Chicos 38

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Esta é a edição número 38 de 31 de julho de 2013. Abrimos a edição com Kajal Ahmad, uma interessante poeta curda, um dos povos que também perdeu seu território. Outra poeta presente é a nossa amiga Flausina Márcia. Ronaldo Cagiano, em seu incrível trabalho de mapeamento da poesia contemporânea argentina, nos presenteia com a tradução de César Cantoni. A poesia cabo-verdiana se apresenta com Corsino Forte, como também “Funchal” do poeta sueco Tomas Tranströmer. Numa tradução de Alberto Acosta publicamos em espanhol o poema Cataguases do Ascânio Lopes. Adelto Gonçalves apresenta um magnifico texto sobre a poesia de Claudio Sesín, grande amigo, divulgador da poesia brasileira na Argentina e colaborador aqui no Chicos. Eltânia André em seu caminhar pela Itália nos fala de Dante e sua Divina Comédia. Antônio Jaime em O nome da Rosa em JF, nos fala das peripécias nada ortodoxa dele e da sua trupe teatral em um seminário em Juiz de Fora; mais adiante, noutro texto fala do belo livro de Fernando Abritta recentemente lançado. Ronaldo Brito Roque em Zoom passeia pelas artes em Cataguases. A última entrevista de Manuel Bandeira, concedida a Pedro Bloch, é incrível e bela, compartilhamos com vocês. Em setembro a peça A Quarta Parede de Carlos Sérgio Bittencourt inicia carreira em Cataguases. E muito mais vocês encontrarão por aqui. Desfrutem! Uma boa leitura para todos. Os Chicos

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Chicos

N. 38

Julho 2013

e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG

Capa

Detalhe do Azulejo As Fiandeiras de Portinari - foto de Vicente Costa

Editores Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores desta edição

Adelto Gonçalves

Alberto Acosta

Antônio Jaime

Antônio Perin

Eltãnia André

Emanuel Medeiros

Flausina Márcia da Silva

Ronaldo Cagiano

Ronaldo Brito Roque

Sebastião Nozza Bielli Lotti

Fale conosco em: [email protected]

Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/

Um dedo de prosa Esta é a edição número 38 de 31 de julho de 2013.

Estamos em festa. José Antonio Pereira, um dos nossos editores lança no dia 10

de agosto de 2013 seu livro de crônicas Fantasias de Meia Pataca. Algumas de suas

crônicas apareceram em primeira mão aqui no Chicos.

Abrimos a edição com Kajal Ahmad, uma interessante poeta curda, um dos povos que

também perdeu seu território. Outra poeta presente é a nossa amiga Flau.

Ronaldo Cagiano, em seu incrível trabalho de mapeamento da poesia contemporânea

argentina, nos presenteia com a tradução de César Cantoni.

A poesia cabo-verdiana se apresenta com Corsino Forte, como também “Funchal” do

poeta sueco Tomas Tranströmer.

Numa tradução de Alberto Acosta publicamos em espanhol o poema Cataguases do

Ascânio Lopes.

Adelto Gonçalves apresenta um magnifico texto sobre a poesia de Claudio Sesín, grande

amigo, divulgador da poesia brasileira na Argentina e colaborador aqui no Chicos.

Eltânia André em seu caminhar pela Itália nos fala de Dante e sua Divina Comédia.

Antônio Jaime em O nome da Rosa em JF, nos fala das peripécias nada ortodoxa dele e

da sua trupe teatral em um seminário em Juiz de Fora; mais adiante, noutro texto fala

do belo livro de Fernando Abritta recentemente lançado.

Ronaldo Brito Roque em Zoom passeia pelas artes em Cataguases.

A última entrevista de Manuel Bandeira, concedida a Pedro Bloch, é incrível e bela,

compartilhamos com vocês.

Em setembro a peça A Quarta Parede de Carlos Sérgio Bittencourt inicia carreira em

Cataguases.

E muito mais vocês encontrarão por aqui. Desfrutem!

Uma boa leitura para todos.

Os Chicos

Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Cataguases,

Biblioteca Ascânio Lopes e a Livraria Casa do Livro

convidam para o lançamento do livro

Fantasias de Meia Pataca

de José Antonio Pereira

Dia - 10.08.2013 às 19.30hs

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Sumário

KAJAL AHMAD Direções e outros poemas 03 FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA Feliz Ano Treze 10 CÉSAR CANTONI Jantávamos esta noite e outros poemas 11 CORSINO FORTES Emigrante 13 EMANUEL MEDEIROS Inventar 16 ANTÔNIO PERIN As reticências do tempo e outro poema 17 ASCÂNIO LOPES Cataguases 19 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Poema que não realizei 21

TOMAS TRANSTRöMER Funchal 22 ANTONIO JAIME Nome da Rosa em JF 23 JOSÉ ANTONIO PEREIRA Uma carta e seus destinos 24 ELTÂNIA ANDRÉ Antes de ler “Divina Commedia” 25 ADELTO GONÇALVES Claudio Sesín O poeta dos ocasos catamarquenhos 27 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Carteira de cronista 29 ANTONIO JAIME Sobre O Caso da Menina que perdeu a voz 30 RONALDO BRITO ROQUE Zoom em Cataguases 31 SEBASTIÃO NOZZA BIELLI LOTTI Propriedade particular 33 UMA ENTREVISTA A última entrevista de Manuel Bandeira 34 TEATRO EM CATAGUASES A Quarta Parede de Carlos Sérgio Bittencourt 38

Fotos de Vicente Costa

As Fiandeiras – Candido Portinari Painel em azulejos

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Kajal Ahmad

É uma poeta que escreve em curdo. Nascida em Kirkuk, no Curdistão iraquiano em 1967, Kajal Ahmad começou a publicar sua poesia na idade de 21 anos. Ela já publicou quatro livros: Benderî Bermoda (1999), Wutekanî Wutin (1999), Qaweyek le gel ev da,

(2001) e Awênem şikand , (2004). Kajal ganhou uma considerável reputação pelo seu trabalho admirável, comovente e desafiador em todo o universo da língua curda. Seus poemas foram traduzidos para o árabe, turco, norueguês e inglês.

