Catálogo_Jairo_Ferreira

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Jairo Ferreira

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  • mostra

    Ferreiracinema de inveno

    Jairo

  • 5Ministrio da Cultura e Banco do Brasil apresentam

    mostra

    Ferreiracinema de inveno

    Jairo

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

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    Ministrio da Cultura e Banco do Brasil apresentam

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

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    Jairo Ferreira, Crtico

    146 Tomu Uchida: A Conscincia

    148 No cran, o Porngrafo

    150 Condensadores e Diluidores

    152 Distanciamento Metacrtico Marshall Mac Gang

    154 Parolini, Eminncia Parda Marshall Mac Gang

    156 Contracultura e Metavanguarda Marshall Mac Gang

    158 Informao e Linguagem

    160 Dcio Sarrafo nos Filmes Joo Miraluar

    162 Dez Anos de Pornochanchada

    169 Jlio Bressane, Rebelde da Amrica

    174 O Cinema e Seu Desejo

    178 O Cinema de Aron Feldman - Transgresso Cabocla

    180 Maristela: A Cena Cnica

    184 A Linguagem da Luz

    190 O Cinema Brasileiro Colocado de Escanteio

    Entrevista com Jairo Ferreira

    195 Memria de uma Entrevista Arthur Autran

    197 Entrevista com Jairo Ferreira

    212 Crditos - Imagens

    214 Ficha Tcnica

    Exceto quando indicado, os textos so de Jairo Ferreira.

    Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira

    ndice

    Apresentao

    Introduo

    Jairo Ferreira, Cinepoeta

    13 Criticanarquica Anozero de Conduta Jairo Ferreira

    16 Jairo Ferreira, Cinevida Renato Coelho

    20 No Cinema e nas Pizzas com Jairo Ferreira

    Incio Arajo

    24 Jairo Ferreira no So Paulo Shimbun

    Alessandro Gamo

    Jairo Ferreira, Cineasta

    30 O Guru e os Guris Renato Coelho

    32 Ecos Caticos Arthur Autran

    34 O Ataque das Araras Alessandro Gamo

    36 Antes Que Eu Me Esquea Ana Martinelli

    38 O Vampiro da Cinemateca Arthur Autran

    42 Horror Palace Hotel Alessandro Gamo

    45 Nem Verdade Nem Mentira Incio Arajo

    48 O Insigne Ficante Juliano Tosi

    52 Metamorfose Ambulante ou As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Toth

    Ana Martinelli

    Jairo Ferreira, Visionrio

    56 Limite

    59 O Corpo Ardente

    61 A Margem

    64 Jardim de Guerra

    Jairo Ferreira, Inventor

    113 Umas e Outras - Um Safri Semiolgico

    118 Ateno, Cmara, Ao - Super-8 Entrevista com Jairo Ferreira

    123 Cinema, Cineminha, Cinemo

    130 A Vitria de um Horror Potico e Generoso

    133 Udigrudi: Os Marginais do Cinemo Brasileiro

    138 1986, Ano do Cinema de Inveno

    140 Udigrudi - 20 Anos de Inveno

    68 A Mulher de Todos

    71 Meteorango Kid - Heri Intergaltico

    74 Ritual dos Sdicos (O Despertar da Besta)

    76 Gamal, o Delrio do Sexo

    78 A Herana

    80 Sagrada Famlia

    82 Nosferato no Brasil

    84 Crnica de um Industrial

    86 A Lira do Delrio

    91 O Legado de Jairo Ferreira Depoimento de Carlos Reichenbach

    92 Filme Demncia Depoimento de Carlos Reichenbach

    93 Alma Corsria Depoimento de Carlos Reichenbach

    94 Uma Estrela que Zela por Ns Paolo Gregori

    95 Ave / Noite Final Menos Cinco Minutos / Mariga

    96 Sinh Demncia e Outras Histrias / A Bela e os Pssaros / Demnios

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  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

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    muito bom podermos reunir neste catlogo da Mostra Jairo Ferreira Cinema de Inveno novos textos sobre Jairo Ferreira e seus lmes. E, tambm, uma grande satisfao podermos republicar um nmero considervel de seus escritos, grande parte deles fora de circulao desde que foram publicados em jornais e revistas nas dcadas de 70 e 80, alm de trechos do livro Cinema de Inveno.

    Na primeira parte deste catlogo, intitulada Jairo Ferreira, Cinepoeta, o leitor encontrar textos introdutrios gura de JF e aspectos de sua vida e obra.

    Jairo Ferreira, Cineasta traz textos inditos sobre seus lmes, escritos especialmente para este catlogo por autores que, de alguma forma, so prximos do universo de Jairo.

    J em Jairo Ferreira, Visionrio, escritos do prprio JF sobre os lmes de outros diretores que fazem parte desta Mostra, nos quais constatou, em diferentes pocas, as caractersticas experimentais e de inveno que eram to caras a ele. Aqui, o leitor encontra tambm um depoimento indito de Carlos Reichenbach, grande amigo de Jairo, que precede as chas tcnicas de seus lmes a serem exibidos na Mostra, e o texto de Paolo Gregori, que integrou a produtora Parasos Articiais, da qual exibiremos quatro curtas, alm de outros dois curtas posteriores de alguns de seus integrantes nos quais Jairo atuou.

    A quarta parte, Jairo Ferreira, Inventor, apresenta escritos que permeiam o universo das realizaes de Jairo: um depoimento e uma entrevista sobre O Vampiro da Cinemateca logo aps sua concluso, quando o ttulo do lme ainda era Umas & Outras; dois textos sobre a realizao de Horror Palace Hotel, escritos na ocasio do Festival de Braslia de 1978; e trs textos que abordam as questes presentes no livro Cinema de Inveno.

    Por m, Jairo Ferreira, Crtico, um apanhado geral de sua trajetria crtica, com textos originalmente publicados entre 1967 e 1990, e ainda duas entrevistas com JF.

    com alegria que esperamos contribuir, atravs da realizao dessa Mostra e a publicao deste catlogo, para a difuso da obra de Jairo Ferreira, um legtimo inventor do nosso cinema.

    Renato Coelho e Raul Arthuso

    O Ministrio da Cultura e o Banco do Brasil apresentam a Mostra Jairo Ferreira Cinema de Inveno, que homenageia o crtico e cineasta paulistano conhecido pela autoria de Cinema de Inveno, livro referncia no estudo do cinema de cunho experimental.

    A mostra exibe, de forma indita, a lmograa completa do autor, alm dos lmes que tiveram participao dele na produo, desde os clssicos da cinematograa brasileira at obras raramente exibidas. Completam a programao a realizao de debate e a publicao de um catlogo que traz textos de pesquisadores sobre o autor e sua cinematograa, entrevistas e trechos do livro Cinema de Inveno, hoje fora de catlogo.

    Jairo Ferreira exerceu sua crnica do cinema marginal de um ponto de vista singular, pois, desde o incio, conviveu de forma intensa com esse cinema, reunindo-se com realizadores e participando da produo de lmes. Sua trajetria crtica construiu um pensamento sobre as relaes entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal e trouxe propostas para o cinema brasileiro.

    Com a realizao desta mostra, o Centro Cultural Banco do Brasil oferece ao pblico a oportunidade de contato com obras importantes e pouco exibidas do cinema brasileiro, alm de reavivar a discusso sobre a histria e o pensamento crtico.

    Centro Cultural Banco do Brasil

  • Cinepoeta Jairo Ferreira,

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

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    Meus cadernos de cinema/cahiers du cinma escritos com uma Parker 51 que acabei perdendo numa poeira, em 63, registraram & comentaram 1.200 lmes, com o que comecei a pagar imposto de renda crtica ao nico crtico que respeitei (Jean-Claude Bernardet, na fase anrquica de UH1 62/63). Bifora era o mestre de bero e os cahiers roubados sempre na ca-beceira ao lado do Spica.

    A admirao fsica pelo cinema estava nascendo. Comprei e bifei ento to-dos os livros de cinema. Uns quinze, entre nacionais e coleo espanhola Rialp. Li todos de cabo a rabo, andando pelas ruas da Vila Carro, Tatuap, nibus onde passageiros davam tiros & intervalos das sesses de cinema na rea: cines Universo, Brs Politeama, Piratininga, Glria, So Luiz, Aladin, So Jorge, Penha Palace e Prncipe, Jpiter & demais poeiras adjacentes. Solitrio ou acompanhado de um colega de infncia imbecil, o Clgaro (at hoje meu amigo: s tenho amigos sinceros que aceitam as minhas agres-ses frontais), eu era o anti-intelectual por excelncia. No como no Day for Night ou nos lmes do Godard, a mania & tradio francesa do intelec-tualismo, onde os personagens acabam de ver um lme e j agarram uma revista. Eu buscava informao para entrar no cinema bem calado. Pois nessa poca no havia escola de cinema. Tive que ser autodidata. O cinema prossional que me esperava, entretanto, era uma selva, na Boca do Lixo a cultura era a vivncia prossional. Fiquei meio sacaneado com isso e apelei para o ambiente dito cultural, prossionalmente emprico, o cineclubismo, que, felizmente, terminou me devolvendo Boca do Lixo. Exorcizei-me da formao autodidata e z as primeiras amizades no Costa do Sol, Honrio (da Bento Freitas). Isso em 65/66. Eu j escrevia no So Paulo Shimbun ( jornal da colnia japonesa) & as brainstorms que originavam as crticas nasciam com tcnicos & diretores de cinema da Boca. Principalmente o Candeias, que se recusava a ir em cinema (antes da Margem).

    Meu diploma tinha sido uma curta mas fulminante liderana cineclubs-tica no Dom Vital, onde o Z Jlio Spiewak me apresentou o Sganzerla. O Trevisan acompanhou comigo toda essa poca, pois trabalhava na

    CRITICANARQUICA ANOZERO DE CONDUTA

    Jairo Ferreira

    1 Jornal A ltima Hora (N.E.)

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    O Jean-Claude no escrevia mais. Pelo Trevisan, conheci-o pessoalmente. Conrmou-se o respeito. Mas a minha luta (mein kampf) era tambm con-tra ele, Realismo Crtico. Contra essa limitao, embora salvaguardando-a e aliando-se a ela dentro de um processo. Alis a batalha que continua com meu amigo Petri: um continuador de Jean-Claude? Claro que no, mas incorporando-o dogmaticamente. Quando, da minha parte, os dardos cr-ticos continuam rasgando as limitaes do realismo crtico. Prosseguirei a guerra at a exorcizao de Oswald de Andrade, Brasileiro & antropfago, o revolucionrio total. Por isso ningum se retrata: eles ainda acham que o MacLuhan um reacionrio, coisa que no importa nele, & de lingstica sabem tanto quanto a vov ciberntica de tric. Escrevem sobre lmes sem saber que a moviola uma teia de aranha eltrica & magntica. O Incio Arajo o nico montador que conheo a ser ao mesmo tempo um sinte-tizador lingstico & editor crtico, talento que segundo Bifora o cinema nacional no merece.

    Como se nota, s h meia dzia de crticos de cinema considerveis em SP: eu, discpulo libertrio e autnomo do Bifora, e o Paulo Emlio Salles Gomes, que na dcada de 40 foi mestre do Bifora e, nos anos loucos de 60, mestre do admirvel Jean-Claude Bernardet, que agora tem por dilui-dor o carssimo Renato Petri. Em sntese: Paulo Emlio foi o grande pre-cursor, escreveu um livro sobre Jean Vigo para libertar-se (exorcismo), e sabemos muito bem quem foi o av Vigo novecentista, tanto quanto ig-noramos o Zelo, pai do Hlio Oiticica. A crtica de cinema, nesta paulicia nada desvairada, nasceu com Paulo Emlio e poder morrer comigo, gera-es extremas de uma anarquia crtica. Os demais crticos trabalhadores & bem intencionados inclusive so sucata jornalstica, portanto no con-siderveis cinematogracamente.

    Publicado originalmente na revista Cinegraa, editada por Carlos Reichenbach e Incio Arajo, cujo nico nmero, de julho de 1974, teve colaborao de Jairo Ferreira.

