Cenas de um Trágico Cotidiano - DBD PUC RIO · 2 . Rosane Maria Lima Cenas de um trágico...
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Rosane Maria Lima
Cenas de um trágico cotidiano: A Reunificação das Duas Coreias,
de Joël Pommerat
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Pedro Duarte de Andrade
Rio de Janeiro Julho de 2016
2
Rosane Maria Lima
Cenas de um trágico cotidiano: A Reunificação das Duas Coreias,
de Joël Pommerat
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela comissão abaixo assinada.
Prof. Pedro Duarte de Andrade Orientador
Departamento de Filosofia - PUC - Rio
Profa. Marcela Figueiredo Cibella Oliveira
Departamento de Filosofia - PUC - Rio
Prof. Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa
Universidade Federal Fluminense - UFF
Profa. Monah Winograd
Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC - Rio
Rio de Janeiro, 11 de julho de 2016
3
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do
orientador e da universidade.
Rosane Maria Lima
Graduou-se em Filosofia na PUC-Rio em 2012.
Ficha Catalográfica
CDD: 100
Lima, Rosane Maria Cenas de um trágico cotidiano : A Reunificação das Duas
Coreias, de Joël Pommerat / Rosane Maria Lima ; orientador:
Pedro Duarte de Andrade. – 2016.
97 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2016. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Trágico. 3. Tragédia. 4. Drama contemporâneo. 5. Filosofia do trágico. I. Andrade, Pedro Duarte de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.
4
Agradecimentos
Ao meu orientador Professor Pedro Duarte pelo estímulo, exemplo e parceria.
Ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
Aos professores Marcela Oliveira e Patrick Pessoa que participaram da Comissão
examinadora, pela atenção e o diálogo.
Aos meus colegas da PUC-Rio e da UFF, pela boa companhia.
Aos meus professores e aos funcionários do Departamento de Filosofia, pelo apoio
desde a graduação.
Aos meus amigos e minha família, pelo carinho.
Aos meus filhos, Clara e Joaquim, pela presença.
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Resumo
Lima, Rosane Maria; Andrade, Pedro Duarte. Cenas de um trágico
cotidiano: A Reunificação das Duas Coreias, de Joël Pommerat. Rio de
Janeiro, 2016. 97p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A presente dissertação de mestrado propõe uma investigação sobre o trágico
no teatro contemporâneo. A partir da leitura da peça A Reunificação das Duas
Coreias, de Joël Pommerat, e sob a ótica de conceitos elaborados por autores que
se dedicaram à pesquisa do trágico, no teatro e na filosofia, o estudo explora o
surgimento de um trágico contemporâneo distanciado da tragédia clássica. O
trágico contemporâneo poderia ser nomeado trágico do cotidiano, trazendo reflexos
do trágico filosófico dos primeiros românticos. Suas origens seriam percebidas na
virada do século XX, com a crise do drama moderno.
Palavras chave
Trágico; Tragédia; Drama contemporâneo; Filosofia do trágico
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Abstract
Lima, Rosane Maria; Andrade, Pedro Duarte (Advisor). Scenes from a
tragic of daily life: The Reunification of the Two Koreas, by Joël
Pommerat. Rio de Janeiro, 2016. 97p. MSc. Dissertation - Departamento
de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This thesis investigates the tragic in the contemporary theater. Based upon
the analysis of Joël Pommerat's play The Reunification of the Two Koreas, and
from the perspective of concepts elaborated by authors who have dedicated
themselves to the research of tragic theater and philosophy, the study explores the
emergence of a tragic contemporary distant from classical tragedy. The tragic
contemporary could be named "tragic of everyday life", bearing reflections of the
tragic philosophy of the early Romantics. Its origins would be perceived at the turn
of the twentieth century, with the crisis of modern drama.
Keywords
Tragic; Tragedy; Contemporary Drama; Philosophy of tragedy
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Sumário
1. Introdução: Sombras do Trágico 9
1.1. Trágico Filosófico 25
2. Despedida 38
2.1 Divórcio 40
2.2 A Parte de Mim 50
2.3 Dinheiro 54
2.4 Chaves 58
3. Morte 63
3.1 Faxina 65
3.2 Guerra 71
4. Amor 75
4.1 Grávida 77
4.2 Amor 81
4.3. Memória 85
5. O Amor Não Basta 87
Referências bibliográficas 96
8
Eu vim na esperança de ver alguma coisa da vida
ligada às suas fontes e seus mistérios por laços que eu
não tenho a oportunidade nem a força de perceber
todos os dias. Eu vim na esperança de entrever um
momento de beleza, a grandeza e a gravidade da
minha humilde existência cotidiana. Eu esperava que
me mostrassem não sei que presença, que potencia,
qual deus vive dentro do meu quarto.
Maurice Maeterlinck
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1. Introdução: Sombras do Trágico
O espectador compra uma entrada para assistir à peça. Na entrada, o cartaz
anuncia o título: A Reunificação das Duas Coreias, de Joël Pommerat. É uma peça
de teatro de autor contemporâneo. Peça com temática política sobre a situação de
um país dividido, o espectador poderia esperar. Lá dentro, a surpresa, o texto fala
de amor, de solidão, de desentendimentos e rupturas. Apresenta encontros como se
fossem constantes tentativas de reencontro com o outro, ou com uma metade
perdida por castigo dos deuses, como no mito descrito por Platão.
Em seu livro O Banquete1, Platão narra o debate entre convidados notáveis
em uma festa na casa de Agatão, discípulo de Sócrates. Eles falam sobre o amor,
ou sobre a amizade (philia). Entre os convidados que fazem um elogio ao deus Eros,
o poeta Aristófanes relata o mito da alma gêmea. Ele conta que, no começo dos
tempos, os homens eram seres completos, portando duas cabeças, quatro pernas e
quatro braços. Rápidos, ágeis, eles se consideravam autossuficientes. Decidem
subir aos céus e lutar contra os deuses, na intenção de tomar os seus lugares, mas
os deuses reagem e vencem a batalha. Como castigo, Zeus toma sua espada e divide
todos os homens ao meio. Apolo cicatriza o ferimento e vira a face dos homens para
o lugar da ferida, o umbigo, para que eles nunca se esqueçam do poder de Zeus.
Assim, os homens voltam à Terra e passam a viver em eterna aflição, na busca
eterna da metade perdida. A dor dessa perda, a falta de uma parte do próprio corpo
permanece na memória e marca para sempre a humanidade com um sentimento de
nostalgia. O que um dia foi completo, se desfez para sempre.
Na peça são exploradas algumas tentativas malogradas de encontro, ações
cercadas de abismos e limites. As Coreias somos nós. Não há menção a uma
situação política circunstancial no espetáculo, mas sim a relações existenciais
humanas. A reunificação das suas metades perdidas atrai os homens como um
desafio insolúvel, que os lança num esforço constante, mesmo sob o risco de morte
ou grandes perdas. Aqui a tragédia não é política, não se fala em perda de reinos e
grandes ações heroicas, mas o efeito dos pequenos conflitos apresentados lança
sobre os personagens sombras de um sentimento trágico – alguma coisa irreversível
e incontrolável parece ameaçá-los. Na montagem francesa de A Reunificação das
1 PLATÃO. O Banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2015. p. 117.
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Duas Coreias, em 2014, com direção do autor, vinte cenas independentes exibindo
personagens de homens e mulheres comuns, desfilam diante de duas arquibancadas
lotadas. Por duas horas sem intervalo o espectador acompanha os embates mínimos,
cotidianos, que ganham uma visão poética e inesperada. O espectador enganado sai
satisfeito.
O filósofo e dramaturgo Alain Badiou define o teatro2 como “a mais
completa das artes, pois trata o imanente e o transcendente no imediato”. Nessa
oscilação entre a celebração das potencialidades da presença física e a natureza
espetacular das imagens, o palco consegue “conter a relação entre imanência e
transcendência do ponto de vista da ideia.” O arranjo de componentes que
caracteriza a representação teatral (luzes, figurinos, texto, interpretação, etc.) é
composto para produzir um acontecimento singular, único: a representação teatral.
Badiou acredita que o teatro, como convém a qualquer arte, pensa. A representação
teatral poderia ser definida como um acontecimento do pensamento.
Talvez a excelência na composição dos elementos teatrais em A
Reunificação das Duas Coreias tenha sido responsável pela qualidade da
experiência do espectador, além da impressão de que, afora da originalidade da
obra, existe nela uma convocação ao pensamento. É possível afirmar ao final da
peça: o teatro existe e continua a fazer sentido, às vezes. Persiste como a “arte pela
qual seres humanos tornam ações humanas dignas de serem assistidas em um
determinado tempo e lugar." 3 Após o espetáculo, o público ainda sentado nas
plateias bifrontais, escolhidas pelo diretor como arena para seus personagens, fica
sob o incômodo efeito de uma obra que diz algo profundo e misterioso sobre a
condição humana. De alguma forma, os personagens de A Reunificação das Duas
Coreias parecem envoltos em uma atmosfera trágica. O que provoca esse
sentimento?
A obra joga seus personagens em micro tramas que oscilam entre o sombrio
e o esperançoso, a compaixão e a crueldade, o amor e a indiferença. Os personagens
familiares, nossos vizinhos, demasiadamente humanos em suas inquietações e
dores, parecem condenados a um destino trágico, sem traço de heroísmo. Se há algo
de trágico nas pequenas histórias (com temas às vezes semelhantes aos fait-divers
que surgem e desaparecem todos os dias na imprensa), poderia-se falar de um
2 BADIOU, Alain; TROUNG, Nicolas. In Praise of Theatre. Cambridge: Polity Press, 2015. p.11. 3 WOODRUFF, Paul. The Necessity of Theater. New York: Oxford University Press, 2008. p. 18.
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trágico cotidiano. A partir dessa hipótese, parece possível procurar um trágico
afastado da tragédia, aparentemente esgotada como modelo, em uma peça como A
Reunificação das Duas Coreias, formalmente distante do gênero.
À primeira vista, os personagens de A Reunificação das Duas Coreias
parecem distantes das características dos heróis trágicos. Sem identidade definida
por um nome próprio – às vezes nomeados Ele, Ela, Mulher, Voz – as personagens
desta peça não se destinam ao heroísmo ou às grandes ações. Os heróis trágicos são
sempre mostrados em ação. Aristóteles, na Poética, define a ação como o mais
importante elemento da tragédia. Sejam ações boas ou más, através delas é possível
conhecer os personagens e entender suas trajetórias. Eles lutam contra um destino,
na maior parte das vezes, premeditado; cometem erros irreparáveis e sofrem as
consequências de suas ações, seja a morte ou a humilhação e o exílio social. Por
outro lado, os heróis trágicos são personagens nobres, com princípios e ideais
elevados, e agem com o objetivo de provocar mudanças em favor do seu povo e da
sua cidade.
Os personagens em A Reunificação das Duas Coreias se apresentam de
modo oposto aos heróis trágicos. Humanos fragilizados, perdidos diante de
questões existenciais, eles expõem seus pequenos problemas em cenários
cotidianos, familiares aos espectadores. Egoístas, vaidosos, apáticos ou ingênuos,
movidos por instintos básicos ou em estado de passividade, eles vivem situações
relativamente corriqueiras, sem grandes gestos e movimentos, com pouca ação.
Assim mesmo, o espectador mantém o interesse nessas figuras comuns.
Um dos atrativos do espetáculo aparece no desenvolvimento dramático
original das personagens nas cenas de um realismo distorcido. Tudo aquilo pode
acontecer, mas não daquela forma. Alguma coisa escapa da simples tentativa de
imitação da realidade. O autor, Joël Pommerat, assume sua preferência por encenar
situações precárias, a um passo do descrédito. No processo de levar essas situações
à cena, junto com a sua companhia, Pommerat precisa recorrer à ousadia formal, à
invenção cênica, ao mesmo tempo que necessita lançar fundações ainda mais
sólidas, para que as cenas aconteçam, do que se tivesse uma situação mais
estruturada como ponto de partida.
Eu gosto também que as minhas histórias sejam improváveis, tortas. Que elas não fiquem
realmente de pé, como se diz, ao contrário, que elas sejam frágeis, que me falem, “mas o
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que é que esse negócio tá dizendo?”, e que depois seja um grande esforço para que elas
fiquem de pé, no palco. Nada é mais belo que o equilíbrio precário.4
A tensão entre a fragilidade das cenas e o despojamento realista e direto da
interpretação dos atores mantém o equilíbrio precário, tornando-o uma força
expressiva no palco. A dramaturgista Marion Boudier, teórica e colaboradora da
Companhia Louis Brouillard, defendeu uma tese a respeito da emergência de uma
nova forma de realismo na dramaturgia contemporânea, com destaque para a obra
de Joël Pommerat. Nesse realismo, em oposição às modalidades convencionais, ela
encontra a ideia da representação do mundo sem julgamento em obras que aspiram
oferecer um mundo aos olhos do espectador sem orientar seus comentários e
evitando o julgamento em suas representações. Na hipótese de um realismo neutro,
ela estudou as estratégias dramatúrgicas de suspensão de sentido que correspondem
a esta intenção, interrogando uma linhagem de dramaturgos que, desde Tchekhov,
em oposição ao teatro crítico brechtiano, conduz o espectador ao espanto diante do
mundo.
Confrontando estas representações do mundo sem julgamento no teatro documentário e no
realismo crítico brechtiano, analisamos uma mudança de paradigma na representação do
real, sua modelização esclarecedora e engajada dando lugar a uma experiência aberta à
interpretação. (...) As obras e processos de M. Vinaver, O. Hirata, J. Pommerat e L. Norén
ilustram quatro modalidades deste “realismo neutro”, da isenção à pluralização dos
sentidos, passando pela perturbação, a errância ou o choque do espectador.5
No realismo de A Reunificação das Duas Coreias, os diálogos e situações
dramáticas, fruto da colaboração entre autor e atores, exibem um tom sintético e
tenso. Na Companhia Louis Brouillard 6, Joël Pommerat cria suas peças em
colaboração com os atores e a equipe, construindo o texto junto com o espetáculo,
através de improvisações sobre temas ou fragmentos de cenas, passando por um
longo processo de reescritas até sua forma final. Apesar de todas passarem pelo
mesmo processo, as peças do repertório da companhia não possuem semelhanças
estruturais. O processo de criação dramatúrgica se orienta pela pesquisa de uma
teatralidade própria ao objeto de cada uma das peças.
4 POMMERAT, Joël. Théâtres em présence. Paris: Actes Sud, 2007. p. 29. 5 La représentation du monde sans jugement : Réalisme et neutralité dans la dramaturgie moderne
et contemporaine. Tese de doutorado em Etudes Théâtrales. Defendida em Lyon, na École Doctorale
de Lettres, Langues, Linguistiques et Arts, em 2012 cap. 1. 6 Companhia criada por Joël Pommerat em 1991, atualmente com 23 espetáculos de sua autoria no
repertório.
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A Reunificação das Duas Coreias apresenta uma estrutura fragmentada. As
cenas são, em sua maioria, curtas, apresentando ações simples, em duplas ou trios
de personagens; outras, porém, mais longas e elaboradas, são conduzidas por mais
personagens em diversos movimentos internos. Todas atacam o tema da relação de
amor por ângulos inesperados. O conjunto fragmentado das cenas não pretende
atingir um sentido único, totalizante. Cada fragmento brilha por si e o sentido,
quando há algum, deve ser elaborado por cada espectador. A peça não entrega
soluções narrativas nem morais.
Em A Reunificação das Duas Coreias, a dramaturgia contemporânea se
revela como uma matriz onde podem se manifestar de forma livre personagens,
temas, elementos e princípios de ordem literária que cristalizam questões humanas
em formas poéticas. A abordagem das relações amorosas na peça possibilita tanto
a reflexão quanto os sentimentos de desconforto e emoção, sem a pretensão de
completude dada por um sentido único. Seria possível chamar de trágica uma obra
assim? Seguem alguns exemplos curtos extraídos de cenas, algumas das quais serão
analisadas de forma mais detalhada posteriormente. São trechos de diálogo nos
quais aparecem as torções sutis que levam o realismo aparente das cenas para outro
lugar, talvez para o trágico, mas também para uma forma de humor sombrio, e algo
patético.
Em Amor, o Professor, acuado por um ambiente pretensamente asséptico
com relação às emoções, se defende diante dos pais de um aluno problemático por
ter deixado o menino dormir em seu quarto em uma noite de passeio escolar.
Afirmava que o havia permitido por causa de uma briga entre o garoto e os colegas.
PROFESSOR - Antoine é um menino diferente, mais delicado e sensível que os outros,
mais frágil e por isso dou uma atenção especial a ele... É essa a nossa relação. Ele é esperto,
inteligente e eu tenho prazer nas nossas conversas... (...) Faço meu trabalho por amor e não
como um burocrata. Se faço esse trabalho é porque amo as crianças. Amo seu filho, se
vocês querem saber. Posso dizer que tenho amor por ele e não tenho vergonha disso.
MULHER - O senhor ama o meu filho?! É insuportável ouvir isso!
O amor é insuportável - o espectador é capaz, de alguma forma, de se
identificar com essa afirmação paradoxal. Ao mesmo tempo, o amor é um desejo
humano comum. A tensão entre essas duas forças atua nos personagens e os parte
ao meio, espelhando o gesto dos deuses sobre os seres humanos completos no mito
platônico. Os diálogos, como em sinal de desistência da narrativa conclusiva,
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amplificam as dificuldades dos personagens de se entenderem nas questões de
amor.
Em Crianças, o casal contrata uma babá para filhos que não existem.
Quando voltam, eles a acusam do desaparecimento das crianças. Diante do silencio
e do constrangimento doloroso da babá, eles não abrem mão do jogo; ao contrário,
o reforçam.
HOMEM E MULHER - (Suplicam, misturando as vozes) Se você nos tira os nossos
filhos, a nossa vida acaba. A gente não existe mais. Nossa história perde o sentido, tudo se
afunda. Nossa vida não é mais nada, vamos acabar perdendo um ao outro... (...) Sem os
filhos, nós desaparecemos, perdemos a identidade, identidade zero... Você não tem pena de
nós agora? Por favor, responde. Devolve nossos filhos, traga eles de volta pra gente!
Sem essa farsa, a história deles perde o sentido? O sentido parece ter sido
perdido muito antes, de modo irrecuperável. A cena está construída sobre esta ruína.
Sem identidade, sem sentido, apegados como dois náufragos que se levam juntos
ao fundo; para o espectador torna-se aceitável, sem perder o toque de absurdo, a
contratação da babá para filhos que não existem.
A ação, de modo geral, é pequena, nada espetacular. Os ambientes, sempre
sugeridos sem grandes elementos cênicos, variam entre interiores e exteriores
vagamente detalhados. Em Separação, a mulher caminha ao lado do namorado e
reencontra um homem, seu amor de infância, que a convida a partir. A Mulher
acredita que o homem está morto, mesmo assim hesita. O Segundo Homem, seu
companheiro, tenta inutilmente entender a situação. A atmosfera fantasmagórica de
uma floresta é o cenário para mais essa catástrofe íntima.
MULHER - É mais forte que o meu medo, de repente. Eu vou, então. Vou com ele. Vou
tentar. Eu juro que não estou entendendo nada do que tá acontecendo. Aceite as coisas, elas
não têm nenhuma explicação mesmo. Acontece que é uma vontade muito grande, forte
demais...
PRIMEIRO HOMEM - O que é isso?! Você tá totalmente louca, eu não vou deixar! A
vida não é isso! A gente não decide as coisas assim, Muriel.
E ele corre para alcançar o casal que sumiu na escuridão.
O Primeiro Homem, num trajeto cotidiano com a Mulher, se vê na situação
de tirá-la, literalmente, dos braços da morte. A caminho do jantar é obrigado a
enfrentar um fantasma. A morte é um tema que permeia muitas das cenas. Tratada
com intencional banalidade, a morte não funciona teatralmente como o ápice de
uma tragédia, ou seu ponto de partida, mas como uma sombra nos assuntos dos
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vivos. No caso da cena anterior, o clima beira o fantástico, em contraste com o
extremo realismo de outras cenas. Não se pode falar em um estilo narrativo comum.
Cada fragmento funciona por si e o conjunto possui as diferenças necessárias para
o estabelecimento de um ritmo que cadencia o espetáculo.
Em Divórcio, na abertura do espetáculo, a dona de casa procura uma
advogada. Quer se separar pelo simples fato de não existir amor entre ela e seu
marido. A advogada a interroga, tentando dar concretude a essa afirmação banal e,
ao mesmo tempo, impressionante.
VOZ FEMININA - Como se manifesta esta falta de amor?
MULHER - Ela não se manifesta de nenhuma forma.
Um sentimento de ausência provoca a ação da personagem, a constatação do vazio.
O confronto com o vazio parece ser outra característica ligada ao sentimento trágico
que atravessa o espetáculo. Contradições e obstáculos se apresentam, mas não
levam os personagens necessariamente à ação para transpô-los, e sim à paralisia ou
à destruição. Nestas cenas pode haver algum tipo de identificação entre
espectadores e plateia, são histórias humanas com temas reconhecíveis. Porém, não
é um espetáculo que requer uma identificação catártica, nos moldes aristotélicos.
Na Poética, talvez a mais antiga, e certamente a mais influente obra sobre a
tragédia, Aristóteles define como uma das funções do teatro a purificação das
paixões através da identificação do espectador com os sofrimentos do herói: a
catarse. Ao ver representadas no palco emoções fortes que, se vividas na realidade,
acarretariam consequências terríveis, o espectador purifica a alma, se liberta dos
riscos, ao mesmo tempo que tem a oportunidade de aprender algo sobre a natureza
humana e a sociedade em que vive. A catarse é a libertação do que é excessivo no
homem, e que poderia corrompê-la de alguma forma7.
Em A Reunificação das Duas Coreias estamos distantes desse processo
deflagrado pela coleção de situações violentas apresentadas nas tragédias:
parricídios, incestos, traições, infanticídios, autopunição, destinos inexoráveis e
trajetórias fatais de personagens muitas vezes ligados por laços de sangue. As
situações por onde transitam os personagens das cenas anteriores não lidam com
essas formas de violência destinadas a provocar intensas emoções e,
7 ARISTÓTELES. Poética. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2010. p. 122.
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consequentemente, a catarse. As cenas provocam e desequilibram a percepção do
espectador e, mais do que identificação, o espetáculo pede atenção e reflexão.
Segundo o autor, Joël Pommerat, seu "deve envenenar o pensamento e tentar
nos fazer sair de nós mesmos"8. Trata-se de um texto nascido das suas reflexões
sobre as relações de amor em seus vários aspectos. O tema faz uma ligação sutil,
mas clara, entre as cenas. Se o conteúdo das cenas é pouco espetacular pela
banalidade dos momentos apresentados, assim mesmo elas são capazes de provocar
no público questões para as quais não há saídas claramente indicadas. Todas as
cenas terminam sem solução. O prazer de assistir a esse espetáculo não se restringe
ao reconhecimento simples entre espectador e personagens. O espectador é
obrigado a seguir um fluxo invisível, que se deixa entrever nas pequenas ações, nas
falas, no encadeamento das cenas, nos cortes e nos silêncios. Como se fosse possível
seguir o pensamento como quem segue pegadas no chão. Não há uma grande ideia
defendida neste palco, ou um problema central. O ato teatral acontece sem outros
recursos que não os de que o teatro dispõe desde as origens, mas o que está lá é algo
novo e próprio ao seu tempo – contemporâneo em suas exigências, como definiu
Agamben.
Pertence ao seu tempo embora não coincida perfeitamente com ele e nem esteja adequado
às suas pretensões. É, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, através
desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e
apreender seu tempo.9
A tensão gerada pelo desejo de apreender o seu próprio tempo e a
dificuldade da tarefa se refletem na irresolução das cenas. Elas apresentam uma
situação que não fecha sentidos, mas os abre. O professor pode ter cometido um
abuso ou um simples gesto de amor. O casal pode se matar ou ir para a cama depois
da saída da babá contratada para os filhos imaginários. A Mulher consegue ou não
se divorciar. Nenhum desfecho desse tipo fica estabelecido, nem parece ter
importância. Estes heróis inominados em suas ações simples transformam questões
aparentemente banais em poemas dramáticos. Atingem o espectador menos por
identificação com suas pequenas catástrofes do que pela reflexão ou pela surpresa
provocada pelo conjunto de situações. A peça parece se completar a cada
8 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées - Dossier d´Acompagnement. Paris:
Odeon - Théâtre de l'Europe, 2013. p.13. 9AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 58.
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movimento, mas persiste uma conexão entre as cenas que promove a sensação de
unidade ao final do espetáculo.
Esta peça se apresenta sob a forma de uma sequencia de pequenos fragmentos ficcionais.
Estes fragmentos são instantes singulares e fechados. (...) Aqui, cada pedaço é único. Não
é uma tecelagem, está mais próximo do mosaico. Os pedaços se justapõem, os brilhos
singulares. (...) Espero que todos estes fragmentos, estes pequenos desenhos, componham
um desenho maior, talvez abstrato, mas significante.10
A metáfora do mosaico e a estrutura fragmentada da obra de Pommerat
remetem às ideias desenvolvidas pelo filósofo e crítico Walter Benjamin em sua
tese A Origem do Drama Barroco Alemão. Nela, Benjamin aborda as tragédias
produzidas no período Barroco, consideradas obras imperfeitas segundo os cânones
clássicos. Desde o Renascimento, as interpretações Classicistas do trágico
privilegiam a completude da ação, a progressão dramática, a articulação das partes
em um todo harmonioso e significativo. Benjamin percebe nestas obras do período
Barroco alemão, criticadas por seu acabamento defeituoso, uma possibilidade de
abertura da arte para o novo. A partir destas peças, ele desenvolve o seu conceito
de alegoria, que opõe ao símbolo, recurso da obra clássica que pretende representar
o objeto esgotando seu sentido. A imagem alegórica abre mão da representação
(Vorstellung) e se constitui a partir da apresentação (Darstellung), abrindo
múltiplos sentidos e convidando à crítica e à reflexão sobre a obra. No espaço que
existe entre a aparição sensível da obra e a essência que ela simboliza surge a
possibilidade de situá-la no tempo e na história. A alegoria se manifesta como
estilhaço, ruína, fragmento através do qual se torna possível o pensamento, fazendo
a obra objeto do saber. A apresentação mantém a tensão entre o que aparece, a
forma, e a possibilidade do pensamento, o conteúdo. Em oposição a Hegel, que
decreta a morte da arte, da bela arte, na superação do sensível pela reflexão,
Benjamin vê a capacidade de a arte alegórica inaugurar, na sua imperfeição, uma
arte própria ao seu tempo. Uma arte que inclui a possibilidade do pensamento.