Direções

Sempre que ele estava nas montanhas,

onde quer que ele tirasse os sapatos,

eles sempre apontavam para sua cidade

mas nunca pensou que isso significasse

que sua terra natal seria liberada.

Agora que ele está na sua cidade,

onde quer que ele deixe os sapatos,

eles apontam para terras além da sua

mas nunca ele sonha que um dia

poderá vir quando, sem ver

a miragem de que no exílio sempre vê,

sem qualquer direção dos sapatos,

ele viajará através do coração de seu país,

a loja o mito na caixa de madeira de sua avó

e, no porão de uma casa feliz,

fechar muitas portas coloridas sobre ele

como as portas de suas histórias de infância.

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Pássaros

De acordo com a mais recente classificação, curdos

agora pertencem a uma espécie de ave

é por isso que, ao longo das rasgadas, páginas amareladas

da história, eles são nômades marcados por suas caravanas.

Sim, os curdos são pássaros! E mesmo quando

não há nenhum lugar à esquerda, não há refúgio para a sua dor,

voltam-se para a ilusão de viajar

entre o calor e o frio

de sua terra natal. Então, naturalmente,

eu não acho estranho que os curdos possam voar.

Eles vão de país para país

e não podem realizar seus sonhos de sedimentação,

de formar uma colónia. Eles não constroem ninhos

nem mesmo em seu pouso final

eles visitam Mewlana para consultar a sua saúde,

ou curvar à poeira no vento suave, como Nali. *

* Refere-se a uma famosa linha de Nali, poeta do século 17:

Eu sacrifico-me a sua poeira - você vento suave!

Mensageiro familiarizado com toda a Sharazoor!

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Gravidez

Ao contrário de seus amigos,

ela não pode se gabar de uma cintura fina.

Seus quadris não balançam e balançam.

Ela não se atreve

a montar a roda

e o navio de Serchnar

como fazia quando ela estava noiva.

Ela está grávida

por isso que ela é mais bonita do que as meninas a sua volta,

mais bonita do que os homens que, à tarde

passar por seu lamento.

Entre as mulheres do bairro,

ela parece mais o amor-golpeado

e mais animados.

Olhando para ela

faz muito tempo para melancia.

E você aprende a sonhar

do choro de um bebê ou o riso

como você tricotar um meia

ou jumper um pouco.

Sua cintura não é tão fina

como uma harmônica mais.

O tempo para saias

se expande

e para jeans

desaparece.

Batom está agora ignorada

juntamente com saltos altos e espelhos.

Seus tempos áureos por usar

vestidos de baile e maiôs é longo.

Agora ela conversa

ao seu próprio ventre.

Sem saber de nós ou de si mesma.

Que Deus torne-o bom,

esta busca de nove meses

nas estradas da vida e da morte.

Que Deus faça-o bom,

este destino que as mulheres enfrentam.

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Mais generosa do que Miriam

Marias do meu país! Quando a morte se torna uma necessidade,

Vamos enfrentá-lo primeiro mães e não os nossos filhos.

Nossa nação está tão solitária

como o pai Adão foi

antes da fértil

chegada de Eva a mãe.

Nossa nação está solitária

e eu sou solitária.

O tédio cresceu

como fungo no meu coração

mas eu não estou cansada.

Meu sorriso, algumas vezes foi

como pão quente na boca,

agora ele enrola nas bordas.

Ah, os poetas, eu tenho sido

como uma mulher grávida

mas eu não aborto meus poemas

nem tem poesia abortada de mim.

Jesus, quando é que você vem?

Eu estou em pé no Sirat,

a ponto de cair da ponte.

Eu chorei tanto

na casa do amor e da poesia

que o conjunto de minhas lágrimas

é coberto de algas.

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Com ou sem poesia, eu estou esperando.

Esperando para atravessar, esperando por você.

Falando em vão e quem sabe

se é tudo sobre mim ou sobre a terra?

Depois de uma onda de náusea,

Você caiu da ferida de minha boca.

Você era uma folha de luz.

Após seu nascimento

palavras sangraram e nunca mais pararam.

Sangue fez de mim uma poeta,

a louca poeta Miriam.

Antes de você nascer, eu vim

e construí em mim uma ponte

entre a terra do meu coração

e o céu do seu crânio.

(O sangramento ainda continua -

será que para sempre?) Naquele tempo,

a cruz não o tinha encontrado ainda.

Ela procurou por toda parte.

Se eu soubesse que seria indelicado,

ali mesmo em seu nascimento,

Eu teria lhe dito para voltar

para o útero seguro de sua mãe.

Se eu soubesse que iriam chamá-lo

o Filho de Deus, eu nunca

teria deixado você vir em primeiro lugar.

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Como Deus pode ser o pai do meu filho

se eu nunca passei uma única noite

em seus braços? E se eu tiver,

por que me chamar a Virgem Mãe?

*

Diga-me, luz dos meus olhos!

quem você acha que é a mais pura,

eu ou Miriam?

Quem é mais no amor?

É a ferida no meu coração

mais profunda do que a dela?

Não é para eu dizer

mas você, a luz dos meus olhos,

ama a cantora, Jesus, me diga!

Não me chame de Miriam

você vai machucar o meu orgulho

e meu coração vai quebrar.

Certamente, como uma mãe, eu sou gentil.

Miriam e eu diferimos no seguinte:

se eu fosse incapaz de comprar

sua vida com a minha.

Eu preferiria ficar cega a manter

meus olhos eternamente abertos.

Se eu não podia ser crucificada

em seu lugar, como eu poderia sentar-me,

complacentemente em um canto?

E nisto, também, que diferimos:

ao contrário dela, eu não poderia desistir de você,

não para ninguém, nem mesmo a Deus -

o meu coração não me deixaria.

