nmero natural,

    podemos atacar os seguintes problemas: Que conjuntos so equivalentes ao conjunto N? Qual o nmero cardinal do conjunto N ? Podemos colocar N em correspondncia consigo mesmo e verificamos qual o ltimo elemento. S que N no possui ltimo elemento, pois qualquer que seja o nmero natural, existe um nmero seguinte, o que implicaria na existncia de um seguinte ao ltimo elemento que deixaria de ser o ltimo. Isto , N um conjunto infini-to. No existe um nmero natural que seja cardinal de N .

    O conceito de infinito muito sutil e presta-se a uma anlise deta-lhada.

    Infinito uma coisa que no existe na natureza. uma simples abs-trao da mente humana. Na natureza tudo finito, mesmo que seja incomen-suravelmente, indefinidamente, infinitamente grande. O telescpio de Monte Palomar alcana dois bilhes de anos luz; poucos, ou talvez nenhum homem capaz de compreender e visualizar esse nmero que no entanto pode ser escrito no nosso sistema de numerao decimal, em menos de seis centmetros: 2.000.000.000. Este nmero maior que o nmero de quilmetros quadrados da superfcie da Terra, maior do que o nmero de quilmetros que nos separam

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    do Sol, maior do que o nmero de metros que nos separam da Lua, e mesmo assim um nmero bem pequeno. Se quisssemos saber aquela distncia em angstrons medida usada para medir tomos teramos 50 decilhes de angstrons ou 5 com 34 zeros depois. O nmero de tomos do Universo foi cal-culado em 1 com 72 zeros depois. E observemos que cada zero acrescentado multiplica o nmero por dez. Existe um nmero chamado googol, que 1 com 100 zeros depois. maior do que o nmero de tomos do Universo. O googol-plex 1 com 1 googol de zeros depois. Porm, ainda um nmero finito e po-de haver teoricamente conjuntos finitos que possuam esse nmero para cardinal.

    Da podemos inferir que o infinito, idealizado pela razo humana, de tal maneira grande que inconcebvel por essa mesma razo. Disse de tal maneira grande, mas esta expresso no pode ser aplicada ao infinito, pois ele maior do que qualquer coisa ou nmero imaginvel. Contudo, o homem ousou contar os elementos de um conjunto infinito; props um nmero cardinal para os nmeros naturais.

    Foi o matemtico alemo Georg Cantor (1845-1918), nascido na Rssia, que, em fins do sculo XIX, idealizou uma classe de nmeros para se-rem cardinais dos conjuntos infinitos. Como os nmeros cardinais que conhe-cemos so finitos, so nmeros naturais, outro nome deve ser dado ao nmero de elementos dos conjuntos infinitos. Eles so chamados nmeros cardinais transfinitos e representam a possana ou potncia dos conjuntos infinitos, que equivalente ao nmero de elementos dos conjuntos finitos. Sendo o con-junto infinito, no posso dizer quantos elementos ele tem, mas posso dizer qual a possana que ele possui. Como definimos nmero cardinal como a abstra-o feita da propriedade comum de todos os conjuntos finitos que esto em correspondncia bi-unvoca, assim definimos possana propriedade comum de todos os conjuntos infinitos que sejam equivalentes.

    Ora, dir o leitor, assim como o vazio nico, tambm o infinito, qualquer que seja, o mesmo. No se pode dizer que certo conjunto infinito tem mais elementos que o outro: os dois possuem infinitos elementos! Com o desenvolver deste trabalho poderemos comprovar a falsidade desta afirmao.

    Cantor designou os nmeros cardinais transfinitos pela letra alef, primeira letra do alfabeto hebraico. A sucesso dos alefs indicada por ndices naturais 0, 1, 2, 3, de tal modo que o conjunto dos nmeros transfinitos possa ser colocado em correspondncia com os nmeros naturais.