Benjamin retoma aqui alguns dos pressupostos dos primeiros românticos, os de
Iena, particularmente Novalis e Schlegel, por sua valorização, em seus escritos, da
noção de incompletude da obra, reconhecendo as possibilidades dessa suposta
falha.
10 POMMERAT, Joël. La Reunifications de Deux Corées - Dossier d´Acompagnement. p.31
18
Esse fôlego infatigável é a mais autêntica forma de ser da contemplação. Pois ao considerar
um mesmo objeto nos vários estratos de sua significação, ela recebe ao mesmo tempo um estímulo para o recomeço perpétuo e uma justificação para a intermitência do seu ritmo.
Ela não teme, nessas interrupções, perder sua energia, assim como o mosaico, na
fragmentação caprichosa de suas partículas, não perde sua majestade. Tanto o mosaico
como a contemplação justapõem elementos isolados e heterogêneos, e nada manifesta com
mais força o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor
desses fragmentos de pensamento é tanto maior quanto menor sua relação imediata com a
concepção básica que lhes corresponde, e o brilho da representação depende desse valor da
mesma forma que o brilho do mosaico depende da qualidade do esmalte. A relação entre o
trabalho microscópico e a grandeza do todo plástico e intelectual demonstra que o conteúdo
de verdade só pode ser captado pela mais exata das imersões nos pormenores do conteúdo
material.11
Em A Reunificação das Duas Coreias, a narrativa fragmentada se apresenta
clara em cada uma das suas partes, promovendo a exposição precisa de cada
fragmento. No conjunto, o espetáculo projeta uma unidade, um desenho maior,
como lembra Pommerat. Porém, a conexão entre as suas partes é diferente dos
espetáculos que pretendem uma completude através da progressão dramática
convencional. Se há alguma unidade nesta peça, ela é feita de pequenos movimentos
não sequenciais, tangenciais mesmo, em torno do tema das relações amorosas. A
fragmentação parece ser uma das características do trágico contemporâneo e
também uma de suas diferenças em relação à tragédia clássica. A ambição de
unidade e completude da tragédia está fora dos objetivos do drama contemporâneo,
o que não significa que ele abra mão da intenção de produzir sentido.
Na Poética12, Aristóteles elabora os princípios da construção da tragédia.
Um dos seus princípios formais, a "unidade de ação", estabelece a necessidade de
completude, de totalização, atingida pelo encadeamento das ações em uma peça.
Desta forma, o enredo (mythos) seria entendido e a tragédia ganharia sentido,
gerando seu efeito catártico, ao mesmo tempo educativo e purificador, sobre o
espectador. A unidade da obra, responsável por seu efeito, seria garantida pela
sequencia de cenas seguindo uma única direção: princípio, meio e fim. A totalidade
seria alcançada no desfecho das ações do herói, ao final da peça. Através dos
séculos, a "unidade de ação" se manteve como princípio dramático e, com
modificações, ainda está presente na dramaturgia atual. Porém, a ausência da
unidade de ação não é percebida mais como um defeito da obra ou incapacidade do
11 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1984. p.50. 12ARISTÓTELES. Op. cit. p.114.
19
autor. A defesa da incompletude, valorizada pelos primeiros românticos em suas
obras e no seu pensamento, aparece nas novas dramaturgias. Além da força
expressiva do fragmento na dramaturgia contemporânea, a liberdade no tratamento
dos conflitos, muitas vezes suspensos e sem solução, também é uma característica
da filosofia e da poesia dos primeiros românticos. Essa infiltração de suas ideias
ressurge mais tarde no estudo de Walter Benjamin sobre o drama barroco,
reafirmando sua tradição na estética moderna. A hipótese de um novo ponto de
contato da arte e da filosofia romântica no drama contemporâneo se faria presente,
formalmente, pela ausência ou fragmentação das tramas; pelos personagens sem
definição moral ou com objetivos misteriosos; pelos diálogos, às vezes exaltados,
sobre nada; pela valorização do que há de poético, irônico ou paradoxal nas
situações, em lugar de uma busca de totalização e um sentido único.
Apesar da simplicidade das situações cotidianas mostradas em A
Reunificação das Duas Coreias, as cenas são inconclusivas e deixam questões no
ar. São amantes e ex-amantes; vizinhos; pais e filhos; professor e pais de aluno;
médico e paciente; noiva, noivo e família; advogado e cliente; marido e mulher;
diversas combinações onde o amor se manifesta em suas facetas conflituosas,
potencialmente trágicas. À medida que as cenas se desenrolam fica claro que não é
possível para esses personagens a resolução daqueles impasses. Como se eles
tivessem sido escolhidos (e foram) minuciosamente por um deus mais que
enganador, um deus sádico, por suas incapacidades. As questões lançadas e nunca
respondidas ampliam a percepção trágica da existência. Se não há respostas, resta
a dificuldade de estabelecer sentidos e a necessidade de prosseguir tentando.
Com a peça de Pommerat, percebemos que o drama contemporâneo faz
sentir a falha mesmo quando, aparentemente, acerta. Esse conjunto de cenas-
fragmentos não resolvidas, preenchidas por questões aparentemente banais, vividas
por personagens sem importância, envolve os espectadores em suas próprias
tentativas de complementar os sentidos possíveis das ações. Elas exigem na sua
falha, e não na sua totalidade, o olhar e a presença do outro para se realizarem como
teatro. As manifestações de dor, incompreensão, loucura, exasperação ou
desistência dos personagens escapam das molduras do cotidiano fornecidas pelas
cenas e alcançam notas trágicas sem que se chegue a uma resolução, como pretendia
Aristóteles, ou a uma síntese dialética, como em Hegel. Este movimento entre o
banal e o trágico, levando a finais inconclusivos, parece revelar a impotência do
20
teatro para entender a existência, assim como a impossibilidade de desistir de tentar.
Movimento trágico e vital, explicitado por Samuel Beckett quando afirma que é
preciso continuar tentando para falhar novamente, falhar melhor. Beckett, que pode
ser considerado um autor fundador dessa vertente do trágico contemporâneo,
afirmava a necessidade de encontrar novas formas para expressar coisas que nem
se sabe o que são exatamente.
Só se pode falar daquilo que está diante de nós, e agora, é apenas a desordem... Ela está lá
e temos que deixá-la entrar. Porém, forma e desordem seguem sendo coisas distintas, uma
não se rende à outra... Por isso, a forma persiste como inquietação; ela existe enquanto
problema, independente da matéria que ela suporta. Encontrar uma forma que suporte a
desordem é a tarefa de todos os artistas hoje.13
Diante da desordem, o trágico seria uma das possibilidades de expressão na
dramaturgia contemporânea? As transformações no conceito de trágico, sua
maleabilidade e permanência, e as diferentes formas que o conceito assume nos
períodos da história nos quais se destaca, não afirmam a existência de um trágico
contemporâneo, mas abrem caminhos para a sua procura. Entrelaçados às
transformações importantes sofridas pelo drama nas últimas décadas, sob os
escombros do drama absoluto14, surgem traços de um trágico sem tragédia, sem
grande ação, sem heróis, quotidiano, repetitivo, com o foco na vida e em suas
estranhas revelações.
Povoada por personagens sem nome, vivendo conflitos subjetivos e
intersubjetivos sem resolução, a cena contemporânea abriga uma espécie de
infratrágico: um sentimento trágico que se manifesta como uma corrente
existencial subterrânea e que não gera grandes tramas, mas dá voz à inquietude, à
solidão, ao vazio, traduzidos em imagens de imobilidade, incomunicabilidade e
mesmo de banalidade das peças contemporâneas. Alguns autores recorrem à
denominação pós-trágico para classificar a cena nos séculos XX e XXI:
13 BECKETT apud SARRAZAC, Jean Pierre. Poétique du Drame Moderne. Paris, Editions du
Seuil, 2012. p. 13. 14 Conceito de drama ideal criado por Peter Szondi em Teoria do Drama Moderno: o drama que se
encerra e se basta sem necessidade de intervenções de coro ou qualquer outro recurso que não o
diálogo, e nenhum tempo que não o presente. Um drama autônomo que não representa nada externo
a ele; por essa razão, Szondi exclui dessa classificação os dramas históricos de Shakespeare e o
teatro medieval. No drama absoluto, o autor desaparece por trás dos personagens. Este drama
entraria em crise no final do século XIX.
21
Este novo dono do universo rapidamente descobriu que está longe de dominar a si mesmo.
A crueldade das guerras que gerou, o número de deuses que criou, o fanatismo e o
dogmatismo que cultivou, são realizações das quais não pode se gabar. Por isso, vivemos
em uma época que podemos considerar como pós-trágica, amplamente caracterizada pela
recusa em fazer escolhas, e perturbada pela nostalgia de sentimentos trágicos que ela se
esforça paralelamente a dissimular e desmentir. As diferentes tentativas, desde o Século
das Luzes, para restaurar uma ideia positiva da humanidade e as diversas formas assumidas
pelo belo sonho do Progresso universal não puderam impedir que um sentimento trágico
generalizado se instalasse em nossa sociedade, sem que tenham nascido em consequência
um novo corpo de tragédias tradicionais.15
Não há mais tragédias, mas algumas questões que orientaram os autores trágicos
permanecem audíveis. As narrativas rapsódicas16, segundo o teórico e dramaturgo
francês Jean Pierre Sarrazac, estilhaçadas, ou descosturadas, cada vez mais
independentes de uma estrutura fabular convencional, são o campo de trabalho do
autor contemporâneo na escuta dessas vozes. Desafio “lançado por sobre a cabeça
do aluno dissidente Aristóteles ao iniciador da forma rapsódica, mestre Platão, a
fim de que se inaugure a época de um drama que, com toda a ligeireza que cabe a
uma arte, integraria a filosofia." 17
Projeto semelhante, integrar filosofia e poesia, assim como arte e vida, surge
nas inquietações dos primeiros românticos, na virada do século XVIII para o XIX.
Jovens filósofos, como os irmãos Schlegel, Novalis, e poetas, como Hölderlin,
identificados com a contestação da hegemonia do Iluminismo, inauguram no
Romantismo um novo modo de pensar arte e filosofia, aproximando-as. “Eles [os
românticos] não fizeram apenas uma filosofia da arte, mas praticaram ao mesmo
tempo uma arte de filosofar - em textos que pensam poeticamente." 18
A Reunificação das Duas Coreias integra uma vertente do teatro que, sem
perder suas características poéticas, estimula a reflexão, desafia o pensamento. O
autor e diretor Joël Pommerat afirma fazer teatro para poder pensar. A diversidade
15 DECREUS, Freddy. La Masque tragique et sa presénce dans une société post-tragique. IN :
LAZZARINI-DOSSIN, Muriel (dir). Thêatre, Tragique et Modernité en Europe. Bruxelas: P.I.E
Peter Lang, 2004. p. 30. 16 Conceito desenvolvido por Jean Pierre Sarrazac em O Futuro do Drama, a rapsódia corresponde
ao gesto do "autor-rapsodo" que, no sentido etimológico literal - rhaptein significa costurar - costura
ou ajusta cânticos. O trabalho da rapsódia, segundo Sarrazac, é acima de tudo uma operação sobre
a forma teatral: compor e recompor segundo um processo criador que considera a escrita dramática
em seu devir. O status híbrido ou até monstruoso do texto produzido que caracteriza a rapsodização
do texto permite a abertura ao modo poético teatral que associa e dissocia ao mesmo tempo o épico
e o dramático. 17 SARRAZAC, Jean Pierre. Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo: Cosac
Naify, 2012. p. 155 . 18 DUARTE, Pedro. Estio do Tempo - Romantismo e estética moderna. Rio de Janeiro: Zahar,
2011. p.9.
22
temática e o desenvolvimento de suas peças sugere a metáfora de uma mente
inquieta, processando questões complexas de seu tempo: o comércio (A Grande e
Fabulosa História do Comércio); as relações familiares (Esta Criança); o mundo
corporativo (Os Vendedores) ou o amor (A Reunificação das Duas Coreias). “Eu
escrevo para poder pensar. De fato, eu acredito que faço teatro para fazer filosofia.
Ou mais precisamente, para exercer meu pensamento. Durante um tempo, eu
realmente hesitei entre os dois." 19
Pommerat pensa as múltiplas questões extraídas do mundo contemporâneo
tecendo uma dramaturgia rapsódica, composta por trapos, fragmentos do real,
amarradas por uma técnica precisa e um conhecimento apurado do espaço teatral e
seus recursos. Sarrazac classifica como pulsão rapsódica o desejo de emancipação
das novas formas dramáticas, e a compara com sua manifestação entre o pré-
romantismo e a virada do século XX.
Esta intervenção das artes exteriores participa dessa pulsão rapsódica que trabalha a
forma dramática. Pulsão permanente de renovação, de emancipação em relação à norma –
o drama-na-vida. Pulsão de irregularidade, que se manifesta de forma mais forte, ou
imperativa no período do barroco, das luzes, do Sturm und Drang, na virada do séc. XX
e, indiscutivelmente, na época atual. Pulsão rumo ao heterogêneo, rumo à assimilação de
elementos díspares que também concernem os grandes modos de expressão como o dramático, o épico, o lírico, o argumentativo e, além disso, a combinação do cômico, do
trágico, do patético. Ou ainda a inclusão da oralidade na escritura.20
O trágico romântico é uma das fontes desta pesquisa. Embora não represente
a origem da tragédia, situada na Grécia do século V AC, o romantismo foi o
momento de liberação da tragédia da normatividade classicista, que tomou conta do
gênero depois de seu ressurgimento na Europa renascentista. No Romantismo, o
pensamento migra das regras e formalismos da poética trágica para a elaboração de
conceitos. O trágico ganha sentido filosófico, e tanto as composições das obras
quanto suas análises são transformadas por essa percepção. A partir dos românticos,
o trágico passa a ser pensado ontologicamente. A contradição, a oposição de
princípios é um fundamento da concepção romântica, que vê na tragédia algo do
ser, da totalidade do que existe. Os românticos encontram, na contradição entre a
liberdade humana e o mundo objetivo, um sentido trágico. No entanto, existem
19 Entrevista de Joël Pommerat a Claudine Galea. Ubu. Scènes d'Europe 37-38. Abril 2006. 20 SARRAZAC, Jean Pierre. “A reprise (resposta ao pós-dramático)”. Trad. Humberto
Giancristófaro. Revista Questão de Crítica. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/author/jean-pierre-sarrazac/
23
diversas filosofias do trágico na virada do século XVIII para o XIX. Em Hegel, por
exemplo, há uma dialética conclusiva, ausente em Hölderlin ou Schlegel. Nesse
sentido, o drama contemporâneo estaria mais próximo dos românticos, com a
ironia, ou de Hölderlin, com o paradoxo. Porém, se há um sentimento trágico nesta
ou em outras obras contemporâneas, está claro que não se pode comparar com as
tragédias gregas, do século V, ou com as românticas, do século XIX. Não estão em
cena o rei Édipo, de Sófocles, nem a rainha Mary Stuart, de Friedrich Schiller.
No Romantismo, o trágico é desprendido das tragédias e passa a ser
discutido para além do formalismo clássico, o que o torna mais próximo da
contemporaneidade do que a tragédia clássica. Esta passagem do gênero trágico ao
trágico filosófico abre novas interpretações do fenômeno, que serão mais
detalhadamente discutidas durante a análise da peça. O teatro trágico, no período
romântico, se define por um esquema que introduz no texto um mecanismo trágico:
uma contradição interna que devolve toda afirmação como sua própria negação. O
homem é confrontado por um poder que o ultrapassa, um poder capaz de voltar suas
intenções e ações contra ele mesmo, mergulhando-o no mais intenso sofrimento.
Porém, deste sofrimento, de modo inesperado, surge a possibilidade de transcender
a derrota. O seu fim será trágico, mas não sem sentido. O trágico romântico fala do
homem no mundo, a sua condição finita e sua aspiração inútil à eternidade. Ser
incompleto e destinado ao sofrimento, ele mesmo gera seus males pela sua natureza
inquieta, insatisfeita. Natureza que o condena a agir incessantemente como homem
cindido, à procura da metade perdida, ou como um país dividido clamando por
reunião.
No ensaio Sete Observações Sobre a Possibilidade de um Trágico Cotidiano
Sarrazac dialoga com George Steiner21 e outros autores sobre as possibilidades de
existência de um trágico moderno. Sarrazac afirma neste ensaio a existência de um
trágico desligado da tragédia e analisa as condições de emergência deste novo
gênero. O texto aponta características que já estariam sinalizadas nas obras de
autores da virada do século XX, como Ibsen e Strindberg, também presentes em
autores contemporâneos, como Jon Fosse e Joël Pommerat22.
21 George Steiner, crítico e teórico inglês, autor de A Morte da Tragédia, obra na qual desenvolve a
tese da impossibilidade da tragédia na modernidade. 22 . Essas relações entre os autores contemporâneos e os autores da virada do século XX serão
discutidas durante a análise das cenas de A Reunificação das Duas Coreias.
24
Um trágico do cotidiano é o que se pode depreender de A Reunificação das
Duas Coreias. Um trágico que não se encaixa em nenhuma definição tradicional de
tragédia. Diferentemente da tragédia clássica, o trágico não é mais macro, não
pretende espelhar o universo. É pequeno e fragmentado, infratrágico. Seus
personagens não são heróis, mas pessoas comuns. Os destinos não se decidem pela
interferência dos deuses, mas pelas ações humanas. Ele abre mão da completude,
acolhe a fragmentação e abdica de totalização dialética. O trágico contemporâneo
seria um trágico sem ação, sem herói, pequeno, quotidiano, repetitivo, fundado no
drama da vida23, com um tempo próprio para suas revelações. Um drama de
natureza ontológica, próximo à formulação do dramaturgo Maeterlinck, quando
define o universo temático de suas peças: “não se trata de falar de um momento
completo e excepcional da existência, mas da existência em si mesma”.24
A questão que orienta esta pesquisa se afasta do estudo da tragédia como
gênero. O foco da discussão recua do palco e das questões formais a respeito da
tragédia grega, mas retorna a ele para investigar as possibilidades do trágico como
pensamento em uma peça contemporânea. A peça escolhida, A Reunificação das
Duas Coreias, apresentada no capítulo 1, está distante de qualquer modelo formal
de tragédia ou tentativa de recriação do gênero. O capítulo 1.1 trata de algumas
referências teóricas a respeito do romantismo e das transformações sofridas pela
tragédia e o conceito de trágico até o período moderno. Os capítulos 2, 3 e 4
apresentam análises de cenas escolhidas entre as vinte apresentadas na peça. Elas
não seguem a ordem em que são vistas no espetáculo. Foram divididas em três
temas de ressonância trágica: Despedida, Morte e Amor. Mais do que conclusões,
as análises procuram iluminar as conexões internas entre a peça e o sentimento
trágico que ela traduz, construindo algumas pontes com o suporte teórico fornecido
por diferentes autores que trataram do assunto. Nas análises das cenas há uma
tentativa de diálogo com outras obras, sobretudo do teatro moderno na virada do
século XIX, que também abrigariam características de um trágico distanciado da
tragédia clássica, com destaque para as peças de Tchekhov, Strindberg, Ibsen e
23 Expressão usada por Jean Pierre Sarrazac para definir a dramaturgia contemporânea, em oposição
ao drama na vida, concepção aristotélica-hegeliana de drama, ou para Peter Szondi, o drama
absoluto. 24 MAETERLINCK, Maurice. Le Tragique Quotidien em: Le trésor des humbles. Bruxelas: Labor,
1986. p.104
25
Maeterlinck. O capítulo 5 traz a conclusão deste estudo do trágico no drama
contemporâneo.
É importante lembrar que a análise de A Reunificação das Duas Coreias
neste trabalho é uma chave utilizada para abrir o conceito de trágico, não estando
em questão o inverso, isto é, como o conceito de trágico abriria esta peça. O estudo
de A Reunificação das Duas Coreias foi uma forma de ler a história do trágico e
não uma tentativa de encaixar a peça nessa história. Por este caminho, tornou-se
possível perceber sinais de uma transição do trágico para o infratrágico. Essa
transformação será discutida nos capítulos de análise das cenas, nos pressupostos
principalmente da ação, personagem, diálogo e fábula dramática a partir de
Aristóteles. Finalmente, tudo o que é dito sobre teatro contemporâneo parte dessa
peça em particular como se, aos olhos de um espectador mais atento, ela
possibilitasse uma nova leitura do teatro e do trágico.
1.1.
Trágico Filosófico
A questão não é da sobrevivência ou da deserdação do modelo da tragédia conforme Aristóteles a estabeleceu, mas sim da capacidade, em um determinado momento da nossa
História, de uma filosofia do trágico passar ao teatro e penetrar a forma dramática a ponto
de transformá-la completamente.
Jean Pierre Sarrazac
Esta pesquisa não pretende especificamente tratar da passagem de uma
poética da tragédia para uma filosofia do trágico, mas sim procurar entender se a
filosofia do trágico, de algum modo, atravessa o teatro contemporâneo e de que
forma isso pode ser percebido em uma peça, A Reunificação das Duas Coreias.
A possibilidade de encontrar o trágico no drama contemporâneo leva à
questão do que seria esse trágico, de onde surgiu essa noção que hoje toma tantos
sentidos diferentes. Daí o recuo às origens do teatro com o surgimento da tragédia.
Não para estudá-la particularmente, mas para entender a trajetória do conceito de
26
trágico, e fundamentar uma compreensão do que seria o trágico hoje, além de
verificar se ele ainda seria possível no teatro contemporâneo de alguma forma.
George Steiner25, crítico e teórico, considera o nascimento da tragédia como
uma ocasião milagrosa, que em raros momentos pode ser revivida. Steiner situa
essa configuração particular, capaz de produzir dramaturgia trágica na produção
dramática de Atenas, no século de Péricles; na Inglaterra, de 1580 a 1640; na
Espanha, no sec. XVII; na França, de 1630 a 1690; depois, na Alemanha, de 1790
a 1840, no período romântico, e, finalmente, na virada do século XX, com o drama
escandinavo e o russo. O período forte do drama francês, espanhol e elisabetano
coincide, em sua opinião, com momentos particulares de energia nacional, o que
parece ligar a presença do trágico teatral a uma situação social, política e cultural
favorável à sua apreciação. Em Atenas, por exemplo, as tragédias eram uma
expressão vigorosa dos conflitos vivenciados pelos gregos na polis. No final do
século XVII, Steiner aponta um colapso da imaginação dramática na Europa, que
teria afetado a produção de tragédias, principalmente na França. Depois, no período
romântico, os autores e teóricos, segundo suas particularidades nacionais e
históricas, ao investigarem as razões do declínio trágico, abrem caminho para a
recriação da sua forma.
As manifestações do trágico nesses diversos períodos se referem a um
gênero teatral derivado da tragédia grega, um fenômeno original do período clássico
na Grécia. Construídas com regras próprias, sistematizadas pela Poética de
Aristóteles, e produzidas durante um período curto, algumas tragédias gregas
sobreviveram e atravessaram os séculos como modelos do gênero. Porém, mais do
que as obras, o estudo da composição das tragédias de Aristóteles exerceu a mais
forte influencia posterior. Na Poética, Aristóteles define as regras para a
composição das tragédias baseadas na mimese, a imitação de um modelo. De
acordo com a capacidade dos poetas de reproduzir a realidade segundo as técnicas
apropriadas ao palco, a peça cumpriria sua função ou não. Opondo-se a Platão, que
condena as tragédias por sua influência nociva, Aristóteles atribui a ela efeitos
positivos, purificadores, no espírito das plateias.
A Poética, de Aristóteles, origina entre dramaturgos e teóricos a discussão
de três regras principais para a tragédia, três unidades que deveriam ser seguidas
25 STEINER, George. A Morte da Tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2006. Cap. II
27
pelos poetas dramáticos. A unidade de tempo determina que a ação da peça se
desenvolve em um período de 24 horas. O imediatismo da ação tem como objetivo
o envolvimento do espectador com os fatos apresentados. A unidade de lugar
determina que a peça transcorra em um único cenário. Qualquer interrupção é vista
como prejudicial ao fluxo da ação. A unidade de ação garante o sentido da peça. A
sequencia de cenas deve seguir a ordem de início, meio e fim, sem nada que
interrompa o fluxo de causa e efeito das ações. Seguindo estas regras, a tragédia
criaria uma imitação perfeita do real, envolvendo o espectador na trama e o levando
a catarse.
Diferentemente de Platão, que condena a tragédia como imitação imperfeita
das ações humanas e por isso prejudicial, para Aristóteles, a capacidade de imitação
da realidade gera no espectador uma identificação prazerosa e educativa ao mesmo
tempo.
A Poética, assim como toda a obra aristotélica, fica por longo tempo
desconhecida na Europa; apenas no Renascimento é novamente lida e interpretada.
Sua redescoberta alimenta a discussão da catarse entre autores e teóricos
classicistas. Interpretado pela cultura cristã, o processo de purificação das emoções
ganha um acento moral, particularmente no classicismo francês, influente em toda
a Europa.