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Deus não é a mãe cujo coração

queima com piedade e que se aflige

com a perda de um filho.

A maternidade é uma triste sepultura

me tornando uma mãe

enquanto eu ainda era virgem.

Desde que dei à luz Cristo

você duvida de minha virgindade,

eleva suas facas, eu não me importo.

Jesus de areia ... Jesus, pai ...

O que estou fazendo aqui,

se não para expor as mentiras do mundo?

Eu não vou esperar por você para morrer.

Só desta vez, meu único filho,

em vez de manter sua cinza

e guitarra de luto,

abraçadas ao cadáver de sua mãe.

Eu vou morrer primeiro, eu vou ter certeza disso.

Eu não vou viver para ver o dia

que a sua morte estará no meu colo.

Versão Antônio Perin

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Flausina Márcia

Flausina Márcia da Silva poeta nascida em Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na

Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou entre outros livros: Vagalume e Sua Casa Minha Cruz.

Feliz Ano TrezeFeliz Ano TrezeFeliz Ano TrezeFeliz Ano Treze

Esse ano, que a chuva não recebeu,

entrado seco, vai querer lágrimas.

Esse ano, ai, que não amadureceu,

sofre verde de desencanto amarelo.

Esse ano joga pedras, búzios, cartas,

embaralha presságios, confunde a razão.

Esse ano, bem que o calendário podia

passar sem ele,

dar a volta nele,

desmenti-lo.

Esse ano, que eu não pedi aos deuses,

chega pagão, deve tudo pra todo mundo.

Esse ano, ai, com essa terminação,

é sem reticências, é tresandado.

Esse ano, bem que vou gostar de

passar sem ele,

dar a volta nele,

desmenti-lo.

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César Cantoni

Nasceu em La Plata (1951), Argentina, onde vive. É

autor, dentre outros, de Confluências (1978), Linaje humano

(1984), Continuidad de la noche (1993), La salud de los

condenados (2004), Intemperie e otros poemas (2006) e El fin

ya tuvo lugar (2012). Seus poemas foram traduzidos para o

inglês, francês, italiano e catalão. Para o professor, escritor e

ensaísta Osvaldo Picardo, em César Cantoni “o poema desata a

consciência dos fenômenos da contemporaneidade que, em sua

manifestação concreta, contradizem os grandes relatos da

história e da metafísica.” Segundo Luis Benítez, “ao ler Cantoni,

as velhas e usadas palavras catellhanas parecem renovadas, mais

vigorosas, mais significantes que quando estão inseridas em

outros discursos.” Trata-se de um poeta cuja proposta estética

é ressonância de uma visão aguçada da realidade de seu país,

em cuja arte uma visão crítica (sem engajamento ou

sectarismo) não se afasta de uma pulsão lírica nem de uma

inquietação existencial e metafísica. Eis uma poesia de forte

conteúdo reflexivo e profunda imersão nos dilemas humanos,

pois como já reconheceu José Di Marco, “o realismo em

perspectiva faz da poesia de Cantoni um ato político. Poesia

política, mas não panfletária, pedagógica ou moralizante.”

Jantávamos esta noite

a Néstor Mux

Jantávamos esta noite em uma taberna

quando uma ratazana desceu do teto,

atravessou rapidamente o salão

e fugiu pela porta da cozinha.

“É só uma entre tantas”, disse o poeta Néstor Mux,

enquanto a menina da mesa vizinha

saltava e gritava horrorizada

em um surto de histeria.

Quem sentia mais pavor? A menina

ou a ratazana em sua fuga desesperada?

Pouco acrescenta saber. Vivemos em um mundo estranho,

envolvido pela desconfiança coletiva.

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Veterano das Malvinas

a Gustavo Caso Rosendi e Martín Raninqueo

Não é estranho que uma bomba inimiga

me desperte no meio da noite,

enchendo de fragmentos minha lembrança.

Felizmente, a mulher que dorme comigo

tem um ar sereno e protetor

e seu contato liberta-me do pesadelo.

Entrincheirado nos lençóis

Afundo, então, meu rosto, no sulco de seus peitos

e novamente durmo como um menino.

Até que outra bomba venha despertar-me.

No dia de São Patrício

No Dia de São Patrício,

enquanto bebo com os irmãos irlandeses

que habitam este solo – mulheres e homens

convocados pelo padroeiro da ilha –,

e brindo em honra dos poetas caídos

nas cruzadas de libertação,

começando pelo bravo Pádraig Pearse,

eu te declaro minha guerra sem quartel e para sempre,

Inglaterra.

Às vezes me pergunto

Às vezes me pergunto

se de tanto ler Williams

não acabarei escrevendo como Williams.

A mim, no fundo,

gostaria escrever de um modo pueril,

e inocente como Cummings.

Quanto ao resto, não se incomodaria

que alguém dissesse alguma vez

que escrevo como Sandburg;

Tradução Ronaldo Cagiano

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Corsino Fortes

Corsino António Fortes (São Vicente, 1933) é um escritor e político cabo-verdiano. É licenciado em Direito, pela Universidade de Lisboa (1966). Integrou vários governos na república de Cabo Verde, país de que foi Embaixador em Portugal. Presidiu à Associação dos Escritores

de Cabo Verde (2003/06). Autor de obras como Pão e Fonema (1974) ou Árvore e Tambor (1986), a sua obra expressa uma nova consciência da realidade cabo-verdiana e uma nova leitura da tradição cultural daquele arquipélago.

