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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL CAMPUS MARIA AUXILIADORA JANE GERODO GARCIA HISTÓRIA DE VIDA DAS VELHAS E VELHOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EJA EM CAMPINAS SP: um olhar e uma escuta contemporâneos AMERICANA 2017

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO

UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA

JANE GERODO GARCIA

HISTÓRIA DE VIDA DAS VELHAS E VELHOS DA EDUCAÇÃO DE

JOVENS E ADULTOS – EJA – EM CAMPINAS – SP: um olhar e uma

escuta contemporâneos

AMERICANA

2017

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JANE GERODO GARCIA

HISTÓRIA DE VIDA DAS VELHAS E VELHOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E

ADULTOS – EJA – EM CAMPINAS – SP: um olhar e uma escuta

contemporâneos

Dissertação apresentada como exigência

parcial para a obtenção do grau de Mestre

em Educação à Comissão Julgadora do

Centro Universitário Salesiano de São

Paulo, sob orientação da Profª. Drª. Lívia

Morais Garcia Lima.

AMERICANA

2017

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JANE GERODO GARCIA

HISTÓRIA DE VIDA DAS VELHAS E VELHOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS - EJA- EM CAMPINAS -SP: UM OLHAR E UMA ESCUTA CONTEMPORÂNEOS.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação – área de concentração: Educação Sociocomunitária.

Linha de pesquisa:

Análise histórica da práxis educativa as experiências sociocomunitárias e institucionais.

Orientadora: Profa. Dra. Lívia Morais Garcia Lima

Dissertação defendida e aprovada em 19 de maio de 2017, pela comissão julgadora:

__________________________________________ Profa. Dra. Renata Lanza – Membro Externo

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

__________________________________________

Prof. Dr. Antonio Carlos Miranda – Membro Interno Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL __________________________________________ Profa. Dra. Lívia Morais Garcia Lima – Orientadora Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL

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AGRADECIMENTOS

...a Deus que me deu vida, fé, saúde, sabedoria e proteção para buscar os caminhos

e perseverar.

...a todas e todos que, de alguma forma, contribuíram para que este trabalho fosse

realizado.

...a atenção, a paciência, as palavras de incentivo e as muitas dicas e opiniões.

...as alunas e alunos da FUMEC e, em especial, aos que foram depoentes,

compartilhando assim um pouco de suas vidas comigo e com os leitores deste

trabalho.

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Devia ter amado mais

Ter chorado mais

Ter visto o sol nascer

Devia ter arriscado mais

E até errado mais

Ter feito o que eu queria fazer

Queria ter aceitado

As pessoas como elas são

Cada um sabe a alegria

E a dor que traz no coração

(Epitáfio, TITÃS, 2001)

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RESUMO

As alunas velhas e os alunos velhos que atualmente frequentam as salas de Educação de

Jovens e Adultos (EJA) da Fundação Municipal para Educação Comunitária em Campinas -

SP (FUMEC) tiveram suas vidas atravessadas pela produção de subjetividades do mundo

contemporâneo e do processo de escolarização da EJA. Ao focar meu olhar nesses sujeitos,

a problemática que se apresentou foi a do aumento da longevidade. As pessoas estão

vivendo mais e consequentemente se educando mais, numa visão ampla de educação,

aquela que ocorre dentro das relações sociais e culturais. Essa “educação ao longo da vida”

pode acontecer de várias formas e em vários espaços. Em contraponto a essa situação, a

sociedade não se preparou para acolher essa população que está em busca de novas

situações, de explorar possibilidades que podem vivenciar nesse momento da vida. Assim,

faz-se necessário encontrar caminhos para atender a essa nova demanda social. A escola,

e mais especificamente a EJA, se apresenta como um dos lugares sociais possíveis para

esses sujeitos. Desse panorama emergiu a pergunta que direcionou esta pesquisa: quais

são os motivos, interesses e necessidades desses alunos que impulsionam a procura pelo

processo de escolarização nesse momento de suas vidas? Na busca pela resposta a essa

questão, o objetivo deste trabalho é o de reconstruir a produção das subjetividades das

velhas e dos velhos em narrativas biográficas e da EJA. O trabalho levanta também, como

objetivos secundários, elementos para compreender esse processo em relação às

possibilidades de legitimação da escola como um espaço de educação para velhas e velhos;

de inferir alguns caminhos que a escola pode escolher para contemplar esses interesses. A

proposta metodológica se baseia na metodologia qualitativa da História Oral, por meio da

História de Vida. A escolha justifica-se pela necessidade de ouvir os sujeitos, suas histórias

de vida, suas experiências e expectativas em relação ao processo de escolarização e, a

partir de suas memórias, desvelar as interpretações que elas e eles tem sobre si, sobre a

EJA e sobre o mundo. A análise dos dados construídos teve como base teórica alguns

conceitos de autores como Boaventura de Souza Santos, Felix Guattari Sueli Rolnik, Tomaz

Tadeu Silva, Kathryn Woodward, Stuart Hall, dentre outros.

Palavras-Chave: Educação de Jovens e Adultos. Velhas e velhos. Identidades.

Subjetividades. História de vida. História Oral.

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ABSTRACT

The old students who are currently attending the Youth and Adult Education (EJA)

rooms of the Municipal Foundation for Community Education in Campinas - SP

(FUMEC) had their lives crossed by the production of subjectivities of the

contemporary world and the schooling process of the EJA. When focusing my eyes

on these subjects, the problem was the increasing of longevity. People are living

longer and consequently educating themselves more, in a broad view of education,

which occurs within social and cultural relations. This "lifelong education" can happen

in various forms and in various spaces. In counterpoint to this situation, the society

was not prepared to welcome this population that is in search for new situations, of

exploring possibilities that they can experience in this moment of life. At this historical

moment, it is necessary to find ways to meet this new social demand. The school,

and more specifically the EJA, presents itself as one of the possible social places for

these subjects. From this panorama emerged a question that guided this research:

what are the reasons, interests and needs of these students that drive the search for

the schooling process at this time in their lives? In the search for the answer to this

question, the objective of this work is to reconstruct the production of the

subjectivities of older students in biographical narratives and the EJA. The work also

raises, as secondary objectives, elements to understand this process in relation to

the possibilities of legitimizing the school as a space of education for older people to

infer some ways that the school can choose to contemplate these interests. The

methodological proposal is based on the qualitative methodology of Oral History,

through the History of Life. The choice is justified by the need to listen to the

subjects, their life histories, their experiences and expectations regarding the

schooling process and, from their memories, to unveil the interpretations that they

have about themselves, about the EJA and about the world. The analysis of the

constructed data was based on theoretical concepts such as Boaventura de Souza

Santos, Felix Guattari Sueli Rolnik, Tomaz Tadeu Silva, Kathryn Woodward, Stuart

Hall, among others.

Keywords: Youth and Adult Education. Olds. Identities. Subjectivities. Life's history.

Oral History.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Seu Juca

Figura 2 – Dona Ciça

Figura 3 – Dona Juju

Figura 4 – Dona Nita

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1: total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – anos iniciais com

total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – anos iniciais com mais de 60 anos,

com separação entre masculino e feminino.

TABELA 2: Total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – Programa

Educação Ampliada ao longo da vida com total de alunos matriculados na FUMEC/

EJA – Programa Educação Ampliada ao longo da vida com mais de 60 anos, com

separação entre masculino e feminino.

TABELA 3: total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – Programa

Consolidando a escolaridade e total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA –

Programa Consolidando a escolaridade com mais de 60 anos com separação, entre

masculino e feminino.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APAE – Associação dos amigos e pais dos excepcionais

ASP – Agente de segurança penitenciária

CDP – Centro de detenção Provisória

CEAA – 1ª Campanha Nacional de Educação de Adolescentes e Adultos

CEB – Câmara de Educação Básica do Ministério da Educação

CEPROCAMP – Centro de Educação Profissional de Campinas “Prefeito Antonio da

Costa Santos”

CERU – Centro de Estudos Rurais e Urbanos

CIMEI – Centro Integrado de Educação Infantil

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CNE – Conselho Nacional de Educação

COMVEST – Comissão Permanente para os vestibulares

CONFINTEA - Conferência Internacional de Educação de Adultos

CP – Coordenador Pedagógico

CRUZADA ABC - Cruzada de Ação Básica Cristã

DOM – Diário Oficial do Município

EE – Educação Especial

EEPSG – Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau

EMEF – Escola Municipal de Ensino Fundametal

EMEI – Escola Municipal de Educação Infantil

FC – Formação Continuada

FUMEC – Fundação Municipal para Educação Comunitária (Campinas – SP)

FUNAP – Fundação de amparo ao trabalhador preso

FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de

Valorização dos Profissionais da Educação

FUNDEF - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de

Valorização do Magistério

GE – Grupo de estudo

GEPEJA (UNICAMP) – Grupo de educação e pesquisa em Educação de Jovens e

Adultos

GPEJA (FUMEC) – Gestão dos Programas de Educação de Jovens e Adultos

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HO – História Oral

INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

LEP – Lei de Execução Penal

MEB – Movimento de Educação de Base

MEC - Ministério da Educação

MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização

MPC – Movimento de Cultura Popular

OMS – Organização Mundial da Saúde

PEFOPEX – Programa especial de formação de professores em exercício

PNA – Programa Nacional de Alfabetização

PNE – Plano Nacional de Educação

PROESF - Programa especial para formação de professores da Região

Metropolitana de Campinas

SESC – Serviço Social do Comércio

SME – Secretaria Municipal de Educação

SNEA – Serviço nacional da Educação de Adultos

TCC – Trabalho de Conclusão de Curso

UNESP – Universidade Estadual Paulista

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................15

PARTE 1

1. MINHAS MEMÓRIAS, UMA TRAJETÓRIA PARA PESQUISAR AS ALUNAS

VELHAS E OS ALUNOS VELHOS NA EJA............................................................20

PARTE 2

2. AS VELHAS E OS VELHOS NA EJA E A PRODUÇÃO DAS

SUBJETIVIDADES NO MUNDO CONTEMPORÂNEO...........................................28

2.1. VELHICE, ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO NO BRASIL E

LONGEVIDADE...................................................................................28

2.2. AS VELHAS E OS VELHOS NA EJA....................................................32

2.3. REFLEXÕES TEÓRICAS ACERCA DE IDENTIDADES, DIFERENÇAS E

SUBJETIVIDADES....................................................................................................34

PARTE 3

3. ALGUNS ASPECTOS DA EJA...........................................................................37

3.1. O INÍCIO DA EDUCAÇÃO DE ADULTOS NO BRASIL..........................37

3.2. O INÍCIO DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NO BRASIL E A

EDUCAÇÃO DE ADULTOS.....................................................................................40

3.2.1. O método Paulo Freire.............................................................42

3.3. A EJA E O PERÍODO DA DITADURA MILITAR....................................45

3.4. O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO, A LEI Nº 9394/96 – LEI DE

DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E A EJA..............................49

3.5. A CRIAÇÃO E A CONSOLIDAÇÃO DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL PARA

EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA – FUMEC EM CAMPINAS – SP...............................50

PARTE 4

4. A FUMEC E UM ENTRELAÇAMENTO DE CONCEITOS E

POSSIBILIDADES...................................................................................................54

4.1. EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA, EDUCAÇÃO POPULAR, EDUCAÇÃO

FORMAL E EDUCAÇÃO NÃO FORMAL................................................................54

4.2. EDUCAÇÃO INCLUSIVA, EDUCAÇÃO PARA TODOS E EDUCAÇÃO AO

LONGO DA VIDA....................................................................................................58

4.3. EDUCAÇÃO INTERGERACIONAL..........................................................61

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PARTE 5

5. HISTORIA ORAL, UMA METODOLOGIA PARA PESQUISAR AS ALUNAS

VELHAS E OS ALUNS VELHOS NA EJA................................................................64

5.1. UM CAMINHO PERCORRIDO – A REALIZAÇÃO DAS

ENTREVISTAS...........................................................................................................71

5.1.1. As entrevistas..............................................................................72

5.1.2. Os locais e os espaços..............................................................75

5.1.3. Os depoentes..............................................................................75

5.1.4. As transcrições............................................................................79

5.2. IDENTIDADES E SUBJETIVIDADES DAS ALUNAS VELHAS E DOS

ALUNOS VELHOS.....................................................................................................80

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................100

ANEXOS..................................................................................................................104

ANEXO I...................................................................................................................105

ANEXO II..................................................................................................................106

ANEXO III.................................................................................................................108

ANEXO IV................................................................................................................110

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INTRODUÇÃO

Este texto falará de memórias, das minhas e também das alunas velhas e dos

alunos velhos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A memória vista como a arte

de lembrar e esquecer, de acordo com o momento que cada um está vivendo. O

texto em epígrafe afirma que “cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração”.

Este texto falará também de identidades, na abordagem dos estudos culturais, e sua

ligação com as memórias de cada um, então relembro aqui um pouco de Caetano

Veloso que em sua canção “Dom de iludir” traz reflexão sobre o fato de que “cada

um sabe a dor e a delícia de ser o que é” e continuo com Caetano, nessa mesma

canção:

“Você sabe explicar

Você sabe entender tudo bem

Você está

Você é

Você faz

Você quer

Você tem”

Durante o curso de mestrado e na busca por temas, questões e

problemáticas, tive a oportunidade de rever a minha trajetória acadêmica e

profissional. Nesse processo, decidi pesquisar sobre a educação das velhas e dos

velhos – mais especificamente, sobre esse público dentro da EJA, entendendo que

esta é mais uma forma de contribuir com o campo da educação e também com o

campo da pesquisa em educação, atendendo a urgência que o tema requer e,

também, indo ao encontro das minhas reflexões como professora de EJA e como

pesquisadora.

A urgência a que me refiro se deve ao fato de que a população brasileira está

envelhecendo; este trabalho traz elementos sobre os interesses e necessidades

dessas pessoas, bem como chama a atenção para a responsabilidade que temos,

como sociedade, de atender a essas demandas.

Os meios da educação e pesquisa em educação tem necessidade cada vez

maior de publicações voltadas às questões da velhice que possam amparar

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discussões, estimular reflexões, ampliando lugares de produção de saberes que

respeitem a heterogeneidade do universo da velhice (PARK; GROPPO, 2009, p. 29).

Destaco aqui a minha opção por utilizar os termos “velhas e velhos”. Ao longo

da pesquisa pude observar as diferentes nomenclaturas que tem surgido para definir

as pessoas mais velhas da população: velho, idoso, aposentado, melhor idade,

terceira idade, senhorinha, senhorzinho, vovozinha, vovozinho. O uso dessas

diferentes terminologias é resultante de processos complexos que envolvem práticas

sociais, discursos políticos, estudos acadêmicos, interesses econômicos, entre

outros. No presente trabalho fiz a opção por “velhas e velhos” entendendo que

dessa forma considero não só as especificidades do ser velho mas também as

diferenças de gênero, com respeito às características sociais dos sujeitos, não

mantendo o foco somente na longevidade, mas envolvendo todo o contexto no qual

estão imersos.

Quanto ao recorte etário, no Brasil, se considerarmos somente o aspecto

legal, a definição dada pela lei 10.741/03, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, em

seu artigo primeiro, é a de que são consideradas idosas as pessoas com idade igual

ou superior a sessenta anos, adoto portanto, essa definição neste trabalho.

Após essas primeiras colocações, passo a apresentar os caminhos trilhados

em relação à problemática, aos objetivos e a escolha metodológica assumida nesta

pesquisa.

Ao focar meu olhar na educação das alunas e dos alunos velhos da EJA,

matriculados nas salas da Fundação Municipal para Educação Comunitária

(FUMEC) em Campinas – SP, a problemática que se apresentou foi a seguinte:

A longevidade é uma realidade no mundo atual. As pessoas estão vivendo

mais e, consequentemente, se educando mais. Considero aqui a educação vista de

forma ampla, toda aquela que ocorre dentro das relações sociais e culturais. Essa

“educação ao longo da vida” pode acontecer de várias formas em vários espaços.

Em contraponto a isso, a sociedade não se preparou para acolher essa população

de velhas e velhos que está no mundo, criando e buscando novas situações,

explorando possibilidades que podem vivenciar nesse momento da vida. Este é um

momento histórico no qual se faz necessário encontrar os caminhos para atender a

essa nova demanda social.

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A escola, e mais especificamente a EJA, se apresenta como um dos lugares

sociais possíveis para essa população, e desse panorama emergiu a pergunta que

direcionou essa pesquisa:

Quais são os motivos, interesses e necessidades dessas alunas velhas e

desses alunos velhos que impulsionam a busca pelo processo de escolarização

nesse momento da vida?

Diante de todo esse contexto, de acordo com a problemática e a pergunta

apresentada, na busca por respostas a essa questão, o objetivo deste trabalho é o

de reconstruir a produção das subjetividades das alunas velhas e dos alunos velhos

em narrativas biográficas e da EJA. O trabalho traz, também, como objetivos

secundários, levantar elementos para compreender esse processo em relação às

possibilidades de legitimação da escola como um espaço de educação para velhas e

velhos e inferir alguns caminhos possíveis que os profissionais da educação podem

escolher com o objetivo de contemplar os interesses e necessidades desse alunado.

A proposta metodológica escolhida para atender a esses objetivos foi a

metodologia qualitativa da História Oral, por meio da História de Vida. A escolha

justifica-se pela necessidade de ouvir os sujeitos que são objetos deste trabalho,

trazendo assim suas histórias de vida, suas experiências e expectativas em relação

ao processo de escolarização. A partir de suas memórias, desvelar as interpretações

que elas e eles tem sobre si, sobre a EJA e sobre o mundo.

A construção e análise dos dados tem como base teórica alguns conceitos de

autores como Boaventura de Souza Santos, Felix Guattari e Sueli Rolnik, Tomaz

Tadeu Silva, Kathryn Woodward, Stuart Hall, dentre outros.

A realização do trabalho considerou também alguns pressupostos:

- o direito à Educação, garantido a todos os brasileiros pela Constituição

Federal;

- os avanços nos conceitos da EJA, apontando para a Educação ao longo da

vida;

- as possibilidades de organização dessa educação, considerando a

educação formal e a não formal;

- as subjetividades e as identidades de cada sujeito como sendo únicas.

Diante do exposto, apresento como objeto deste estudo algumas alunas

velhas e alunos velhos, matriculados nas salas do Programa de Educação de

Jovens e Adultos da FUMEC – séries iniciais.

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A parte 1 do presente trabalho traz um breve memorial, no qual apresento um

pouco da minha trajetória profissional e como essa trajetória despertou meu

interesse por pesquisar a EJA e, mais especificamente, as alunas velhas e os alunos

velhos dessa modalidade da educação.

A parte 2 traz um aprofundamento do estudo sobre problemática apresentada

e discussões sobre as questões relativas à velhice, o chamado “envelhecimento da

população” do Brasil e longevidade. Discussões sobre as diferentes terminologias

utilizadas para se referir às pessoas mais velhas da população e suas implicações

também são apresentadas, bem como o lugar das velhas e velhas na EJA e na

FUMEC. Nessa parte do trabalho, aparecem discussões desse contexto em relação

aos autores que discutem identidade, diferença e produção das subjetividades no

mundo contemporâneo: Hall apresentando o deslocamento do conceito de sujeito ao

longo da história, Silva com suas discussões sobre os conceitos de identidade e

diferença, e a dupla Guattari/ Rolnik com pesquisas sobre os processos de

subjetivação que vêm contribuir apresentando novas possibilidades de interpretação

dos interesses desses alunos.

A parte 3 traz alguns aspectos da EJA no Brasil: seu início, a pedagogia de

Paulo Freire e seu método, as mudanças que ocorreram durante o período da

ditadura militar, o processo de redemocratização e a criação de novas leis. Esses

períodos são apresentados e discutidos como momentos anteriores à criação e

consolidação da Fundação Municipal para Educação Comunitária (FUMEC) em

Campinas – SP.

Na parte 4 o texto apresenta uma breve discussão relativa aos principais

conceitos que tem permeado a trajetória da FUMEC ao longo de sua história, sendo

eles: Educação Comunitária, Educação Popular, Educação formal e não formal,

Educação Inclusiva, Educação para todos, Educação ao longo da vida e Educação

intergeracional. Nessa parte também são feitas considerações teóricas a respeito

das possibilidades de Educação de velhos e os motivos pelos quais essa população

busca a escola e necessita legitimar esse espaço como seu direito.

A História Oral, e mais especificamente a História de Vida, como metodologia

de pesquisa no estudo sobre as velhas e os velhos na EJA é apresentada na Parte

5, considerando seus limites e possibilidades. Essa parte também apresenta os

passos para a realização da pesquisa de campo, desde a busca por autorização

junto a Fundação, passando pelos detalhes da organização e realização das

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entrevistas, a experiência das transcrições, a relação com depoentes até a

realização da análise dos dados a partir dos depoimentos e sua relação com o

referencial teórico adotado neste trabalho.

As considerações finais, com a retomada da trajetória da pesquisa, são

apresentadas na última parte do trabalho.

Ao final do texto, também apresento anexos contendo a carta de

apresentação da pesquisa, que foi apresentada junto à FUMEC para autorização, o

termo de autorização elaborado pela FUMEC e assinado pelas partes, o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelos depoentes no momento anterior

aos depoimentos e as Transcrições dos depoimentos na íntegra.

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PARTE 1

1. MINHAS MEMÓRIAS, UMA TRAJETÓRIA PARA PESQUISAR AS ALUNAS

VELHAS E OS ALUNOS VELHOS NA EJA

Iniciei minha carreira de professora em 1987, após concluir o curso de

Magistério na Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau (EEPSG) “Carlos

Gomes” (nomenclatura utilizada na época), em Campinas – SP.

Naqueles tempos, um dos caminhos possíveis às recém-formadas, para

ingresso no mercado de trabalho eram as chamadas “escolinhas” (Escolas de

Educação Infantil particulares) que, geralmente, funcionavam nos bairros, muitas

vezes sem autorização legal e que, em geral, não faziam os registros trabalhistas

das professoras. Era então “normal” que se começasse a carreira por esse caminho,

sem registro, ganhando pouco, mas podendo exercer a profissão. Eu e muitas

colegas começamos assim. Após um ano trabalhando em “escolinhas”, consegui

emprego em um colégio particular no centro da cidade. Durante a entrevista com a

diretora do colégio, a mesma indicou que eu poderia optar por trabalhar na “pré-

escola” ou na primeira etapa do Primeiro Grau (da 1ª até a 4ª série – nomenclatura

da época). Como eu estava bastante insegura, logo me lembrei do trabalho que

realizava nas “escolinhas” e, então, optei por trabalhar na pré-escola. Foi desta

forma que comecei a ser professora de Educação Infantil e assim continuei por mais

21 anos.

Após um período trabalhando no colégio, prestei concurso público para

trabalhar na Secretaria Municipal de Educação de Campinas (SME), ingressando

como professora efetiva em um CIMEI (Centro Integrado de Educação Infantil) em

1993. No cotidiano da escola, nas conversar com as colegas, nas observações e

nas reuniões de trabalho, fui aprendendo sobre a escola pública.

Quando ainda trabalhava nesse CIMEI, uma das professoras me falou que

era professora de adultos, afirmativa que me causou certo estranhamento e

curiosidade porque o conceito que eu tinha de educação de adultos era muito vago,

estava ligado ao que vivi na minha infância quando meu pai assistia às aulas na

televisão, comprava alguns livros em bancas de jornal, fazia algumas provas, em um

curso chamado “Madureza” e dizia que era “uma dureza” fazer tudo aquilo. Outro

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registro que eu tinha em minha memória em relação aos adultos frequentando

escolas era o MOBRAL, que até hoje é associado à educação de adultos, embora já

esteja extinto desde a década de 1980.

Através das conversas com essa professora fiquei sabendo que em

Campinas existia a Fundação Municipal para Educação Comunitária (FUMEC), uma

fundação que trabalhava com ensino supletivo que equivalia até a 4ª série (conceito

e nomenclatura da época).

Interessei-me por esse tipo de trabalho e a colega me explicou que, ao final

de cada ano, acontecia um processo de inscrição para trabalhar na FUMEC, como

professora substituta. Então, me inscrevi nesse processo classificatório e, no ano

seguinte, comecei a trabalhar na fundação e a conhecer a Educação de Jovens e

Adultos.

As salas da FUMEC eram, e ainda são, em sua maioria, no período noturno.

Como eu trabalhava à tarde na Educação Infantil na SME, e na FUMEC minha

pontuação não era alta para conseguir uma das raras salas da manhã, eu escolhia

sempre uma sala do período da noite.

A promulgação da lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDBEN), trouxe muitas modificações para a educação brasileira. Em seu

artigo 62, indicava que a formação de docentes para atuar na educação básica

deveria ser em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em

universidade e institutos superiores de educação, e o curso oferecido em nível

médio, modalidade normal, formação que eu tinha até então, seria considerado

como formação mínima para o exercício do magistério.

Essas mudanças causaram um grande alvoroço entre as profissionais do

magistério, circularam muitos boatos, algumas colegas até afirmavam que as

professoras que não cursassem faculdade seriam demitidas de seus cargos.

Decidi então que deveria tentar cursar pedagogia. Como, na época, minhas

condições financeiras não possibilitavam pagar uma faculdade particular, tentei a

pública. Mesmo com o incentivo de várias colegas de trabalho, prestei o vestibular

sem acreditar muito que seria possível. Ainda não existiam os programas

organizados para que os professores em exercício nas escolas públicas pudessem

cursar a graduação, fato que ocorreu logo em seguida, com a criação do Programa

Especial de Formação de Professores em Exercício (PEFOPEX) e do Programa

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Especial para Formação de Professores da Região Metropolitana de Campinas

(PROESF), ambos oferecidos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

No ano 2000 passei no vestibular organizado pela Comissão Permanente

para os vestibulares (COMVEST) para cursar pedagogia na UNICAMP, situação que

me obrigou a me desligar das aulas noturnas e da FUMEC. Felizmente, no final

desse mesmo ano a FUMEC abriu concurso e, como eu me interessava e tinha já

alguma experiência de trabalho na EJA, passei pelas etapas necessárias e fui

aprovada. Quando a fundação me chamou para efetivação eu ainda estava com as

aulas da Educação Infantil à tarde e com a faculdade à noite, sobrando somente o

período da manhã para assumir o novo cargo.

No dia da escolha e efetivação no cargo saí de casa com muitas dúvidas. Eu

não poderia perder a possibilidade de acumular mais um cargo público efetivo, mas,

por outro lado, as salas da manhã na FUMEC eram raras, sendo que algumas

funcionavam dentro das penitenciárias. Muitas de nós tinham medo de assumir uma

dessas turmas do Projeto Penitenciária, como era chamado o conjunto de salas da

FUMEC que funcionava nas prisões, e eu me incluía nesse grupo de inseguras,

achava que era muito deprimente e perigoso esse trabalho e fui decidida a perder o

novo cargo se só houvesse essa opção.

No momento em que verifiquei os cargos vagos, as salas do período da

manhã eram todas no referido projeto. Ao mesmo tempo em que estava decidida a

não trabalhar em uma prisão, ponderei o fato de que perder uma vaga em um

concurso público não era uma decisão muito inteligente. Passei então a conversar

com as outras professoras, com as diretoras que estavam organizando a escolha

dos cargos e com as profissionais que trabalhavam nas penitenciárias. Por fim,

escolhi uma das classes da Penitenciária II – “Odete Leite de Campos Critter”, no

Complexo Penitenciário Campinas - Hortolândia.

Trabalhei em Penitenciárias durante três anos ao mesmo tempo em que

terminava a faculdade. Esse tempo foi único. Estava mergulhada na teoria e tinha

uma prática nova, totalmente inesperada e desconhecida para mim. Foram anos de

observação e muito aprendizado.

No momento de fazer o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), ao final do

curso de graduação, eu não poderia deixar de falar de educação dentro das

penitenciárias, de como aquele universo tinha uma organização e regras próprias,

de como era a relação da escola e do professor com os detentos. Iniciei assim o

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meu olhar acadêmico para a Educação de Jovens e Adultos, mais especificamente a

EJA dentro da penitenciária.

Ao desenvolver o trabalho, tanto acadêmico como profissional, aprendi que

somente os presos sentenciados têm direito a estudar. As escolas só funcionam

dentro das penitenciárias, locais para onde são levados os presos que já foram

julgados e sentenciados, para cumprirem a pena estabelecida. Antes da sentença,

os presos ficam nos Centros de Detenção Provisória (CDP) ou nas cadeias públicas,

locais onde não há escola. Aprendi também que após a sentença proferida pelo juiz

ao final do julgamento, o que passa a reger a vida do sentenciado é a lei 7.210/84,

Lei de Execução Penal (LEP). A LEP disciplina a execução da pena dentro da

prisão. Em relação à escolarização, alguns dos instrumentos contidos nessa lei são

o ensino obrigatório de primeiro grau (atual ensino fundamental), integrado ao

sistema escolar da unidade federativa (art. 18), o ensino profissional em nível de

iniciação ou de aperfeiçoamento (art. 19) e o trabalho prisional como dever social e

condição de dignidade humana, com finalidade educativa e produtiva.

Durante essa fase do meu trabalho na EJA me deparei com o universo

complexo do sistema prisional, particularmente do Estado de São Paulo, do qual a

penitenciária em que eu trabalhei e pesquisei fazia parte. O trabalho nessas

instituições apresenta muitas dúvidas e contradições, sendo uma atividade muito

questionada pela sociedade, pelos funcionários e pelos profissionais da educação

que tem a oportunidade de conhecer esse campo educacional.

Ao pesquisar o tema, aprendi sobre a história das punições e das prisões, de

como o mundo ocidental chegou nessa forma de contenção criminal; como a pena

de prisão substituiu as punições como espetáculo público com o objetivo de punir,

expiar pecados, intimidar e reafirmar o poder dos dominadores e inibir novos crimes.

Na época do surgimento do iluminismo e das revoluções burguesas que se

seguiram, os suplícios se tornaram inaceitáveis e começou-se a buscar uma nova

forma de “correção” de indivíduos, chegando-se ao cumprimento de penas dentro

das prisões.

