Cérebro

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Cérebro Visão hipnótica Pela primeira vez, neurologistas conseguiram enxergar um cérebro hipnotizado. Graças a exames que registram as áreas cerebrais ativadas durante o transe, o mistério da hipnose começa a ser decifrado. O assunto sempre gerou controvérsia. Tem gente que acha a hipnose um jogo teatral. O hipnotizado fingiria sensações que seu cérebro não sente, querendo se iludir, mas, no fundo, no fundo, sabendo da farsa. E tem gente que vê na hipnose um estado neurológico especial. Nele, o cérebro focaria a atenção no assunto sugerido pelo hipnotizador, sem dar bola para outras informações registradas naquele momento. Ok, tudo continuaria não passando de ilusão. Mas com uma enorme diferença: o cérebro é que seria iludido, sentindo de fato o que o hipnotizador lhe sugerisse. Seria possível até ver

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Cérebro

 

Visão hipnótica

 

        Pela primeira vez, neurologistas conseguiram enxergar um cérebro hipnotizado. Graças a exames que registram as áreas cerebrais ativadas durante o transe, o mistério da hipnose começa a ser decifrado.

        O assunto sempre gerou controvérsia. Tem gente que acha a hipnose um jogo teatral. O hipnotizado fingiria sensações que seu cérebro não sente, querendo se iludir, mas, no fundo, no fundo, sabendo da farsa. E tem gente que vê na hipnose um estado neurológico especial. Nele, o cérebro focaria a atenção no assunto sugerido pelo hipnotizador, sem dar bola para outras informações registradas naquele momento. Ok, tudo continuaria não passando de ilusão. Mas com uma enorme diferença: o cérebro é que seria iludido, sentindo de fato o que o hipnotizador lhe sugerisse. Seria possível até ver o cérebro sendo enganado. Aliás é exatamente isso o que está fazendo um grupo de cientistas americanos eles entraram de cabeça na hipnose para desvendar seus mistérios e acabar com a polêmica.

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        Os resultados preliminares desse estudo são espantosos. Dezesseis voluntários observaram imagens em cores na tela de um computador. Depois de hipnotizados, eles foram levados a acreditar que a mesma figura colorida, vista outra vez no monitor, era toda cinza. Nesse instante, o cérebro ativou uma região que inibe a visão das cores. Ou seja, sem nenhuma possibilidade de farsa, o cérebro passou a ver em preto e branco. Mais tarde, os mesmos voluntários foram induzidos a ver cores em imagens onde elas não existiam. E, outra vez, bingo! Os resultados confirmaram que o cérebro estava mesmo “vendo” colorido.

Olhos fechados, mente atenta e concentrada

        “A gente ainda não conhece os detalhes do processo, mas o quadro está cada vez mais claro”, disse o americano Stephen Kosslyn, psicólogo e neurologista da Universidade Harvard, um dos coordenadores da experiência, que também contou com psiquiatras da Universidade Stanford, radiologistas do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, além de neurologistas do Memorial Hospital, de Nova York. Para esse time da pesada mergulhar na hipnose, um equipamento foi fundamental: o PET,(tomografia por emissão de pósitrons), que mostra com precisão quais regiões cerebrais estão sendo ativadas a cada momento.

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        Há pouco mais de dois anos, o PET passou a ser usado para a investigação da hipnose. Kosslyn explica: “Exames mais antigos, como o do eletroencefalograma, poderiam até mostrar a região da visão sendo ativada como um todo, mas não informariam se o indivíduo estaria enxergando colorido ou em preto o branco aquilo que afirmasse enxergar”. Segundo o psiquiatra David Spiegel, da Universidade Stanford, o PET também confirmou outro ponto importante: “Os centros ligados à atenção permanecem ativos”.

        Nessa tecla, o fisiologista italiano Giancarlo Carli já vem batendo há mais de uma década, apesar de a palavra hipnose, criada no final do século XIX, ser derivada de Hypnos, o deus grego do sono. “A hipnose é um estado de vigília. Ela nada tem a ver com adormecer”, afirma ele, que é considerado um dos maiores especialistas mundiais no assunto. “O próprio eletroencefalograma já indicava isso ao registrar as ondas cerebrais. Durante o sono, há ondas bastante típicas, que nunca aparecem nos hipnotizados. Mesmo aqueles que chegam ao grau mais profundo da

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hipnose  apresentam ondas cerebrais de quem está acordado.”