Emigrante

Todas as tardes o poente dobra

o teu polegar sobre a ilha

E do poente ao polegar

cresce

um progresso de pedra morta

Que a Península

Ainda bebe

Pela taça da colónia

Todo o sangue do teu corpo peregrino

Mas quando a tua voz

for onda no violão da praia

E a terra do rosto E o rosto da terra

Estender-te a palma da mão

Da oral maritima di ilha

De pão & pão feita

Ajunturás a última fome

à tua fome primeira

Do alto virão

rostos-e-proas-da-não-viagem

Assim erva assim mercuro

Arrancar-te as cruzes do corpo

Page 15: Chicos 38

O grito das mães leva-te

agora

À sétima esquina

onde a ilha naufraga

onde a ilha festaja

A sua dor de filha

E a tua dor de parturiente

Que toda a partida É potência na morte

todo o regresso É infância que soletra

Já não esperamos o metabolismo

Polme de boa fruta fruta de boa polpa

A terra

aspira

teu falo verde

E antes que teu pé

seja

árvore na colina

E tua mão

cante

lua nova em meu ventre

Vai E planta

na boca d’Amílcar morto

Este punhado de agrião

E solver golo a golo

uma fonética de frescura

E com as vírgulas da rua

com as sílabas de porta em porta

Varrerás antes da noite

Os caminhos que vão

até às escolas nocturnas

Que toda a partida é alfabeto que nasce

todo o regresso é nação que soletra

Aguardam-te

os cães e os leitões

da casa de Chota

que no quintal emagrecem de morabeza

Page 16: Chicos 38

Aguardam-te

os copos E a semântica das tabernas

Aguardem-te

as alimárias

amordaçadas de aplauso e cana-de-açúcar

Aguardam-te

os rostos que explodem

no sangue das formigas

novos campos de pastorícia

Mas

quando o teu corpo

sangue & lenhite de puro cio

Erguer

Sobre a seara

A tua dor

E o teu orgasmo

Quem não soube

Quem não sabe

Emigrante

Que toda a partida É potência na morte

E todo o regresso É infância que soletra

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Emanuel Medeiros

Emanuel Medeiros Vieira nasceu em Florianópolis, SC, em

1945. Formado em Direito pela UFRGS (1969), foi

cineclubista, professor, crítico de cinema, editor, vendedor de

livros, jornalista e funcionário público. Ativo militante da

política estudantil, foi dirigente do IEPES, embrião da

Fundação Pedroso Horta.

Redator de discursos parlamentares, foi membro do conselho

editorial do jornal “Movimento”, e correspondente em SC do

semanário “Opinião”. É detentor de diversos prêmios

literários nacionais. Tem 17 livros publicados.

Inventar

Para Eduardo Dutra Aydos

“Escrevemos/Porque sabemos/que vamos morrer.//Escrevemos/porque não sabemos por quê.” (“Pedra” – Francisco Marcelo Cabral)

Quisera inventar o tempo

seremos todos esquecidos –

o oblívio no final da estrada.

Distraímos-nos comprando coisas.

Mal fechamos os olhos

funda-se o esquecimento?

Sumimos do mundo.

(Antes: volúpia para ser celebridade, sonhando com vidas napoleônicas.)

Ai dos danados que resistem aos apelos e rompem com o dogma.

Quisera inventar o tempo.

Desterro!

“Vida é o que está acontecendo enquanto você está ocupado em fazer grandes planos”

(“Life is what happens to you while you’re busy making other plans” – John Lennon

(em tradução livre)

Ele – o Tempo –

Senhor do Destino – nos engole.

Não: desisti de inventar o tempo.

Basta o dia – levando à eternidade.

Mas faça sempre com Fé.

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Antônio Perin

Nascido em Itaobim, Vale do Jequitinhonha, migrou para Cataguases, onde virou baiano, viveu alguns anos no Rio, morou um bom tempo em São Paulo, e, voltou para

Cataguases, onde vive e escreve. Com sua poesia, colabora e participa de nossas publicações aqui no Chicos.

As reticências do tempo

Pendurado na parede

a presença física

das horas solidifica

o silêncio do tempo.

Em seu repetitivo

e metálico ruído

transforma o tempo

em algo circular.

Dita o ritmo da vida

lembrando

a cada tic e a cada tac

o princípio do fim.

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Ave Rosália

Rosália

lia

lia

e relia

lia orações de fé

num rosário ao santo

Antônio

esquecendo que santo

é o Lucas.

Ave Rosaria!

Quem cantaria

uma rosa

numa ária?

em transe

numa fuga de Além

lá da Viçosa feito rosa ria.

Acorda Rosália

antes do último

acorde da cantoria.

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Ascânio Lopes Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá MG) em 1906, vindo com cinco meses para Cataguases. Em 1925 foi para Belo Horizonte, onde estudou Direito. Morreu em 1929, aos 22 anos, o que decretou o fim da revista Verde. Publicou apenas Poemas cronológicos (ao lado de Enrique de Resende e Rosário Fusco). Em 1967, sua obra foi organizada

por Delson Gonçalves Ferreira no livro Ascânio Lopes: vida e poesia. Também foi publicada em 1998 a antologia Ascânio, o poeta da Verde, organizada por Joaquim Branco. Em 2005, Luis Ruffato organizou e publicou Ascânio Lopes, todos os caminhos possíveis onde incluiu poemas, ficção, artigos, comentários, resenhas, além de fotos do poeta.

Cataguases

Ni Belo Horizonte, colcha de retazos iguales,

ciudad europea de calles rectas, árboles correctos,

casas simétricas,

crepúsculos bonitos, siempre bonitos;

Ni Juiz de Fora. Ruido. Rumor.

Pitos. Klaxons.

Ciudad inglesa de cielo humoso, lleno de chimeneas negras;

Ni Ouro Prêto, ciudad muerta,

Bruges sin Rodenbach,

donde estudiantes pasatistas continúan la tradición de las cosas

[ que ya olvidamos;

Ni Sabará, ciudad reliquia,

donde no se puede tocar, para no derrumbar el pasado

[ ordenadito;

Ni Estrêla do Sul, que sueña con tesoros,

tesoros en los cascajos extintos de su río barroso;

Ni Uberaba, ni, ni, ciudades arribistas de gente que no

[ pretende quedarse.

No-o! Cataguazes... Hay cosas más bellas y serenas ocultas

[ en tus flancos.

En tus calles juega la inconciencia de las ciudades

que nunca fueron, que no piensan ser.

