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    ANGELO VITRIO CENCI

    A CONTROVRSIA ENTRE HABERMAS E APEL ACERCA DARELAO ENTRE MORAL E RAZO PRTICA NA TICA DO

    DISCURSO

    Tese de Doutorado apresentada ao Departamento deFilosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanasda Universidade Estadual de Campinas sob a orientaodo Prof. Dr. Marcos Nobre.

    Este exemplar corresponde redao final

    da Tese defendida e aprovada pelaComisso Julgadora em 28/08/2006.

    BANCA

    Prof. Dr. Marcos Nobre (Orientador)

    Prof. Dr. Manfredo Arajo de Oliveira (membro)

    Prof. Dr. Oswaldo Giacia Jnior (membro)

    Prof. Dr. Ricardo Terra (membro)

    Prof. Dr. Luiz Repa (membro)

    Prof. Dr. Marcos Lutz Mller (suplente)

    Profa. Dra. Yara Adrio Frateschi (suplente)

    Profa. Dra. Ftima Regina Rodrigues vora(suplente)

    CAMPINAS, AGOSTO DE 2006

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA

    BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Ttulo em ingls: The controversy between Habermas and Apel

    regarding the relation between moral and practicalreason in discourse ethics.

    Palavras chave em ingls (Keywords): Ethics.Reason.Responsability.Pragmatics.Law.

    rea de concentrao : Filosofia.

    Titulao : Doutor em Filosofia.

    Banca examinadora : Marcos Nobre, Manfredo Arajo de Oliveira, RicardoTerra, Luiz Repa, Oswaldo Giacia Jnior.

    Data da defesa : 28-08-2006.

    Programa de Ps-Graduao :- Filosofia

    Cenci, Angelo VitrioC332c A controvrsia entre Habermas e Apel acerca da relao entre

    moral e razo prtica na tica do discurso / Angelo Vitrio Cenci.- - Campinas, SP : [s. n.], 2006.

    Orientador: Marcos Nobre.Tese (doutorado ) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Habermas, Jurgen, 1929-. 2. Apel, Karl-Otto, 1922.3. tica. 4. Razo. 5. Responsabilidade. 6. Pragmtica. 7. Direito.I. Nobre, Marcos. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

    cc/ifch

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    RESUMO

    Neste trabalho investiga-se o modo como a relao entre moral e razo prtica tratada

    nos programas da tica do discurso de Habermas e Apel. Defende-se a hiptese de que as

    controvrsias existentes entre Habermas e Apel acerca da tica do discurso se devem ao modo

    diferenciado como a esfera da moral do discurso vai ser tematizada no programa de cada autor e

    que o modo distinto de eles conceberem o conceito de razo prtica resultar de tal diferena. As

    respostas dadas a essa problemtica acerca da esfera prpria da moral redundaro em dois

    programas da tica do discurso, que progressivamente vo se distanciando de suas razes comuns

    e que iro, ao final, projetar duas concepes de razo prtica bastante distintas e, em grande

    medida, inconciliveis, de modo a parecer impossvel reuni-las sob uma mesma rubrica. Assim,

    em razo da diferena existente no programa inicial de cada autor entre a formulao de umanoo mais estreita de moral deontolgica, como a defende Habermas ou mais ampla

    deontolgico-teleolgica, como o prope Apel ter-se- como conseqncia que, para

    Habermas, a moral e a razo prtica ficaro situadas dentro de uma teoria ou filosofia do discurso

    e a razo prtica no poder ser compreendida em sentido moral; em Apel, ambas as esferas

    ficaro situadas dentro da prpria tica do discurso, de modo que a moral ocupar a parte A e a

    esfera da razo prtica a parte B teleolgica e ser compreendida em sentido moral.

    Palavras-chave: tica; razo; responsabilidade; pragmtica; direito.

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    ABSTRACT

    This works aims at investigating how the relation between moral and practical reason is

    approached in the programs of discourse ethics by Habermas and Apel. Attempts are made to

    defend the hypothesis that the controversy between Habermas and Apel regarding discourse

    ethics results from the different ways the moral sphere of the moral of discourse is dealt with in

    each authors program and that the distinct ways they conceive the concept of practical reason

    results from such difference. The answers given to the problematic of the moral sphere will lead

    to two programs of discourse ethics that gradually depart from their common roots and, in the

    end, project two quite distinct conceptions of practical reason which, on a larger scale, become

    irreconcilable, so that it seems impossible to classify them under the same rubric. Thus, due to thedifferences noticed in each authors initial program regarding the formulation of a narrower

    notion of moral deontological, as defended by Habermas or broader deontological-

    teleological, as proposed by Apel the consequence is that, for Habermas, moral and practical

    reason shall be placed within a theory or philosophy of discourse and the practical reason cannot

    be understood in a moral sense; for Apel, both spheres shall be placed within discourse ethics so

    that moral is on part A and the sphere of practical reason on part B teleological and shall be

    understood in a moral sense.

    Key words: ethics; reason; responsibility; pragmatics; law.

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    AGRADECIMENTOS

    A realizao deste trabalho no teria sido possvel sem o apoio prestado prof. Dr. Marcos

    Nobre e sua orientao sempre perspicaz e estimuladora. A ele devo tambm o acolhimento na

    UNICAMP.

    Agradeo aos professores Drs. Ricardo Terra e Luiz Srgio Repa pelas observaes e

    contribuies feitas quando da banca de qualificao do trabalho.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UNICAMP, pelo ambiente acadmico

    oferecido e pelas condies propiciadas para a realizao do curso de doutorado.

    Aos colegas da UNICAMP, especialmente a Clodomiro Banwart Jnior, Felipe Gonalves

    Silva, Jos Rodrigo Rodriguez, Jorge Lubenow e Erika Ribeiro. Secretaria do Programa de Ps-graduao em Filosofia da UNICAMP, em especial a

    Rogrio Ribeiro, pelo apoio sempre eficiente e gentil.

    Universidade de Passo Fundo, pelo apoio institucional.

    Aos colegas do curso de Filosofia da UPF Cludio Dalbosco, Altair Fvero, Gerson

    Trombetta, Edison Casagranda, Mrcio Soares, Elli Beninc e Eldon Mhl.

    Cludia.

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    SUMRIO

    Abreviaturas ................................................................................................................................13

    Introduo ....................................................................................................................................15

    PARTE I: O PROGRAMA INAUGURAL DA TICA DO DISCURSO DE KARL-OTTOAPEL .......................................................................................................................23

    1 A situao paradoxal da tica contempornea e a necessidade de um modelo defundamentao filosfica ltima .............................................................................................27

    1.1 O diagnstico acerca do paradoxo da atual situao da tica..................................................271.2 O modelo de fundamentao filosfica ltima........................................................................35

    1.2.1 A crtica posio falibilista do racionalismo crtico ........................................................35

    1.2.2 O modelo apeliano de prova de pressupostos.....................................................................401.2.3 Os pressupostos inevitveis da argumentao....................................................................47

    2 A fundamentao da tica do discurso e a introduo de uma dimenso teleolgica no seuprograma ...................................................................................................................................53

    2.1 A fundamentao da tica do discurso .................................................................................... 532.1.1 Da tica da cincia tica do discurso ............................................................................... 532.1.2 O princpio moral fundamental e suas pressuposies.......................................................552.1.3 A fundamentao do princpio moral.................................................................................58

    2.2 O problema da exigibilidade: a tica do discurso como tica da responsabilidade.................64

    PARTE II: O PROGRAMA HABERMASIANO DE FUNDAMENTAO DA TICA DODISCURSO .............................................................................................................71

    3 Os pressupostos da tica do discurso extrados da teoria da ao comunicativa ...............75

    3.1 A teoria da ao habermasiana: os tipos de aes e o conceito de agir comunicativo...........753.2 A pragmtica formal e a tese do parasitismo..........................................................................79

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    3.3 Entendimento e acordo comunicativo .................................................................................... 833.4 O significado de entender um ato de fala: condies que um acordo comunicativo tem de

    satisfazer para cumprir funes de coordenao da ao........................................................86

    4 A fundamentao habermasiana do princpio (U) ................................................................93 4.1 A especificidade das proposies normativas .......................................................................944.2 O princpio de universalizao habermasiano.......................................................................984.3 A verso habermasiana do argumento pragmtico transcendental e a fundamentao de (U)

    ............................................................................................................................................1034.3.1 O papel da fundamentao pragmtico-transcendental da tica...................................1034.3.2 A reformulao do argumento pragmtico-transcendental de Apel.............................1054.3.3 A verso habermasiana do argumento pragmtico-transcendental e a deduo do

    princpio (U) .................................................................................................................111

    PARTE III: A NOVA ARQUITETNICA APELIANA DAS PARTES A E B DA TICADO DISCURSO ...................................................................................................119

    5 A arquitetnica apeliana das partes A e B da tica do discurso ........................................123

    5.1 Razes para a formulao da arquitetnica das partes A e B.............................................1235.2 A arquitetnica das partes A e B da tica do discurso .......................................................1285.3 O princpio (C) e a dimenso teleolgica da variante apeliana da tica do discurso .........1365.4 A aplicao como problema acerca da realizao das condies de aplicao da tica do

    discurso...............................................................................................................................143

    PARTE IV: A MORAL DO DISCURSO E A DIFERENCIAO HABERMASIANA DOSDISCURSOS DA RAZO PRTICA................................................................153

    6 A diferenciao habermasiana dos discursos da razo prticae a relao entre a moral e odireito .......................................................................................................................................157

    6.1 A crtica de Habermas arquitetnica apeliana das partes A e B...................................... 1576.2 A reformulao habermasiana do conceito de razo prtica ..............................................162

    6.3 O princpio do discurso neutro em relao moral e ao direito.........................................1696.4 Co-originariedade e complementariedade entre moral e direito ........................................176

    7 Os dficits da moral em relao ao direito e o problema da aplicao comoadequao..............................................................................................................................183

    7.1 Os dficits da moral em relao ao direito e o problema da exigibilidade do seguimento dosjuzos morais.......................................................................................................................183

    7.2 A aplicao como adequao ............................................................................................. 193

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    7.2.1 A aplicao entendida em perspectiva ps-convencional ............................................1967.2.2 A distino entre fundamentao e aplicao e a crtica a Kant .................................. 1977.2.3 O princpio de adequao ............................................................................................. 201

    PARTE V: A RADICALIZAO PRAGMTICO-TRANSCENDENTAL DAARQUITETNICA APELIANA DA TICA DO DISCURSO.................207

    8 Dissoluo da tica do discurso? Diferenciao discursiva versus ampliao pragmtico-transcendental da tica do discurso ......................................................................................211

    8.1 Princpio do discurso moralmente neutro versusprincpio primordial do discurso..............2118.2 Acerca da complementaridade entre moral e direito: o problema da obrigao moral.........219

    8.2.1 O problema da complementao da fraqueza da motivao da moral mediante o direito......................................................................................................................................219

    8.2.2 O problema da imputabilidade das obrigaes situado a partir da tica do discurso

    enquanto tica da responsabilidade .............................................................................. 2228.3 A ampliao apeliana do conceito de responsabilidade ........................................................225

    8.3.1 O a priori situacional da tica do discurso e a necessidade das partes A e B dafundamentao..............................................................................................................225

    8.3.2 Um conceito ampliado de responsabilidade: a co-responsabilidade referida histria..2288.4 A relao da tica do discurso com o direito e o problema da justificao tica da coero do

    Estado de direito.................................................................................................................232

    Concluso ...................................................................................................................................239

    Referncias bibliogrficas.........................................................................................................243

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    ABREVIATURAS

    Abreviaturas utilizadas para as obras de Karl-Otto Apel:

    AUF Auflsung der Diskursethik?