A prisão é uma instituição que serve como instrumento de controle social, que

tem como característica a proibição de contato com o mundo exterior, através de

barreiras físicas como portas fechadas, paredes altas, arame farpado e outros

mecanismos de controle e vigilância.

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Na penitenciária, todos os momentos da vida acontecem no mesmo local e

sob uma única autoridade. A escola, para muitos detentos, funcionava como uma

possibilidade de “estar ali, sem estar ali”, muitos afirmavam que quando estavam na

escola se sentiam como se não estivessem mais dentro do presídio. Talvez essa

situação ocorra pelo fato de que o espaço escolar, apesar de estar dentro da prisão,

tem características diferenciadas, sua função não é vigiar nem punir, é espaço de

socialização e conhecimento.

Dentro desse regime, cada fase da atividade diária é realizada na companhia

imediata de um grupo grande de outras pessoas. Tudo o que é feito é rigorosamente

estabelecido em horários e locais, obedecendo a um sistema de regras formais

controlado pelos Agentes de Segurança Penitenciária (ASP). Em relação à família, a

convivência é restrita e controlada pela instituição, com regras pré-determinadas.

Outra mudança significativa que ocorre com o sentenciado é em relação a

sua identidade. Legalmente, o desmonte de sua identidade começa com a perda ou

suspensão temporária de direitos sociais; além disso, os presos são fichados,

medidos, registrados, fotografados, recebendo um número de matrícula, um

prontuário para registro de sua vida, seus cabelos são cortados e suas roupas

substituídas por uniformes.

Outras formas de descaracterização de sua identidade são as exigências em

relação à postura corporal, como por exemplo, andar sempre com as mãos cruzadas

atrás do corpo, ou a exigência de formas de tratamento diferenciadas em relação à

equipe de profissionais que lá atuam, com o uso do “senhor” ou “senhora” como

forma de tratamento.

Ao olhar para a realidade carcerária brasileira, não podemos ignorar o recorte

de classe social. A prisão e as normas prisionais, conforme estão constituídas, são

para as camadas da população mais desfavorecidas economicamente, ou seja, o

sentenciado é pobre, com baixa escolaridade e sem profissão.

Diante do exposto, já podemos constatar que a realidade educacional dentro

das penitenciárias é bastante peculiar. As necessidades desses alunos que, na

prisão são chamados de “reeducandos”, não se limitam à aquisição de

conhecimentos escolares. É preciso estabelecer um espaço em que as relações

sociais sejam repensadas criando novas oportunidades de atuação social e acesso

ao conhecimento.

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Dentro de todo esse movimento, e também pelo que vivi posteriormente, fui

refletindo sobre uma das características fundamentais da EJA, a diversidade de seu

alunado. Quando falamos de EJA, estamos falando de um universo infinito de

possibilidades.

Depois desse período, o convênio da FUMEC para atuação nas penitenciárias

terminou e eu escolhi outra sala no período da manhã, desta vez era uma classe

que funcionava dentro da Associação dos Amigos e Pais dos Excepcionais de

Campinas (APAE), no parque Itália, em Campinas. Fiquei sabendo depois que

algumas colegas questionaram o fato de uma novata conseguir uma sala no Parque

Itália, que é considerado uma boa localização, e ainda no período da manhã,

também considerado um bom horário para se trabalhar. O que essas colegas não

observaram é que essa sala ficou para o final, no processo de remoção, que

naquele tempo era feito de forma presencial. As professoras tinham muitas dúvidas

em relação ao trabalho nessa sala que funcionava dentro da APAE e se possível,

escolhiam salas em outros locais.

A APAE Campinas é uma associação filantrópica, de caráter assistencial, sem

fins econômicos, que tem como objetivo atender, por meio de trabalho terapêutico e

pedagógico, a crianças, jovens e adultos com deficiência mental1.

Da mesma forma que me deparei com a realidade da educação de detentos,

desta vez me deparei com a singularidade de lecionar para mães e avós das

crianças que frequentavam a APAE. A turma foi formada em uma parceria entre as

duas instituições, FUMEC e APAE, para atender as necessidades de algumas mães

e avós que levavam seus filhos ou netos para as aulas e ficavam com o tempo

ocioso até o final do período. Essas mulheres tinham pouca escolaridade, elas

propuseram que fossem organizadas salas de aula para atendê-las. A APAE

Campinas não apresentava em sua proposta pedagógica o trabalho com familiares

de alunos, portanto, a parceria com a FUMEC foi uma possibilidade encontrada.

Sendo assim, foram organizadas duas turmas de EJA I sob a responsabilidade da

FUMEC, uma no período da manhã e outra no período da tarde.

Nessa nova realidade também aprendi muito, pude conviver com aquelas

mulheres que enfrentam com muita coragem os desafios cotidianos. Tive a

oportunidade de entender suas dificuldades e necessidades, bem como contribuir

1 Conceituação da APAE apresentada no endereço eletrônico:

http://www.campinas.apaebrasil.org.br/artigo.phtml/10436 consultado em 02/11/2016.

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para que aquele tempo fosse um tempo de aprendizado, troca de experiências,

ajuda mútua, renovação da autoestima. Pude testemunhar a cada dia, todo o

preconceito que sofrem, dentro e fora da família, suas lutas e tristezas, como

também suas alegrias, com as conquistas de seus filhos ou netos.

O trabalho de professora, assim como o de outros profissionais, é permeado

de questionamentos, dúvidas, acertos e erros. A minha atuação como professora de

EJA não é diferente, na busca por entender melhor as especificidades dessa

modalidade, dediquei boa parte da minha formação à temática.

Ao término da faculdade, ainda sob o impacto de ter feito o TCC sobre EJA,

fiz um curso de Extensão Universitária, oferecido pela SME/ FUMEC em parceria

com a Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Rio Claro denominado

“Educação de Jovens e Adultos – Cultura – Processos de Subjetivação – Educação

Popular” onde desenvolvemos estudos sobre a realidade do aluno de EJA, como

sendo porta-voz de sua realidade social, e a formação do professor, visto como

mediador entre o aluno e o conhecimento, dentro do referencial teórico apresentado.

Neste curso também pude aprofundar um pouco mais os meus conhecimentos em

EJA.

Nessa trajetória como professora da FUMEC também participei de vários

grupos de estudos (GE) e cursos nos momentos de Formação Continuada (FC) em

serviço, dentre eles faço destaque para um GE que estudava a educação de velhos,

tendo como base teórica os livros escritos pela Drª. Anita Liberalesso Neri, e

também algumas palestras sobre gerontologia, oferecidas pelo Serviço Social do

Comércio (SESC - Campinas).

Alguns anos depois, através de um convênio firmado entre a SME/ FUMEC e

a UNICAMP, foram oferecidos cursos de Especialização para os professores e

gestores da SME e da FUMEC. Dentre as opções havia um curso organizado pelo

Grupo de Educação e Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (GEPEJA),

coordenado pela Drª Sônia Giubilei. Foram dois anos, 2008 e 2009, com aulas aos

sábados, períodos da manhã e da tarde, com aprofundamentos teóricos e práticos,

com base teórica Freireana.

Durante o período do curso de Especialização prestei outro concurso público

para o cargo de Coordenadora Pedagógica (CP) na SME, assumindo essa nova

função em março de 2009, exonerando assim do cargo de professora de Educação

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Infantil e tendo que alterar os meus horários da FUMEC. Não podendo mais

trabalhar de manhã, fiz uma permuta e fui para o período noturno.

Nessa nova fase, atuei na fundação, durante quatro anos, como professora

de Educação Especial (EE) uma vez que tinha habilitação para exercer também

essa função. Nessa atividade circulei por várias salas da FUMEC, conheci grande

parte das professoras e lancei um novo olhar para o alunado da EJA. O público da

Educação Especial na EJA era motivo de muitas dúvidas e questionamentos, a

maioria não tinha diagnóstico, muitos eram velhos, alguns eram portadores de

doenças degenerativas, portanto, um novo momento de aprendizado.

Após novo processo de remoção, fui para uma sala em que a maioria dos

alunos era formada de velhas e velhos. Através de todos esses anos e trajetória,

tanto acadêmica como profissional, pensando e repensando a EJA, aqueles alunos

velhos, de novo, me provocavam inquietação. As teorias e documentos sobre EJA,

em sua maioria, não contemplam os velhos, focam mais nas discussões sobre

jovens e adultos trabalhadores, na concepção de preparar para atuação no mercado

de trabalho e na sociedade. Quanto a isso, nossa Constituição é clara, garante a

Educação como direito de todos, dever do Estado e da família, mas uma educação

feita para e com as velhas e os velhos ainda não se consolidou.

No meu processo formativo profissional, após o término do curso de

magistério, concluí a graduação, o curso de aperfeiçoamento e também o de

especialização, bem como continuei com os estudos através das formações

continuadas em serviço e sempre mantive o interesse em cursar o mestrado. A

oportunidade surgiu quando conheci o Mestrado em Educação, oferecido pelo

Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) através de algumas colegas

da FUMEC que já o estavam cursando. Percebi que aquele poderia ser o momento

de retomada dos estudos, pois o formato vinha ao encontro do que era possível para

mim. Com a possibilidade de cursar uma disciplina por semestre, começando como

aluna especial e, depois, entrando como regular, pude utilizar o horário para

formação existente na minha jornada de trabalho.

O mestrado em Educação do UNISAL tem como núcleo da investigação a

Educação Sóciocomunitária, se ligando assim ao meu interesse em EJA e, mais

particularmente, pela educação das velhas e dos velhos.

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PARTE 2

2. AS VELHAS E OS VELHOS NA EJA E A PRODUÇÃO DAS SUBJETIVIDADES

NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Este trabalho talvez tenha também a pretensão de atender ao apelo de

Simone de Beauvoir, apresentado em seu livro “A Velhice”, de 1970, que até hoje é

referência na área das ciências do envelhecimento. Esse apelo aparece na

apresentação de seu texto, onde ela denuncia a condição de abandono da velhice

pela sociedade e indica sua intenção de quebrar o silêncio sobre essa população: “é

por isso que urge quebrar esse silêncio: peço aos meus leitores que me ajudem a

fazê-lo”.

2.1. VELHICE, ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO NO BRASIL E

LONGEVIDADE

No início deste trabalho, como já apresentei anteriormente, a minha decisão

foi a de utilizar a palavra “idoso” (ou “idosos”) ao me referir aos sujeitos desta

pesquisa. Talvez por uma ideia do senso comum, a palavra “velho” me causava

certo desconforto e estranhamento, ainda naquela concepção de que gente seria

idosa, velho seria um objeto sem serventia e, também, me parecia mais respeitoso

escrever idoso. Porém, ao pesquisar conceitos para referenciar minha opção, me

deparei com a posição de Lopes, citando Park:

Park (2000, 2004) pontua que a substituição do termo velho por idoso leva a um deslocamento da discussão sobre a velhice, colocando a longevidade em foco e deixando de discutir a questão da função social do velho. Tal deslocamento é favorável à manutenção dessa classe etária como mercado consumidor potencial e de sua imagem como improdutiva (LOPES, 2007, p. 142).

E pude refletir um pouco mais sobre a questão das terminologias a partir

desta afirmativa:

A semântica foi apenas um dos campos atingidos por esta mudança. O termo “velho” virou pejorativo. E nem mesmo o termo “idoso” pareceu suficiente, soando mais como um eufemismo. Quis-se identificar a emergência então de uma “Terceira Idade”. Alguns até preferem “A Melhor Idade”, pretensa idade do descomprometimento, suposto tempo para tão somente retomar projetos abandonados em outrora (PARK e GROPPO, 2009, p. 22).

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Os autores ainda continuam com as considerações acerca do termo “velho”:

“Neste sentido, ousamos considerar que é possível utilizar o termo “velho” sem tom

pejorativo. Afinal não soaria muito bem, conforme alguém já disse, se o grande

clássico de Hemingway se chamasse “O Idoso e o Mar” (PARK e GROPPO, 2009, p.

22).

E continuando a discussão, os autores fazem também o alerta para a questão

do uso de “Terceira Idade”: “também consideramos que é preciso usar com

prudência o termo “Terceira Idade”, o qual pode nos fazer escorregar para ideologias

pró-consumistas ou que pouco consideram as marcas que o tempo traz no corpo e

no espírito dos seres humanos” (PARK e GROPPO, 2009, p. 22).

Tais afirmativas me fizeram perceber que eu havia feito uma escolha

equivocada. Percebi que ao optar por “idoso” eu estava justamente enfatizando a

longevidade, que não é o foco deste trabalho, e estava fazendo uma escolha em

oposição à minha proposta de discutir a velhice e a função social das velhas e dos

velhos no processo de escolarização. Ao refletir sobre esses conceitos, fazendo uma

analogia com outras faixas etárias, seria como se nos referíssemos aos bebês como

sendo os “de pouquíssima idade” ou às crianças como “os de pouca idade”, só

considerando os anos vividos e não as funções sociais e nem as especificidades do

“ser bebê” e do “ser criança”.

Obviamente tive que reformular minha perspectiva em relação a este trabalho.

Dentro dessa nova concepção adotei o uso de “velhas” ou “velhos”, “velha” ou

“velho” ou ainda, “alunas velhas” e “alunos velhos”, considerando também as

diferenças em relação às questões de gênero. Em alguns momentos, no caso das

citações e reprodução de partes de documentos, ainda foi mantida a palavra idoso,

por não ser possível fazer a substituição.

Como base da problemática estudada, pude visualizar um fato que está em

curso, o crescimento do número de velhos no Brasil, ou o chamado “envelhecimento

da população”. Vários fatores têm contribuído para esse panorama. Primeiramente

retomo o conceito de idoso (ou velho) no Brasil e sua importância:

No Brasil, considera-se idoso o indivíduo que tem 60 anos ou mais, conforme critério estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para países em desenvolvimento. Nos países desenvolvidos, o marco é 65 anos. A demarcação de grupos populacionais por critério de idade é importante para a formulação de políticas públicas relativas a investimentos e direitos (RODRIGUES e FORTE-BURGOS, 2011, p. 14).

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O envelhecimento populacional de um país está diretamente relacionado ao

estágio do desenvolvimento sócio-econômico do mesmo. Esse estágio demonstra o

nível de qualidade de vida das pessoas. Fatores como acesso aos serviços de

saúde e medicamentos, saneamento básico, bens culturais e educação, segurança

e qualidade alimentar, segurança pública, possibilidade de realizar atividades de

lazer são fatores determinantes na longevidade dos indivíduos. Para exemplificar o

avanço da população idosa no Brasil, considero alguns dados numéricos:

No Brasil, em 1900, os indivíduos não alcançavam os 35 anos de idade. Em 1950, esse limite atingiu 43 anos, em 1980 foi para 61.88 anos e, em 200, para 67,08 anos, esperando-se que atinja 80 anos em 2025 (Gonçalves, 2006). Entre 1997 E 2007, a esperança de vida média, ao nascer, do brasileiro, cresceu 3,4 anos. A das mulheres passaram de 73,2 para 76,5 anos e os homens de 65,5 para 69,0. Em 2007, a esperança média de vida ao nascer era de 72,7 anos de idade (RODRIGUES e FORTE-BURGOS, 2011, p. 17).

Somam-se a esses fatores a queda na taxa de mortalidade e na taxa de

fecundidade.

Após verificação desses dados pude constatar que se faz necessário o

avanço nas políticas públicas que atendam com qualidade as demandas dessa faixa

populacional.

A velhice pode ser concebida de diversas formas de acordo com as várias

culturas desenvolvidas pela humanidade. “Assim como a criação do conceito de

adolescência, no século XIX, como fase intermediária entre a infância e o mundo

adulto, os conceitos de meia-idade, terceira idade e aposentadoria ativa emergem

interpostos à etapa adulta e ao envelhecimento em meados do século XX”

(CORREA, 2009, p.30).

Nesse contexto, diferentes tipos de comportamento dos velhos tem sido ou

não valorizados socialmente, interferindo assim na produção de subjetividades em

relação a essas pessoas:

Se antes a valorização do homem velho era calcada no signo do recato, do comedimento, da sobriedade, da sabedoria, da experiência de vida, hoje ela também passa pela possibilidade de ser uma fase de realizações, de atividade, de atualização, de acompanhamento das inovações e modismos, como se pode observar na iconografia expressa, por exemplo, nas novelas e anúncios comerciais dirigidos para esse segmento. Certamente, essa velhice modificou-se, ou pelo menos abriu-se um leque maior de modos de ser e de viver essa fase da vida (CORREA, 2009, p.29).

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A sociedade atual apresenta como característica a valorização da pessoa de

acordo com sua capacidade de produção econômica e de consumo. Considerando

por essa ótica as características ligadas à juventude, como a beleza, capacidade

intelectual e força tem mais valor social e as c aracterísticas ligadas à velhice, como

fragilidade ou falta de beleza e força produtiva não são desejáveis:

No mundo atual, a velhice é colocada como algo indesejável. As mudanças que ela impõe aos corpos são objetos de intervenções várias visando suas reversões, como cirurgias plásticas, cosméticos, exercícios, dietas etc. Não deixa de ser interessante a contradição de nosso tempo: com tanto arsenal tecnológico produzido na atualidade, a expectativa de vida aumentou substancialmente. No entanto, ao mesmo tempo em que o mundo moderno promete a eternidade e alonga o chronos da vida, ele não lhe reserva um campo de possibilidades. Assim, a velhice fica confinada e interditada no plano das experiências possíveis do homem (CORREA, 2009, p. 15-16).

Felizmente as relações sociais não são estáticas, a sociedade

contemporânea também tem como característica a possibilidade de surgimento de

novas identidades e a velhice vem passando por essa nova construção identitária:

A face da velhice, na atualidade, apresenta, enquanto construção social, aspectos muito diferentes em relação àquela que se exibia no início do século XX. Até mesmo a nomenclatura para essa fase da vida modificou-se com o aparecimento de outras designações. Terceira idade, melhor idade, feliz idade, maturidade, segunda juventude...: novas materialidades, novos sujeitos e novos procedimentos para referir-se à velhice, assim como alusões a novas possibilidades de vivê-la (CORREA, 2009, p. 28).

A trajetória da velhice na contemporaneidade apresenta contradições; ao

mesmo tempo em que há uma tendência à desvalorização das velhas e dos velhos,

por outro lado, essa população pode ser concebida como consumidora em potencial.

Outro fator relevante é que o Estado, de forma democrática, precisa legislar, criar e

implementar políticas para essa população com o objetivo de garantir direitos e

atender seus interesses e necessidades.

A necessidade de diferenciar e conceituar essa faixa etária parece ser uma preocupação que revela algo curioso: a velhice foi finalmente descoberta. Não apenas o mercado descobre o potencial desse segmento, como também o estado de direito registra seu reconhecimento mediante a criação de leis específicas (CORREA, 2009, p. 28).

Ainda segundo Lopes e Park:

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Atualmente percebe-se, por um lado, imagens de velhos que procuram manter o controle sobre seus corpos e relativa juventude, ativos e dispostos a realizar sonhos e satisfazer seus desejos; e, por outro, imagens de velhos pobres, doentes, solitários, assexuados e abandonados à sua sorte. Desse modo, coexistem diferentes imagens de velhos na sociedade contemporânea (2007, p. 141-142).

Fator decisivo nessa questão é o tempo, com o aumento da longevidade e da

qualidade de vida, as velhas e os velhos passaram a ter tempo e podem vivenciar

novas formas de velhice:

Ser velho passou a ter um sentido em si mesmo, para além da doença, para aquém da morte. Os velhos passaram a ter tempo. Tempo para construir outras identidades, recompondo o significado de sua vida, revendo o passado, com olhos no presente. Tempo de recriar seus papéis sociais, os de outrora e os do presente. (PARK e GROPPO, 2009, P. 22).

Nesse movimento de recriar seus papéis sociais, muitas velhas e muitos

velhos tem procurado os vários espaços sociais que podem ter acesso, entre eles, a

escola.

2.2. As velhas e os velhos na EJA

Atualmente as alunas velhas e os alunos velhos tem frequentado cada vez

mais as salas de EJA. O trabalho pedagógico com esse alunado tem

particularidades que precisam ser consideradas.

De acordo com o recorte deste trabalho, que tem como objeto de estudo as

alunas velhas e os alunos velhos matriculados na FUMEC, a fundação

disponibilizou, após solicitação por parte desta pesquisadora, dados quantitativos

sobre o total de alunos matriculados, total de alunos com mais de 60 anos de idade,

com subdivisão entre masculino e feminino, matriculados nos três programas de EJA

da Fundação:

TABELA 1

Total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – anos iniciais e total de alunos

matriculados na FUMEC/ EJA – anos iniciais com mais de 60 anos com separação

entre masculino e feminino

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EJA – ANOS INICIAIS

TOTAL DE ALUNOS

MATRICULADOS

TOTAL DE ALUNOS COM MAIS DE

60 ANOS

M F M F

635 1002 85 322

1637 407

Dados estatísticos levantados no Sistema Integre2 em 31/10/2016 (Relatórios

Estatísticos por Faixa Etária)

TABELA 2

Total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – Programa Educação

Ampliada ao longo da vida e total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA –

Programa Educação Ampliada ao longo da vida com mais de 60 anos com

separação entre masculino e feminino

PROGRAMA EDUCAÇÃO AMPLIADA AO LONGO DA VIDA

TOTAL DE ALUNOS

ATRICULADOS

TOTAL DE ALUNOS COM

MAIS DE 60 ANOS

M F M F

84 195 22 104

279 126

Dados estatísticos levantados no Sistema Integre em 31/10/2016

(Relatórios Estatísticos por Faixa Etária)

TABELA 3

Total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – Programa Consolidando a

escolaridade e total de alunos matriculados na FUMEC/ EJA – Programa

2 O sistema Integre é um sistema de informát ica munic ipal, que tem como objet ivo o

gerenc iamento e a geração de dados estat íst icos para a organização constante do s istema munic ipal de educação.

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Consolidando a escolaridade com mais de 60 anos com separação entre

masculino e feminino.

PROGRAMA CONSOLIDANDO A ESCOLARIDADE

TOTAL DE ALUNOS

MATRICULADOS

TOTAL DE ALUNOS COM

MAIS DE 60 ANOS

M F M F

225 184 5 30

409 35

Dados estatísticos levantados no Sistema Integre em 31/10/2016 (Relatórios

Estatísticos por Faixa Etária)

Os dados apresentados mostram um universo de 2.325 alunos, sendo 568

alunos com mais de 60 anos.

Ao fazer as considerações sobre esses dados, pude observar que o número

de alunos com mais de 60 anos, no total geral de matriculados nos três programas

oferecidos pela fundação, é de quase vinte e cinco por cento, sendo que no

programa “Séries Iniciais”, no qual os sujeitos desta pesquisa estão matriculados,

essa porcentagem permanece, fato que por si nos indica que a EJA precisa discutir

e encontrar caminhos para atender esse alunado de acordo com suas

especificidades.

Outro fator que chamou minha atenção nessa observação inicial é o maior

número de mulheres em relação aos homens. No caso do Programa observado –

séries iniciais, os alunos velhos estão numa proporção de quase vinte por cento dos

matriculados, sendo as alunas velhas a grande maioria deles. Esse dado será

considerado no momento de análise posterior.

2.3. REFLEXÕES TEÓRICAS ACERCA DE IDENTIDADES, DIFERENÇAS E

SUBJETIVIDADES

Os questionamentos em relação às motivações das alunas e dos alunos

velhos que persistem em buscar a escolarização, podem encontrar respostas em

alguns conceitos sobre o mundo contemporâneo.

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Um dos caminhos possíveis para essa construção teórica é olhar a trajetória

do conceito de sujeito e das identidades através da história. Hall organiza essa

trajetória em alguns estágios, rejeitando a ideia de que as identidades eram

unificadas e que atualmente se tornaram deslocadas.

A ideia de que as identidades eram plenamente unificadas e coerentes e que agora se tornaram totalmente deslocadas é uma forma altamente simplista de contar a estória do sujeito moderno. Eu a adoto aqui como um dispositivo que tem o propósito exclusivo de uma exposição conveniente (HALL, 2000, p.25).

Em uma ruptura com o passado, no período da modernidade, o indivíduo foi

liberto de apoios estáveis como as tradições e estruturas. Nas práticas da idade

moderna, a concepção era de um sujeito racional, pensante e consciente, uma

concepção de sujeito centrado, ou seja, situado no centro do conhecimento.

Em um processo que não foi tranquilo, esse sujeito foi “deslocado” desse

centro e, na modernidade tardia, segundo o autor, esse sujeito individual passou a

ser visto como pertencente a um grupo social por conta da complexidade das

relações, e a ser concebido como um sujeito social. Hoje as identidades do sujeito

pós-moderno são vistas como abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas.

Partindo desse pressuposto, posso afirmar que a tentativa de enquadrar as

alunas e alunos velhos em um modelo único de identidade se torna inócua, as

tentativas de classificação escapam a todo instante, cada um constrói sua identidade

ao longo de suas vivências. A diferença está posta, esse é o desafio e também essa

é a riqueza.

Continuando nessa discussão das identidades, Tomáz Tadeu da Silva (2000)

afirma que os conceitos de identidade e diferença são inseparáveis, a identidade é a

referência, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença, elas são

mutuamente determinadas. Entretanto, ele afirma que, numa visão mais radical,

seria possível dizer que é a diferença que vem em primeiro lugar, em se

considerando a diferença não como resultado de um processo, mas como sendo o

processo mesmo pelo qual tanto a identidade como a diferença, são compreendidas

como processo, são produzidas. O autor afirma ainda que:

Além de serem interdependentes, identidade e diferença partilham uma importante característica: elas são o resultado do ato de criações linguística. Dizer que são o resultado de atos de criação significa dizer que não são "elementos" da natureza, que não são essências, que não são coisas que estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou descobertas, respeitadas ou toleradas. A identidade e a diferença têm que ser ativamente

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produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais (SILVA, 2000, p.2).

Se ao realizar as entrevistas com esses alunos, é possível perceber como se

dá a construção da identidade e da diferença e da leitura de mundo desses sujeitos,

através da linguagem verbal, ou seja, da criação linguística, num processo de

interação linguística com o mundo.

Entre outros autores que criaram conceitos que vem ao encontro da

indagação deste trabalho estão Félix Guattari e Sueli Rolnik, trazendo elementos

sobre a produção de subjetividades.

As máquinas de produção da subjetividade variam. Em sistemas tradicionais, por exemplo, a subjetividade é fabricada por máquinas mais territorializadas, na escala de uma etnia, de uma corporação profissional, de uma casta. Já no sistema capitalístico, a produção é industrial e se dá em escala internacional (GUATTARI; ROLNIK, 2010, p. 33).

Entretanto, mesmo com a potência dessa maquinaria de produção de

subjetividades, os sujeitos podem resistir e ressignificar essas subjetividades.

A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação ou semiotização não são centrados em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egoicas, microssociais), nem de agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extraindividual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, ou seja, sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagem e de valor, modos de memorização e de produção de ideias, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos e assim por diante). Toda a questão está em elucidar como os agenciamentos de enunciação reais podem colocar em conexão essas diferentes instâncias. É claro que não estou inventando nada: essa posição pode ainda não estar verdadeiramentes teorizada, mas, com certeza, está plenamente em ação em todo o desenvolvimento da sociedade (GUATTARI; ROLNIK, 2013, p. 39).

Através da análise dos depoimentos orais transcritos se tornou possível fazer

uma aproximação com os agenciamentos de enunciação reais que produziram as

subjetividades nos depoentes e que eles escolheram revelar através da linguagem.

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PARTE 3

3. ALGUNS ASPECTOS DA EJA

A Educação é um campo que envolve disputas políticas e econômicas por

modelos de sociedade tipo de cidadão que se quer formar. Não existe neutralidade

nos projetos, nos financiamentos e nem nas práticas educacionais.

A trajetória da educação de adultos no Brasil está intimamente ligada aos

modelos de sociedade que se quis implantar em cada período histórico e aos

movimentos de resistência e luta conta e a favor de tais modelos.

A EJA numa perspectiva ampliada, que abarca tanto a alfabetização e a educação básica de adultos quanto às atividades voltadas para a profissionalização, ressaltando que a origem e a trajetória de ambas é marcada, no Brasil, por duas características: em primeiro lugar, a EJA sempre destinou-se aos subalternizados da sociedade, ou seja, à classe trabalhadora; em segundo, ao longo da história ela se constituiu predominantemente em paralelo ao sistema regular de ensino. Esse quadro torna-se ainda mais perverso quando consideramos que uma imensa maioria foi e ainda é excluída até mesmo desta estrutura dual, aprofundando o caráter classista da sociedade brasileira (VENTURA, s.d.).

Para compreensão da EJA, neste trabalho, o movimento da educação de

adultos no Brasil está subdividido em alguns períodos históricos, sendo: o início da

Educação de adultos no Brasil, o início da pedagogia de Paulo Freire, o período da

ditadura militar, o início do processo de redemocratização pós-ditadura e a criação da

FUMEC em Campinas.

3.1. O INÍCIO DA EDUCAÇÃO DE ADULTOS NO BRASIL

Posso afirmar que desde o período Imperial já existiam iniciativas de

educação de adultos no Brasil. Segundo Costa (2011) entre 1870 e 1889 já existiam

escolas de instrução primária para adultos no município da corte. A autora aponta

ainda que era “uma política educacional de Estado precarizada, destinada ao

trabalhador livre pobre e seus filhos. Sua marca seria a assistematicidade, apesar da

existência de legislação relativa à educação de adultos” (COSTA, 2011, p. 55).

A partir das décadas 1920 e 1930 começaram a acontecer mudanças de

caráter político, econômico e social, brasileiras e mundiais, gerando uma nova

reorganização social e econômica:

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A década de 1930 caracterizou-se, no Brasil, pela perda da hegemonia pelos latifundiários cafeicultores e pela emergência da burguesia industrial brasileira. A estruturação do Brasil urbano-industrial e o projeto liberal-industrializante, sobrepondo-se às elites rurais, desenharam, de forma gradual, uma nova configuração da acumulação capitalista no País, no sentido da implantação de um núcleo básico de indústrias de bens de produção, bem como na redefinição do papel do Estado em matéria econômica, visando tornar o polo urbano-industrial o eixo dinâmico da economia (VENTURA, s.d.).