    O primeiro conjunto infinito que se nos apresenta o conjunto dos nmeros naturais. A ele e a todos os conjuntos que lhe so equivalentes atribu-

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    irmos o cardinal transfinito 0, ou dizemos que a sua possana 0. Lem-brando que 0 um nmero infinito e portanto sem possibilidade de compara-o com qualquer nmero natural. Outro conjunto de possana 0 o conjunto dos nmeros pares ou mpares positivos. 0,2,4,6,8,10,12 ... a sucesso dos nmeros pares. 0,1,2,3,4,5,6,7,... a sucesso dos nmeros naturais. Aparente-mente, o nmero cardinal dos pares metade do nmero cardinal dos naturais,

    isto , 02 . Provaremos que o prprio 0. Sabemos que dois conjuntos possu-

    em a mesma possana se os seus elementos podem ser postos em correspon-dncia bi-unvoca. Como a cada natural corresponde um par que o seu dobro e a cada par corresponde um natural que a sua metade, temos a correspon-dncia:

    0 1 3 4 5 6 7 8 9 10 ... 0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 ... Logo, os dois conjuntos possuem a mesma possana, isto : 0. Chamamos de nmeros inteiros relativos, sem muito rigor muito

    matemtico, aos nmeros naturais reunidos com um conjunto que chamaremos de inteiros negativos, que correspondem aos nmeros naturais afetados de uma sinal menos. Isto :

    ... -5, -4, -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, 4, 5, ... fcil verificar a correspondncia bi-unvoca entre este conjunto e

    os nmeros naturais, basta que escrevamos a sucesso iniciada por zero, assim: 0, 1, -1, 2, -2, 3, -3, 4, -4, 5, -5 ... Outro conjunto numrico que possui a mesma possana dos nme-

    ros naturais o conjunto dos nmeros racionais. Nmeros racionais so os n-

    meros de forma pq onde q e q so nmeros inteiros. Consideremos os racionais

    positivos onde p e q so nmeros naturais e q no seja zero. Este conjunto um conjunto denso, pois entre dois nmeros racionais quaisquer existe pelo menos um outro que a mdia dos dois. Sendo assim, pareceria impossvel estabele-cer uma correspondncia bi-unvoca com os nmeros naturais, que um con-junto discreto. De fato esta equivalncia impossvel se tomarmos os nmeros racionais em ordem crescente. Porm, possvel arranj-los segundo um es-quema atribudo a Cantor, dispondo-os em uma tabela retangular em que os nmeros p numeradores esto ordenados crescentemente da esquerda para a direita e os nmeros q denominadores esto ordenados em ordem crescente de cima para baixo.

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    12

    13

    14

    15

    16 . . .

    0 / 0 / 0 /

    21

    22

    23

    24

    25

    26 . . .

    / 0 / 0 /

    31

    32

    33

    34

    35

    36 . . .

    0 / 0 / 0

    41

    42

    43

    44

    45

    46 . . .

    / 0 / 0 / ... ... ... ... ... ...

    Podemos proceder a uma contagem desses nmeros, seguindo as se-tas indicadas no diagrama, percorrendo deste modo todos os nmeros racionais. Observemos que em cada diagonal a soma dos termos p e q constante. A su-cesso dos nmeros racionais pode ento ser considerada do ponto de vista da soma dos termos p e q. Dentro de uma mesma classe, a ordenao seria dada pelo numerador, por exemplo. Temos ento:

    11 ,

    21 ,

    12 ,

    31 ,

    22 ,

    13 ,

    41 ,

    32 ,

    23 ,

    14 ,

    51 ,

    42 ,

    33 ,

    24 ,

    15 ,

    61 ,

    52 ,

    43 ,

    34 ,

    25 ,

    16 . . .

    Eliminando todas as fraes que possam ser reduzidas a casos ante-riores isto , numerais diferentes que representam o mesmo nmero racio-nal, a equivalncia com os nmeros naturais fica ento perfeitamente determi-nada, significando que a possana dos nmeros racionais 0.