    Cinemateca. Era um encucado & julgava-me sem-fundamentao, di-zendo que eu era inconseqente. O cara demorou mas se retratou e ca-mos unha e carne at ele dar o grito libertrio com Orgia. As Crticas do Shimbun continuavam. Eu ganhava uma ninharia, mas recusei sistematica-mente passar para outros jornais. S a marginalidade do Shimbun, que eu distribua de mo em mo, garantia a liberdade crtica. No era crtica de jornal: era crtica de cinema, crtica brasileira legtima, pois abalizada junto ao ambiente cinematogrco brasileiro, paulista em particular. Estava nas-cendo o JT2, com pgina inteira de crtica, eu () montes ao Sganzerla crtico, ou Capovilla, contedista. Lima, um mineiro cinemanaco, foi expulso do Dom Vtal, num debate sobre Menino de Engenho. Os demais crticos de SP eram fantasmas. Apelidamos o Alfredo Sternheim, que se assinava S de O Sombra. O Fassoni era neutrol puro, portanto saudvel. O Igncio Loyola me deu toda a promoo. O Orlando Parolini, primeiro crtico do Shimbun, cou de eminncia parda at que assimilasse o anarquismo dele para ser eu mesmo e inclusive contest-lo radicalmente (os anrquicos so plvora crtica versus nitroglicerina cultural), mas at hoje o Parolini um poeta melhor que Piva e Willer, justamente por isso perdido no anonimato.

    Pierrot le Fou, do Godard, tinha chegado com um atraso de pelo menos 7 anos no Brasil, como criao, pois eu & Parolini j tnhamos adaptado vi-vencialmente no s o Rimbaud, mas Lautramont tambm. Deglutimos tudo antropofagicamente, antes da diluio tropicalista. A tragdia: Parolini, muito doido, destruiu em 68 o mdia-metragem Via Sacra, foto-grafado pelo Reichenbach, ento aluno da ESC3. Assim, o testemunho s sobreviveu mesmo guttemberguiamente. Era a minha primeira direo. Brigas Rimbaud/Verlaine.

    O cinema nacional prosseguia de mao a piao. Godard era deus. Glauber (Terra em Transe) era pederastia & lirismo catico. Sganzerla, com Luz Vermelha, no me impressionara no lanamento, mas depois passei dois anos dissecando o lme e considerei o bicho como a revoluo flmica a que eu inclusive me propusera. Tinha eclodido a Boca do Lixo como movi-mento. Voltei a ela, disposto a me afundar nos pntanos da rua do Triunfo. Alidado com Callegaro (Porngrafo), consegui me libertar novamente: at hoje acho o lme to bom quanto O Bandido. Como crtico ainda e sempre no Shimbun a idia de ser um baluarte da crtica me deu grandes prazeres. Em 69/70 eu resolvi assumir Rimbaud in totum: autoagelao numa qui-tinete do Glicrio para fazer a melhor crtica de cinema do Brasil. O est-mago contra as costelas, anotaes crticas do silncio do cinema nacional.

    2 Jornal da Tarde (N.E.)3 Escola Superior de Cinema, o primeiro curso do gnero em So Paulo (N.E.)

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    Silvrio Trevisan, entre outros, e onde permanece at 1966. nesse ano que assume, com Orlando Parolini, a coluna Cinema do jornal So Paulo Shimbun2, o principal peridico da colnia nipnica no bairro da Liberdade. Parolini mantinha a coluna desde 1963 possivelmente foi o primeiro cr-tico brasileiro especializado em cinema japons. Os dois dividem a coluna at meados de 1967, quando Parolini deixa o jornal e o posto para Jairo. importante frisar a importncia que o cinema japons teve para essa gera-o, o gosto pelo choque, as temticas fortes3. A Liberdade e seus cinemas eram pontos de encontro de jovens cineastas e entusiastas do cinema ja-pons, e Jairo inicialmente escreve sobre os lanamentos de lmes japone-ses nas salas do bairro.

    Em 1967, Jairo co-dirige com o amigo Parolini o curta-metragem em 16mm Via Sacra. Segundo Carlos Reichenbach, fotgrafo do lme, foi a primeira experincia underground no cinema brasileiro, uma pena que tenha -cado inacabado. O lme teve seus negativos destrudos por Paroloni du-rante a parania ps-AI-5. O poeta achou melhor se livrar daquele mate-rial comprometedor, que continha cenas de transgresso e orgia, naquela poca dura.

    por volta de 1968 que jovens egressos da Escola Superior de Cinema So Lus, como Reichenbach e Joo Callegaro, entre outros que no eram alu-nos mas freqentavam a turma, como Jairo, Sganzerla e Trevisan, comeam a migrar para a regio do centro de So Paulo conhecida como Boca do Lixo, plo cinematogrco da poca, na tentativa de realizar seus primei-ros lmes. essa gerao que d origem ao que posteriormente se cha-mou de Cinema Marginal. Nas palavras de Carlo Reichenbach, O Cinema Marginal paulista praticamente nasceu nos corredores da So Lus. (...) Todo mundo que fazia cinema em So Paulo uma hora teria que esbarrar com a Boca, e ns fomos logo pra l. Ns, os cabeludos, invadimos a Boca do Lixo, e comeamos a conviver com cineastas e tcnicos formados pela vida, como Jos Mojica Marins.

    A convivncia de Jairo no meio cinematogrco da Boca faz com que, a par-tir de 1968, comece a acompanhar o surgimento e a produo do Cinema Marginal paulista em suas crticas no Shimbun. Jairo participa de lmes de seus amigos em diversas funes; em Audcia (1969), de Reichenbach, acu-mula as funes de co-roteirista, assistente de direo e ator; em Orgia ou o Homem que Deu Cria (1970), de J.S. Trevisan, foi assistente de direo; em O Porngrafo (1970), de Joo Callegaro, foi co-roteirista; em Corrida em Busca

    2 Era a nica coluna do jornal escrita em portugus. (N. do A.)3 Trechos do texto de Alessandro Gamo, na introduo do livro Crticas de Inveno. (N. do A.)

    Jairo Ferreira nasceu em So Paulo em agosto de 1945. Seus pais, naturais da cidade mineira de Borda da Mata, haviam se mudado para So Paulo pouco tempo antes, e se instalado na casa da Rua Honrio Maia, 202, Vila Carro, Zona Leste da capital. Foi l que Jairo passou a infncia e parte da ju-ventude. Nas palavras de Jane Ferreira, sua irm do meio, Mame dizia que ele era um menino muito agradvel, muito simptico. No era alegre, era uma criana simptica, legal. A primeira paixo de Jairo foi a msica; seu pai, Alfredo Ferreira Pinto, era radiotcnico, e foi na garagem da casa, onde cava a pequena fbrica de rdios do pai que Jairo passou grande parte de sua infncia, fascinado pelos equipamentos.

    Por volta do m dos anos 1950, sozinho ou acompanhado do amigo Edson Clgaro, assistia a pelo menos um ou dois lmes por dia nos cinemas, e j catalogava e escrevia sobre eles. Autodidata de nascena, o colgio era para ele um suplcio, e por volta dos 17 anos abandonou denitivamente a vida escolar. Em 1963 comeou a freqentar o GEF, Grupo de Estudos Flmicos, onde conheceu o poeta Orlando Parolini. Nessa fase, se aproximou de Carlos Reichenbach, um de seus grandes amigos. Nas palavras de Carlo, Parolini foi o grande guru de Jairo: O Parolini foi o primeiro beat brasileiro; enquanto ns ramos subversivos, ele era transgressivo. Enquanto acredi-tvamos na revoluo, ele queria saber de poesia de vanguarda. Era trinta anos frente de seu tempo.

    Em 1964 Jairo se torna coordenador do cineclube do Centro Dom Vital, li-gado Igreja Catlica, onde conhece guras como Rogrio Sganzerla e Joo

    JAIRO FERREIRA, CINEVIDA

    Renato Coelho

    XICinema Amor

    Cinema de InvenoSagrada Diverso1

    1 Manifesto do Cinema de Inveno, de Jairo Ferreira (N. E.)

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    O fundamental Cinema de Inveno publicado em 1986. No livro, escreve sobre cineastas brasileiros que considera experimentais. Os termos expe-rimental e de vanguarda eram considerados batidos por Jairo, e com a classicao Cinema Marginal ele nunca concordou6. No ttulo do livro, Jairo transpe as categorias de escritores criadas por Ezra Pound do m-bito literrio para o cinematogrco; Inventores: homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos d o primeiro exemplo conhecido de um processo7. Todos os seus cineastas brasileiros de cabeceira so tra-tados no livro, como Mrio Peixoto, Glauber, Mojica, Candeias, Sganzerla, Bressane. Jairo escreveu ainda captulos sobre grandes amigos/cineastas, como Carlo, Rosemberg, Calasso. uma escrita potica e muito pessoal, que transborda amor pelos lmes e pelas pessoas, o que instiga nos lei-tores uma imensa vontade de assistir a esses lmes8. Aps o lanamento do livro, realiza a primeira Amostra Cinema de Inveno (86/87), produzida por Jlio Calasso Jr., na qual percorrem diversas cidades exibindo os lmes de inveno.

    Em 1993, Jairo realiza o curta em vdeo Metamorfose Ambulante ou As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Toth, no qual homenageia o roqueiro la Kenneth Anger. nesse perodo que se aproxima dos jovens cineastas da produtora independente Parasos Articiais, tornando-se uma espcie de amigo-guru desse grupo. A partir do incio dos anos 90, Jairo alimenta uma grande xao pela gura de Raul Seixas, talvez seu maior guru exis-tencial, e se interessa por assuntos ligados ao misticismo, como magia, Aleister Crowley, Novo Aeon, Sociedade Alternativa, etc.

    A edio ampliada do livro Cinema de Inveno lanada em 2000, com al-guns captulos a mais e modicaes em relao edio anterior. Nesses ltimos tempos Jairo colabora com uma coluna para a revista eletrnica Contracampo, onde escreve menos sobre cinema e mais sobre sua vida. No incio de 2000, comea a escrever um romance autobiogrco, o ainda in-dito S por Hoje. O livro escrito durante uma tentativa de car longe do lcool e das drogas, mas no ca totalmente concludo. Jairo se suicida em 23 de agosto de 2003, poucas horas antes de completar 58 anos.

    6 Nem Jairo, nem a maioria dos cineastas taxados de marginais concordam com essa classicao. (N. do A.)7 Ezra Pound no livro ABC da literatura. (N. do A.)8 Muitos desses lmes so de difcil acesso at hoje; na verdade, a grande maioria. (N. do A.)

    do Amor (1972), de Reichenbach, foi co-roteirista e assistente de direo. Realiza funes em diversos outros lmes, notadamente como fotgrafo de cena. Essa experincia prtica de cinema faz de suas crticas espcies de crnicas da Boca, e hoje documentos daquele perodo. O estilo livre e potico de escrita, que j acompanhava Jairo desde cedo, foi se acentuando nos ltimos anos do Shimbun. Em 1972, passa a escrever sob os pseudni-mos de Marshal Mac Gang, Joo Miraluar e Ligia de Andrade4; a coluna se encerra em 1973, quando certo tipo de cinema transgressor que Jairo tanto admirava j no tinha mais apelo na Boca.

    em 1973 que Jairo inicia a realizao de seus lmes, legtimos exerccios de liberdade cinematogrca e da linguagem de inveno que tanto prezava. So cinco curtas: O Guru e os Guris (1973), Ecos Caticos (1975), O Ataque das Araras (1975), Antes Que Eu Me Esquea (1977), Nem Verdade Nem Mentira (1979); um mdia, Horror Palace Hotel (1978); e dois longas, O Vampiro da Cinemateca (1977) e O Insigne Ficante (1980). Desses, apenas O Guru e os Guris e Nem Verdade Nem Mentira foram rodados em 35mm, com equipe prossional de cinema. Todos os outros foram lmados em Super-8, lmes artesanais que Jairo realizava sozinho ou com a ajuda de poucos amigos e nunca exibidos comercialmente. Jairo funde experimental, documentrio e co, usa imagens e sons de arquivo, lma lmes do cinema e da televiso, se apropria de signos sempre, criando novos sentidos e signicaes. Por vezes se aproxima do cine-dirio, mas fato que sempre colocou/escanca-rou sua vida em tudo que fez, tanto no que lmou quanto no que escreveu. Suas principais inuncias so a antropofagia de Oswald de Andrade, a po-esia concreta, o paideuma poundiano.