Essa situação também motivou maior empenho, tanto dos movimentos sociais

como de órgãos oficiais, para eliminar o analfabetismo.

De acordo com a Proposta Curricular para o Primeiro Segmento do Ensino

Fundamental – Educação de Jovens e Adultos, de 1997, de autoria do Ministério da

Educação (MEC):

A educação básica de adultos começou a delimitar seu lugar na história da educação no Brasil a partir da década de 30, quando finalmente começa a se consolidar um sistema público de educação elementar no país. Neste período, a sociedade brasileira passava por grandes transformações, associadas ao processo de industrialização e concentração populacional em centros urbanos. A oferta de ensino básico gratuito estendia-se consideravelmente, acolhendo setores sociais cada vez mais diversos. A ampliação da educação elementar foi impulsionada pelo governo federal, que traçava diretrizes educacionais para todo o país, determinando as responsabilidades dos estados e municípios. Tal movimento incluiu também esforços articulados nacionalmente de extensão do ensino elementar aos adultos, especialmente nos anos 40 (BRASIL, 1997, p. 19).

Esse segmento educacional começou a ganhar visibilidade por causa dos

altos índices de analfabetismo verificados no país naquele período, levando também

à uma reorganização dos recursos econômicos destinados à educação:

Até então, o problema da educação dos adultos era tratado juntamente com o da difusão do ensino elementar. Somente na década de 40 é que se reacende o tema dos altos índices de analfabetismo... e a educação dos adultos começa a ganhar relevância. Sua independência torna-se concreta com a própria criação do Fundo, com a dotação de 25% de seus recursos para a campanha especificamente destinada à educação da população adulta analfabeta (PAIVA, 1987, p. 48).

Ainda de acordo com o documento citado, após a segunda Guerra Mundial, a

Educação de Adultos (EA) ganhou destaque no bojo das discussões sobre a

integração dos povos, a consolidação da paz e da democracia. O INEP (Instituto

Nacional de Estudos Pedagógicos) foi criado em 1938. Essa situação permitiu a

institucionalização, em 1942, do Fundo Nacional do Ensino Primário, com a inclusão

do Ensino Supletivo para adultos e adolescentes.

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No período entre 1947 e 1962 foram criadas várias campanhas relacionadas

à educação de adultos: a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos

(1947), A Campanha Nacional Educacional Rural (1952), a Campanha Nacional de

Erradicação do Analfabetismo (1959/ 1960) e a Mobilização Nacional contra o

Analfabetismo (1962).

Nessa época, também era importante para o governo central garantir suas

bases de sustentação através da integração das massas migratórias populacionais e

garantir um incremento à produção, movimento esse que culminou com a

Campanha de Educação de Adultos em 1947. Em um período curto de tempo foram

criadas várias escolas supletivas.

A instauração da Campanha de Educação de Adultos deu lugar também à conformação de um campo teórico-pedagógico orientado para a discussão sobre o analfabetismo e a educação de adultos no Brasil. Nesse momento, o analfabetismo era concebido como causa e não efeito da situação econômica, social e cultural do país. Essa concepção legitimava a visão do adulto analfabeto como incapaz e marginal, identificado psicológica e socialmente com a criança (BRASIL, 1997, p. 20).

Contudo, na década de 1950, esse movimento entrou em declínio, as

iniciativas voltadas à ação comunitária em zonas rurais não obtiveram o mesmo

êxito, a campanha se extinguiu e os estados e municípios assumiram a rede de

ensino supletivo.

Importante destacar que nesse período “o analfabetismo era concebido como

causa e não como efeito da situação econômica, social e cultural do país. A

sociedade legitimava o analfabeto como um sujeito incapaz e à beira da

marginalidade” (GARCIA, 2004, p. 12), e também a educação de adultos e

alfabetização de adultos eram vistas como sinônimas:

O que se pode constatar ao se analisar esses momentos históricos e políticos é que a educação de adultos e a alfabetização de adultos eram consideradas como sinônimas. Tal interpretação foi sustentada durante muito tempo, aliada ao fato de que alfabetizar era necessário para alavancar o desenvolvimento social e econômico do país (PELUSO, 2001, p. 09).

Visto por esse ângulo, o sujeito analfabeto era considerado como uma pessoa

de menor capacidade intelectual, diferentemente do período posterior, quando a

teoria e as práticas do educador Paulo Freire começaram a se consolidar. Nesse

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período, também havia uma vertente que conceituava a educação de adultos como

educação profissional.

A Campanha de 1947 deu também lugar à instauração no Brasil de um campo de reflexão pedagógica em torno do analfabetismo e suas consequências psicossociais; entretanto, ela não chegou a produzir nenhuma proposta metodológica específica para a alfabetização de adultos, nem um paradigma pedagógico próprio para essa modalidade de ensino. Isso só viria a ocorrer no início dos anos 60, quando o trabalho de Paulo Freire passou a direcionar diversas experiências de educação de adultos organizadas por distintos atores com graus variados de ligação com o aparato governamental (DI PIERRO; JOIA; RIBEIRO, 2001, p.60).

Após esse período inicial, a Educação de Adultos (EA) foi se consolidando e, dentro

desse movimento, podemos destacar o referencial da Educação Popular e da

Pedagogia de Paulo Freire.

3.2. O INICIO DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NO BRASIL E A

EDUCAÇÃO DE ADULTOS

Aos esfarrapados do mundo

E aos que neles se

Descobrem e, assim

Descobrindo-se, com eles

Sofrem, mas, sobretudo,

Com eles lutam.

(FREIRE, 2007, p.23)

A história da Educação de Adultos no Brasil está inexoravelmente ligada ao

nome de Paulo Freire, mesmo sendo seu pensamento muito mais abrangente,

conforme ele mesmo afirma em entrevista:

Durante muito tempo muita gente pensou em mim, ou falou em mim, como se eu fosse um especialista em métodos e técnicas de alfabetização de adultos; não é que eu ache que ser um especialista em educação de adultos seja uma coisa inferior, de jeito nenhum, eu acho uma coisa de uma importância enorme, mas só que a minha preocupação, desde o começo, era um pouco mais gulosa do que essa, o que eu buscava já naquela época, nos anos 50, era uma crítica à educação brasileira (VENTURI, 2007).

Paulo Freire começou suas reflexões sobre a educação de uma forma ampla,

como podemos verificar pela afirmativa acima, mas ficou mundialmente conhecido

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por sua proposta de alfabetização de adultos das classes populares. Muito contribuiu

para isso o movimento que ocorreu em Angicos, Rio Grande do Norte, em 1963.

Esta foi “a primeira experiência sistematizada de alfabetização de adultos com base

nas concepções epistemológicas, filosóficas e educacionais de Paulo Freire, e sob

sua orientação” (PELANDRÉ, 2002, p. 33). A proposta aconteceu em 40 horas;

embora sua difusão tenha sido internacional, no Brasil sua divulgação ficou

prejudicada pelo momento político pelo qual o país passava, lembrando que o golpe

militar ocorreu no ano seguinte:

Cumpre registrar que o projeto de Angicos foi podado com violência pelo golpe militar de 1964: os professores foram perseguidos e os alunos coagidos a esconder ou eliminar o material do curso. Pode-se inferir que, não fosse tal perseguição insana, teria havido tempo de aprofundar conteúdos e calibrar a abordagem de acordo com o retorno demonstrado pelos alunos (PELANDRÉ, 2002, p. 29).

Embora a experiência tenha acontecido sob essas condições, ela já trazia em

seu bojo as bases do pensamento freireano e isso muito contribuiu para que seu

pensamento ficasse conhecido mundialmente.

Como nos ensina Gadotti:

A concepção antropológica de Paulo Freire é muito simples, primeiro, você é um ser curioso, então a curiosidade é uma categoria fundamental, principal. Segundo, você é um ser inacabado, incompleto, inconcluso, portanto você precisa do outro, e terceiro, se você nasceu como um ser de ligação, conectivo com o mundo, você compartilha com o outro o mundo, esse mundo está em transformação, portanto a antropologia de Paulo Freire está baseada na ideia de que o ser humano está em constante evolução e constante transformação (VENTURI, 2007).

Esses pressupostos apontam para a organização do trabalho desenvolvida

por Freire, ainda por Gadotti:

Primeiro, se nós somos seres curiosos, a primeira coisa que nós vamos fazer é ler o mundo, então a leitura do mundo é um princípio fundamental da teoria do conhecimento de Paulo Freire. A segunda é a tematização, pegar aquelas palavras geradoras, aqueles princípios geradores, aquilo que o povo conhece, no caso do método de alfabetização, aquilo que o alfabetizando conhece e descobrir o que significa. E a terceira é a problematização, a problematização é o momento culminante do método freireano, por isso que o Paulo dizia, não quero ser conhecido como alguém que apenas inventou o método, exatamente porque o seu método está ligado à sua teoria do conhecimento e à sua antropologia (VENTURI, 2007).

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Entre os que estudam e praticam as teorias de Freire, há uma antiga

discussão: se existe ou não “um método” de Paulo Freire. Na citação acima Moacir

Gadotti, que conviveu e trabalhou com Freire por anos, afirma que sim. Mas, para

entender a organização do trabalho segundo as bases freireanas como método, o

conceito de método tem que ser esclarecido, não devendo ser visto como um

simples protocolo de procedimentos que devam ser seguidos à risca, mas sim como

algo que tem bases firmes em seus pressupostos teóricos.

E ainda continua Gadotti, no prefácio do livro de Nilcéa Lemos Pelandré (p.

20) “podemos falar, hoje, com propriedade de “Método Paulo Freire” como algo

muito mais do que uma metodologia, do que uma técnica de ensinar. Trata-se de

uma concepção geral da educação e da sociedade”.

Considerando esses esclarecimentos, este texto discorrerá sobre o Método

Paulo Freire.

3.2.1. O método de Paulo Freire

Em contraponto à ideia de marginalização do adulto analfabeto, vigente à

época, Paulo Freire dimensiona o adulto como sujeito de sua aprendizagem.

O pensamento pedagógico de Paulo Freire, assim como sua proposta para alfabetização de adultos inspiraram os principais programas de alfabetização e educação popular que se realizaram no país no início dos anos 60. Esses programas foram empreendidos por intelectuais, estudantes e católicos engajados numa ação política junto aos grupos populares (MEDEIROS, 2005, p.04).

As turmas de alfabetização eram chamadas de Círculos de Cultura. Essa

denominação já explicitava uma concepção ampla de alfabetização e também uma

nova relação entre os que ensinam e os que aprendem, como podemos entender

com essa afirmativa de Marcos Guerra:

“Círculos de Cultura” foi o nome que nós demos, que Paulo Freire deu, pra substituir a classe de alfabetização, porque na classe de alfabetização permanece aquele sentimento de “A” sobre “B”, ou seja, de um professor que dita, que diz, que transmite uma “educação bancária” e alguém que recebe (VENTURI, 2007).

Freire afirmava que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as

possibilidades para sua produção ou a sua construção, quem ensina, aprende ao

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ensinar, e quem aprende, ensina ao aprender” (VENTURI, 2007), e fazia crítica do

modelo educacional consolidado, que chamava de educação bancária, na qual o

aluno é um “depósito” de conhecimento, sem nenhum poder sobre a própria

educação.

Através dessa proposta de alfabetização conscientizadora, todo o trabalho era

pensado e proposto a partir de um tema gerador que surgisse diretamente da

realidade do aluno. A produção de materiais didáticos, a organização dos Círculos

de Cultura e os estudos propostos sempre partiam do meio social e cultural no qual

os alunos estavam inseridos.

Medeiros (2005) afirma que a “conscientização” era a categoria fundamental

da educação popular, toda inspirada na proposta Freireana.

Paulo Freire, em seu livro “Conscientização” afirma que o vocábulo, criado por

professores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, é um termo profundo. A

educação como prática da liberdade é um ato de conhecimento, através de uma

aproximação da realidade de forma crítica, “é precisamente isto, a práxis humana, a

unidade indissolúvel entre minha ação e minha reflexão sobre o mundo” (FREIRE,

1979, p.15). Ele continua sua explanação sobre a importância do processo de

conscientização:

Essa tomada de consciência não é ainda a conscientização, porque esta consiste no desenvolvimento crítico da tomada de consciência. A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica (FREIRE, 1979, p.15).

O autor segue afirmando que a conscientização não pode existir sem o ato

ação-reflexão, e que ela é um compromisso histórico que não se esgota com a

criação da nova realidade, “a nova realidade deve tomar-se como objeto de uma

nova reflexão crítica” (1979, p.16), num processo interminável.

O pensamento pedagógico de Paulo Freire está diretamente ligado a um

projeto social e político, é uma pedagogia pensada como proposta para mudar o

mundo através da mudança nas relações de poder, apontando para a práxis

defendida pro Freire.

A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos. Desta forma, esta superação exige a inserção crítica dos

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oprimidos na realidade opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela (FREIRE, 2007, p. 42).

Dentro desse paradigma, o educando deve assumir-se como sujeito de sua

aprendizagem, como modificador de sua realidade bem como da realidade social na

qual está inserido.

Esta perspectiva também abrange o educador e o pesquisador. O referencial

Freireano abrange assim a teoria e a prática em constante diálogo, não se separam

uma da outra, em permanente compromisso.

A vida de Paulo Freire foi um exemplo desse compromisso. Suas opções

teóricas e políticas influenciaram diretamente sua vida pessoal e familiar, não sendo

possível considerar um aspecto sem perceber influência de outro.

A autora Fátima Veiga Mendonça nos apresenta essa situação de forma

sucinta, ao fazer uma ligação da história brasileira com a biografia de Freire:

Nessa viagem pela História brasileira, Paulo Freire nos leva aos anos de recessão da década de seu nascimento (Crise de 1929), pelos anos vividos na experiência da pobreza que o alimentou em sua opção e tese político-pedagógica (FREIRE, 2002); ao período de relativa abertura política proporcionada pelo governo Goulart; aos anos da última ditadura militar do país (1964-1985), consequentes anos de exílio que foram um drama de ruptura (FREIRE 2006) para si e sua família. Posteriormente seu retorno ao Brasil, o período da abertura política e sua participação no governo estadual de São Paulo (MENDONÇA, 2010, p. 21).

Nesse contexto, podemos trazer também a importância de Elza Freire,

primeira esposa de Paulo Freire, que muito contribuiu intelectualmente para a

construção do método e todo o referencial no qual os pesquisadores de Freire e sua

obra se apoiam.

Elza, esposa de Paulo Freire, foi mais que a companheira de todas as horas do educador brasileiro. Como professora, ela despertou no marido a vocação para o trabalho com educação, ao possibilitar a sua aproximação crítico-reflexiva com as questões educacionais. Para além dessa contribuição, também colaborou de forma decisiva para o desenvolvimento da Teoria do Conhecimento formulada por Paulo Freire, cujos conceitos são conhecidos praticamente em todo o mundo. Elza influenciou e concretizou com Paulo Freire seus sonhos e suas utopias, desde os primeiros tempos em Recife, depois compartilhou o exílio pelo mundo, até o retorno ao Brasil. Elza muito mais que companheira amorosa, esposa dedicada e profissional competente, exerceu grande e decisiva influência no pensamento e na práxis Freireana; bem como deixou importantes contribuições para a Educação Brasileira (SPIGOLON, 2009, p. 20).

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A pesquisadora Nima Imaculada Spigolon, em seu trabalho “Pedagogia da

convivência: Elza Freire – uma vida que faz educação”, nos apresenta de forma

bastante sensível essa relação de apoio mútuo e apresenta um levantamento de

vários escritos de Freire que afirmam a importância de Elza em sua trajetória de

vida, entre elas este destaque:

Ela era uma “artista” cujo respeito por mim moldou quem eu sou. Ao me respeitar, ela desenvolveu muitos aspectos do meu perfil. Por causa disso, sem Elza é possível que eu não estivesse aqui falando sobre isso – é possível, mas não tenho certeza. É possível que eu não estivesse aqui se não tivesse sido pelo amor que tinha pela vida. O amor por mim, pelas crianças, pelo povo, pelos alunos e alunas. Sua coragem de criar coisas nunca parou... Estou analisando alguns momentos no processo do meu desenvolvimento e por isso estou pensando sobre sua influência e suas sugestões (FREIRE & HORTON, 2002, p. 83 Apud SPIGOLON, 2009, p. 28).

O grande educador, conhecido mundialmente, mostra assim, com sua vida e

seus atos, a grande “amorosidade” que se pode ter pela a humanidade, em especial

pelos “excluídos” e “esfarrapados” do mundo.

3.3. A EJA E O PERÍODO DA DITADURA MILITAR

Durante o final da década de 1950 e começo da década de 1960, os embates

no campo da educação eram intensos.

Nesse contexto, são significativos os movimentos realizados pela sociedade, em parceria ou não com o Estado, na organização e execução de experiências educativas de alfabetização e conscientização. Superando a rigidez e o formalismo da instituição escolar, configuram-se amplamente no período (início da década de 1960) as iniciativas que virão a ser denominadas como educação popular (VENTURA, s.d.).

Duas vertentes eram fortes naquele período. Uma delas, com base nos

pressupostos já apresentados, tinha por objetivo uma educação libertadora e outra

que “concebia a educação de uma forma mais funcional, como treinamento de mão-

de-obra para torná-la mais produtiva, útil ao projeto de desenvolvimento”

(VENTURA, s.d.).

Dentro dessas vertentes foram organizados alguns movimentos sendo, os

principais: Movimento de Cultura Popular (MCP), organizado em conjunto com a

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Prefeitura Municipal de Recife e estendido a outras cidades do interior de

Pernambuco; o Movimento de Educação de Base (MEB), liderado pela Conferência

Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), uma experiência de educação radiofônica, e

que teve o patrocínio do governo federal, oferecendo uma educação de base,

veiculada por meio de emissoras católicas e conveniadas ao MEC, e também a

outras instituições federais no Norte, Nordeste e Centro-oeste do país; bem como

inicia-se a Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler, desenvolvida pela

Secretaria de Educação de Natal/ RN.

Nesse período surgiram também bibliotecas, centros de formação de

professores, círculos de leitura, praças de cultura e esportes (Ventura, s.d.), ou seja,

foi um período de efervescência educacional. Destaca-se também, nessa época, a

promulgação de uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a lei 4024/61, que

indicava a possibilidade criação de cursos supletivos para aqueles que não tiveram

acesso à educação.

No início de 1964 foi instituído pelo governo federal, através do Ministério da

Educação e Cultura, o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), utilizando o

referencial teórico de Paulo Freire que foi convidado para coordenar o programa. O

objetivo era alfabetizar por volta de cinco milhões de brasileiros. Com o golpe de

1964 o programa foi extinto por ser considerado subversivo (Ventura, s. d.).

Como já foi exposto, com o golpe militar, as ideias e as práticas propostas por Freire

foram duramente reprimidas e as consequências disso são sentidas até hoje, como

afirma Marcos Guerra:

Eu tenho a convicção que o Brasil seria outro hoje se essa atividade não tivesse sido interrompida brutalmente, pelas razões que foi, ou seja, para inviabilizar exatamente a emergência desses que o projeto político pretendia, e conseguiu, que continuassem como excluídos, o objetivo foi esse, não foi outro (VENTURI, 2007).

A história registra que não só as ideias e ações de Paulo Freire foram

reprimidas, mas todas as iniciativas que pudessem ser consideradas uma ameaça à

nova ordem imposta. O único grande movimento que conseguiu sobreviver foi o

MEB, pois rompeu com os compromissos da educação de classe e sofreu mudança

geográfica, sendo deslocado para a Amazônia:

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A mudança de orientação observou-se imediatamente no nível didático. Viver é lutar era substituído pelo Mutirão, passando o MEB da ênfase sobre a conscientização para a ênfase sobre a ajuda mútua. Segundo Emmanuel Kant, a politização era substituída pela cristianização (LEAL, 1985, p.30).

Neste período multiplicam-se os movimentos de desenvolvimento comunitário

e os programas de extensão universitária dedicados à educação de adultos (PAIVA,

1987), com um projeto ideológico totalmente distinto das propostas anteriores.

Depois de extintos ou redimensionados os movimentos de educação de base, embora mantidos importantes focos de resistência, crescem pari passu as experiências que concebiam a educação como instrumento para a formação de recursos humanos, dentro dos padrões de exigência do modelo de industrialização adotado. Sob essa perspectiva, num quadro geral, predominou a preocupação com a educação como propulsora do progresso técnico; quanto ao analfabetismo, este foi foco do regime imposto, principalmente porque o déficit educacional era apontado como um dos entraves que dificultavam o investimento e a permanência do capital internacional na economia brasileira (VENTURA, s.d.).

Paulo Freire foi preso e partiu para o exílio, viveu em vários países, entre eles

Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça. Enquanto tentavam sistematicamente apagar

suas ideias no Brasil, pelo mundo sua produção intelectual avançava. Nesse período

produziu muitas obras, entre elas o seu livro mais conhecido, “Pedagogia do

Oprimido”, lançado em 1970, no qual reafirmando seu posicionamento político,

dedica a obra, em sua introdução, escrita em 1968 “aos esfarrapados do mundo e

aos que neles se descobrem e, assim, descobrindo-se com eles sofrem, mas,

sobretudo, com eles lutam” (FREIRE, 1970, p. 23).

No período que vai de 1964 até 1980, toda a movimentação social é reprimida

e substituída por ações do governo federal. O Tecnicismo vai se consolidando como

visão de educação. Inicialmente o governo substituiu o PNA pela Cruzada da Ação

Básica Cristã (Cruzada ABC) e depois implementou o Movimento Brasileiro de

Alfabetização (MOBRAL), que teve muito mais amplitude e raio de ação e fez com

que o Ensino Supletivo crescesse e ganhasse legitimidade.

Nesse período, através da lei 5692/71, foram feitas alterações na LDB de

1961. Numa dessas contradições da história, foi justamente essa lei, criada no auge

do período militar, que trouxe a regulamentação da EJA, organizada em capítulo

próprio e indicando também a necessidade de formação de professores para

exercerem essa função.

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No campo da EJA, o que marcou fortemente o período da ditadura militar foi o

MOBRAL que, por 15 anos, teve grande autonomia e uma estrutura paralela aos

sistemas de ensino existentes, com força política e financeira.

A década de 70 marca um novo descompasso na EJA, em relação à proposta de educação como um todo. Enquanto o Ministério da Educação caminhava cada vez mais para a descentralização do Ensino Fundamental, o MOBRAL representava uma ação centralizadora de âmbito nacional desvinculada de uma coordenação direta do próprio ministério (MACHADO, 1999, p. 6).

Existia uma divergência entre as concepções alfabetizadoras e as

intencionalidades políticas do MOBRAL em relação à proposta teórico-metodológica

de Paulo Freire, porém o programa buscava assemelhar-se às concepções

freireanas na técnica pedagógica e na forma do material didático, logicamente

dispensando-se sua ótica problematizadora. Como nos aponta Freitag: “podemos

dizer que o método foi refuncionalizado como prática, não de liberdade, mas de

integração ao Modelo Brasileiro ao nível das três instâncias: infra-estrutura,

sociedade política e sociedade civil” (FREITAG, 1986, p. 93).

Paiva, ao analisar o papel político do MOBRAL, afirma que a compreensão

dessa nova campanha de massa deve ser buscada não apenas nas ideias que

conectam educação e desenvolvimento econômico, mas também na sua utilização

como instrumento de controle ideológico das massas:

Na concreta situação política do período, quando ainda se acreditava que o campo apresenta grandes riscos políticos e crescente tensão: a campanha alfabetizadora servia aí como ponta de lança para o controle político das massas, especialmente no interior, estendendo a todos os municípios brasileiros tentáculos capazes de perceber rapidamente não apenas as tensões sociais, mas também eventuais mobilizações de natureza política num período em que ainda vicejavam, bem ou mal, movimentos guerrilheiros no campo (1987, p.11).

Em meados da década de 1970 a pressão social pelo fim da ditadura se

fortalece, a década de 1980 se inicia em pleno processo de redemocratização do

país. A lei da anistia tinha sido aprovada, muitos dos que estavam no exílio

retornaram ao Brasil, entre eles, o próprio Paulo Freire.

As mudanças na esfera política trouxeram outras mudanças, entre elas, as

apontadas por Medeiros, “com a redemocratização do país a chamada “Nova

República” extingue o MOBRAL e cria a Fundação Educar, com propósitos mais

democráticos” (2005, p. 05).

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A Fundação Educar propõe outra forma de organizar a EJA no Brasil, contudo

teve uma duração muito curta:

A Fundação Educar foi criada em 1985 e, diferentemente do MOBRAL, passou a fazer parte do Ministério da Educação. A Fundação, ao contrário do MOBRAL, que desenvolvia ações diretas de alfabetização, exercia a supervisão e o acompanhamento junto às instituições e secretarias que recebiam os recursos transferidos para execução de seus programas. Essa política teve curta duração, pois em 1990 – Ano Internacional da Alfabetização – em lugar de tomar a alfabetização como prioridade, o governo Collor extinguiu a Fundação Educar, não criando nenhuma outra que assumisse suas funções. Tem-se, a partir de então, a ausência do Governo Federal como articulador nacional e indutor de uma política de alfabetização de jovens e adultos no Brasil (SOARES, 2002, p.25).

Podemos apontar esse momento como um novo período de movimentação

política no Brasil, abrindo novas perspectivas, inclusive de organização educacional.

3.4. O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO, A LEI nº 9394/96 – LEI DE

DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E A EJA

O processo de redemocratização do Brasil demandou a alteração de muitas

leis. A criação de uma Assembleia Nacional Constituinte para a elaboração de uma

nova Constituição Federal foi ação fundante desse processo. A nova lei foi

promulgada em 1988 e declara em seu artigo 205 a educação como direito de todos,

dever do Estado e da família, sendo promovida e incentivada com a colaboração da

sociedade.

Em continuidade a esse processo, foi elaborada a lei nº 9394/96 uma nova Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), não sem embates políticos e

ideológicos e com grandes desafios a serem vencidos, entre eles a universalização

da educação e a superação do analfabetismo. Em seu capítulo II do Título V, Seção

V a LDBEN caracteriza a EJA como modalidade da Educação Básica, diferenciada e

flexível.

A regulamentação da EJA, pós-promulgação da nova LDBEN, passou pela

criação de várias leis e documentos, entre eles a lei nº 10.172 de 09/01/2001, Plano

Nacional de Educação (PNE), as Diretrizes Nacionais da EJA, estabelecidas por

meio da Resolução CEB nº 01/2000 e pelo parecer nº 11 do Conselho Nacional de

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Educação (CNE) que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais da EJA. De

acordo com o referido parecer, a EJA passou a ter as seguintes funções:

reparadora, como direito a uma escola de qualidade, necessitando um modelo

pedagógico próprio, possibilitando a construção de oportunidades concretas

de garantia da presença dos jovens e adultos na escola;

equalizadora, como reparadora dos efeitos da exclusão do sistema de ensino

sofrida ao longo dos anos;

permanente, como função que garanta a atualização de conhecimentos por

toda a vida;

qualificadora, com apelo às instituições de ensino e pesquisa para que

assumam a produção em EJA.

Inicialmente, com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do

Ensino Fundamental (FUNDEF), o financiamento federal para a EJA não foi

contemplado. Mas, conforme é destacado no documento preparatório da VI

Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA), com a instituição,

em 2007, do Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica

(FUNDEB), houve a garantia de que a EJA passasse a ter financiamento no mesmo

nível das outras modalidades da Educação Básica, possibilitando o aumento

progressivo de sua oferta e institucionalização.

3.5. A CRIAÇÃO E A CONSOLIDAÇÃO DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL PARA

EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA – FUMEC EM CAMPINAS - SP

A criação da FUMEC se deu no momento histórico da extinção da Fundação

Educar. A alfabetização de jovens e adultos ficou sem uma política articulada pelo

governo federal, por isso, os municípios assumiram essa função. Segundo Marcon

(2008, p. 86): “A extinção do MOBRAL e da FUNDAÇÃO EDUCAR fez com que os

municípios se responsabilizassem pela implantação de cursos supletivos de

alfabetização de jovens e adultos”.

Dessa forma, a fundação começou sua trajetória daeducação de jovens e

adultos na cidade de Campinas – SP.

A publicação chamado “Caderno Pulsação na Rede”, de 1996, da Prefeitura

Municipal de Campinas, informa que a instituição foi criada pela lei nº 5.830 de 1987

como uma fundação de direito público vinculada à SME. Quando foi criada, seu

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objetivo maior era desenvolver atividades educacionais básicas, seguindo a

orientação comunitária. No início, a FUMEC atendia aos Jovens e Adultos no

primeiro segmento, EJA I, que equivalia à 4ª série do ensino fundamental,

atualmente 5º ano, e também era responsável pela Educação Infantil do município,

com um programa de pré-escola diferenciado, contando com a atuação dos agentes

de educação e das mães. A FUMEC deixou de exercer essa função em 1989,

quando essa modalidade passou a ser de responsabilidade da SME (MARCON,

2008, p.86).

Com o objetivo de atender às legislações educacionais vigentes e também às

necessidades da população, a FUMEC, ao longo do tempo, desenvolveu suas

atividades com um alunado muito variado; adolescentes, jovens, adultos, velhos,

adolescentes em liberdade assistida, detentos, pessoas atendidas em albergues, em

hospitais psiquiátricos, moradores de asilos, pessoas com deficiência, e todos

aqueles que precisam retomar ou iniciar os estudos.

Paulo Freire nos disse que “ninguém educa ninguém, como tampouco

ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão” (2005, p. 79).

Ao longo de sua história, a FUMEC tem sido esse espaço de “se educar em

comunhão”, teve sua origem na demanda da população e sua proposta tem como

princípio o respeito à identidade cultural do aluno.