No sabes, no sé, nadie comprenderá jamás lo que

[ deseas, lo que serás.

No eres del pasado, no eres del futuro; no tienes edad...

Sólo se que eres

la más minera ciudad de Minas Gerais...

Ni geometría, ni estilo europeo, ni invasión americana

[ de bungalós modernos.

Page 21: Chicos 38

Derniecri

Tus casas son largas casas mineras hechas en previsión de

muchos huéspedes.

No hay en ti el terror de las ciudades plantadas en la selva virgen.

Ni el rugir de los ómnibus atrasados, llenos de gente con prisa.

Ni los dísticos de aquí estuvo, aquí sucedió.

Ni el tintín áspero de los panaderos.

Ni la bocina incómoda de los tintoreros.

Tus lecheros aún llevan la leche en borricos,

los panaderos dejan el pan en la ventana (ciudad minera).

Tu amanecer es suave.

Qué alegría tener sólo gente conocida, hace que tu habitante se vuelva

[ a saludar a todos los que pasan.

Delicia de no encontrar extranjeros de mirada aguda, experta

[ mano, que sospechan riquezas en las tierras.

Alegía de los Fordes jugando (son dos) en la plaza.

(Después dormirán juntos en un mismo garaje).

Jacaré !

João Arara!

João Gostoso !

tus tipos populares.

La muchachada les tira piedras y ellos se vuelven imprecando.

Rondas alegres de niñas en las calles, por las tardes, sin peligro

[ de vehículos,

papagayos que se estorban en los cables de luz, globos que suben,

fogatas obligatorias en las fiestas de llegada del jefe político.

Jardines donde niñas ariscas pasean media hora sólo antes

[ en el cine.

Aire tibio y sensual de voluptuosidad hermosa que vibra

en tus tardes lluviosas, cuando las goteras mojan a los

[ transeúntes

y golpean isócronas en los paseos frustrados.

Hay en ti la delicia de la vida que pasa porque vale la pena pasar,

que pasa sin darse cuenta, sin suponer que se va transformando.

En ti se duerme tranquilo sin guardias nocturnos.

Mas con el cricri de los grillos,

el ranran de los sapos,

el sueño es tranquilo como el de un niño de pecho.

Vale la pena vivir en ti.

Ni inquietud,

ni peso inútil de recuerdos

Mas confianza que nace de las cosas que no cambian bruscamente,

ni permanecen eternas.

Tradução para o espanhol de Alberto Acosta

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Emerson Teixeira Cardoso

Poema que não realizei

Poema não realizado

É um caso de polícia

Interrogar a palavra

e encontrar uma pista

É caso que se resolva?

Contanto que se desista

contanto que se decida.

Pois é descendo no poço

No fundo do poço/vida

Poema que que já não se faz

menos que se investiga

e a dor é malograda

os poetas que o digam

pois quando vai poetar

na rima que o bendiga

vá o poeta buscar

a frase na sua escrita

o poema não achado

na alma que investiga

Page 23: Chicos 38

Tomas Tranströmer

Tomas Tranströmer é um poeta, tradutor e psicólogo sueco nascido em Estocolmo em 15.04.1931. Sua poesia tem uma grande influência na Suécia e em todo o mundo, sendo ele o poeta sueco mais traduzido: os seus poemas estão traduzidos em mais de trinta línguas. Recebeu numerosos prémios literários, como por exemplo o Prémio Literário do Conselho Nórdico em 1990 e o Prémio Nobel da Literatura em 2011. Tranströmer iniciou-se na poesia aos 23 anos de idade. O seu primeiro livro intitulava-se 17 dikter (17 poemas).

A maior parte da sua obra é escrita em verso livre, embora também tenha feito experiências com linguagem métrica. Foi psicólogo de profissão até 1990. Redigiu cerca de uma quinzena de obras numa longa carreira dedicada à escrita. Em 1990 foi vítima de um acidente vascular cerebral que o deixou em parte afásico e hemiplégico. Continuou a escrever e publicou três obras, como O Grande Enigma: 45 Haikus.

Funchal

Na praia, o restaurante, qual simples cabana

levantada por náufragos. Muitos dão meia-volta ao

chegar à porta, mas não os pés de vento vindos do

mar. Num compartimento fumegante, um vulto, de

pé, frita dois peixes segundo uma antiga receita do

Atlântico: pequenas explosões de alho, azeite que

ensopa rodelas de tomate. Cada garfada diz-nos que o

oceano nos quer bem, é um canto a meia voz vindo do

profundo. Olhamos um para o outro, ela e eu. É como

subir por aquelas encostas acima, cobertas de flores

silvestres, sem acusar o menor sinal de fadiga. Já

vivemos tantas experiências juntos, recordamos nós,

até momentos de que não éramos especialmente

merecedores (como quando nos pusemos na fila para

dar sangue ao gigante do bem-estar — ele tinha

ordenado transfusões), acontecimentos que nos

teriam separados se não nos tivessem unido, e

recordámos casos que esquecemos juntos — mas que

não se esqueceram de nós! Foram pedras, umas

escuras, outras claras, pedras de um mosaico

delapidado. E agora sucede isto: os cacos que

esvoaçaram reúnem-se, o mosaico fica restaurado.

Fica à nossa espera. Da parede do hotel refulge um

design violento e terno, talvez seja até um rosto, não

conseguimos aperceber-nos tal a pressa com que nos

livrámos das roupas. À tardinha, saímos. A pata

enorme, de um azul-escuro, que é o cabo, parece ter

sido atirada assim para o mar. Entramos no

redemoinho de gente: encontrões amistosos, suaves

controles, toda a gente a falar com vivacidade o

idioma estrangeiro. “Ninguém é uma ilha.”

Fortalecemo-nos com os outros, mas também com

nós próprios. Com aquilo que, dentro de nós, o outro

não vê. Aquilo que tem o seu igual só em si mesmo. O

paradoxo mais profundo, a flor que brota do chão da

garagem, o ventilador voltado para o negrume

benéfico. Uma bebida efervescente num copo vazio.