    Jairo trabalha como crtico da Folha de So Paulo de 1976 at 1980. Segundo Incio Arajo, seu amigo prximo, esse o perodo mais estvel de sua vida: essa foi uma poca boa do Jairo. E tambm a mais criativa, com a realiza-o de vrios dos seus lmes. Em 1977 comea a escrever o que seria seu livro, o hoje clssico, Cinema de Inveno (1986), e que teve diversos ttulos durante seus nove anos de preparo, como o timo Udigrudi Papers. Trabalha na assessoria de imprensa da sucursal paulistana da Embralme durante a dcada de 1980, e como crtico dO Estado de So Paulo e Jornal da Tarde de 1988 1990. Durante sua carreira colabora com diversos jornais e revistas, como Filme Cultura, Fiesta Cinema, Cine Imaginrio, entre outros. Edita o nico nmero da revista Metacinema; chega a fazer um segundo nmero, nunca lanado5.

    4 Esses personagens reaparecem em futuros lmes de Jairo. (N. do A.)5 Essa edio continha o roteiro dO Vampiro da Cinemateca, que Jairo escreveu aps nalizar o lme. (N. do A.)

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    Ou vendo um lme na moviola.

    O Guru e os Guris. Ele diretor, eu montador.

    No meio, uma cartela com uma frase de Paulo Emlio.

    Corta a, ele berra de repente.

    Jairo, est curto, digo eu.

    Est timo assim.

    Mas no d pra ler at o m, quando muito at a metade.

    Ento. Est timo.

    Voc bota a cartela mas no pra ningum ler?

    isso a.

    Bom, se isso que voc quer...

    Vinte anos depois. No menos do que isso, o cara me encontra:

    Voc tinha razo. Devia ter deixado mais comprido.

    Agora? um pouco tarde, no?

    Para despachar algum disposto chata discusso sobre um lme de que no gostara (e o Jairo sim). Digamos, s por exemplo, Week End, do Godard.

    - No entendo como voc foi gostar do Week End.

    - Ento voc no soube apreciar o Week End?

    Pano rpido.

    Ir ao cinema com o Jairo podia comportar surpresas. Uma delas, nunca dei-xar de entrar num lme no meio:

    O lme comea quando eu entro e termina quando eu saio.

    Uma armao narcisstica, ao primeiro olhar, mas talvez nem tanto: uma armao de leitor. O lme o lme que eu fao com meus olhos e meu entendimento. Se voc o pega comeado imagina toda uma histria ante-rior, que no raro bem mais interessante do que a histria do lme pro-priamente dito.

    E por que um lme deveria terminar no nal determinado pela produo? O nal de um lme pode ser no meio. E dali por diante possvel, do mesmo modo, invent-lo.

    Ou quando a gente ia ver um lme ruim e ele manifestava seu mau humor com veemncia.

    Vamembora Incio.

    Mas Jairo, a gente acabou de comprar o bilhete, no faz nem dez minutos...

    Ento: j perdi meu dinheiro, no vou perder meu tempo.

    Ou a cena que eu perdi, mas quem viu no esqueceu.

    Na projeo de Um Anjo Mau, ningum dizia que o lme era ruim, mas muito mais de um achava isso.

    O Jairo que levantou e saiu gritando:

    Roberto, esse lme uma merda!

    S vi O Anjo Mau uns anos depois. Meu Deus: uma merda.

    NO CINEMA E NAS PIZZAS COM JAIRO FERREIRA

    Incio Araujo

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    25

    Incio Arajo em O Insigne Ficante.

    Uma boa parte das vezes que fomos ao cinema juntos foi na poca em que ele trabalhou na Folha. Era frequente a gente pegar um lme e em seguida ir a uma pizzaria. Silvio Lancelotti tinha feito uma lista das 10 melhores de So Paulo, segundo ele, para uma revista.

    Jairo tinha, na poca, um Volkswagen, e com ele atravessvamos a cidade, da Freguesia do (Bruno) Mooca (Pizzaria So Pedro), do Brs (Casteles, claro) ao Cambuci (1060). Obviamente falvamos de tudo, de nossas im-presses sobre cinema, mas as conversas giravam, essencialmente, em torno das pizzas, s quais dvamos notas, ora concordando ora discordando do Lancelotti (nunca me entrou na cabea porque seria o Babbo Giovanni digno de gurar como a melhor pizzaria). Tambm fazamos nossos rankings de pizzarias, semelhantes s listas dos lmes do ano. Jairo levava muito a srio a classicao dos poetas de Ezra Pound: inventores, mestres, diluidores, etc. Era adepto de classicaes meio rgidas para resolver, acho eu, o problema da angstia diante dos lmes. Nunca me convenci muito de que essas classicaes pudessem passar assim direto ao cinema.

    (Carlo achava engraado esse apego. Mas, curioso, no me lembro do Carlo com a gente nessas incurses pizzaiolas: ou ele trabalhava ou se ocupava da lha, Eleonora, que nascera h pouco).

    Todas essas ocasies eram motivo para armar suas paixes: Haroldo de Campos, Jlio Bressane, Ezra Pound, Mojica, Sganzerla. Ele buscava um mestre, precisava de um mestre, mas ao mesmo tempo no sabia obedecer a ningum. Para o bem e para o mal seguia apenas sua prpria conscincia e, talvez, Raul Seixas, aquele que esteve mais prximo, de fato, de ser o men-tor existencial de Jairo Ferreira, a partir de cujas msicas se pode entender parte das opes de vida de Jairo, opes radicais de vida, certamente, mas tambm, suspeito, de morte.

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    Por orientao do editor do jornal, Jairo comeou escrevendo sobre os lmes japoneses lanados nos cinemas da Liberdade. Atentava em suas crticas para o cinema de diretores que se caracterizavam por realizar um cinema de temtica forte, que mesclavam questionamento de valores morais da sociedade japonesa e experimentalismo formal dentro de um cinema comercial de gnero a conexo cinema, sociedade e vida: (...) sempre bom lembrar, Shoei Imamura, Masaki Kobayashi ou Tomu Uchida zeram os maiores lmes do mundo: so cineastas que no apenas tm o cinema no sangue, mas o tm ao mesmo tempo na cabea.3

    o que vemos tambm no artigo Ishihara e a Juventude, uma crtica ao conservadorismo na juventude:

    Infelizmente a juventude atual parece nascer morta en-quanto aceita passivamente as aberraes - sociais, morais, sexuais, culturais, polticas, etc - estabelecidas em nossa poca.

    Ser revolucionrio no s empunhar cartazes de protestos contra a guerra do Vietn ou contra o fascismo nacional: ser revolucionrio tambm reconhecer a funo de tas como Exploso da Juventude em nossa realidade cotidiana. Eis ento uma convergncia entre a realidade japonesa e a brasileira, mostrada por Ishihara atravs de suas preocupa-es com o destino da juventude.4

    Os rumos do cinema brasileiro, principalmente aps a criao do INC (Instituto Nacional de Cinema) em ns de 1966, levaram Ferreira a um po-sicionamento frente poltica cinematogrca de Estado e aos grupos que agiam no seu interior. Principalmente os relacionados com o Cinema Novo e a precariedade de uma perspectiva industrial e comercial para o cinema brasileiro.

    Abandonando sua fase de empirismo e/ou utopia, o cinema nacional est caminhando rumo industrializao e/ou maturidade. (...) Um lme se paga e/ou d lucro na bilhete-ria, no nas prateleiras ou nas gavetas do INC.5

    3 Filme cerebral & sanguinrio in So Paulo Shimbun. So Paulo, 15/1/70. (N. do A.)4 Ishihara e a juventude in So Paulo Shimbun. So Paulo, 3/2/67. (N. do A.)5 Firmes nossos in So Paulo Shimbun. So Paulo, 01/05/1969. (N. do A.)

    Do cineclubismo (Dom Vital, 66) passei crtica do Shimbun (66), o realismo crtico radical (apogeu do cinema japons, Imamura, Oshima, Kobayashi) entrando no underground prtico com o curta Via Sacra (co-direo com Parolini, 67), evoluindo para mxima abertura crtica (68), a metalingua-gem (68) e o caos total (70).1

    O So Paulo Shimbun, um dos jornais da colnia japonesa de So Paulo, era dirigido nos anos 60 por Mizumoto Kokuro, um entusiasta do cinema japons e dono do cinema Nikkatsu, no bairro da Liberdade, no qual lan-ava lmes produzidos pelo estdio de mesmo nome. No incio de 1966, Mizumoto contratou, para a coluna Cinema de seu jornal, o jornalista e po-eta Orlando Parolini, um estudioso do cinema japons que, em 1963, parti-cipara do pioneiro livro O Filme Japons.2

    Alguns meses depois, Parolini convidou para dividir a coluna seu amigo Jairo Ferreira, que ento coordenava o cineclube do Centro Dom Vital. Os dois trabalharam juntos at meados de 1967, quando Parolini deixa o jornal e Jairo passa a assinar sozinho.

    Naquela mesma poca, formava-se em So Paulo uma nova gerao de cineastas paulistas, como Rogrio Sganzerla, Carlos Reichenbach, Joo Callegaro, Antnio Lima, Marcio Souza, entre outros, que aos poucos se en-contraria na Boca do Lixo de cinema e que tinha um novo posicionamento em relao ao cinema. Com eles Ferreira estabeleceu uma sintonia exis-tencial e uma parceria criativa que se manifestaria em sua coluna, que foi publicada entre 1966 e 1973.

    No So Paulo Shimbun, Jairo Ferreira contava com grande liberdade e pde desenvolver uma abordagem sobre as questes cinematogrcas do mo-mento, como tratar da situao poltica no pas e movimentos estticos e polticos que no mundo assumiam a forma de inquietaes.

    JAIRO FERREIRA NO SO PAULO SHIMBUN

    Alessandro Gamo

    1 Morra a Boca! Viva a Embra! in So Paulo Shimbun. So Paulo, 5 de novembro de 1970 (N. do A.)2 O Filme Japons. Grupo de estudos flmicos. So Paulo: Ed. Revista Matemtica, 1963. Este grupo produziu alguns curtas experimentais, como Terra (Ermetis Ciocheti e Paulo Meirelles, 1962) e Artigo 141 (Jos Eduardo Marques de Oliveira, 1963). (N. do A.)

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    seus artigos um novo grupo que despontava com uma viso problemati-zadora do mundo e do mundo e do cinema, que, com o passar do tempo, vo reetir tambm seus impasses e opes, o aumento da censura e o trabalho na Boca, mas que buscava sempre articular-se com o novo. E fazer cinema era um caminho:

    (...) vocs esto lendo a opinio de um cara que est muito ligado ao cinema brasileiro em geral, paulista em particular. Gostaria de escrever muito sobre A Mulher de Todos, sobre Rogrio Sganzerla, jovem arteso da sintaxe cinematogr-ca. Mas no vou escrever coisa nenhuma, no vou esmiu-ar nada, porque tenho um compromisso comigo mesmo: fazer meus prprios lmes.10

    Foi esta motivao vital de fazer cinema, no importando a bitola ou dura-o, mas experimentando, que gerou a instigante produo cinematogr-ca representada nesta mostra.

    10 Rogrio Sganzerla, Vampiro in So Paulo Shimbun. So Paulo, 18/12/1969. (N. do A.)

    Somos hoje uma indstria sem chamins, embora se fume muitos charutos.6

    Essa a fase mais medocre do cinema nacional. O INC au-menta uma misria nos dias de exibio obrigatria e j acha que pode dar prmio aos exibidores! o m. A vitria dos imbecis.7

    Outra caracterstica que encontramos naquelas crticas do Shimbun a possibilidade de uma criao autoral dentro de um modelo comercial de cinema.