    DED Dissoluo da tica do discurso?DR1 Discussion et responsabilit 1.DR2 Discussion et responsabilit 2.DV Diskurs und Verantwortung.EDC Etica della comunicazione .EE (1980) 1986 Necesidad, dificultad y posibilidad de una fundamentacin filosfica de la

    tica en la poca de la ciencia.EE (1982) 1986 Es la tica de la comunidad de comunicacin una utopia? Acerca de la

    relacin entre tica, utopia y crtica de la utopia.EE (1983) 1986 Es posible distinguir la razn tica de la racionalidad estratgico-teleolgica?EE (1984) 1986 El problema de uma teora filosfica de los tipos de racionalidad.

    FTF Falibilismo, teoria consensual de la verdad y fundamentacin ltima.FKL Fallibilismus, Konsenstheorie der Wahrheit und Letzbegrndung.FNT Fondazione normativa della teoria critica`.GRE Grenzen der Diskursethik?LED Limites de la tica discursiva?LLH Le logos propre au langage humain.NBK Normative Begrndung der Kritischen Theorie.PJP A tica do discurso diante da problemtica jurdica e poltica.PRP Diskusethik vor der Problematik von Recht und Politik.PFF El problema de la fundamentacin filosfica ltima desde una pragmtica trascendental

    del lenguaje.

    SH La situation de l`homme comme problme tique.SM Die Situation des Menschen als etisches Problem.TED Teoria de la verdad y tica del discurso.TF ILa transformacin de la filosofia.v.I.TF II La transformacin de la filosofia.v.II.TPh I Transformation der Philosophie. Bd 1.TPh II Transformation der Philosophie. Bd 2.

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    INTRODUO

    O projeto de elaborao de uma tica do discurso comeou a ser gestado por Jrgen

    Habermas e Karl-Otto Apel no perodo que antecedeu a publicao do texto programtico deste

    ltimo, de 1973, intitulado Das Apriori der Kommunicationsgemeinschaft und die Grundlagen

    der Ethik.1A trajetria de quase quatro dcadas desse empreendimento intelectual marcada por

    contribuies significativas no campo da filosofia moral, tais como o esforo de fundamentao

    da tica perante o ceticismo moral e a preocupao em mediar o princpio moral com a ao

    humana. Esse projeto de teoria moral possui a peculiaridade de ter sido construdo a partir de um

    ponto de partida comum e mediante a interlocuo sistemtica entre seus dois fundadores. Esses

    aspectos e o fato de compartilharem idias e problemas fundamentais no decorrer da trajetria da

    tica do discurso favoreceram para que Habermas e Apel fossem identificados com alguma

    freqncia como defensores de um mesmo programa de filosofia moral. Tornou-se, assim, um

    certo lugar-comum avaliar os aspectos dissonantes entre eles como sendo apenas diferenas de

    nfase. Entretanto, apesar das conhecidas afinidades intelectuais e do esforo comum de

    fundamentao de uma tica do discurso, um exame cuidadoso de seus textos revela divergncias

    mais profundas. Estas se referem a problemas que vo muito alm da colocao de acentos em

    diferentes aspectos de um projeto que, primeira vista, percorreria uma trajetria linear desde seuincio. Um olhar retrospectivo mais atento sobre o esforo terico de cada um de seus dois

    fundadores permite identificar dissonncias importantes nessa trajetria, de modo a no ser

    possvel conceber o quadro terico da tica do discurso como um referencial homogneo.

    1APEL, K.-O. Transformation der PhilosophieBd. II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p.358-435.

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    A rigor, de uma forma mais ampla, as diferenas entre Habermas e Apel podem ser

    encontradas j em relao ao modo como cada um deles concebe seu respectivo projeto de

    filosofia. Quando se remonta pragmtica transcendental de Apel e pragmtica universal ou

    formal de Habermas, possvel notar que se constituem como projetos tericos que partilhampontos e intenes em comum, mas que, ao mesmo tempo, se estruturam de modo distinto e com

    origens em contextos filosficos diferentes. Por parte de Apel, sua filosofia marcada, desde o

    incio, pela questo central acerca de como transformar de modo ps-metafisico o ponto de

    partida filosfico-transcendental de Kant a pergunta acerca das condies de possibilidade da

    validez do conhecimento para superar a aporia em torno da incognoscibilidade da coisa em si e

    ajust-lo ao nvel da reflexo acerca de uma teoria crtica das cincias naturais e das cincias

    sociais. Dois impulsos tericos foram decisivos para o programa apeliano de transformao da

    filosofia transcendental, os quais esto presentes em Transformation der Philosophie, de 1973. O

    primeiro pode ser identificado pelos programas de investigao levados adiante por meio de uma

    hermenutica transcendental da linguagem e de uma antropologia transcendental do

    conhecimento que comearam a ser desenvolvidos no incio da dcada de 60, tendo como

    principais interlocutores Heidegger e Wittgenstein. O segundo foi a obra de Peirce, juntamente

    com o segundo Wittgenstein.2 O modelo proposto de filosofia e de fundamentao da tica

    moldado, pois, pela transformao da filosofia transcendental de Kant a partir de um duplo

    prisma: histrico-hermenutico e pragmtico-semitico.3

    Por parte de Habermas, suas investigaes filosficas so pautadas pelo objetivo principal

    de desenvolver a idia de uma teoria da sociedade com inteno prtica.4 Seus interesses

    intelectuais orientam-se, inicialmente, pela preocupao em tematizar a relao entre teoria e

    prxis com base num prisma epistemolgico. Habermas guia-se pelo propsito de elaborar uma

    crtica integral ao positivismo a partir do alcance obtido at ento pelo problema j colocado por

    Kant acerca da possibilidade do conhecimento em geral. O aprofundamento dessa problemtica

    perpassa os anos sessenta. Nas dcadas de setenta e oitenta, o seu projeto de elaborar uma teoriada sociedade por meio de uma teoria do conhecimento d lugar a uma teoria da ao

    comunicativa. A tica do discurso em seu programa de 1983 situada a partir desse projeto e de

    2 APEL, K.-O. Autopercepcin intelectual de um proceso historico: retrospectiva autobiogrfica. In: Anthropos:Karl-Otto Apel: una tica del discurso o dialgica,Barcelona, n.183, mar./abr. 1999, p.15a ss.3APARISI, J. C. S. Una brjula para la vida moral: la idea de sujeto en la tica del discurso de Karl-Otto Apel.Granada: Comares, 2003.4HABERMAS, J. Teoria y praxis. Madrid: Tecnos, 1987, p.13.

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    sua aproximao ao modelo das denominadas cincias reconstrutivas. Isso no significa, no

    entanto, que anteriormente Habermas no tenha se ocupado com questes de teoria moral.

    Esboos preliminares do que vir a ser a tica do discurso j podem ser encontrados em Arbeit

    und Interaktion, de 1967, publicado em Technik und Wissenschaft als 'Ideologie' (1968),Erkenntnis und Interesse (1968), sobretudo o eplogo de 1973 desta obra e, principalmente, em

    Legitimationsprobleme im Sptkapitalismus (1973).5Na ltima partedeste livro Habermas j se

    ocupa explicitamente com questes de teoria moral, orientando-se ali conforme ele prprio

    observar depois por um modelo de interesses reprimidos suscetveis de universalizao`.6

    Trata-se, na verdade, do primeiro esboo do programa de uma moral universalista de princpios

    que ser desenvolvido a partir do incio da dcada de 80.

    Com a apresentao deste programa, o projeto de uma tica do discurso, desenvolvido

    inicialmente com base numa perspectiva geral comum e orientado at ento de modo mais

    sistemtico pelo programa de Apel, tambm sofrer modificaes significativas.7O programa de

    Habermastomar por base uma teoria da ao comunicativa e uma concepo pragmtico-formal

    do significado. Ele no se estrutura, pois, mediante o projeto de uma transformao da filosofia

    transcendental de Kant e uma pragmtica transcendental, como o fizera Apel. Seu programa ser

    situado a partir de uma concepo de filosofia que se aproxima das cincias reconstrutivas e

    incorporar uma perspectiva falibilista e um modelo transcendental fraco de fundamentao, ao

    invs de uma fundamentao ltima, embora, como almejado por Apel, de carter no-

    metafsico. Isso lhe possibilita reformular o argumento pragmtico-transcendental de Apel e,

    diferentemente do que ocorre no programa deste, os pressupostos da argumentao no possuem

    um teor normativo-moral, mas apenas normativo. Por conseguinte, o conceito habermasiano de

    5HABERMAS, J. [1967] Arbeit und Interaktion. In: Technik und Wissenschaft als 'Ideologie'. Frankfurt am Main:Suhrkamp, 1968, p.20; Trad. Trabalho e interao. In: Tcnica e cincia como ideologia. Lisboa: Edies 70, 1994,

    p.20-21; [1968] Erkenntnis und Interesse. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p.403. Trad. Conhecimento e interesse.Rio de Janeiro: Guanabara, 1987 (posfcio de 1973, p.346-7) e [1973] Legitimationsprobleme im Sptkapitalismus.Frankfurt am Main: Suhrkamp, p.140-152. Trad. Crise de legitimao no capitalismo tardio.Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1980, p.130-140. Na mesma obra Habermas j faz referncia ao texto de Apel Das apriori derKommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik. In:Transformation der Philosophie. Bd. 2. Frankfurtam Main: Suhrkamp, 1973.6 HABERMAS, J. [1990] Die nachholende Revolution Kleine Politische Schriften VII. Frankfurt am Main:Suhrkamp, p.115. Trad. Esp.La necesidad de revisin de la izquierda. 2 ed. Madrid: Tecnos, 1996, p.164.7 Isso ocorre sobretudo mediante Diskursethik Notizen zu einem Begrndungsprogramm. In: HABERMAS, J.Moralbewusstsein und Kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983. So significativos desseperodo tambm os trabalhosDie Philosophie als Platzhalter und InterpreteMoralbewusstsein und kommunikativesHandeln,que compem esta mesma obra, bem como Treffen Hegels Einwnde gegen Kant auch auf die Diskursethikzu? (1986) e Was macht eine Lebensform rational? (1984), reunidos depois em Erluterungen zur Diskursethik.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991.