Um altifalante que emite silêncio. Um atalho que fica

intransitável à medida que por ele avançamos. Um

livro que só pode ser lido nas trevas.

Page 24: Chicos 38

Antônio Jaime

Nome da Rosa em JF

Fosse eu um bom menino, teria ido estudar “pra padre”,

como diziam na roça. Mamãe e outras mulheres viviam

insistindo. Uma freira chegou a fazer uma apologia da

vida monástica, mostrando, ao final, uma foto de Pio XII

e dizendo que eu poderia chegar lá. Já padre Ernesto,

que, entre outras, me batizou, sequer tocava no assunto,

dizia que vocação tem que brotar da pessoa. O diabo é

que eu não sabia o que significa vocação, e tome culpa.

Em retrospecto, poderia ter sido proveitoso, no

mínimo, eu teria uma cultura clássica, que tanta falta

me faz. Feito um primo que chegou a usar batina, mas,

na Hora H, trocou-a por uma moça bonita e traz seu

grego, latim e outras sabenças na língua e na cabeça. É

juiz de direito e deu aos filhos a melhor educação,

maneira mais eficaz de resolver os problemas terrenos.

Estes, por sinal, são prioridade entre os protestantes,

cujos países são os mais eficientes, a começar pela

erradicação do analfabetismo, para todos lerem a Bíblia.

De forma que meu único contato com Seminário

foi quando passamos uma semana naquele que fica à

entrada de Juiz de Fora. Exibimos para os padres o

filme Francisco, arauto de Deus, de Roberto Rosselini e

umas coisas que fazíamos, inclusive um tal Romance

Louco, do qual não faço mais a menor idéia. Encenado

no morro atrás do prédio, onde mulher não podia

entrar, mas Dodoca, então futura senhora Paulo

Martins, líder do grupo, deu um jeitinho e participou.

Lugar de mulher, lá, era na cozinha. Também deram

uma namoradinha, morro acima, por entre as árvores e

houve outras heresias. Coisas de jovens, Deus perdoa.

Da parte deles, padre Lara tocava órgão e disse que este

antes fora metodista, mas se converteu. Uns noviços

tocavam numa bandinha, pintavam quadros sacros e

havia um poeta, de olhar beatifico. “A floresta é linda/ao

amanhecer”, um de seus versos. Um deles me deu uma

carona em sua lambreta e esta não queria pegar. Depois

de várias tentativas, soltou um sonoro “Merda!”, mas

bateu incontinenti na boca e corrigiu: “Jesus!”. E a

lambreta pegou.

No vigor da juventude, e rigor do inverno,

mergulhávamos às seis da manhã numa piscina natural,

água da montanha, estupidamente gelada. Já a cerveja,

feita lá mesmo, segundo receita holandesa, era sem

gelo. Fumavam cigarros de palha e mantinham um

viveiro de cobras que pegavam para enviar ao Butantan.

Não participamos de ofícios religiosos e depois

soubemos que o da lambreta também trocou a batina

por uma mulher.

O mais impressionante, lá, mistério dos mistérios

era o fruto proibido da biblioteca deles, um livro da

Idade Média, envelopado e costurado em couro, só

poderia ser aberto com o nihil obstat do Vaticano. O que

poderia inspirar a Umberto Eco um novo O Nome da

Rosa. A mim, lembrou “... et antiquum documentum...”,

verso de Tantum Ergo, o cântico dos cânticos

gregorianos, creio que anterior ao ano 1000. Era o hino

que mais me aproximava de um estado de espírito, por

assim dizer, elevado, o que só se sente diante da grande

arte.

Daí, concluo: a Igreja teve grandes artistas a seu

serviço, em música e artes visuais, e os dispensou. A

liturgia virou pagode, azar da humanidade.

Page 25: Chicos 38

José Antonio Pereira

Uma carta e seus destinos

Atravessou a praça,

absorto, cabeça no desastre da

véspera. Tudo errado.

Planejara detalhe a detalhe.

Comprara até um botão de

rosa. A rosa, como ele, sofreu

com a cena. Foi esmagada pela

mão esquerda. Seus espinhos,

reagindo à violência,

sangraram-na em vários

pontos.

Uma buzina, um palavrão, vê-se

no meio da rua. Volta, senta-se

em um banco da praça vazia.

Uma folha de amendoeira, ao

vento, cai aos seus pés, olha-a

detidamente. Forma, cor,

volume, se soubesse desenhar?

No banco uma folha de papel

contida em suas dobras,

vincadas com esmero. Abre-a.

É uma carta. Linhas de uma

escrita suave, letra de calígrafo.

Percorre-a, linha a linha, sem

se atinar ao texto. Quem seria o

autor? Como seria o dono de tal

mão? Mão hábil, grande

desenhista, não seria um

oriental?

O gosto pela delicadeza da

escrita japonesa o leva a

imaginar o nanquim secando

no papel arroz. Dobra a carta

novamente, coloca-a no mesmo

lugar. Volta ao seu infortúnio.

Não relevaria mais uma

traição...

Não era a primeira vez que a via

no portão aos beijos com outro.

A paixão toma o outro rumo.

Chegara a hora de um ponto

final. Mas como? Nunca teve

coragem de encara-la olho no

olho.

Volta o olhar à carta, ela

permanece ali. Sedutora,

acaba o atraindo

definitivamente. Com medo

põem-se a ler. Seu rosto

avermelha-se a medida que

avança pelo texto. Tudo que

queria dizer estava ali. Escrito

com elegância e refinamento.

Sente-se fortalecido e toma a

decisão. E sai rumo ao seu

destino, sugerido pela carta.

Na capela mortuária dois

corpos são velados. Todos sem

entender, se indagavam sobre o

porquê de dois suicídios no

mesmo dia. De um lado, uma

mulher, tendo ao teu lado, de

pé, um choroso enamorado que

lamenta ter perdido a última

carta de sua amada. Doutro um

homem, em sua solidão

mortuária, tem sentada a certa

distância uma jovem que o

excomunga sem parar.