Na Alemanha, Lessing e depois os dramaturgos e teóricos românticos
contestam a visão classicista francesa. A ideia do palco como um lugar de imitação
da realidade e purificação das paixões negativas, como estabelecem os autores
clássicos em sua apropriação das regras da Poética, entra em discussão. A unidade
de ação, regra descrita por Aristóteles baseada na necessidade de concatenação das
ações da peça com o objetivo de levar o espectador à catarse final, se mantém
inalterada, mas a natureza, a função da catarse e seus objetivos são discutidos por
Schelling, em A Filosofia da Arte, por Hegel, na Estética e por Hölderlin, nas
Observações sobre Édipo e Antígona. Mas, sobretudo, o que os primeiros
românticos discutem é a essência do trágico.
Os primeiros a teorizar a respeito de um trágico separado da tragédia foram
os poetas e filósofos românticos alemães, no final do século XVIII. Até ali se
discutia a poética da tragédia, mas não o fenômeno trágico, a tragicidade. Sob
influencia da obra de Aristóteles, dramaturgos, como Corneille, e teóricos, como
Boileau, analisaram a tragédia do ponto de vista formal, da sua construção e dos
28
efeitos no público. Estas análises não veem a tragédia como expressão, visão de
mundo ou como forma de compreensão que a modernidade chamará de trágica.
Peter Szondi, no livro Ensaio Sobre o Trágico, publicado no mesmo ano de
A morte da tragédia, de Steiner, coloca como questão central o surgimento de uma
filosofia do trágico em lugar do gênero teatral aparentemente em extinção. Para ele,
com Schelling nasce a filosofia do trágico, a reflexão sobre a ideia do trágico, sobre
o sentido do fenômeno trágico. A tradição normativa das poéticas clássicas desde a
antiguidade grega é rompida pelo que Szondi define como uma ilha na Alemanha
do século XVIII. “Dessa poderosa zona de influencia de Aristóteles, que não possui
fronteiras nacionais ou temporais, sobressai como uma ilha a filosofia do trágico."
26
Uma ilha cercada pelas obras poéticas e teóricas francesas e italianas que
tratam a tragédia do ponto de vista formal, sob um aspecto normativo. Szondi
observa que as diferentes concepções posteriores do trágico, como a de Nietzsche
em O Nascimento da Tragédia, têm origem nas indagações iniciais do romantismo
alemão, no século XVIII. Sem romper inteiramente com o passado, depois do
romantismo a filosofia amplia o conceito de trágico para além da tragédia grega. A
categoria do trágico não se reduziria mais à tragédia no palco; este se tornaria
apenas um dos seus modos de expressão. As regras da Poética, de Aristóteles,
reinterpretadas pelos autores do Classicismo começam a ser deixadas para trás em
nome de uma nova concepção do trágico. Roberto Machado, no livro O Nascimento
do Trágico, estabelece a cronologia desse trajeto.
Winckelman deu início, na Alemanha da segunda metade do século XVIII, a um estudo dos
gregos ou, mais precisamente, da arte grega, interpretação da Grécia em que está em jogo
a construção da própria Alemanha; Lessing iniciou na mesma época, uma reflexão sobre o
teatro nacional independente do teatro clássico francês. Goethe e Schiller retomaram e
aprofundaram essas questões. Schelling, Hegel, Hölderlin e Schopenhauer vão além de seus
antecessores, iniciando e desenvolvendo um pensamento sobre o trágico que forma a tradição ou a herança teórica que chegará finalmente a Nietzsche, uma das suas mais
sublimes expressões.27
Uma poética filosófica, como pretendida pelos românticos, cria uma
concepção do trágico que não se limita mais ao gênero e não tem somente essa
preocupação formal. Os autores e teóricos românticos exploram as relações
26 SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 24. 27 MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar,
2006. p. 44.
29
dialéticas ou paradoxais entre o divino e suas manifestações humanas, o universal
e o particular, o absoluto e o individual. A arte não é mais pensada em suas formas
eternas e imutáveis, mas dentro da própria história. A contextualização das formas
artísticas na história, ou no tempo, afeta o conceito de mimesis. Se a obra está
submetida ao tempo, não será cópia perfeita ou imperfeita da natureza, mas uma
manifestação sensível do suprassensível, do que está além das coisas naturais. O
teatro trágico romântico não pretende mais reproduzir modelos ou purificar
moralmente a plateia; o pensamento migra das regras e dos formalismos da poética
trágica para a elaboração de conceitos. A tragédia ganha sentido filosófico, e tanto
as composições das obras quanto suas análises são transformadas por esta
percepção. A partir de Schelling, o trágico passa a ser pensado ontologicamente. A
contradição, a oposição de princípios é um fundamento dessa concepção, que vê na
tragédia algo do ser, da totalidade do que existe. Os românticos encontram na
contradição entre a liberdade humana e o mundo objetivo um sentido trágico.
Reforçando sua tese da impossibilidade da tragédia, Steiner afirma que
também os escritores românticos tentaram a forma trágica, tanto na Inglaterra como
na Alemanha, sem sucesso. Porém, ele faz a ressalva de que o fracasso da tentativa
romântica “prepara o solo para os dois maiores acontecimentos da história do teatro
moderno: a separação entre literatura e teatro e a transformação radical da noção de
trágico e cômico, introduzida por Ibsen, Strindberg, Tcheckhov e Pirandello." 28
Peter Szondi situa nesse mesmo ponto a origem das modificações estruturais
que sofre a dramaturgia moderna a partir destes autores. Na virada do século XX,
ecoando as rupturas pelas quais passa o homem moderno, o drama coloca em
questão as formas de representação dessas novas relações. A interiorização dos
conflitos, as narrativas subjetivas, o sofrimento existencial e a angústia do homem
urbano ganham espaço no palco. Para alguns teóricos, como Steiner, a tragédia
morre neste momento. Steiner nomeia o que há no palco a partir daí como drama
de pretensões sérias, um teatro que pode tratar de questões existenciais,
psicológicas, sociais, mas sem nenhum acento trágico. Para outros, como Jean
Pierre Sarrazac, esse homem refletido no palco, na perda total de sua identidade
pessoal, traz a marca do trágico moderno.
28 STEINER, George. Op cit.. p.70.
30
Questionando a afirmação da morte da tragédia no teatro moderno, na
definição de Steiner, o teórico e dramaturgo Jean Pierre Sarrazac afirma que houve
a capacidade de, “em um determinado momento da História, uma filosofia do
trágico passar ao teatro e penetrar a forma dramática”.29 Sarrazac defende a
existência de um trágico moderno desligado da forma extinta da tragédia. Ele
concorda com Steiner a respeito do fim do gênero teatral, mas aponta para o seu
equívoco em dissociar “morte da tragédia e destino trágico”. Steiner considera as
peças de autores modernos da virada do século XX, como Strindberg, um
enfraquecimento do trágico pela emergência do onírico, do épico e dos conflitos
interiores dos personagens. Sarrazac aponta para a possibilidade de um trágico
surgir justamente nestas aparições. Desprendidos das regras neoclássicas pelo
movimento romântico, os autores dramáticos se arriscam em novas construções
dramatúrgicas que permitem aproximações originais de seus objetos e temas. Se,
por um lado, a dessacralização do mundo moderno faz com que o destino perca seu
aspecto irreparável e o trágico pareça fora de lugar, por outro lado, a subjetivação
e o esgarçamento das relações pessoais e sociais estimulam a criação de outro tipo
de material dramático no qual seria possível o encontro com o trágico.
Em termos mais concretos, no lugar de escandalizar-se com o "uso privado"
(STEINER,1993) que Strindberg30 faz do teatro e de pressupor que suas "peças-fantasmas
são fantasmas de peças", valeria mais indagar-se se a subjetivação, a dimensão
autobiográfica e o onirismo que caracterizam o teatro de Strindberg após a crise de Inferno
não são algumas condições, entre outras, de emergência de um trágico moderno.31
A ausência definitiva da tragédia como gênero nos palcos e os sentidos
distintos que o próprio termo trágico toma na contemporaneidade coloca também à
questão da recepção. A sociedade contemporânea estaria atenta, interessada ou
receptiva ao trágico? O historiador Hans Ulrich Gumbrecht, no ensaio Os Lugares
da Tragédia32, retoma a discussão de teóricos como Steiner e Orr a respeito do
surgimento e da ausência da tragédia em diferentes períodos da história, de acordo
com as afinidades do gênero com as diversas culturas. Ele denomina estes
29 SARRAZAC, Pierre. Sete observações sobre a possibilidade de um trágico moderno. p 4. 30 Nas análises das cenas de A Reunificação das Duas Coreias serão examinados alguns exemplos
do teatro de Strindberg e sua relação com a possível emergência do trágico moderno. 31SARRAZAC, Pierre. Sete observações sobre a possibilidade de um trágico moderno. p.4 32 ROSENFIELD, Denis L. (org) Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
p.9
31
momentos como tragicofílicos, nas culturas em que a tragédia foi cultivada, e
tragicofóbicos, naquelas em que a tragédia praticamente desapareceu ou não foi
bem recebida. Ele relaciona esse fato às condições políticas, sociais e culturais
específicas de cada local e época. Após um período de anulação na Idade Média, a
tragédia ressurge no Renascimento e depois do Romantismo, com os escritos e
experimentações de Hölderlin. O século XIX teria sido uma época tragicofílica que,
em parte, se estendeu para o nosso presente.
Para que os paradoxos trágicos encontrem ecos em uma determinada cultura
é necessário que as ações apreciadas no palco espelhem conflitos importantes, ou
melhor, aterrorizantes, nas vidas dos espectadores. É possível imaginar, por
exemplo, que durante a Idade Média a subjetividade não fosse capaz de produzir os
paradoxos necessários à apreciação da tragédia. Nos confrontos com o mundo
mediados pela cosmologia cristã, os destinos que poderiam ser vistos como trágicos
ganham a marca da punição ou da absolvição divina, eliminando a tensão necessária
ao paradoxo e à tragédia. Gumbrecht afirma que, para que a tragédia tenha força no
palco, é necessário que o momento social e histórico apresente um potencial
paradoxogênico, isto é, receptivo ao paradoxo; ou que entre a ação no palco e a
ordem experimentada como objetiva se possa excluir qualquer outra possibilidade
de moldar a sua autoimagem. Se existem outros meios de compreensão e
envolvimento com as ações dos personagens, o paradoxo que alimenta o trágico
está excluído. Se Jó, personagem bíblico, recebe de Deus tantas dores, doenças e
perdas, mesmo que pareça um personagem submetido a um destino trágico, sob a
influência do pensamento cristão, ele se torna um escolhido pela redenção divina.
Em contraste com a Idade Média, Gumbrecht cita o século XVII como uma época
tragicofílica. A tradição cristã continua forte e presente, mas o surgimento de uma
cultura da subjetividade favorece as tensões necessárias à elaboração do trágico.
Depois do século XIX, os fundamentos básicos para o estabelecimento de
tragédias nos moldes clássicos parecem perdidos, mas as discussões sobre a ideia
do trágico e os usos da palavra crescem entre filósofos e escritores. Entre as diversas
concepções de trágico, Gumbrecht localiza uma delas como fonte da bifurcação que
ocorre nos anos recentes. No uso do termo "tragédia" pelo sistema legal e nas novas
instâncias de tratamento psiquiátrico para definir a relação entre os crimes e o
ambiente social que os teria influenciado, ele percebe uma tendência em classificar
como trágica a ação na qual uma patologia social é identificada.
32
O ato criminoso e o dano que se produzia aqui devia ser imputado à sociedade, e era, em
ultima instancia, a sociedade que se considerava como necessitando de tratamento e mudança, ao passo que ao delinqüente se concedia o status de vítima trágica das estruturas
objetivas da sociedade.33
Ao deslocar a quebra da lei do indivíduo para a sociedade, os conflitos
possivelmente trágicos entre a ordem individual e objetiva são minimizados. A
bifurcação à qual Gumbrecht se refere se estende ao momento atual em que o espaço
público parece tragicofóbico, alheio ao trágico, enquanto a esfera privada pode ser
tragicofílica, acolhedora deste mecanismo. Assim, a sociedade hoje tenderia a ser
tragicofóbica no plano social e tragicofílica no plano privado. Ele percebe uma
indústria de desparadoxificação34 no mundo contemporâneo. Todos os impulsos,
os atos ilegais, as pulsões e mesmo as transgressões parecem incorporadas ou
reguladas socialmente. Todas as possibilidades estão abertas para qualquer um,
desde que se possa alcançá-las pagando o valor de mercado, claro. A sociedade,
hoje, seria capaz de fornecer artifícios diversos, inclusive legais, para promover a
sua desparadoxização e, consequentemente, a fuga do trágico na vida e no palco.
Qualquer obstáculo objetivo que levaria o sujeito a um processo de aniquilamento
trágico se torna passível de superação cotidiana. Desde a impossibilidade de gerar
um filho ao sentimento de inadequação por se ter nascido homem ou mulher, tudo
é passível de resolução através de interferência humana, nos casos citados, através
de procedimentos médicos, frutos do avanço científico. Garcia Lorca teria
dificuldades em atingir a dimensão trágica de sua personagem estéril na peça
Yerma, se fosse escrita hoje. A esterilidade tem soluções ao alcance dos casais que
precisem resolver este paradoxo da natureza. O que se apresentava como uma
questão trágica passa a ser um problema objetivo de obter recursos para uma
resolução de caráter desparadoxificadora. A única coisa não solucionada, a única
tragédia preservada, ainda é a morte. E aqui o homem contemporâneo não estaria
distante das afirmações do coro de Antígona, de Sófocles, escrito no século V AC,
que parecem antecipar o rumo da desparadoxificação do mundo.
33 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Os lugares da tragédia. IN: ROSENFIELD, Denis L. Filosofia &
Literatura, p.15. 34 Termo utilizado por Gumbrecht para definir a tentativa de eliminação dos paradoxos, no mundo
ou no palco.
33
Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem.(...) A fala e o alado
pensamento, as normas que regulam as cidades, sozinho aprendeu; da geada do céu, da
chuva inclemente e sem refúgio, os dardos evita, de tudo capaz. Na vida não avança sem
recursos. Ao Hades somente não pode fugir. De doenças invencíveis os meios de escapar
já com outros meditou.35
As sociedades contemporâneas fazem o possível para afastar o sujeito desse
pensamento, mantendo a morte a uma distância segura nos CTI, medicalizando o
fim e negando aos próximos a possibilidade de compartilhar a experiência trágica.
Ainda assim, com todas as restrições ao que possa remeter à morte, a atração por
ela permanece. A existência de uma sociedade tragicofóbica no plano social, como
descrita pelo historiador, não anula a perspectiva de um trágico nos palcos. Se o
teatro ainda é um lugar onde se pode entrar em contato com o trágico, não será mais
através da katarsis, como previa Aristóteles, mas pela reflexão sobre a condição
humana e a precariedade de nossas vidas, nossas ações e relações no mundo. A cena
permaneceria como um lugar preservado da tragicofobia, onde o trágico
compreendido como experiência humana, profunda e ontológica poderia se
manifestar e, literalmente, ser levada à luz. Um trágico distante tanto das regras
originais aristotélicas, quanto das interpretações classicistas. Talvez mais próximo
do trágico filosófico dos românticos, mas também diferente deles. Protegido pela
distância característica da situação teatral, pelas convenções de palco e plateia, o
espectador teria no teatro uma chance de experimentar situações e sentimentos
socialmente evitados. No teatro seria possível uma aproximação poética com o real
e o que ele tem de trágico. Uma apreciação reflexiva e prazerosa embora distante
da catarse provocada pela fábula em sua completude. Em entrevista à escritora
Claudine Galea, Joël Pommerat, declara que o teatro pode ser o lugar onde esse tipo
de experiência é possível.
De certa forma, o real, nós apenas conseguimos captá-lo um pouco quando o fabricamos poeticamente. Não há nada aí de negativo. O teatro é a minha possibilidade de captar o real
e levar o real a um alto grau de intensidade, de força. Não há oposição em relação à vida.
A vida é o lugar onde passamos ao lado do real. (...) Com os meios que são artifícios, eu
busco o real. E não a verdade, apenas a realidade me interessa. Dizem que minhas peças
são estranhas, mas eu estou o tempo todo em busca do real. (...) A estranheza são todas as
contradições que o real não pode abrigar porque a vida em sociedade não permite estas
contradições. Elas existem, mas nos desviamos delas.36
35 Sófocles. Antígona. Trad. Donaldo Schuler. Porto Alegre, LPM, 1999. vv. 352-362. 36 Entrevista de Joël Pommerat a Claudine Galea. Ubu. Scènes d'Europe 37-38, p 11. Abril 2006.
34
Na vida em sociedade, como define Pommerat, as contradições parecem
banalizadas, os paradoxos tendem a ser aplainados. Eles estão lá, mas não devem
ser percebidos ou causariam uma perturbação, uma interrupção no cotidiano ou nas
práticas sociais. No palco, essas perturbações são isoladas, amplificadas e se tornam
matéria poética. Suspenso do seu cotidiano, o espectador pode ser levado a
reconhecê-las como suas próprias; ou a estranhá-las, ou simplesmente a ser
envolvido por seu mistério, como acontece por vezes nas peças de Pommerat.
Curiosamente, as duas sensações, o estranhamento e o reconhecimento, também
podem conviver num mesmo espectador, reverberando a intensidade do real que ele
propõe em cena.
Em A Reunificação das Duas Coreias esta captura do real prescinde da
fábula dramática na sua estrutura totalizante, embora a fábula ainda esteja presente,
de forma fragmentária. Sarrazac descreve a origem, ainda no Século das Luzes, da
desestruturação da fábula dramática. Fundamento do poema dramático segundo
Aristóteles, a fábula (mythos) “é objeto, nas dramaturgias modernas e
contemporâneas, de um verdadeiro trabalho de erosão”.37 A fábula não desaparece
completamente, assim como o personagem também mantém alguma presença,
porém a base dessa dramaturgia não é nem a fábula nem o personagem, mas a
“explicitação de um estado (micro) conflituoso diretamente presente na
linguagem”38.
Para Aristóteles, o dramaturgo é responsável por elaborar a ordem, a
completude e a extensão correta da fábula, de forma a obter um todo orgânico
comparado por ele a um organismo biológico, um "belo animal" 39. A ordenação
das ações seguiria começo, meio e fim e deveria manter uma relação causal. Hegel
reforça ainda mais a unidade e a lógica da fábula. Para ele, as ações tendem a um
fim, que traz determinadas consequências. O conflito, o embate entre os objetivos
dos antagonistas, deve desembocar na "catástrofe", que leva ao "apaziguamento
final" em forma de resolução lógica. Apesar disso, Hegel40 leva em conta as
transformações na dramaturgia desde Diderot e Lessing. Para ele, os teóricos e
dramaturgos que rompem com o classicismo francês atingem uma combinação
38 SARRAZAC, Jean Pierre (org). Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo:
Cosac Naify, 2012. p.80. 39 ARISTÓTELES. Op. cit. p.113 40 HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética II. São Paulo: EDUSP, 2000. p.337.
35
nova entre trágico e cômico. Essa combinação ainda seria orgânica. Hegel não
considera a possibilidade de mistura ou sobreposição do trágico e do cômico, como
ocorreria no teatro moderno; prevê apenas um corte nos excessos dos dois gêneros,
que os atenuaria mutuamente.
Abandonando os moldes aristotélico-hegelianos, a desconstrução da fábula,
iniciada no Iluminismo, se acelera no final do século XIX e segue em curso hoje.
Diderot é o primeiro a propor o afastamento da fábula completa e do lance teatral,
a peripécia, como fundamento da obra dramática. Seu teatro de quadros prescinde
da concatenação das ações e da progressão dramática, recomendada por Aristóteles
no intuito de provocar a catarse. Em Entrevista com o Filho Natural, apêndice
teórico em forma de diálogo da peça em quadros O Filho Natural, surge um
comentário a respeito dessa dramaturgia de quadros na fala de Dorval, personagem
da peça, em conversa com o filósofo nomeado: Eu
DORVAL - Um incidente imprevisto que se passa na ação e muda subitamente o destino
dos personagens é um lance teatral. Uma disposição desses personagens em cena, tão
natural e tão verdadeira que, fielmente representada por um pintor, me agradaria na tela, é
um quadro.41
Na peça de quadros, o fluxo da ação é interrompido e a história se
desenvolve fragmentada, contada em diversos quadros (tableaux) que não seguem
as regras aristotélicas das unidades de lugar e de tempo.
O quadro suspende o tempo da ação, a corrida em direção à catástrofe: em um único instante
prenhe ele concentra o passado, o presente e o futuro. Colocado diante do quadro, o
espectador sem dúvida sente emoção, mas uma emoção a tal ponto recheada de reflexão que não poderia causar essa descarga afetiva coletiva, provocada pelo terror e pela piedade
que pressupõe a catarse trágica.42
A descrição de Sarrazac do teatro de quadros de Diderot poderia se aplicar
à estrutura de A Reunificação das Duas Coreias. Um teatro composto por cenas
independentes, que concentra os tempos em um instante e que não deixa de
provocar emoção, embora não haja catarse, lance teatral ou progressão dramática.
A reflexão está incluída no bojo das sensações misturadas que este teatro de
fragmentos pode provocar no espectador. Quando Joël Pommerat comenta a origem
41 DIDEROT, Denis. Le Fils Naturel. Disponível em: http://www.revue-secousse.fr/Secousse-
04/Auxdepens/Sks04-Diderot-Fils_naturel.pdf 42 SARRAZAC, Jean Pierre. “Sete observações sobre a possibilidade de um trágico moderno.” p.3
36
das suas motivações para fazer teatro, esta valorização da reflexão através da cena
é sugerida como uma das intenções do seu trabalho.
Entrei no teatro porque me parecia um lugar de pesquisa e experiência. Rapidamente a arte
se tornou para mim um modo de ser no humano, no centro do humano. E um lugar para
desenvolver uma exigência. (...) De fato, eu quis fazer teatro para fazer filosofia. Ou, mais
precisamente, para tentar exercer meu pensamento. (...) Eu tenho um grande prazer em estar
no ser e não no fazer. Mas eu tinha essa intuição de que se poderia fazer algo que só existe
por si mesmo, em si, e que não deixe de ser alguma coisa.43
Se Pommerat não faz filosofia como um dia desejou, seu teatro convida à
filosofia. Ele pede análise, referências, reflexão, sentido. Sem a presença de
qualquer argumento ou formulação teórica, seus personagens levantam questões
que refletem inquietações humanas contemporâneas. As vozes dos personagens
ecoam temas de interesse dos filósofos, assim como de pensadores de outros
campos do conhecimento. Questões como a do isolamento, a da verdade, da
racionalidade, da desagregação familiar, da memória, da ética, da sexualidade e a
do amor estão entremeadas a estas vozes no palco. As réplicas abaixo foram
isoladas das diferentes cenas de A Reunificação das Duas Coreias, que serão
analisadas nos capítulos 2,3 e 4. Como um trailer de filme ou um coro desconexo,
porém afinado, essas vozes desafiam a curiosidade e convidam ao pensamento.
- Você não vai se sentir um pouco só? (Voz Feminina, na cena "Divórcio", à mulher que quer se divorciar porque não existe amor
em seu casamento.)
- Você é verdadeira?
(Segunda Mulher, em "A Parte de Mim", à Primeira Mulher, que quer se separar dela)
- O amor é mais bonito quando é difícil.
(Corinne, em "Faxina", às duas colegas que tentam lhe dizer que o marido se enforcou.)
- O desejo é mais forte que as explicações.
(Segundo Homem, em "Separação", tentando atrair a Mulher, que o crê morto, para que
fuja com ele.)
- Aqui, antigamente, era a casa dele, não era? Quer dizer... Na cabeça dele...
(Mulher, em "Chaves", falando com o companheiro sobre o ex-marido que entrou no apartamento com as suas chaves dez anos após partir.)
- O senhor ama meu filho? Isto é horrível!
(Homem, em "Amor", falando com o professor do seu filho.)
- A senhora não tem pena de nós agora?
(Homem, em “Filhos”, falando com a babá que ele contrata para cuidar de filhos
imaginários.)
- O que é um casal comum?
(Mulher, em “Memória”, ao marido que vem visitá-la sem que ela se lembre dele.) 44
43Entrevista de Joël Pommerat a Claudine Galea. Ubu. Scènes d'Europe 37-38. Abril 2006. 44 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 7 (tradução nossa)
37
O desejo, expresso na fala de Pommerat, de produzir alguma coisa que
exista por si, parece se concretizar na criação de uma dramaturgia com acentos
trágicos que, sem o recurso da fábula progressiva e completa, mantém conflitos e
tensões, ao mesmo tempo que abre mão de conclusões. Evidenciando a reflexão
sobre os temas propostos através de processos e recursos próprios, mais do que um
grande apelo emocional, a peça proporciona tempo e espaço para o pensamento. A
Reunificação das Duas Coreias reúne algumas características do que se poderia
chamar de trágico cotidiano. Um exame mais detalhado de 10 cenas, escolhidas
entre as 20 apresentadas no espetáculo, pode trazer, a seguir, uma melhor
compreensão de tais características.
38
2.
Despedida
Como termina um amor? – O quê? Termina? Em suma ninguém – exceto os outros – nunca
sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida
como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe
à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor
que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o
ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece
quando e como se esperava).
Roland Barthes
No livro Fragmentos de um Discurso Amoroso, o filósofo Roland Barthes
reflete, através da montagem de textos de diferentes autores, sobre a condição
transitória do amor. O sofrimento do amante se localiza na ideia da partida, de uma
despedida, ou do fim do amor. A transitoriedade é recusada, mesmo
hipoteticamente, por aquele que acredita em um amor que possa ser eterno. A
despedida tem uma carga de irreversibilidade que pode ser comparada à morte.
Mesmo que o amante retorne, o que existia antes morreu, não voltará à vida.
Na montagem, Barthes utiliza fragmentos extraídos de Os Sofrimentos do
Jovem Werther, romance de Goethe sobre um amor fatal. Decidido a cometer o
suicídio pelo amor perdido de Carlota, Werther recebe as pistolas tocadas pelas
mãos da amada e escreve uma carta de despedida.