    O conceito de vanguarda mudou: possvel fazer l-mes avanados dentro da indstria. O Bravo Guerreiro, O Bandido da Luz Vermelha, Brasil Ano 2000, A Vida Provisria - so lmes comerciais e nem por isso deixam de ser a vanguarda do cinema nacional.8

    O lance mesmo o cinema comercial, que contribui para a industrializao do cinema nacional. O cinema, infeliz-mente, no vive de lmes srios. Vive de tempero.9

    H tambm naquelas crticas a perspectiva de um movimento rumo realizao cinematogrca, a ideia de uma passagem natural entre a escrita crtica e a realizao.

    E ainda hoje nosso melhor crtico Jean-Claude Bernardet, justamente por no estar escrevendo e apesar do cartesia-nismo.(...). O pior crtico Maurcio Rittner, principalmente depois de realizar Uma Mulher para Sbado. As Noites de Iemanj, incurso comercial consciente de Maurcio Capovilla, o melhor crtico de SP.(...) mas quem mais mili-tou na crtica foi Antnio Lima, que saiu dessa mas ainda no se deniu como diretor. E outro exemplo de coerncia limitada, porque sentimental, foi Maurcio Gomes Leite, cuja Vida Provisria foi a melhor extenso de sua viso como crtico.

    Jairo Ferreira tambm se insere nesse movimento, no qual fazer cinema fazer crtica de cinema e vice-versa. Algo anado com a gerao de crticos dos Cahiers du Cinma, de Godard, Truffaut e Chabrol, e representava em

    6 Salve-se quem puder in So Paulo Shimbun. So Paulo, 3/12/1970. (N. do A.)7 O diamante dos idiotas in So Paulo Shimbun. So Paulo, 16/07/1970. (N. do A.)8 Djalma Batista, um talento in So Paulo Shimbun. So Paulo, 17/04/1969. (N. do A.)9 Lance Maior in So Paulo Shimbun. So Paulo. (N. do A.)

  • CineastaJairo Ferreira,

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    Esse esquema de produo tradicional, com roteiro, equipe e captao em 35mm, s foi retomado por JF em Nem Verdade Nem Mentira, de 1980.

    O Guru e os Guris retrata a gura do pioneiro cineclubista Maurice Legeard, mtico fundador do Clube de Cinema de Santos. Imagens escrachadas do que seria o dia-a-dia de Legeard perambulando pelas ruas de Santos, pesquisando arquivos sobre cinema brasileiro e os mostrando a um cachorro, praguejando dentro de uma sala de cinema onde crianas assistem a uma produo da Disney, um projetor de cinema e pelculas em chamas se somam narrao over do prprio Legeard, um tanto desordenada e em tom de desabafo, discorrendo sobre a falta de interesse dos brasileiros com o cinema feito por aqui, a superestima dos cineastas estrangeiros, as agruras da atividade cineclubista. A edio de som polifnica e a msica cmica, agregadas aos planos-sequncia e cmera catica, buscam dar conta da linguagem de inveno da qual JF sempre foi entusiasta.

    Jairo se apropria da gura ranzinza mas que desperta simpatia de Legeard, para tecer comentrios sobre a situao do cinema brasileiro, o descaso que no mudou muito daquela poca para os dias de hoje. Frases de impacto so ouvidas na voz do personagem, como Na mesma poca em que foi fundado o Clube de Cinema de Santos, foi fundada a Cinemateca Francesa. Hoje a Cinemateca Francesa tem quatro ou cinco mil lmes, e ns tamo aqui de chapu na mo; e Piada de cinema no Brasil o seguinte: que o Brasil vai produzir, por ano, cem lmes. Sabe quantos desses lmes chegam ao pblico brasileiro? Dez ou quinze. Opinies como essas sempre se zeram presentes no pensar/cinema de JF. O nal do curta, nesse sen-tido, emblemtico. Aps longa e exaltada discusso sobre cinema brasi-leiro do guru Legeard com seus guris em uma mesa de bar, ouve-se a risada de Z do Caixo. o incio do samba-enredo Castelo dos Horrores, entoado pelo prprio Z: Eu moro no castelo dos horrores, no tenho medo de as-sombrao, eu sou o Z do Caixo. Na tela a imagem de um lme B, onde um homem morto, dentro de um caixo, se transforma em uma ca-veira. a caveira do prprio cinema brasileiro.

    Maurice Legeard respirava cinema, assim como Jairo Ferreira, para quem o cinema e a vida eram indissociveis. O cinema como alimento para a vida a antropofagia de Oswald de Andrade perspectiva que permeia toda a obra de Jairo, e que aui violentamente em seu lme mais discutido, O Vampiro da Cinemateca, longa de 1977, onde o autor-personagem decreta: Chupo lmes para renovar meu sangue.

    Curta de doze minutos realizado em 1973, O Guru e os Guris o primeiro lme de Jairo Ferreira. Pelo menos o primeiro a ser nalizado, aps a des-truio do material bruto de Via Sacra1 (1967) e a interrupo das lmagens de Mulher d luz a peixe2 (1971). Rodado em 35mm e com equipe prossio-nal de cinema, se difere da maioria de sua lmograa seguinte justamente por essas caractersticas, j que seus lmes posteriores so quase todos captados em Super-8, artesanais, dirios cinematogrcos onde a vida do autor se funde com as prprias obras.

    Documentrio encenado, O Guru e os Guris partiu de roteiro escrito por Jairo, sendo viabilizado por Carlo Reichenbach, que o produziu, fotografou e cedeu a estrutura de sua ento produtora de publicidade, a Jota Filmes.

    1 Segundo Carlos Reichenbach, Orlando Parolini picotou os negativos do lme durante paranoia ps AI-5. (N. do A.)2 As lmagens desse episdio de longa-metragem foram suspensas pelo produtor, A.P. Galante, logo aps os primeiros dias. (N. do A.)

    O GURU E OS GURIS

    Direo e Roteiro Jairo Ferreira

    Produo e Fotografia Carlos Reichenbach

    Montagem Incio Arajo

    Som Vechiato Valese

    Msica Llio Marcus Kolhy

    Elenco Maurice Legeard, Herdia, Eduardo, Carlinhos, Kolhy, Aninha, Marcio, Miro, Albertina

    Documentrio sobre Maurice Legeard, o mtico fundador do Clube de Cinema de Santos, e sua paixo pelo cinema.

    Sinopse

    1973 Cor 35mm 11 min

    Renato Coelho

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

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    O lme apresenta a imagem recorrente de uma rua central de So Lus cheia de pedestres, planos do casario histrico da cidade, da beira mar, etc. Mas tudo de forma no-linear e sem descries via locuo ou letreiros, de maneira que temos acesso a alguns aspectos fsicos da cidade que absolu-tamente fogem do vis turstico que predomina nos lmes de viagem.

    Ecos Caticos busca elaborar uma forma cinematogrca que d conta de expressar o alto grau de modernidade esttica e temtica de Sousndrade, da o plano feito a partir de um carro no qual h uma paisagem tipica-mente tropical (sol, muita vegetao verdejante, o cu claro) cujo enqua-dramento est enviesado de maneira a tornar a imagem estranha na sua composio, situao reforada na banda sonora por uma voz sussurrante que anuncia do caos sejam ecos caticos; posteriormente o mesmo tipo de paisagem ressurge com o enquadramento mais tradicional, mas agora a banda sonora marcada por um rock; nalmente ressurge uma terceira vez a paisagem tropical com sua vegetao e at o mar pode ser entrevisto, mas agora com o som de msica de capoeira. Estes trs planos se agu-ram como os momentos mais expressivos do lme, pois a imbricao do tipicamente brasileiro com a cultura estrangeira total e se demonstra o pouco sentido de pensar em dois plos opostos como queriam os na-cionalistas. No devemos esquecer que 1975 foi o ano de implantao da PNC (Poltica Nacional de Cultura), instrumento por meio do qual o Estado ditatorial aproximou-se de diversos setores da produo cultural, incluindo os cineastas ligados ao Cinema Novo; esta poltica possua uma concepo nacionalista de cultura e a percebia como elemento de construo e uni-cao de uma suposta identidade nacional1. Ou seja, h todo um signicado poltico neste curta de Jairo Ferreira, em especial nos planos referidos.

    Como forma de oposio ao nacionalismo esclerosado que se erige a -gura de Sousndrade e dos seus seguidores em todos os tipos de manifes-tao artstica. Um comentrio irnico sobre o nacionalismo, o qual j podia ser visto nos anos 1970 como expresso do academicismo, surge no plano com a cmera na mo que descortina o prdio da Academia Maranhense de Letras enquanto no som se rearma que as atitudes mais lcidas con-tinuam sendo as neo-anrquicas e, a seguir, h uma msica de suspense. Os artistas que comporiam o coro dos descontentes da sua poca fariam obras que do caos sejam ecos caticos rompendo com o conformismo no campo da cultura.

    1 RAMOS, Jos Mrio Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais (Anos 50/60/70). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 119-125. (N. do A.)

    Este curta-metragem de Jairo Ferreira pode aparentar ser uma espcie de lme de viagem a So Lus, no estado do Maranho. Mas ao invs de nos apresentar de maneira ligeira as praias, os monumentos e as igrejas da Atenas brasileira, defrontamo-nos com aspectos contemporneos fei-tura do lme da cidade na qual viveu e morreu Sousndrade, pseudnimo de Joaquim de Sousa Andrade (1832-1902), o grande poeta experimental, autor de O Guesa, reconhecido apenas nos anos de 1960 a partir da revi-so empreendida pelos poetas concretos Haroldo e Augusto de Campos. Tambm no se trata de um lme biogrco sobre o poeta, mas sim de recriar no cinema de forma experimental a fora da sua poesia e da sua gura histrica.

    ECOS CATICOS

    Realizao Jairo Ferreira

    Uma homenagem cinepotica ao poeta maranhense Sousndrade.Sinopse

    1975 Cor Super-8 14 min

    Arthur Autran

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    E a situao de O Ataque das Araras no poderia ser mais apropriada. Em um mesmo momento durante os cinco dias de viagem pelo rio Negro , Jairo mantm contato com uma equipe de televiso japonesa, uma equipe de lmagem para propaganda de cigarros e um grupo teatral. Comunicao e cultura Amaznia a dentro. Pr-expansionismo ao modelo Brasil Grande, com a Transamaznica e a TV via satlite. Uma viagem anti-turstica, com a mistura inusitada de Zona Franca e oresta, onde o progresso caminha a minicassetes e walkie-talkies.

    Neste ambiente, com a cmera Super-8 em incansvel movimento, os devaneios crticos de Jairo Ferreira alimentam a banda sonora, No pas da cobra grande, a devastao/ A importao de conscincia enlatada. A fala assemelha-se muito ao discurso de vrias de suas crticas publicadas no So Paulo Shimbun, principalmente a partir de 1972, pelo tom mais solto. Mas temos tambm as variaes de modulao e ritmo, como quando descreve seu amigo Joo Callegaro, precisa e criativa articulao de som e imagem.

    Jairo est entre os seus companheiros da Boca do Lixo de So Paulo. Uma preferncia nacional e dele prprio. Na equipe de comercial, que vemos em ao, esto Carcaa (Osvaldo de Oliveira), Rubens Eliot (Eleutrio), habitual assistente de Carcaa, o ator Carlos Miranda (o vigilante rodovirio) e o diretor Galileu Garcia.

    H tambm o grupo de teatro dirigido por Marcio Souza, outra pessoa presente na Boca, amigo de Jairo, personagem frequente das colunas do Shimbun e que naquele momento retomava suas razes e projetos amaz-nicos. Os ensaios da pea e as expresses dos atores deixam transparecer diculdades e contradies do projeto.

    Na composio do lme, Jairo conta com os amigos Carlos Reichenbach, na cmera, e Orlando Parolini, nas intervenes musicais. E destaca-se ainda um belo momento de montagem de uma imagem tomada durante a via-gem de barco, com a cmera girando e focando a amplido do rio e do cu, para uma imagem das ondulaes de luzes dentro do Teatro Amazonas. Cinema puro.

    Poderamos ver O Ataque das Araras como sintomtico de um momento no qual o projeto experimental na Boca se desarticula e o grupo a ele as-sociado busca novas inseres no meio. Mas, ao mesmo tempo, no lme, como em suas colunas escritas, Jairo busca um Cinema marcado pelo com-panheirismo. No toa que o tema do companheirismo ser retomado em pergunta para Almeida Salles em Horror Palace Hotel.