– Babaca, aquela carta foi

escrita por uma mulher. Ele

com certeza me traía com ela.

Covardão deve ter pedido a ela

para escrever a carta. Ainda

teve a petulância de dizer que

me amava e era fiel. Foi tão

covarde que sem coragem de

me encarar preferiu suicidar-

se.

Page 26: Chicos 38

Eltânia André

É uma escritora cataguasense, residente em São Paulo SP. Autora dos livros de contos Meu nome agora é Jaque (contos, Ed. Rona, BH, 2007) e Manhãs Adiadas (Prêmio

ProAC da Sec. de Cultura de SP 2011, Dobra Editora, SP, 2012). Manhãs Adiadas, está entre os trabalhos selecionados pelo prêmio Portugal Telecom 2013.

Antes de ler “Divina Commedia”

Fui a Florença não apenas pelo prazer

turístico ou gastronômico, mas como se houvesse uma

cisão entre passado e presente e eu pudesse separá-

los. Adentrar o mundo medieval, apesar dos entraves

psicológicos das grifes e dos casacos de peles que

abrigavam os corpos das turistas contra o frio intenso.

Um grito vindo de Trieste: “o presente imperioso

ressurge e ofusca o passado. Salve, Svevo! Eu queria

sentir talvez um cheiro, uma sensação, a magia de dar

de cara com o mundo dantesco. Estávamos, diziam: no

berço do Renascimento, eram os guias com suas

sombrinhas-tochas marcando o seu gado. Embutida

na experiência metafísica, o futuro da leitora: aquecia-

me mergulhar nas páginas da Divina Comédia. Eu e

ele, a sós. Florença, a capital da Toscana; Firenze, a

pátria de Dante.

Construíram o túmulo do poeta, mas ele não

retornou nem mesmo depois de morto, seus restos

mortais estão em Ravena. Na Basílica Santa Cruz, a

inscrição: “Onarate l’altissimo poeta” – “Honra ao

poeta mais exaltado”. A cidade surpreende, emociona.

Nas constantes idas e vindas para o Hotel Regina,

acomodação humilde, perdia-me pelas ruas da cidade;

andava sem rumo, buscando conhecê-la sem

estratégias, livre. Cadê Dante? Imaginava-me

tangenciando seus passos. Um dia, passei num

supermercado e comprei uma caixa de morangos,

poucos metros e estava novamente na Ponte Vecchio, o

rio Arno em sua imponência milenar, imaginei: o

encontro fugaz de Dante e Beatrice Portinari. Ela

acena a cabeça, os lábios escondem o sorriso aberto,

passos lentos; ele não reconhece-a de imediato, tão

miúda; tumulto de vozes e máquinas fotográficas; eu a

chamo, mas vã tentativa, logo perdem-se no espaço.

Dante, comprometido desde os doze anos com Gemma

Donati, viriam os filhos Pietro, Jacopo e Antônia, o

amor mítico destinado a eternizar-se nas palavras, no

livro, no Paraíso. Não adiantaria o reencontro naquela

tarde. Às vezes, parada para um chocolate quente ou

um bom vinho, sonhar, ver a orquestra de Toscana e o

Nanni Moretti com seu discurso em favor de si mesmo,

viagens de trem, Bolonha e tantas outras viagens

rápidas, neve em Siena. Ah, Siena! Mas, tinha que

voltar. Aqui estou!

Com o livro em minhas mãos, tradução de Italo

Eugenio Mauro, editora 34. Cheira a novo. Desafia-me.

Entretanto, Carpeaux diz-me com convicção: esta não

é como as outras epopeias, você lerá como se fosse

obra de hoje, não se intimide. Animo-me mais. Detive-

me, basicamente, nas orientações de Otto Maria

Carpeaux, e aula introdutória do professor Giuseppe

Mazzota da universidade Yale. Muitos já sabem que a o

nome original da obra era Comédia, o adjetivo

“divina” foi acrescentado posteriormente. No título já

está implícito que a viagem poderá ser permeada de

obstáculos, mas terá um final feliz. Pode-se considerar

que além de épico é também uma obra autobiográfica.

Mazzota sugere que pensemos no grande poema como

uma enciclopédia, como um círculo de conhecimento

que é estruturada para educar.

Page 27: Chicos 38

Autobiográfica, porque também diz do processo pelo

qual Dante passou para conhecer o mundo; o

significado de ética como a visão de si mesmo e do

mundo ao redor. É Dante que narra todo o

percurso, Paraíso, Purgatório e Paraíso, guiado pelo

poeta romano. Ele, homem político, imagina uma

viagem imaginária pelo território de Deus e se

propõe a falar sobre o percurso; a política e a

retórica, problemas vistos como de fala, de

argumentação.

Há contradições na biografia de Dante, vou

considerar a que mais me surpreendeu. Nasceu em

Florença em 1265, apesar de ter alegado nobreza, ele

era de família humilde. Envergonhava-se de seu pai,

que vivia constantemente envolvido com

empréstimos a juros, era um agiota daquela época,

por isso não citava o pai. Quando tinha oito anos de

idade, morre sua mãe e aos nove conhece Beatrice,

mulher que nunca mais esqueceu. Numa análise

psicológica, o seu amor pela vizinha tem o DNA do

amor maternal, o amor generoso; a protetora que

recorre a Virgílio para guiá-lo em sua viagem e a

representação do próprio Paraíso. Outro encontro

importante na história de Dante foi seu ingresso na

Escola de Florença. Foi lá que ele conheceu seu

inesquecível professor: Brunetto Latini; dele vai

falar para sempre, apesar de mandá-lo para o

Inferno – lugar onde revê o mestre querido.