Elas passaram pelas suas mãos, você as limpou! Beijei-as mil vezes: você tocou-as. É você,
anjo do céu, que favorece meu desígnio! Você mesma, Carlota, fornece o instrumento que
vai consumá-lo! Desejei receber a morte de suas mãos: é de você que a recebo hoje!
Interroguei o meu criado e ele contou-me que você tremia ao entregar-lhe as pistolas, e não me enviou um adeus! ... Ai de mim, ai de mim, nem um adeus!45
A obra ganha, na época de seu lançamento, muitos admiradores, sobretudo
entre os jovens. Os mais radicais, além de seguir os ideais do protagonista,
procuram também o seu destino trágico. O romance influencia uma onda de
suicídios que resulta na sua proibição em alguns países.
45 GOETHE. Os Sofrimentos do Jovem Werter. Disponível em: http://www2.uefs.br/filosofia-
bv/pdfs/goethe_03.pdf p 103
39
Para Szondi, Goethe recusa os recursos sangrentos das tragédias para
deslocar a violência das lutas do herói trágico para a despedida ou abandono de uma
situação ou da pessoa amada. Em suas obras, recusar o punhal e os atos de violência
não significa uma tentativa de amenizar o trágico. A partida ou a despedida se torna
a motivação de situações trágicas nas suas obras, a partir da percepção do autor da
estrutura dialética dessas situações.
A Despedida é unidade, cujo único tema é a divisão; é proximidade que só tem diante dos
olhos a distância, que aspira pela distância, mesmo quando a odeia; é ligação consumada
pela própria separação, sua morte como partida.46
A tragicidade se estabelece por um conflito irremediável. Para Goethe, o
conflito trágico não acontece entre o herói trágico e uma força externa, mas ele é
interno. Não se trata também de um dilema entre querer e dever. O herói trágico
tem um ideal inalcançável; o impossível e o desejado convivem no mesmo objeto.
Como ele não pode abandonar seu ideal, seu fim será trágico. A única possibilidade
de felicidade para Werther é o amor de Lotte, um amor que se prova impossível ao
longo do romance. Este conflito estabelece o personagem como trágico. Não é um
golpe do destino que o torna trágico, mas o fato de que sua essência o leva ao seu
destino. “Goethe reconhece como essencial ao trágico o fato de que o conflito
trágico não permite nenhuma solução”.47 O suicídio do personagem acontece
quando já não há possibilidade de plenitude para ele no mundo. Não se trata de fuga
ou desistência. É uma despedida; dessa vez, da vida. Szondi cita a definição de
Goethe a respeito da tragicidade da partida.
A motivação fundamental de todas as situações trágicas é o ato de partir [Abscheiden], e
nesse caso não é preciso nem veneno nem punhal, nem lança nem espada; também é uma
variação do mesmo tema o ato de se separar de uma situação habitual, amada, correta, seja
por causa de uma calamidade maior ou menor, seja por causa de uma violência sofrida, que
pode ser mais ou menos odiosa.48
As cenas de A Reunificação das Duas Coreias reunidas neste capítulo
evoluem de algum modo em torno da partida e da despedida, em suas diferentes
formas e consequências. As primeiras duas cenas tratam diretamente de separações
amorosas: Divórcio e Uma Parte de Mim. Em Dinheiro, há uma estranha e frustrada
46 SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.51. 47 Ibidem, p.48. 48 Ibidem, p.50.
40
tentativa de abandono. Chaves mostra a volta de um amante ausente para uma
última palavra de despedida. As análises dessas cenas são uma tentativa de apreciar
diferentes aspectos do trágico que elas deixam escapar.
2.1.
Divórcio
A primeira cena da peça se passa em um local indeterminado à primeira
vista. No meio do palco uma mulher está sentada em uma cadeira. A personagem,
nomeada Mulher, expõe, procurando uma solução, um problema doloroso, com
calma aparente, a uma voz cuja dona, nomeada Voz Feminina, não se localiza no
palco. Com poucos elementos, o espetáculo desenha, na sua primeira cena, os
contornos de um ambiente formal onde se discute um assunto íntimo. A tensão
provocada por este contraste no estabelecimento da primeira cena age como um
convite de entrada no espetáculo. O espectador é convocado para ser o observador
neutro, o terceiro em cena, em uma situação que carrega a marca da
confidencialidade e também de certo constrangimento. Não se pode dizer, no
entanto, que seja uma chamada violenta ou chocante para o espetáculo que se inicia.
A Mulher fala com suavidade, move-se pouco durante a cena. A Voz Feminina que
a interroga demonstra mais energia, e até mesmo mais emoção em alguns
momentos. A luz é simples, sem movimento.
A cena foi escrita como citação do filme Cenas de um Casamento, de
Ingmar Bergman. No filme, uma mulher de cerca de sessenta anos, em consulta
com uma advogada de família, fala dos seus motivos para se divorciar. No teatro,
vemos apenas a mulher, em torno dos quarenta anos, respondendo a uma voz off.
Os diálogos são semelhantes, embora a personagem no filme pareça exercer a
função de reforçar os questionamentos da terapeuta, a protagonista, em relação ao
seu próprio casamento. No teatro, o foco é a própria mulher que quer se divorciar e
sua razões, ou melhor, os sintomas que ela apresenta à voz que a interroga para
justificar a separação.
O autor Joël Pommerat afirma fazer um teatro de ação, denominação
curiosa quando se pensa na expressão filme de ação e seu significado. O teatro de
41
ação de Pommerat não exibe grandes movimentos ou cenas de risco e violência.
Em A Reunificação das Duas Coreias não há encadeamento de ações em direção a
um sentido final. Como ponto em comum com os filmes de ação, seus personagens
falam de modo direto, muitas vezes falas curtas, sem intenções ocultas ou
simbolismos. Talvez aí esteja a marca da ação: o que se diz ou como se diz, em
termos do diálogo, é propositadamente pouco elaborado, servindo apenas como
base simples ao jogo complexo entre os personagens. Suas pequenas ações são
movidas por réplicas que se pretendem secas de subtexto psicológico ou
simbolismos intencionais.
VOZ FEMININA – Por que a senhora quer se divorciar?
MULHER – Porque não existe amor entre nós. 49
Em "Divórcio", a Mulher, uma dona de casa, mãe de três filhos adultos,
declara à Voz Feminina que a interroga, uma advogada de família, que deseja
terminar seu casamento pelo fato de não existir amor entre ela e seu marido. Nunca
houve, ela afirma depois, amor entre eles. Motivo aparentemente justo, que soa um
tanto absurdo quando declarado dessa forma direta, brutal. Nessa curta declaração
o espectador pressente a angústia da Mulher, que dedicou grande parte da sua vida
a uma relação marcada pela ausência do que ela tem como fundamento desta mesma
relação, algo intangível que ela chama de amor. Algo que ela sabe que deve existir
entre marido e mulher, apesar de nunca ter experimentado. A ausência do amor
parece menor e menos aguda do que a convivência com a certeza desse vazio.
VOZ FEMININA – E o que é que o seu marido acha disso? MULHER – Ele me pediu pra pensar melhor. Ele me perguntou cem vezes o que havia de
errado com a gente. Eu disse que não é possível ficar sem amor. Então, ele quis saber no
que consistia esse amor. Eu respondi que não tinha ideia, não dá para descrever uma coisa
que a gente não conhece. 50
O trágico contemporâneo, segundo Jean Pierre Sarrazac, prescinde da
grande colisão dramática, uma das características essenciais do trágico para Hegel.
Para a ocorrência de tal colisão dramática é fundamental que os conflitos da peça
sejam intersubjetivos, resultado de fortes vontades antagônicas em choque
progressivo e irreversível.
49 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 7 (tradução nossa) 50 Ibidem, p. 8
42
Em Antígona, por exemplo, tragédia de Sófocles, o conflito se dá entre
Antígona e seu tio, Creonte, governante de Tebas depois da partida de Édipo, seu
pai, para o exílio. Antígona disputa com Creonte o direito de sepultar o irmão,
Polinices. Ele nega à sobrinha este direito porque o sobrinho lutou contra o seu
reino. Antígona luta para sepultar o irmão e preservar o que resta de dignidade de
sua família, desonrada pelos erros de seu pai. Creonte mantém sua vontade
fundamentado pelas leis da polis, que preveem que os inimigos de Tebas devem
ficar insepultos. Duas fortes vontades antagônicas em choque progressivo e
irreversível criam uma história trágica exemplar.
Nas cenas de A Reunificação das Duas Coreias não há personagens em
conflitos antagônicos desta dimensão. Mesmo quando os pequenos conflitos se
estabelecem, suas progressões não são lineares. Eles não movem a ação em direção
a uma colisão e uma resolução final. Muitos conflitos são internos; os choques,
randômicos. Joël Pommerat deixa clara a ausência intencional de progressão e
colisão dramática e a escolha da fragmentação de pequenas ações cotidianas na sua
construção.
Esta peça é uma sequencia de instantes sem unidade declarada ou coerência narrativa. Ela se parece mais com uma sucessão de pequenos fragmentos ficcionais, como se fossem
contos, em torno de um tema mais ou menos comum. No entanto, não é uma peça abstrata.
Ao contrário, ela tem um viés realista e humorístico. 51
Pommerat trabalha com o sequenciamento em cenas independentes,
pulverizando a ação em diversos fragmentos. Além disso, estas ações se
apresentam, muitas vezes, como pedaços de ação, caracterizando duplamente o
embate com as regras aristotélicas da unidade de ação, que prevê início, meio e um
fim para a trama, com uma totalidade resultante deste movimento linear: a
completude que levaria à catarse. Ao mesmo tempo, como Pommerat declara, não
se trata de uma abstração, como em outros espetáculos contemporâneos, mais
voltados à criação imagética ou coreográfica. Em A Reunificação das Duas Coreias
há um elemento de trama preservado, são pequenas histórias contadas, pequenos
contos. Esta preservação pode ser encontrada em maior ou menor grau em outras
peças do autor e parece contribuir com o difícil equilíbrio entre invenção teatral e
51 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées - Dossier d´Acompagnement. Paris:
Odeon - Théâtre de l'Europe, 2013. p. 24
43
comunicação com as plateias, uma das marcas do trabalho desta companhia e um
dos objetivos declarados do autor-diretor. Sem se comprometer com uma estrutura
totalizante, Pommerat quer que seus espetáculos se comuniquem com os
espectadores.
As formulações banais que Pommerat admite para os seus personagens
remetem às obras de Tchekhov, nas quais tais formulações se revelam capazes de
expressar com clareza os conflitos internos dos personagens. Na Teoria do Drama
Moderno, Peter Szondi identifica no final do século XIX e começo do século XX,
o momento em que a dramaturgia sobrepõe aos conflitos intersubjetivos os conflitos
intrassubjetivos. Nas peças de Ibsen, Strindberg e Tchekhov, os grandes embates
vividos pelos personagens, em torno dos quais as peças se constroem, acontecem
internamente. Tcheckov não hesita em afirmar que nada acontece em suas peças.
Sua dramaturgia é povoada por personagens que enunciam desejos vagos de ação,
como as três irmãs da peça que, incessantemente, afirmam seu intuito de ir para
Moscou, sem esboçar um gesto afirmativo nesta direção.
OLGA - Nesta época, começo de maio, em Moscou já está tudo florido, faz calor, os raios
de sol inundam toda a cidade. Passaram-se onze anos, mas me recordo de tudo, tintim por
tintim, como se tivéssemos deixado Moscou ontem. Meu Deus! Quando acordei hoje de
manhã e vi toda esta luz, a primavera, meu coração se encheu de alegria e desejei
ardentemente estar em minha cidade natal.
TCHEBUTIKIN: Que nada!
TUZENBACH: Claro, que bobagem! 52
Se o trágico moderno não anula a ação dramática, ele diminui sua potência.
Mesmo que a ação pareça inexistente, ela está presente. Isto se nota nas peças de
Tchekhov, e também nas de Strindberg e Pirandello, o que pode até tornar difícil a
tarefa de captar e descrever de modo explícito a ação dramática destas obras. Em A
Reunificação das Duas Coreias a ação é apresentada em pequenos percursos, às
vezes sem consequência imediata, até contraditórios, sem resultado visível. Os
personagens executam movimentos esparsos, como quem vaga por ruas estranhas
à procura de um endereço falso. Abaixo, em "Divórcio", a fala da Mulher
propositadamente contradiz seus motivos e sua determinação de se separar. À
medida que a cena avança, surgem outros sentidos para essa cena de perfeição
52 TCHEKHOV, Anton. As Três Irmãs. Disponível em:
http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/wp-content/uploads/2010/10/Anton-Tchekhov-AS-
TRÊS IRMÃS.pdf p.3
44
doméstica que ela descreve, sem que a ação se transforme substancialmente para
isso.
MULHER - Meu marido é uma pessoa muito boa. Eu não tenho nenhuma queixa dele. Ele
foi um ótimo pai. Nós nunca brigamos. Nós temos um bom apartamento. Nós dois gostamos
de música de câmera e fazemos parte de um grupo de música de câmera. Então, nós fazemos
música de câmera.
VOZ FEMININA - Mas isso tudo parece muito bom.
MULHER - É muito bom. Mas não tem amor entre nós. Nunca teve. 53
Peter Szondi, ao investigar a crise do drama absoluto,54 já constatava a
crescente insuficiência da forma do drama, presente nos autores do final do século
XIX, como modelo não questionado. Na Teoria do drama moderno, Szondi chama
de drama absoluto a forma aristotélico-hegeliana, que tem como base
acontecimentos interpessoais mostrados no presente. Inspirado em Hegel, ele
considera o drama moderno a partir de suas contradições. Conclui que não é
possível equilibrar sem crise um elemento histórico (o conteúdo) a uma forma que
se pretende atemporal, como na poética tradicional. Na sequencia dessa
contradição, temos o conflito entre os modelos que ditam a "forma correta" do texto
teatral, e a exigência de reinvenção da forma, causada pelas novas demandas.
Szondi localiza essa crise através da obra de autores como Ibsen, na qual a técnica
analítica subordina o tempo presente da ação ao passado das personagens. O
passado é constantemente referido e narrado em cena e tem tanto peso no
desenvolvimento da trama quanto o presente; às vezes mais.
Sarrazac chama o drama absoluto de drama-na-vida, ao qual ele opõe uma
nova categoria, o drama-da-vida55. Enquanto o drama-na-vida narra uma reversão
do destino, uma trajetória da felicidade à infelicidade ou o oposto, provocada por
uma colisão dramática e dotada de desenvolvimento lógico, o drama-da-vida ignora
as unidades de tempo, espaço e ação.
Para abarcar uma existência inteira, o drama-da-vida recorre à retrospecção – até agora
privilégio do épico – e a processos de montagem. De fato, o drama-da-vida marca uma
mudança profunda na medida do drama, ou seja, na sua extensão, mas também no seu ritmo
interno. O drama-na-vida corresponderia intimamente a um momento da existência dos
heróis; a extensão o drama-da-vida é inversamente proporcional à intensidade da existência
53 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 7 (tradução nossa)
54 Drama absoluto: ver nota 14. 55 SARRAZAC, Jean Pierre. Poétique du Drame Moderne. Paris, Editions du Seuil, 2012.
45
do homem ordinário. À época de Ibsen, Strindberg, Maeterlinck, Tchekhov, Schopenhauer
deu um nome ao drama-da-vida: ele o chamava “tragédia universalmente humana”.56
Como resultado, ou sintoma, da crise do drama absoluto, a cena recebe
elementos até então estranhos a ela, como as interferências épicas, os diálogos
distorcidos ou em construções corais apontando para a impossibilidade ou a
incapacidade da fala intersubjetiva de lidar com as questões propostas pelas obras.
Elementos que surgiram no palco no período de crise do drama, no século XIX,
foram incorporados às peças do século XX e XXI. Os dramaturgos contemporâneos
seguem empregando recursos como os monólogos interiores, as sobreposições de
diálogo, a narração.
Em A Reunificação das Duas Coreias as construções e os diálogos são, na
maior parte do tempo, diretos. Há algum uso de coralidade, como na cena Filhos,
na qual o casal contrata uma babá para cuidar de crianças que não existem,
acusando-a depois pelo desaparecimento delas. No final, com a chegada da polícia
à porta do apartamento, as vozes dos dois se sobrepõem. A cena se torna coral e, ao
mesmo tempo, um diálogo de surdos. O coro desorganiza ainda mais a situação; os
personagens perdem suas individualidades complementando indistintamente as
réplicas um do outro.
O HOMEM E A MULHER (suplicando, misturando progressivamente suas vozes) - Se
você nos tirar nossos filhos, nossa vida acaba. Nós não existimos mais. Nossa história perde todo sentido, tudo vai ser destruído. Nossa vida não terá mais nenhuma realidade,
justificação, nós acabaremos nos perdendo um do outro. Primeiro nos afastaremos, então
nos perdermos, totalmente, depois. (...) Você sabe que um casal é uma fonte de vida, uma
referencia essencial, como um farol que ilumina a vida, a nossa vida. Um casal é também
uma luz que sinaliza para os outros a sua, a nossa existência. Foi o que nos explicou o
psicoterapeuta que nós consultamos. Nosso casal se construiu sobre os nossos filhos...
Então, sem filhos, nos desaparecemos, nos não temos identidade própria, zero de
identidade... 57
Em Os Cegos, de Maeterlinck, a continuidade entre as falas dos personagens
reforça a sensação de grupo, borrando os limites entre eles. Em Tchekhov, os
diálogos são orquestrais; podem abrigar trechos curtos e sincopados entremeados a
longos solilóquios, muitas vezes ignorados pelos outros personagens presentes em
56A reprise (resposta ao pós-dramático) Tradução de Humberto Giancristofaro do artigo La reprise.
Jean-Pierre Sarrazac. Revista Questão de Crítica Vol. III, nº 19, março de 2010. 57 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p.69 (tradução nossa)
46
cena, entregando o tédio e a impotência que os impede à ação e às relações. A
Reunificação das Duas Coreias trabalha com recursos desse tipo de modo
econômico. Diferente de Cendrillon, adaptação de Joël Pommerat do conto
Cinderela, no qual há forte uso de orquestração, coralidade e uma narração off, cuja
voz não se sabe a quem pertence. A voz, curiosamente, parece conhecer a história
melhor que a protagonista, se confundindo com ela.
Os espectadores, por outro lado, parecem se familiarizar com esse novo
vocabulário da cena. O espectador de A Reunificação das Duas Coreias não parece
estranhar a entrada de uma personagem andrógina cantando em uma língua
inventada, enquanto carrinhos de parque diversão dirigidos por casais se batem no
palco obscuro. A plateia parece entender o que está implicado quando a Mulher que
quer se divorciar descreve a vida quase idílica que tem com o marido que quer
deixar. Não é o que ela diz objetivamente que torna suas ações “dignas de serem
assistidas numa medida determinada de tempo e espaço." 58As declarações banais
da Mulher no presente constroem a subjetividade que gera o interesse pela cena. A
exposição oblíqua da interioridade aparece como um dos elementos herdados dos
autores do século XIX, que podem ser encontrados no trágico contemporâneo. As
contradições trágicas não estão fora, no mundo ou nas lutas com as divindades, mas
no interior do sujeito.
Quando a subjetividade, antes reservada à literatura, se torna presente nas
obras dramáticas da virada do século XX, o drama não se define mais no tempo
presente. O passado pode ter força igual ou maior. Comparando os dramas de Ibsen
à forma da tragédia clássica em Édipo Rei, Szondi59 lembra que a verdade de Édipo
é de natureza objetiva, suas ações o levam da ignorância à verdade. Em Ibsen, a
verdade está na interioridade e não no mundo externo, o que faz com que a matéria
de suas peças se aproxime do romance. Os personagens agem de modo reflexivo,
referentes a algo que já aconteceu e os assombra como um fantasma. Os
personagens submetidos à técnica analítica carregam lembranças nostálgicas,
rememorações obsessivas, culpas que moldam o presente. Como exemplo desse
movimento, em Rosmersholm, de Ibsen, a sombra do suicídio da esposa do pastor
paira sobre a vida de todos naquela casa. A sombra do passado impede a
possibilidade da ação direta dos personagens no presente.
58 WOODRUFF, Paul. The Necessity of Theater. New York: Oxford University Press, 2008. p.18. 59 SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno [1880-1960]. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
47
REBECA - Em Rosmersholm as pessoas não esquecem facilmente os mortos.
DONA HELSETH - Quanto a isso, senhorita, eu acho melhor dizer que são os mortos que não se esquecem facilmente de Rosmersholm.60
Regidos por ausências e constantemente lançados ao passado, os
personagens são obrigados a expor em diálogo questões anteriores ao momento da
ação. Antigos acidentes dominam a trama e se sobrepõem aos acontecimentos no
tempo presente, tornando-os meros reflexos de ações não vistas pelos espectadores,
os fantasmas ou sombras de ação.
Para Pommerat, o teatro é um lugar artificial para criar o real. Porém, não
se trata do teatro realista que persegue a mimesis do real, mas um real filtrado por
lentes deformantes, opacas, o que, muitas vezes, soa estranho, quase irreal. O autor
persegue o real na sua estranheza e nos seus aspectos inacessíveis, enquanto o
reconstrói na sua banalidade. Ele procura “alguma coisa que não se pode designar
simplesmente, algo que deve se imiscuir, escorregar nas entrelinhas dos gestos e
palavras pronunciadas como uma realidade fantasma bem mais presente, bem mais
forte desta forma do que se ela estivesse explícita no texto ou na interpretação dos
atores”.61
A ação dramática nesse teatro existe, embora não sofra as mesmas
exigências do drama convencional. Jean Pierre Sarrazac62 acredita na possibilidade
de um trágico moderno sem a exigência de uma ação forte no presente, uma das
principais características do drama. Longe da colisão dramática hegeliana ou do
choque de paixões individuais da concepção aristotélica, o teatro moderno
comporta a rarefação da ação.
A ação dramática tem muitos modos e vetores no palco e um deles pode ser
a inação. Na cena Divórcio, a ação dramática é definida – a Mulher pede ajuda a
uma advogada para obter o divórcio – mas é mínima e, de certo modo, marcada
pelas sombras nas referências ao passado. A Mulher expõe uma série de ausências
– os filhos que não estão mais em casa, o marido que ignora suas razões para o
divórcio, o amor que nunca existiu. Ao final da cena, não se sabe se ela realmente
60 IBSEN, Henrik. Quando despertarmos de entre os mortos/ Rosmersholm. Editora Globo,
1985, p 223. 61 Joël Pommerat: une démarche qui fait oeuvre. Entrevista de Joël Pommerat a Marion Boudier e
Guillermo Pisani. emJeu : revue de théâtre, n° 127, (2) 2008, p. 150-157. 62 SARRAZAC, Jean Pierre. “Sete observações sobre um Trágico Moderno”. Pitágoras 500, vol 4,
abril 2013.
48
vai obter o divórcio, ou se a Voz Feminina com quem ela dialoga será capaz de
ajudá-la, mas está claro que os sentidos da cena não passam por essa resolução. O
conflito infradramático e trágico se manifesta nos efeitos que a ausência do amor,
sentimento que a Mulher declarou não conhecer, tem na sua relação com o mundo.
A MULHER –Na verdade, acontece uma coisa estranha. Os meus sentidos, quer dizer, a
minha visão, a audição, estão começando a me trair. Por exemplo, eu digo que esta sala é grande. Mas a sensação que eu tenho é vaga, sabe. É assim com tudo. A música, os aromas,
o rosto das pessoas, suas vozes. Fica tudo cada vez mais pobre, mais apagado. 63
Em uma entrevista antes da estreia de A Reunificação das Duas Coreias,
Joël Pommerat revela ter Tchekhov como uma das suas referências na escrita dessa
peça. Esta cena e, particularmente, a confissão de progressiva alienação da Mulher
em relação à própria vida, remete ao desencanto e à renúncia dos personagens
tchekhovianos. A declaração de Irina, a mais jovem de As Três Irmãs, na qual ela
expõe a esterilidade da sua vida, não fica distante da confissão anterior, dos
sintomas de alheamento da Mulher, de Divórcio.
IRINA - Tenho vinte e quatro anos, já trabalho há tanto tempo, e o que foi que consegui?
Tenho cérebro como que ressecado, emagreci, embruteci, envelheci, e no meu trabalho não
encontrei nada, nem um pingo de satisfação. O tempo passa tão depressa e, para mim, é
como se eu me afastasse cada vez mais da vida verdadeira, da vida realmente bela - como
se eu afundasse num abismo.64
Na análise de Peter Szondi,65 os personagens dos dramas de Tchekhov
vivem sob o signo da renúncia ao presente e à comunicação: a renúncia à
felicidade no verdadeiro encontro. Paralisados entre a resignação e a nostalgia, os
personagens não avançam em direção a qualquer resolução possível. Estas
hesitações definem formalmente essa dramaturgia, a sua inadaptação às estratégias
do drama convencional e seu impacto na história do teatro. A dolorosa distância
entre essas personagens e a vida, a renúncia aos seus sons e cores, aromas, espaços,
trabalhos e amores compõem o trágico do cotidiano que atravessa as duas peças.
63 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p.9 (tradução nossa)
64 TCHEKHOV, Anton. As Três Irmãs. Disponível em:
http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/wp-content/uploads/2010/10/Anton-Tchekhov-AS-
TRÊS IRMÃS.pdf p.49
65 SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno [1880-1960]. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
49
Além dos personagens que vivem a renúncia à felicidade, outro traço da
dramaturgia de Tchekhov pode ser percebido no trágico cotidiano de A
Reunificação das Duas Coreias. Sob a trivialidade de seus diálogos e conflitos, as
questões em torno das quais giram os personagens são profundas. O acento prosaico
nas cenas e assuntos tratados pelos personagens de Pommerat também trazem temas
complexos. O destino impenetrável, o enigma da existência, o mistério da morte,
são como uma fonte de energia poderosa e oculta sob a aparente banalidade das
cenas, dando oportunidade para o infratrágico se manifestar.