    A ttulo de ilustrao podemos citar alguns exemplos de conjuntos equivalentes a N: os conjuntos dos mltiplos dos nmeros naturais, o conjunto dos nmeros primos, o conjunto dos nmeros algbricos, isto , nmeros que podem ser solues reais de equaes polinomiais de coeficientes racionais.

    interessante notar que o conjunto de todos os grupamentos que podemos fazer com os nmeros naturais, cada grupamento sendo um elemento, ou seja, o conjunto dos subconjuntos dos nmeros naturais, chamado conjunto potncia de N, resistiu a todas as peripcias a fim de se estabelecer uma corres-pondncia bi-unvoca com os nmeros naturais. Se, por exemplo, partssemos do princpio de agrupar os elementos em conjuntos ordenados segundo a soma dos elementos no teramos como incluir os subconjuntos infinitos dos nme-ros naturais. Este fato levou Cantor a propor para o conjunto potncia de N a possana de 1.

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    O fato de um conjunto possuir a possana 1 significa que ele um conjunto infinito de tal maneira que no pode ser colocado em correspondncia bi-unvoca com o conjunto N. A classe de todos os conjuntos equivalentes ao conjunto potncia de N define o nmero cardinal 1.

    Vejamos ento quais os conjuntos que possuem a cardinalidade do conjunto potncia de N.

    Em matemtica podemos distinguir duas espcies de grandezas: e-numerveis e mensurveis. Enumerveis so as grandezas referentes a objetos que podem ser colocados em equivalncia com N. Assim, cinco livros, dois homens, duas dzias de laranjas, so grandezas enumerveis. Mas se quisermos contar quantas horas temos em um momento, a partir de zero hora, no pode-mos dar a resposta em termos de nmero natural. No existem blocos inteiros e individuais de tempo, ele contnuo (veja-se, contudo, a quantizao do espa-o-tempo). Analogamente, ao medirmos uma distncia ou uma massa, no te-mos blocos padres indivisveis. Estas so grandezas mensurveis, sua suces-so contnua, que o conceito oposto do descontnuo e do discreto. Chama-mos de nmero real ao nmero capaz de se identificar com as grandezas cont-nuas. O conjunto dos nmeros reais infinito e contnuo, abrangendo o conjun-to dos inteiros e racionais relativos alm dos nmeros chamados irracionais, isto , nmeros reais que no so racionais e nem inteiros.

    Podemos provar que os nmeros reais no so equivalentes aos n-meros naturais. Antes verifiquemos algumas equivalncias preliminares. O conjunto dos nmeros reais pode ser colocado em correspondncia bi-unvoca com os pontos de uma reta. Uma reta um conjunto infinito de pontos, dispos-tos sem intervalo, isto , continuamente, prolongando-se indefinidamente nos dois sentidos, com a propriedade indefinvel de manter uma direo reta constante. A reta no possui espessura, s comprimento, ou seja, unidimensi-onal. Seus elementos so os pontos, entes abstratos, desprovidos de massa e de volume, com a nica propriedade de possuir localizao ou posio. Sendo a reta e os nmeros reais contnuos fcil estabelecer-se uma correspondncia bi-unvoca entre os dois conjuntos desde que se fixe um ponto da reta para se associar ao nmero zero, que se convencione um sentido positivo a partir do zero e que se estabelea a invarincia da distncia entre dois pontos, ou seja, que se estabelea uma escala constante para toda a reta. O nmero real x atri-budo ao ponto P chamado coordenada de P.

    Agora vamos provar que qualquer segmento de reta equivalente reta toda. Observemos o desenho:

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    Vamos estabelecer a correspondncia bi-unvoca entre a reta r e o

    segmento AB (a reta prolonga-se indefinidamente no sentido das flechas). Pe-gamos um ponto C qualquer do segmento AB e projetemos ortogonalmente (em ngulo reto) C sobre a reta r. A projeo o ponto D. Construmos os segmentos AD e BD. Qualquer ponto E de AB corresponde a um nico ponto G de r, do seguinte modo: Se E estiver esquerda de C, como o caso do de-senho, projetemos E sobre AD por meio de um segmento paralelo a CD, sendo F a projeo. Projetemos ento o ponto F sobre a reta r por meio de um seg-mento que passa por C e F, encontrando a reta r em G. Reciprocamente, qual-quer ponto H de r corresponde a um nico ponto I de AB. Partindo de H, tra-cemos o segmento HC, que intercepta no caso do desenho o segmento BD em J. Projetemos J sobre AB, paralelamente a CD, encontrando ento o ponto I. Como podemos observar, tanto G quanto I so nicos. Ento, se a correspon-dncia um-a-um nos dois sentidos, ela bi-unvoca e o segmento AB equi-valente reta r, possuindo a mesma possana, isto , o mesmo nmero de pon-tos do que r.