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    discurso no impregnado de modo moral-normativo, como tambm no o ser posteriormente.8

    Tambm o princpio moral (U) assume uma feio distinta da norma moral fundamental apeliana.

    Em seu carter formal, constitui-se numa regra de argumentao sem vincular um dever moral

    em relao ao agir, deixando os contedos a encargo dos discursos reais. Porm, assim comoApel, Habermas tambm preocupar-se- em fugir do risco de incorrer no rigorismo moral, de

    modo que (U) j traz consigo o princpio de uma tica da responsabilidade prpria para a

    avaliao das conseqncias e dos efeitos colaterais oriundos das aes humanas coletivas. Esse

    problema permanece, ento, circunscrito ao mbito de uma moral deontolgica, sem agregar a ela

    uma dimenso teleolgica como o fizera Apel.9

    A forma como Habermas elabora agora seu programa da tica do discurso traz consigo,

    portanto, modificaes significativas em relao ao modo como Apel o apresentara at ento. No

    centro das modificaes introduzidas por Habermas com seu programa de fundamentao esto

    as especificaes feitas por ele em torno de sua noo da moral do discurso, considerada a partir

    de limites estreitos e sob enrgicas abstraes, uma vez que se configura como moral

    especificamente deontolgica. Com esta especificao Habermas concede, j na formulao de

    seu programa inicial, um mbito mais estreito que Apel esfera da moral do discurso e assenta a

    base para o desdobramento das divergncias programticas que se seguiro entre ele e Apel, a

    partir de ento, no interior da tica discursiva.

    Considerando a problemtica aqui anunciada, defendemos a hiptese de que as

    controvrsias existentes entre Habermas e Apel acerca da tica do discurso se devem ao modo

    diferenciado como a esfera da moral tematizada no programa de cada autor e que o modo

    distinto de conceberem o conceito de razo prtica resulta de tal diferena. As respostas dadas a

    essa problemtica acerca da esfera prpria da moral redundaro em dois programas da tica do

    discurso que, progressivamente, vo se distanciando de suas razes comuns e que, ao final, iro

    projetar duas concepes de razo prtica bastante distintas e, em grande medida, inconciliveis,

    de modo a parecer impossvel reuni-las sob uma mesma rubrica. Assim, em razo da diferena

    8 HABERMAS, J. Faktizitt und Geltung: Beitrge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischenRechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.9 Os programas de Habermas e Apel tm como ponto comum a filiao perspectiva kantiana de uma moraldeontolgica, mas renovada em termos discursivos. No entanto, o modo de conceber esse deontologismo diferenciado desde o incio entre os dois fundadores da tica do discurso, uma vez que Apel, de modo distinto deHabermas, o assumir com certas reservas e acrescentar tica do discurso uma dimenso teleolgica. Apelincorporar a sua tica uma teleologia moral procurando imprimir a esta a feio de uma estratgia moral,

    procurando evitar, no entanto, um telos substancial da vida boa.

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    existente no programa inicial de cada autor entre a formulao de uma noo mais estreita de

    moral deontolgica, como a defende Habermas ou mais ampla deontolgico-teleolgica,

    como o prope Apel ter-se- como conseqncia, posteriormente, que, para Habermas, a moral

    e a razo prtica ficaro situadas dentro de uma teoria ou filosofia do discurso e, esta ltima nopoder ser compreendida em sentido moral; em Apel, ambas as esferas ficaro situadas dentro da

    prpria tica do discurso de modo que a moral ocupar a parte A e a esfera da razo prtica, a

    parte B teleolgica , sendo compreendida em sentido moral. Portanto, pretende-se mostrar que

    as controvrsias entre Habermas e Apel se originam do modo diferenciado de compreenderem,

    respectivamente, na tica do discurso, a esfera moral como deontolgica ou deontolgico-

    teleolgica e, em decorrncia, a razo prtica como no prescritiva ou como razo prtico-moral.

    Essa problemtica ser apresentada em cinco partes. A primeira tem como funo expor o

    programa inaugural da tica do discurso de Apel em suas dimenses fundamentais. Dividida em

    dois captulos, volta-se inicialmente para a retomada do diagnstico apeliano sobre a situao da

    tica contempornea e o seu intuito de fundamentar racionalmente uma tica de cunho

    universalista [1]. O alvo prioritrio de Apel aqui , no dilogo com grandes correntes da filosofia

    contempornea, o desenvolvimento de um modelo de fundamentao filosfica ltima e,

    particularmente, a fundamentao da tica do discurso. Porm, por ter conscincia de tratar-se de

    uma tica formalista, ele se preocupa em fugir do risco de incorrer no rigorismo moral. Ocupa-se,

    ento, com o problema da exigibilidade da ao moral, situando-o do prisma de uma tica da

    responsabilidade, e vincula, desse modo, uma dimenso teleolgica tica do discurso [2].

    A segunda parte, tambm estruturada em dois captulos, aborda o programa inicial da

    tica do discurso em sua verso habermasiana. Nela so retomados aspectos fundamentais da

    teoria da ao comunicativa de Habermas, uma vez que dali so extrados os pressupostos de sua

    tica do discurso [3], e apresentado o modo como esta fundamentada [4]. A fundamentao

    do princpio moral habermasiano ser exposta em trs passos: o primeiro pretende explicitar a

    especificidade de uma pretenso de validez prpria esfera normativa, o segundo introduz (U)como princpio-ponte e o terceiro leva adiante a fundamentao propriamente dita de (U). Este

    ltimo se constitui no passo mais importante para os propsitos deste trabalho, e em torno dele

    que se configuram mais diretamente as divergncias de Habermas com Apel, sobretudo ao

    defender um modelo de fundamentao mais fraco que o proposto pela pragmtica transcendental

    e ao operar uma transformao do argumento pragmtico-transcendental apeliano. Ao explicitar

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    seu modelo de fundamentao, Habermas, ao mesmo tempo, circunscreve sua moral como

    estritamente deontolgica e, pois, configura-a de acordo com uma noo mais estreita que aquela

    proposta por Apel em seu programa original.

    O programa da tica do discurso de Habermas formulado a partir de 1983 leva Apel areagir com a elaborao de sua arquitetnica das partes A e B da tica na segunda metade da

    dcada de 80. Essa problemtica reservada terceira parte do texto e ser desenvolvida num

    nico captulo [5]. O programa e as crticas de Habermas levam Apel a aprofundar e a detalhar

    determinados pontos de seu programa original, bem como a incorporar aspectos propostos por

    Habermas e, ao mesmo tempo, a estabelecer divergncias importantes para com este. A

    arquitetnica de Apel apresenta mudanas significativas tambm em relao ao formato de

    ambos os programas originais. o caso da introduo das normas morais fundamentais de

    justia, solidariedade e co-responsabilidade, da estruturao clara de uma dimenso teleolgica

    guiada por um princpio de complementao como parte da arquitetnica da tica do discurso e

    do desenvolvimento do problema da aplicao vinculado a ela. Pretende-se mostrar como Apel,

    ao estruturar agora seu programa em duas partes, formata arquitetonicamente os contornos do seu

    conceito da moral discursiva pretendendo atribuir-lhe uma dimenso mais ampla do que a de

    Habermas. O que marca esse momento da controvrsia o fato de a tica do discurso apeliana

    assumir claramente em seu programa um carter deontolgico-teleolgico, extrapolando os

    limites estreitos configurados a esta por Habermas.

    O passo seguinte indicar como Habermas, j no comeo da dcada de 90, recusa o

    modelo arquitetnico deontolgico-teleolgico das partes A e B da tica proposto por Apel e

    opera transformaes importantes em relao ao seu programa de 1983. Alm de divergir das

    novas especificaes conferidas por Apel tica do discurso, ele passa a situar a moral do

    discurso segundo a perspectiva de uma teoria ou filosofia do discurso estruturada mediante um

    princpio do discurso neutro em relao moral e ao direito e por meio de uma diferenciao dos

    discursos da razo prtica. Agora, a moral do discurso situada como uma da regies da teoria dodiscurso e colocada como co-originria e complementar ao direito. Sua teoria do discurso se

    modifica abrindo espao para uma teoria discursiva do direito, e o conceito de razo prtica

    reformulado nos moldes de um conceito de razo comunicativa, o qual no prescritivo, ou seja,

    no abarcado pela esfera moral. A razo prtica, por no poder ser prescritiva, deve ser mais

    ampla que a esfera da moral. Esta parte do trabalho ser desenvolvida com a apresentao do

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    PARTE I

    O PROGRAMA INAUGURAL DA TICA DODISCURSO DE KARL-OTTO APEL

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    Com seu programa inaugural da tica do discurso, Apel prope-se a tarefa de fundamentar

    racionalmente uma tica do discurso e, para tal, procura invalidar, em disputa com correntes

    filosficas contemporneas, posies subjetivistas e cientificistas em relao tica. Os temaspresentes em tal programa recebem desdobramentos posteriores tambm em outros trabalhos, e a

    orientao imprimida por essa tarefa de seu programa original guia seus esforos at a metade da

    dcada de 80, quando sua variante da tica do discurso vai sofrer modificaes.10O programa

    original de Apel parte da constatao de que a tica encontra-se diante de um paradoxo,

    sobretudo se for considerada sua relao com a cincia no contexto da sociedade contempornea,

    a qual marcada pelas caractersticas de uma civilizao tcnico-cientfica. Por um lado,

    apresenta-se a necessidade premente de uma tica universal, principalmente em razo das

    conseqncias das aes humanas decorrentes de tal civilizao. Por outro, a mesma

    racionalidade tcnico-cientfica que provoca tal premncia subtrai a legitimidade de uma tica

    universal uma vez que monopoliza os atributos de racionalidade e objetividade de tal modo que a

    esfera moral fica relegada ao mbito privado das decises subjetivas e irracionais. O diagnstico

    apeliano sobre a situao da tica identifica, ao lado dessa postura cientificista, o predomnio da

    racionalidade estratgica a qual dificulta a fundamentao de uma solidariedade de carter

    interpessoal e a combinao de existencialismo e positivismo presente nas duas grandes

    ideologias do sculo XX: a democracia liberal ocidental e o marxismo ortodoxo oriental.O leitmotiv da tarefa assumida por Apel o de mostrar no apenas a necessidade, mas

    tambm a possibilidade e a relevncia de uma fundamentao filosfica ltima e, por

    conseguinte, tambm da tica.11 Para tal, Apel tem de fazer frente a determinadas posturas

    presentes na filosofia contempornea, as quais tm em comum a idia da impossibilidade e,

    10Essas modificaes sero apresentadas no captulo 5 do presente trabalho.11O esforo de Apel nessa tarefa de fundamentao desenvolvido tendo sempre como base seu projeto maior detransformao da filosofia transcendental em dilogo estreito com as grandes correntes da filosofia contempornea.