        Se os cientistas entendem melhor o que é a hipnose, eles pouco sabem sobre a trajetória que leva o cérebro a esse estado. Há indícios de que uma estrutura cerebral semelhante a uma rede, chamada formação reticular, funciona como elo entre a voz do hipnotizador e a massa cinzenta do hipnotizado. “A formação reticular controla a vigília e o sono e ainda seleciona em que informações devemos nos concentrar”, explica o psiquiatra Fernando Portela Câmara, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

        A tese mais aceita é a de que as palavras do hipnotizador, processadas pelo nervo auditivo, alcançam a ponta dessa rede, na base do cérebro, e se espalham por toda a massa cinzenta. Por se tratar de estímulos repetitivos, quando eles chegam no lobo frontal, região atrás da testa, concentram a atenção do paciente em um único foco, inibindo tudo o que está ao redor.

 

Um cérebro iludido

 

Como alguém pode ver cor onde ela não existe. E vice-versa.

 

Um falso arco-íris

Este é o mapa cerebral de indivíduos não hipnotizados, enxergando cores de verdade.

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        Hipnotizados, os voluntários da experiência americana tinham de olhar para uma figura em preto e branco, enquanto o hipnotizador dizia que ali havia cor. O PET, iniciais em inglês para tomografia por emissão de pósitrons, exame que aponta as áreas cerebrais ativadas, mostrou que na região da visão, próxima da nuca, de repente se acendeu a área responsável pela visão de cores.

 

Isto é ficar bem acordado

        O hipnotizado parece adormecido, mas a área cerebral da atenção é acionada, como se o paciente estivesse em vigília.

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Paisagem descolorida

        Se eles não estivessem hipnotizados e vissem uma figura em preto e branco, o cérebro dos voluntários não apresentaria áreas ativadas. Afinal, o nervo óptico não levaria à massa cinzenta informação de cor.

        Ainda hipnotizados, os voluntários olharam uma figura colorida, mas desta vez foram induzidos a acreditar que ela

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era toda em tons de cinza. O PET indicou que a área responsável pelas cores permaneceu desligada. Em compensação, a chamada área lingual foi acionada. Ela é capaz de inibir informações sensoriais, como os estímulos visuais provocados pela cor.

 

E dormir é assim

        Se o indivíduo estivesse em um estado próximo do sono, o que não ocorre na hipnose, o mapa cerebral seria completamente diferente, com outras áreas ativadas.

 

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Os cinco graus do transe

 

        Alguns são hipnotizados com mais facilidade do que outros.

Qualquer um pode ser hipnotizado. “Mas ninguém entra em transe contra a vontade, mesmo que o hipnotizador queira”, conta o psiquiatra Antonio Carlos de Moraes Passos, professor emérito da Universidade Federal de São Paulo. No entanto, mesmo querendo muito, só 10% dos indivíduos alcançam o nível mais profundo da hipnose. Sim, porque ela se divide em cinco graus. O primeiro é um relaxamento profundo. No segundo, o relaxamento é mais intenso, só que ele vai para o espaço se o sujeito abre os olhos no meio da sessão. No terceiro estágio, os pacientes podem deixar de sentir dor. Somente 25% das pessoas chegam ao quarto estágio, quando podem até conversar e abrir os olhos. No quinto e último estágio, se o processo não for conduzido por um terapeuta responsável, o indivíduo poderá ter alucinações.

Você está com sono... muito sono...

        Uma sessão em que os estímulos repetitivos são a peça-chave.

        Durante a sessão, o paciente deve ficar em uma posição bem confortável. Para deixá-lo em transe, é preciso repetir um estímulo. No passado, os terapeutas usavam estímulos

visuais, como um pêndulo balançando. Hoje os especialistas consideram sons repetitivos, como o tique-taque de um relógio, mais eficientes. A maioria usa a própria voz, falando frases ou palavras sem parar, em um tom monótono. O ritmo indicado é o dos batimentos cardíacos. “O resultado é melhor quando a gente pronuncia palavras associadas a relaxamento, ‘sono’, por exemplo”, diz o psicoterapeuta

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Carlos Laganá, presidente da Sociedade Brasileira de Hipnose. Uma sessão completa não ultrapassa meia hora. “Mas é impossível prever a duração de um tratamento baseado em hipnose”, esclarece Laganá. “Pode levar meses ou anos.”