    Como a reta equivalente aos nmeros reais, um segmento tambm . Como, de acordo com a conveno adotada, um segmento equivale a um in-tervalo contnuo de nmeros reais como o segmento possui um tamanho fini-to: a distncia entre seus pontos extremos finita; ele est correspondendo a um intervalo de nmeros reais para que se mantenha o princpio da invariana da distncia, conclumos que o conjunto dos nmeros reais equivalente a um intervalo de nmeros reais. Desta maneira, se provarmos que um intervalo de nmeros reais no equivalente ao conjunto N, estar provado que os nmeros reais no o so.

    Consideremos o intervalo que vai de zero at um, inclusive os ex-tremos. Os nmeros reais desse intervalo podero ser representados por fraes decimais infinitas se observarmos, por exemplo, que 0,234, pode ser conside-rado como 0,233999... Vamos supor por hiptese, que os nmeros reais desse intervalo so numerveis equivalentes a N. Temos ento, por exemplo:

    r

    B AE C I

    J F

    G H D

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    0 0,00000000000000... 1 0,12345980399... 2 0,135790038214... 3 0,54329987712019...

    etc, etc Vamos construir um nmero que no esteja nesta srie. Em primei-

    ro lugar, ele diferente de zero. Tomemos a primeira casa decimal desse n-mero diferente da primeira casa decimal do nmero associado a um e tambm diferente de zero e nove. Temos assim sete possibilidades para este algarismo dos dez algarismos, exclui-se o zero, o nove e o um. Tomemos a segunda casa decimal do nmero diferente da segunda casa decimal do nmero associado a dois e diferente do zero e do nove, e assim por diante. O nmero formado ser ento diferente de todos os nmeros contidos naquela sucesso, porque uma casa decimal qualquer de ordem n, por exemplo, ser diferente da casa respec-tiva no nmero que estiver associado ao nmero natural n. E note-se que, em cada casa decimal h sete possibilidades para o algarismo respectivo.

    Concluso: os nmeros reais do intervalo (0,1) no podem ser equi-valentes aos nmeros naturais, e consequentemente o conjunto R dos nmeros reais no equivalente a N, no possuindo a possana 0.

    Surge a uma hiptese que possui as mesmas caractersticas do quinto postulado de Euclides sobre a existncia e a unicidade de uma paralela a uma reta dada por um ponto fora dela, isto , uma hiptese inteiramente inde-pendente da teoria construda sobre os nmeros cardinais transfinitos. a cha-mada Hiptese do Contnuo, atribuda a Cantor, qual seja, a possana dos nmeros reais a possana 1. Os nmeros reais tm a mesma cardinalidade do conjunto potncia de N.

    Passemos a analisar os conjuntos que possuem a mesma potncia ou possana que R. Em primeiro lugar, por extenso do caso do segmento, qual-quer linha contnua possui a possana de R. Por meio de projees fica fcil provar isto. Uma coisa que no to aceitvel que o plano e mesmo o espao possuem o mesmo nmero de pontos que a reta. Provaremos em primeiro lugar que um quadrado possui tantos pontos quanto um de seus lados. Faamos o quadrado com lado igual a um e estabeleamos em seus lados um sistema de coordenadas reais de zero a um.

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    Cada ponto do quadrado pode ser projetado sobre seus lados, sendo

    assim localizado por um par de coordenadas reais. O ponto P do desenho pos-sui, a propsito, coordenadas (0,623, 0,387) onde 0,623 a coordenada refe-rente ao lado horizontal e 0,387 a coordenada referente ao lado vertical. Po-demos intercalar as casas decimais dos dois nmeros, fazendo assim um nico nmero real 0,632837. Vice-versa, dado um nmero real 0,432879, podemos decomp-lo em 0,427 e 0,389 que correspondem a um ponto nico do quadra-do. Assim podemos corresponder bi-univocamente os pontos de um quadrado (dados por um par de coordenadas) com um nico ponto associado no lado do quadrado (com uma nica coordenada). De maneira semelhante qualquer ponto do plano corresponde a uma nica coordenada real e portanto sua possana 1. A demonstrao para o espao simplesmente exigiria que agrupssemos as casas decimais de trs em trs porque o espao possui trs dimenses. Se ima-ginssemos um espao com um nmero n de dimenses, bastaria que agrups-semos as casas decimais de n em n.