    Nessa perspectiva, estabelece uma interlocuo crtico-reconstrutiva especialmente com Kant, Peirce, o segundoWittgenstein, Heidegger e o prprio Habermas. De Kant, Apel adota o modelo de reflexo transcendental e de umatica cognitivista, transformando sua filosofia transcendental atravs de Peirce. Com Peirce adota o conceito decomunidade de comunicao, porm o amplia com Mead da esfera da comunidade dos investigadores para o apriorida comunidade de comunicao real e ideal, ou seja, humanidade. No segundo Wittgenstein Apel busca

    principalmente a tese da impossibilidade de uma linguagem privada e confere um carter renovado intersubjetivo epblico s evidncias de certeza buscadas na tradio. Da tradio hermenutica Apel herda, entre outros aspectos,a idia heideggeriana de abertura de sentidobaseada na compreenso do sujeito como um ser imerso na faticidadeda existncia, oDasein. Por fim, em Habermas a referncia principal para a interlocuo a pragmtica universal. Ainterlocuo de Apel com estes autores e tradies complexa e sua apresentao demandaria um esforo exaustivo,o qual extrapola os propsitos deste trabalho.

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    1 A SITUAO PARADOXAL DA TICA CONTEMPORNEA E ANECESSIDADE DE UM MODELO DE FUNDAMENTAOFILOSFICA LTIMA

    1.1 O diagnstico acerca do paradoxo da atual situao da tica

    O programa original da tica do discurso de Apel parte de uma espcie de diagnstico em

    relao ao panorama da filosofia no sculo XX, o qual revela, no que diz respeito

    fundamentao da tica, um paradoxo. Este expresso mediante a constatao, por um lado, da

    necessidade de levar-se adiante uma fundamentao racional da tica e, por outro, de sua

    aparente impossibilidade.12A necessidade de fundamentao de uma tica de carter universal

    advm sobretudo da situao atual em que se encontra a humanidade, a qual colocada diante de

    problemas complexos e com repercusses globais. Trata-se de postular uma tica que envolva

    toda a humanidade uma macrotica universal em razo dos efeitos causados pelas aes

    humanas em escala planetria.

    Apel toma como ponto de partida para seu diagnstico uma leitura com feies

    antropolgicas, entendendo que a atual civilizao tcnico-cientfica traduz uma nova situao da

    condio humana. Trata-se da situao de um ser que enquanto homo faber libertou-se

    externamente da natureza e, enquanto homo sapiens, (...) destacou-se do domnio determinista

    das leis naturais.13

    Apel entende que a superao das barreiras instintivas existentesanteriormente, provocada pela tcnica desenvolvida pelo homo faber, levou, por um lado, ao

    nascimento da conscincia moral, mas, por outro, provocou um desequilbrio entre os potenciais

    de agressividade e as barreiras inibidoras destes mesmos potenciais. A ratiotcnica possibilitou a

    gerao de efeitos que ultrapassaram em muito a capacidade de serem controlados mediante os

    12APEL, K.-O. TF II, p.342; TPh II, p.359.13APEL, K.-O. SH, p.17; SM, p.44.

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    instintos. Essa situao traduzida no fato de o homo sapiens ter de reconhecer que o homo

    faber, com tudo aquilo que j fez e que pode ainda fazer, o ultrapassou de longe e que lhe cabe

    agora (...) a tarefa de corrigir o desequilbrio existente. Dito de outro modo: trata-se de fornecer,

    com a ajuda da razo prtica`, uma resposta a uma situao que, apoiando-se essencialmentesobre a razo tcnica, ele mesmo criou.14

    As conseqncias oriundas da cincia e da tcnica sobre as aes humanas passam a

    assumir uma dimenso tal que j no possvel adotar apenas normas que regulem a ao em

    pequenos grupos ou a relao entre grupos. H a necessidade de se distinguir, com relao s

    conseqncias das aes, trs mbitos: uma microesfera (prpria da famlia, vizinhana, etc.),

    uma mesoesfera (da poltica nacional) e uma macroesfera (referida ao destino da humanidade).15

    Os riscos oriundos da expanso planetria e da civilizao tcnico-cientfica, e que podem

    ameaar a existncia da humanidade, devem ser localizados nesse terceiro mbito. Portanto, o

    desafio de assumir a solidariedade e a responsabilidade tica ganha um alcance universal e deve

    ser levado adiante segundo o prisma de uma tica universalista. Essa necessidade de uma tica de

    carter universal e de sua fundamentao depara-se, no entanto, com a posio defendida por

    determinadas correntes da filosofia contempornea que consideram tal esforo impossvel. Os

    pressupostos filosficos que indicam essa impossibilidade so os seguintes: a) uma

    fundamentao racional somente possvel por meio de uma deduo lgico-formal de

    proposies a partir de outras proposies num sistema proposicional sinttico-semntico

    axiomatizado (posio do racionalismo crtico); b) a validade intersubjetiva das proposies

    equiparada validade objetiva no sentido de um estabelecimento emprico de fatos ou de um

    raciocnio dedutivo lgico-formal (pressuposto vinculado tese da neutralidade cientfica); c) da

    constatao de fatos no possvel se deduzir nenhum juzo de valor, nem qualquer enunciado

    normativo (pressuposto associado distino entre ser e dever ser).16

    Essas posies que combinam subjetivismo no plano moral com cientificismo no plano

    epistemolgico se fazem presentes tanto nas correntes tericas reunidas em torno do denominado

    14APEL, K.-O. SH, p.17; SM, p.44.15APEL, K.-O. TF II, p.343; TPh II, p.360.16APEL, K.-O. Les conflits de notre poque et l`urgence d`une orientation fondamentale de l`tique politique. In:Discussion et responsabilit1: Ltique aprs Kant. Paris: Du Cerf, 1996, p.140. Trad. de Die Konflikte unserer Zeitund das Erfordernis einer ethisch-politischen Grundorientierung. In:Diskurs und Verantwortung: das Problem desbergangs zur postkonventionellen Moral. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p.24. A esse respeito tambm EE (1980)1986, p.125ss e TF II, p.359; TPh II, p.378.

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    sistema de complementaridade ocidental quanto no sistema de integrao oriental.17Trata-se, em

    suma, de uma conjugao filosfica de existencialismo e positivismo. Para Apel, uma das razes

    dessa problemtica deve ser buscada na terceira premissa acima apresentada a qual explicita a

    distino operada pela filosofia moderna entre ser e dever ser.18Essa distino estabeleceu umanova problemtica para a tica, uma vez que entre a idia da razo prtica e a concepo de uma

    racionalidade cientfico-tecnolgica passou a configurar-se um abismo logicamente insupervel.19

    No sculo XX tal distino se converteu no paradigma da metatica analtica na medida em que

    esta concebe os discursos normativos como valorativamente neutros e distintos dos discursos

    explicativos da cincia. A distino entre esses dois tipos de discursos como correlatos de dever

    ser e ser considera verdade e objetividade como predicados metalingsticos das proposies da

    cincia e entende que estes possuem carter descritivo-explicativo. Como, desse modo, as

    proposies da tica, que so prescritivo-normativas, no podem ser apresentadas como

    objetivamente vlidas ou verdadeiras, passam a ser substitudas por decises subjetivas que no

    admitem ulterior fundamentao.20Os fundamentos de uma tica normativa so desmascarados

    pela metatica analtica como dogmticos e ideolgicos. A pretenso de validade da tica

    normativa passa, ento, a ser estigmatizada como iluso lamentvel ou como repreenso

    autoritria e perigo para a liberdade humana.21 Destarte, o complemento filosfico da razo

    tecnico-cientfica positivista apresenta-se como um existencialismo subjetivista-irracionalista,

    cuja conseqncia a impossibilidade de uma fundamentao filosfica e racional da tica.

    O liberalismo tardio, ou sistema ideolgico de complementaridade ocidental, procura

    abarcar ao mesmo tempo a racionalidade valorativamente neutra na esfera pblica e as decises

    subjetivas de conscincia na esfera da vida privada. Todavia, Apel interpreta tal sistema como

    aportico uma vez que o mesmo conceito de ratio cientfica que determina, a partir de suas

    17 A complementaridade (ocidental) ocorre entre existencialismo e cientificismo, a integrao (oriental) a queacontece do indivduo para com o interesse de classe amalgamado pelo partido. Ao primeiro Apel denomina tambmde liberalismo tardio. Dentre as correntes de pensamento a inscritas esto o racionalismo crtico, a filosofia analtica,Max Weber e o positivismo. A segunda posio constitui-se em torno do socialismo cientfico, traduzido

    basicamente na figura do marxismo-leninismo.18 Como observa Albert, a distino entre ser e dever ser surge tardiamente na filosofia e tanto possibilita atematizao autnoma de problemas ticos como coloca para o campo da tica o problema da fundamentao e anecessidade de sua tematizao de forma explcita. ALBERT, H. Tratado da razo crtica. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1976, p.77. A esse respeito tambm POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos, v.I, cap.5. SoPaulo: Itatiaia; Edusp, 1987.19APEL, K.- O. EE (1980) 1986, p.111.20APEL, K.- O. EE (1980) 1986, p.111.21APEL, K.- O. TF II, p.345; TPh II, p.363.