    Alessandro GamoO ATAQUE DAS ARARAS

    Realizao Jairo Ferreira

    Sinopse

    1975 Cor Super-8 10 min

    Documentrio ecolgico rodado na Amaznia sobre um grupo teatral, realizadores de comerciais e cineturistas japoneses.

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    Registro intuitivo/experimental da gerao da poesia que incorpora inuncias do beatnik norte-americano, do surrealismo e da lrica paulistana, Antes Que Eu Me Esquea a construo do discurso cinematogrco sobre a palavra e a performance. A cmera experimental de Jairo Ferreira deagra em fragmentos desconexos a atmosfera de um momento no qual os happenings poticos uniam o deboche e a ironia como armas contra a mediocridade.

    Com a cmera Super-8 na mo, Jairo Ferreira capturava momentos, pes-soas, lugares e fazia suas anotaes em imagens. Nesses dirios flmicos, h uma relao muito estreita com a poesia escrita, epgrafes declamadas e resignicadas num outro contexto para a criao de sua linguagem.

    Assim, ocorre a transmutao de sentido(s) na escolha dos trechos de-clamados pelos poetas-performers Cladio Willer, Roberto Piva, Nelson Jacobina, Jorge Mautner e Roberto Bicelli, autor do livro Antes Que Eu Me Esquea, na festa de lanamento, no Teatro Clia Helena.

    A Gerao Novssima da poesia encontra o sum, a mquina de pinball e o prprio Jairo com sua cmera no espelho, embalados e pontuados por riffs de guitarra e rocknroll. A coisa vira outra.

    Registo intuitivo e elaborao de sentido sobre as imagens e palavras, co-nexo direta em dilogo escancarado com a obra do Papa do cinema ex-perimental, Jonas Mekas, bem temperado com o antropofagismo tropical. O nico objetivo a poesia em todos os suportes e possibilidades. Bem do jeito que o JF gostava.

    Ana Martinelli

    ANTES QUE EU ME ESQUEA

    Realizao Jairo Ferreira

    Elenco Roberto Piva, Cludio Willer, Eduardo Fonseca, Jorge Mautner, Nelson Jacobina

    Sarau potico-musical no lanamento do livro homnimo de Roberto Bicelli no Teatro Clia Helena, em So Paulo.

    Sinopse

    1977 Cor Super-8 16 min

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    Um vampiro, todos sabemos, s pode circular por ambientes escuros, da sua preferncia pela noite. J o cinlo prefere em geral a escurido das sa-las de exibio ao alvoroo das ruas em dias de sol tropical. Ambos, vampiro e cinlo, encontram longe da iluminao intensa o alimento que precisam para viver.

    Da mesma forma que a maior parte dos lmes dirigidos por Jairo Ferreira esta uma pelcula rodada em Super-8 e cujas exibies ocorreram de ma-neira totalmente alternativa. Ademais, o diretor tambm produziu, montou e fotografou a obra. O Vampiro da Cinemateca foi realizado fora do sistema cinematogrco brasileiro da poca, marcado pela Embralme e pelos pro-dutores de tas comerciais da Boca do Lixo (SP) e do Beco da Fome (RJ).

    Para Jairo Ferreira, a cinelia, a crtica e a realizao cinematogrcas com-pletavam-se mutuamente, uma como extenso da outra, em um processo contnuo. No por acaso ele declara ainda em 1969 em artigo sobre A Vida Provisria, lme do crtico e cineasta Maurcio Gomes Leite, que fazer ci-nema fazer crtica de cinema1. Neste O Vampiro da Cinemateca so lidos trechos de textos de Jairo Ferreira publicados no jornal So Paulo Shimbum; e o curta-metragem O Guru e os Guris (1973) apresenta mesmo imagens de crticas publicadas no mesmo peridico.

    Tambm os lmes de Jairo Ferreira so a ampliao do seu amor e da sua reexo sobre o cinema, por vias das mais variadas e reveladoras.

    O Vampiro da Cinemateca surge como o lme mais caracterstico da sua obra neste sentido da ligao da cinelia e da crtica com a realizao. Um letreiro dO Vampiro da Cinemateca indica: lmando lmes que lmam lmes. Ou seja, trata-se de reetir cinematogracamente sobre aquelas obras & autores que so referncias: Cidado Kane (1941) & Orson Welles, Underworld USA (1960) & Samuel Fuller, O Passageiro Prosso Reprter (1975) & Antonioni, Um Homem com uma Cmera (1929) & Dziga Vertov, O Rei do Baralho (1973) & Jlio Bressane, Meia-Noite Levarei a sua Alma (1964) & Jos Mojica Marins, entre outros.

    Como vampiro-cinlo-crtico de boa cepa, Jairo absolutamente apaixonado pelas obras que suga e no hesita em colocar longos trechos dos lmes mencionados, mas fazendo diversos tipos de interveno, que

    Arthur Autran

    1 FERREIRA, Jairo. Um lme provisrio. In: Jairo Ferreira e convidados especiais Crticas de inveno: os anos do So Paulo Shimbum. Organizado por Alessandro Gamo. So Paulo: Imprensa Ocial do Estado de So Paulo / Cultura, 2006. p. 97. (N. do A.)

    O VAMPIRO DA CINEMATECA

    Realizao Jairo Ferreira

    Elenco Jairo Ferreira, Jlio Calasso Jr., Luiz Alberto Fiori, Carlos Reichenbach, Ligia Reichenbach, Orlando Parolini, Guilherme Vaz, Jards Macal, Jos Mojica Marins, Ednardo Dvila, Paulo Egdio Martins, Olavo Setubal, Edson Clgaro, Sidney Estevan, Jos Farias

    Sinopse

    1977 Cor Super 8 64 min

    Na cidade de So Paulo, entre 1975 e 1977, um jovem jornalista decide romper com as limitaes impostas a sua profisso e comea a elaborar o roteiro de um filme. Ele se isola entre quatro paredes e investe furiosamente contra os figures da cultura de sua poca. Sem conseguir criar um personagem, o jovem entra em crise. Porm, filmando cenas isoladas com amigos e examinando cenas de alguns filmes recolhidos diretamente das telas, ele descobre novas possibilidades de realizao. E consegue finalmente inventar personagens: Joo Miraluar, um contestador que deixa o pas num disco voador; Marshall MacGang, um mutante intergalaxial que veio semear a desordem na Terra; e Ligia de Andrade, uma crioula bbada que d escndalos num botequim. Jairo Ferreira

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    E a partir deste conjunto heterclito, to caro ao Tropicalismo, que se re-vela outro aspecto fundamental dO Vampiro da Cinemateca: a cidade de So Paulo. Suas ruas, seus viadutos, seus engarrafamentos, seus persona-gens loucos ou simplesmente boais, os neons do comrcio, os bares da Boca do Lixo, a iluminao do bairro da Liberdade, os restaurantes rabes, o Parque do Ibirapuera, a periferia, o carnaval, as salas de cinema. Enm, o caos urbano e sgnico da metrpole que ao mesmo tempo atrai e oprime, seduz e agonia, estimula e aborrece. Da que alm das diversas tomadas da Avenida Ipiranga h tambm muito destaque para situaes que se passam em pequenos apartamentos, espcie de refgio nos momentos de angstia, mas que de pouco parece adiantar, como vemos nas imagens im-passveis de um homem interpretado pelo cineasta Carlos Reichenbach vomitando sangue diante do espelho.

    Agura-se muito potente esta estrutura que remete bricolagem pela sua feitura quase caseira, pelos nveis muito diversos de associao ou ainda pelos diferentes tipos de materiais audiovisuais utilizados. Da emerge toda uma representao instigante da vida perturbadora de um vampiro-cinlo-crtico na metrpole.

    vo de uma nova faixa sonora passando pelo re-enquadramento e mesmo a edio. Trata-se de transform-las para efeito da sua cinemateca de inveno, espao mtico no qual ao contrrio das cinematecas existentes de fato os lmes so manipulados e seleciona-se o que interessa ao vampiro-cinlo-crtico em termos criativos.

    Mas nesta cinemateca de Jairo Ferreira no existem apenas lmes can-nicos da histria do cinema e/ou da cinelia. H espao para comentrios irnicos sobre produes de kung fu, os institucionais encomendados pelo governo e sobre a pornochanchada, esta ltima alvo de uma modesta ho-menagem como arma a locuo na voz do diretor das mais explcitas; como h tambm lugar para a devoo ao lme de terror, com destaque para o personagem Dr. Phibes - interpretado por Vincent Price.

    E o cinema ainda est presente por citaes como os letreiros luminosos com informaes jornalsticas, marcantes em Cidado Kane como em O Bandido da Luz Vermelha (Rogrio Sganzerla, 1968), ou em situaes que re-metem claramente pelcula A Chinesa (Jean-Luc Godard, 1967); nas diver-sas fachadas de cinemas do centro de So Paulo ou ainda no letreiro do an-tigo Cineasta Hotel. De maneira mais polmica, h toda uma crtica na voz do prprio Jairo Ferreira ao Cinema Novo e especialmente a Glauber Rocha, gura ainda no santicada como nos dias que correm e que alimentava com seus lmes e suas contradies os debates da vida cultural brasileira.

    O vampiro-cinlo-crtico no se contenta com o cinema e suga tambm a literatura e as ideias de Oswald de Andrade, em especial, claro, a noo de antropofagia. Aqui h uma homologia importante entre o antropfago e vampiro, ambos metforas do artista que assume radicalmente o processo de recriao a partir de outras obras, mas pensamos que, para o cinema, a imagem do vampiro mais adequada, pois alm da necessidade da escu-rido, este personagem mais internacionalista e ligado indstria cultu-ral. E ainda no campo da literatura h citaes de William Blake e Charles Baudelaire, bem como o poeta Orlando Parolini recitando seus poemas diante da cmera no alto de um prdio. Ou seja, tambm neste campo o que interessa ao diretor a experimentao, presente ainda na msica de Jards Macal e Guilherme Vaz.

    O Caa Signos, como o realizador se auto-intitula, tambm busca as ma-nifestaes da cultura de massa tais como as canes de Roberto Carlos, Chacrinha, Silvio Santos, a televiso e os jornais.

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

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    Rodado durante o XI Festival de Braslia do Cinema Brasileiro, em julho de 1978, Horror Palace Hotel uma emblemtica plenria para a manifesta-o das tenses subterrneas que rondavam o cinema nacional durante os anos 1970. Momento propcio a revises, aquele foi o ano no qual se anun-ciava a perspectiva de um processo de abertura poltica promovido pelo ento presidente, general Ernesto Geisel.

    O lme articula-se em torno de dois eixos: as entrevistas com os cineas-tas Jos Mojica Marins, Rogrio Sganzerla, Ivan Cardoso, Elyseu Visconti, Jlio Bressane, Neville dAlmeida, presentes no evento, alguns a propsito da mostra paralela O Horror Nacional, que ocorreu durante o Festival. Por outro lado o lme busca apoio na generosa e iluminada participao do Presidente Francisco Lus de Almeida Salles, para discutir perspectivas do Brasil de ento. Mas aos poucos as verdadeiras questes surgem, estimula-das por um entrevistador especial e sintonizado, Rogrio Sganzerla. O Hotel Nacional, que foi durante dcadas o espao onde se hospedavam os convi-dados do Festival, torna-se o palco dos encontros e da ateno de Jairo e Sganzerla, que buscam seus entrevistados nos quartos, durante os almoos e principalmente no bar e ao redor da piscina.

    Gnio ou Besta? J na segunda cartela dos letreiros O Gnio Total ve-mos que a questo da natureza da genialidade colocada como temtica e, depois, no incio do lme, ela retomada pela conversa entre Sganzerla e Mojica. A cena, com os dois num quarto do Hotel, das mais emblemticas do lme. A proximidade, a iluminao, a tranquilidade de Mojica, deitado, fumando e reetindo as armaes de um Sganzerla compreensivo, Eu te-nho a impresso que voc um gnio total!, Voc um gnio nato!. A di-ferenciao se d em relao aos gnios de turno, as criaes do momento. Mojica satisfeito dispara que todo mundo se torna gnio. Agora qualquer elemento que toma um caf num pires diferente se torna gnio. E conclui um tanto melanclico: eu sou uma espcie em extino.