Atualmente a Fundação mantém os programas de EJA I (anos iniciais) e

também o de Educação Profissional pelo Centro de Educação Profissional de

Campinas Prefeito Antonio da Costa Santos (CEPROCAMP).

No segmento de EJA I, as classes são organizadas em diversos locais, nos

períodos matutino, vespertino e noturno, sendo esse a maioria, de acordo com as

demandas locais. As salas podem ser abertas em escolas, associações de bairro,

salões de igrejas ou em qualquer outro local onde haja demanda de pelo menos 20

pessoas com 15 anos completos ou mais, que ainda não tenham concluído a

primeira etapa do ensino fundamental, antiga 4ª série, atual 5º ano. O curso de EJA I

- anos iniciais é organizado em dois ciclos, sendo esses ciclos subdivididos em

fases, as classes funcionam de segunda a sexta-feira, com 3 horas-aula de duração,

as matrículas são semestrais, com um total de 100 dias letivos por semestre.

Mais recentemente foram criados novos programas dentro do segmento de

EJA I: o programa “Educação Ampliada ao Longo da Vida” e o Programa

“Consolidando a Escolaridade”.

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O programa “Educação Ampliada ao Longo da Vida” foi estabelecido pela

resolução FUMEC nº 07/2015, publicada no Diário Oficial do Município (DOM) em

13/08/2015, tendo como objetivo a criação de espaço de educação não formal capaz

de propiciar convivência e participação em práticas educativas intergeracionais e

intersetoriais e destinado a alunos:

I - pessoas que possam se sentir estimuladas a continuarem à escolarização

formal de maneira que, a partir do ingresso nas classes do Programa Educação

Ampliada ao Longo da Vida nos Centros de Convivências, voltem a estudar nas

salas de EJA Anos Iniciais.

II - com tempo prolongado e com dificuldades de aprendizagem e

acompanhamento dos Programas de EJA, especialmente com deficiência mental e

intelectual, e seus familiares e cuidadores, numa proposta diferenciada de

educação;

III - Idosos que buscam o espaço de convivência, para além da alfabetização.

O Programa “Consolidando a Escolaridade” foi estabelecido pela resolução

FUMEC nº 08/2015, publicada no DOM em 13/08/2015, tendo como objetivo

proporcionar reforço escolar para a aprendizagem e consolidação do letramento e

do numeramento. É dirigido a jovens acima de 15 anos e também pessoas adultas e

idosas que:

I - possuam certificação mínima na Educação de Jovens e Adultos EJA - Anos

Iniciais;

II – possuam certificação no Ensino Fundamental Anos Finais ou no Ensino

Médio e estão há algum tempo sem frequentar a escola, necessitando resgatar

alguns conteúdos de ensino das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática do

1º (primeiro) ao 9º (nono) ano;

III - necessitem frequentar a escola por um breve período, a fim de superar

alguma defasagem no processo de ensino-aprendizagem nas disciplinas de Língua

Portuguesa e Matemática.

Os alunos matriculados regularmente na Rede Municipal de Ensino de

Campinas poderão participar deste programa, desde que atendidos os seguintes

requisitos:

I - possuam idade superior a 15 anos;

II - frequentem o Programa como atividade no contraturno da escola regular.

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A parte administrativa da fundação, relativa à gestão dos programas de

jovens e adultos (GPEJA) tem sua sede na Rua Dr. Quirino, nº 1.562 – Centro –

Campinas – SP. As Unidades Educacionais estão diretamente ligadas às cinco

Regionais – Norte, Sul, Leste, Sudoeste e Noroeste, onde atuam as diretoras

educacionais e os agentes administrativos.

Ao longo de sua história a FUMEC foi se consolidando como espaço de

educação de acordo com as demandas e as mudanças sociais e educacionais,

brasileiras e mundiais. Se, por um lado, a educação não pode resolver todos os

males da sociedade, por outro, pode contribuir muito para que as relações se

estabeleçam, o conhecimento seja compartilhado e os sujeitos possam ter

oportunidades de crescer, não só nas questões do saber, mas também na visão de

si e do mundo, criando novas possibilidades de vida e de relacionamento social.

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PARTE 4

4. A FUMEC E UM ENTRELAÇAMENTO DE CONCEITOS E POSSIBILIDADES

A FUMEC, desde a sua fundação até o presente momento, precisou rever

suas bases teóricas e formas de atuação para se adequar às mudanças legais e

conceituais que ocorreram ao longo do tempo. As mudanças sociais também tem

moldado a reorganização de seu trabalho para atender sujeitos com diferentes

necessidades educacionais, como por exemplo, o grande número de analfabetos

funcionais, adolescentes, refugiados, velhos que tem procurado integração nas salas

da fundação.

Nesta parte do trabalho apresento uma breve discussão relativa aos principais

conceitos que tem permeado essa trajetória, sendo eles: Educação Comunitária,

Educação Popular, Educação formal e não formal, Educação Inclusiva, Educação

para todos, Educação ao longo da vida e Educação intergeracional. Porém

considero importante a seguinte afirmativa:

Bastar-nos-ia tratar de educação em contextos múltiplos e ampliados, sob muitas formas e com variados públicos. As adjetivações são terminologias usadas apenas para ajudar na compreensão das relações educacionais, não para reificar a realidade, como se a educação real e concretamente se dividisse entre campos, com fronteiras bem delimitadas. Os conceitos têm função heurística, de compreensão, não reproduzem limites concretos da realidade (FERNANDES; LIMA, 2016, p. 1465).

O universo da EJA é complexo e alguns aspectos e conceitos dessa realidade

serão abordados a seguir.

4.1. EDUCAÇÃO COMUNITÁRIA, EDUCAÇÃO POPULAR, EDUCAÇÃO FORMAL E

EDUCAÇÃO NÃO FORMAL

A FUMEC, desde o seu início, foi organizada para atender às necessidades

da população. Considerando a época de sua criação e seu objetivo, a instituição foi

organizada com a proposta de Educação Comunitária, com base na educação

popular.

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A Educação Popular como concepção geral da educação, passou por diversos momentos epistemológico-educacionais e organizativos, desde a busca da conscientização, que deveria atuar sobre o nível cultural das camadas populares, em termos explícitos dos interesses delas, chegando até a defesa de uma escola pública popular. A educação popular, como prática educativa e como teoria pedagógica que nasceu, principalmente na América Latina, no calor das lutas populares, contribuiu para que ideias e atividades essenciais na educação brasileira mudassem e inovassem (MEDEIROS, 2005, p. 01).

A consolidação dessa escola pública popular, à qual a autora se refere, se

conecta ao conceito de educação comunitária.

Um panorama possível para se conceituar a Educação Comunitária nos é

apresentado por Kenya Paula Gonsalves da Silva (2008, p.28-29), a autora descreve

uma proposta de educação comunitária que pode ser entendida como culminância

de diversos movimentos ocorridos em diferentes lugares do mundo, cujos objetivos

eram o auxílio e o desenvolvimento de sociedades e comunidades menos

desenvolvidas.

Na busca pela definição de educação comunitária, destaco a dada por Silva

(1996) trata-se de um movimento iniciado após a II Guerra Mundial para organizar o

povo superando conflitos e criando uma sociedade mais justa, igualitária com

liberdade, como resposta popular à opressão exercida por governos autoritários.

Dessa forma, a educação comunitária pode ser apresentada como um caminho para

uma vida mais democrática, voltada para a constituição de sujeitos coletivos, com

poder de atuação sobre a realidade.

Em sua apresentação Silva (1996) não faz distinção entre educação

comunitária e educação popular, apresentando esse conceito como uma educação

voltada para a realidade, em contextos específicos em cada lugar em que se

desenvolve.

A Educação Comunitária comporta uma ideia subjacente que é agir na comunidade, com ela e para ela. No entanto, acrescentam a necessidade de se evitar quaisquer tipos de dicotomia entre educação comunitária e educação formal. Nesse sentido, dirigentes populares devem estar ao lado de educadores (as) progressistas, para tornar a educação formal e comunitária, cada vez mais democráticas (SILVA, 2008, p. 32).

No Brasil, pelas características de sua criação e organização, como já foi

apresentado neste texto, muitas vezes a concepção de EJA se confunde com

“alfabetização de adultos” e com “ensino supletivo”, com o conceito de suprir ou

repor os “conteúdos mínimos” do ensino fundamental. Essa visão talvez ainda

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permaneça atualmente por terem sido esses os objetivos propostos em outros

momentos, para a educação da parcela da população que não teve acesso à escola

no período convencional.

A época da fundação da FUMEC, pelo que já expus anteriormente,

possibilitou sua criação com concepções mais avançados de EJA. Com a proposta

pedagógica baseada no desenvolvimento de projetos temáticos e interdisciplinares

as possibilidades curriculares foram expandidas.

Por outro lado, a educação oferecida é institucional e inserida dentro de um

sistema público de ensino, com rigidez de horários, registros e mecanismos de

controle do trabalho, bem como atuação de funcionários e professores concursados.

Essa situação tem gerado algumas discussões sobre o campo de atuação da

FUMEC, dúvidas em relação à educação formal e não formal. Após a criação dos

dois novos programas, já apresentados, esses questionamentos persistiram e foram

ampliados. Acrescentou-se à discussão a questão da intergeracionalidade, que

sempre esteve presente nas discussões, mas até então não aparecia nos

documentos e resoluções.

Faz-se necessário, de início, distinguir duas modalidades da educação intencional: a não-formal e a formal. E aqui nos encontramos diante de questões que merecem uma reflexão mais detida. Que é a educação formal e a educação não-formal? Educação não-formal é a mesma coisa que educação informal, não intencional? A educação formal se aplicaria apenas à educação escolar? A educação de adultos, a educação sindical, política etc., por se darem fora do âmbito da educação escolar convencional, não teriam, também, caráter formal? O que não é educação escolar, terá sempre caráter “informal”? A recusa que se faz do caráter intencional e formal da educação – por ver os sempre um caráter ideológico e classista – não levaria a que formas não-convencionais ou alternativas de educação postulassem um romântico retorno à “comunidade pura”, onde a educação seria outra vez difusa, espontânea, informal? (LIBÂNEO apud GARCIA, 2015, p.23).

Como contribuição a essa discussão, apresento algumas análises feitas por

Gohn (2006, p.29) que aponta como uma das diferenças, a relativa ao educador: “na

educação formal, sabemos que são os professores; na não-formal, o grande

educador é o ‘outro’, aquele com que interagimos ou nos integramos” e em relação

ao espaço onde o aprendizado acontece, na formal o lugar é a escola como uma

instituição regulamentada por lei, certificadora, organizada de acordo com diretrizes

nacionais; na não formal, os espaços educativos estão nos locais mais ligados a

história dos grupos e dos sujeitos.

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Outras diferenças apresentadas são relativas à metodologia e finalidade ou

objetivo, sendo a educação formal caracterizada por ambientes com normas, regras

e padrões comportamentais definidos previamente enquanto que a não formal se

caracteriza por ambientes e situações educativas construídas coletivamente,

segundo diretrizes dos grupos, de forma optativa.

Na educação formal, entre outros objetivos destacam-se os relativos ao ensino e aprendizagem de conteúdos historicamente sistematizados, normatizados por leis, dentre os quais destacam-se o de formar o indivíduo como um cidadão ativo, desenvolver habilidades e competências várias, desenvolver a criatividade, percepção, motricidade, etc.; ... A educação não-formal capacita os indivíduos a se tornarem cidadãos do mundo, no mundo. Sua finalidade é abrir janelas de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais. Seus objetivos não são dados a priori, eles se constroem no processo interativo, gerando um processo educativo (GOHN, 2006, P. 29).

Ao analisar por esse referencial, constatatei que a FUMEC apresenta

características dos dois campos.

A partir dessa observação e, continuando a busca pela conceituação desses

dois campos da educação, considerei o que no aponta Garcia, apresentando uma

perspectiva de conceituação a partir do contato com a reflexão de Deleuze e

Guattari (1992):

Partindo da compreensão de que o conceito de educação não formal é criado, e não algo que foi descoberto, os movimentos, as idas e vindas que aparecem no cotidiano dessa especificidade de educação, os conflitos por sua compreensão e até a sua definição se tornam parte dessa criação em um determinado contexto histórico e social, no qual sua história como conceito é criada (GARCIA, 2015, p. 27).

Em busca dessas definições e conceituações, novamente me depararei com

a afirmativa da não neutralidade da educação:

É a ocorrência de um processo político e social de legitimação de saberes, uma vez que eles não estão disponíveis a todos. Como em um mercado, há aqueles que têm “poder de compra” para acessar e conhecer determinados saberes e há aqueles não tem “poder de compra”. Uma das estratégias utilizadas para que isso ocorra é a criação da necessidade de um saber escolarizado considerado como saber crítico, que é referenciado e aceito socialmente (GARCIA, 2015, p.29).

A educação escolar, vista como sendo a espaço da educação formal, sempre

foi o veículo do saber legitimado socialmente e historicamente, tendo tanto valor

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social que as questões curriculares estão atreladas às da avaliação e

consequentemente às questões financiamento.

A autora, ainda com o referencial teórico já citado, nos apresenta um caminho

possível para rever a relação entre formal - não formal:

Essa relação é complexa, pois não se trata de um ou de outro, do melhor ou do pior. A educação não formal ocupa o lugar do não instituído, de uma educação que vem criando sua lógica, o seu modus operandi. Mas ao mesmo tempo existe um outro fazer educacional, que já possui um série de critérios, de características definidas, já reconhecido como o discurso das verdades. Portanto, por operarem em campos muito próximos ou terem coincidências (ambos atuam com educação, com crianças, jovens e adultos, com a transmissão de saberes etc.), o novo, em algumas situações, vê-se forçado a buscar estabilidade na lógica e no discurso do legitimado (GARCIA, 2015, p.33).

E a autora continua em sua definição para compreensão dessa complexidade:

É como se a educação não formal, ao fazer o movimento de se entender e de se conhecer, pudesse ser reconhecida em parte na educação formal, e esta, por sua vez, temerosa de transformações e de inovações que a primeira viesse a provocar, oferecesse sua segurança e legitimidade (GARCIA, 2015, p.33).

Ao considerar essas definições conceituais na relação com o histórico e

características da FUMEC, pude observar esse movimento de apoio mútuo entre os

dois campos da educação, a educação criada pela fundação tendo as características

de ambos, na busca por atender à demanda social e educacional. Nesse caso, a

educação ganha um sentido mais amplo, ligado mais às relações sociais e a

produção das identidades que acontecem dentro dessas relações.

4.2. EDUCAÇÃO INCLUSIVA, EDUCAÇÃO PARA TODOS E EDUCAÇÃO AO

LONGO DA VIDA

Um conceito que observei nos documentos e textos que tratam da EJA é o

que se refere à Educação Inclusiva. Essa nomenclatura pode nos remeter à

educação especial ou educação de pessoas com deficiência, mas aqui me proponho

a tratar o conceito de forma mais abrangente, como o que nos é trazido pela

UNESCO, como “uma abordagem de desenvolvimento das necessidades de

aprendizagem para todas as crianças, jovens e adultos, especialmente aqueles que

são vulneráveis à marginalização e exclusão”.

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Esse conceito vem a partir de outro, o de “Educação para todos”, que

fundamentou um compromisso mundial para garantir uma educação básica de

qualidade a todas as crianças, jovens e adultos, movimento que teve inicio durante a

Conferência Mundial sobre a Educação para Todos, que aconteceu em Jomtien, na

Tailândia, em 1990, e foi reafirmado dez anos depois em Dakar, no Senegal.

Naquele momento, foram propostos seis objetivos que deveriam ter sido atingidos

até 2015, entre eles os que são relativos à EJA:

Assegurar que sejam atendidas as necessidades de aprendizagem de todos

os jovens e adultos através de acesso equitativo a programas apropriados de

aprendizagem e de treinamento para a vida;

Alcançar uma melhoria de 50% nos níveis de alfabetização de adultos,

especialmente no que se refere às mulheres, bem como acesso equitativo à

educação básica e contínua para todos os adultos;

Melhorar todos os aspectos da qualidade da educação e assegurar a

excelência de todos, de forma a que resultados de aprendizagem

reconhecidos e mensuráveis sejam alcançados por todos, especialmente em

alfabetização linguística e matemática e na capacitação essencial para a vida.

Essa proposta foi reforçada e ampliada no Documento Nacional Preparatório

à VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (VI CONFINTEA), que

ocorreu em Belém em 2009, no qual o debate se deu sobre o tema “Educação e

Aprendizagem ao longo da vida”, bem como no documento final da conferência,

intitulado “Marco de Ação de Belém”, de 2010. As conferências Internacionais de

Educação de Adultos ocorrem desde 1949, sendo que a primeira aconteceu em

Elsinore, na Dinamarca. Esses encontros têm como objetivo mobilizar as instituições

oficiais, no campo internacional, para definir e debater políticas públicas sobre

educação de jovens e adultos como prioridade social, como garantia do

reconhecimento aos direitos humanos.

Dentro desse conceito, a Secretaria de Educação à Distância, ligada ao MEC,

através do programa “Salto para o Futuro”, lançou, em setembro de 2009, a

publicação intitulada “Educação ao longo da Vida” (nº11), trazendo destaque a

alguns direitos dos brasileiros que são garantidos por leis:

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A educação é considerada direito de todos, por meio da universalização do Ensino Fundamental e Médio. A Constituição Federal de 1988 expressa ser dever do Estado a garantia do Ensino Fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria (Art.208) e a Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece a obrigatoriedade e gratuidade do Ensino Fundamental e a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao Ensino Médio (Art.4º). Entretanto os sistemas educacionais vêm, historicamente, centralizando um olhar essencialista para a criança em detrimento dos jovens e os adultos, na medida em que a infância é vista como tempo de aprendizagem e fase de desenvolvimento psicossocial da criança, enquanto o adulto é considerado pronto em seu processo de formação. Com isso, a prioridade no processo de escolarização vem sendo direcionada para a educação de crianças e adolescentes. Essa visão secundária em relação a pessoas jovens, adultas e idosas no sistema educacional fundamenta-se em uma concepção essencialista de ser humano e de mundo (OLIVEIRA, 2009, p.14).

A autora apresenta uma visão existencialista e dialética da educação, em

contraponto a esse paradigma essencialista:

A educação considerada a partir de uma visão existencialista e dialética de mundo evidencia a importância da educabilidade do ser humano, como ser em permanente formação. Nesta perspectiva, a educação de pessoas jovens, adultas e idosas se apresenta como necessária ao seu processo de humanização (OLIVEIRA, 2009, p.15).

No campo da educação o processo de humanização é fundamental, sem ele

não se avança no aprimoramento das relações sociais, no chamado processo

civilizatório:

Homens e mulheres se educam em suas relações com o mundo, em um processo permanente, bem como a educação tem como fim a própria formação do ser humano. A educação é também processo histórico e sociocultural, porque se desenvolve no tempo humano, através das histórias de vida dos indivíduos e da história da sociedade (OLIVEIRA, 2009, p.16).

A partir de todo esse movimento, aponto que:

Neste momento histórico, é importante que propostas educacionais de qualidade sejam garantidas mediante pontos relevantes: os avanços nas pesquisas na área, a luta dos que tem enfrentado essa questão com seriedade, as condições apresentadas como um maior fluxo de recursos financeiros para essa modalidade da educação e o mais importante, o elevado número de pessoas que necessitam ou querem usufruir ao direito à educação ao longo de suas vidas (GARCIA, 2009, p.27).

Ao trabalhar com o conceito de educação ao longo da vida, reafirmo que essa

educação abrange todas as idades e momentos da vida das pessoas, incluindo

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assim o direito que as velhas e velhos tem a uma educação que atenda seus

anseios e especificidades.

4.3. EDUCAÇÃO INTERGERACIONAL

Uma das formas de considerar as relações educativas que tem como pano de

fundo “o aprender com o outro”, se baseia numa recusa ao modelo de transmissão,

bem como à ideia de hierarquia entre os atores ou entre as diversas formas de

conhecimento. Nessa visão, o aprender acontece na relação com o outro,

considerando uma escuta atenta por parte dos sujeitos, em que todos compartilham

suas visões de mundo. Como aprofundamento dessa visão, também posso

considerar esse outro não só de forma individual, mas esse outro visto como uma

outra geração, na perspectiva das relações intergeracionais.

Relações intergeracionais é o termo utilizado para referir-se às relações que ocorrem entre indivíduos pertencentes a diferentes gerações. No contexto social moderno, o conceito de geração extrapola o âmbito familiar, para agregrar indivíduos de uma mesma faixa etária, e também de outras, que compartilham vivências de eventos sociohistóricos (LOPES, apud NERI, 2005, p. 175).

No âmbito familiar a educação intergeracional faz parte da dinâmica das

relações, as famílias são constituídas de pessoas pertencentes a várias gerações.

Porém, como pensar uma educação intergeracional fora do âmbito familiar? Qual a

necessidade que a sociedade contemporânea tem desse tipo de educação?

Um dos pressupostos da educação institucionalizada é tê-la como

preparação para o futuro, portanto voltada para crianças, adolescentes e jovens. Ao

velho é reservado o lugar da memória e de formas de sociabilidade, muitas vezes, já

inexistentes ou desvalorizadas; cada geração tem seu lugar institucional e esses

espaços são bem separados, não se misturam. Ao adulto pertence o espaço

economicamente produtivo, ele é visto como se tivesse superado a infância, sem

ainda se aproximar dos desafios da velhice.

Esses conceitos, infância, vida adulta e velhice, são construídos socialmente.

Na modernidade, a importância da idade foi relacionada às diferentes etapas da

vida, escolarização, trabalho, aposentadoria, todas vinculadas às questões da

produtividade econômica, com consequente afastamento entre gerações com

especialização etária dos espaços sociais. Crianças e adolescentes ficam nas

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creches e escolas, locais nos quais também são organizadas em subgrupos de

faixas etárias rígidas, os adultos vão para o trabalho e aos velhos resta o

confinamento em instituições ou em grupos de “terceira idade”.

Destaco aqui que essa situação, agregada aos valores cada vez mais

consumistas e individualistas da vida contemporânea, tem apresentado como

resultado a solidão, a intolerância, o preconceito, entre outras mazelas a serem

enfrentadas. Apresento também como marcas da sociedade urbana organizativa a:

[...] massificação das crianças e jovens, com o aumento da vida escolar; os adultos e o mundo do trabalho, com a valoração da juventude em função da força e da beleza física adequadas às necessidades da produção econômica; idosos – com aposentadoria justificada pela suposta incapacidade física para a jornada de trabalho (LIMA, 2007, p. 16).

Contudo, avalio também que está acontecendo um apagamento das

identidades pré-fixadas. Segundo a antropóloga Guita Grin Debert, as sociedades

pós-modernas experimentam “ao apagamento das idades como um marcador

importante das experiências vividas e, por outro lado e ao mesmo tempo, à

transformação das idades em um mecanismo privilegiado na criação de atores

políticos e na definição de novos mercados de consumo”.

Ao pensarmos a educação intergeracional abrimos possibilidades de

“compartilhamento de valores culturais, maior flexibilidade perante o outro e ruptura

com o preconceito etário de ambas as partes, embora vivamos uma época de forte

pressão social em prol da juventude eterna, bem como de contínuo abandono dos

idosos” (FERRIGNO, 2010, p.14) e isso pode ser proposto na forma de coeducação,

como expõe o autor:

A ideia de coeducação pressupõe o compartilhamento de ações e não hierarquização entre os sujeitos do processo, uma troca efetiva e igualitária de experiências que transcende a obviedade de expectativas anteriormente estabelecidas. O outro é um universo capaz de surpreender. A pesquisa demonstra que o relacionamento entre os idosos e os mais jovens enriquece igualmente as partes, trazendo-lhes ideias e oportunidades renovadas. Ali, a relação ensino-aprendizagem questiona a predeterminação de papéis sobre quem ensina e quem aprende, podendo mesmo invertê-la (FERRIGNO, 2010, p.15).

A promoção da intergeracionalidade pode ser considerado um bom incentivo

para o bom envelhecimento, ativo e de boa qualidade. De acordo com Lima (2007,

p. 25) os mais velhos ensinam o conhecimento sobre a vida e sobre o envelhecer,

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transmitem a memória cultural e colaboram na manutenção dos valores éticos

fundamentais do seu grupo.

Ainda segundo a autora:

Em troca, os mais jovens ensinam-lhes conhecimentos tecnológicos e colocam-nos em contato com as transformações sociais em curso, em um verdadeiro diálogo entre gerações, antídoto contra os preconceitos e os estereótipos de parte a parte. Atividades intergeracionais facilitam e aprimoram o diálogo e a participação social entre seus participantes, crianças, jovens, adultos e velhos. Aprimoram a sensibilidade, a compreensão, o respeito mútuo, a habilidade de lidar com as diferenças e a habilidade de perceber semelhanças de interesses e temas vitais (LIMA, 2007, p. 26).

Novas propostas são necessárias para que se atenda as novas demandas

sociais que tem surgido:

Presencia-se um novo tempo. O idoso vive mais, a transição demográfica que se opera na população, na faixa acima de 60 anos de idade, processa-se com espantosa velocidade; o isolamento entre as gerações torna-se um fato cotidiano e modifica, inevitavelmente, o papel dos adultos, dos jovens, das crianças e, sobretudo, dos velhos (LIMA, 2007, p.16).

A FUMEC, ao criar os programas mais recentes, principalmente o programa

“Educação ao Longo da Vida”, abre a possibilidade de desenvolver a coeducação

intergeracional e intersetorial, assumindo assim um compromisso com uma

educação que considere as singularidades dos sujeitos e contribuindo para a

melhora na qualidade de vida não só dos velhos, mas de toda a população.

Vale ressaltar ainda que as salas de EJA podem ser espaços sociais

possíveis para os velhos, sem os riscos da segregação ocorrem em alguns

programas e grupos formados somente para atender a essa faixa etária. Nesse

sentido, a EJA pode ser considerada também intergeracional pelos seus objetivos e

sua forma de organização.

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PARTE 5

5. HISTORIA ORAL, UMA METODOLOGIA PARA PESQUISAR OS ALUNOS

VELHOS NA EJA

Como o que o senhor Palomar pretende fazer neste momento é simplesmente ver uma onda, ou seja, colher todos os seus componentes simultâneos sem descuidar de nenhum, seu olhar se irá deter sobre o movimento da água que bate na praia a fim de poder registrar os aspectos que a princípio não havia captado; tão logo se dê conta de que as imagens se repetem, perceberá que já viu tudo o que queria ver e poderá ir-se embora (Ítalo Calvino).

Segundo André (2001), a pesquisa em Educação no Brasil, tem crescido

muito nas últimas décadas, têm ocorrido também muitas mudanças nas temáticas,

nos problemas, nos referenciais teóricos, bem como nas abordagens metodológicas

e nos contextos de produção de trabalhos científicos.

A Educação como ciência aplicada precisa dialogar com outras ciências:

psicologia, sociologia, antropologia, história, linguística, filosofia, para citar alguns

exemplos.

Constata-se que para compreender e interpretar grande parte das questões e problemas da área da educação é preciso lançar mão de enfoques multi/ inter/ transdisciplinares e de tratamentos multidimensionais. Pode-se afirmar que há quase um consenso sobre os limites que uma única perspectiva ou área de conhecimento apresentam para a devida exploração e para um conhecimento satisfatório dos problemas educacionais (ANDRÉ, 2001, p. 53).

Na busca por metodologias para uma boa pesquisa em educação, foram

ganhando força, ao longo do tempo, os estudos chamados de qualitativos:

[...] que englobam um conjunto heterogêneo de perspectivas, de métodos, de técnicas e de análises, compreendendo desde estudos do tipo etnográfico, pesquisa participante, estudo de caso, pesquisa-ação, até análises de discurso e de narrativas, estudos de memória, histórias de vida e história oral (ANDRÉ, 2001, p. 53).

O Pesquisador Sánchez Gamboa apresenta algumas características desse

tipo de pesquisa:

Assim quando se fala de pesquisa qualitativa se refere à coleta e tratamento de informações sem uso de análise estatística, a instrumentos como entrevistas abertas, relatos, depoimentos, documentos que não fecha a

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interpretação num único sentido (paráfrase), mas, permite o jogo de sentidos (polissemia). Dessa forma, se torna necessária a elaboração, a posteriori, com base nos sentidos mais fortes e mais permanentes um quadro de conceitos ou categorias abertas que permitam a definição de um horizonte de interpretação. Na busca dos sentidos, além desse horizonte, também é necessária a recuperação dos contextos sociais e culturais onde as palavras, os gestos, os símbolos, as figuras, as diversas expressões e manifestações humanas têm um específico significado. Daí porque além de ser uma abordagem compreensiva também se conhece como abordagem etnográfica (SÁNCHEZ GAMBOA, 2003, 399).

Ao pesquisar as possíveis metodologias para o desenvolvimento do meu

trabalho, considerei também que “o problema da pesquisa e a perspectiva por meio

da qual a questão será estudada levam ao delineamento do projeto e determinam a

metodologia que será utilizada”. (LANG; CAMPOS; DEMARTINI, 2010, p.9).

Sánchez Gamboa também apresenta essa afirmativa quando discute a

questão da metodologia:

Como a investigação constitui um processo metódico, é importante assinalar que o método ou modo, ou caminho, de se chegar ao objeto, o tipo de processo para chegar a ele, é dado pelo tipo de objeto e não o contrário, como pode ser entendido quando o caminho ganha destaque, dado o êxito de certos métodos em certos campos, chegando a ser priorizado de tal maneira que o objeto fica descaracterizado (“desnaturalizado”), recortado ou enquadrado nos códigos restritos das metodologias (SÁNCHEZ GAMBOA, 2012, p.28).

A partir dessas considerações, fiz a opção pela abordagem qualitativa, com

base na metodologia da História Oral, com ênfase na história de vida, em

associação com registros em diário de campo e produção de registros em vídeo das

entrevistas realizadas.