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    implicaes tecnolgicas, o atual desafio da razo prtica como o caso da necessidade de uma

    responsabilidade solidria da humanidade em relao ao problema da ecoesfera o que impede

    a mobilizao da razo prtica, na medida em que a apresenta como obsoleta.22 Nessa

    perspectiva, o sistema de complementaridade entende as normas da tica e do direito positivocomo resultado de convenes ou acordos no mais passveis de fundamentao. Mediante esse

    pressuposto, o problema da fundamentao de normas transforma-se num procedimento

    filosfico trivial. Disso decorre, por exemplo, no ser possvel fundamentar nenhuma

    obrigatoriedade moral em relao a normas legais positivas para os cidados que as acordaram.

    Essa posio convencionalista supe o fato da livre-aceitao manifestada nas convenes

    democrticas acerca de normas como suficiente para justificar filosoficamente a obrigatoriedade

    de normas publicamente vlidas.23

    Por limitar-se a um convencionalismo em termos de acordo, o sistema liberal padece de

    um dficit estrutural de fundamentao, pois no consegue fundamentar tico-racionalmente

    convenes publicamente vlidas nem uma interpretao tico-normativa das decises de

    conscincia dos cidados individuais.24O sistema de complementaridade ocidental aportico,

    ainda, em razo de, por um lado, postular a liberdade dos indivduos mas, por outro, entender que

    essa liberdade se torna ilusria assim que for vinculada esfera privada, ao mesmo tempo em que

    a esfera pblica revela uma inrcia e uma necessidade exclusivamente interna. Em tal sistema,

    nos diferentes setores da vida pblica as justificaes morais da prxis tendem a ser substitudas

    por argumentos pragmticos fornecidos pelos experts segundo regras objetivveis de cunho

    estratgico.25

    A outra posio que compartilha com o sistema de complementaridade ocidental uma

    postura cientificista e subjetivista o denominado sistema de integrao oriental, baseado no

    marxismo-leninismo ortodoxo e que no diferencia claramente esfera da vida pblica e esfera da

    vida privada.26 A diferena entre as aporias do sistema ocidental e do sistema oriental que,

    enquanto no primeiro so postuladas apenas decises morais de conscincia de todos osindivduos, por ser impossvel a fundamentao intersubjetiva de normas morais, no segundo

    postulada a solidariedade da responsabilidade moral da sociedade. Porm, tal solidariedade no

    22APEL, K.- O. EE (1980) 1986, p.113.23 APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.115.24APEL, K.- O. EE, (1980) 1986, p.117.25APEL, K.- O. TF II, p.352; TPh II, p.370.26APEL, K.- O. EE, (1980) 1986, p.118.

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    vem mediada por decises individuais de conscincia, nem no sentido terico, nem na dimenso

    prtico-poltica.27

    Para Apel, j em Marx a liberdade de deciso do indivduo era considerada irrelevante e

    impotente enquanto no estivesse integrada na liberdade real de cooperao solidria, e aracionalidade tcnico-cientfica permanecia abstrata e incompleta enquanto exclusse a dimenso

    teleolgica do destino futuro da histria do gnero humano.28Desse modo, a distino humeana

    entre ser e dever ser aparece de forma ambgua a Marx, pois, observa Apel, o movimento

    histrico do ser mediado, de certo modo, atravs da negao determinada daquilo que j para

    aquilo que deve ser.29 Em Marx, no lugar da distino humeana apareceria uma verso

    extrapolada para o futuro da equiparao entre o real e o racional levada adiante por Hegel. O

    conceito de prxis de Marx ambguo em razo de que, mesmo que enfatize a importncia da

    prxis subjetiva como ocorre na teses contra Feuerbach , acaba obscurecendo o fato de que a

    histria humana tem de ser continuada pelos homens mediante a prxis subjetiva.30Marx teria

    denominado a esta ltima de prxis objetiva.

    No marxismo ortodoxo a conseqncia dessa posio e sua precariedade do ponto de vista

    da tica reside no fato de a automediao dialtica do ser, mediante sua negao determinada, ter

    sido concebida no apenas como um processo teleolgico, mas tambm como causalmente

    necessrio.31 A interpretao da mediao entre ser e dever ser levada adiante pelo marxismo,

    inspirado em Hegel, acaba tornando abstrata a distino humeana entre ser e dever ser, do mesmo

    modo que a relao entre o pblico e o privado. Tal mediao marcada pelo cientificismo, que

    se expressa mediante uma super cincia determinista-dialtica da marcha necessria da

    histriaque, atravs da integrao da problemtica tica na racionalidade dialtica do socialismo

    cientfico, poderia fazer parecer o prprio delineamento tico como superado.32 Como o

    indivduo integrado dinmica histrico-teleolgica necessitria do desenvolvimento gradativo

    de uma sociedade justa, e todo compromisso com tal sociedade baseado na idia de uma

    necessidade histrica, a responsabilidade moral no sentido de uma macrotica acaba perdendoseu sentido. Nessa mesma direo, Lnin defendeu a concepo de uma tica relativizada

    27APEL, K.- O. TF II, p.359; TPh II, p.377.28APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.119.29APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.120.30APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.120.31APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.121.32APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.121. Grifos de Apel.

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    historicamente e de cunho estratgico-instrumentalista, de modo que moralmente ordenado passa

    a ser aquilo que se subordina ao respectivo interesse de classe. Lnin, conclui Apel, deriva o

    dever ser a partir de uma necessidade futura a ser determinada de modo cientfico. 33Os experts

    possuem as condies para antever cientificamente a dinmica necessitria do curso da histria,de modo que as opes individuais ficam reduzidas esfera subjetiva e a fundamentao

    universal de normas substituda pela objetividade e cientificidade de suas anlises.

    Apesar das diferenas existentes entre o sistema de complementaridade do liberalismo

    tardio e o de integrao do socialismo cientfico, Apel v um ponto fundamental de tangncia

    entre eles. Ocorre que neste ltimo cria-se novamente um sistema de complementariedade que

    tem como marca um cientificismo moralmente neutro e um irracionalismo privado em relao s

    decises ticas dos sujeitos. Como conseqncia, as decises tico-substanciais da esfera poltica

    so deixadas de fora da deciso dos cidados particulares, j que so qualificadas de modo

    cientificista como questes atinentes razo de estado, e as decises morais dos indivduos so

    instrumentalizadas ideologicamente e orientadas pelos interesses da razo de estado.34Em suma,

    tanto o liberalismo tardio quanto o socialismo cientfico se constituem, para Apel, como formas

    de combinao de subjetivismo e cientificismo; em ambos a absolutizao de uma determinada

    idia da racionalidade cientfica bloqueia o desenvolvimento da razo tica. No primeiro caso

    ocorre um bloqueio ideolgico mediante o dogma de que a validade intersubjetiva do

    conhecimento e da racionalidade no ultrapassa a racionalidade cientfico-tecnolgica

    valorativamente neutra. Por isso, ela deve ser complementada por decises de cunho pr-

    racionais da esfera privada e existencial do sujeito. No caso do socialismo cientfico tem-se um

    bloqueio ideolgico e institucionalizado em dois sentidos: mediante uma interpretao

    objetivista-cientificista da mediao marxiana da dialtica entre teoria e prxis e por meio de uma

    interpretao objetivista-cientificista da dialtica que d origem assuno da responsabilidade

    poltico-moral por parte da elite do partido.35

    As crticas ao cientificismo, representado pelas duas posturas acima caracterizadas e queunem positivismo e existencialismo, colocam a necessidade da tematizao acerca da

    especificidade de uma racionalidade tica. De acordo com tais posies, a prxis deve, na esfera

    da vida pblica, como o caso da poltica, do direito e da cincia, ser regulada exclusivamente

    33APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.122.34APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.123.35APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.124. Grifos de Apel.

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    pela racionalidade no-valorativa da cincia e da tcnica.36Por conseguinte, a moral, do mesmo

    modo que a religio, deve reduzir-se a assunto exclusivo de vida privada. O preo a pagar por

    essa escolha o de que, conforme os pressupostos de tal sistema, no possvel postular uma

    organizao da responsabilidade moral em relao s conseqncias das aes coletivas doshomens. De acordo com tais pressupostos, negada ao discurso tico-filosfico a possibilidade

    de alcanar resultados intersubjetivamente vlidos e no h mais nenhum problema de

    legitimao racional exceto a conduta institucionalizvel.37O problema da responsabilidade das

    pessoas ficaria, assim, adstrito ao mbito institucional e funcional. Desse modo, no mais

    levada em conta a responsabilidade do sujeito como participante de processos pblicos no sentido

    da organizao da responsabilidade solidria nas instituies em funo das conseqncias das

    aes coletivas. Em outros termos, os sujeitos no poderiam mais assumir responsabilidades

    morais pelas aes coletivas da humanidade, como em relao s conseqncias imprevisveis

    das atividades polticas, tcnicas e econmicas.38

    A conseqncia da posio do sistema de complementaridade que o nico fundamento

    de normas publicamente vlidas passa a residir nas decises de vontade meramente subjetivas de

    cada sujeito, essas formadas no mbito privado e que se encontram aqum das normas vlidas

    intersubjetivamente. Ocorre que tanto a prtica quanto o conceito de acordo ou conveno

    requerem uma fundamentao racional de princpios ticos de cunho universal. O limite da

    concepo convencionalista do liberalismo est em desconsiderar que existem determinadas

    condies de possibilidade, de carter normativo, as quais no podem ser fundamentadas

    mediante convenes.39 Um exemplo de tais condies a norma tica e jurdica de cumprir

    acordos. A obrigatoriedade do cumprimento de normas decididas coletivamente requer o carter

    de validade incondicional de uma norma que as antecede. Sem um tal princpio consonante com

    a norma tica fundamental as convenes sequer seriam possveis, assim como a suposio de

    um comportamento recproco espervel entre os sujeitos. por essa razo que Apel entende que,

    se as pessoas se orientassem exclusivamente por uma racionalidade estratgica, at as

    36APEL, K.-O. SH, p.27; SM, p.56.37APEL, K.-O. SH, p.28; SM, p.57.38APEL, K.-O. SH, p.29; SM, p.58.39APEL, K.-O. SH, p.30; SM, p.59.