    Portanto, o espao tambm possui a possana 1. Em geral, o conjunto de pares, ternas, quadras, enfim, nuplas orde-

    nadas de nmeros reais, possuem a mesma possana do contnuo. O conjunto dos subconjuntos dos nmeros reais possuiria porm a possana 2.

    Se conseguirmos encontrar um conjunto que no possa se equivaler com o conjunto R e nem tampouco com o conjunto N, ento ele possui uma cardinalidade superior do contnuo, j que no foi achada nenhuma cardinali-dade intermediria entre 0 e 1.

    Um caso destes o conjunto de todos os polinmios, do tipo y=anxn+...+a1x+a0. Esses polinmios so representados por curvas planas. Con-sideremos ento o plano dessas curvas e coloquemos duas retas paralelas no plano, de acordo com o desenho.

    P

    0 1

    1 0 1

    1

    0 0

    0,387

    0,623

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    ox a reta das coordenadas x dos pontos do plano e oy a reta das

    coordenadas y dos pontos do plano. c uma curva representativa de um poli-nmio qualquer; r e s so as retas paralelas que falamos. A curva c intercepta r em P e s em Q. Por cada ponto de r podemos passar uma curva representativa de um segmento. Contudo uma somente dessas curvas poderia interceptar a re-ta s em qualquer ponto, o que exclui a bi-univocidade porventura existente en-tre os pontos de r e as curvas representativas de polinmios. O que significa que existem mais polinmios do que nmeros reais e que a possana do con-junto dos polinmios a possana 2, superior possana 1.

    E assim por diante, podemos imaginar o conjunto potncia de um conjunto cujo cardinal transfinito seja 2 e que possuiria a possana 3. Por exemplo, o conjunto dos subconjuntos dos polinmios. O conjunto potncia de um conjunto desses possuiria 4 elementos.

    Como j dissemos, o conjunto dos alefs um conjunto infinito e discreto, equivalente ao conjunto dos nmeros naturais. S que tem que as leis operacionais vlidas para os nmeros naturais no so vlidas para o conjunto dos cardinais transfinitos, o que no impede a construo de uma lgebra dos cardinais transfinitos. As operaes conhecidas de adio, multiplicao e po-tenciao podem ser estabelecidas por meio de leis fceis de serem compreen-didas.

    Chamemos n o cardinal transfinito correspondente ao nmero na-tural n. Seja a um nmero natural qualquer.

    Ento: n + a = n n + n = n n a = n n n = n na = n

    P

    y

    x o

    Q

    r s

    c

  • Cardinais Transfinitos Ernesto von Rckert

    13

    Sendo m > n, temos: m n = m m n = m No entanto, an = n+1 nn = n+1 As leis continuaro vlidas se substituirmos o nmero natural a por

    um nmero real x. E assim podemos trabalhar com o infinito familiarmente, como se

    fosse um nmero qualquer. Essa uma das grandes glrias de Cantor, que lhe valeu ferrenha perseguio pelos matemticos chamados realistas. A conside-rao de outros tpicos a respeito dos nmeros cardinais transfinitos, qual seja o estabelecimento de uma estrutura operacional para eles, pode ser feito, mas isso alongaria demasiado este trabalho, cujo objetivo, que creio ter alcanado, era apenas colocar ao alcance de um leigo a fascinante questo do infinito ma-temtico.

    Referncia Bibliogrficas

    LIPSCHUTZ, SEYMOUR. Teoria dos Conjuntos. Rio de Janeiro,

    Ao Livro Tcnico, 1967 COURANT, RICHARD & ROBBINS, HERBERT. O que a Ma-

    temtica. Rio de Janeiro, Cincia Moderna, 2000 (referncia atualizada)

    MALBA TAHAN, Grandes Maravilhas da Matemtica.