George Steiner, em A Morte da Tragédia, situa Tchekhov fora dos limites
de seu estudo sobre o trágico, mas algumas de suas considerações parecem
apropriadas para a discussão do trágico nas peças tchekhovianas e no trágico
cotidiano de A Reunificação das Duas Coreias. Ao diferenciar teatro sério e
tragédia, Steiner comenta que “a tragédia não tem como objeto problemas seculares
que poderiam ser resolvidos por alguma medida racional, mas a imutável tendência
à inumanidade e à destruição na marcha do mundo." 66 Parece que o trágico
contemporâneo tem como objeto justamente problemas seculares que poderiam ser
resolvidos racionalmente. Porém, a falha na resolução dos problemas não leva ao
trágico. Estas incapacidades levam a discussões infinitas, monológicas (em
Tchekhov), ou circulares (em Pommerat), e ao sentimento de imobilidade (nos
dois). Nenhuma ação é capaz de libertar esses personagens de seu destino trágico,
que é o simples fato de existirem e estarem no mundo da forma como estão.
Perdidos, diminuídos, sonâmbulos, transitando entre a apatia e o desespero sem que
nada pareça mudar sua sorte, os personagens do trágico contemporâneo estão muito
próximos de suas plateias. Apesar da coloquialidade de suas questões, os
personagens de Pommerat, ou de Tchekhov, demonstram o poder de refletir, como
anti-heróis, as sequelas trágicas das tendências destrutivas na marcha do mundo
contemporâneo.
66 STEINER, George. A Morte da Tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2006.
50
2.2.
A Parte de Mim
Na passagem entre a primeira cena, Divórcio, e a segunda, Uma Parte de
Mim, há um forte contraste de ritmo e intensidade na montagem de Pommerat de A
Reunificação das Duas Coreias. Enquanto os meios tons e a melancolia marcam o
diálogo entre a Mulher e a Voz Feminina, a segunda cena se inicia com uma
explosiva troca de ofensas. Em um espaço triangular, sentados em cadeiras, estão
está a Primeira Mulher ao lado da Segunda Mulher. No vértice, um homem, um
provável terapeuta, assiste calado à disputa e, eventualmente, contém a briga entre
as duas. Como a Mulher da primeira cena, aqui a Primeira Mulher quer se separar
da companheira. A Segunda Mulher, no entanto, se recusa, lançando acusações
graves e misteriosas à outra. Ela questiona repetidamente a verdade da
companheira, não em oposição a uma mentira dita por ela, mas à incapacidade
daquela que quer a separação de ser verdadeira.
SEGUNDA MULHER - Você disse a palavra.
PRIMEIRA MULHER - Que palavra?
SEGUNDA MULHER – Verdade. Não é verdade. Nós não somos verdadeiras, você e eu,
e a culpa é sua. Por mim, eu estava pronta, eu sei. Pra ser verdadeira com você, pra que a
gente fosse verdadeira, pra fazer alguma coisa de verdade. Mas você não, e você não
reconhece.
PRIMEIRA MULHER – Quem pode dizer o que é verdadeiro de verdade? 67
As afirmações da Segunda Mulher durante toda a cena são circulares,
retornando ao mesmo ponto de onde ela parece não ter nenhuma intenção de se
mover. A Primeira Mulher está claramente exasperada com o descontrole da
companheira, além de confusa com a cobrança obsessiva de uma verdade que ela
deveria possuir. O que seria essa verdade que a Segunda Mulher empunha como
um martelo com batimentos repetidos?
Sarrazac aponta como uma das possibilidades do trágico moderno o que ele
denomina um trágico serial. Nestas obras, os autores representam poeticamente a
repetição, forjando através dela uma variação do Mesmo. "A repetição do mesmo é
repetição e perda de Si, perda de identidade, perda do Outro"68. Como uma forma
67 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 10 (tradução
nossa)
68 SARRAZAC, Jean Pierre. “Sete observações sobre um Trágico Moderno”.
51
de se desfazer do domínio da serialização, os textos amplificam-na, levando-a ao
extremo. A Segunda Mulher se apega à palavra verdade e a repete durante a cena
até que, de algum modo, ela perde o sentido ordinário e ganha um sentido privado,
como um código entre as duas. Enquanto esse jogo acontece, a cena caminha em
círculos, voltando sempre ao mesmo ponto.
SEGUNDA MULHER - Não. É muito fácil acabar agora, fácil demais, simples demais.
Você acaba, se quiser, eu não, não acabo porque não posso. Não posso porque entre nós
duas, pra mim, é verdade, entende? É verdade, não é falso, mentira. Eu sou verdadeira,
então, não tenho escolha, mas isso você não pode entender. 69
A virada do século XX assiste a uma inversão. Em lugar da progressão
dramática as peças apresentam movimentos seriais, criando um teatro da repetição,
que se manifesta em diversas obras. Na peça John Gabriel Borkman, de Ibsen, o
personagem tem o hábito de andar em círculos na sala de seu apartamento, enquanto
rememora os erros do passado. Seus passos ecoam dia e noite, durante anos, sobre
a cabeça da sua esposa, que vive no andar de baixo. John Gabriel vive ali recluso e
só sairá para uma caminhada final sobre a neve, quando será tarde demais para
recuperar uma vida perdida. Sua esposa, sua cunhada e ele parecem
irremediavelmente atados, condenados uns aos outros. No primeiro ato, um longo
acerto de contas entre as irmãs detalha os fatos do passado que ataram esses nós
cegos. Ao final, a discussão entre as irmãs é suspensa pela pontuação sonora dos
passos repetidos de John Gabriel, na sala do apartamento do segundo andar.
MRS. BORKMAN - Eu sinto como se tivesse um lobo doente andando na jaula bem em
cima da minha cabeça. [Escuta e sussurra.] Está escutando! Para frente e para trás, para
cima e para baixo, lá vai o lobo.
ELLA RENTHEIM - [Hesitante.] Não é possível mudar, Gunhild?
MRS. BORKMAN - [Com um gesto de repulsa.] Ele nunca fez nenhum movimento para mudar.
ELLA RENTHEIM - Você não poderia dar o primeiro passo?
MRS. BORKMAN.- [Indignada.] Eu! Depois de todo o mal que ele me fez! Não,
obrigada! Melhor deixar o lobo rondando por lá. 70
A repetição e a retração dos movimentos são características dessas
personagens que, apesar de todo o rancor que sentem e dos motivos concretos que
69 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 10 (tradução nossa)
70 IBSEN, Henrik. John Gabriel Borkman. Disponível em: https://archive.org/stream/johngabrielborkm18792gut/18792.txthttps://archive.org/stream/johngabr
ielborkm18792gut/18792.txt
52
possuem, são incapazes de se separarem uns dos outros. Esta paralisia os impede
de moverem a ação no que se constituiria uma progressão dramática completa. Em
"A Parte de Mim", a violência do tom da discussão das mulheres não esconde a
imobilidade em que se encontram.
PRIMEIRA MULHER - Eu te odeio, eu acho, e tenho pena de você.
SEGUNDA MULHER - Eu também te odeio. PRIMEIRA MULHER - Então, vamos nos afastar, por favor.
SEGUNDA MULHER - Não, nunca.
PRIMEIRA MULHER - Por quê?
SEGUNDA MULHER - Porque não é possível. 71
Sob uma atmosfera ainda mais angustiante, os personagens de Beckett
tendem a repetir ações, reforçando a sensação de nada, de desolação daquele
universo. A situação de isolamento e repetição está presente em todas as peças. Em
Fim de Partida, personagens doentes, frágeis, trancados em um local fechado,
vivem o que parece ser o fim dos tempos. Duas latas de lixo dentro de um container
abrigam os quatro personagens enclausurados em uma espécie de vida residual. Nas
idas e vindas sem objetivo, Clov e Hamm na sala com a cadeira de rodas, Nagg e
Nell abrindo e fechando suas latas, eles conservam traços de relações cotidianas
pertencentes a uma ordem morta. Dominação, chantagens, lembranças, obsessões
parecem recordá-los de modo perverso do que havia lá fora e de quem foram um
dia.
HAMM – A Natureza nos esqueceu.
CLOV - Não existe mais natureza.
HAMM – Não existe mais! Que exagero!
CLOV – Nas redondezas.
HAMM – Mas nós respiramos, mudamos! Perdemos os cabelos, os dentes! A juventude,
os ideais!
CLOV – Então ela não nos esqueceu.
A Primeira Mulher da cena Uma Parte de Mim não repete ações físicas,
aliás, não há grande ação nesta cena curta. As duas mulheres estão sentadas e só se
levantam quando a discussão evolui para o embate físico, obrigando o homem a
separá-las e fazer com que retornem às suas cadeiras. A angústia da repetição é
transmitida pelas indagações circulares da Primeira Mulher, primeiro a respeito da
71 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 10 (tradução
nossa) p. 11
53
verdade. O fastio da Segunda Mulher contrasta com a insistência violenta com que
a outra bate sobre o mesmo tema: a verdade que ela afirma possuir.
SEGUNDA MULHER – Eu sou verdadeira, eu sou, e é por isso que eu falo e falarei para
sempre, porque eu sou verdadeira.
PRIMEIRA MULHER – Você quer me matar.
SEGUNDA MULHER – Morra. É isso mesmo. Infelizmente, acho que você não é capaz
disso. É só um jeito de falar pra você. Só um jeito de falar, nada de mais. Você seria incapaz
de morrer, assim, por nós, por mim. Para você o amor é uma distração, um jogo, é só
brincadeira, mais nada. 72
O processo circular conduz a um dilema sem possibilidade de rompimento
ou evolução, um dilema trágico diferente do que costuma acontecer nas trajetórias
de ação progressivas, nas quais o personagem segue da ignorância para a luz. Se a
Segunda Mulher insistir em romper este círculo, ela não deverá sair inteira do jogo.
Como resgate pelo rompimento da série e consequente conquista da sua liberdade,
a Primeira Mulher exige algo que as lança em novo círculo de repetição e de
destruição.
SEGUNDA MULHER – Primeiro, você tem que me devolver tudo o que é meu.
PRIMEIRA MULHER – O que é seu?
SEGUNDA MULHER – É. Senão, não vou deixar você. PRIMEIRA MULHER – O que é seu?
SEGUNDA MULHER – Tudo que está aí (aponta o peito da Primeira Mulher) que é meu.
PRIMEIRA MULHER – Onde?
SEGUNDA MULHER – (Aproxima-se da outra, coloca a mão em seu peito) Aqui. Tudo
o que você guarda em você... De mim... Esta parte de mim... Em você... Que eu deixei
aqui... Quero que você me devolva antes... Que a gente se afaste uma da outra... Se você
não me devolver isso eu não vou te deixar. 73
A exigência de devolução do que pertence a uma delas pelo motivo da
separação seria apenas dramático, se o pedido não se dirigisse a algo intangível, de
impossível devolução, que as lança em nova série de acusações sem resultado.
Como efeito de linguagem, a afirmação aparentemente banal (“Se você não me
devolver isso, eu não vou te deixar...”) remete à constatação da Mulher em
"Divórcio" da ausência de amor como motivo da separação, outro fato óbvio que
soa absurdo no contexto da cena e provoca a estranheza no banal.
72 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 11 (tradução nossa) p. 11
73 Ibidem. p. 12
54
No Ensaio Sobre o Trágico, Peter Szondi situa como modo de operação do
trágico o aniquilamento dialético consumado a partir da unidade dos opostos, ou da
transformação de algo em seu oposto. "Só é trágico o declínio de algo que não pode
declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável. Pois a contradição
trágica não pode ser suprimida numa esfera de ordem superior - seja imanente ou
transcendente."74 Não seria trágico o objeto de uma contradição que pudesse ser
resolvida de outra forma. Escaparia para outra manifestação, como a comédia, ou
seria ultrapassada pela crença, por exemplo. Em "A Parte de Mim", a exigência da
Segunda Mulher da devolução de objetos e valores materiais, a acusação de uma
infidelidade ou algum compromisso moral quebrado pela outra, ainda que usasse
da mesma violência, não produziria nada próximo a uma ferida incurável. A
condição que ela impõe da devolução de uma parte sua que estaria na outra está
mais próxima de uma contradição trágica.
Szondi lembra também que a ação se torna trágica quando o sistema falha
em retornar a si mesmo e a circularidade se torna espiral. Esse movimento de um
sistema complexo seria encontrado nas tramas trágicas, como em Édipo Rei.
Proporcionalmente, o gesto impotente e violento de querer tirar do peito da Segunda
Mulher a parte de si que ela estaria levando, numa insistência em reivindicar o
impossível, traduz em ação uma circularidade interrompida por um movimento em
espiral, que leva a cena para outro lugar, para fora do palco, em um desfecho sem
solução. As feridas incuráveis do trágico cotidiano podem se apresentar sob um
aspecto banal, no qual a circularidade é um elemento constante. Nesta cena, a
partilha de bens imateriais pretendida pela Primeira Mulher lança as duas em nova
e repetitiva discussão que levará a cena a uma interrupção in media res, marcada
pelo black-out.
2.3.
Dinheiro
A cena se inicia com uma despedida aparentemente corriqueira. O Homem
veste seu paletó, seguido por uma Mulher usando um robe sobre uma camisola. Eles
74 SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p.85.
55
comentam a respeito da finalização das obras de um templo, que estariam sob a
responsabilidade do Homem. Ele usa um crucifixo e, no desenrolar da cena,
percebe-se de que se trata de um padre, ou pastor. A Mulher é uma prostituta com
quem o Homem mantém relações há cerca de sete anos, de acordo com ela. Neste
dia, em meio à banalidade dos comentários a respeito das dificuldades burocráticas
de execução de obras em velhas igrejas, ele joga a notícia que deflagra o conflito
da cena, aparentando um tom de normalidade:
HOMEM - Eu queria te dizer uma coisa... Eu acho que não vou mais voltar... Não vou
mais poder vir aqui te ver... É isso... Essa é a última vez que nós vamos nos ver, eu e você...
Pelo menos, nessas circunstancias. 75
O Homem justifica sua evasão por ter encontrado alguém, uma mulher, com
quem estabeleceu relações aparentemente de outro tipo daquelas que o trazem ali.
Envolveu-se com esta nova mulher e decidiu que a melhor coisa a fazer seria se
afastar da outra. Diante do espanto da Mulher, ele prossegue em sua explicação
aparentemente lógica. Decidiu indenizá-la por esta "aposentadoria" súbita das
relações entre eles com uma soma de dinheiro, que ele calcula como equivalente a
dez anos de pagamentos semanais. Atônita, a Mulher parece dividida entre concluir
que tudo se trata de um deboche do Homem, ou simplesmente se ofender com a
proposta. Para ela, evidentemente, não se trata de uma questão financeira. Há anos
não cobra nada nas visitas dele, apesar das tentativas que o Homem afirma ter feito
de continuar pagando pela companhia. Onde está a verdade? Quem não percebeu o
que nestes anos? A cena deixa a dubiedade se instalar.
MULHER - Eu que pensei que você seria a história mais bonita da minha vida... Minha
única história com um homem só pra mim... Para o resto da minha vida... A única relação
estável que eu tive... Sou burra... Inventei essa história pra mim...
HOMEM - Desculpa. Eu não entendi que a sua ligação comigo era importante. Achei que
fosse uma relação comum.
MULHER - Idiota.
HOMEM - Ou então, entendi o que eu quis entender, o que era mais conveniente pra mim!
É bem possível. Eu sinto muito. 76
75 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 41 (tradução
nossa)
76 Ibidem. p. 45
56
O Homem segue ainda com sua argumentação objetiva, em contraponto à
crescente carga emotiva da Mulher. O acerto de contas que ele pretendia fazer entre
freguês e prestadora de serviço se torna um balanço forçado da experiência que,
embora vivida em comum, se revela distinta para cada um. A distância até a porta
de saída não pode mais ser percorrida por uma simples caminhada como ele
pretendia. A tentativa do Homem de banalizar a despedida e escapar através de um
acordo financeiro funciona como uma apresentação do protagonista desta cena. Aos
olhos da Mulher, ele comete uma traição e covardia.
O trágico contemporâneo não conta com a presença do herói. O homem
comum que toma o seu lugar não pode receber esse título apenas por protagonizar
a narrativa. Entre o homem comum, apresentado no palco depois do Iluminismo, e
o personagem com as características do herói, há diferenças de estatura. Sarrazac
aproxima a figura do homem comum do todo homem (Jaderman) dos autos
medievais. Ou como no texto de Sartre no final de As Vozes. "Um homem inteiro
feito de todos os homens e que lhes são todos valiosos e que vale não importa
quem."77 Refletindo sobre o personagem sem qualidades78 que habita o palco
contemporâneo, Sarrazac evoca o devir impessoal do personagem e o nomeia como
o Impersonagem.
O Impersonagem é aberto a todas as virtualidades. Ele é transpessoal. Ele acumula
máscaras sobre seu rosto. O homem na perda total da sua identidade pessoal tal é a marca
do trágico moderno. (...) Nem herói e nem mesmo personagem agindo (prattontes), a figura
trágica moderna não combate, não age, não decide. Ela se submete. Quanto mais ela se
esforça em ser, mais se torna mártir, testemunha (etimologia é a mesma). Testemunha de si
mesma e de seu próprio sofrimento. Trágico da "Paixão do Homem", diria Mallarmé.79
Em "Dinheiro", a súbita tentativa de partida do Homem revela para a Mulher
um personagem que a surpreende, apesar da longa convivência. E ele também
transmite a impressão de não saber ou não ter a dimensão do que a sua revelação
provoca. Seus contornos são borrados, difícil decidir o que ele sente ou pensa. É
um personagem que tenta agir, tenta sair de uma situação, mas logo fica claro que
não conseguirá.
O Homem destaca sua condição de religioso para justificar a atitude moral
que se sente obrigado a tomar. Ela, por sua vez, sabe que não tem escolha a não ser
77 SARTRE, Jean Paul. As Palavras. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. 78 Com referência ao romance de Robert Musil: O homem sem qualidades. 79 SARRAZAC, Jean Pierre. “Sete observações sobre um Trágico Moderno”. p. 4
57
deixar que ele se afaste. Mas na manifestação de culpa do Homem pela situação,
ela percebe a sua irresolução e vê a possibilidade da despedida não acontecer de
forma irreversível. Como compensação, a Mulher exige algo que o Homem
cegamente se compromete a conceder, sem saber do que se trata. No final da cena,
acontece uma improvável união entre esses dois personagens com desejos
irreconciliáveis em direção a uma possibilidade de conciliação.
HOMEM - Eu quero assumir minha responsabilidade... Mas não sei como.
MULHER - Me dê alguma coisa. Uma coisa só minha.
HOMEM - O que?
MULHER - Me dê tempo. Passe um tempo comigo. Venha comer na minha casa. Vou
fazer comida pra você todas as noites da semana, fora os períodos de férias escolares. Só
haverá isso entre nós... Nada de contato físico... Assim você não precisa ficar culpado em
relação a sua outra mulher. 80
Ela perde a clareza que a indignação emprestava à sua personagem e se
aproxima do Homem em seus contornos trágicos despersonalizados neste pedido.
Os resultados torturantes dessa tentativa de conciliação são potencializados na
última réplica da mulher, a respeito de quando e de quanto tempo duraria tal acordo.
MULHER - A partir de amanhã. Para o resto da vida...
No desfecho da cena, as luzes caem sobre o homem silencioso e imobilizado
diante dessa perspectiva. O Homem, congelado, incapaz de avançar para a saída do
apartamento, evidencia o seu pânico pelo potencial acirramento dos conflitos da
relação, antes espontânea, agora regrada pelo estranho acordo entre dois
impersonagens hesitantes, comprometidos com sua tragédia cotidiana.
80 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 10 (tradução nossa) p. 46
58
2.4.
Chaves
A mais curta, e a última, das cenas em torno do tema "Despedida" abre com
o foco sobre um casal sentado à mesa, em silencio. A rubrica sustenta que eles
parecem entediados. Não comem, não há nada sobre a mesa, não se olham.
Subitamente, um ruído de chaves abrindo a fechadura os surpreende. O Homem não
imagina quem pode estar entrando na casa deles com chaves. Imediatamente, surge
o Homem Com as Chaves e cumprimenta a Mulher, calmamente. Ela retribui o
cumprimento e o apresenta ao Homem sentado ao seu lado. O recém-chegado é seu
marido, ou melhor, seu ex-marido. O Homem reage com irritação à entrada do
outro, lembrando a partida dele há dez anos sem dar nenhuma explicação à Mulher.
Suspeita que haja algo entre o ex-casal de que ele não esteja a par. A Mulher
assegura, sem muita vontade, que não o viu nunca mais depois que ele partiu. O
Homem Com as Chaves ignora totalmente o Homem sentado. Atravessa-o com o
olhar como se não existisse e se dirige apenas à Mulher. De modo direto, revela o
objetivo de sua vinda.
HOMEM COM AS CHAVES - Eu queria me desculpar. Há dez anos, quando eu saí de
casa, esqueci de dizer uma coisa pra você, uma coisa importante... Que depois eu lamentei
não ter dito... (Um tempo) Até logo. 81
Surpresa, a Mulher agradece a intenção e retribui a despedida. Dito isso, o
Homem Com as Chaves vira as costas e sai. O Homem, tornado espectador da cena,
protesta contra o que acaba de presenciar, reforçando uma inútil demanda por uma
atitude de bom senso por parte da Mulher. Ele parece obstinado em interpretar as
ações dos outros dois personagens sob o viés de uma cotidianidade, rompida pela
entrada do Homem com as Chaves e sua inusitada despedida com atraso de dez
anos. Indignado, o Homem protesta contra o fato de que o outro partiu levando as
chaves, as chaves da sua casa. A Mulher, que ainda não se recuperou da visita, ou
do sentido que isso possa ter na sua vida, está evidentemente em outro registro. Ao
81 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 10 (tradução
nossa) p. 48
59
tentar replicar as preocupações comezinhas do seu parceiro, ela só consegue dizer:
“Mas antes... Eram as chaves da casa dele”.
Das quatro cenas que evoluem em torno do tema da Despedida, esta é a mais
estática. O Homem e a Mulher não se movem da mesa vazia, reagem debilmente à
entrada do outro e assistem à sua partida sem ação. Se há algo que se passa aí, está
marcado pela não ação. Essa impressão se acentua ainda mais com a sugestão de
movimento propiciada pela entrada do Homem Com as Chaves. O trágico
contemporâneo, além de prescindir do herói, parece abrir mão de uma importante
característica do drama, a ação. Mesmo que Joël Pommerat assuma fazer um teatro
de ação, sua concepção de ação não segue os moldes aristotélicos. Nas suas peças
a ação não surge como imitação da realidade; ela pode prescindir de relações lógicas
ou causais e não mantém necessariamente o sentido de inicio, meio e fim.
Examinando seus comentários a esse respeito, parece que o sentido de ação no
teatro de Pommerat está ligado a uma mudança na hierarquia convencional dos
elementos da composição teatral.
Considero todos os elementos concretos em cena (a fala faz parte destes elementos
concretos) como as palavras do poema teatral. De fato, entre um autor como eu me tornei
e um diretor de teatro, é uma questão de desenvolvimento do gesto. (...) Mais que realista,
faço um teatro de ação, como já formulei, mais do que um teatro de texto, de poesia textual.
Este teatro, me parece, vale pelo que ele coloca em jogo entre os indivíduos, o que ele
sugere num plano relacional e existencial, mais do que pelo que ele diz, o que ele formula.
São formuladas muitas banalidades. E o estilo da escrita não é cuidado nem interessante e,
muito menos, original. É um teatro realista que se poderia quase classificar como um teatro
de situação, mas prefiro o termo teatro de ação, é mais ambíguo e divertido. Quer dizer que
a ação prevalece sobre a palavra. É um teatro simples e compreensível com uma psicologia relativamente concreta. Sem pano de fundo.82
Na Poética, Aristóteles define o drama como representação da ação, e os
dramaturgos perseguem por muito tempo essa regra. A tragédia seria imitação de
uma ação completa com princípio, meio e fim. A ação deveria comportar certa
extensão com o objetivo de promover a catarse da plateia. A partir do final do século
XIX, há um movimento de negação da ação no centro da crise do drama. As peças
de Tchekhov, por exemplo, são marcadas pela imobilidade em sua construção.
Embrionária nas peças tableaux de Diderot, a ideia de um teatro estático, sugerida
por Maerterlinck, supõe uma crítica à progressão dramática habitual e à
82 Joël Pommerat: une démarche qui fait oeuvre. Entrevista de Joël Pommerat a Marion Boudier e
Guillermo Pisani. emJeu : revue de théâtre, n° 127, (2) 2008, p. 150-157 (tradução nossa)
60
representação das relações evolutivas inter-humanas. Nas suas peças, o aparente
vazio de ações cotidianas cria um espaço de emergência do trágico. “Seria exagero
dizer que o verdadeiro elemento trágico, normal, profundamente enraizado e
universal, que o verdadeiro elemento trágico da vida só começa quando as ditas
aventuras, dores e perigos desaparecem?" 83
Maeterlinck estabelece que o elemento trágico não emerge das aventuras
extraordinárias, como tentaram os autores naturalistas e românticos antes dele, mas
da vida comum. Ele procura valorizar em suas peças a contenção, o destino, a
fatalidade, o silêncio, o mistério, abrindo mão da grandiosidade, tumulto, perigo e
da violência atribuídos convencionalmente às tramas trágicas. Seu teatro quer
encantar com o ato simples e obscuro de viver, seguindo os passos incertos do ser
na busca infinita de verdade e beleza. Para ele, não há luta contra a fatalidade, o
destino dos homens é a morte e, em suas peças, ela domina o palco. Porém, a morte
não acontece como ação, mas ela responde pela situação dos personagens nesse
teatro estático.
Em Interior, de Maerterlinck, um Velho e um Estrangeiro encontram uma
moça afogada no rio. Juntos vêm dar a notícia à família, que, inocentemente, passa
a noite à beira do fogo na sala da casa. Antes de entrar, os dois homens observam a
movimentação banal pelas janelas. Alguém borda, uma menina fala, o pai pede
silencio para não acordar o bebê, a vida cotidiana em seus aspectos mais simples.