    Temos ainda duas situaes em torno desta insistncia no tema da Genialidade. Com a censura sofrida por vrios daqueles cineastas durante o regime militar, com o recrudescimento da ditadura ps AI-5, decorreu que vrias obras produzidas no perodo foram esquecidas e promissoras carrei-ras cerceadas. Estamos diante do medo do fantasma da obra incompleta e do esquecimento. Da ideia de lmes que precisavam ainda ser feitos e tal-vez no o fossem. Como Mojica que tinha o seu Ritual dos Sdicos retido pela Censura j havia 10 anos expe no inicio do lme: Se a nossa mis-so for interrompida, o homem aniquilado. E Sganzerla concluir mais

    Alessandro Gamo

    HORROR PALACE HOTEL

    Realizao Jairo Ferreira

    Cmera Jairo Ferreira, Rogrio Sganzerla

    Entrevistas Rogrio Sganzerla

    Elenco

    Sinopse

    1978 Cor Super-8 41 min

    Jos Mojica Marins, Rogrio Sganzerla, Francisco Luiz de Almeida Salles, Rud de Andrade, Jlio Bressane, Ivan Cardoso, Elyseu Visconti, Neville dAlmeida, Bernardo Vorobow, Dilma Loes, Sat, Jairo Ferreira

    Conversas dos cineastas de inveno durante a mostra O Horror Nacional, no XI Festival de Braslia do Cinema Nacional, em julho de 1978. Depoimentos marcantes de Mojica Marins, o Gnio Total; e Almeida Salles, o Presidente da Amizade.

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    NEM VERDADE NEM MENTIRA

    Direo e Roteiro Jairo Ferreira

    Produo Roberto P. Galante

    Produtora Produtora Cinematogrfica Galante

    Fotografia Carlos Reichenbach

    Montagem Eder Mazini

    Elenco Patrcia Scalvi

    Um falso-documentrio (ou uma falsa-fico?) sobre o jornalismo.Sinopse

    1979 Cor 35mm 10 min

    Som Walter Luis Rogrio

    adiante, citando o presidente Geisel, preciso revalorizar o homem e que ele prprio precisava ser revalorizado.

    O ressentimento a tnica, mas o lme est disposto a armar as respostas. Anal, os lmes seriam exibidos, e os rebeldes da Amrica estavam l. O horror era ali o veculo para marcar uma posio e buscar alvos: O Horror no est no Horror, diz Bressane em vrios momentos. E para Sganzerla, era necessrio usar o horror contra horror e ainda por isto que eles so horrorosos e ns somos timos.

    Estamos, portanto, no territrio da poltica. E a mensagem cabe tanto represso exercida pelos militares, como poltica cinematogrca. Horror principalmente em relao ao horror da situao nacional com a cmera gi-rando o Cinema Novo e seus representantes, relao que ca clara quando Mojica empurra Arnaldo Jabor que ganharia o prmio de melhor lme daquele ano com o seu Tudo Bem e ouvimos O horror... Arnaldo Jabor. O cinema novo.

    Mas h tambm Almeida Salles que, perseguido por Sganzerla, aparece em vrios momentos e chamado a versar sobre os mais diversos assuntos. Expe a importncia do companheirismo. Tambm na chave do esqueci-mento, dialoga sobre a importncia do trabalho de preservao da me-mria cinematogrca realizado pela Cinemateca Brasileira, uma atitude contra o vandalismo e o extermnio. Reete sobre uma possvel aproxima-o do Brasil com o Oriente, se nos provocarem, anal a Europa j est superada, no mais lideram o mundo fascinante que vem por a. De ns que vir a deciso!. E tambm ana-se ao discurso geral do lme, pre-ciso horroricar as pessoas. Sem horror no h viso.

    Entre uma e outra prola de Ivan Cardoso e Visconti, Jairo expe, como saldo geral da mostra O Horror Nacional, a sintonia com as platias jovens, que so as mais interessantes. Mostra trechos de lmes apresentados, como Os Monstros de Babaloo, Agonia e Sem Essa, Aranha e ainda critica a desigualdade de tratamento das bitolas, atravs da fala de Dilma Les que ganhara naquele ano o prmio de melhor lme 16mm, com o seu S o Amor No Basta e de Cardoso sobre os Super-8.

    Registro de raro posicionamento de foras criativas em nossa cine-matografia, quase ao fim de Horror Palace Hotel Sganzerla dispara a pergunta mais direta do filme, So Miguel pode limpar a barra, pre-sidente?, questo que refora a tnica de exorcizar velhos fantasmas para nosso cinema melhorar.

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    O entrar e sair. Aparecer e desaparecer. Isso sim.

    E h os textos. Patrcia escreve como uma jornalista. Ela devia ser secretria antes. Ela diz os monlogos que o Jairo escreveu, malucos no raro, mas em nenhum momento parece um papagaio repetindo coisas que no entende. Ela sabe o que est dizendo. Por intuio, por que foi instruda? No sei. Sei que cou perfeito.

    Nem Verdade Nem Mentira o lme mais lmpido do Jairo. A imagem de uma clareza, de uma fora quase clssicas. godardiano mesmo. No briga com o real, vai recolhendo aqui e ali seus fragmentos, recompondo o mundo do jeito que pode.

    Outro dia ouvi um comentrio interessante do Rubens Machado sobre o Super-8 como um lme alm da censura, feito em total liberdade, o que o leva no raro fronteira das artes plsticas (essa ltima armao minha, mas acho que o RM no deve discordar muito). A ideia pode ser verdadeira, mas no caso do Jairo acho que no funciona to bem. o 35mm que d fora ao lme, sim. o fato de ter uma equipe atrs, qual de todo modo ti-nha que prestar contas, de ter um produtor chato embora muito bom como o Galante, que cobra rapidez, ecincia, essas coisas, o tempo todo.

    por sentir esse tipo de constrangimento, por ter de prestar contas, que o lme carrega essa tenso em tudo positiva. O Super-8 do Jairo feito para os amigos, ele d vez ao seu lado narcisista, por exemplo, coisas que no faz aqui. No Super-8 , basicamente, ele e ele. No 35mm, e neste lme em particular, ele e o mundo, numa troca intensa e muito frtil, onde entram humor e desespero, distanciamento e entusiasmo enm, eu e o outro, eu e o mundo. Deu num lme raro e claro. Fico feliz at hoje que o Jairo tenha podido realiz-lo. Tenho pena, ainda, que outras oportunidades no tenham aparecido.

    O ttulo j resolve duas obsesses de Jairo: Rogrio Sganzerla e Orson Welles, claro.

    Mas o lme godardiano, de cabo a rabo, como talvez o Jairo nunca te-nha sido em outras ocasies (corrijo: no tenha podido ser), mas como era profundamente na sua maneira de observar as coisas, de estar entre elas, aceit-las, rejeit-las. De misturar lme e vida privada, o momento e o sem-pre. Isso no fazia diferena para ele. Nunca vou perdo-lo de usar uma carta que lhe escrevi, uma carta muito pessoal, alis, com coisas tremenda-mente provisrias, num lme.

    Os lmes do JF esto sempre ligados a circunstncias do momento. Nem Verdade Nem Mentira foi um documentrio com produo Galante feito naquele momento em que havia uma obrigatoriedade de curtas brasilei-ros etc. e tal. Jairo trabalhava na Folha, portanto teria que ser a Folha o seu centro, o lugar onde as coisas ocorrem. Essa foi a poca mais feliz da vida do Jairo, me parece, em que teve alguma estabilidade prossional, coisa que sempre lhe faltou. Ningum espere que eu fale desse lme como crtico. Isso no vem ao caso mesmo. Eu falo como o cara que freqentava o apar-tamento do Glicrio e, depois, o da Baro de Limeira, que andava no seu Fusca, que ia s pizzas com ele, ao cinema, que se encontrava com o Carlo e com ele para falar das coisas. um texto afetivo, talvez, que envolve a re-dao da Folha, no mais, onde comecei a trabalhar alguns anos depois.

    O lme: l est a redao. Verdade ou mentira? A pergunta que cada jor-nalista pode (e deve) se fazer depois de cada texto que escreve. Verdade ou mentira? Mas de quando? 1980, ainda em ditadura. 1980, uma redao de jornal que parece uma co cientca s avessas, com mquinas de escrever e tudo mais.

    Patrcia Scalvi o alterego de JF no lme. Patrcia, eu no entendo: por que deixou de ser usada como atriz? O Bifora dizia que era nossa Susan Hayward, e no estava longe da verdade. Mas ao rev-la, aqui, tive um susto. O JF fez dela uma perfeita jovem jornalista. E ela soube encarnar o papel perfeitamente.

    Porque o lme no a Folha. o Jairo. ele em sua relao com o mundo, que naquele momento passava intensamente pelo jornal. essa troca constante, que beira o catico, s vezes, mas nunca vai at l (neste lme). L esto os jornalistas que entrevista: Flvio Rangel, Hel Machado, Tavares de Miranda, Dirceu Soares... Mas JF/PS passa por eles sem se interessar enormemente. Nada do que eles tenham a dizer parece essencial ao lme.

    Incio Arajo

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    Por exemplo: num momento em que o cinema brasileiro caminhava a passos largos para uma institucionalizao (o embralmismo), Jairo respondia com seus pequenos lmes experimentais e rodados em Super-8, suporte barato, mas tido como amador.

    Ou ainda: a um prossionalismo perigoso que se impunha, refm do cumprimento dos deveres de ofcio (a conquista doentia do mercado, por exemplo), ele opunha um cinema radicalmente pessoal e, portanto, livre. Pois a grande liberdade est em saber que o cinema no est na boa tcnica, ou no tamanho da produo, ou ainda na grandeza do tema, mas antes na qualidade (e na verdade) do seu olhar para as coisas. Ou seja, Cinema de Inveno , do nada, fazer tudo ao contrrio dos cine-arrivistas, os prossionais da prosso (como diria Godard), que, com tudo, no fazem nada. Pois, como diria Ivan Cardoso num dos textos fundamentais sobre o udigrudi: Mixagem alta no salva burrice.

    E o que mostravam estes lmecos, realizados sem interesse pecunirio e pouco vistos? Nada alm do puro prazer dos olhos (para usar a bela ex-presso de Truffaut): os amigos, os livros, os lmes, as paisagens que Jairo mais apreciava. Mesmo que isto signicasse, to simplesmente, lmar al-guns vages indo e vindo, lentamente, ao som sempre agradvel de Joo Gilberto cantando Trem de Ferro: O trem, plim, plam, plim, plam, vai saindo da estao, plim, plam.... Como diria Rabelais: Faa o que desejar. E que ningum diga que estas imagens no so cinema pois o so, e do melhor.

    O Insigne Ficante , tambm e portanto, uma espcie de dirio ou caderno de notas em imagens, rodado entre 1977 e 1980, poca em que Jairo era crtico de cinema da Folha de So Paulo. E l esto imagens realizadas durante algumas das pautas que cobriu para o jornal: o cineasta Jean Garrett (um dos principais nomes da Boca do Lixo) em lmagem; uma bela e longa entrevista com o escritor maldito Dyonlio Machado; os bastidores de O Gigante da Amrica, do Jlio Bressane, nos estdios da Cindia; uma coletiva com Werner Herzog (Eu s sei fazer lmes sobre pessoas de quem eu gosto muito, que eu amo, pessoas de quem eu me sinto prximo); um papo qualquer coisa com Edgard Navarro durante uma Jornada de Curtas, etc.

    O prprio Jairo gostava e sempre falava em cinevida, isto , uma espcie de mimetismo total entre criao & vivncia. De fato, o cinema era a vida dele. Dito assim, pode parecer um clich. No : basta ler seus textos e ver seus lmes.