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    convenes mais simples, que repousam sobre a expectativa esperada de um comportamento

    recproco, seriam impossveis sem falar dos contratos.40

    A seu juzo, o resultado mais importante extrado de sua crtica aos pressupostos do

    sistema de complementariedade consiste na distino entre dois tipos de racionalidade referentes ao, a saber, a comunicativo-consensual e a da ao estratgica.41Tais tipos de racionalidade

    se constituem em formas de interao ou de comunicao entre os homens enquanto sujeitos de

    ao. Porm, a racionalidade estratgico-instrumental possui um limite, que reside no fato de que

    a convivncia entre os homens no pode se pautar exclusivamente pela adoo desta. Se as

    relaes humanas e os acordos como os contratos, por exemplo se pautassem somente pela

    liberdade arbitrria de cada sujeito e pelo seu interesse individual calculado estrategicamente, no

    seria possvel esperar que os prprios acordos pudessem ser cumpridos. Por essa razo, a

    racionalidade comunicativo-consensual, no a estratgica, que deve estar na base da tica.42

    Somente a primeira pressupe regras ou normas que se situam para alm do interesse de cada

    indivduo em particular. Se os acordos que do sustentao ao direito, por exemplo, tivessem sua

    base obtida exclusivamente na liberdade arbitrria e no interesse pessoal de cada um, calculado

    previamente de modo estratgico, no haveria razes para algum cumprir um contrato sem haver

    reserva criminal.43A distino entre racionalidade comunicativa e racionalidade estratgica ser

    importante para Apel dar o passo seguinte do seu programa, o de fundamentar a tica do discurso

    em pressupostos que somente podem ser encontrados no mbito de uma racionalidade

    argumentativa, isto , prtica e de cunho comunicativo. O limite central tanto do sistema de

    complementaridade quanto do sistema de integrao reside no fato de no terem distinguido

    40APEL, K.- O. Rsoudre les conflits l`poque nuclaire: un problme d`tique de la responsabilit. In: Discussionet responsabilit2: Contribution une tique de la responsabilit. Paris Du Cerf, 1998, p.54. Trad. fran. de (1987)Konfliktlsung im Atomzeitalter als Problem einer Verantwortungsethik. In: Diskurs und Verantwortung: dasProblem des bergangs zur postkonventionellen Moral. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p.266. A esse respeitotambm TF II, p.357; TPh II, p.375-6. Grifos de Apel.41 A esse respeito, O desafio da crtica total da razo e o programa de uma teoria filosfica dos tipos deracionalidade. Novos Estudos Cebrap, mar./1989, p.67-84. Apel distingue as seguintes formas de racionalidade: algico-matemtica, a teleolgica (esta engloba a racionalidade instrumental e a racionalidade estratgica) acomunicativa e a discursiva. A esse respeito, entre outros, APEL, K.-O. Es posible distinguir la razn tica de laracionalidad estratgico-teleolgica? In: EE (1983) 1986, p.27-103; APEL, K.-O. El problema de una teorafilosfica de los tipos de racionalidad. In EE (1984) 1986, p.9-26.42APEL, K.-O. EE (1983) 1986, p.78ss.43 APEL, K.-O. SH, p.31; SM, p.60. A esse respeito tambm APEL, K.-O. La rationalit de la communicationhumaine dans la perspective de la pragmatique transcendantale. Critique, Paris, juin-juillet 1988, Tome XLIV,n.493-494, p.590-1.

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    satisfatoriamente ambos os tipos de racionalidade de modo a no mais reconhecerem a

    possibilidade de uma racionalidade tica.

    1.2 O modelo de fundamentao filosfica ltima

    1.2.1 A crtica posio falibilista do racionalismo crtico

    A partir do diagnstico feito em relao situao da fundamentao da tica no contexto

    da filosofia contempornea, Apel depara-se com a necessidade de apresentar uma alternativa a

    ela. Esse passo dado mediante a proposio de um modelo de fundamentao ltima que estar

    na base tambm do programa de sua tica, o qual desenvolvido em confronto com o ceticismo

    radical, representado pela figura do racionalismo crtico, especialmente na vertente de HansAlbert. Seu oponente o ctico falibilista e a estratgia argumentativa dirigida contra este

    aproxima-se da defesa que Aristteles faz do princpio de no-contradio. O racionalismo crtico

    equipara a idia de fundamentao ao procedimento de deduo lgica de proposies a partir de

    proposies. Essa concepo logicista de fundamentao desfaz a especificidade e, com isso, a

    prpria possibilidade de uma fundamentao filosfica ltima, uma vez que todo e qualquer tipo

    de fundamentao teria, no contexto falibilista das cincias, um carter paradoxal. Para Albert, a

    finalidade do procedimento de fundamentao reside em assegurar, mediante deduo lgica, a

    verdade das concepes em questo e dos enunciados com os quais so formuladas. 44 A seu

    juzo, o problema est em que, na medida em que se exige fundamentao para tudo, ter-se-,

    ento, que se exigir tambm uma fundamentao para aqueles conhecimentos aos quais a prpria

    concepo a ser fundamentada foi remetida.45 Desse modo, toda tentativa de fundamentao

    implicaria incorrer num trilema lgico, ou seja, a um regresso ao infinito, a um crculo lgico ou

    interrupo dogmtica da tentativa de fundamentao.46 Albert prope, por esse motivo, a

    renncia ao princpio de razo suficiente que estava na base do modelo de fundamentao da

    tradio filosfica.

    44ALBERT, H. Tratado da razo crtica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p.26. Uma deduo lgica ,afirma Albert, uma seqncia de enunciados, de premissa e concluses, entre os quais existem determinadas relaeslgicas, isto : uma concluso deduzvel das premissas em questo com a ajuda de regras lgicas. Idem, p.25.45ALBERT, H. Op. cit., p.26.46ALBERT, H. Op. cit., p.26-7.

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    O problema da fundamentao na filosofia racionalista moderna est associado ao fato de

    que a busca do conhecimento requer a pretenso de se formarem convices verdadeiras sobre

    determinados campos ou partes da realidade. Nesse caso, seria natural aspirar-se certezade que

    o que resultou da busca do conhecimento tambm verdadeiro. Uma tal certeza s alcanvelquando esse saber pode ser fundamentado de forma indubitvel.47Por essa razo, na aspirao ao

    conhecimento verdade e certeza aparecem estreitamente interligadas e a busca da verdade

    vincula-se diretamente busca de fundamentos seguros. Somente o recurso a um ponto

    arquimdico do conhecimento forneceria a certeza necessria para a defesa de uma

    fundamentao suficiente. O ponto arquimdico, no entanto, o lugar onde, na fundamentao

    clssica, costuma ocorrer a interrupo arbitrria da fundamentao a terceira alternativa do

    trilema. Desse modo, os enunciados onde acontece tal interrupo so considerados auto-

    evidentes, autofundamentados ou fundamentados no conhecimento imediato.48 Para Albert,

    quando o que est em questo algo que no pode ser fundamentado por si s no caso, um

    enunciado ou uma convico , mas que est na base da autofundamentao de todos os outros

    enunciados e colocado como seguro, tem-se um dogma, ou seja, uma afirmaocuja verdade

    certae por isso no carece defundamentao.49

    A alternativa proposta pelo racionalismo crtico para evitar os problemas decorrentes da

    postulao de uma fundamentao ltima a de substitu-la pelo princpio da discusso crtica.

    Tratar-se-ia de discutir criticamente todos os enunciados mediante argumentos racionais via

    tentativa e erro , renunciando definitivamente a alcanar a certeza.50Ele prope, pois, que se

    adote no lugar da fundamentao, entendida como fundamentao suficiente, uma postura

    falibilista. Por entender ser impossvel a fundamentao de princpios de forma no-dogmtica, o

    racionalismo crtico defende um princpio falibilista mediante o qual todos os enunciados devem

    ser considerados como hipteses falveis. Tal postura prope submeter crtica todos os

    conhecimentos tomados como certos. A deciso a favor do princpio do falibilismo deveria

    sacrificar a tendncia certeza que est na base das posies clssicas e contentar-se com aincerteza permanente a respeito da possibilidade de que nossas concepes possam confirmar-se

    47ALBERT, H. Tratado da razo crtica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p.22.48ALBERT, H. Op. cit., p.27.49ALBERT, H., Op. cit., p.27. Grifos de Albert.50ALBERT, H. Op. cit., p.52.

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    e manter-se no futuro.51 Assim, do mesmo modo como ocorre com as teorias cientficas, as

    teorias morais deveriam ser submetidas ao falseamento mediante a experincia. Diante da tomada

    de posio pela defesa da impossibilidade de uma fundamentao ltima, Albert prope como

    estratgia substitutiva a esta a de que as teorias morais deveriam ser interpretadas como hiptesescompetitivas e, ao invs de fundamentar um princpio moral, sugere substitu-lo por uma deciso

    moral (no racional).52

    Uma fundamentao suficiente no campo da tica deparar-se-ia com critrios no mais

    passveis de fundamentao por esbarrar no trilema lgico. Em outros termos, quem aspira a

    uma fundamentao suficiente, no sentido do modelo clssico, para juzos concretos de valor e,

    com isso, tambm para decises morais, ter que recorrer a critrios ltimos de valor (...) que j

    no mais so suscetveis de uma fundamentao se quiser evitar as duas outras ramificaes do

    trilema.53Albert prope, por entender que a metodologia da verificao crtica pode ser aplicada

    tambm ao mbito da tica, que se abra mo de critrios ou pressupostos ltimos. Ele concebe

    que a axiomatizao de nenhum modo pode oferecer solues definitivas e no criticveis,

    sobretudo em razo de no ter condies de indicar em que medida uma afirmao possui em si o

    carter de um pressuposto ltimo.54Nas discusses ticas, ao invs de se utilizarem enunciados

    com carter de pressupostos ltimos, deve-se levar em considerao o fato de que o limite da

    discusso crtica sempre dependente da vontade dos participantes da discusso.55No mbito da

    tica o que importa, ao invs de fundamentar enunciados e sistemas morais, entend-los como

    hipteses. A tarefa de uma filosofia moral crtica , ao invs de buscar pressupostos ltimosou

    um princpio abstrato, a de iluminar criticamente a moral, destacando suas fraquezas e

    desenvolvendo pontos de vista para melhor-la. A moral deve ser ancorada na conscincia dos

    homens e nas situaes sociais.56 O contedo moral do racionalismo crtico caracterizado

    mediante o argumento de que quem o assume j se decide, ao mesmo tempo, por uma forma de

    vida. O mtodo do exame crtico envolve basicamente uma deciso moral, j que se trata de um

    modo de vida, ou seja, de uma prxis social.57

    51ALBERT, H. Tratado da razo crtica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p.52.52ALBERT, H. Op. cit., p.95.53ALBERT, H. Op. cit., p.92.54ALBERT, H. Op. cit., p.94.55ALBERT, H. Op. cit., p.95.56ALBERT, H. Op. cit., p.95.57ALBERT, H. Op. cit., p.98.