Buscando responder provisoriamente a perguntas ou a suscitar outras provindas de problemáticas originárias de contextos da educação ou que a afetam, variadas metodologias ou métodos de investigação têm sido construídos ou experimentados ou postos em prática como formas de abordagem do real, de construção de dados e de tentativas de análises e interpretações, dentre eles a História Oral (FERNANDES; LIMA, 2016, p. 1480).

Quanto à utilização da metodologia de história de vida, conceito dentro da

História Oral, de acordo com Lang; Campos; Demartini (2010) começou a ser

utilizada no CERU no início dos anos 1950, sendo necessária sua adaptação à

Sociologia, uma vez que teve suas origens na psicologia com foco mais no

desenvolvimento da personalidade na sua relação com o meio social do que com os

fatos sociais. Porém, ao longo das décadas:

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O desenvolvimento de pesquisas qualitativas, reflexões, leituras e discussões levaram o CERU a adotar a metodologia da História Oral, por considerar extremamente rica a elaboração de documentos construídos por meio de uma entrevista marcada pela interação entre o pesquisador e o pesquisado. A história de vida e os depoimentos passaram a incorporar o arsenal da história oral que tem na participação do entrevistado uma de suas marcar fundamentais (LANG; CAMPOS; DEMARTINI, 2010, p.20).

E ainda, segundo as autoras, é uma das formas que podem assumir as

narrativas orais coletadas, dentre outras como o relato de vida e o depoimento oral:

A História de vida é o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, contando livremente sua vida, imprimindo ao relato suas próprias categorias impondo um ordenamento e selecionando ele mesmo o que quer relatar. Na coleta de uma história de vida, a interferência do pesquisador deverá ser mínima (LANG; CAMPOS; DEMARTINI, 2010, p.45).

A escolha justifica-se pela necessidade de ouvir os alunos velhos da EJA,

conhecendo assim um pouco mais sobre sua história de vida, suas experiências e

expectativas em relação à escola, a partir de suas memórias, trazendo dessa forma

elementos para contribuir com o processo de compreensão da produção de

subjetividades ao longo da vida desses alunos.

Memória, entendida no sentido original do termo, ou seja, tudo aquilo que uma pessoa retém na mente como resultado de suas experiências. Ela é seletiva, seja um procedimento consciente ou não. Portanto, não é um depósito de tudo que nos acontece, mas um acervo de situações marcantes. Diante disso, então o que seria a história? É a narrativa que articulamos a partir dos registros da memória (WORCMAN, 2006, p. 10).

A História Oral tem características próprias de trabalho e me apoiei nesta

definição ampla apresentada por Thompson:

Permitam-me começar apresentando uma definição ampla, pois muitas vezes me perguntam: “O que é história oral? É um método? É uma disciplina? É um tema novo? Bem, na minha opinião é uma abordagem ampla, é a interpretação da história e das sociedades e culturas em processo de transformação, por intermédio da escuta às pessoas e do registro das histórias de suas vidas. A habilidade fundamental na história oral é aprender a escutar. Gostaria de enfatizar que considero a história oral como um campo interdisciplinar (THOMPSON, 2006, p. 20).

Essa definição apresenta uma ideia que se liga ao objetivo da pesquisa, a

ideia da escuta. Na verdade, o que pretendi fazer foi escutar as alunas velhas e os

alunos velhos que, nesta fase do trabalho, em concordância com a opção

metodológica escolhida, serão nomeados depoentes. “A história oral como

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metodologia de pesquisa e de investigação busca conhecer o passado recorrendo à

memória (lembranças e esquecimentos) e à fala do narrador, nunca buscando uma

única versão dos fatos (LIMA, 2015, p. 25).”

As autoras Fernandes e Lima (2016) apresentam um histórico bastante

detalhado do surgimento da História Oral como metodologia. Seu surgimento se deu

nos anos 1950, na Universidade de Columbia, em Nova York, para registro de

entrevistas com políticos e economistas visando o estudo das elites. Porém,

somente após a Segunda Guerra Mundial que a História Oral se armou de critérios

diferenciados de entrevistas. As autoras afirmam que esse é um movimento recente,

urbano e ligado ao surgimento de meios eletrônicos como possibilidade de registro.

A possibilidade de gravar em fita depoimentos de protagonistas ou testemunhas de eventos do tempo presente estimulou a criação de inúmeros programas de história oral, bancos de entrevistas e centros de memória em várias partes do mundo. Porém, nem todas essas instituições buscaram sistematizar e aplicar seus conhecimentos práticos, passando a atuar com certa precipitação e antecipando o denunciado “boom memorialista” (SANTHIAGO, 2008, p.02).

Ainda dentro do histórico apresentado pelas autoras Fernandes e Lima

(2016), no Brasil, mais especificamente na Universidade de São Paulo, o Centro de

Estudos Rurais e Urbanos (CERU), fundado em 1964 por professores do

Departamento de Ciências Sociais, desenvolvia estudos com história de vida com

coleta de depoimentos orais. Na década de 1960, surgiu a corrente que buscou a

distinção da história das elites e começou a valer-se da memória de depoentes das

classes populares. “O CERU é um centro de Sociologia e, como tal, orientado para o

conhecimento da sociedade em seus múltiplos aspectos e grupos sociais ou

coletividades, em diálogo para outras ciências sociais” (LANG; CAMPOS;

DEMARTINI, 2010, p.9).

Esse movimento se liga a um movimento maior, particularmente, ocorrido na

América Latina:

No Brasil, assim como na América Latina, o florescimento e a ampla aceitação da história oral deve-se em grande parte à sua relação política de contestação aos regimes militares e de contribuição para a redefinição democrática. No panorama mundial, em momento anterior, a HO surge também como resposta e alívio para a Segunda Guerra Mundial. A tarefa ganha complexidade à medida que lembramos a ineficiência da transposição pura dos parâmetros teóricos estrangeiros, talvez mais experimentados,para a realidade brasileira (SANTHIAGO, 2008, p.01).

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E (re)afirmando a importância da construção desse referencial teórico no

Brasil, o autor mostra que:

Ainda que certas contendas se reproduzam em diferentes eixos a história oral brasileira difere da norte-americana, da européia, da africana, mesmo da latino-americana, com marcas distintivas em seus temas, soluções e procedimentos. Além disso, ela tem contribuído efetivamente para o pensamento dos oralistas no resto do mundo (SANTHIAGO, 2008, p.01).

Partindo do pressuposto de que o registro textual da narrativa histórica,

realizado tradicionalmente pelos grupos sociais que estão dominando a sociedade

num determinado momento, ou ainda pelo grupo social hegemônico, faz perpetuar

somente uma das possíveis visões dos acontecimentos históricos, reduz-se que a

possibilidade de registros vindos de outros atores sociais, trazendo diferentes visões

dos fatos, no caso, a narrativa dos pertencentes a grupos não hegemônicos da

sociedade, traz novas possibilidades de interpretação, registro e reconstrução da

História.

Seu objetivo passa a ser democratizar a própria História, distinguindo-se da historiografia, levando em conta não apenas os grandes feitos e fatos históricos ou a história em sua versão oficial, baseada em documentos escritos, mas também as diferentes versões produzidas pelas narrativas dos sujeitos de diferentes grupos sociais, por meio da fala e da oralidade (baseadas na memória e na subjetividade). E ainda, visa divulgar e praticar a metodologia em meios não-acadêmicos (FERNANDES; LIMA, 2016, p. 1493-1506).

Este trabalho possibilita a escuta da narrativa desses que, muitas vezes, não

são considerados ao se planejar e construir políticas para atendê-los. Possibilita

também o registro destas narrativas, uma vez que a metodologia da História Oral

também está ligada à possibilidade de registro por meios eletrônicos e à

consequente reinterpretação dos fatos. Em todo esse contexto, foram considerados

também os seguintes aspectos:

Sendo assim, envolve subjetividade, subjetivação e um tanto de ficção na construção narrativa, portanto, o que é considerado verdadeiro para os sujeitos ou os grupos sociais é que dá a definição de verdade – ainda que provisória (FERNANDES; LIMA, 2016, 1536).

Ao registrar as narrativas das alunas e alunos velhos, a busca foi pela versão

que trouxeram dos fatos no momento das entrevistas, considerando que elas e eles

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revelaram e ocultaram fatos de suas vidas. Foi considerado também que os motivos

dessas escolhas estão na subjetividade de cada um e que, nessa construção, eles

possivelmente trouxeram elementos de ficção, de acordo com a verdade que eles

quiseram apresentar dentro de todo esse processo.

Ainda que contribua com dados factuais retidos, a memória pode escolher, distorcer, esquecer. Manipula consciente e inconscientemente. Falha e fantasia. Sensações, medos, ansiedades, impulsos. Para a História Oral, nada disso é desvirtuamento, mas questão. Ela se importa com o passado imaginário, inventado das pessoas. O que elas acreditam é mais importante do que aquilo que de fato viveram. A pergunta essencial não é há mentira?, mas por que há mentira?. A subjetividade passa a ser, assim, objeto dos estudos em História. Pela análise do subjetivo, aliás, pode-se chegar a uma das questões mais fundamentais para os historiadores: quais as intenções do homem. O pesquisador pode alcançar a compreensão por meio do discurso – do momento dialógico, do texto que lhe é semelhante. Pode encontrar vestígios da intenção humana dentro da narração de experiência pessoal, que abarca corpo e mente. A experiência, os pensamentos, as sensações, as intenções, o comportamento mental – tudo isso passa pelo conhecimento narrado (SANTHIAGO, 2008, p.05).

Segundo Portelli (1997, p.31) a História Oral conta menos sobre eventos que

sobre significados lançando nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das

classes não hegemônicas.

Ao propor a História Oral como metodologia, considerei também as limitações

dessa escolha.

Primeiramente, as fontes orais e escritas não são mutuamente excludentes. Elas tem em comum características autônomas e funções específicas que somente uma ou outra pode preencher (ou que um conjunto de fontes preenche melhor que a outra) (PORTELLI, 1997, p. 26).

Nesta perspectiva Fernandes e Lima (2016, p.1551) ressaltam que o uso do

gravador (ou da câmera) pode ser um fator de interferência na espontaneidade do

depoente, sendo necessários certos cuidados como, por exemplo, um momento de

aproximação anterior entre o pesquisador e o depoente, solicitação de permissão do

uso do gravador ou da câmera e também o esclarecimento sobre a possibilidade de

se suspender o uso do aparelho se assim for da vontade do entrevistado, sem se

descuidar da documentação necessária para autorização da entrevista.

Outro questionamento que pode surgir em relação ao uso da metodologia da

História Oral é quanto à sua credibilidade. Em resposta a esse questionamento,

considerei a seguinte afirmativa:

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Fontes orais são aceitáveis mas com uma credibilidade diferente. A importância do testemunho oral pode se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferência em seu afastamento dele, como imaginação, simbolismo e desejo de emergir. Por isso não há “falsas” fontes orais. Uma vez que tenhamos checado sua credibilidade factual com todos os critérios estabelecidos do criticismo filológico e verificação factual, que são requeridos por todos os tipos de fontes em qualquer circunstância, a diversidade da história oral consiste no fato de que afirmativas “erradas” são ainda psicologicamente “corretas”, e que esta verdade pode ser igualmente tão importante quanto registros factuais confiáveis (PORTELLI, 1997, p. 32).

Essa afirmativa me mostrou que a narrativa apresentada naquele momento

pelo depoente é “a verdade” que ele quer narrar, considerando todos os

mecanismos de que ele faz uso, num “jogo” de lembrar e esquecer, revelar e ocultar,

reinterpretar e reconstruir através da memória.

A subjetividade dos depoimentos, as distorções nas falas, os erros, as omissões, os silêncios, a consciência, a percepção: tudo isso passa a ser encarado de uma nova maneira. A subjetividade torna-se assunto da história na história oral. O que era depreciado torna-se a grande força dessa nova área do conhecimento. A subjetividade será confiável na medida em que exista em sua materialidade – como fonte, assim que seja transposta da oralidade fluida e dinâmica para o código escrito (SANTHIAGO, 2008, p.05).

Ainda considerando Portelli (1997) quando afirma que a transcrição

transforma objetos auditivos em visuais. As implicações dessa situação são a

dificuldade de se preservar, na transcrição, as emoções do depoente e também as

mudanças de interpretação que podem ocorrer.

As etapas do projeto, de acordo com os procedimentos indicados por

Fernandes e Lima (2016, p.1551) podem ser observados no desenvolvimento desta

pesquisa.

O início da construção do projeto, através do levantamento das questões, a

formulação da problemática e dos objetivos ao longo do tempo do mestrado já foram

expostos em partes anteriores deste texto, bem como a justificativa e o referencial

teórico adotado. A seguir apresento o desenvolvimento da parte da pesquisa que

envolveu as entrevistas.

5.1. Um caminho percorrido – a realização das entrevistas

Os depoentes foram três alunas e um aluno com mais de 60 anos,

matriculados no Programa de EJA – séries iniciais da FUMEC, que não concluíram o

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curso no ano de 2016, portanto vão continuar os estudos em 2017. Busquei

contemplar a solicitação de entrevistar um depoente por Regional3 da FUMEC,

conforme solicitado pela Diretora Executiva no momento da entrevista para

autorização desta pesquisa. A justificativa apresentada para essa solicitação foi para

que fossem entrevistados alunos de todas as regiões atendidas pela Fundação na

cidade.

Ao realizar uma pesquisa, entre todos os detalhes e cuidados necessários,

existem alguns procedimentos de autorização e respeito às normas legais e

documentação que são fundamentais para que não ocorram problemas futuros. No

meu caso específico, descrevo aqui o caminho percorrido junto à fundação com o

objetivo de conseguir a autorização para realizar o trabalho com tranquilidade e

segurança e também em relação ao fornecimento dos dados como os já

apresentados nas tabelas.

Inicialmente, elaborei uma carta de apresentação da pesquisa, denominada

“Carta de aceite para a realização da pesquisa” (Anexo I). Essa carta foi entregue na

sede da Fundação para a Gestora do Programa de Jovens e Adultos. Nesse

documento, endereçado à Diretora Executiva, solicito autorização para a realização

da pesquisa e constam dele o meu nome, o nome da minha orientadora, o nome da

Instituição à qual pertence o programa de mestrado e o objetivo da pesquisa.

A partir desse primeiro movimento, a Diretora Executiva e a Gestora do

Programa de Jovens e Adultos da Fundação marcaram uma reunião comigo, nessa

reunião foram esclarecidas algumas questões sobre o trabalho e ficou bastante claro

que a fundação não pretendia interferir na produção e no conteúdo do texto, mas

que os passos do desenvolvimento do trabalho deveriam ser informados e os textos

preliminares, antes do exame de qualificação e defesa, deveriam ser encaminhados

à FUMEC.

Após essa reunião, foi elaborado, por parte da FUMEC, um termo de

autorização (Anexo II), onde constam algumas normas para a realização da

pesquisa, como as já apontadas acima e também relativas ao sigilo das

informações. Esse documento segue assinado por mim, pela Diretora Executiva e

pela Gestora do Programa de Jovens e Adultos. Após esse movimento, respeitei e

cumpri o que consta no documento.

3 Regional é o nome dado às divisões administrativa da FUMEC. Ao todo são cinco regionais, em

atendimento às cinco regiões da cidade de Campinas: Norte, Sul, Leste, Sudoeste e Noroeste.

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Somente depois desses trâmites iniciei os contatos com as Diretoras

Educacionais, professoras e com os alunos que seriam entrevistados.

O contato com diretoras foi feito em duas Regionais. Em uma fui atendida

prontamente, na outra, embora tenha sido atendida pela diretora, não obtive retorno

posterior e, portanto, das cinco regiões, consegui realizar entrevistas apenas em

quatro.

Nas outras regiões, o contato foi feito diretamente com as professoras, todas

foram muito solícitas e me ajudaram no contato com os alunos e na viabilização das

entrevistas.

Do total de quatro depoentes, foram três mulheres e um homem. No primeiro

contato expliquei os motivos, os detalhes e o nome da pesquisa. Apresentei o Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (Anexo III), que foi assinado por

todos, esclarecendo que ficariam com uma cópia onde consta também o meu

contato, para que em qualquer momento que se fizer necessário, eu possa ser

contatada para esclarecer dúvidas, ou se até mesmo se elas ou ele, resolvessem

declinar da participação no trabalho. Esclareci também as questões relativas ao

sigilo e preservação das imagens, uma vez que optei por filmar as entrevistas.

Durante esse período, solicitei à fundação, por meio da Gestora do programa

de jovens e adultos, os dados numéricos que apresentei nas tabelas, no que fui

prontamente atendida.

Nos momentos que antecederam os exames de qualificação e defesa da

dissertação, foram enviadas à Gestora cópias impressas dos textos apresentados às

bancas e também informados os dias e os locais onde ocorreriam os exames.

A documentação relativa à autorização por parte da fundação, bem como o

modelo do termo de consentimento livre e esclarecido que foi assinado pelos

depoentes e as transcrições, na íntegra, se encontram anexados a esta dissertação.

5.1.1. As entrevistas

Após o contato inicial com as professoras e depoentes, foram marcados os

dias e os locais das entrevistas. Todas as entrevistas foram realizadas no local onde

acontecem as aulas. A possibilidade de utilizar os momentos anteriores ao início das

aulas e também os locais utilizados para as aulas da EJA foi um facilitador do

processo e criou a possibilidade de se vivenciar um pouco tais espaços. Embora

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utilizando os espaços da “escola”, foram disponibilizados locais que ofereceram

condições para manter a tranquilidade dos depoentes, a qualidade mínima da

filmagem e do áudio. O registro em vídeo contou com uma colaboradora que se

ocupou com detalhes da câmera e da filmagem.

As observações foram anotadas em um diário de campo, de forma minuciosa,

para contribuir com a construção dos dados.

O roteiro de questões, planejado e apresentado abaixo, não foi fechado e

continha algumas indicações para dar suporte à construção da narrativa por parte

dos depoentes:

Conte-me sobre sua vida. Onde Nasceu?

Onde morou e mora atualmente?

O(A) senhor(a) já havia frequentado escola antes de conhecer a FUMEC?

Como surgiu a ideia de voltar a estudar?

Quando resolveu estudar, quais foram as manifestações das pessoas de

seu convívio social sobre essa decisão?

Por quais motivos o senhor continua estudando?

Quais os seus planos para o futuro?

Durante as entrevistas os depoentes revelaram outros aspectos de suas vidas

pessoais e de suas relações com o processo de escolarização, fora e dentro da EJA.

Esses aspectos serão discutidos no momento de construção e análise dos dados.

A proposta de fazer o registro através de vídeo atende a três das

necessidades do projeto: fazer parte da metodologia da História Oral, servir de

material para as transcrições das entrevistas e também para a produção de um

vídeo de curta duração, possibilitando o retorno necessário, tanto à instituição que

autorizou a pesquisa, como também aos sujeitos entrevistados e à sociedade mais

ampla.

As transcrições foram feitas feita pela pesquisadora, de acordo com o

indicado por Matos e Sena (2011, p. 105), num tempo bem próximo ao tempo da

entrevista e:

passagens pouco audíveis foram colocadas entre colchetes;

dúvidas ou silêncios, assinalados por reticências;

pessoas citadas designadas por iniciais;

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palavras em negrito as de forte entonação;

anotações como risos grifadas.

Como forma de manter a privacidade dos depoentes, os nomes reais foram

substituídos por nomes fictícios.

5.1.2. Os locais e os espaços

Este trabalho não tem o propósito de discutir os espaços onde funcionam as

salas da FUMEC. Ao descrever os locais onde acontecem as aulas, e também

nos quais aconteceram as entrevistas, pretendo apenas caracterizar melhor esse

aspecto da EJA/ FUMEC.

O local da primeira entrevista foi a sede da associação de bairro do Jardim

Santa Terezinha, na Região Sudoeste da cidade. O bairro é residencial e antigo,

está situado a 11 quilômetros do centro da cidade, com acesso pelo Rodovia

Santos Dumont ou pela Avenida das Amoreiras.

O prédio é utilizado pela comunidade para várias atividades, entre elas as

aulas da FUMEC. As aulas são de segunda à sexta, das 14h às 16h30. Duas

profissionais da FUMEC trabalham no local, uma professora e uma Agente de

Apoio, ambas nos receberam muito bem e tomaram todas as providências para

que a entrevista ocorresse de melhor forma possível.

A sede do bairro é antiga, pelo que observei, tem um salão grande onde ocorrem as aulas, uma cozinha, uma área externa coberta que é integrada ao espaço da cozinha por um espaço com churrasqueira, nesse espaço foi gravada a entrevista. Apesar de ser um espaço que existe há bastante tempo, ainda faltam melhorias e acabamentos, sendo que alguns espaços são ocupados de forma precária (Diário de Campo, 29/11/2016).

O espaço é cercado por um alambrado e compartilha o terreno com um

campo de futebol e uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI). Para

realizar a entrevista utilizamos o espaço onde está instalada a churrasqueira, por

ser uma área externa pudemos aproveitar a luz natural e também era o local com

um pouco menos de ruídos.

A segunda entrevista ocorreu em uma Escola Municipal de Ensino

Fundamental (EMEF), no bairro Parque Valença, distrito do Campo Grande,

região Noroeste da cidade. Esse bairro fica a uma distância de dezoito

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quilômetros da região central da cidade, é um bairro residencial com acesso pela

avenida John Boyd Dunlop.

Nessa unidade fomos muito bem recebidas pela professora e fizemos a

entrevista em uma sala ao lado da sala onde acontecem as aulas da FUMEC.

Em continuidade aos momentos de gravação das entrevistas fomos para a

terceira entrevista que ocorreu em um Salão Paroquial da Igreja da Imaculada no

Bairro São Bernardo:

Me pareceu que o local é o prédio da antiga paróquia, um prédio grande e antigo, tem muitas coisas antigas, vários espaços em desuso ou armanezando móveis e outros objetos também em desuso. Tem várias salas no andar de cima, a maior delas é usada como sala de aula. Nesse andar tem uma cozinha e também banheiros (Diário de Campo, 05/12/2016).

O bairro é também residencial e bastante antigo, fica a quatro quilômetros do

centro da cidade, com acessos pela avenida das Amoreiras ou pela Avenida

Prestes Maia.

Nesta unidade, que é ligada à Regional Sul da FUMEC, trabalham duas

profissionais da fundação, uma professora e uma Agente de apoio que nos

receberam muito bem e colaboraram muito para a realização da entrevista. A

mesma foi realizada em uma das salas do andar de cima, local mais confortável,

com iluminação e menos ruídos externos.

A região leste foi a última a ser visitada, a entrevista aconteceu em uma

EMEF, na Vila Orozimbo Maia, a uma distância de quatro quilômetros do centro

de Campinas, com acessos pela Rua Joaquim de Paula Souza, Av. Dr. Arlindo

Joaquim de Lemos ou pela Rua Uruguaiana.

Nessa escola trabalham duas professoras da FUMEC, nesse dia estavam

recebendo a visita da diretora da FUMEC responsável pela unidade. Fomos bem

acolhidas por todas as profissionais e a entrevista foi gravada em uma sala ao

lado da sala de aula que a aluna frequenta.

5.1.3. Os depoentes

Os nomes dos depoentes foram substituídos, conforme foi informado a eles,

no dia da entrevista. Escolhi nomes fictícios a partir de apelidos comuns da

população brasileira. O depoente da região sudoeste aparece como Juca. As

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depoentes das outras regiões são: Ciça, região noroeste; Juju, região sul e Nita

da região leste.

A partir das conversas, anotações do Diário de Campo e transcrições das

entrevistas, compus os seguintes perfis dos entrevistados:

Seu Juca

(entrevistado em 29 de novembro de 2016)

Fonte: acervo da pesquisa

O “seu Juca” demonstrou muita satisfação ao conceder a entrevista. Contou

que tem 69 anos, foi o terceiro morador do bairro, há 39 anos. É aposentado,

trabalhou “na roça” quando criança e se aposentou como carreteiro, profissão que

aprendeu aos 19 anos, na prática e com a ajuda de alguns colegas.

Nasceu em Caratinga, MG, perdeu os pais quando criança, morou com

alguns tios até os 11 anos, depois saiu de casa e foi seguir sua vida. Nunca

frequentou escola quando criança.

Atualmente mora com a esposa e com a filha de 43 anos, tem um filho

também que não mora mais com ele. Possui uma pequena chácara que frequenta

com familiares e é evangélico.

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Dona Ciça

(entrevistada em 05 de dezembro de 2016)

Fonte: acervo da pesquisa

A depoente da região noroeste, “dona Ciça”, assim como seu Juca,

demonstrou muita alegria ao fazer o depoimento, se preocupou um pouco com a

aparência quando soube que íamos gravar em vídeo. Ela nasceu em Ivaiporã –

PR, tem 68 anos, é viúva do segundo casamento e está aposentada desde os 59

anos. Veio pra Campinas com o primeiro marido e quatro filhos pequenos para

tentar uma vida melhor. Disse que no início estranhou muito, não gostava do

clima, da água nem dos alimentos, pensou em voltar para a sua cidade natal

várias vezes, mas por fim acabou se acostumando e continuou morando em

Campinas. Frequentou pouco a escola quando criança, até o terceiro ano do

antigo Grupo Escolar. Mora sozinha e se relaciona bem com as amigas do bairro,

um dos filhos telefona todos os dias para saber como ela está e conversar um

pouco, eles também se comunicam pelas redes sociais.

Dona Ciça também tem várias atividades fora da escola: pratica Lian Gong4 e

caminhadas promovidas pelo Centro de Saúde do bairro, faz caminhadas sozinha

nos outros dias da semana, frequenta uma academia de ginástica, cultiva uma

pequena horta com ervas aromáticas que utiliza, quando possível, para medicar a

família e os amigos e cultiva orquídeas.

4 O Lian Gong em 18 terapias é uma técnica que une a medicina terapêutica chinesa e culturas

físicas, que para os chineses significa: o fortalecimento harmonioso do corpo, permitindo o pleno funcionamento e utilização dos músculos, tendões e ossos. “Lian” significa treinar e “Gong” significa trabalho persistente, refinamento. Em Campinas compõe o programa de Saúde Integrativa, da Secretaria Municipal de Saúde, desde 2002 e é oferecida nos Centros de Saúde. Fonte: http://www.saude.campinas.sp.gov.br/saude/ consultado em 15/01/2017.

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Dona Juju

(entrevistada em 06

de dezembro de 2016)

Fonte: acervo da pesquisa

A terceira depoente, “Dona Juju”, da região sul, também nos concedeu a

entrevista com bastante prazer. Ela tem 78 anos é muito falante, nos deu muitos

detalhes de sua vida, desde criança até os dias atuais e falou dos planos para o

futuro. Nasceu em uma fazenda, próxima a Valparaíso – SP, nunca frequentou

escola, a mãe dela ficou viúva com 8 filhos. Ela foi morar na cidade quando moça

e arrumou um emprego de passadeira na Santa Casa de Valparaíso. Nesse

hospital, foi aprendendo os procedimentos de enfermagem e instrumentação

cirúrgica na prática, com as freiras, sem saber ler nem escrever, trabalhou muitos

anos exercendo essas funções na Santa Casa. Não se casou, cuidou de diversos

familiares, inclusive criou três sobrinhos, atualmente está aposentada, mas busca

muitas atividades, inclusive, é cuidadora de uma senhora de 90 anos e é

envolvida com alguns grupos das pastorais da Igreja Católica. Mora no bairro,

sozinha, em uma residência próxima a de uma sobrinha.

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Dona Nita

(entrevistada em 06

de dezembro de 2016)

Fonte: acervo da pesquisa

O último perfil que apresento é o de “Dona Nita”, da escola da região leste.

Ela chegou bastante tímida e, incialmente, respondeu as questões de forma

pontual, somente no final ficou mais falante, demonstrando bastante emoção ao

falar de uma filha que está morando na África e quando falou de seus sonhos. Ela

é mineira, de São Sebastião do Paraíso, tem 70 anos e viveu em Minas até os 18

anos. Frequentou pouco a escola quando criança e aqui em Campinas algumas

salas de EJA. Chegou em Campinas já casada e com uma filha, morou em vários

bairros da cidade até que nos anos de 1970 a Vila foi construída e ela se mudou

com a família.

5.1.4. As transcrições

A metodologia da História Oral indica que o próprio pesquisador deve fazer as

transcrições. Esse pode parecer um detalhe apenas técnico e que não haveria

essa necessidade, podendo qualquer pessoa realizar essa tarefa.

Minha experiência neste trabalho me fez constatar a importância do próprio

pesquisador realizar as transcrições, essa atividade não é uma simples tarefa, é

um momento de “reencontro” com os depoentes e suas histórias. No momento

das entrevistas, eu estava tensa, preocupada com as possibilidades de termos

problemas, atenta ao local e respeito ao limite do tempo, já que as entrevistas não

poderiam se prolongar demais para não ocupar muito tempo dos depoentes que

logo estariam em horário de aula. Fora isso, embora tivesse uma pessoa

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responsável pela filmagem, sempre houve a preocupação com os detalhes

técnicos, se o som estava com o mínimo de qualidade, entre outras questões.

Os momentos das transcrições foram muito importantes para mim, foi mais

uma oportunidade de prestar atenção nos míninos detalhes: entonação de voz,

expressões faciais, emoções contidas. Durante essa atividade, verifiquei o quão

importante foram as opções por fazer o registro em vídeo e também de eu mesma

fazer as transcrições. Pude captar maiores detalhes e me senti conversando com

os depoentes novamente, foi uma forma de reencontro com eles.

Tomei o cuidado de transcrever as falas dos depoentes com fidelidade,

resistindo à tentação de “corrigir” no momento transformar a oralidade em texto.

Entendi a importância de tentar captar, o máximo possível, a originalidade da fala,

pois essas construções linguísticas fazem parte da identidade do depoente.

Entendo que seja também uma forma de aproximar o leitor do universo dos

depoentes.