    Durante alguns bons minutos de O Insigne Ficante, acompanhamos Incio Araujo, ento grande amigo do Jairo Ferreira. As imagens, muitas vezes, lembram um lme amador isto , feitas por um (mero?) amante de ci-nema. O cenrio principal o quarto de Incio em Paris; os dilogos so confessionais (mais do que pessoais). O prprio Jairo l em voz alta as car-tas que ambos, ele e Incio, trocaram. H at uma pequena cena de co, lmada com um prazer quase juvenil. E em certo momento, com um olhar meio perdido, tpico do pensamento em ao, Incio diz: Samuel Fuller j falou que o cinema emoo. Ento, o cinema amor. voc ver uma coisa que voc precisa amar. Seno no adianta. Seno no interessa. E assim, muito sutilmente, meio ao acaso, esto dadas todas as chaves de entrada para o lme.

    O INSIGNE FICANTE

    Realizao Jairo Ferreira

    Elenco

    Jairo Ferreira discute o conceito de inveno, segundo Pound. Filme de viagem, Jairo leva sua cmera at Gois, Paris, Bahia, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, encontrando diversas personalidades.

    Sinopse

    1980 Cor Super-8 60 min

    Juliano Tosi

    Jairo Ferreira, Incio Arajo, Edson Clgaro, Dyonlio Machado, Carlos Reichenbach, Jlio Bressane, Edgard Navarro, Paulo Csar Pereio, Maria Gladys

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    Mas o leitor desavisado poder se perguntar: aonde nos (e)leva esta esp-cie de imprio do desejo? Qual o sentido desta colagem um tanto anr-quica, da mistura de Mrio Reis com desenho animado, de Jimi Hendrix com ecologia e poesia concreta?

    Jairo era, convm lembrar, um poundiano de carterinha. Gostava, por exem-plo, de citar sua classicao dos tipos de criadores: inventores, acima de todos (da surge a ideia de Cinema de Inveno), seguidos pelos mestres, os diluidores, at a categoria mais baixa, os fazedores de moda.

    Seu prprio trabalho crtico, mesmo num jornal como a Folha, era o que Pound chamaria de crtica pelo exerccio do estilo de uma poca uma verdadeira escrita de inveno, impensvel de ser publicada em um veculo de grande tiragem.

    E h algo muito poundiano no seu gesto de, como diz, vampirizar os objetos a seu redor que mais o atraem: seja o biscoito mais fino, um filme de Orson Welles ou Mrio Peixoto, seja um trocadilho com jeito de poesia concreta.

    Abre aspas para o Jairo: Seleo: a ordenao geral e a moldadura do que est sendo realizado. A eliminao de repeties. O estabelecimento do paideuma, ou seja, a ordenao do conhecimento de modo que o prximo homem ou gerao possa achar, o mais rapidamente possvel, a parte viva dele, e gastar o mnimo de tempo com itens obsoletos. Fecha aspas.

    Ao qual poderamos acrescentar o desejo de viver intensamente, de experi-mentar ao mximo, sem perder tempo (que sempre precioso) com modis-mos, academicismos e falsas invenes. E aqui vem mente a cena, fabu-losa, retirada de um desenho do Ligeirinho (dublado em italiano!): diante da pasmaceira, do cemitrio dos vivos, de uma vida que pura repetio, lenta demais, surge a gura muito veloz (os lentos demais s vem seu rastro, depois que j passou) do Ligeirinho. Ele vive plenamente: no dedica o melhor de seu tempo e energia com o intil. dele, portanto, o beijo da moa mais bela, cobiada por todos os demais. Ele, por viver mais, desejar mais, tambm pode mais.

    O Insigne Ficante , como um desenho animado, um triunfo do imaginrio: obra do artista que, para inverter a frase de Mrcio Souza, prefere reconhe-cer suas possibilidades, e no os seus limites.

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    Em 1991, menos de dois anos aps a morte de Raul Seixas, Jairo Ferreira ganhou o Prmio Estmulo em videoteipe para fazer um lme sobre o rei do rock. A nova aventura audiovisual pressupunha a descoberta de novas possibilidades de imagem com os efeitos visuais do suporte.

    O Super-8 cedeu lugar ao VHS-Compact e nalizao em U-Matic, mas a produo foi antiga: uma cmera, equipe reduzida e o registro intuitivo com improvisaes. Com novos elementos, JF cria um jogo ldico e radical do uso dos efeitos (chroma, solarizao e pixelao) que beira o extremo.

    Intercalam-se sequncias de videoclipe e depoimentos, que misturam c-o cientca com documentrio. Para falar da obra de Raulzito, o cinepoeta dispe dos seus smbolos msticos, msicas e de Toninho Buda encarnado no papel do roqueiro e visionrio.

    JF faz do lme-homenagem o lugar ideal para o dilogo de signos que compartilhava com o msico: Aleister Crowley, o tar, a magia, a msica, a transgresso, a Sociedade Alternativa, ufologia. No h nada acidental neste lme e as leituras so inmeras.

    O diretor converge os elementos do ensaio audiovisual para dentro dos conceitos do Cinema de Inveno atravs de suas sintonias experimentais, visionrias, existenciais e intergalcticas. O ssia do Raul em tom proftico declara: Tudo comea com uma conspirao.

    A sequncia das capas de discos de Raul Seixas aberta com seu primeiro lbum solo: Krig-H, Bandolo! (1973), considerado ainda hoje um dos 10 dis-cos que revolucionaram a msica brasileira. JF dispe sobre a imagem do msico duas cartas do tar de Marselha: direita, o Louco representao da energia criadora -; esquerda, o Eremita gura de sabedoria, conheci-mento adquirido pela vivncia. Vale dizer que o nmero da carta o nove, que tambm simboliza o m de um ciclo. Raul olha para a direita e v o Louco; este, encara o msico e o Eremita, que por m olha para os dois. Um tringulo: o Incio (o Louco), o Fim (o Eremita) e o Meio (Raul).

    H de ser tudo da Lei!. Sintonia extra-sensorial.

    Ana Martinelli

    Toninho Buda, Sylvio Passos e Jairo Ferreira

    METAMORFOSE AMBULANTE

    Direo Jairo Ferreira

    Roteiro Jairo Ferreira, Toninho Buda

    Argumento Jairo Ferreira, Ana Lucia Franco, Carlos A. L. Salum

    Produo Jairo Ferreira

    Luz e Cmera Jayro F. Pinto

    Montagem Joo Luiz Arajo

    1993 Cor U-matic 19 min

    OU AS AVENTURAS DE RAUL SEIXAS NA CIDADE DE TOTH

    Jairo Ferreira homenageia Raul Seixas a la Kenneth Anger.Sinopse

    Elenco

  • VisionrioJairo Ferreira,

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    58

    (...)

    A data correta da realizao de Limite at hoje no foi devidamente escla-recida, mas o extraordinrio livro de Saulo Pereira de Mello (Limite, 1979, Edio Funarte) atesta que o lme foi lanado no Brasil em 1930, em sesso especial no tambm lendrio Chaplin Club. Rodado a 16 quadros por se-gundo, seria exibido em Londres em 1931, valendo sempre lembrar a imensa repercusso que obteve.

    Serguei M. Eisenstein: ...A mensagem de cinema, da Amrica do Sul, daqui a vinte anos, eu estou certo, ser to nova, to cheia de poesia e cinema estrutural, como o que assisti hoje. Jamais segui a um o to prximo ao genial como o dessa narrativa de cmera sul-americana... (Marble Arch Pavillion, Strand, London/The Tatler Magazine, outubro 1931, Londres).

    Eric Pommer: Um jovem brasileiro - que se expressa em cinema com a mesma profundidade de um experimentado tcnico. Entretanto, a sua arte extravasa mais arroubos de ousada poesia qual a cmera expressa todo um ineditismo de raro e mais alto senso esttico (VUE, novembro 1931, Paris).

    Vsevolod Poudovkine: ... senhor do ritmo e da cmera tanto quanto a pin-tura dos seus shots sul-americanos. Eu o chamaria de extenso de uma mentalidade nova, porm j mestra... (The Sphere, 1931, Londres).

    MRIO PEIXOTO METAFSICA DO FOTOGRAMA

    LIMITE

    Direo Mrio Peixoto

    Elenco Olga Breno, Taciana Rei, Carmen Santos, Raul Schnoor, Brutus Pedreira, Mrio Peixoto, Edgar Brazil

    Enquanto esperam por sua salvao, trs nufragos num bote perdido em alto mar confidenciam momentos marcantes de suas vidas. Decadncia, estagnao, melancolia da paisagem num pas jovem, de natureza exuberante.

    Sinopse

    1931 P&B 35mm 120 min

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    Uma perturbadora, ardente, pulsao irracional; desconcertante frigidez incidental (acentuada na msica de Rogrio Duprat). Inquietude interior e ansiedade de calidez; letrgica e amarga desagregao, possivelmente existenciais. So algumas caractersticas que, primeira vista, encontra-mos nessa realizao de Walter Hugo Khouri. O Corpo Ardente se ambienta no corao de uma burguesia desgastada, exausta. At aqui nada de novo: WHK sempre se debruou sobre este hemisfrio. Os problemas so tpicos: a fossa, o tdio, a exausto do sexo-amor. Da decorrem sentimentos condi-cionados, abstratos: o marasmo, a contemplatividade, e um forte impulso: a necessidade de fuga. Em Estranho Encontro os conitos ocorrem numa bela casa do interior; em A Ilha o tdio e a depresso se afogam no mar; em Noite Vazia a fuga mais realista, rida: congura-se no seio da pr-pria cidade, numa noite de bacanais. Sempre os subterfgios. Tristeza. Mas sempre tambm um tranqilo inconformismo.

    O CORPO ARDENTE

    Direo Walter Hugo Khouri

    Elenco

    Sinopse

    1966 P&B 35mm 82 min

    Brbara Laage, Mrio Benvenutti, Pedro Paulo Hatheyer, Srgio Hingst, Marisa Woodward, Sonia Clara, Dina Sfat, Clia Watanabe, Wilfred Khouri, Lineu Dias, Francisco de Souza, David Cardoso, Miguel di Pietro, Celso Akira, Zulema Rida, Dorothy Mellen, Rubens Jardim, Garoto Trio, Lilian Lemmertz

    Mulher decide afastar-se da vacuidade de seu grupo ntimo e segue com o filho de 10 anos para Itatiaia, para repensar a sua vida. Experimenta, ento, um interesse obsessivo pelo comportamento de um garanho fugitivo de um haras das redondezas. A natureza vegetal, mineral e animal atuam fortemente sobre ela, ora elucidando, ora aprofundando seus conflitos.

    Edward Tisse: ...No se h de estranhar o domnio de tal lme. Visualizando-o de qualquer ngulo qualquer shot todo ele brota como se oriundo de um estranho sonho. Um sonho, confesso, cujo retorno desejaria e trazendo a sua mensagem sempre renovada... (The Tatler Magazine, outubro 1931, Londres).

    Eu s assistiria Limite em 1981, no Museu da Imagem e do Som, So Paulo. Imediatamente o situei ao lado dos lmes que mais gosto: Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Bandido da Luz Vermelha, Cidado Kane, O Encouraado Potemkin. um lme de cinegraa, como j detectava Otvio de Faria em artigo publicado em 1931:

    Em Limite, os recursos de que o realizador disps interessam muito pouco, porque o lme como resultado, como obra total, que absorve todo o inte-resse. No precisa de atenuantes e materialmente no deixa perceber que foi realizado no Brasil, graas habilidade tcnica do camera-man Edgar Brasil.

    (...)

    Cinemagia, cineutopia: cinema/sonho. Abel Gance nos deu a mais bela deni-o de Cinema: A Msica da Luz. Mrio Peixoto nos deu seu mais belo lme.

    Limite: a esttica cintilantemente iluminada.