O Velho aprecia os movimentos dos vivos antes do choque com a morte. Evitando
o momento de lhes contar sobre o afogamento, o Velho descreve os sentimentos
que a obrigação lhe provoca. A presença da morte aguça o olhar do personagem
para a cena banal da convivência familiar.
VELHO - Ela teria vivido como vivem as outras... Ela teria dito até a morte: Senhor,
senhora, vai chover pela manhã ou então: vamos almoçar, seremos treze à mesa ou ainda:
Os frutos ainda não amadureceram. Elas falam sorrindo de flores que caíram e choram na
penumbra... Parece que as vejo pela primeira vez... É preciso juntar alguma coisa à vida
cotidiana para compreendê-la. Elas estão junto de nós, nossos olhos não as deixam e só nos
apercebemos delas quando elas partem para sempre (...) 84
83MARTERLINCK, Maurice. apud LAMBROPOULOS, Vassilis. The Tragic Idea. Londres:
Duckwoth, 2006, p. 85. (tradução nossa) 84 MAETERLINCK, Maurice. Interior . Disponível em:
https://teatroescolasesc.files.wordpress.com/2011/12/interior.pdf
61
Neste universo inerte, ainda mais assumidamente do que nas peças de
Tchekhov, nada acontece. Não há antagonismo de forças ou desejos em luta. A
colisão é inteiramente negada. O caráter trágico de suas peças não é material, como
no Naturalismo, nem psicológico, como no Simbolismo. É ontológico, na medida
em que aborda a tragédia plena do cotidiano do ser comum. O trágico cotidiano
prescinde da colisão dramática que levaria ao desfecho e encerraria o sentido da
peça. Os personagens de Maeterlinck se movem na terrível quietude da felicidade.
Dotando o cotidiano comum de solenidade, seu teatro se dedica a revelar o que há
de impressionante e substancial no simples fato de existir. Nas luzes baixas do
crepúsculo, a vida pode ser vista e descrita sem alarde, o ser se abandona a um
estado meditativo como se estivesse sozinho diante do universo. A grandeza desse
trágico não reside nas ações, mas nas palavras, e as palavras são banais. Essa tensão
entre o prosaico e o intenso está presente nas cenas de A Reunificação das Duas
Coreias, e parece ser uma busca consciente do autor, um dos objetivos de sua
pesquisa.
Eu procuro reconstruir a intensidade do tempo que passa, segundo após segundo, como nos
momentos mais essenciais da nossa vida, durante uma experiência que nos confronta a nós
mesmos mais profundamente. Ao mesmo tempo, escolho situações ordinárias e procuro no
interior deste quadro ordinário a tensão mais forte, a intensidade maior.85
O contraste entre intensidade e banalidade é uma das fontes da perturbação,
a estranheza presente nessas cenas. A banalidade das palavras no diálogo da Mulher
e do Homem em Chaves, além do modo de falar morno, quase cansado da Mulher,
acentua o sentimento de solidão desses personagens na companhia um do outro,
mas não esconde a intensidade do que acontece ali. A presença do Homem Com as
Chaves e sua despedida retardada interrompe a cena estática do que parece ser a
vida cotidiana daqueles dois.
MULHER - Sabe. A gente tem que entender. Deve ser difícil pra ele aceitar que aqui não
é mais a casa dele.
HOMEM - Que? Eu não acredito. O que é que eu tenho que entender? O cara entra assim,
como se fosse a casa dele, depois de dez anos. E vai embora com as chaves... Da minha
casa... É louco. (Ouve-se a porta se fechar) Ele foi embora...
MULHER - Da sua casa... E um pouco a casa dele também...
HOMEM - Que??
85POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées - Dossier d´Acompagnement. p. 31
(tradução nossa)
62
MULHER - Na cabeça dele... Quer dizer... 86
O sentimento de ameaça pela interrupção aumenta no desfecho da cena, no
qual os dois em silencio ouvem rodar as chaves na fechadura, assustados. Temendo
a volta do intruso, talvez, ou a possibilidade de que ele os deixe de vez ali, sozinhos,
trancados na companhia do outro.
86 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. p. 10 (tradução
nossa) p. 49
63
3.
Morte
Aquilo que Bertold Brecht certa vez disse a respeito do boxe,i.e., que esse esporte não
existiria sem a possibilidade do knockout, aplica-se, mutatis mutandis, ao gênero da
tragédia: não há tragédia sem a presença ameaçadora da morte.
Hans Ulrich Gumbrecht
Gumbrecht, no ensaio Os Lugares do Trágico, lembra que as condições para
o surgimento da tragédia se caracterizam por uma série de negações. A tragédia só
é possível se o herói não tem a possibilidade de se desculpar pelo erro cometido, ou
pela quebra da ordem objetiva, alegando um engano. Também são excluídas da
tragédia as desculpas fundadas em princípios éticos e as metas de redenção. Jesus
Cristo e os mártires cristãos sofrem e morrem e não se tornam por isso personagens
trágicos, seus sacrifícios têm como objetivo a redenção dos pecados dos homens. O
herói trágico não pode ter a possibilidade de se proteger do perigo, ou da morte,
provenientes do seu erro. A morte é condição necessária da tragédia, embora não
seja condição suficiente.
No drama moderno e contemporâneo não se pode falar em heróis, e as
personagens não costumam se confrontar com os perigos da morte como os heróis
trágicos. A morte tem presença indireta, ameaçadora, como na cena Guerra, que
será analisada neste capítulo; ou cria uma atmosfera sombria, como nos dramas de
Maeterlinck, nos quais os personagens parecem estranhamente atraídos pela ideia
da morte.
Gumbrecht descreve a sociedade contemporânea como tragicofóbica, na
esfera pública, apontando para o esforço geral e institucionalizado de proteger os
indivíduos da ideia da própria morte. Enquanto isso, na esfera privada, classifica-a
tragicofílica, e o fascínio pelo evento da morte não cessa de se manifestar. O
acidente na estrada que atrai os olhares dos passantes; os artistas que se arriscam
em números mortais, como as motocicletas no Globo da Morte ou os números de
trapézio circense; as mortes ficcionais, pacíficas ou sangrentas, que os espectadores
assistem impressionados na TV, no cinema e também no teatro. A morte alheia
presenciada como espetáculo e mantida a uma distância segura se torna objeto de
64
curiosidade. Vítimas de catástrofes, terrorismo e violência estão entre as que
exercem maior fascínio. Citando a convocação do filósofo Martin Heidegger para
que seus leitores encarem a própria morte com olhos abertos, Gumbrecht questiona
o valor da atitude dos intelectuais ao criticar a atração do público pela morte como
espetáculo. Por que criticar os espectadores que evitam pensar na própria morte, ao
mesmo tempo que são capazes de apreciar a visão da morte dos outros no palco ou
nas telas?
A razão desse desfrute seria ela de cunho altamente - ou puramente - estético? A saber que,
ainda mais que os espectadores de Sófocles, estamos vivendo num espaço público e numa
esfera privada onde absolutamente tudo é suposto com sendo "negociável", o que significa
que tudo é suposto como sendo contingente, ou seja, nem necessário, nem impossível, e
que o sentimento ilimitado de contingência (o que, do angulo da nossa paz de espírito
pessoal, não podemos nunca apreciar suficientemente) traduz-se num desejo por algo
objetivo, em um desejo por formas pertinentes, não contingentes, em um desejo por tudo
que as boas tragédias nos ofereceram (...) 87
Em A Reunificação das Duas Coreias, a morte surge como tema em algumas
cenas. O conforto, ou desconforto, que se possa obter da visão ou da sugestão da
morte nas cenas cria um acesso para que o espectador possa desta forma encará-la.
Se não a sua própria morte, a do outro. Se não a morte visualmente impressionante
dos filmes, que leva ao choque, a ideia da morte, a ameaça, a morte humanizada
que possibilita a reflexão. A morte como uma “experiência humana digna de ser
assistida em um espaço e um tempo”88, como prevê a definição geral de Paul
Woodruff da arte teatral. A peça abre assim um espaço e um tempo para uma
experiência que não seria possível de outro modo. Falando dos objetivos do seu
trabalho teatral, o diretor e autor Joël Pommerat prevê a construção desse tempo e
espaço que, apresentando experiências humanas, possibilite uma ligação entre os
presentes, espectadores e artistas.
Não creio que o teatro seja o lugar ideal para a expressão de bons sentimentos. O teatro é
um lugar possível de interrogação e de experiência do humano. Não um lugar onde vamos
procurar a confirmação do que já sabemos, mas um lugar dos possíveis, de recolocar em
questão o que nos parece certo. Um lugar onde nós não temos medo de nos machucar,
porque é um lugar de simulacro e as feridas que nos faremos aqui não tem nada em comum
com as que possamos sofrer na vida fora do teatro. Não se pode jamais confundir arte e
vida. Quando trabalho, procuro colocar o espectador num tempo preciso, concreto. Um tempo que possa reunir espectadores e atores num certo lugar. Um tempo capaz de ligar
87 ROSENFIELD, Denis L. (org) Filosofia & Literatura: o trágico. GUMBRECHT, Hans Ulrich.
Os Lugares da Tragédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 19 . 88WOODRUFF, Paul. The Necessity of Theater. New York: Oxford University Press, 2008. p 18.
65
fortemente os seres uns aos outros como acontece, por exemplo, com um grupo de pessoas
diante de um perigo comum.89
A morte aparece nas duas cenas comentadas a seguir como tema secundário,
entremeada às microtramas que tratam das questões dos vivos no quadro da
cotidianidade. Atingindo as personagens silenciosas e comuns em eventos sem
conexões com passado ou futuro, entre os microconflitos e a subjetivação que os
cercam, a morte se apresenta sem solenidade. Ela participa como mais um elemento
do infratrágico dessas cenas coloquiais que tratam, por esse prisma, das relações de
amor. “Não há ubris trágica nesse teatro: os personagens não fogem quando diante
da catástrofe; passivos e inocentes, são pouco a pouco tomados, como se é tomado
pelo frio, pela fatalidade que os golpeia”.90
Em Faxina, duas arrumadeiras encontram o corpo de um enforcado durante
uma queda de luz e reconhecem o marido de uma terceira empregada, que vivia
dificuldades no casamento. Em outra cena envolvendo relações familiares, Guerra,
a mãe se confronta com o marido depois de saber que o filho se alistou. Nas duas
cenas a morte age como motor subterrâneo dos acontecimentos no palco, sem com
isso tomar o centro da ação.
3.1.
Faxina
Numa espécie de armazém, a Primeira Faxineira e a Segunda Faxineira
esfregam o chão, enquanto se queixam da escuridão causada por uma nova queda
de energia. Até que a Segunda Faxineira nota o corpo do enforcado pendurado no
teto e, assustada, alerta a Primeira Faxineira. As mulheres logo reconhecem o
morto: é o marido de Corinne, outra empregada do armazém. Antes que elas
possam tomar alguma providência, surge Corinne com seu material de limpeza e
acende um cigarro. Irônica, se declara indiferente a uma possível demissão, por ter
89 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées - Dossier d´Acompagnement. Paris:
Odeon - Théâtre de l'Europe, 2013. 90SARRAZAC, Jean Pierre. “Sete observações sobre um Trágico Moderno”. Pitágoras 500, vol 4,
abril 2013. p. 14
66
uma pensão alimentar a receber, em breve. Ela não percebe o corpo, por trás e acima
da sua cabeça. As duas mulheres tentam tirá-la dali; ela resiste. Relata o espanto do
marido na véspera, quando o juiz declarou a soma que ele deveria pagar como
pensão. Fumando parada sob o cadáver, ela confessa seus planos às colegas. Apesar
do marido não acreditar, ela pretende levar o divórcio até o final, mas apenas como
uma estratégia para que ele se transforme. Acredita que, desta forma, ele vai evoluir,
mudar de atitude e tornar a relação possível novamente. Diante do choque das outras
duas, Corinne parece confiante, sonhadora.
CORINNE - Nós vamos refazer nossa vida, mas de outro jeito... Não como é hoje... Vai
ser como no começo... Como a gente era antes... Quando ele ainda não era assim... Eu sei que as coisas vão acontecer desse jeito... Então, tudo bem passar seis meses, um ano,
separados, divorciados... Ele é o meu Patrice, meu grande amor e eu sei que eu sou o seu
grande amor... 91
O relato inesperado da estratégia paralisa a tentativa das duas colegas de a
levarem para fora dali. As duas argumentam com Corinne, que segue alheia ao
corpo pendurado, recordando a certeza que ela demonstrava em querer terminar o
casamento. Corinne, irredutível, declara que aquele homem é seu amor e será seu.
O desconhecimento do suicídio do marido; a presença do cadáver; o tom delirante
do seu plano de divórcio e reconciliação; a hesitação das duas mulheres entre agir
ou se omitir são elementos que se sobrepõem e constroem a ironia trágica da cena.
A ironia é um conceito que surge na antiguidade. No século V AC, na obra
de Aristófanes, a palavra eiron aparece com o sentido de ataque verbal para
ridicularizar um adversário, particularmente através do discurso. Trata-se de um
comportamento malicioso, agressivo, distante da ideia de diálogo e reflexão ligada
à ironia que surge no século V AC, com Sócrates. O filósofo grego costuma
esconder intencionalmente seu conhecimento sobre um tema para provar ao
ouvinte, num jogo dialético, a validade dos seus argumentos. Ao contrário do eiron
de Aristófanes, que ridiculariza o oponente, Sócrates age com urbanidade na busca
da verdade.
A ironia trágica tem uma definição própria. Analisando a peça Édipo rei, de
Sófocles, no Ensaio Sobre o Trágico, Peter Szondi define a ironia trágica como
unidade de salvação e aniquilamento. “Não é o aniquilamento que é trágico, mas o
91 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p.
15
67
fato da salvação tornar-se aniquilamento; não é no declínio do herói que se cumpre
a tragicidade, mas no fato do homem sucumbir no caminho que tomou justamente
para fugir da ruína”.92
Em "Faxina", Corinne se torna uma espécie de heroína trágico-irônica. Pede
o divórcio para corrigir o comportamento do marido e tentar salvar seu casamento,
mas sua ação leva à morte do marido. Ela se torna viúva, quando agia na certeza de
casar-se novamente. A presença do cadáver, oculto apenas para ela, parece diminuir
o peso da morte na medida em que a cena avança. Corinne conta seus planos para
manipular o marido com seu plano de divórcio; as colegas se referem a ele como
um cretino. O defunto é tratado como alguém que está vivo. O espectador também
parece se habituar à presença do corpo. Não se trata da morte de um herói, ou de
uma morte sentida e chorada pelos outros. A cena potencialmente trágica do
encontro do corpo do marido suicida ganha humor sombrio. Ao mesmo tempo que
a morte tem a presença diminuída, a leitura do comportamento dos personagens não
deixa de passar por ela. Se não fosse a presença do enforcado, a conversa das
mulheres não passaria de fofoca banal de três colegas de trabalho. A fala de Corinne
soaria mais como manipulação infantil do que como um delírio amoroso em tons
trágicos.
CORINNE - O que eu imagino mesmo, eu sei que é bobo, mas acho que depois que a gente
se reencontrar e que ele mudar, então a gente vai se casar novamente... A gente vai se casar
com uma festa ainda maior que a primeira vez, porque o amor é ainda mais bonito quando
é difícil, o amor é muito mais bonito quando é complicado, passa dificuldade... Ele vai me
pedir e a gente vai casar... (A Segunda Mulher recua um pouco e olha longa e tragicamente
o corpo pendurado) Mas, olha... Tem que ser nas minhas condições, não nas dele... E não
vai ser porque eu decidi isso, mas porque ele realmente mudou... 93
George Steiner94 define a grandeza como um dos atributos do trágico. Na
doutrina clássica apenas os grandes, os nobres, têm direito a um destino trágico. Os
pequenos, as pessoas comuns, só podem esperar um destino medíocre. Para ele, os
personagens de Tchekhov, por mais complexos e interessantes que sejam, estão
longe do trágico. Steiner não considera a possibilidade de um trágico do medíocre,
extraído das vidas comuns, no qual os infortúnios vividos por personagens sem
grandes atributos, riquezas ou talentos não aterrorizam como nas tragédias, mas
92 SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 89. 93 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 15 94 STEINER, George. A Morte da Tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2006.
68
permitem uma proximidade com o espectador propiciando outro tipo de
envolvimento. O drama moderno e o drama contemporâneo demonstram a riqueza
dessa possibilidade.
Tchekhov trata com irreverência estas e outras regras do trágico em suas
peças. Mesmo os personagens que possuem alguma possibilidade de grandeza de
espírito ou posição social se diluem no humor, na ironia ou no grotesco. A morte é
tratada com distância, observada pelo autor por diferentes ângulos, normalmente
evitando o apelo emocional. Em A Gaivota (que o próprio autor classificou como
"uma comédia, três papéis de mulher, seis para homens, quatro atos, uma paisagem
("vista para um lago), muitas conversas sobre a literatura, um pouco de ação, um
toque de amor"95) o filho da atriz Arkadina, Kostantin, um rapaz problemático que
tenta ser dramaturgo, se aproxima da morte durante a peça de maneira hesitante. No
segundo ato, após a tentativa frustrada de mostrar uma cena de sua autoria a sua
mãe e alguns convidados, ele pega a arma e mata uma gaivota. Declara à sua
namorada, Nina, que um dia se matará desta forma. Depois, no terceiro ato,
Kostantin surge com um curativo na cabeça. Ele se feriu com a arma, talvez
tentando cumprir sua promessa. O ambiente decadente da casa parece minar aos
poucos as forças do jovem confuso e apático, um anti-herói em sua trajetória de
insucessos assumidos. Após a última visita de Nina, que se torna atriz como a mãe
de Kostia, ele enfim cumpre a promessa feita no início. Desta vez, o ensaio de morte
se concretiza no último instante do último ato. A peça termina com o tio tentando
esconder da mãe que o tiro que eles acabam de ouvir na sala matou Kostantin. A
morte acontece como nas tragédias gregas, fora de cena, mas sem honra ou
coragem, pequena, por um tiro ensaiado a esmo, anunciado e, enfim, disparado
quando é tarde demais para o personagem suicida influenciar a trama. A peça acaba
e a morte não reverbera no palco, apenas dá ponto final a uma sequencia de ações
ordinárias daqueles personagens comuns. Porém, o tempo todo ela rondara a cena.
Em "Faxina" acontece o oposto de A Gaivota, com um efeito semelhante. A
morte ronda o palco, mas acontece antes do início da cena. Funciona como uma
espécie de catástrofe inaugural, em oposição à catástrofe da teoria aristotélica que
precipita os acontecimentos para o desfecho em uma progressão dramática linear.
Jean Pierre Sarrazac aponta que depois da crise do drama nos anos 1880 surge o
95 TCHEKHOV. Anton. A Gaivota. São Paulo: EDUSP, 2013.
69
que ele chama de trágico do drama-da-vida. Enquanto o drama-na-vida privilegia
o tempo presente e segue o desenrolar natural do destino dos personagens, a
passagem da felicidade à infelicidade ou o inverso, o drama-da-vida ignora a
progressão convencional.
O drama da vida se faz por uma mudança profunda de medida do drama, isto é, de sua
amplitude - ele não abarca mais um episódio ("um dia fatal", diria Sófocles), mas toda uma vida - e de seu ritmo interno, feito de interrupções, de saltos, de repetições, de fragmentação
moduladas.96
O trágico do drama-da-vida retoma o que Schopenhauer chama de a
tragédia universalmente humana97, expressão que parece antecipar as obras de
Tchekhov, Ibsen e Maerterlinck na virada do século XX. Para Schopenhauer, a
existência humana é uma fonte de sofrimentos. As vidas individuais correspondem
a pequenas tragédias que terminam sempre da mesma forma: a morte. Os seres
humanos são levados incessantemente, pela vontade, à satisfação dos desejos e à
consequente frustração. A dor é a essência do mundo. A visão pessimista de
Schopenhauer exerce grande influência sobre os escritores do começo do século,
entre os quais está Tchekhov. Na ausência da colisão e progressão dramática
aristotélica-hegeliana levando à catástrofe final, o drama-da-vida parece agir sob o
efeito de uma catástrofe inaugural, isto é, o simples fato de nascer e ser lançado no
mundo.
Steiner afirma que só pode levar o nome de tragédia a obra dramática, ou
melhor, "a prova dramática de uma visão de realidade na qual o homem é levado a
ser um visitante indesejável no mundo"98. Os motivos de seu estranhamento, da sua
expulsão (em alemão, Unheimlichkeit - aquele que é impelido para fora das portas)
podem variar, mas todos os heróis trágicos deveriam projetar na sua trajetória a
conclusão contida na declaração de Sófocles: “melhor jamais ter nascido." 99. Este
critério radical proposto por Steiner para a identificação da tragédia pode fazer
sentido no trágico do drama-da-vida. Lançados ao mundo, os personagens da
tragédia universalmente humana estão associados à representação do “aspecto
96 SARRAZAC, Jean Pierre. Op. cit. p. 13 97 SCHOPENHAUER, Arthur apud SARRAZAC, Jean Pierre. Op. cit. 98 STEINER, George. Op. cit. p. 8. 99 A réplica completa, de Édipo em Colono, é: “Jamais ter nascido é o melhor; mas, tendo visto a
luz do dia, o segundo melhor é voltar para onde veio o mais rápido possível”). SÓFOCLES. Édipo
em Colono. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
70
terrível da vida (...), o sofrimento indizível, a miséria da humanidade, o triunfo do
mal, o reino absoluto do desdém do acaso e da queda irremediável dos justos e dos
inocentes".100 Na insignificância das suas histórias talvez fosse melhor nem ter
nascido. Por outro lado, esta radicalidade parece, de certo modo, atenuada pela
ironia e pelo humor sombrio que despontam na cena.
Quando as duas mulheres encontram o morto no depósito e a Segunda
Faxineira o reconhece, suas reações negam o choque da catástrofe inaugural,
reforçando a banalidade da morte.
SEGUNDA FAXINEIRA - (Aproxima-se do corpo com a lanterna) Quem é esse cara?
Que doido vir fazer isso logo aqui! (Clareia o corpo e descobre sua identidade) Que merda! Cadê a Corinne?
PRIMEIRA FAXINEIRA - Que é que você tá dizendo?
SEGUNDA FAXINEIRA - O cretino. A gente tem que ir telefonar.
A entrada posterior de Corinne, que poderia dar algum peso ao suicídio do
homem, termina por esvaziá-lo. Seu drama íntimo, a ironia daquela paixão súbita
pelo marido que ela decidiu deixar e as reações das colegas passam a conduzir a
ação. A escuridão, na qual estão mergulhadas pela queda de luz no depósito, tanto
impede Corinne de ver o corpo do marido, como deixa as três mulheres na
ociosidade, precipitando a confissão dos projetos delirantes de Corinne sobre o
divórcio. Do ponto de vista das duas colegas, e do espectador, Corinne age às cegas.
Sem que ela saiba ainda, o reencontro que planeja com o marido será, de fato,
impossível, não pelas razões sentimentais que apresenta, mas porque ele morreu,
como todos estão vendo, menos ela. Isso cria uma estranheza na cena e a ironia
cresce na medida em que as duas colegas não conseguem dizer a verdade, se
esforçando antes em fazer com que ela desista do plano delirante e recupere o bom
senso. Só assim, então, seria possível sofrer aquela perda de modo apropriado, isto
é, pouco. O corpo inerte ata as três mulheres a uma cena de ação circular em torno
da morte e do amor.
No final, convocadas pela voz do chefe, as três mulheres saem do depósito
deixando o corpo no mesmo lugar. A cena termina sem que as duas faxineiras
tenham conseguido dar a notícia da morte a Corinne, criando um novo desfecho
sem solução no espetáculo.
100 SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit.
71
3.2.
Guerra
Na cena das faxineiras e do suicida, a morte é o ponto de partida, a catástrofe
inaugural e a notícia da morte que deve ser dada estabelece a tensão entre as
personagens. Em "Guerra", a morte não acontece, está apenas sugerida. A ameaça
de morte contida na notícia de que o filho vai partir para a guerra é o suficiente para
criar a tensão entre três personagens de uma mesma família. A Mulher confronta o
Homem, inconformada com a atitude do rapaz que se alistou. O Homem afirma
estar orgulhoso do engajamento do filho, no que ele defende como uma guerra
essencial e necessária, infelizmente. A defesa e os argumentos do Homem
aumentam a fúria da Mulher, que não o compreende e situa na relação dos dois as
causas dessa atitude.
MULHER - Nunca nada nos separou, nem mesmo nos opôs antes, nenhuma decisão, nunca
uma discórdia, nada, e de repente, isso? Não é possível... Você tem que proteger seu filho,
porque ele é o fruto do nosso amor. 101
O Homem ironiza essa perspectiva e acusa a Mulher de não perceber a
necessidade do filho de ir além. Além? Para a morte? Uniformizado, o filho passa
a cena inteira em silencio, parado, em pé atrás do pai. Quanto mais o casal
argumenta, maior a cisão entre eles. Trata-se de um diálogo de surdos. Uma
pequena guerra é declarada na sala da família.
Nas tragédias clássicas e românticas as guerras fornecem o cenário próprio
para os heróis, nobres ou reis, testarem suas qualidades e enfrentarem seus destinos.
O escritor e dramaturgo francês Beaumarchais, em uma carta escrita no século
XVIII, anuncia o início da retirada destes heróis e nobres da cena.
Que tenho eu, um sujeito de bem de um Estado monárquico do século XVIII, a ver com as
revoluções de Atenas e de Roma? Que interesse verdadeiro posso ter na morte de um tirano
do Peloponeso? No sacrifício de uma jovem princesa de Áulis? (...) A tragédia heroica não
nos toca, a não ser no ponto em que ela se aproxima do gênero sério, apresentando-nos
homens e não reis.102
101 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 61 102SARRAZAC, Jean Pierre. Op. cit. p. 6
72
Com algumas exceções, como o retorno dos personagens heroicos no
período romântico, o homem comum e seu trágico cotidiano passam a ocupar o
palco e isso vale para A Reunificação das Duas Coreias e seus personagens.