5.2. Identidades e subjetividades das alunas velhas e dos alunos velhos

O que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da subjetivação, que eu chamaria de “cultura de equivalência” ou de “sistemas de equivalência na esfera da cultura”. Desse ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o capital se ocupa da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. E quando falo em sujeição subjetiva não me refiro apenas à publicidade para a produção e o consumo de bens. É a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder das subjetividades (GUATTARI; ROLNIK, 2013, p. 21).

Após esse panorama construído a partir do caminho percorrido, realização

das entrevistas, locais e espaços, perfil dos depoentes e transcrições, passo

agora a analisar as respostas que foram dadas às perguntas do roteiro inicial.

Esclareço que as conversas e entrevistas não foram assim tão lineares, organizei

desta forma para possibilitar uma forma de análise. Informo também que as partes

em itálico são as transcrições das falas dos depoentes.

Neste momento proponho uma reflexão sobre identidade e diferença:

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Por que estamos examinando a identidade e a diferença? Ao examinar sistemas de representação é necessário analisar a relação entre cultura e significado. Só podemos compreender os significados envolvidos nesses sistemas se tivermos alguma ideia sobre quais posições-de-sujeito eles produzem e como nós, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior. Aqui estaremos tratando de um outro momento do “circuito da cultura”: aquele em que o foco se desloca dos sistemas de representação para as identidades produzidas por aqueles sistemas. A representação inclui práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD, 2000, p. 18).

Ao analisar as falas dos depoentes, buscou-se perceber os significados e as

posições-de-sujeito que foram produzidos no meio cultural ao qual pertencem e

quais as representações que eles fazem de si mesmos. E nesse mesmo enfoque,

também buscou-se perceber como os sistemas de representação construíram os

lugares a partir dos quais eles se posicionam e falam.

Conte-me sobre sua vida. Onde nasceu?

Os quatro depoentes não são de Campinas. Seu Juca nasceu em Caratinga –

MG, dona Ciça em Ivaiporã – PR, Dona Juju é de Valparaíso – SP e Dona Nita de

São Sebastião do Paraíso – MG sendo que três deles cresceram no campo, ou

“na roça”. Somente Dona Nita, viveu a infância na cidade. Três deles vieram para

Campinas em busca de melhoria da situação econômica, com exceção de Dona

Juju que já veio aposentada.

Onde morou e mora atualmente?

Seu Juca disse que morou em muitos lugares “Olha, eu andei tanto que a

senhora nem imagina, viu? Eu vim pro Estado do Rio, depois fui pro Paraná,

depois vim pra Campinas.”

Dona Ciça disse que só morou em sua cidade natal e depois em Campinas,

porém em Campinas morou em vários bairros até ir para onde mora atualmente.

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Dona Nita também viveu situação semelhante à de dona Ciça. Dona Juju veio

direto de Valparaíso para morar no bairro, porém depois de aposentada. Todos

residem nos bairros onde estão situadas as unidades escolares.

Essas respostas trazem à tona uma questão antiga, tanto no âmbito global

como no nacional, a realidade da migração que afeta as identidades. Nos casos

desses alunos, podemos perceber claramente o recorte da desigualdade

econômica e social, migraram em busca de melhores condições de vida,

oportunidades de emprego. Podemos inferir que, mesmo Dona Juju, que migrou

depois de aposentada, veio em busca de uma vida mais confortável em uma

cidade maior, com mais possibilidades. “A migração produz identidades plurais,

mas também identidades contestadas, em um processo que é caracterizado por

grandes desigualdades. A migração é um processo característico da desigualdade

em termos de desenvolvimento” (WOODWARD, 2000, p. 22).

O senhor ou a senhora já havia frequentado escola antes de conhecer a

FUMEC?

Seu Juca e Dona Juju nunca frequentaram escola antes de conhecer a sala

da FUMEC. Dona Nita e Dona Ciça frequentaram um pouco a escola quando

criança e Dona Nita já tinha frequentado também salas de EJA, mas não da

FUMEC.

Aqui também podemos observar um processo de exclusão “ As identidades

são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença

ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio

da exclusão social” (WOODWARD, 2000, p. 40).

Como surgiu a ideia de voltar a estudar?

Seu Juca afirmou: “Eu já tava aposentado e aí eu falei, vou procurar alguma

coisa pra fazer né? Aí eu vim, falei com a professora, fui bem aceito”.

Dona Ciça contou: “Então, influência das amigas. Tem uma amiga que mudou

pra São Carlos... ela me incentivou, ela falou: Nós tamo estudando, tem fulana,

fulana, vamo com nóis, fazer companhia, pra nóis volta junto”.

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Dona Juju afirmou: “Porque agora eu me sinto assim, mais folgada, com a

cabeça assim, despreocupada do trabalho.”

Dona Nita: Aqui? Ah, já faz tempo que eu queria vim mas nunca tive coragem,

né? “Ah, vou mexer com isso não”, e enrolando, e o trabalho também, tinha que

cuidar de neto, tudo né? Agora não tem mais, em vez de eu ficar vendo novela eu

venho pra cá, muito melhor.

Estas falas vão ao encontro do que nos aponta PARK e GROPPO:

O aumento da expectativa de vida significou a possibilidade de um sentido novo à velhice. A velhice está se tornando um estágio da vida, não mais uma categoria etária relativa aos que, muito em breve pegariam uma pneumonia ou outra doença corriqueira, deixariam tudo (ou pouco) aos filhos e virariam mera fotografia. Ser velho passou a ter um sentido em si mesmo, para além da doença, para aquém da morte. Os velhos passaram a ter tempo. Tempo para construir outras identidades, recompondo o significado de sua vida, revendo o passado, com olhos do presente. Tempo para recriar seus papéis sociais, os de outrora e os do presente (PARK; GROPPO, 2009, p. 22).

Quando resolveu estudar, quais foram as manifestações das pessoas de

seu convívio social sobre essa decisão?

A resposta de seu Juca: (Risos) a minha esposa não achou muito bom não,

sabe... (risos) não porque, cê vai estudar, pra quê? Não precisa mais... eu não... a

gente fala... os filho achou bom... não, se o senhor tá querendo, aprender é bom

né, e tal... eu só tenho um casal só... JP e Maria... é bom o senhor aprender mais

então né, porque às veis a gente pergunta alguma coisa pro senhor aqui e o

senhor não sabe responder pra gente...e é verdade mesmo né? A gente

realmente é isso que a gente sente falta, cê pergunta pra gente uma coisa, a

gente não sabe responder, fica até um pouquinho chato, não é isso? Então falei,

já tô parado mesmo, vou estudar. Vou fazer força e vou estudar, se Deus quiser.

Os amigos também, me elogeia muito, fala “ô Juca, ó, é isso aí”. Graças a Deus,

tá muito bom.

Dona Ciça: Parente? Nossa menina, deram o maior apoio, minha família dá.

Meu filho, ele é muito preocupado comigo, meu caçula, ele mora em Valinhos mas

me liga todo dia, manda mensagem no “Zap”, e se eu vou sair assim, ele fala

“mãe, não sai sozinha, mãe, não sei o que”, ele cuida de mim de lá de longe, tá

cuidando. Ele foi o que mais gostou, ele falou “é bom mãe, a senhora estudar

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porque mesmo que a senhora não aprender, a senhora tá interagindo com suas

amigas lá na sala, a senhora tá exercitando o cérebro, né? Pra não ficar parado, a

senhora tá lendo”. Ele foi o que mais deu apoio, todos eles, mas ele foi mais, ele

gosta que eu venho pra escola, tem dia que às veis ele liga “não foi pra escola

hoje não, mãe” se eu atendo né? Por que eu andei faltando muito, sabe? Por que

aconteceu uns imprevisto comigo, eu tive que faltar, primeiro foi um calo no dedo

que infeccionou, acho que de tanto usar calçado fechado, porque eu faço muita

caminhada e academia, acho que de tanto usar tênis fechado, deu um calo e

infeccionou, aí, tava sarando o dedo, caí no ônibus, machuquei meus dois joelhos

e esse braço (mostra o braço esquerdo) uma dor nesse antebraço e os dois

joelhos, tive que tomar injeção, uns comprimido grande assim, antibiótico. Eu sei

que fiquei muitos dias sem vim pra escola, mas avisei a Mônica, falei “Mônica,

aconteceu isso, tem que faltar”.

Dona Juju: A minha irmã sempre me chamou a atenção para estudar, todas

elas, porque todas elas estudaram, então elas sempre me chamaram a atenção,

mas eu nunca achava tempo, porque o salário, você sabe, você sempre ganha

aquele salário pouco.

Dona Nita: Em casa? Meu caçula falou assim pra minha neta “ixi, mamãe não

vai ficar um mês” (risos) “eu conheço a mamãe, mamãe começa, fica um, dois

meses e já sai fora”. Os outro deu parabéns, minha menina que mora fora, eu tenho

uma menina que mora lá em Cabo Verde, a outra mora no Rio, né? Ficaram

contente. “Isso mesmo, mamãe, assim a senhora não precisa ficar dependendo de

ninguém”. Lê eu consigo lê, eu leio a Bíblia, mas o problema meu é escrever.

Essas construções linguísticas nos apontam para o caminho da subjetivação,

a construção em relação ao processo da escolarização é muito forte, chegando

pelos agentes próximos como a familia e os amigos:

Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia ou de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a identificações com polos maternos e paternos. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo (GUATTARI; ROLNIK, 2013, p. 35).

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Porém, os autores apontam que esse universo próximo, famílias, amigos,

estão em conexão com algo mais amplo, as grandes máquinas produtivas, as

grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que produzem os

processos de subjetivação atuam de forma, às vezes mais, às vezes menos, oculta.

E nas próximas falas podemos continuar percebendo a perpetuação desses

processos:

Por quais motivos o senhor ou a senhora continua estudando?

Seu Juca: Eu venho pra escola porque no meu pensamento é a gente sabê

mais, né? Lê e sabê mais. É isso que a gente... porque as veis a senhora pergunta

pra mim e eu não sei responder porque eu nunca tive na escola e tal, mas seu

souber ler e escrever eu respondo né? Pra senhora né? Porque se a senhora

pergunta pra mim:

- Ô, cê conhece rua tal?

aí eu falo:

- Sim senhora, conheço sim, né? Número tal tal tal... eu sei onde que é...

Então eu posso explica né?

Agora se a gente não sabe ler, não sabe escrever (risos) é coisa incrível... a

gente sabe, mas não tem certeza absolutamente as coisas que você tá fazendo. Eu

fui muito pra Argentina, muito pro Chile, praquelas banda pra lá, junto com arguns

colega, às veis até sozinho, sabe? Mas que a gente às veis enrosca, né? Dá uma

enroscada, porque às veis cê num sabe fazer aquilo que é certo e a gente se perde

por causa disso aí. Mas eu não pretendo mais viajar né? Mas eu queria saber pelo

menos ler e escrever, um pouco a mais, eu queria. É isso que eu tô pretendendo

fazer, se Deus quiser.

Nessa fala do seu Juca podemos perceber elementos contraditórios, ele diz

que sabe, que já viajou, foi pra outros países dirigindo caminhão, que sabe as ruas,

tudo o que precisa, mas ao mesmo tempo afirma que precisa saber ler e escrever,

porque supõe que se soubesse ler e escrever não ia se perder. Para pensar sobre

essa aparente contradição e insegurança, podemos recorrer a Silva:

Já sabemos que a identidade e a diferença são resultado de um processo de produção simbólica e discursiva. O processo de adiamento e diferenciação linguísiticos por meio do qual elas são produzidas está longe,

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entretanto de ser simétrico. A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas (SILVA, 2000, p. 81).

Durante toda a vida, provavelmente, ele ouviu de pessoas próximas que os

erros que cometeu foram por conta de não saber ler, ora, se assim fosse, pessoas

com bom nível de relação com a leitura e a escrita não cometeriam enganos...

Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbritariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade (SILVA, 2000, p. 83).

Essas afirmativas de Silva podem nos dar um caminho para entender porque

essas alunas velhas e esses alunos velhos buscam a escolarização nesse

momento de suas vidas, podemos inferir que o processo de normalização tem

apontado a elas e eles que o “normal” é saber ler e escrever, ser escolarizado, e

eles continuam em busca dessa identidade.

Dona Ciça: Pretendo continuar e levar a sério. Falei pra professora, levar meu

estudo a sério, não ficar faltando, porque eu preciso, você quer escrever uma

carta, hoje em dia não usa mais tá escrevendo carta, às veis ce quer lembrar de

uma coisa antiga, mandar uma cartinha, né? Prum parente, lá longe, porque tem

parente longe, eu não sei, não vai sair legal, porque vai sair com falta de letra, é

muita... tem que saber, o português correto e a matemática. Esse é o necessário

eu acho.

Dona Juju: Pretendo continuar porque a minha irmã sempre quis que eu

estudasse, essa minha irmã era muito inteligente, essa que faleceu, inclusive agora

ela tava fazendo advocacia, mesmo que ela ia aposentar mas ela tava estudando,

ela falou “vou ocupar minha cabeça, ela também ficou solteira, não tem filho, ela

falou “eu vou voltar a estudar”, ela sempre gostou muito de pesquisa, de estudar, de

viajar, ela sempre fez tudo isso. E eu por ter adotado essa bença que Deus colocou

no meu caminho (um sobrinho que ela adotou), nesses vinte e cinco anos que eu me

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aposentei eu fiquei só em prol dele, mas eu sou feliz, sou satisfeita, e aí agora eu

venho pra escola e ele fala, “isso mesmo, vai mesmo pra escola”, me dá a maior

força, “vai aprender”.

Eu não tive oportunidade de aprender quando era mais jovem, não que eu

não quisesse, tinha vontade mas não tinha oportunidade, sempre precisava

trabalhar em dois serviços para ajudar a manter os anjinho que era bastante (os

sobrinhos).

Dona Nita: Ah, eu só quero aprender a escrever. A hora que eu escrever...

porque eu já tô com 70 ano, não vou querer ficar igual o colega lá, com 80 ano na

escola. Quero ficar com 80. Tenho uma tia com 101, lúcida de tudo, ela anda

devagarzinho, encoidinha, mas praticamente ela não depende de ninguém. Ela

mora em Altinópolis. Minha mãe faleceu com 86. Eu vim primeiro para Campinas,

aí depois veio uma irmã minha que morava em São Gotardo, aí depois veio meu

pai e meus irmão, veio tudo pra cá. Já morreu meu pai, minha mãe, e três irmão

aqui, veio tudo embora pra cá. Minha família tá tudo aqui.

A cultura não é apenas uma transmissão de informação cultural, uma transmissão de sistemas de modelização, mas é também uma maneira das elites capitalísticas exporem o que eu chamaria de um mercado geral do poder. Um poder não apenas sobre os objetos culturais, ou sobre as possibilidades de manipulá-los e criar algo, mas também um poder de atribuir a si os objetos culturais como signo distintivo na relação social com os outros (GUATTARI; ROLNIK, 2013, p. 27).

Mesmo nessa fase avançada da vida, na qual muitas pressões, como as do

trabalho e outras demandas já cessaram, eles vêm em busca dos signos que

exercem esse poder, ainda estão à mercê do mercado geral do poder. Os planos

para o futuro, na próxima pergunta feita, também desvelam essas questões:

Quais os seus planos para o futuro?

Seu Juca: Olha, a gente nem tem assim um plano porque, realmente, a gente

ficou muito tempo fora de casa, então a gente pretende ficar mesmo perto aqui,

porque não adianta mais ir pra longe, eu penso assim... eu tenho uma chacrinha e

de vez em quando a gente vai lá pra chacrinha, fica lá na chacrinha, tal, e leva meus

cunhado, tem meus cunhado e a gente vai pra lá, e fica às veis um dia, dois lá e

volta pra cá, é pertinho aqui né? Então a gente tá sempre pertinho aqui né? Viajar

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mais pra longe não. Cansou das viagens. Eu viajava ainda, vendi o caminhão tem 3

anos, 3 anos que eu vendi o caminhão. Eu já tava aposentado, mas trabalhava

ainda. Tem 11 anos que eu tô aposentado, então tem 3 anos que eu vendi o

caminhão. Fiquei um tempo na estrada. Mas tá tudo bem graças a Deus.

Dona Ciça: Eu, a minha vidinha é esta, eu sou aposentada desde os 59 anos.

Então a vida fica pacata, menina. Você tá acostumada a trabalhar, faz o teu serviço

de casa e trabalha fora, aí você aposenta, fica aquela vidinha pacata, aquele

mundinho, sabe, mas eu interajo, eu faço Liam Gong no posto, duas vezes por

semana, agora tô parada por causa desse problema que eu caí né? E tem uns

exercícios lá que movimenta o joelho, e faço caminhada duas veis por semana com

o pessoal do posto, e os outros dias sozinha. Eu venho aqui do Santa Rosa até atrás

do P. S. sozinha e volto, só eu e Deus. E faço academia também, duas vezes por

semana, eu não fico parada dentro de casa, sabe? Crochê eu não sei fazer, minha

nora tentou ensinar eu, mas não levo jeito (risos), pra crochê né? E ela faz tanta

coisa menina, faz tapete, faz até colcha de cama, e ela tentou me ensinar, mas eu

falei “ah, não levo jeito para essas coisas. Tem tanta senhorinha, que tá até no

ônibus, tá ali tecendo, eu não. Meu negócio é a escola, caminhada, academia. A

gente faz amizade, troca mudinha de orquídea, uma com a outra. Nossa, tem tanta

“pranta”, é o meu prazer é tá cuidando das minhas “pranta”. Orquídea, tem hortinha

assim de remédio. Hortelã, bálsamo, erva cidreira, aquele capim santo, tem gente

que fala né?, tem uns par de remedinho lá. Porque um neto precisa de um chá, ce

tem pra fazer né? Às vezes até a gente mesmo, ce sabe que hortelã mesmo é bom

bater com abacaxi e gengibre e tomar um copo, principalmente de manhã né, ele é

anti-inflamatório o gengibre. Eu não emagreço, sabe porque? Eu não fecho a boca.

Não consigo fechar a boca. Quer comer o que engorda, massa, nossa, sou uma

formiga pra doce. Você não tem noção. Eu cabo de cume assim, não dá meia hora

depois do almoço, eu tô doida por uma coisa doce. E não é fruta não, é coisa

mesmo, um pudim, um bolo, chocolate então, nem se fala (risos).

Dona Juju: Olha, eu pretendo ficar aqui mais um ano, pelo menos uns oito

meses, eu vou ficar aqui. Depois eu pretendo voltar porque eu moro aqui em

apartamento, tem escada, é em cima, é da minha sobrinha mas ce tem que subir

escada. O tempo tá passando, eu vou ficando mais idosa, então vai ficar difícil pra

ficar subindo e descendo. E a minha família aqui é menas pessoas, se eu precisar

ficar com alguém é menas pessoas pra ficar comigo. E tô pensando, agora em

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janeiro, de arrumar lá nos “Vicentino” pra colocar essa senhora que eu cuido, que eu

sou a responsável por ela. Porque sou eu e o padre Paulinho responsável por ela.

Eu não queria, eu queria que ela morresse e saísse da casa, assim né? Pro

cemitério, porque ela era apaixonada pela casinha dela, mas tem três sobrinhos em

São Paulo, eles vieram aqui em 2005, eu nem conheço eles, volta e meia ligam pra

ver se tem dinheiro pra emprestar, essas coisas, mas ninguém vem fazer uma visita

pra ela, então ela não tem família nenhuma aqui. Então a família que ela tem,

considerada, sou eu, sempre que ela estava bem eu viajava e levava ela pra lá, na

minha cidade, ficamos até dezoito dias juntas lá. Passava antes pelos médicos e

levava né? Levava ela embora, já que eu sou responsável, então eu podia levar ela

pra onde quisesse, então eu levava sem problema nenhum. Mas agora, com a idade

que está, meu filho fala “ai, mas nós não vamos deixar dona Dirce, a senhora não

vai levar dona Dirce?”

Eu falei “não”, agora eu já tô quase precisando de alguém pra cuidar de mim,

né? (sorrindo) Quase precisando de alguém pra cuidar de mim... (séria)

Eu estou estudando porque agora eu tenho tempo pra mim. Eu pretendo

continuar estudando porque me fez muito bem, aprendi mais e assim, pra você

adquirir conhecimento, né? Você tem mais conhecimento, né? Amanhã ou depois a

gente quer fazer alguma coisinha, você tem que ler mais, pra você adquirir

conhecimento, né? Agora com a minha mocidade era só na prática, era o suficiente.

Trabalhei muito, fui sempre uma pessoa exemplar no meu serviço, cheguei a

trabalhar em uma firma 26 anos sem ter um dia de falta, de tão exemplar que eu fui

no meu serviço, sempre ganhei como funcionária do ano ou fui uma pessoa

candidata em ganhar, sabe? Com placas de prata e tudo (sorriso), graças a Deus.

Eu fui uma pessoa que me dediquei muito ao trabalho.

Dona Nita: O futuro a Deus pertence. Uma coisa boba que eu tenho vontade é

de trocar o telhado da minha casa. Fui deixando, nunca que dá, igual tem uma

vizinha minha, ela fala assim “poxa vida, a sua filha...” mas é dela, eu não posso

pedir, eu não peço pra ninguém, se quer ajudar, ajuda, mas se não quer né? Eu não,

eu ajudei eles até quando eu pude. Aquela que mora lá em Cabo Verde, ela tem

condições, ela tem hotel, tem condições, mas... quando eu fui pra lá ela pagou tudo

pra mim, ela quer que eu vou em março, mas eu num vou não, vou ficar por aqui

mesmo.

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Embora eu não tenha feito perguntas relativas ao relacionamento com a

professora, todos os depoentes falaram dessa relação, com muito respeito e carinho

e fizeram questão de frisar a importância de ser bem acolhido na escola.

Seu Juca: quer dizer eu não tenho estudo nenhum mesmo, eu cheguei aqui e

falei com professora, a professora tava até aqui, aí eu peguei e perguntei, porque eu

não sabia que tinha essa escola aqui. Eu já tava aposentado e aí eu falei, vou

procurar alguma coisa pra fazer, né? Aí eu vim, conversei com ela, fui bem aceito. Aí

ela falou não, pode vim amanhã mesmo né, traz os documentos, assim, aí eu vim e

tô aqui com ela.

Dona Ciça: Eu acho importante as pessoas, mesmo que teje velhinho, vem

pra escola, se não aprende, tá exercitando a memória, né? Mas sempre aprende, se

a professora for boazinha igual a Mônica, que tem paciência de ensinar, vai lá na

lousa, explica. Ela vai até na carteira da gente, e tem a maior paciência. Então eu

acho que aprende, porque eu aprendi um pouco, sabe? Porque eu entrei dia 15 de

fevereiro, deste ano (2016), eu aprendi já um bom pouco. Era pra ter aprendido mais

se não fosse as minha falta. Faltei muito sabe? O ano que vem, se Deus quiser, eu

quero que Deus me guarde, que eu não precise tá faltando por nada.

Dona Juju: Uma colega falou “vem, a professora é um amor de pessoa, ela

vai ensinar você e você vai aprender e tal”, eu falo demais né? Ela falou, a senhora

pode vim..

Então tá ótimo. Aí eu comecei vir pra cá, encontrei o seu João, falando com

ele aqui, ele falou “ah, eh, a professora é uma santa, ela é muito boa e tal”, aí eu

vim... comecei a vim....

Dona Nita: Ah, essa professora aí, enquanto tiver ela na classe eu fico,

quando mudar de classe eu saio. Nossa, mas ela é boa demais, se eu tivesse

encontrado professora igual ela, eu não tinha parado. Ela é um amor, nossa! Ela

estudou aqui, ela é mais nova que o meu caçula, ela tem 40, o meu caçula tem 42.

Ela mora no Carlos Lourenço, eu fico mais nesse meio aqui. Agora que eu tenho o

meu menino que mora no Tamoio.

Resolvi também dar destaque a estes trechos pois nestas falas eles

ressaltam a importância que eles dão ao processo de escolarização:

Seu Juca: Eu venho pra escola porque no meu pensamento é a gente sabê

mais, né? Lê e sabê mais. É isso que a gente... porque as veis a senhora pergunta

pra mim e eu não sei responder porque eu nunca tive na escola e tal, mas seu

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souber ler e escrever eu respondo né? Pra senhora né? Porque se a senhora

pergunta pra mim:

- Ô, cê conhece rua tal?

aí eu falo:

- Sim senhora, conheço sim, né? Número tal tal tal... eu sei onde que é...

Então eu posso explica né?

Agora se a gente não sabe ler, não sabe escrever (risos) é coisa incrível... a

gente sabe, mas não tem certeza absolutamente as coisas que você tá fazendo. Eu

fui muito pra Argentina, muito pro Chile, praquelas banda pra lá, junto com arguns

colega, às veis até sozinho, sabe? Mas que a gente às veis enrosca, né? Dá uma

enroscada, porque às veis cê num sabe fazer aquilo que é certo e a gente se perde

por causa disso aí. Mas eu não pretendo mais viajar né? Mas eu queria saber pelo

menos ler e escrever, um pouco a mais, eu queria. É isso que eu tô pretendendo

fazer, se Deus quiser.

Graças a Deus, consegui tira carta de motorista, que era um pouco difícil

antigamente, mas a gente, com a ajuda dos amigo, né? A gente conseguiu. Mas que

é fácil, não era.

Pretendo continuar pelos mesmos motivos que eu vim. A leitura e a escrita.

Se Deus quiser.

Dona Ciça: Eu ia pra escola mas parei na terceira série primária. Que naquela

época lá, com a quarta série já pegava diploma, sabe? Já era bem adiantado, mas

eu parei no meio do ano, quando a gente saiu de férias eu já parei, não voltei mais

pra escola, meu pai também não ligava muito que a gente estudasse, ele queria era

o trabalho da gente na roça, né? A vontade já não era muita de estudar e o pai

também não forçava...

Ai, mas eu me arrependo, menina, quando eu era mais nova, assim, que eu

trabalhava, eu perdi tanto emprego bom por causa do estudo. Teve vez de firma me

ligar e falar que tava dando prioridade pra quem tem ensino médio completo, sabe?

E eu perdi vaga, às veis de serviço bom, sabe, por causa de não ter estudo. Aí,

quando você fica adulto, você vê a falta que faz o estudo na gente. Aí você vê a

falta, quando é novo tudo bem, ce acha que nunca vai precisar, mas precisa.

Fala do filho: “é bom mãe, a senhora estudar porque mesmo que a senhora

não aprender, a senhora tá interagindo com suas amigas lá na sala, a senhora tá

exercitando o cérebro, né? Pra não ficar parado, a senhora tá lendo”

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porque eu preciso, você quer escrever uma carta, hoje em dia não usa mais

tá escrevendo carta, às veis ce quer lembrar de uma coisa antiga, mandar uma

cartinha, né? Prum parente, lá longe, porque tem parente longe, eu não sei, não vai

sair legal, porque vai sair com falta de letra, é muita... tem que saber, o português

correto e a matemática. Esse é o necessário eu acho.

Eu acho importante as pessoas, mesmo que teje velhinho, vem pra escola, se

não aprende, tá exercitando a memória, né?

Dona Juju: mas na época eu não sabia ler nem escrever, eu sabia ler porque

assim, eu lia história em quadrinho, assim, porque meu irmão me ensinou ler o ABC

mas não me ensinou escrever, então eu sabia ler as letras de forma, mas não

ensinou escrever.

Aí eu falei “não Dr. Sérgio, eu não vou fazer isso porque eu não sei escrever”,

aí ele falou “não, mas a irmã vai dar um jeito”. Aí eu passei... aí ela fazia tudo em

letra de forma e deixava na seringa, no que tinha que ser feito durante a noite.

Aí eu falei “ah, ela vai me mandar embora”, e o medo de perder o trabalho?

“Ela vai me mandar embora”, mas aí não me mandou, né? Ela procurou me ensinar,

eu me interessei.

Eu não sabia ler e nem escrever, mas aprendi na prática, e tudo o que eu fiz

durante esses anos de trabalho, eu fiz com a prática. Mas sempre tive uma cabeça

muito boa, que eu abria uma caixa de material, eu sabia todos os nomes de todas as

pinças que se usava, tudo que se precisava num centro cirúrgico, pra qualquer tipo

de cirurgia, eles me chamava pra ir ajudar, eu sabia as caixas e sabia o nome do

material que eles precisavam. Assim, por eu não saber ler e escrever, eu não sabia

ler direito e nem escrever, então eu tinha que guardar tudo em mente, e eu tinha

facilidade pra guardar... hoje não, né? Mas na época eu tinha...

Eu vim pra Campinas, eu tinha intenção logo que eu cheguei aqui eu falei

“agora eu vou ter tempo, não tenho nada pra fazer, eu vou estudar”.

e eu falei “agora eu vou pra escola”, mas eu falo pra professora, volta e meia,

“que hora abençoada que eu vim pra cá” (risos). Eu gosto muito do pessoal, porque

é assim, um pessoal bastante engraçado né?

Eu fui levar minha senhorinha no geriatra e passei por ele também “Ai Dr.

Carlos, eu ando com a cabeça cansada e tudo” e ele falou “olha, a senhora tá

precisando deixar um pouco dos afazeres que a senhora faz e criar uma nova

ocupação. Como eu já tinha vontade de vim pra escola e já tinha quem cuidasse da

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minha senhorinha, porque agora ela anda de andador, graças a Deus que pos ela de

pé, ela anda de andador, tudo, né? Então tá ótimo. Aí eu comecei vir pra cá,

encontrei o seu João, falando com ele aqui, ele falou “ah, eh, a professora é uma

santa, ela é muito boa e tal”, aí eu vim... comecei a vim... não mas aqui é uma

benção, na hora que eu entro aqui eu esqueço tudo lá fora, porque esses meninos aí

são pobremático mas são muito engraçado né? Então tudo pra mim é festa (risos),

então eu venho, passo o dia aqui, tô satisfeita, tô aprendendo. Aí depois, com o

tempo, eu fui aprendendo a escrever, mas sozinha, lia, juntava as palavras, fui

escrevendo, mas não achava tempo pra mim, então eu sempre trocava assim as

palavras... num lugar assim que as vezes tem que por o “m” eu colocava “n”, então,

eu tô aprendendo essas coisas, mas é muito bom, eu falei pra professora “nossa,

isto aqui é uma bença, porque além de eu aprender, eu passo três horas aqui que

eu até esqueço de tudo, e pra mim foi ótimo. Apesar de eu tá com 76 anos, pretendo

continuar.