    H algumas inverdades no conjunto de textos que a Folha publicou sobre os 60 anos do lme Limite de Mrio Peixoto. E outras tantas antimenti-ras, j que s em arte a mentira verdade. Foi um choque geral entre os admiradores do lme saber que, beirando os 90 anos de idade, seu autor assumiu o fake. Farsa geral. Seu mito seu lme, o homem tambm como obra de arte, diria Nietzsche. Para no citar Lincoln. Isso demonstraria que at Glauber Rocha foi um tremendo pato. Pois em seu livro Reviso Crtica do Cinema Brasileiro, que de 1963, cita trechos do The Tatler Magazine, dizendo a Folha que o texto foi publicado via Cac Diegues na revista Arquitetura em 1964. Tem gato a. Mrio Peixoto no to apcrifo assim: o fake do The Tatler, ok. A Folha provou, na condio de mariopeixotista quero mais: sero tambm invenes os elogios do Film Arte Magazine, Vue, The Sphere, de Pudovkin, de Edward Tisse, de Otvio Faria, de Mrio de Andrade? De Orson Welles? De Vincius de Moraes?

    Trechos do captulo homnimo do livro Cinema de Inveno - , 1986.

    Carta de JF enviada ao Painel do Leitor do jornal Folha de So Paulo, 25 de maio de 1991.

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    A MARGEM

    Direo Ozualdo Candeias

    Elenco Mrio Benvenutti, Valria Vidal, Bentinho, Lucy Rangel, Tel, Kar, Paula Ramos

    Sinopse

    1967 P&B 35mm 96 min

    Na favela as margens do rio Tiet, duas trgicas histrias de amor, dois casais que a sociedade ignora e que, em meio a misria e a luta pela sobrevivncia, tentam encontrar-se atravs do sentimento.

    Neste O Corpo Ardente voltamos s mesmas teclas: uma festa requintada mas vazia; a saturao do sexo-amor; uma temporada em Itatiaia. Eis a fuga. Ou libertao? Esse lme fundamental na obra de WHK: comple-mentando-a, possibilita melhor compreenso de outros lmes. Um fato curioso: no somente dos de WHK, mas, inclusive, da trilogia de Antonioni. Existem aqui novos germes, impregnando o lme de uma auspiciosa irra-cionalidade. Insistimos nisto: O Corpo Ardente aplica-se a outros lmes de WHK. retroativo ao mesmo tempo que, talvez, poder contemporizar o futuro de sua carreira. Isto se WHK prosseguir e prosseguir? nesta li-nha que gostaramos fosse sempre, isto , pesquisando a condio humana atravs do inslito, do irracional.

    Quando um autor transubstancia sua viso em co, aproxima-se da criao, perde a subservincia mentalidade dos personagens ou do background. Quer dizer, transcende os condicionamentos sociais que, no caso de WHK, sempre contiveram fortes resqucios da deteriorao das altas esferas. Mesmo em Noite Vazia, no havia o lan que existe em O Corpo Ardente, porque este possui um forte elemento libertador: a procura de compreenso da irracionalidade humana. Aquele era de uma imanncia esttica, deixando uma sensao de desalento. J aqui tudo se revitaliza: o lme tem a fora de alguns lmes malditos do cinema japons. Uma aparente frigidez, mas compensada pela vibrao interior. No mais uma constatao anatematizante. Samos deste lme reetindo, analisando. Isto porque O Corpo Ardente vem acrescido de uma metfora, similitude ou implicao dialtica, inerente vida em geral: humana, animal, vegetal. Desde que se procure uma convergncia no Homem e na Razo, tudo vlido. Neste ponto reside a nossa dvida sobre O Corpo Ardente. Sua personagem central obcecada por cavalos. Suas ansiedades parecem culminar na copulao dos quidas: desde j, um momento antolgico, admirvel, que nos leva ao embevecimento. De uma estranha irracionalidade, inquietude, calidez.

    De resto, O Corpo Ardente de uma total harmonia cinemtica: de lin-guagem, fotograa-iluminao, msica, interpretao e montagem. Gostaramos de continuar a anlise, mas a limitao desta coluna no per-mite, restando-nos recomendar este lme brasileiro como um dos grandes lmes do ano.

    Texto homnimo ao lme publicado originalmente no jornal So Paulo Shimbun, 16 de dezembro de 1966

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    A ao do lme ambientada nas favelas da marginal do rio Tiet e se com-pe de duas partes interligadas: na primeira, mostra-se o ponto de vista de indivduo para indivduo; na segunda, os personagens so inseridos mito-logicamente na realidade social da cidade.

    Primeiro longa-metragem de Ozualdo Candeias (escorpiano de 1922, nas-cido em So Paulo), A Margem considerado hoje um cult-movie, marco inaugural do movimento conhecido como Boca do Lixo. A produo teve oramento dos mais baixos, as lmagens duraram duas semanas e os ar-tistas trabalharam em sistema de participao. Lanado nos cines Marab e Regncia, em dezembro 67, foi um sucesso de crtica e vem fazendo longa carreira nos circuitos alternativos.

    Candeias apresenta uma obra singular, ao mesmo tempo realista, fants-tica e potica (Rubem Bifora, Estado, 17.02.67).

    Em atmosfera e intenes, o lme lembra certas coisas da Avant Garde francesa da dcada de 20; e seu lumpen-proletariat parece sado de certos lmes europeus e norte-americanos sobre a crise que marcou a segunda metade da dcada de 20 e a primeira de 30 (Alex Viany, Dirio de Notcias, 06.03.68).

    No h porta para sair da margem: nem a da mendicncia nem a da pros-tituio - nem h a disposio ou a possibilidade de integrao na cidade to prxima. O milagre cinematogrco de Candeias consiste em dar a uma realidade social um revestimento mitolgico (Antonio Moniz Viana, Correio da Manh, 18.04.68).

    O lme para seu realizador: No sei por que me chamam de primitivo. Meu lme foi planejado, estudado. Os artistas no precisavam mudar muito de roupa, tive que usar qualquer tipo de negativo. Foi assim que inventei a histria, procurando aquela gente esquecida que muitos pensam que no existe.

    Exibido na mostra ps-Cinema Novo, em Londres, maio de 85, A Margem foi considerado um lme antolgico. No livro Cinema de Inveno, o cr-tico Jairo Ferreira o reavalia como um clssico de nosso cinema altura de Limite, de Mrio Peixoto. Em 1967, o lme ganhou os seguintes prmios do Instituto Nacional do Cinema: melhor diretor (Ozualdo Candeias), melhor msica (Luiz Chaves) e melhor atriz coadjuvante (Valria Vidal).

    Texto sobre A Margem escrito para press-release da Amostra Cinema de Inveno, organizada por Jlio Calasso Jr. em 1986.

    Numa pequena sala do Sindicato da Indstria Cinematogrca do Estado de So Paulo, ento na rua Jaceguai, assisti aos primeiros copies dA Margem e presenciei algumas rusgas de Candeias, sandlias havaianas ou no, com o montador Mximo Barro, muito preocupado com os escnda-los amorosos de Hollywood. Candeias j tinha feito quase tudo sozinho: roteiro, produo, fotograa adicional e direo; no custava perder alguns dias na montagem e garantir a integridade do lme fotograma por foto-grama.

    (...)

    O marginal Ozualdo Candeias, um dos raros cineastas brasileiros a andar a p por sua cidade, estava muito inquieto e preparou diversas sesses espe-ciais antes do lanamento. Me lembro pelo menos de uma na Comisso de Cinema do Juizado de Menores, onde se falou em surrealismo e impressio-nismo, remetendo o barco da morte que aparece no lme (e que curiosa-mente lembra o barco de Mrio Peixoto em Limite, 30) mitologia grega de Caronte. Candeias estava lisonjeado, mas reduziu as pretensas erudies ao arroz-com-feijo do dia-a-dia.

    (...)

    Independente em tudo e por tudo, Candeias confessa que nunca foi muito chegado ao cinema de um Glauber, Lima Barreto ou Humberto Mauro, alm de fazer muitos reparos aos lmes de Sganzerla, Carlo e Mojica Marins. Nada disso tem importncia, claro, e quem o conhece bem de perto sabe que no se trata exatamente de um megalmano e sim de uma persona-gem rara, intransigente em seus mtodos de trabalho e grande contador de casos. Quando toma uma boa cachaa, o que s acontece em ocasies muito especiais, torna-se extremamente generoso com quase todos. O ex-motorista de caminho nascido no interior de So Paulo continua rea-lizando provocaes como A Freira e a Tortura,1983, e freqentando a Boca do Lixo com a mesma disposio que o fazia nos anos 60. Primeiro e ltimo marginal, ou marginal entre marginais, Candeias um monumento do ex-perimental em nosso cinema.

    Trechos do captulo homnimo do livro Cinema de Inveno, 1986

    OZUALDO CANDEIAS PONTO DE PARTIDA AVANADO

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

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    Em 1968, quando o Cinema Novo comeou a se inclinar ao cinemo, isto , tentativa de industrializao s custas de uma desradicalizao poltica que deslocou da esquerda para o centro o sonho do grande cinema ci-nema godardianamente poltico/potico/policial foi brilhante & revolu-cionariamente retomado pelo experimental inominado & emergente.

    Novos talentos estavam para explodir, e s podiam faz-lo com uma c-mara na mo e uma idia na cabea grande slogan do Cinema Novo, que lamentavelmente era um movimento fechado, uma igrejinha.

    So de 1968 lmes deagradores como O Bandido da Luz Vermelha, de Rogrio Sganzerla, Hitler 3o Mundo, de Jos Agripino de Paula, Viagem ao Fim do Mundo, de Fernando Coni Campos.

    Glauber Rocha acendia uma vela a Deus e outra ao Diabo: em 68, enquanto no engatilhava a produo do Drago da Maldade contra o Santo Guerreiro (um dos precursores do cinemo), realizou experimentao radical que Cncer. Lavou a alma. Alis, consta que Glauber tem um lme chamado 1968, que nunca vi, e do qual poucos falam. tambm de 1968 Jardim de Guerra, de Neville DAlmeida. Para situ-lo devidamente necessrio dis-correr sobre o que esse cinema poltico signicava para todos ns.

    Cinema era uma forma de pensamento altura da losoa ou at mesmo superior! Sendo poltico ao mesmo em que potico, esse cinema no po-deria ser nem foi engag, claro. Isso no quer dizer que tanto os cine-manovistas como os experimentalistas no fossem militantes. Ou ento simpatizantes da guerrilha urbana ou rural. Comunistas mesmo s havia no Cinema Novo: o experimental estava mais para o anarquismo terrorista ou para o socialismo libertrio. Cada um sua maneira, ramos todos resis-tentes contra a ditadura que estava babando na farda. No se podia discu-tir poltica em nenhum local pblico, pois os agentes da represso estavam na escuta, disfarados em jeans e barba.

    A Guerra do Vietn acabou h mais de dez anos, e s nos anos 80 que pintam lmes contando como foi realmente a coisa Platoon, Full Metal Jacket. O experimental em nosso cinema sonhou retratar a represso no momento em que estava acontecendo. Era uma ousadia extrema, era cutu-

    NEVILLE DALMEIDA

    Sinopse Um jovem amargurado e sem perspectivas, apaixona-se por uma cineasta e injustamente acusado de terrorista por uma organizao de direita que o prende, o interroga e o tortura.

    JARDIM DE GUERRA

    Direo Neville DAlmeida

    Elenco

    1968 P&B 35mm 90 min

    Joel Barcellos, Maria do Rosrio Nascimento Silva, Vera Brahim, Carlos Guimas, Ezequiel Neves, Paulo Ges, Jorge Mautner, Geraldo Mayrink, Srgio Chamoux, Claudia de Castro, Guar Rodrigues, Glauce Rocha, Dina Sfat, Hugo Carvana, Antnio PItanga, Emanuel Cavalcanti, Paulo Villaa, Adolpho Chadler, Nelson Pereira dos Santos

  • Mostra Jairo Ferreira - Cinema de Inveno

    Essa organizao misteriosa existe em dezenas de lmes do experimental agora me passa pela cabea Repblica da Traio e Lilian M. Cair nas ma-lhas de uma organizao dessas seria car em situao kafkaniana: morte inexorvel. Era confessar o que no se sabia e morrer no pau de arara ou base de choque eltrico. Ento, a est uma explicao para o excesso de gritos e vmitos que perpassa a grande maioria dos lmes udigrudi o que o crtico Ferno Ramos chama de abjeto e que poderamos at chamar de escatolgico tem a sua origem nas masmorras da ditadura brasileira, prin-cipalmente entre 1968 e 1973 (e, embora, felizmente, eu nunca t