Sarrazac acredita que, depois do Século das Luzes, a figura trágica se tornou uma
pura alegoria do homem comum no caminho da vida, à maneira das moralidades
medievais. O trágico moderno é conduzido por personagens sem nome, sem história
e sem identidade, fantasmas sem substancia. O impersonagem, segundo Sarrazac,
vive solitário e errante, entre a humanidade inteira e a “escória onde a vida nos
enfiou”103, como declara o personagem Vladimir, de Esperando Godot.
O impersonagem não pretende espelhar um homem completo, como no
drama tradicional, nem é facetado de forma a demonstrar um ponto de vista do
autor. Ele segue uma terceira via. Ele pode apresentar a aparência de um homem,
mas o autor não se projeta nele e nem quer manipulá-lo. Ele o acompanha em sua
trajetória incerta, que sai do vazio e volta a ele no final do espetáculo. Apesar de
nomeados e de, frequentemente, estarem rodeados por suas famílias, os
impersonagens podem ser encontrados nas peças de Tchekhov, vivendo seus
pequenos dramas ao sabor de acontecimentos sobre os quais não demonstram
nenhum controle. Também estão na obra de Beckett, entre as figuras que parecem
surgir dos escombros do que um dia foi o humano. O pacífico Galy Gay, na peça
Um Homem é Um Homem, de Bertold Brecht, que sai de casa para comprar peixe e
se transforma em outro pelo caminho, Jeraiha Jip, um soldado sanguinário,
transmite em sua trajetória uma forma de desmontagem do personagem
individuado.
Em "Guerra", o filho em seu uniforme militar permanece imóvel durante
toda a cena, escutando a discussão dos pais. O lugar de herói, onde o pai tenta
colocá-lo, é anulado dessa forma. O tema da conversa se desloca da sua partida, e
entra em questão, de modo oblíquo, o amor do casal. A mãe assume um discurso
trágico chamando para si todo o sofrimento e a punição que a guerra produz, ao
mesmo tempo que projeta o conflito maior para a intimidade da relação do casal. O
pai recusa esse deslocamento da questão da guerra para o plano pessoal, mas não
contrapõe com energia a argumentação da mulher. Parece igualmente estático,
numa atitude de recusa sem justificativas convincentes. Enquanto ela se fecha à
103 BECKETT, Samuel. Esperando Godot. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
73
alegada amplitude do gesto do filho em se alistar para a “guerra importante e
infelizmente necessária”, ele não demonstra capacidade de defender a sua atitude
de apoio, ou a intenção de compreender a dor da mulher.
MULHER – Desde quando você não me ama mais?
HOMEM – Você tá falando bobagem.
MULHER – Me responde em vez de se esconder por trás desses teus grandes discursos e
dessa guerra... Você sabe muito bem que se você deixar ele ir embora,isso vai nos destruir...
Mas você vai deixar do mesmo jeito!... Vamos terminar tudo de vez, nós dois, mas poupe
meu filho, eu te suplico...
HOMEM – Eu não quero terminar tudo com você. 104
O trágico cotidiano surge no espaço vazio deixado pela ausência dos grandes
embates interindividuais e históricos. Mesmo nas grandes questões, como a guerra,
ele se volta para o íntimo. Isto não quer dizer que os grandes conflitos históricos
desapareceram, mas que não há em cena personagens grandiosos para encarná-los.
O personagem do militar Verchinin resume este vazio em As Três Irmãs, de
Tchekhov, pouco antes de partir com seu regimento.
VERCHININ – Antes a humanidade vivia em função das guerras, toda a sua existência
era ocupada com marchas, assaltos, vitórias. Agora que isso acabou, ficou um enorme
espaço vazio que ainda não sabemos como preencher. 105
O infratrágico desta cena não está somente na banalidade do que se diz sobre
a questão da guerra. Os personagens parecem defasados com relação à ação, não
estão dentro nem fora do drama, mas se situam ao lado dele, como se o
acompanhassem. As reações surgem em um regime interior e implosivo. O
combustível que alimenta a potência implosiva do infratrágico é o vazio da
existência dos personagens.
HOMEM – Você mede o nosso amor e a vida do nosso filho? Você é horrível.
MULHER – Não, é a guerra que é horrível, suja, como você. Você combate como um
traidor, com a máscara no rosto. Você disfarça sua falta de amor por mim por trás desses
grandes princípios e ideais. Poupe meu filho.
104 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 62 105 TCHEKHOV, Anton. As Três Irmãs. Disponível em: http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/wp-content/uploads/2010/10/Anton-Tchekhov-AS-
TRÊS IRMÃS.pdf p.65
74
HOMEM – É tarde demais. 106
O Homem se retira alegando ter mais o que fazer do que “discutir a ideia de
amor que ela defende”. O filho o segue sem dirigir o olhar à mãe, encerrando a cena
de modo abrupto.
106 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 63
75
4.
Amor
O amor foi inventado como o fogo, a roda, o casamento, a medicina, o fabrico do pão, a
arte erótica chinesa, o computador, o cuidado com o próximo, as heresias, a democracia, o
nazismo, os deuses e as diversas imagens do universo. Nenhum de seus constituintes
afetivos, cognitivos ou conativos é fixo por natureza.
Jurandir Freire Costa
Adoro um amor inventado. Cazuza
O conjunto de cenas do espetáculo A Reunificação das Duas Coreias trata
do amor e suas diversas possibilidades de "invenção". Amor de mãe e filho, casais,
ex-casais, professor e aluno e outras possibilidades surgem no palco. Apesar de
reunidas pelos seus temas secundários (Despedida e Morte) as cenas discutidas
anteriormente também tratavam primordialmente das relações amorosas. O que
diferencia as próximas cenas, escolhidas para finalizar a discussão sobre a peça, é
o modo de explicitação do tema. Elas se constroem diretamente sobre o tema do
amor. Nelas, os personagens estão enredados na invenção amorosa, mergulhados
na criação desta imagem do universo, mutante por natureza. Estes personagens não
lidam com nenhum outro problema. Este foco único guia os outros elementos em
cena para dar corpo a algo que não se presta facilmente a definições.
Torna-se mais clara também a violência nas relações apresentadas,
acelerando a temporalidade das cenas. Comentando as mudanças na medida a partir
da crise do drama, Jean Pierre Sarrazac afirma que além da extensão maior ou
menor das obras (muito longas, como o Caminho de Damasco, ou muito curtas,
como os minidramas de Beckett), haveria também uma mudança na temporalidade
do trágico.
O trágico do drama da vida é um trágico com um pavio que queima lentamente. Nesse
teatro de essência estática, o trágico está presente desde os primeiros instantes da peça e
não faz senão revelar-se progressivamente, no sentido fotográfico da palavra.107
107 SARRAZAC, Jean Pierre. “Sete observações sobre um Trágico Moderno”. Pitágoras 500, vol
4, abril 2013. p. 11
76
As cenas apresentadas nos capítulos anteriores parecem mais próximas
desta temporalidade da revelação, na qual a tragicidade é lentamente percebida,
como os traços de uma foto exposta às soluções reveladoras. Nas cenas reunidas
neste capítulo sob o tema do Amor, o pavio queima mais rapidamente e a
interiorização se alterna às manifestações de desespero, raiva e desolação. Ainda
assim, o trágico interiorizado, como percebido por Kierkegaard em seu texto sobre
as diferenças entre a tragédia antiga e a moderna, se manifesta. Para ele, “na
tragédia antiga a pena é mais profunda, a dor é menor”, enquanto no trágico
moderno “a dor é maior e a pena é menor”.108 E o trágico subjetivo moderno não
surge do sofrimento causado por defeitos ou erros de seus personagens; a dor se
alimenta da obscuridade que os envolve. Nas próximas cenas, nenhum dos
personagens parece saber o que fazer com o amor em suas vidas. Essa obscuridade
na qual estão mergulhados é a fonte do sentimento trágico que eles transmitem. A
obscuridade aqui é fundamental para a revelação do trágico, como acontece na
câmara escura da revelação fotográfica. Todos dizem eu te amo, como no título de
um filme de Woody Allen, e é daí que surgem os conflitos, as rupturas e as
impossibilidades.
Há outra característica nesse grupo de cenas que representa um traço notável
do trabalho do autor. A clareza e o realismo das cenas levam intencionalmente a
composições poéticas e à criação de diferentes camadas ou possibilidades de
sentido. Em uma entrevista dada ao dramaturgo Christophe Triau, Joël Pommerat
declara sua preocupação com a recepção do público. A compreensão de suas peças
e a comunicação com as plateias é considerada por ele como parte fundamental de
sua tarefa de autor e diretor. O que não significa um movimento de explicitação
excessiva ou de facilitação redutora. Pommerat afirma seu desejo de construir,
através do realismo de suas cenas, um caminho para o que ele chama de abstração.
Sem abrir mão de uma busca de composição poética em suas peças, preocupa-o a
necessidade de compreensão imediata manifesta pelas plateias contemporâneas.
Sem entrar nas questões de julgamento estético, ele imagina que o público, como
conjunto, sente a não compreensão imediata do que se passa no palco como uma
forma de rejeição ao grupo. No seu trabalho, Pommerat assume o desafio e a
procura de uma estratégia para reagir a esta limitação.
108 Ibidem, p.14.
77
Nós partimos de um falso realismo para chegar à abstração. Abstração no sentido de que
nenhuma situação vale pelo que ela conta, mas eu procuro através das situações, as ressonâncias, os ecos que se podem qualificar como poéticos. Como quando a gente bate
num objeto e o que importa não é a ação de bater, mas o som que se produz. Depois é
preciso harmonizar, tentar organizar poeticamente o que esses sons produzem e criar
situações que expressem além do que se mostra.109
Estas três cenas claras e realistas, talvez as mais realistas do espetáculo,
participam da harmonização poética desejada pelo autor, atingindo plenamente a
comunicação pretendida com a plateia. Se a peça constrói um mosaico em torno das
relações amorosas, estes são os fragmentos mais luminosos, ou os que carregam as
cores mais fortes.
Em "Grávida", um médico tenta convencer uma paciente, uma mulher com
algum distúrbio mental, a abortar o filho que está esperando. Em "Amor", um
professor entra em conflito com os pais de um aluno que ele tentou consolar durante
uma excursão escolar. Em "Memória", um homem tem que se reapresentar a cada
visita à sua mulher, internada em uma clínica com amnésia.
4.1.
Grávida
O amor é uma invenção de alto risco, segundo um dos personagens de A
Reunificação das Duas Coreias. Em "Grávida", o médico de uma instituição
psiquiátrica, nomeado Homem na cena, incita uma das suas pacientes, a Mulher, a
abortar. Ela se recusa, em nome dos sentimentos que tem pelo pai do bebê, outro
ex-paciente do local, a quem ela declara com simplicidade e certeza amar e ser por
ele amada. A visão do médico se pretende científica, isenta e objetiva, mesmo ao
tratar de um tema complexo em circunstancias nada simples. Ele afirma que a
mulher não tem condições de cuidar da criança e que o suposto pai não vai ajudar.
109 Entrevista de Joël Pommerat à Christophe Triau. La Création à L'ouevre. Bibliothèque Centre
Pompidour. Disponível em http://www.dailymotion.com/video/xw8nu0_Joël-pommerat-entretien-
avec-christophe-triau_creation
78
Por essas razões ela deve fazer um aborto. Enquanto ela transmite serenidade em
suas afirmações, ele parece se exasperar cada vez mais.
MULHER - Eu me sinto bem. Eu sinto uma alegria e isso me dá força.
HOMEM - Você sente uma alegria?
MULHER - Sinto.
HOMEM - Talvez você sinta uma alegria nesse momento... Por causa de uma pequena
perturbação hormonal causada pela gravidez, mas isso... Isso vai passar.
MULHER – Não é isso. É o amor. 110
Desde as primeiras réplicas se estabelece o conflito e o tratamento circular
que ele obtém na cena. A notícia da gravidez, dada com alegria pela paciente, ganha
um tom alarmista na argumentação do médico. O trágico no drama-da-vida se
manifesta nesse pequeno instante banal em um consultório.
Também sobre o tema dos impasses provocados por uma gravidez, a peça
Haute-Autriche, de Franz Xaver Kroetz, é citada por Jean Pierre Sarrazac como um
exemplo do trágico no drama-da-vida. Ela foi escrita nos anos setenta na Alemanha
e trata de um casal de trabalhadores que espera um filho. Graves hesitações em
relação à gravidez pesam sobre o marido. A personagem feminina de Kroetz,
(coincidentemente ou não, ela se chama Anni, como a paciente grávida na peça
Pommerat), também defende sua gravidez alegando sentir felicidade em ser mãe,
contra a pressão de Heinz, seu marido, para que ela aborte. Heinz não consegue seu
intento e entra numa espiral destrutiva, que o levará à morte. Para além da
banalidade do cotidiano e das questões do casal de trabalhadores socialmente
desprivilegiados, personagens comuns na obra de Kroetz, o trágico se situa no
próprio curso de suas vidas.
Um curso ameaçado a todo instante de interrupção; a perpetuação da vida que não é mais
assegurada; uma vida que escorrega ostensivamente em direção à morte. "Tem gente
demais na terra." É o argumento final de Heinz para convencer Anni de abortar. Como em
Beckett, mas por outros meios - uma aproximação sociopolítica dos desprivilegiados -, o
drama-da-vida se torna drama da espécie humana.111
Esta dimensão do trágico encontrada por Sarrazac na obra de Kroetz remete
à divisão realizada por John Orr, que situa na época moderna (o drama depois de
110 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 89 111 SARRAZAC, Jean Pierre. Poétique du Drame Moderne. Paris, Editions du Seuil, 2012 p. 96
79
1880) o surgimento do trágico social.112 A cena entre o médico e a paciente grávida
de Pommerat também introduz a questão social no conflito entre o médico,
representante do poder em uma instituição, e a mulher, socialmente desprivilegiada.
Porém, há uma ironia na apresentação e no desenvolvimento das personagens, que
encaminha o realismo da cena para além da questão social. A posição de força do
médico é esvaziada diante da solidez da recusa da paciente, escudada simplesmente
no que ela chama de amor. Diante dos olhos do espectador, o médico perde a calma
e se afunda na obscuridade ao tentar explicar o inexplicável. Obscuridade que revela
a sua própria tragédia, na incapacidade de controlar a vida da paciente e,
possivelmente, a sua própria, como sugerem os insistentes toques do telefone no
qual um interlocutor misterioso parece irritá-lo cada vez mais.
HOMEM - Todas as pessoas estão dizendo que você vai se meter numa grande tragédia,
que você vai ser infeliz, que vai sofrer muito...
MULHER - Desde que eu tenho o amor em mim, eu me sinto muito feliz.
HOMEM - (Fora de si, não se contém mais) Isso não existe! O amor é pura invenção. É
uma coisa da sua cabeça, é como um delírio! O amor é um tipo de doença. Não é bonito o
amor, você tem que parar com essa besteira. O amor obriga a pessoa a fazer coisas
totalmente insensatas, perigosas. O amor põe as pessoas em perigo. E a prova está aí...
Acorda, Annie... Você está colocando a sua vida em perigo, você está em perigo, Annie. 113
O trágico social do período moderno, segundo John Orr, ainda conteria em
parte as regras aristotélicas, sem segui-las à risca. Sem pretender uma volta ao
passado, o trágico moderno também abrigaria a experiência humana de uma perda
irreparável, interpretada por atores em um palco diante de uma plateia. Porém, para
que a obra se caracterize como trágica não basta contar essa perda. A narrativa da
perda deve apontar para as consequências da ação dramática e não para o que a gera
inicialmente. Para Orr, o que está na raiz dessa perda é a questão da alienação
humana, que tem a tragédia como a sua melhor expressão literária.
O modo da alienação fornece o contexto necessário para a experiência dramática da perda.
(...) Se este contexto não estiver presente no texto, a ação dramática retratando a perda ou
112John Orr, no seu livro Tragic Drama and Modern Society, divide a presença do trágico no teatro
em três períodos: o nascimento da tragédia na Grécia, o renascimento da forma trágica na Inglaterra
no século XVI e na França no século XVII e finalmente o trágico mais difuso da época moderna,
escrito a partir de 1880. 113 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 90
80
sofrimento é exagerada e perde a credibilidade psicológica. Isto resulta em recursos que,
frequentemente, encontramos nos melodramas. 114
Apesar das perdas e do sofrimento envolvidos na cena Grávida, o modo de
alienação explícito no jogo entre os dois personagens impede a cena de se
aproximar do melodrama, trazendo mesmo um humor para ela, ainda que sombrio.
Além das marcas do trágico social, no desenrolar da cena, surge outro
elemento do trágico contemporâneo que ajuda a elevar a tensão entre os dois
personagens: a repetição. Não há movimento evolutivo na relação entre os
personagens, os dois se apegam às mesmas posições e utilizam quase as mesmas
palavras. A mulher tem a palavra amor como um refrão, uma palavra mágica que
lhe dá força, como ela mesma diz. O médico também é redundante em sua
convocação ao aborto. Sutilmente, parece que a paciente percebe que algo não está
bem com ele. Quando Annie tenta acalmá-lo, afirmando que tudo vai ficar bem,
graças ao amor, o médico explode em sua frustração com ela e, talvez, também
pessoal, com o que ela chama de amor.
HOMEM - (Enérgico) Vou te dizer, Annie, mesmo na vida normal, na vida das pessoas
que,de saída, não tem uma deficiência, o amor é irreal, é um conceito. O que as pessoas
chamam amor é como o álcool ou a droga. Eu sei do que eu estou falando. Quando a gente
desperta do amor, depois de três meses, três anos ou três dias, a gente se dá conta que
delirou, que fantasiou tudo e que aquilo não é nada, o outro não é nada, ou que ele é um babaca, ou que ele cheira mal. A gente se pergunta como pode ter feito isso. A felicidade
na vida tem que ser buscada dentro da gente e não nos outros. Sobretudo, nunca no amor... 115
Depois de ouvir mais uma vez a afirmação de Annie de que tudo ficará bem
porque ela e Fréderic se amam, o médico permite que ela vá embora, vencido pela
exaustão. O curto diálogo entre médico e paciente se encerra em uma das cenas
mais amargas do espetáculo. A cena se conclui em uma imagem de desolação, com
o telefone que insiste em tocar e o ruído da chuva caindo pesada do lado de fora.
114 ORR, John. Tragic Drama and Modern Society. Barnes and Noble Books, 1981. (tradução
nossa) p. 12 115 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 91
81
4.2.
Amor
Na Teoria do Drama Moderno, Peter Szondi marca como uma das
principais transformações no teatro a supressão das partes exteriores nas peças,
(prólogo, epílogo, coro) e a eleição do diálogo como condutor exclusivo da ação
dramática. Até a virada do século XX a forma do diálogo e seus objetivos não se
diferenciam muito do teatro antigo. A partir do século XX, a concepção do diálogo
como veículo para os indivíduos expressarem caráter, objetivos e discordâncias,
imprimindo dessa forma um movimento real à ação, é questionada. Na crise da
forma dramática, descrita por Szondi na Teoria do Drama Moderno, o diálogo bem
como outros elementos do drama são afetados pela crise. A partir do momento em
que a relação solitária e problemática do personagem com o mundo, ou com a
sociedade, prevalece nas narrativas, as relações interpessoais movidas pelo diálogo
perdem a centralidade e vários modos, além do dramático, passam a coexistir na
cena. Do diálogo absoluto passa-se ao diálogo relativo.
Na cena Amor, os pais de um aluno, Antoine, vão à escola onde ele estuda
questionar o professor e a diretora a respeito do filho. Alegam que, depois do
passeio escolar, Antoine tem se sentido mal; está deprimido e sofre pesadelos
noturnos. A Diretora pede ao Professor que explique novamente os problemas
ocorridos na noite do passeio. Nervoso, o Professor repete sua versão dos fatos: o
menino sofreu um ataque dos colegas e, sob tensão, molhou a cama durante a noite.
Para não acordar os outros, o professor ajudou o aluno a se trocar e o reconfortou.
A mãe, nomeada Mulher na cena, questiona o Professor dizendo que o filho afirma
ter dormido no quarto dele. A tensão cresce com a confirmação do professor de ter
omitido o fato quando falaram pela primeira vez.
MULHER – Senhor, por favor, nos diga precisamente o que aconteceu neste quarto com
o nosso filho!
PROFESSOR – Como, precisamente? Antoine chorava, estava com frio, não queria mais
voltar ao dormitório com os outros, ele estava assustado, eu o levei ao meu quarto, fui
buscar roupas secas. Voltei, troquei suas roupas e,sobretudo, eu o consolei, deitei-o na
minha cama, ele estava caindo de sono. Até que ele dormiu, enfim. E eu o deixei dormir. 116
116 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 51
82
A omissão do Professor amplia a repercussão do gesto e a imagem do
menino na cama, com suas implicações, se impõe diante dos quatro elevando o tom
da discussão. O Professor é colocado no lugar do réu de um julgamento sem
defensores. O diálogo de surdos se estabelece e as chances de comunicação se
anulam.
MULHER - Antoine disse que o senhor o acariciou! Ele usou esta palavra.
PROFESSOR - (Completamente desestabilizado) Acariciou?!
MULHER - É, ele disse: "O senhor Jobert foi muito gentil, ele me acariciou muito quando
eu chorei."
PROFESSOR - (Emocionado, responde com energia) O que é isso?! Claro que eu não acariciei o seu filho nesse sentido que vocês entenderam. Já disse que ele estava chorando
e que eu o consolei e, claro, devo ter acariciado o rosto dele, os cabelos... Talvez... Pra
acalmar, já disse que ele estava apavorado e confuso com o pesadelo, o xixi na cama, as
relações violentas com os colegas... Eu não aguento mais, vou parar de falar com essas
pessoas... 117
No teatro moderno e contemporâneo, a expressão das relações interpessoais
e a condução da ação dramática não são mais o objetivo primordial da troca de
réplicas em uma peça. A própria noção de réplica como uma fala que se segue
logicamente a outra, ou é por ela originada, entra em questão. O diálogo “não traduz
mais, ele trai”.118 A incapacidade de entrar em contato com o outro, já presente nas
obras de Ibsen, Tchekhov e Strindberg, espelham as dificuldades, de ordem política
e ontológica, que sofre a comunicação entre os homens, lançados em um mundo
que os separa dos outros e os mergulha em solidão. Esta solidão, esta separação, se
reflete nos diálogos abertos, descontínuos ou repetitivos, como é o caso desta cena.
Diálogo de surdos, ineficiente para a compreensão de pontos de vista divergentes,
mas ainda assim carregados de agressividade e sentidos ocultos.
Sarrazac lembra a questão da distância, contida etimologicamente no dia de
diálogo. No teatro moderno e no teatro contemporâneo a distância entre os
personagens estaria desregulada, dificultando a fluência da ação dramática. Os
personagens estão muito próximos ou muito distantes e nunca na distância
necessária para se reconhecerem, se relacionarem ou mesmo se enfrentarem. Contra
os que criticam o solipsismo desses personagens modernos e contemporâneos,
Sarrazac contrapõe que a irregularidade da distância abre a possibilidade de criação
117 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 52 118 SARRAZAC, Jean Pierre. Op. cit. p. 243
83
de outra via de comunicação para o diálogo. Enquanto o diálogo interpessoal
convencional ajuda a construir a quarta parede, se dando exclusivamente entre os
personagens, o diálogo "defeituoso" do teatro moderno e contemporâneo inclui o
espectador e reencontra uma espécie de frontalidade, como nas peças de
Shakespeare ou nas tragédias antigas. Essa frontalidade pode se manifestar de modo
direto, como nos monólogos e apartes dirigidos ao público ou nos solilóquios.
Também pode resultar em um diálogo aparentemente interpessoal que, em vez de
aproximar ou colocar as personagens em confronto, cria uma polifonia de vozes e
intenções percebida somente pelo espectador. Em Tchekhov há diversos exemplos
dessa polifonia, na qual o infratrágico se manifesta, através dos diálogos
desencontrados dos personagens. Se os diálogos não servem para revelar os
personagens, como na concepção hegeliana-aristotélica do drama, a composição
dos diálogos, sua harmonização de vozes cria retratos de sua época.
A obra de Tchekhov se situa evidentemente além de um naturalismo estrito e, no entanto,
tira deste a energia que permite ao autor colocar em cena, sem nenhum exagero ou
"dramatização" artificial, as vozes contraditórias de sua época, em suas permanentes
discordâncias. 119
Na cena "Amor", o desencontro progressivo entre as vozes dos personagens
reflete, como retrato de época, a impossibilidade de comunicação, a alienação dos
indivíduos e as consequências disto nas relações cotidianas, profissionais e
familiares. Pode ser perigoso mesmo pronunciar a palavra amor, quando cada
personagem entende uma coisa diferente por trás da mesma palavra. E mesmo esse
entendimento de cada um não deixa de ser aproximativo.
HOMEM - O senhor tem filhos?
PROFESSOR - (Explode) Sim, senhor. Eu tenho vinte e cinco filhos, todos os dias, há dez
anos. Crianças a quem eu dou o máximo, seja de tempo, de atenção, mas também amor e
carinho. A quem eu tento transmitir os valores do amor. E quando um deles vai mal, e isso
acontece bastante, eu tento ajudar, dar força, e faço isso de coração, não como um
funcionário em função de um regulamento. E é por isso que vocês me criticam? Por ter
agido de coração e com amor pelo seu filho?
MULHER - Chega de falar de amor, de pronunciar essa palavra amor, é insuportável! 120
119 SARRAZAC, Jean Pierre. Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo: Cosac
Naify, 2012. p. 70 120 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p.