Neste momento, quando dona Juju fala do relacionamento com os colegas e

as indicações do médico, para “mudar de atividade”, podemos ver a importância da

convivência intergeracional que a FUMEC proporciona em suas salas de aula:

Entretanto, percebemos que em vários projetos sociais e educativos, os quais têm por eixo a velhice e os velhos, surgem procedimentos que os isolam em guetos, prescrevendo atividades de forma a homogeneizar o grupo – velhos entre velhos. Discordamos de tais procedimentos. Cremos que o ideal é que os mesmos circulem por ambientes habitados por várias faixas etárias, favorecendo, assim, a tão desejada geratividade (PARK; GROPPO, 2009, p. 28).

Dona Nita: Com foi sua vida escolar antes de vir pra FUMEC?

Eu frequentei escola quando criança, muito pouco...

Lá na sua cidade?

É...

E lá na sua cidade a senhora trabalhava na roça?

Não, era na cidade mesmo.

E porque a senhora frequentou pouco a escola?

Ah porque eu não gostava, eu gostava mais de trabalhar pra ajudar os meus

pais.

Desde pequena a senhora trabalhou?

Trabalhei.

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E o que a senhora fazia?

Ah, quando eu era pequena eu pajeava, eu tinha dez anos fui trabalhar pra

uma conhecida, uma parente longe, brincar com a criança dela. Pegava quintal pra

limpar, aí eu fui...

Foi fazendo isso, e a escola ficou pra trás...

Foi ficando pra trás, meu pai falava pra mim “ce vai se arrepender, ce vai

arrepender...” e eu arrependi...(risos)

E quando a senhora se arrependeu?

Ih, já faz tempo, eu entrei na escola na Coca-Cola também, quando eu

morava na Vila Nova, mas fiquei pouco tempo. Depois fui na Alan Kardec, também

fiquei pouco tempo. E agora, porque as veis eu quero mexer no facebook e eu não

sei, tem que tá pedindo, uma hora as criança vai né? Porque tem um casal que mora

comigo, mas eles nem tem assim... tá estudando, trabalhando, e eu quero mexer,

tem que ficar esperando a vontade deles também né?

Aí a senhora acha que a escola vai ajudar nisso?

Vai me ajudar...

E a senhora já entrou no Facebook?

Eu tenho, eu tenho WhatsApp, mas só que eu não sei, eu escrevo assim,

faltando letra, aonde vai o “r” eu não coloco, sabe? Inverto... então eu ainda não

escrevo não, fico com medo de escrever e escrever errado... os outro tirar sarro... só

fico curtindo (risos)

O WhatsApp é bom porque dá pra gravar né?

É, quando manda mensagem pra mim eu mando de volta, mas escrever não...

Ah, eu só quero aprender a escrever. A hora que eu escrever...

Dona Nita e Dona Ciça apresentaram a necessidade de dominar a escrita

para ter mais liberdade no uso das redes sociais, sendo essa mais uma demanda do

mundo contemporâneo ligada ao acesso ao universo da leitura e da escrita.

Os alunos velhos e as alunas velhas matriculados nas turmas da FUMEC –

séries iniciais vêm em busca do acesso ao processo de escolarização que lhes foi

negado na infância. Os fatores determinantes dessa exclusão podem ter sido falta

de acesso à escola, ou a não valorização da escolarização, por parte deles próprios

e de suas famílias, uma vez que garantir o sustento é prioridade em famílias de

baixa renda. Após a aposentadoria, marcando o fim do compromisso com o trabalho

remunerado, ou após a morte do cônjuge e/ou a chegada da fase adulta da vida dos

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filhos e a consequente saída deles para morar em outros locais, cidades ou países,

pelo casamento ou outras situações, essas velhas e velhos decidiram buscar a

inserção no processo de escolarização, como retomada ou como início. O principal

motivador, apontado pelos depoentes, foi a necessidade de dominar a leitura e a

escrita, e também a matemática elementar. Dentro desse movimento podemos

reconhecer a necessidade que tiveram de reverter o processo de exclusão, sofrido

ao longo de suas vidas, por não dominarem os conhecimentos escolares. Nessa

busca, querem a legitimação de seus conhecimentos, como se o processo de

escolarização fosse um tipo de validação de seus saberes. Pela base teórica

adotada neste trabalho, podemos entender essa situação como consequência de

processos de subjetivação pelos quais passaram em suas vidas, em que os

conhecimentos escolares são considerados legítimos, enquanto os outros saberes,

aqueles com os quais eles conseguiram se sustentar e manter suas famílias menos

importantes.

A escola é para eles mais uma das atividades nas quais estão engajados. O

espaço escolar pode ser um local privilegiado de incentivo e oferecimento de novas

possibilidades de construção de identidade, se for planejado considerando esses

processos. Nas relações sociais que se estabelecem ali, eles querem trocar, criticar,

vivenciar novas experiências, experimentar novas situações. Eles vêm em busca

sim, do conhecimento escolar, formal, construído socialmente, ao qual têm direito,

aquele mesmo direito que em outras fases de suas vidas lhes foi negado. Mas, eles

não vêm só por causa disso. Querem ter tempo de conversar, rir, comer, brincar.

Querem aprender, com prazer, as coisas que lhes interessam, participar desse

grupo social, rejeitam a ideia de isolamento. A FUMEC tem sido esse espaço, que

contempla tanto um aspecto como outro, sem isolar, sem ser uma atividade somente

para velhas e velhos.

Nesse contexto também ganha destaque a postura das professoras. As

professoras da FUMEC, uso aqui o feminino pois a maioria são mulheres, nesse

processo de construir uma educação que atenda a toda a diversidade do alunado da

fundação, desenvolveram várias metodologias, de acordo com o perfil de cada

turma, em cada ano. As alunas e os alunos adultos/ velhos chegam bastante

inseguros nas turmas, geralmente, já ouviram, várias vezes e de várias formas, que

não vão conseguir aprender. Se não houver sensibilidade em relação às suas

inseguranças, acolhimento, bem como uso de metodologias que atendam seus

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anseios e necessidades, esse processo pode ser interrompido. De acordo com os

depoimentos, a postura acolhedora por parte das professoras foi decisiva para a

possibilidade desses alunos e alunas velhas da EJA reconstruírem suas identidades.

Os professores são os agentes fundamentais nesse caminho de (des)construção de uma educação elitista e excludente para uma sociedade inclusiva e aberta incondicionalmente às diferenças. As identidades, portanto, estão em jogo, na medida em que queiramos ou não, somos coatores, coautores e, também, coprodutores! (LIMA, 2003, p. 20).

Pelos depoimentos pode-se perceber que as professoras das turmas das

quais os depoentes fazem parte têm consciência da responsabilidade de serem

agentes fundamentais na construção das identidades, de sua responsabilidade

como coatores, coautores e coprodutores na trajetória de suas alunas e alunos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As palavras são feiticeiras: ora aproximam, oram afastam. Podem revelar ou encobrir. No fundo, no fundo, construímos o mundo ao dizê-lo e talvez não exista mesmo nada fora desse dizer.

Daí vem o poder que as palavras têm de aprisionar ou libertar. De ferir, de machucar, tantas vezes mais que qualquer gesto. Encantar o cotidiano é enfeitá-lo de poesia, de palavras-luzes.

Espiritualizar a vida é usar a força do dizer para tirar dos cantinhos sombrios, dos desvãos das escadas, dos becos escuros, tudo que é belo, bom e capaz de ressignificar o que somos, o que vemos.

(Adília Belotti)

A realização deste trabalho teve um longo percurso. Foram mais de quatro

anos, desde a primeira disciplina que cursei como aluna especial do mestrado do

UNISAL até o momento da defesa e finalização do trabalho. Foram muitos

momentos felizes, tristes, de angústia, de questionamentos; de luta contra o tempo.

Muitas leituras, muitas aulas, muitas conversas. Sobre o quê escrever, o quê

escrever, como escrever, o quanto escrever. Por trás de tudo isso, a palavra, com

seu feitiço. A responsabilidade de ressignificar a minha trajetória, a trajetória da EJA

e também as trajetórias dos alunos depoentes, de tirar dos cantos sombrios da

exclusão social, algo de belo e bom.

A EJA, desde o seu início, se apresenta como prova dessa exclusão, o

território daqueles aos quais foi negado o convívio escolar e tantas outras coisas.

Território também de reencontro com novas possibilidades sociais, de

ressignificação de histórias e de construção de novos caminhos.

Escolha significativa nesse percurso foi o uso da metodologia da História Oral,

mais especificamente da História de Vida. Essa opção possibilitou uma maior

aproximação com as alunas velhas e com os alunos velhos da EJA. Possibilidades

de encontros, olhos nos olhos, tanto nos momentos das entrevistas como nas horas

de transcrição, lembranças, emoções, dúvidas. Colaboração das colegas de

trabalho, das amigas e amigos, dos familiares, das professoras e professores,

contribuindo para a construção deste texto, um grande tear onde um tecido de

palavras se tornou possível.

Apoiando a tessitura, autores que me desafiaram a olhar o mundo de outra

forma, que trouxeram respostas a questionamentos antigos, que apontaram

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possibilidades de novas interpretações do cotidiano e de novos caminhos teóricos.

Stuart Hall quando aponta para o deslocamento do conceito de sujeito ao longo da

história, abre novas possibilidades de interpretação em relação à construção de

novas identidades, inclusive para os velhos. Caminho que continuo seguindo com o

apoio de Tomáz Tadeu da Silva, que constrói sua teoria falando sobre as

possibilidades das relações entre identidade e diferença, as possibilidades a partir

da reconstrução linguística, negando a ideia que as identidades e diferenças sejam

inerentes aos sujeitos, mas sendo fruto de processos de criação social, podendo

assim ser recriadas ou ressignificadas. Guattari e Rolnik também me ajudaram a

trabalhar com os processos de produção e ressignificação das subjetividades, que

permeiam as discussões desta pesquisa.

Em resposta à pergunta inicial deste trabalho, que aqui tomo a liberdade de

transcrever: “quais são os motivos, interesses e necessidades dessas alunas velhas

e desses alunos velhos que impulsionam a busca pelo processo de escolarização

nesse momento de suas vidas?” Considero que são muitos os motivos, interesses e

necessidades, mas percebo alguns pontos em comum entre eles.

Inicialmente aponto que demonstraram a necessidade de retomar algo que

ficou no passado, se sentem em dívida com a sociedade e consigo mesmos em

relação ao processo de escolarização. Não reconheci em suas falas demonstrações

de que consideram essa dívida inversa, como sendo a forma de organização social

na época em que eram crianças e jovens como impedimento à inserção, com

qualidade, no processo de escolarização.

Outra interpretação para o que foi apresentado nos depoimentos, é que os

conhecimentos legitimados como conhecimentos escolares têm seu valor em si, e

eles querem se tornar detentores desses conhecimentos como uma forma de se

sentirem mais à vontade no meio social.

Outro motivador dessa busca é a necessidade de ter maior acesso e maior

liberdade ao se relacionar socialmente, no âmbito do mundo letrado. A leitura e a

escrita, e também a matemática básica, aparecerem como ferramentas de acesso e

liberdade de escolha, de maior autonomia e poder de decisão.

Essas alunas velhas e esses alunos velhos vêm para a escola com essas

subjetividades postas, ao longo da convivência com as professoras, os profissionais

da escola e com os colegas, percebem que a escola traz outras possibilidades no

âmbito das relações humanas, possibilidades de criação de laços de afeição, de

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amizade, de troca, de aprendizado, não só dos conhecimentos tidos como

escolares, mas de várias formas de conhecimento, sendo o papel da professora

fundamental nessa descoberta. Nesse sentido, as discussões sobre metodologias e

currículo para os alunos velhos é de grande necessidade, bem como os processos

formativos que envolvem as professoras que trabalham com esse alunado.

Em alguns casos, também relacionam a participação no espaço escolar com

a preservação da saúde. Esse fator é relevante no período da velhice. No mundo

contemporâneo, comumente a velhice é uma fase associada às doenças e o medo

de adoecer e se tornar incapaz. Os depoentes apontam que a inserção no processo

de escolarização colabora para a manutenção da saúde e qualidade de vida, a partir

do momento que se envolvem em uma atividade social vista por eles como saudável

e legítima.

Entendo que esta pesquisa contribui para vários campos, como o da

Educação, da educação sociocomunitária, da EJA, da História Oral, dos estudos

sobre as velhas e velhos, das discussões sobre identidade e diferença, produção de

subjetividades.

Espero que este tecido de palavras tenha sido feito com palavras libertadoras,

com palavras-luzes, reveladoras.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS

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ANEXO I

Carta de apresentação para a realização da pesquisa

Prezada _________________,

Diretora Executiva da Fundação Municipal para Educação Comunitária

(FUMEC),

Eu, Jane Gerodo Garcia, orientanda da Professora Dra. Lívia Morais Garcia

Lima, venho por meio desta carta, solicitar autorização para a realização de

pesquisa de mestrado no programa de Pós – Graduação em Educação do Centro

Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL. A pesquisa tem por objetivo

compreender como o processo de produção de subjetividades de alguns alunos

idosos da EJA os levou a, possivelmente, romper com o discurso hegemônico sobre

o lugar do idoso na sociedade contemporânea. Nesse sentido, busca-se apurar,

também, em que medida a escola – mediante a atuação de seus docentes –

contribui para as discussões sobre as possibilidades da educação de idosos e

também sobre as metodologias desenvolvidas pelos professores que trabalham com

esses alunos. Os resultados da pesquisa serão anunciados para a comunidade

científica e para a sociedade em geral.

Jane Gerodo Garcia

Mestranda em Educação / Programa de Pós – Graduação UNISAL.

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ANEXO II

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ANEXO III

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

PESQUISA: OS VELHOS E A EJA – EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:

UM OLHAR E UMA ESCUTA CONTEMPORÂNEOS

Eu___________________________________________________

RG nº ________________________________ morador

em________________________________________________________

concordo em participar da pesquisa intitulada: OS VELHOS E A EJA –

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: um olhar e uma escuta contemporâneos,

como depoente, realizada pela pedagoga Jane Gerodo Garcia, pesquisadora do

Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL) – Campus Maria Auxiliadora

– Americana – SP. Autorizo a filmagem da entrevista para produção de vídeo, com a

finalidade de dar o retorno necessário para a instituição que autorizou a pesquisa,

para os sujeitos entrevistados, como também para a sociedade mais ampla.

Os alunos velhos que atualmente frequentam as salas de Educação de

Jovens e Adultos (EJA) da Fundação Municipal para Educação Comunitária em

Campinas (FUMEC) tiveram suas vidas atravessadas pela produção de

subjetividades do mundo contemporâneo e do processo de escolarização da EJA.

Essa produção, de acordo com o discurso hegemônico, aponta como caminho para

o idoso a passividade, a acomodação e o consequente afastamento das questões

do conhecimento e da escolarização. A pesquisa tem por objetivo levantar

elementos para compreender como o processo de produção de subjetividades tem

afetado as identidades desses alunos, os levando a, possivelmente, romper com o

discurso hegemônico sobre o lugar do velho na sociedade contemporânea. Nesse

sentido, busca-se apurar, também, em que medida a escola, como um dos locais

sociais possíveis, pode ser considerado um espaço legítimo de educação para essa

população. Através do uso da metodologia qualitativa da História Oral, com ênfase

na história de vida, e com base em alguns conceitos de autores como Felix Guattari,

Tomaz Tadeu Silva, Stuart Hall, dentre outros, pretende-se proporcionar momentos

para que alguns alunos velhos que frequentam as salas de EJA da FUMEC possam

falar de suas experiências e expectativas em relação à escola, trazendo desta forma

elementos para contribuir no processo de compreensão das necessidades dos

alunos velhos na EJA.

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O momento de entrevista, numa sessão de coleta de dados de 30 a 60

minutos de duração, trará importantes contribuições para o tema abordado. Tenho

ciência que a minha participação neste estudo não trará qualquer risco ou transtorno

para a minha saúde e que minha participação não implicará em nenhum tipo de

gasto. Sei que os resultados da pesquisa serão divulgados em reuniões cientificas e

em publicações especializadas, sem que os nomes dos participantes sejam

revelados. Ou seja, estou ciente de que meus dados estão protegidos por sigilo e

anonimato. Tenho conhecimento de que minha participação na pesquisa é voluntária

e que a qualquer momento eu poderei decidir deixar de participar. Sei também que

em caso de dúvida, poderei entrar em contato com a coordenadora da pesquisa,

cujos endereços estão informados neste documento.

Eu,........................................................................................................................

...........................declaro que fui devidamente esclarecido(a) sobre a natureza desta

pesquisa e da minha participação, nos termos deste documento. Declaro que

concordo em participar por livre e espontânea vontade e que não sofri nenhum tipo

de pressão para tomar essa decisão.

Local e data: ___________________

Assinatura: ____________________

ORIENTADORA DA PESQUISA: Profª Drª Lívia Morais Garcia Lima

RESPONSÁVEL PELA PESQUISA: Jane Gerodo Garcia

Assinatura: ___________________________________

Telefone: 55 – (19) 99107-0413

E-mail: [email protected]

Nota: Este Termo de Consentimento Livre e Esclarecido será elaborado em

duas vias. Depois de assinadas, uma ficará com o participante e outra com a

pesquisadora.

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ANEXO IV

TRANSCRIÇÕES

Primeiro Depoente – Seu Juca

Entrevista concedida em 29/11/2016

Eu nunca tinha ido pra escola

Aprendi umas coisinhas com os colegas de trabalho

E assim eu fui levando, a minha filha está com 43 anos, ela mora comigo

ainda, quer dizer eu não tenho estudo nenhum mesmo, eu cheguei aqui e falei com

a Dona Adélia, a Dona Adélia tava até aqui, aí eu peguei e perguntei, porque eu não

sabia que tinha essa escola aqui. Eu já tava aposentado e aí eu falei, vou procurar

alguma coisa pra fazer, né? Aí eu vim, conversei com ela, fui bem aceito. Aí ela falou

não, pode vim amanhã mesmo né, traz os documentos, assim, aí eu vim e tô aqui

com ela.

Não tinha frequentado escola antes, nem quando criança. Eu trabalhava na

roça, não tinha nada e não teve jeito. Fui ser carreteiro.

Eu venho pra escola porque no meu pensamento é a gente sabê mais, né? Lê

e sabê mais. É isso que a gente... porque as veis a senhora pergunta pra mim e eu

não sei responder porque eu nunca tive na escola e tal, mas seu souber ler e

escrever eu respondo né? Pra senhora né? Porque se a senhora pergunta pra mim:

- Ô, cê conhece rua tal?

aí eu falo:

- Sim senhora, conheço sim, né? Número tal tal tal... eu sei onde que é...

Então eu posso explica né?

Agora se a gente não sabe ler, não sabe escrever (risos) é coisa incrível... a

gente sabe, mas não tem certeza absolutamente as coisas que você tá fazendo. Eu

fui muito pra Argentina, muito pro Chile, praquelas banda pra lá, junto com arguns

colega, às veis até sozinho, sabe? Mas que a gente às veis enrosca, né? Dá uma

enroscada, porque às veis cê num sabe fazer aquilo que é certo e a gente se perde

por causa disso aí. Mas eu não pretendo mais viajar né? Mas eu queria saber pelo

menos ler e escrever, um pouco a mais, eu queria. É isso que eu tô pretendendo

fazer, se Deus quiser.

Eu nasci em Caratinga, Minas Gerais. Só que os meus pais morreu quando

eu era pitico mesmo, pequeno, né? E fiquei junto com os tio. Até a idade de 11 anos,

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eu fiquei com os tios, depois não teve como fica, sabe? Ai eu tive que sair e não

voltei mais. Olha, eu andei tanto que a senhora nem imagina, viu? Eu vim pro

Estado do Rio, né? E depois do Estado do Rio eu fui pro Paraná. Aí no Paraná que

chegou o tempo do quartel, eu me alistei e então fui fazer os documentos que a

gente precisa ter, né? Graças a Deus, consegui tira carta de motorista, que era um

pouco difícil antigamente, mas a gente, com a ajuda dos amigo, né? A gente

conseguiu. Mas que é fácil, não era. Eu consegui e já comecei trabalhar. Com 19

anos eu comecei viajar. Com 19 anos de idade, depois que eu fui liberado do quartel

e peguei meu reservista, aí graças a Deus fui liberado e nas firma que eu chegava

eu era bem aceito e fui tocando a vida assim. E graças a Deus tô aí. Tem 39 anos

que eu moro aqui no bairro. No Santa Terezinha, 39 anos. Fui o terceiro morador

aqui do bairro. Mas graças a Deus, tudo bem, a gente se sente feliz porque foi

realizado, né? O que a gente pretendia fazer (risos)

Quando questionado sobre a decisão de ir pra escola...

(Risos) a minha esposa não achou muito bom não, sabe... (risos) não porque,

cê vai estudar, pra quê? Não precisa mais... eu não... a gente fala... os filho achou

bom... não, se o senhor tá querendo, aprender é bom né, e tal... eu só tenho um

casal só... João Paulo e Maria... é bom o senhor aprender mais então né, porque às

veis a gente pergunta alguma coisa pro senhor aqui e o senhor não sabe responder

pra gente...e é verdade mesmo né? A gente realmente é isso que a gente sente

falta, cê pergunta pra gente uma coisa, a gente não sabe responder, fica até um

pouquinho chato, não é isso? Então falei, já tô parado mesmo, vou estudar. Vou

fazer força e vou estudar, se Deus quiser. Os amigos também, me elogeia muito,

fala “ô Araújo, ó, é isso aí”. Graças a Deus, tá muito bom.

Ao ser questionado sobre quanto tempo está naquela escola...

Já faz 1 ano. Eu vim pra cá no mês 11, parece... já tava terminando o ano,

né? Aí deu férias, depois vortemo, agora é mês 11, então tá dando 1 ano. É,

realmente. Graças a Deus, tá indo. Pretendo continuar pelos mesmos motivos que

eu vim. A leitura e a escrita. Se Deus quiser.

Planos para o futuro...

Olha, a gente nem tem assim um plano porque, realmente, a gente ficou

muito tempo fora de casa, então a gente pretende ficar mesmo perto aqui, porque

não adianta mais ir pra longe, eu penso assim... eu tenho uma chacrinha e de vez

em quando a gente vai lá pra chacrinha, fica lá na chacrinha, tal, e leva meus

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cunhado, tem meus cunhado e a gente vai pra lá, e fica às veis um dia, dois lá e

volta pra cá, é pertinho aqui né? Então a gente tá sempre pertinho aqui né? Viajar

mais pra longe não. Cansou das viagens. Eu viajava ainda, vendi o caminhão tem 3

anos, 3 anos que eu vendi o caminhão. Eu já tava aposentado, mas trabalhava

ainda. Tem 11 anos que eu tô aposentado, então tem 3 anos que eu vendi o

caminhão. Fiquei um tempo na estrada. Mas tá tudo bem graças a Deus.

Segunda Depoente – Dona Ciça

Entrevista concedida em 05/12/2016

Falei pra ela (a professora), se eu soubesse tinha vindo arrumadinha, né?

De brinco, batonzinho, cabelo, né?

Onde nasceu...

Ivaiporã, Paraná. Morei lá desde criança, saí de lá, vim pra Campinas, já tinha

4 filhinho. Pequenininho, viemo tenta a vida aqui, ficamo. Nunca morei em outro

lugar. Nasci lá, cresci, casei, tive os 4 filhinho lá, vim embora.

Sobre morar em Campinas...

Ah, muito bom. No começo foi difícil, menina. Eu estranhava tudo. A água, us

frango daqui, eu achava sem sabor, muito congelada, sabe? A água, eu sentia

aquele gosto de cloro. Foi difícil. Eu falava pro meu marido “eu quero ir embora”. “Eu

quero voltar embora pra minha terra”, porque lá era água de poço e a gente

colocava num filtro, sabe? Era aquela água natural, gostosa. E tudo lá era diferente,

sabe? Eu estranhava tudo, a comida daqui, eu achava ruim. Nossa, e eu queria

tanto voltar e ele falava não, a gente tem que tentar acostumar. A gente tá aqui com

as criança pequena. Vamo tenta acostuma. Foi aí que eu acostumei. Hoje em dia,

meu pai, tá com 21 anos que morreu, mas quando eu ia visita meu pai, menina, eu

não conseguia ficar lá 15 dias. Ia pra ficar 15, voltava com 10, porque lá, minha

cidade, é muito sujo, é terra vermelha, meu pai tinha sítio lá. E aquela escuridão. Eu

nunca gostei de escuridão, desde criança. Nossa, eu queria voltar embora correndo,

só ia porque meu pai morava lá mesmo. Depois meu pai foi ficando doente, aí ele

vendeu o sítio. Nós trouxe ele pra cá, né, pra se tratar, né, ficar aqui com a gente, aí

deu derrame nele, aí ele morreu. Aí nunca mais eu fui pra lá. Meu filho, nessa época

que eu ia, ele tinha 10 anos, agora tá com 43. Vai fazer agora dia 16 de janeiro.

Nunca mais eu voltei. Fiquei. Eu morava no jardim Ieda, aí de lá eu andei fazendo

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mudança, fui pro (jardim) Aeroporto, depois morei no (bairro) Taquaral, agora que eu

moro ali no (Jardim) Santa Rosa. Mas no começo foi difícil, menina, pra acostumar

em Campinas, não foi fácil. As dificuldade, sabe, as criança era tudo pequena, meu

marido demorou a arrumar trabalho, porque não tinha experiência, trabalhava no

sítio. Foi muito difícil pra nóis aqui, viu.

Frequentou escola quando criança...

Então, eu estudei menina, que nem eu falei pra Mônica quando eu entrei, eu

falei:

- Mônica, eu quero estudar mais pra aprender matemática, porque ler eu leio

até bem, escrever que eu escrevo com falta de letra, acento, mas o que eu quero

mais é matemática, porque as veis você precisa fazer uma conta grande, tem que

ficar pedindo pra alguém né? Eu sabendo, eu mesma faço, né? Aí, ai menina, e foi a

matéria mais difícil pra mim neste ano, a matemática. Nossa, teve dia de eu sair da

sala de aula com dor de cabeça. Mas eu entrei, eu falei, mesmo se eu não aprender

eu tô exercitando o meu cérebro, né? Porque gente de idade ficar muito parado,

pode ficar com aquele mal de Alzheimer lá, né?

Sobre ter frequentado a escola na infância...

Eu ia pra escola mas parei na terceira série primária. Que naquela época lá,

com a quarta série já pegava diploma, sabe? Já era bem adiantado, mas eu parei no

meio do ano, quando a gente saiu de férias eu já parei, não voltei mais pra escola,

meu pai também não ligava muito que a gente estudasse, ele queria era o trabalho

da gente na roça, né? A vontade já não era muita de estudar e o pai também não

forçava...

Ai, mas eu me arrependo, menina, quando eu era mais nova, assim, que eu

trabalhava, eu perdi tanto emprego bom por causa do estudo. Teve vez de firma me

ligar e falar que tava dando prioridade pra quem tem ensino médio completo, sabe?

E eu perdi vaga, às veis de serviço bom, sabe, por causa de não ter estudo. Aí,

quando você fica adulto, você vê a falta que faz o estudo na gente. Aí você vê a

falta, quando é novo tudo bem, ce acha que nunca vai precisar, mas precisa.

Em relação ao retorno à escola...

Então, influência das amigas. Tem uma amiga minha que mudou pra São

Carlos, nossa, sinto uma saudade dela... ela que me incentivou, ela falou “ai Ju, nós

tamo estudando, tem fulana, fulana tá estudando, vamo com nóis, fazer companhia,

pra nóis volta junto”. Influência dela. Daí fui chamando outras amiga, tem duas aí

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que eu chamei e elas vieram também. “Ah, vou estudar também”. Ela que me falou

que tinha escola aqui.

Reação das pessoas sobre essa decisão...

Parente? Nossa menina, deram o maior apoio, minha família dá. Meu filho,

ele é muito preocupado comigo, meu caçula, ele mora em Valinhos mas me liga todo

dia, manda mensagem no “Zap” (aplicativo WhatsApp), e se eu vou sair assim, ele

fala “mãe, não sai sozinha, mãe, não sei o que”, ele cuida de mim de lá de longe, tá

cuidando. Ele foi o que mais gostou, ele falou “é bom mãe, a senhora estudar

porque mesmo que a senhora não aprender, a senhora tá interagindo com suas

amigas lá na sala, a senhora tá exercitando o cérebro, né? Pra não ficar parado, a

senhora tá lendo”. Ele foi o que mais deu apoio, todos eles, mas ele foi mais, ele

gosta que eu venho pra escola, tem dia que às veis ele liga “não foi pra escola hoje

não, mãe” se eu atendo né? Por que eu andei faltando muito, sabe? Por que

aconteceu uns imprevisto comigo, eu tive que faltar, primeiro foi um calo no dedo

que infeccionou, acho que de tanto usar calçado fechado, porque eu faço muita

caminhada e academia, acho que de tanto usar tênis fechado, deu um calo e

infeccionou, aí, tava sarando o dedo, caí no ônibus, machuquei meus dois joelhos e

esse braço (mostra o braço esquerdo) uma dor nesse antebraço e os dois joelhos,

tive que tomar injeção, uns comprimido grande assim, antibiótico. Eu sei que fiquei

muitos dias sem vim pra escola, mas avisei a Mônica, falei “Mônica, aconteceu isso,

tem que faltar”.

E no ano que vem continua?