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    Apel entende que essa estratgia de substituir a fundamentao suficiente pela crtica

    permanente no resolve o problema da fundamentao. A seu juzo, o racionalismo crtico no

    consegue explicar nem manter o sentido de sua posio terica sem eliminar definitivamente

    determinados pressupostos subjacentes aos procedimentos de falseamento e crtica, quais sejam,as pressuposies pragmtico-transcendentais do prprio jogo de linguagem utilizadas na

    crtica.58Por identificar fundamentao com deduo o racionalismo crtico sugere a substituio

    de toda e qualquer forma de fundamentao por um mtodo falibilista. verdade que o modelo

    de fundamentao baseado na deduo lgica de sentenas a partir de sentenas no abre, de fato,

    nenhuma possibilidade para se chegar a uma fundamentao ltima conseqente, dado que tal

    procedimento resultaria no trilema lgico. Porm, Apel no aceita o falibilismo radical nem o

    modelo tradicional de fundamentao. Ele se empenha em substituir a ambos, ou melhor, em

    incorpor-los criticamente num modelo de fundamentao mediante reflexo. A favor da tradio

    defende que possvel sustentar ainda um modelo de fundamentao ltima mas, contra a prpria

    tradio, insiste em que tal modelo no pode ser o de uma demonstrao mediante derivao.

    Este ltimo deve ser substitudo pelo modelo de explicitao dos pressupostos irrecusveis

    presentes em toda argumentao. A favor do racionalismo crtico, aceita uma posio falibilista,

    mas com reservas, distinguindo a especificidade dos enunciados filosficos em relao aos

    enunciados da cincia. Ainda contra o racionalismo crtico e seu falibilismo radical, defende a

    possibilidade de uma fundamentao filosfica ltima. A filosofia, portanto, est autorizada ainda

    a operar com uma idia de fundamentao, mas de forma diferente daquela compreendida pela

    cincia ou da que era adotada pela tradio filosfica. Para tal, ela tem de levar em conta a

    diferena existente entre a racionalidade lgico-formal e a racionalidade filosfica (reflexivo-

    transcendental). Apel reconhece que identificar fundamentao com relao dedutiva entre

    proposies leva ao trilema lgico, porm julga que substituir fundamentao ltima lgico-

    formal por uma deciso ltima, como ocorre no racionalismo crtico, impossibilita uma

    fundamentao filosfica da tica.59

    A juzo de Apel, o modo falibilista de entender o problema da fundamentao decorre da

    orientao unilateral iniciada com a apodctica aristotlica e persistente at a lgica matemtica

    moderna direcionada para a funo de apresentao proposicional da linguagem.60A seu juzo,

    58APEL, K.-O. EE (1980) 1986, p.131.59APEL, K.-O. (1984) 1986, p.21. A esse respeito tambm FTF, p.129-130; FKL, p.186.60APEL, K.-O. EE (1984) 1986, p.22.

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    essa posio incorre numa falcia abstrativa uma vez que seu conceito de fundamentao est

    orientado pela relao dedutiva entre sentenas e apia-se exclusivamente no conceito de

    seqncia lgica, ou seja, radica numa concepo reducionista de linguagem. Aqui, como o

    caso tambm do racionalismo crtico, considerada apenas a dimenso proposicional dalinguagem. Apel observa que toda sentena descritiva precisa pressupor tambm uma dimenso

    performativa que est presente no mbito pragmtico da linguagem. O problema de Hans Albert

    estaria, com a introduo do seu trilema de Mnchhausen, em ter partido da lgica moderna

    reduzindo o postulado de fundamentao ltima do racionalismo moderno a um trilema derivado

    da exigncia de uma fundamentao dedutiva.61

    O trilema s pode ser deduzido em relao a proposies ou sistemas de proposies

    ordenados axiomaticamente em linguagens formalizadas, ou seja, abstraindo-se a dimenso

    pragmtica da linguagem. O modelo de fundamentao de proposies a partir de proposies s

    ainda possvel quando se prescinde da funo interpretativa, de carter pragmtico-

    transcendental, do sujeito de conhecimento e argumentao, reduzindo-o a objeto da psicologia

    emprica.62Por conseguinte, a tentativa feita pelo racionalismo crtico de limitar a fundamentao

    ltima ao modelo dedutivo de fundamentao assenta-se sobre uma falcia abstrativa. A

    superao de tal falcia permite ver o problema da fundamentao ltima de outro modo, qual

    seja, mediante uma forma reflexiva pragmtico-transcendental. A partir do confronto com o

    racionalismo crtico Apel pretende reconstruir pragmtico-transcendentalmente o recurso

    evidncia. Tal recurso no pode ser comparado a um dogma nem a uma deciso arbitrria. A seu

    juzo, as evidncias de conhecimento como as percepes ou intuies ideais ou categoriais

    no podem ser consideradas como independentes da linguagem, como no caso das filosofias

    epistemolgicas modernas, as quais so o alvo direto da crtica do racionalismo crtico. As

    evidncias de conhecimento deveriam estar entrelaadas de antemo com os usos lingsticos e as

    aes dos sujeitos de conhecimento. Sem tal entrelaamento, no seria possvel o aprendizado da

    linguagem nem as formas de ao que esto ligadas experincia interpretada pelos sujeitos. A61 APEL, K.-O. PFF, p.258. Para Albert o recurso evidncia no procedimento de fundamentao anlogo suspenso do princpio de causalidade atravs da introduo de uma causa sui. A conseqncia dessa posio , porum lado, o rechao da reduo feita por Descartes da validade da verdade evidncia do conhecimento ou certeza e,

    por outro, a afirmao da tese de que a busca de certeza intil e incompatvel com a busca da verdade. PFF, p.253.62APEL, K.-O. PFF, p.266. Contra a posio de H. Albert de que toda tentativa de fundamentao ltima conduz aotrilema lgico, Apel observa que a tradio filosfica a partir de Aristteles, passando por Descartes e peloempirismo, teve o cuidado de no suspender o procedimento lgico de fundamentao a qualquer momentoarbitrariamente. Tais tradies, ao contrrio, pretendiam chegar a premissas que fossem certas mediante a base deuma evidncia de conhecimento. PFF, p.252-3.

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    fundamentao da validez do conhecimento precisa tomar, simultaneamente, como ponto de

    apoio as evidncias de conscincia possveis dos sujeitos de conhecimento competentes e as

    regras intersubjetivas e a priorido discurso argumentativo. nesse mbito que as evidncias de

    conhecimento devem obter validez intersubjetiva.63Para Apel, a partir da concepo de jogos delinguagem do segundo Wittgenstein e da teoria dos atos de fala de Austin e Searle no mais

    possvel utilizar com sentido o recurso evidncia do conhecimento sem a pressuposio de um

    discurso lingstico entendido como contexto de interpretao e coerncia lgica, nem se valer

    com sentido de um discurso de fundamentao sem se presumir certas evidncias de

    conhecimento introduzidas pelos que participam no discurso enquanto critrios que regulam a

    formao argumentativa de consenso.64

    1.2.2 O modelo apeliano de prova de pressupostos

    Apel destaca que o problema da fundamentao ltima foi desenvolvido desde a

    antiguidade em estreita conexo com o reconhecimento da impossibilidade de uma

    fundamentao lgico-matemtica, de carter apodctico-dedutivo, dos princpios ltimos.65 O

    modo de fundamentao pragmtico-transcendental distingue-se do modelo que utiliza a prova

    direta, ou seja, do modelo de fundamentao dedutiva que se faz mediante concluses com base

    em premissas aceitas como vlidas. O seu modelo no a apodeixis, mas o lenchos, o qual se

    constitui numa prova indireta.66 o caso da sada proposta por Aristteles ao refutar a exigncia

    de uma prova dedutiva para o princpio de no-contradio. Na Metafsica Aristteles observa

    63APEL, K.-O. PFF, p.269.64APEL, K.-O. PFF, p.269. O recurso evidncia adotado por Apel em sua pragmtica transcendental conduz aconseqncias distintas da teoria da evidncia tal como entendida pela filosofia moderna. Apel indica explicitamenteduas dessas conseqncias. A primeira a de que a resposta pergunta acerca da validade do conhecimento no

    pode mais ser formulada por meio do recurso evidncia de conscincia, mas,por possuir um carter intersubjetivo,deve ocorrer atravs da formao de consenso no discursoargumentativo a ser levado adiante na comunidade deinterpretao` dos cientistas. A segunda conseqncia a de que, ao se fazer referncia elevao das evidncias deconscincia a evidncias paradigmticas da argumentao, a formao de consenso em tal comunidade deinterpretao no pode ser pensada sem o recurso epistemolgico a evidncias de conhecimento. APEL, K.-O.PFF, p.280. Apel indicar, apoiado em Da certeza, de Wittgenstein, que se trata da evidncia acerca das

    pressuposies necessrias da argumentao. APEL, K.-O. Le problme de l`vidence phnomnologique a lalumire d`une smiotique transcendentale. Paris, Critique, v.421, n.464-5, jan.fv. 1986, p.89 e 91.65APEL, K.-O. PFF, p.256.66HERRERO, F. J. A razo kantiana entre o logos socrtico e a pragmtica transcendental. Sntese (Nova fase), n.52,1991, p.38.

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    que ignorncia desconhecer as coisas sobre as quais preciso buscar ou no uma demonstrao.