 

Os efeitos em todo o corpo

Como a hipnose ajudaria a tratar problemas de saúde.

 

        Em situações de stress, diminuem os níveis de serotonina, um neurotransmissor ligado à sensação de bem-estar. Em compensação, cresce a quantidade de cortisol e outros hormônios relacionados ao nervosismo e isso pode aumentar a sensibilidade à dor.

        Existem doenças que são auto-imunes, como a artrite, a inflamação nas articulações. Nelas, as defesas perdem o controle e atacam o próprio corpo.

 

Defesas barradas

        O cortisol, uma das substâncias do estresse, é parente da cortisona, remédio capaz de frear células envolvidas na inflamação, que é uma estratégia de defesa do corpo. Tomar antiinflamatório é bom quando a reação do organismo é exagerada. Mas o cortisol trava a defesa mesmo quando ela é necessária.

Quando está hipnotizado

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Longe dos problemas

        A hipnose provoca um extremo relaxamento e isso diminui a dor por dois caminhos. Primeiro, crescem os níveis do neurotransmissor serotonina. Ele vai se concentrar nas áreas cerebrais encarregadas de processar as mensagens químicas da dor, atenuando a sua intensidade. Além disso, diminui o cortisol do stress, que poderia intensificar os sinais dolorosos nos nervos espalhados pelo corpo.

 

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A turma do deixa-disso

        O hipnotismo também estimularia a produção de moléculas chamadas de moduladores imunológicos que, feito chaves, se ligam às células de defesa regulando a sua ação. Assim, eles evitariam que as defesas comprassem briga contra tecidos do próprio corpo.

Livres para defender

        As células imunológicas do sangue se tornariam mais eficientes sem o freio do cortisol, já que a dosagem da substância despenca. Isso poderia explicar por que o hipnotismo tem ajudado no tratamento de pacientes imunodeprimidos por causa do câncer ou da Aids.

 

A nova arma da polícia

 

A técnica refresca a memória e ajuda nas investigações.

 

Depois do trauma de um assalto ou de um estupro, é comum a vítima esquecer a cara do seu agressor. Então a hipnose entra em cena para recobrar a memória. “Atendo cerca de sete casos por mês e quase 100% deles são resolvidos”, diz o psicólogo Ruy Fernando Cruz Sampaio, do Instituto de Criminalística de Curitiba, no Paraná. Ele aplica essa técnica há oito anos e vai chefiar o Laboratório de Hipnose do instituto, que será inaugurado em breve.

        A sessão de hipnose envolvendo episódios violentos demora até 3 horas. “A vítima pode dar um retrato falado perfeito do bandido. Ou uma testemunha é capaz de recordar a chapa do carro que atropelou alguém”, exemplifica Sampaio. A hipnose só não deve ser usada na confissão de crimonosos. Eles poderiam alegar inocência fingindo estar em transe.

 

Uma história polêmica

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Em sua trajetória, o hipnotismo causou encrencas.

 

        No século XVIII, o médico alemão Franz Mesmer (1734-1815) usou a hipnose para curar doenças. Ele achava que, provocando delírios e convulsões nos pacientes hipnotizados, colocaria os fluidos do corpo em harmonia, banindo o mal. Mesmer, ainda que um charlatão comprovado, acabou lançando as bases do hipnotismo científico. A hipnose, até então, era apenas número de circo. O médico francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) também usou a técnica e foi imitado por seu discípulo, o psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939), fundador da Psicanálise. Mas tanto Freud quanto o seu mestre abandonaram a hipnose ao notar que ela podia agravar os surtos psicóticos. E também porque a técnica era tão malvista pelos médicos da época que seus trabalhos, embora sérios, acabavam caindo em descrédito.

 

Para saber mais

Hipnose, Considerações Atuais, Antonio Carlos Moraes Passos e Isabel Marcondes, Editora Atheneu, São Paulo, 1998.

O Que É Hipnotismo, Osmar de Andrade Faria, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985