Pretendo continuar e levar a sério. Falei pra Mônica, levar meu estudo a sério,

não ficar faltando, porque eu preciso, você quer escrever uma carta, hoje em dia não

usa mais tá escrevendo carta, às veis ce quer lembrar de uma coisa antiga, mandar

uma cartinha, né? Prum parente, lá longe, porque tem parente longe, eu não sei,

não vai sair legal, porque vai sair com falta de letra, é muita... tem que saber, o

português correto e a matemática. Esse é o necessário eu acho.

Planos pro futuro...

Eu, a minha vidinha é esta, eu sou aposentada desde os 59 anos. Então a

vida fica pacata, menina. Você tá acostumada a trabalhar, faz o teu serviço de casa

e trabalha fora, aí você aposenta, fica aquela vidinha pacata, aquele mundinho,

sabe, mas eu interajo, eu faço Liam Gong no posto, duas vezes por semana, agora

tô parada por causa desse problema que eu caí né? E tem uns exercícios lá que

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movimenta o joelho, e faço caminhada duas veis por semana com o pessoal do

posto, e os outros dias sozinha. Eu venho aqui do Santa Rosa até atrás do P. S.

sozinha e volto, só eu e Deus. E faço academia também, duas vezes por semana,

eu não fico parada dentro de casa, sabe? Crochê eu não sei fazer, minha nora

tentou ensinar eu, mas não levo jeito (risos), pra crochê né? E ela faz tanta coisa

menina, faz tapete, faz até colcha de cama, e ela tentou me ensinar, mas eu falei

“ah, não levo jeito para essas coisas. Tem tanta senhorinha, que tá até no ônibus, tá

ali tecendo, eu não. Meu negócio é a escola, caminhada, academia. A gente faz

amizade, troca mudinha de orquídea, uma com a outra. Nossa, tem tanta “pranta”, é

o meu prazer é tá cuidando das minhas “pranta”. Orquídea, tem hortinha assim de

remédio. Hortelã, bálsamo, erva cidreira, aquele capim santo, tem gente que fala

né?, tem uns par de remedinho lá. Porque um neto precisa de um chá, ce tem pra

fazer né? Às vezes até a gente mesmo, ce sabe que hortelã mesmo é bom bater

com abacaxi e gengibre e tomar um copo, principalmente de manhã né, ele é anti-

inflamatório o gengibre. Eu não emagreço, sabe porque? Eu não fecho a boca. Não

consigo fechar a boca. Quer comer o que engorda, massa, nossa, sou uma formiga

pra doce. Você não tem noção. Eu cabo de cume assim, não dá meia hora depois

do almoço, eu tô doida por uma coisa doce. E não é fruta não, é coisa mesmo, um

pudim, um bolo, chocolate então, nem se fala (risos).

Mais alguma coisa que a senhora ache importante falar...

O que eu acho importante? Eu acho importante, da minha idade, porque eu

tenho 68 anos, eu falo que eu tenho, vou fazer em junho, logo tá ali, né?

Eu acho importante as pessoas, mesmo que teje velhinho, vem pra escola, se

não aprende, tá exercitando a memória, né? Mas sempre aprende, se a professora

for boazinha igual a Mônica, que tem paciência de ensinar, vai lá na lousa, explica.

Ela vai até na carteira da gente, e tem a maior paciência. Então eu acho que

aprende, porque eu aprendi um pouco, sabe? Porque eu entrei dia 15 de fevereiro,

deste ano (2016), eu aprendi já um bom pouco. Era pra ter aprendido mais se não

fosse as minha falta. Faltei muito sabe? O ano que vem, se Deus quiser, eu quero

que Deus me guarde, que eu não precise tá faltando por nada.

Segunda filmagem... informal...

Quanto mais lamenta é pior... traz coisa negativa né? O meu marido, já fez 9

anos em maio, em maio que vem faz 10 anos que ele faleceu... meu segundo

casamento sabe? Porque o pai dos meu filho a gente separou. Ele arrumou um rabo

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de saia, foi embora lá pro parque São Quirino com ela, me abandonou com as

quatro crianças. Daí eu fiquei mais de quinze anos sozinha, acho que é o destino

que traz, porque eu já não queria mais, a decepção né? Porque eu tinha um marido

muito bom pra mim, pras crianças, e se engabelou com uma dona e... cê vê como

que homem é menina? E aí eu criei essas crianças, foi uma luta menina, eu

trabalhava em dois serviços, ganhava pouco, a pensão que ele dava era pouco.

Uma luta pra mim manter as quatro crianças. As minhas filhas, tadinhas, eu tenho

três né? Fui mãe de quatro meninas, uma Deus levou, com um ano e dois meis, e o

menino, quando ela faleceu, eu tava grávida dele de dois meis, que é o meu caçula.

Foi uma luta menina, pra criar essas criança, não foi fácil, pra cuidar, da conta de

tudo, sabe? Pagar as contas e manter a casa, as coisas pra eles. Mas eu venci,

sabe? Graças a Deus eles me ama muito, me respeita, me dão valor. Daí eu fiquei

mais de 15 anos sozinha, eu falo que foi o destino que traçou porque eu não

pretendia viver mais com ninguém. Deus pos essa pessoa tão do bem no meu

caminho, menina. Uma pessoa abençoada por Deus. Foi menina, eu não pretendia...

eu não tinha cinquenta (anos), uns quarenta e poucos... Ele era oito anos mais novo

que eu, ele era de cor morena e não parecia que ele tinha aquela idade que ele

tinha... ele morreu em 2008, dia 20 de maio de 2008, e ele ia fazer 51 no dia

primeiro de outubro de 2008. Ces já viram aquela empresa Zanca, que tá escrito

Zanca? Ele trabalhava lá naquela empresa, mais de 10 anos, ele aposentou e o

patrão dele deixou ele continuar trabalhando, “pode continuar, se der algum BO,

algum problema eu me responsabilizo”, porque ele aposentou por invalidez, porque

ele machucou a perna jogando bola e aí ele aposentou por invalidez, aí não pode

registrar, quando aposenta por invalidez. E o patrão dele deixava ele trabalhar

menina, ele “fazia uma fábrica” lá em Paulínia... ele fez o horário dele lá em Paulínia,

veio pra garagem, almoçou, aí diz que faltou uma motorista pra fazer a linha da

UNICAMP, aí diz que o Diogo, que é o gerente lá da Zanca, falou se ele podia ir

cobrir esse horário. Ele nunca falava não, foi, infartou. Aí ele diz que começou sentir

mal, assim, um irmão do patrão dele que falou, que ele começou a sentir mal, pos a

mão assim do lado esquerdo, diz que esse infarte dá uma dor muito grande no

coração, do lado esquerdo... aí diz que levantou do volante, veio assim pro corredor

do ônibus, falou pros estudante e pras estudante que ele tava levando, “pessoal, não

vai dar pra seguir viagem que eu tô passando mal”. Ele fumava desde os 14 anos,

dois maço de cigarro por dia ele fumava menina, eu acho que foi isso, entupiu as

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veia dele, aí eles falaram assim “ah o senhor quer que a gente pede ajuda” aí ele

disse “ ah se vocês pidi eu agradeço” e disse que voltou e sentou no banco do

volante assim... diz que eles descero e entraro dentro da borracharia, mas Deus foi

tão com ele que paro em frente a borracharia pra pedir ajuda, aí eles entraro dentro

da borracharia e ligaro, em vez de ligar pro SAMU, assim, essas coisas, ligaro pra

firma, aí até que o irmão do patrão dele, o Marcos, foi lá socorre ele... diz que chego

lá... o Marcos que contou pra mim sabe? Diz que chego lá ele tava caído de bruço

assim... do lado de fora da porta do ônibus, o ônibus tudo aberto... aí que ele

pegou... porque ele era magro... ele era alto mas era magro, pegou ele pos no carro

e levou num pronto socorro lá perto do Centro de Saúde.

Terceira Depoente – Dona Juju

Entrevista concedida em 06/12/2016

Eu morava na fazenda e não dava pra gente estudar... aí minha mãe ficou

viúva, com 8 filhos, eu sou a segunda filha, então tinham outros seis menores. Aí

nós ficamos mais uns anos morando na fazenda e aí quando eu vim pra cidade eu

arrumei um emprego na Santa Casa de Valparaíso como passadeira. E um dia, pelo

destino, eu fiz uma extração urinária, sem autorização da freira, sem nada, porque a

moça tava morrendo e eu falei “ah, vou salvar essa moça”, na minha cabeça, né? Eu

tinha dezessete anos... era uma criança... mas eu vi ela (a freira) fazer e eu fiz

igual... aí o médico chegou... eu já fiquei com medo... não queria nem abrir a porta

com medo dele ficar bravo, né? Porque naquele tempo, fazia uma cesárea, ficava

oito dias a paciente deitada, né? Só levantava com quatro dias, ela (a paciente) tinha

passado uma noite desesperada, querendo urinar e não podia, aí a moça que ficava

pra noite não quis fazer a extração urinária... aí, no dia seguinte, na madrugada, eu

fiz a extração urinária nela, porque o médico ia passar, visitar e ia pra fazenda... e as

freira já tinha ido rezar... elas começava às cinco da manhã e só parava às sete...

então eu falei “como que essa mulher vai ficar gritando?” Aí eu fui, fazer uma

assepsia nela, trocar a caminha dela, nesse momento eu falei “Ah, eu vou tirar a

urina dessa mulher, e fiz o serviço. O médico chegou aí eu tremia porque eu não

queria abrir a porta com medo do médico ficar bravo né? Porque eu não tinha

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conhecimento de fazer, eu via as pessoas, eu via a freira fazer, mas sempre fui

muito curiosa, né? Aí ele falou... aí com muito custo eu abri a porta, ele entrou, eu

escondi a “comadre”, porque naquele tempo só tinha o quarto mas usava o banheiro

junto, hoje todos os quartos tem banheiro, na época não tinha, aí ele falou “tal, tal,

tal... não Juju, deixa ali”, ele me chamava de Juju, “não Juju, deixa ali no banheiro a

comadre, não dispensa a urina não”. Aí quando a freira veio ele chamou a atenção

da freira “olha irmã, daqui pra frente a senhora vai treinar essa menina pra ela poder

ajudar a senhora, porque a senhora é sozinha à noite, então tendo uma a mais pra

ajudar, faz alguma coisa, mas na época eu não sabia ler nem escrever, eu sabia ler

porque assim, eu lia história em quadrinho, assim, porque meu irmão me ensinou ler

o ABC mas não me ensinou escrever, então eu sabia ler as letras de forma, mas não

ensinou escrever. Aí eu falei “não Dr. Sérgio, eu não vou fazer isso porque eu não

sei escrever”, aí ele falou “não, mas a irmã vai dar um jeito”. Aí eu passei... aí ela

fazia tudo em letra de forma e deixava na seringa, no que tinha que ser feito durante

a noite. Aí quando chamava, porque hoje em dia tem plantonista, naquela época a

cidade de Valparaíso era uma cidade pequena e não tinha, quando chamava, aí

então a gente levantava e ia atender a paciente. Daí eu comecei a atender e tal,

fiquei muito nervosa na hora, depois eu fui acalmando porque ele me deu

segurança, né? E aí a freira ficou assim né? Aí eu falei “ah, ela vai me mandar

embora”, e o medo de perder o trabalho? “Ela vai me mandar embora”, mas aí não

me mandou, né? Ela procurou me ensinar, eu me interessei. Eu nunca tive problema

de... nunca tive dificuldade de lidar com feminino e masculino, pra mim é o paciente,

né? Tá ali, é um paciente, então sempre cuidei, com esse respeito. Não tinha

enfermeiro lá (na ala masculina), só tinha um senhor manco lá que cuidava, então

comecei a ajudar a cuidar, aí dia a irmã chegou e me viu cuidando de um homem,

me chamou a atenção, falei “irmã, a gente não descobre eles”.

Eu não sabia ler e nem escrever, mas aprendi na prática, e tudo o que eu fiz

durante esses anos de trabalho, eu fiz com a prática. Mas sempre tive uma cabeça

muito boa, que eu abria uma caixa de material, eu sabia todos os nomes de todas as

pinças que se usava, tudo que se precisava num centro cirúrgico, pra qualquer tipo

de cirurgia, eles me chamava pra ir ajudar, eu sabia as caixas e sabia o nome do

material que eles precisavam. Assim, por eu não saber ler e escrever, eu não sabia

ler direito e nem escrever, então eu tinha que guardar tudo em mente, e eu tinha

facilidade pra guardar... hoje não, né? Mas na época eu tinha...

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Por que voltar a estudar agora...

Porque agora eu me sinto assim, mais folgada, com a cabeça assim,

despreocupada do trabalho. Porque mesmo depois que eu aposentei, eu continuei

com minha mãe, mais sete anos, aí ela faleceu, aí eu fiquei criando mais três

sobrinhos pequenos, então até que as mães foram estudar eles ficaram comigo, até

que elas puderam levar as crianças embora. Eu vim pra Campinas, eu tinha intenção

logo que eu cheguei aqui eu falei “agora eu vou ter tempo, não tenho nada pra fazer,

eu vou estudar”. Mas eu me envolvi tanto com o grupo da pastoral da saúde que eu

não achava tempo pra mim. Eu achava que o que eu sabia já era o suficiente, então

não precisava mais, porque o interesse da gente quando é mais jovem é aprender, ir

trabalhar e depois se aposentar, né? Mas eu achava que tudo já estava certo. Eu já

tava aposentada, eu ia correr atrás disso que eu gosto de fazer, cuidar de idosos.

Tanto que eu cuido de uma senhorinha de 90 anos, já vai fazer oito anos que eu

acompanho ela, eu sou uma voluntária, mas me tornei até responsável por ela no

documento pelo juiz, que ela ali da minha paróquia. Então, então eu tô cuidando

dessa senhorinha, agora ela fez noventa anos, mas eu recebo o salário dela, eu

pago as meninas que fica cuidando dela de dia e à noite pra mim. Eu ia vim pra cá

há três anos atrás, nesse meio tempo ela caiu, quebrou o fêmur, e aí eu não podia

vim...

Como a senhora ficou sabendo daqui, da FUMEC...

Porque eu sou de vim aqui na nossa matriz, na nossa igreja... a pastoral que

eu trabalho é ali do São Bernardo “de baixo”, porque eu moro lá, então tem a Bom

Pastor, eu comecei fazendo um trabalho aqui com elas, e aí eu passei faze lá,

conheci as moças de lá, as senhorinhas que cuidam, porque é só senhorinhas

mesmo né, que cuidam da pastoral da saúde, aí comecei a ajudar elas. Mas aí eu

me envolvi muito com uma senhora que, ali na rua Maranhão, que ela estava, eu

passava pra vim aqui na igreja e via ela muito deprimida, sempre chorando, aí... ai

meu Deus, que será que está acontecendo com essa senhorinha, aí um dia eu

resolvi bater na porta dela, depois de dois meses que eu fazia a caminhada, que eu

vinha aqui todos os dias, porque eu tava entrando em depressão, por ficar sozinha,

porque o menino ia pra escola à tarde, e todos os horários dele eram preenchidos,

eu não tinha com quem falar, eu vinha muito aqui, aí o padre Teixeira falou pra mim

“faz alguma coisa de vender na rua pra fazer amizade com as idosa”. Como na

minha cidade, a minha mãe e eu costumava sempre fazer o sabão caseiro, de óleo

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cru, pra por na cesta de alimento que a gente fornecia, aí eu passei a fazer e vender

nas portas pra fazer amizade com as senhorinha. Mas aí eu conheci tanta

senhorinha carente, que aí eu larguei de fazer sabão e fiquei só acompanhando as

senhoras (risos). Inclusive essa senhora que eu acompanhei, ela faleceu agora em

dezembro vai fazer um ano, eu acompanhei ela quatro ano, porque ela ficava

sozinha, ela tinha feito uma prótese, depois perdeu e aquela perna ficou

infeccionada, aberta, vazando muito tempo, e eu acompanhei ela.

Uma colega falou “vem, a Jacqueline (a professora) é um amor de pessoa, ela

vai ensinar você e você vai aprender e tal”, eu falo demais né? Ela falou, a senhora

pode vim... mas nesse meio de tempo ela caiu (a senhorinha), aí eu precisava pagar

um terapeuta pra ficar com ela, aí eu não podia pagar a moça pra ficar com ela. Aí

eu fiquei cuidando e pagando o terapeuta pra fazer fisioterapia. Eles fez 52

fisioterapia em casa porque era muito difícil pra levar ela pra fazer. E aí eu falei

“agora eu vou descansar minha cabeça”, aí arrumei a senhorinha, já faz dois anos

que ela já está com a gente, trabalhando, e eu falei “agora eu vou pra escola”, mas

eu falo pra Jacqueline, volta e meia, “que hora abençoada que eu vim pra cá” (risos).

Eu gosto muito do pessoal, porque é assim, um pessoal bastante engraçado né?

A reação das pessoas de sua convivência quando resolveu voltar a

estudar...

A minha irmã sempre me chamou a atenção para estudar, todas elas, porque

todas elas estudaram, então elas sempre me chamaram a atenção, mas eu nunca

achava tempo, porque o salário, você sabe, você sempre ganha aquele salário

pouco. E eu tinha uma irmã que casou e o marido ficou 20 anos na cama e ela teve

seis filhos. E eu então assumi de ficar ajudando essa irmã, além da minha casa

ainda tinha essa irmã pra ajudar. Então eu trabalhava fora e pegava muito serviço

particular, sempre peguei muito serviço particular. Então não achava tempo pra mim,

era só a fim de trabalho e a fim de querer alguma coisa, construir uma casa pra mim

morá, que eu não quiria morá com ninguém na minha velhice. Eu não queria morar

com ninguém. Eu queria minha casa, eu tenho a minha casa, pra recebe quem eu

quero e pronto.

Eu fui levar minha senhorinha no geriatra e passei por ele também “Ai Dr.

Carlos, eu ando com a cabeça cansada e tudo” e ele falou “olha, a senhora tá

precisando deixar um pouco dos afazeres que a senhora faz e criar uma nova

ocupação. Como eu já tinha vontade de vim pra escola e já tinha quem cuidasse da

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minha senhorinha, porque agora ela anda de andador, graças a Deus que pos ela de

pé, ela anda de andador, tudo, né? Então tá ótimo. Aí eu comecei vir pra cá,

encontrei o seu João, falando com ele aqui, ele falou “ah, eh, a Jacqueline é uma

santa, ela é muito boa e tal”, aí eu vim... comecei a vim... não mas aqui é uma

benção, na hora que eu entro aqui eu esqueço tudo lá fora, porque esses meninos aí

são pobremático mas são muito engraçado né? Então tudo pra mim é festa (risos),

então eu venho, passo o dia aqui, tô satisfeita, tô aprendendo. Aí depois, com o

tempo, eu fui aprendendo a escrever, mas sozinha, lia, juntava as palavras, fui

escrevendo, mas não achava tempo pra mim, então eu sempre trocava assim as

palavras... num lugar assim que as vezes tem que por o “m” eu colocava “n”, então,

eu tô aprendendo essas coisas, mas é muito bom, eu falei pra Jacqueline “nossa,

isto aqui é uma bença, porque além de eu aprender, eu passo três horas aqui que

eu até esqueço de tudo, e pra mim foi ótimo. Apesar de eu tá com 76 anos, pretendo

continuar.

Planos para o futuro...

Pretendo continuar porque a minha irmã sempre quis que eu estudasse, essa

minha irmã era muito inteligente, essa que faleceu, inclusive agora ela tava fazendo

advocacia, mesmo que ela ia aposentar mas ela tava estudando, ela falou “vou

ocupar minha cabeça, ela também ficou solteira, não tem filho, ela falou “eu vou

voltar a estudar”, ela sempre gostou muito de pesquisa, de estudar, de viajar, ela

sempre fez tudo isso. E eu por ter adotado essa bença que Deus colocou no meu

caminho, nesses vinte e cinco anos que eu me aposentei eu fiquei só em prol dele,

mas eu sou feliz, sou satisfeita, e aí agora eu venho pra escola e ele fala, “isso

mesmo, vai mesmo pra escola”, me dá a maior força, “vai aprender”.

Eu não tive oportunidade de aprender quando era mais jovem, não que eu

não quisesse, tinha vontade mas não tinha oportunidade, sempre precisava

trabalhar em dois serviços para ajudar a manter os anjinho que era bastante.

Olha, eu pretendo ficar aqui mais um ano, pelo menos uns oito meses, eu vou

ficar aqui. Depois eu pretendo voltar porque eu moro aqui em apartamento, tem

escada, é em cima, é da minha sobrinha mas ce tem que subir escada. O tempo tá

passando, eu vou ficando mais idosa, então vai ficar difícil pra ficar subindo e

descendo. E a minha família aqui é menas pessoas, se eu precisar ficar com alguém

é menas pessoas pra ficar comigo. E tô pensando, agora em janeiro, de arrumar lá

nos “Vicentino” pra colocar essa senhora que eu cuido, que eu sou a responsável

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por ela. Porque sou eu e o padre Paulinho responsável por ela. Eu não queria, eu

queria que ela morresse e saísse da casa, assim né? Pro cemitério, porque ela era

apaixonada pela casinha dela, mas tem três sobrinhos em São Paulo, eles vieram

aqui em 2005, eu nem conheço eles, volta e meia ligam pra ver se tem dinheiro pra

emprestar, essas coisas, mas ninguém vem fazer uma visita pra ela, então ela não

tem família nenhuma aqui. Então a família que ela tem, considerada, sou eu, sempre

que ela estava bem eu viajava e levava ela pra lá, na minha cidade, ficamos até

dezoito dias juntas lá. Passava antes pelos médicos e levava né? Levava ela

embora, já que eu sou responsável, então eu podia levar ela pra onde quisesse,

então eu levava sem problema nenhum. Mas agora, com a idade que está, meu filho

fala “ai, mas nós não vamos deixar dona Dirce, a senhora não vai levar dona Dirce?”

Eu falei “não”, agora eu já tô quase precisando de alguém pra cuidar de mim,

né? (sorrindo) Quase precisando de alguém pra cuidar de mim... (séria)

Eu estou estudando porque agora eu tenho tempo pra mim. Eu pretendo

continuar estudando porque me fez muito bem, aprendi mais e assim, pra você

adquirir conhecimento, né? Você tem mais conhecimento, né? Amanhã ou depois a

gente quer fazer alguma coisinha, você tem que ler mais, pra você adquirir

conhecimento, né? Agora com a minha mocidade era só na prática, era o suficiente.

Trabalhei muito, fui sempre uma pessoa exemplar no meu serviço, cheguei a

trabalhar em uma firma 26 anos sem ter um dia de falta, de tão exemplar que eu fui

no meu serviço, sempre ganhei como funcionária do ano ou fui uma pessoa

candidata em ganhar, sabe? Com placas de prata e tudo (sorriso), graças a Deus.

Eu fui uma pessoa que me dediquei muito ao trabalho.

Quarta Depoente – Dona Nita

Entrevista concedida em 06/12/2016

A senhora nasceu onde?

São Sebastião do Paraíso.

A senhora viveu lá quanto tempo?

Dezoito anos, depois eu vim embora.

Veio pra Campinas mesmo?

Vim pra Campinas, eu tive a primeira filha lá, com dezoito (anos) e vim

embora pra cá.

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Já veio pra cá pro bairro?

Não, não. Nóis foi morar no Chapadão, e aí depois a gente foi pra vila Nova.

Aí, depois, em 72 nós pegamos a casa aqui...

Aqui no bairro? O bairro era novo?

Era novo, vila popular...

O bairro chama como?

Vila Orosimbo Maia.

Ah, tá... então a senhora começou aqui, o bairro novo...

Comecei o bairro novo, as casas novas...

Criou os filhos aqui?

Criei, aí quando eu consegui aumentar a casa, eles mudaram, eles casaram e

foram tudo embora (risos)...

Como foi sua vida escolar antes de vir pra FUMEC?

Eu frequentei escola quando criança, muito pouco...

Lá na sua cidade?

É...

E lá na sua cidade a senhora trabalhava na roça?

Não, era na cidade mesmo.

E por que a senhora frequentou pouco a escola?

Ah porque eu não gostava, eu gostava mais de trabalhar pra ajudar os meus

pais.

Desde pequena a senhora trabalhou?

Trabalhei.

E o que a senhora fazia?

Ah, quando eu era pequena eu pajeava, eu tinha dez anos fui trabalhar pra

uma conhecida, uma parente longe, brincar com a criança dela. Pegava quintal pra

limpar, aí eu fui...

Foi fazendo isso, e a escola ficou pra trás...

Foi ficando pra trás, meu pai falava pra mim “ce vai se arrepender, ce vai

arrepender...” e eu arrependi...(risos)

E quando a senhora se arrependeu?

Ih, já faz tempo, eu entrei na escola na Coca-Cola também, quando eu

morava na Vila Nova, mas fiquei pouco tempo. Depois fui na Alan Kardec, também

fiquei pouco tempo. E agora, porque as veis eu quero mexer no facebook e eu não

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sei, tem que tá pedindo, uma hora as criança vai né? Porque tem um casal que mora

comigo, mas eles nem tem assim... tá estudando, trabalhando, e eu quero mexer,

tem que ficar esperando a vontade deles também né?

Aí a senhora acha que a escola vai ajudar nisso?

Vai me ajudar...

E a senhora já entrou no Facebook?

Eu tenho, eu tenho WhatsApp, mas só que eu não sei, eu escrevo assim,

faltando letra, aonde vai o “r” eu não coloco, sabe? Inverto... então eu ainda não

escrevo não, fico com medo de escrever e escrever errado... os outro tirar sarro... só

fico curtindo (risos)

O WhatsApp é bom porque dá pra gravar né?

É, quando manda mensagem pra mim eu mando de volta, mas escrever

não...

Como a senhora ficou sabendo daqui, da FUMEC?

Aqui? Ah, já faz tempo que eu queria vim mas nunca tive coragem, né? “Ah,

vou mexer com isso não”, e enrolando, e o trabalho também, tinha que cuidar de

neto, tudo né? Agora não tem mais, em vez de eu ficar vendo novela eu venho pra

cá, muito melhor.

E faz tempo que a senhora veio pra cá?

Este ano.

Tá começando...

É, tô começando...

E a senhora acha que já avançou bem?

Já, eu não sabia fazer conta de menos, né, de tirar... eu já sei. De vezes eu tô

aprendendo também... com dois números...

A reação da família/conhecidos quando voltou a estudar

Em casa? Meu caçula falou assim pra minha neta “ixi, mamãe não vai ficar

um mês” (risos) “eu conheço a mamãe, mamãe começa, fica um, dois meses e já sai

fora”.

E os outros?

Não, eles deu parabéns, minha menina que mora fora, eu tenho uma menina

que mora lá em Cabo Verde, a outra mora no Rio, né? Ficaram contente. “Isso

mesmo, mamãe, assim a senhora não precisa ficar dependendo de ninguém”. Lê eu

consigo lê, eu leio a Bíblia, mas o problema meu é escrever.

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E as amigas, vieram junto?

Tentei trazer duas mas não teve coragem.

E o que elas falaram da senhora vir pra escola?

Não falaram nada, só falou assim, você tem coragem, eu não vou não...

E por que tem que ter coragem pra vir pra escola?

Ah, tem que largar tudo, né? Ce ocê fica em casa cê não sai nunca. Então,

tem que vim embora mesmo.

E a senhora pretende continuar estudando?

Ah, eu só quero aprender a escrever. A hora que eu escrever... porque eu já

tô com 70 ano, não vou querer ficar igual o colega lá, com 80 ano na escola. Quero

ficar com 80. Tenho uma tia com 101, lúcida de tudo, ela anda devagarzinho,

encoidinha, mas praticamente ela não depende de ninguém. Ela mora em

Altinópolis. Minha mãe faleceu com 86. Eu vim primeiro para Campinas, aí depois

veio uma irmã minha que morava em São Gotardo, aí depois veio meu pai e meus

irmão, veio tudo pra cá. Já morreu meu pai, minha mãe, e três irmão aqui, veio tudo

embora pra cá. Minha família tá tudo aqui.

E os planos pro futuro? Quais são?

O futuro a Deus pertence. Uma coisa boba que eu tenho vontade é de trocar

o telhado da minha casa. Fui deixando, nunca que dá, igual tem uma vizinha minha,

ela fala assim “poxa vida, a sua filha...” mas é dela, eu não posso pedir, eu não peço

pra ninguém, se quer ajudar, ajuda, mas se não quer né? Eu não, eu ajudei eles até

quando eu pude. Aquela que mora lá em Cabo Verde, ela tem condições, ela tem

hotel, tem condições, mas... quando eu fui pra lá ela pagou tudo pra mim, ela quer

que eu vou em março, mas eu num vou não, vou ficar por aqui mesmo.

A senhora se deu bem aí na sala?

Ah, essa professora aí, enquanto tiver ela na classe eu fico, quando mudar de

classe eu saio. Nossa, mas ela é boa demais, se eu tivesse encontrado professora

igual ela, eu não tinha parado. Ela é um amor, nossa! Ela estudou aqui, ela é mais

nova que o meu caçula, ela tem 40, o meu caçula tem 42. Ela mora no Carlos

Lourenço, eu fico mais nesse meio aqui. Agora que eu tenho o meu menino que

mora no Tamoio.

A senhora fez amizades aqui na sala?

Fiz, não vejo a hora de vim embora pra escola, ainda mais que eu venho de

perua, para perto de casa, porque é perto, eu moro perto do postinho de saúde,

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sabe? Aqui é a rua do postinho, minha rua é de cá... a perua passa do lado, porque

essa subidinha tem dia que dói as pernas. A perua é importante. Bem lá perto de

casa, nóis já tento vende a casa umas duas vezes, não conseguiu por causa das

droga lá, só que eles não mexe com a gente, não mexe não. Mas a perua ajuda. Eu

venho todo dia, é difícil eu faltar. Às veis assim, aconteceu deu faltar, se eu vou no

médico, se eu vou chegar atrasada, aquela correria, não dá tempo, mas a minha

nora mora comigo, então eu já adianto a janta, a hora que ela chega do serviço já tá

bem adiantada e eu venho embora.