54
84
A lateralidade dos diálogos engendra, às vezes, um suprapersonagem que
paira sobre a peça sem voz. O Jardim das Cerejeiras, por exemplo, além de título
da peça, torna-se este suprapersonagem, triangulando os diálogos entre os
personagens. Ao falar de suas vidas e expor suas questões, os personagens
constantemente se referem ao jardim: discutem se ele deve ser vendido, ou
retalhado, ou mantido a qualquer custo. Na cena da escola de Pommerat, o
suprapersonagem é o Amor, título da cena, que aparece nas réplicas dos
personagens como algo que, mesmo sem definição clara, transforma as atitudes e
eleva a tensão entre eles e, paradoxalmente, os une em torno do mesmo problema.
PROFESSOR - (...)Eu faço o meu trabalho por amor e não como um burocrata, se eu faço
esse trabalho é porque eu amo as crianças. E eu amo o seu filho, se a senhora quer saber.
Sinto amor por ele e não me envergonho disso.
HOMEM - (Estupefato) O que?! MULHER - Você ama o meu filho?! É insuportável ouvir isso!
PROFESSOR - Sim, senhora, eu não tenho vergonha da palavra amor. Eu amo Antoine.
Essa palavra não tem pra mim o mesmo significado que tem pra vocês, pelo jeito que vocês
estão me olhando... É por isso que eu não tenho vergonha dessa palavra... Naquela noite eu
fiz apenas o meu trabalho mas, fazendo o meu trabalho, agi com amor e por amor ao seu
filho... Era meu dever diante do sofrimento dele... Mas também agi por carinho e por amor
a ele.
HOMEM - Então, isso é muito grave! 121
Do ponto de vista do espectador, esta cena se constrói como um jogo entre
diversos polos de julgamento morais comuns à maioria. A maior parte das pessoas
acredita que os professores devam exercer sua profissão com amor; assim como
também faz parte do senso comum que os pais devam proteger os filhos de possíveis
abusos cometidos por adultos. Também parece óbvio que os pais amarão seus filhos
e demonstrarão isso em palavras e ações. Porém, na vida cotidiana, os limites dessas
supostas verdades podem aparecer borrados, incapazes de dar conta da
complexidade de determinadas situações, revelando o risco dos julgamentos
simples e os erros trágicos que podem acarretar. Divididos pelas múltiplas e
enganadoras feições do Amor, suprapersonagem da cena, os pais deixam a escola
lançando ameaças de destruição, que o Professor, sem disfarçar o abalo, afirma estar
pronto a enfrentar. A Diretora também falha em arbitrar a discussão, paralisada por
esse inesperado amor que mergulha os quatro personagens no isolamento e na
incomunicabilidade.
121 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p.
55
85
4.3.
Memória
Na cena "Memória", um homem e uma mulher casados há muitos anos são
obrigados a reinventar a sua relação a cada encontro. Reinventar de fato, a mulher
perdeu a memória por um acidente ou doença e sequer lembra que tiveram filhos.
De alguma forma, a cada vez que o marido chega, eles refazem, enquanto caminham
no jardim, um trajeto que os leva a uma intimidade que sempre existiu e
desapareceu na condição objetiva da amnésia, mas que persiste em algum lugar
misterioso. Algo desse amor sobrevive ao esquecimento, para além da história
comum, dos filhos, da familiaridade, algo do amor anterior a qualquer memória
perdida, algo sem conteúdo ou forma, mas ainda assim presente entre eles.
MULHER – Como nós nos amávamos quando éramos casados?
HOMEM – Como um casal comum, que se casou.
MULHER – O que é um casal comum?
HOMEM – São pessoas comuns que se casam. MULHER – (Decepcionada) Ah, sei.
HOMEM – (Pára, olha a mulher nos olhos e explode) Não é isso. Quando nós nos
encontramos foi perfeito. Éramos como duas metades perdidas que se reencontravam. Era
maravilhoso. Era como se a Coréia do Sul e a Coréia do Norte abrissem suas fronteiras e
se reunificassem, e as pessoas que estavam proibidas de se ver pudessem se reunir de novo.
Era uma festa. Nós dois sentíamos que estávamos ligados e que isso vinha de muito longe. 122
Em todas as cenas que compõem o espetáculo há uma ressonância do tema
exposto pelo título A Reunificação das Duas Coreias. Se a principio este título pode
parecer misterioso, no decorrer do espetáculo, na mesma temporalidade da
revelação que rege a maior parte das cenas, ele soa cada vez mais familiar. O título
é falado no meio do espetáculo pelo personagem do marido que vai visitar a mulher,
que sofre de amnésia, internada em um hospital. O homem simples, vendedor de
carros, recorre a uma imagem para explicar a sua mulher como eram as coisas entre
eles nos primeiros tempos do casamento. Usando suas próprias palavras, o Homem
expressa uma ideia que aparece no Banquete, de Platão. Para explicar a natureza do
erotismo e da atração, Aristófanes conta uma história para os convidados da festa
122 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa)
p.76
86
de Agatão a respeito da divisão dos seres, antes completos, em duas partes que se
procurariam na Terra pela duração das suas vidas. O castigo de Zeus enfraqueceu
os seres humanos e os lançou numa busca interminável.
Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, (...) então
extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não
quererem, por assim dizer, separar-se um do outro nem por um pequeno momento. E os
que continuam um com o outro pela vida afora são estes, os quais nem saberiam dizer o
que querem que lhes venha da parte de um ao outro. A ninguém, com efeito, pareceria que
se trata de união sexual, e que é porventura em vista disso que um gosta da companhia do
outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a alma de cada um, é
evidente, a qual coisa ela não pode dizer, mas adivinha o que quer e o indica por enigmas.
(...) O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é portanto
ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor.123
A sombra do desejo incessante de uma ligação com o outro percorre todas
as cenas, em diversas formas. Desejo de retomar algo impossível, de recuperar o
irrecuperável, de entender o incompreensível e tudo isso em nome do amor, abrigo
dessas ausências. Os desejos das metades para sempre perdidas traçam as linhas
percorridas pelos personagens durante o espetáculo, desenhando o trágico dessa
impossibilidade.
123 PLATÃO. O Banquete. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2015. p. 117
87
5.
O amor não basta
O que há? Eu sei, antes de tudo, que eu existo. Mas o que eu sou? Tudo que eu sei de mim
é que eu sofro. E se eu sofro, é porque na origem de mim mesmo há mutilação, separação.
Eu sou separado. Do que eu sou separado eu não sei nomear. Mas eu sou separado. (...)
Antes isso se chamava Deus. Agora, não tem mais nome.124
Artur Adamov
Se existe algo de trágico no drama contemporâneo, não é mais
transcendente, mas imanente. O sentimento trágico não surge mais dos mistérios
divinos ou das culpas humanas, mas é preenchido pelas forças da própria vida. Os
personagens do teatro contemporâneo não precisam cometer nenhum excesso para
atrair um destino trágico, ter nascido é o suficiente. Longe da dignificação ou
expiação proporcionada pelo destino trágico dos heróis, os personagens de A
Reunificação das Duas Coreias se movimentam nos limites áridos de um cotidiano
que enquadra e, ao mesmo tempo, reflete as suas relações íntimas, familiares e
amorosas. Esses enquadramentos revelam que o amor não os liberta, nem os torna
capaz de lutas e sacrifícios. O amor é um anseio profundo e, ao mesmo tempo, é
uma ligação insuportável com o outro. Contradição trágica sem meio de resolução,
o amor não basta, diz a personagem em uma das cenas da peça que melhor
sintetizam o impasse destas relações.
Na cena "O Amor Não Basta", o Homem desperta e surpreende a Mulher se
preparando para sair no meio da noite. Ele supõe uma insônia, ela nega. Está indo
embora para a casa do seu irmão. Ao perguntar o motivo, ela responde que vai
deixá-lo, não se verão mais. Tentando obter mais explicações, ele ouve uma
declaração sintética, que remete à impossibilidade das relações de amor que
atravessa todas as cenas do espetáculo.
MULHER - O amor não basta.
HOMEM - Como?
MULHER - O amor não basta.
HOMEM - Repita, por favor.
124 ADAMOV, Artur. L’Aveu, em Je... Ils..... Paris: Gallimard, L’Imaginaire, n°306, 1969.
88
MULHER - A gente se ama, mas isso não basta. 125
Como quem luta com um pesadelo sem conseguir acordar, o Homem tenta
se agarrar a alguma coisa nas frases descarnadas da Mulher. Ela não se queixa de
nada. Ao contrário da protagonista de "Divórcio", ela não se ressente da falta do
amor no casamento. É insolúvel o seu problema, o amor existe, mas isso não basta.
Após questionar a sanidade mental da Mulher, o Homem passa a temer pela sua.
Ele implora por motivos, por fatos, parece exigir o desenrolar de um drama na sua
forma verbal, progressiva, para que possa entender o sentido do que está
acontecendo. Com a saída seca que ela pretende fazer, ele mal consegue se
movimentar na cena, muito menos encerrá-la, e, com ela, a relação.
HOMEM - (...) Se você fizer isso comigo, eu não sei, eu não vou aguentar, juro... Me diz
alguma coisa, pelo menos... Por favor.
MULHER - (Caminhando para a saída) Eu sinto muito, realmente. Eu te amo, mas não é
o suficiente.
HOMEM - Isso não é possível!
MULHER - Desculpe. HOMEM - Eu estou ficando louco.
MULHER - O amor realmente não basta. (Para, se volta, pensativa.) É, eu sei que é
terrível, mas o amor não basta. 126
E sai. Black out.
A cena é curta, o Homem é deixado sozinho sem outras explicações. Tudo
se passa em uma cama demarcada pela luz de uma lâmpada pendente. O casal na
penumbra desenha, com o mínimo de recursos, a impossibilidade trágica do amor.
A cena abre questões nesta afirmação da Mulher. O amor não basta, para que? Para
dividir a cama ou a vida com o parceiro? Para dar sentido àquela relação? Para
reunificar as metades míticas? Ou não faz nenhum sentido, como entende o
Homem, essa afirmação?
A perda de sentido marca estas personagens e, mesmo quando esboçam a
procura de um sentido, ou verdade, suas intenções e movimentos são esvaziados
em ações pequenas, nada espetaculares. O contraste intencional entre o gesto
pequeno e as grandes perturbações por trás deles é uma técnica eficaz na revelação
125 POMMERAT. Joël. La Reunifications de Deux Corées. Actes Sud, 2013. (tradução nossa) p. 78 126 Ibidem. p. 79
89
deste trágico do cotidiano. O autor, Joël Pommerat, persegue esses contrastes como
um de seus alvos criativos.
Quando eu faço um espetáculo, o que busco é reunir, confundir, misturar... Por exemplo, o
mais estranho com o mais simples, o mais banal, o mais íntimo com o mais épico, o mais
sério, o mais trágico com o mais ridículo, o mais atual com o mais anacrônico, reunir tudo
isso, essas dimensões, todas, não deixar nada escapar. Assim, acho que posso criar
teatralmente um pouco de realidade, pois a minha obsessão é essa, capturar um pouco de realidade.127
No drama moderno, a maior parte dos autores perseguiu uma forma de
realismo nas suas obras. No drama contemporâneo, o realismo surge quase sempre
distorcido de algum modo, e essas distorções diferem muito entre os autores.
Depois da virada do século XX, os autores teatrais tendem a traçar seus caminhos
criativos cada vez mais independentes de cânones literários ou estéticos,
favorecendo a diversidade e originalidade dos seus procedimentos e resultados. Esta
diversidade é uma das condições da renovação da cena contemporânea. Por outro
lado, essa polifonia aprofunda a pulverização e o isolamento das vozes dos autores.
Não se pode falar de unidade no teatro contemporâneo, não há características
comuns marcantes entre as peças a ponto de provocar o reconhecimento de uma
obra como pertencente a um gênero predominante na sua época. O teatro
contemporâneo fala em muitas línguas e por inúmeras linguagens.
A teórica e dramaturgista Marion Boudier destaca como característica a
perturbação (trouble) na obra de Pommerat. Através de uma estranheza, de áreas
claras e escuras, de aparições de personagens ambivalentes com pontos de vista
contraditórios, da escolha de histórias frágeis, incompletas, e através da
multiplicação ou da suspensão dos significados, Pommerat cria um sentimento de
perplexidade.
A perturbação remete o espectador à complexidade de seu posicionamento na sociedade.
Criar a perturbação é restituir ao espectador a estranheza do real, confrontá-lo de modo
renovado às dificuldades da existência. E mesmo que seja tudo falso, ou precisamente
porque é falso: o teatro é um lugar de experiência e experimentação.128
Lugar de experiência e experimentação, o teatro contemporâneo não fala
para muitos. Com raras exceções, a cena hoje está longe das grandes plateias que,
possivelmente, se reuniam para assistir as tragédias na Grécia clássica, e mesmo
127 BOUDIER, Marion. Avec Joël Pommerat, Un Monde Complexe. Paris: Actes Sud, 2015. p. 5 128 Idem.
90
depois, nos teatros elisabetanos ou no período romântico. Hoje, os espectadores em
grande número não formam plateias; estão solitários diante de um aparelho de TV
acompanhando esportes ou ficção televisiva. Contando apenas com sua voz, sua
escuta do mundo, seus próprios filtros de visão, o autor de teatro contemporâneo
espelha, de certo modo, o seu público: urbano, solitário, individualista, desertado
pelos mitos. George Steiner acredita que essa postura seria um dos fatores
determinantes para a impossibilidade da tragédia na época moderna.
Quando o artista tem que ser o arquiteto de sua própria mitologia, o tempo está contra ele.
Ele não consegue viver o suficiente para impor sua visão especial e símbolos que imaginou
para ela, aos hábitos de linguagem e ao sentimento em sua sociedade. (...) A imagem de
mundo idiossincrática, sem um tecido ortodoxo ou público para apoiá-la, mantém-se em
foco somente pelo talento presente do poeta. Não pega raiz em solo comum.129
Cerca de cinquenta anos se passaram desde a afirmação de Steiner. Não é
muito tempo, mas a aceleração das transformações no teatro e no mundo parece
aumentar este intervalo. É possível que o talento presente do poeta, no caso de
Pommerat e de sua equipe de colaboradores, esteja nesse momento lançando raízes
em solo comum? Ou talvez, tenha brotado de um solo comum? O grupo de pessoas
que se reuniu em torno do autor-diretor em 1990, para montar uma peça a cada ano
nos próximos quarenta anos, recebe crescente interesse e reconhecimento de
espectadores, teóricos, artistas e crítica que acompanham as criações da companhia.
O repertório abriga desde então um corpo de trabalhos considerável, evoluindo na
experimentação do que o autor considera como uma forma de realismo. Forma
particular, calcada em mitologia própria, como lembra Steiner. Esta mitologia
reflete um imaginário diversificado, transitando entre versões originais de contos
de fadas, (Cinderela, Pinóquio, Chapeuzinho Vermelho), temas sociais ancorados
no cotidiano (Os Vendedores, A Grande e Fabulosa História do Comércio),
conflitos familiares e relacionais (Esta Criança, A Reunificação das Duas Coreias)
e o mais recente trabalho, Ça Ira, um mergulho na História enquadrando, pela ótica
do presente, a preparação e eclosão da Revolução Francesa de 1789. Na pluralidade
de temas, o foco recai sobre a complexidade humana exposta a partir de
personagens comuns, em ambientes e situações cotidianas. O trágico do cotidiano
129 STEINER, George. A Morte da Tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 183
91
não está presente somente em A Reunificação das Duas Coreias, mas atravessa, de
algum modo, todos estes espetáculos.
A existência da tragédia como gênero pode estar realmente comprometida
pela ausência de solo comum no qual estas peças se enraizariam, mas é possível
perceber uma compreensão trágica da existência humana, expressa no palco, que se
comunica com as plateias contemporâneas nas peças de Pommerat. Nas definições
do trágico contemporâneo, investigado através deste estudo de A Reunificação das
Duas Coreias, algumas características se destacam pela sua recorrência.
No lugar de heróis, são apresentados homens comuns nas tensões do
cotidiano. Suas batalhas são internas e, constantemente, eles se deparam com um
conflito que surge para todos, de formas diferentes. O confronto com o vazio de
suas existências e a impossibilidade de resolução ao mesmo tempo que os coloca
em movimento, os deixa suspensos, expostos em suas fragilidades interiores. A
exposição da interioridade é o canal de expressão destes conflitos, abrindo espaço
para o estabelecimento do infratrágico, um trágico subterrâneo que não conduz a
ação, mas se faz presente por trás dela.
Não há catarse, pois não há pretensão de conclusão da ação. Mesmo assim,
as situações criadas provocam reconhecimento e identificação por parte dos
espectadores. Esta identificação com personagens comuns que se debatem como
insetos numa caixa se dá através de situações realistas com ligeiras distorções,
desestabilizando a percepção da plateia e provocando a reflexão sobre aspectos
novos de questões conhecidas. O teatro se torna um espaço de criação e
introspecção, um teatro mais próximo do pensamento, com seus ritmos, questões e
instabilidades.
As cenas, por vezes, abrem mão da colisão dramática, sendo frequentemente
iniciadas no meio da ação. A ação é pequena e tende à repetição serial ou circular.
A fragmentação é um elemento estrutural do espetáculo. A cena-fragmento
funciona por si e também como detalhe de um grande mosaico abstrato. Para que a
peça se realize em sua potência afetiva e comunicativa, ela se expõe em detalhes ao
espectador, que faz a sua parte completando sentidos e oferecendo suas
interpretações do grande desenho. Como lembra o poeta romântico Friedrich
Schlegel a respeito da potência do fragmento, num aforismo publicado na revista
92
Athenäum. “Um fragmento tem que ser como uma pequena obra de arte, totalmente
separado do mundo circundante e perfeito e acabado com um porco-espinho.”130
Na montagem francesa de 2013 de A Reunificação das Duas Coreias, o
fragmento, no caso a cena, foi executado e disposto no desenho de modo a se unir
ao conjunto sem a perda das suas particularidades, de seus espinhos. A criação dessa
totalidade fragmentária, onde não há seta progressiva de ação, encadeamento lógico
ou temporal é de difícil execução, mas, eventualmente, favorece o nascimento de
obras com muitas camadas de sentidos e se constituem em uma experiência teatral
única, ou em um encontro verdadeiro, nas palavras de Pommerat. A fragilidade
aparente desta estrutura fragmentada se desdobra em potência na obra. O mistério,
o inconclusivo, de acordo com o autor, relacionam seu teatro e o mundo.
Eu gosto que não esteja tudo dado de início
que não ande sozinho
que a escrita das palavras, a escrita do texto não revelem tudo, não digam tudo
que tudo não esteja em jogo desde o início
porque no fundo minhas histórias são apenas pretextos para revelar instantes, revelar a
presença, presença que é, ao mesmo tempo, mistério e concreto
presença que é o evento maior, queiramos ou não, desse mundo, e por isso desse teatro.131
Em meio aos pequenos dramas e situações misteriosas, há momentos de
ironia trágica nas personagens e em suas ações. Um humor sombrio, às vezes
patético, atravessa as cenas de A Reunificação das Duas Coreias. O humor aparece
como um elemento fundamental do trágico cotidiano, provocando a percepção do
espectador e ampliando a perspectiva para a reflexão.
Prescindindo da progressão dramática convencional, as cenas parecem
movidas por uma catástrofe inaugural. Os personagens surgem em cena já lançados
em seus destinos trágicos. Nesse sentido, o tempo se altera. Como não são
mostrados em evolução, os personagens vivem em um tipo de presente sem
desdobramentos e previsões futuras. Também o passado não interfere de modo
decisivo, como aparecia no drama moderno.
Constatada a diversidade entre as obras de Joël Pommerat, parece haver um
elemento comum entre A Reunificação das Duas Coreias e outras peças do autor.
Mesmo quando estruturadas em fragmentos, as peças não prescindem de uma
130 SCHLEGEL, Friedrich. O Dialeto dos Fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 82 131 Apresentação da peça Les Marchands. Disponível em: http://www.theatre-,
contemporain.net/spectacles/Les-Marchands/ensavoirplus/ /
93
narrativa, inscrevendo os espetáculos no tempo de uma história. O olhar original,
poético, sobre as situações realistas é capaz de refrescar a construção da fábula
dramática, envelhecida por décadas de usos repetitivos. Semelhante ao tempo do
conto na literatura, o tempo do teatro pede uma maior concentração e intensidade.
As pequenas cenas se assemelham estruturalmente a pequenos contos. A fábula
dramática, ao ser convocada desse modo, não sofre o esforço de atingir uma
completude, ganhando potência e clareza, o que favorece o encontro com a obra.
Entre a diversidade das linguagens e vozes do teatro contemporâneo, uma
particularidade na pesquisa e nos espetáculos de Pommerat reside na procura de
clareza, de equilíbrio e na observação cuidadosa da comunicação que o espetáculo
estabelece com a plateia.
Procuro provocar no espectador um desejo de aproximação e encontro com os atores e os
espetáculos. Quero suscitar o seu desejo de criar com a sua própria sensibilidade e o seu
imaginário uma parte do espetáculo, uma parte do sentido. Procuro uma abertura aos outros,
procuro um encontro, mas eu faço apenas um pedaço do caminho. Eu especulo sobre o
prazer que o espectador pode obter fazendo o outro pedaço do caminho. Essa fantasia do
encontro pode não resultar sempre em um verdadeiro encontro, claro. Há noites em que a
culpa é realmente nossa, há noites em que a culpa é dos espectadores, um pouco
preguiçosos, ou desinteressados. 132
Há uma dimensão de diálogo pessoal do autor em relação aos espectadores,
que se estabelece entre a sua percepção da realidade, suas experiências do mundo e
um desejo de compartilhá-las, tornando-as mais toleráveis ou, talvez, provocando
nos espectadores desejos de reflexão e transformação. Na introdução da peça
Cercles/Fiction, Pommerat faz uma declaração que reafirma este desejo de partilha
das suas percepções de verdade. “Todos os personagens desta peça, com a exceção
de um, são verdadeiros, autênticos. Todas as situações desta peça são autênticas.
Elas me interessam diretamente, ou são parte importante do que eu sou hoje.”
Este desejo de verdade apresenta resultados. As peças estabelecem
comunicação com a plateia, sem comprometer a complexidade, a reflexão ou, em
suas palavras, a abstração, pretendida através da sobreposição dos elementos
cênicos, sem hierarquia nem privilégio da palavra. Em A Reunificação das Duas
Coreias, na sala, durante o espetáculo, o grupo ali reunido entre palco e plateia ao
menos pisava em solo comum. Se há raízes nesse solo, o tempo pode revelar.
132 Apresentação da peça Les Marchands. Disponível em: http://www.theatre-
contemporain.net/spectacles/Les-Marchands/ensavoirplus
94
O trágico, nessa obra, parece se alimentar ou se ligar às sementes lançadas
ainda na virada do século XX por autores como Maeterlinck, Tchekhov, Strindberg,
que exploraram as possibilidades de um teatro narrativo, de pequenas ações e
homens comuns, em um momento de grandes transformações sociais. Além das
características formais citadas anteriormente, este parentesco, se é possível definir
assim, surge também no fato que esta peça possibilita, com os meios e a
sensibilidade próprios de sua época, uma reflexão sobre questões humanas
existenciais. E, longe de propor soluções, desestabiliza conceitos e posições,
trazendo vitalidade ao palco. A cena se aproxima do pensamento pelos meios que
lhe são próprios. A ideia se faz presente nesse teatro.
Alain Badiou, filósofo, pensador do teatro contemporâneo e dramaturgo,
percebe no teatro a capacidade de apresentar a "ideia viva". Ele define a ideia como
transcendente e imanente ao mesmo tempo.
A ideia apresenta-se como mais poderosa do que nós mesmos e constitui a medida do que
a humanidade é capaz: neste sentido, ela é transcendente, mas existe apenas precisamente
quando é representada, ativada ou encarnada em um corpo: neste sentido, é também
imanente.133
Enquanto para ele a dança é a pura expressão da capacidade de um corpo no
espaço, do que um corpo é capaz sem referencia à ideia, o teatro trata a imanência
e a transcendência no imediato. No espaço entre a celebração do potencial do corpo
e a espetacular natureza da imagem, o teatro capta a relação entre imanência e
transcendência do ponto de vista da ideia. Ele a considera a mais completa das artes,
um lugar privilegiado para a emergência de verdades artísticas. Por isso, o teatro
aparece como um lugar do surgimento da ideia viva. Em uma formulação que reflete
a frase de Beckett, já citada, na qual ele define que a tarefa dos artistas é dar forma
à desordem, Badiou lembra que a missão do teatro em tempos confusos é mostrar a
confusão como confusão.
O teatro estiliza e amplifica, ao ponto da obviedade, o fato de que um mundo confuso é
inabitável por aqueles que o produzem, mesmo, e especialmente, aqueles que acreditam
que a confusão é simplesmente o estado natural da vida. O teatro faz aparecer no palco a
alienação daqueles que não veem que é a lei do mundo que se perdeu, não é por falta de
133 BADIOU, Alain ; TRUONG, Nicolas. In Praise of Theatre. Cambridge: Polity Press, 2015. p.
11.
95
sorte ou incapacidade pessoal (...) Então, na representação dessa confusão, o teatro faz uma
tentativa de fazer emergir uma possibilidade ainda não vista. 134
Situações confusas, personagens alienados e atônitos diante da lei do
mundo, frutos do mundo em desordem, tudo isso foi apresentado em A
Reunificação das Duas Coreias. Algumas tocam o trágico pelos caminhos já
apontados. É interessante, antes de encerrar, lembrar também que, se há traços do
trágico presentes na peça, não há sentimentos de pessimismo ou niilismo como
rescaldo. Curiosamente, o gosto ao final de tantos desencontros não é amargo e o
clima não é sombrio. Talvez, porque nesta forma do trágico “o teatro mostra que a
situação é certamente desesperadora, mas, dentro disso, um Sujeito pode fazer suas
próprias leis luminosas prevalecerem.”135
134 Ibidem, p. 13. 135 Idem.
96
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