    Ocorre ser

    impossvel que haja demonstrao de todas as coisas (cair-se-ia, imediatamente,em um regresso ao infinito e, portanto, desse modo no haveria demonstrao)e se no preciso buscar demonstrao de certas coisas, tais indivduos noseriam capazes de dizer qual o princpio que postulam e que consideradomormente como tal.67

    Exigir uma prova dedutiva para o princpio de no-contradio descabido, pois no

    prprio ato de tal exigncia tem de se supor j, necessariamente, o referido princpio. Por essa

    razo, prossegue Aristteles,

    em relao a todos os casos deste tipo o ponto de partida consiste no em pedirao outro que diga que algo ou no (tal proceder seria consideradoimediatamente como petio de princpio), mas que diga algo que tenhasignificado para si mesmo e para o outro. Isso ocorreria necessariamente comtal que diga algo pois, caso contrrio, um indivduo tal no diria realmente nadanem para si mesmo nem para o outro. Pois bem, se consente isso, haverdemonstrao, pois haver j algo determinado. Mas o responsvel no ser oque demonstra, seno o que mantm o dito j que, por mais que intente destruira linguagem significativa, segue mantendo-na. Ademais, quem concede issoconcedeu j que algo verdade independentemente da demonstrao.68

    Aristteles precisa justificar o princpio porque sua mera apresentao no suficiente,

    uma vez que pode parecer ao interlocutor ctico como arbitrria e dogmtica. Como se trata de

    um princpio que no pode ser demonstrado, sua estratgia de justificao consiste em substituir a

    demonstrao por uma refutao. Isso feito mostrando que o prprio oponente, o qual pretende

    negar o princpio, tem j de pressup-lo para poder neg-lo. O princpio indica para uma

    condio da linguagem significativa, uma vez que sua no aceitao inviabiliza a possibilidade de

    argumentar com sentido. Aristteles introduziu o problema da fundamentao filosfica ltima

    justamente em razo de os argumentos lgico-matemticos no possuirem condies defundamentar por si prprios a verdade de suas premissas nem a validade de suas regras de

    67 ARISTOTELES. Metafsica, 1006a. Madrid: Gredos, 1994, p.174-5. Para Apel neste local que Aristtelesapresenta o paradigma prprio da racionalidade filosfica, uma vez que ele identifica aqui oponto arquimdicodos

    pressupostos necessrios descobertos no por demonstrao direta, mas mediante a refutao de um oponente. EE(1980) 1986, p.147.68ARISTOTELES. Op. cit., 1006a, p.175.

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    deduo.69Porm, mesmo que a forma de argumentao de Apel se assemelhe aristotlica, seu

    contedo diferencia-se desta porque a prova de pressupostos estendida a toda a situao de

    argumentao, ou seja, a todos os pressupostos que no podem ser negados por um oponente sem

    que se incorra numa contradio performativa. A situao da argumentao apresenta-se, assim,como irretrocedvel.Desse modo indireto possvel mostrar ao ctico que, pelo simples fato de

    tomar parte de uma argumentao com o intuito de rejeitar a possibilidade de se fundamentar

    juzos morais, ele ter de fazer determinadas pressuposies cujo contedo proposicional nega

    sua objeo. Por conseguinte, como afirmar Habermas, isso implica abandonar o esforo

    inauspicioso de uma fundamentao dedutiva de ltimos` princpios e voltar-se para a

    explicitao de pressuposies incontornveis`, isto , universais e necessrias.70 O ctico

    apeliano tambm se distingue do ctico aristotlico uma vez que o primeiro no coloca em

    questo a validade do princpio de no-contradio ou as regras da deduo. Diferentemente, ele

    usa tanto um quanto outro para negar que seja possvel afirmar qualquer enunciado como

    indubitvel.71

    A estratgia argumentativa de Apel renovar o modelo aristotlico direcionando-o contra

    o racionalismo crtico. Sua pretenso provar que o racionalista crtico se contradiz. A seu juzo,

    o princpio do falibilismo no pode substituir ou reduzir ao absurdo a fundamentao ltima, pois

    a auto-aplicao de tal princpio conduz a um paradoxo semelhante ao do mentiroso. Ao afirmar

    que todos so mentirosos, o mentiroso acaba negando a prpria pretenso de validade que

    reivindicou, o que configura a contradio performativa. Ao defender o princpio de um

    falibilismo radical, reivindicando a possibilidade de poder-se duvidar de tudo, o racionalismo

    crtico acaba refutando seu prprio princpio, uma vez que aplicado a si mesmo se torna

    autocontraditrio. Por se tratar de um enunciado que se apresenta como condio para todo e

    69 APEL, K.-O. PFF, p.258. tradio do argumento da demonstrao indireta filiam-se tambm a refutaoagostiniana da dvida da prpria existncia atravs do argumento auto-reflexivo Etsi, fallor, sume a dvida metdicade Descartes e sua superao atravs do Cogito, ergo sum. Apel julga que o perodo ps-cartesiano considerou aevidncia auto-reflexiva do argumento de Descartes como certeza solipsista nos moldes de uma introspecoemprica pr-lingstica do indivduo. A seu juzo, Kant exerceu um papel central na reabilitao da auto-reflexo aointerpretar o cogito na linha da sntese da apercepo e das funes do entendimento. Porm, em Kant os

    pressupostos lingstico-comunicativos do entendimento teriam sido marginalizados, cabendo a Hegel radicalizar ainterpretao da auto-reflexo filosfica. EE (1980) 1986, p.149.70HABERMAS, J. CMA, p.103; MkH, p.92.71 VELASCO, M. tica do discurso: Apel ou Habermas? Rio de Janeiro: FAPERJ; Mauad, 2001, p.34. Nessesentido, o filsofo pragmtico-transcendental no apenas concede o ponto de partida proposto pelo oponente, no casoo ctico, mas tambm se vale da objeo apresentada pelo ctico para defender o contrrio deste. Por conseguinte,onde o oponente v impossibilidade, o proponente (Apel) quer mostrar necessidade: a possibilidade da dvidactica se funda na necessidade de aceitar o princpio proposto. Idem, p.35.

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    ltimas, no podem nem ser contestadas sem auto-contradio, nem ser fundamentadas sem

    petitio principii.75 Os enunciados filosficos no so hipteses falsificveis empiricamente,

    como os enunciados da cincia, uma vez que so condies de possibilidade de todo e

    qualquer enunciado e de toda e qualquer crtica.76 Os enunciados prprios da filosofia apragmtica transcendental somente podem ser provados mediante refutao de um

    oponente. Desse modo, julga Apel, descobre-se, pelo caminho da reflexo pragmtico-

    transcendental sobre as condies de possibilidade da argumentao crtica, o jogo de

    linguagem transcendental` como instituio da crtica`.77 A forma, pois, do argumento

    utilizado para identificar e provar os pressupostos da argumentao os quais no podem ser

    colocados em dvida por serem justamente condio para a prpria dvida sensata que

    tais princpios so indemonstrveis por quem os prope, mas podem ser provados

    indiretamente mediante a refutao de um oponente que procurasse neg-los. Esse modo de

    prova considerado por Apel como o paradigma da fundamentao filosfica ltima, no

    dedutiva, de pressupostos necessrios e universais da argumentao. As evidncias ltimas

    no podem ser questionadas, pois quem argumenta tem de aceitar determinadas condies sob

    pena de cair em contradio performativa, nem fundamentadas de modo dedutivo sem petitio

    principi:

    se no posso negar algo sem auto-contradio real e tampouco possofundament-lo dedutivamente sem cair em petitio principii` lgico-formal,ento isso pertence precisamente aos pressupostos pragmtico-transcendentaisda argumentao que tm de ser reconhecidos sempre para que o jogo delinguagem da argumentao conserve seu sentido.78

    Trata-se daquelas evidncias paradigmticas que nem se pode colocar em

    questo pela crtica sem auto-contradizer-se, nem se pode fundamentar dedutivamente

    75APEL, K.-O. La question ... Op. cit., p.919.76APEL, K.-O. FTF, p.120; FKL, p.179-180. O duvidar, enquanto jogo de linguagem pleno de sentido, no pode serexplicado sem pressupor, por sua vez, a certeza indubitvel. Nessa direo Apel observa que possvel obter-se umaconfirmao, em perspectiva pragmtico-transcendental, da intuio de Wittgenstein de que no possvel conceber-se nenhum jogo de linguagem onde a dvida possa ser expressada em sentido pleno sem que se pressuponha acerteza. APEL, K.-O. FTF, p.119; FKL, p.178-9.77APEL, K.-O. PFF, p.286.78APEL, K.-O. PFF, p.289. Desse modo, o argumento de fundamentao ltima de Apel pode ser entendido comouma reao consciente e uma resposta ao trilema apresentado por Albert e seu estreito conceito de fundamentao.REESE-SCHFFER, W. Grenzgtter der Moral: Der neuere europisch-amerikanische Diskurs zur politischenEthik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p.69s.

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    sem pressupor-se a si mesmas.79 Assim, as pressuposies do discurso argumentativo

    no podem ser caracterizadas como hipteses, as quais poderiam ser falseveis,

    justamente por serem condies de possibilidade do discurso argumentativo. A prova

    indireta no dedutiva porque mostra que as condies de possibilidade daargumentao revelam-se como impossveis de serem negadas com sentido, uma vez que

    toda negao tem de ser levada adiante argumentativamente, tendo, pois, de pressupor

    aquilo que nega explicitamente.

    Como toda crtica precisa estar fundamentada em princpios no falveis, ou seja,

    indubitveis, Apel vai desenvolver um tipo de argumentao de carter transcendental

    que reconstri os pressupostos da argumentao. Desse modo, a forma da sua prova est

    baseada na idia de que existem pressupostos necessrios que se constituem em

    condio de possibilidade para toda argumentao. A prova dos pressupostos toma como

    ponto de partida algo que no pode ser negado pelo ctico, pois, para neg-los, ele tem

    de participar de uma argumentao. Trata-se, aqui, de um fato contingente, mas que tem

    de ser aceito por ele. A prova vai consistir em mostrar ao ctico a impossibilidade de

    rejeitar tais pressupostos se pretender efetivamente afirmar algo. Isso ocorre porque, ao

    afirmar ou negar algo, ele j aceitou implicitamente determinadas regras que so

    pressupostas necessariamente ao fazer uso da linguagem. Por isso, o argumento de prova

    visa mostrar que todo o sujeito que tiver a pretenso de argumentar seriamente, isto ,

    com sentido, tem de aceitar tais pressupostos. A estratgia de Apel garantir um ponto

    de partida irrecusvel e este tem de ser algo que o ctico tenha necessariamente que

    aceitar.80

    O critrio de Apel para demonstrar o carter incontestvel das pressuposies da

    argumentao de fundamentao ltima reside na autocontradio performativa, que se

    constitui numa prova reflexiva e se sustenta numa evidncia performativa. Essa

    evidncia se refere quilo que no se pode fundamentar dedutivamente sem que suavalidade j tenha sido pressuposta, sob pena de se incorrer em contradio performativa.

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