Brunetto civilizou a cidade de Florença com a arte da

retórica, persuadia o Parlamento, um rétor, grande

orador, estudioso de Cícero e considerado um

Embaixador para Florença. Com sua morte, Dante

segue seus passos e entra para a política. Mazzota

considera esse o grande erro de Dante. Erro porque

ele tem que enfrentar duras batalhas partidárias

entre os Guelfos com total lealdade à Igreja –

divididos em duas facções: os brancos e os negros; e

os Gibelinos leais ao Império. Dante, a exemplo de

Brunetto, torna-se Embaixador para Florença.

Durante conflitos políticos, em 1302 vai ao encontro

do Papa em uma embaixada e numa mais volta à sua

terra natal. Exílio. Armações políticas levaram-no

ao exílio, banido da cidade pela qual tinha tanto

afeto, suas propriedades confiscadas, advertido que

seria condenado à morte, caso retornasse a

Florença. Na era medieval, o exílio era recebido

como uma punição extrema, severa, pois se

considerava que o valor da pessoa era proporcional

à posição que ocupava dentro da cidade. Se expulsa,

a pessoa não valia nada. Ele vaga de uma cidade a

outra. Apesar do sofrimento, o afastamento

compulsório também é seu renascimento. Longe de

sua cidade, ele defendia mais lealdade aos interesses

e filosofias partidárias. Não precisava mais ser um

Guelfo ou um Gibelino, podia ser o peregrino do

poema. Livre dos entraves internos dos partidos

políticos, podia almejar uma reflexão transcendente

sobre o mundo, sobre a política, sobre os problemas

da cidade. O exílio é a história do poema, o homem é

removido da sua cidade; em conseqüência passa a

enxergá-la melhor. A Divina Comédia é também um

projeto ousado de linguagem, numa época em que

tradicionalmente só se escrevia em latim, Dante

compõe sua obra em italiano, renovando a

literatura, impondo sua língua pátria. A esperança

de Dante de ver as portas de Florença abertas para

ele, novamente não se concretizou nem mesmo

quando concluiu a sua Comédia. Ele morre em

Ravena, sem conseguir retornar a Florença.

Agora, posso sentar-me na cadeira e seguir a partir

da página 29. A primeira palavra em letras

maiúsculas: I N F E R N O.

Page 28: Chicos 38

Adelto Gonçalves

Adelto Gonçalves é mestre em Língua Espanhola e

Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura

Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Gonzaga, um Gonzaga, um Gonzaga, um

Poeta do IluminismoPoeta do IluminismoPoeta do IluminismoPoeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),

Barcelona Brasileira Barcelona Brasileira Barcelona Brasileira Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,

Publisher Brasil, 2002) e Bocage Bocage Bocage Bocage –––– o Perfil Perdido o Perfil Perdido o Perfil Perdido o Perfil Perdido (Lisboa,

Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

Claudio Sesín:

o poeta dos ocasos catamarquenhos

I

Quem estuda as letras hispano-americanas nas

universidades brasileiras, dificilmente, entra em

contato com a literatura contemporânea dos países

vizinhos. É o que se dá com a literatura argentina, da

qual se conhece Jorge Luis Borges (1899-1986), Adolfo

Bioy Casares (1914-1999), Julio Cortázar (1914-1984),

Roberto Arlt (1900-1942), Horacio Quiroga (1879-

1937), Oliverio Girondo (1891-1967), Juan José Saer

(1937-2005), Alfonsina Storni (1892-1938), Juan

Guelman (1930), Rodolfo Alonso (1934) e outros, mas

quase nada da geração mais recente. E não se diga que

seja uma geração muito jovem porque a maioria já

passou dos cinqüenta anos de idade.

Não se pode jogar a culpa sobre os professores. Se

hoje este articulista conhece uma boa parte de autores

argentinos só tem a agradecer ao seu orientador no

mestrado, o professor Mario Miguel González (1938-

2013), nascido em Alta Gracia, Córdoba, que sempre se

preocupou em falar dos poetas que apareciam na

Argentina, ainda que estivesse radicado no Brasil desde

que fora contratado pela Universidade de São Paulo

(USP) em 1968 e fosse brasileiro naturalizado. Com o

desaparecimento de González em fevereiro último,

perderam a literatura argentina e a hispano-americana

talvez o seu maior divulgador no Brasil.

Esse desconhecimento pode ser atribuído à

devastação cultural promovida pelas ditaduras

militares de direita que

infelicitaram tanto Brasil como Argentina e à crise

econômica que levou ao fechamento de vários

suplementos e revistas culturais tanto lá como aqui,

resultado talvez do empobrecimento intelectual das

classes médias. Na segunda metade da década de 1970,

o Versus, de São Paulo, jornal-tablóide cultural criado

pelo jornalista Marcos Faerman (1943-1999), era uma

espécie de filhote da revista de crítica cultural Crisis,

que circulou em Buenos Aires de 1973 a 1976 e teve em

sua direção, primeiro, Ernesto Sábato (1911-2011) e,

depois, o uruguaio Eduardo Galeano (1940), que, em

1976, acossado pelo regime do general Jorge Rafael

Videla, transferiu-se para Barcelona e de lá enviava

colaborações para o Versus.

Àquela época, diga-se de passagem, havia na

Argentina, ao contrário do Brasil, pelo menos alguns

empresários que tinham preocupações culturais e

praticavam o mecenato. Era o caso do empresário,

advogado e engenheiro-agrônomo Federico Vogelius

(1920-1986), que fundou a Crisis à época do retorno do

peronismo ao poder e a manteve até que a ditadura

militar o atirou ao cárcere por três anos, período em

que passou por várias sessões de tortura. Em 1986,

Crisis voltaria a circular, também por empenho de

Vogelius, mas por poucos meses. Já as despesas de

Versus saíam das economias domésticas de Faerman e

do seu salário como repórter do Jornal da Tarde, de

São Paulo.

Page 29: Chicos 38

II

Mas a que vêm estas reminiscências? Vêm a

propósito de dizer que, tal como no Brasil de hoje, há

uma poesia em grande efervescência na Argentina e que,

da mesma forma, é pouco conhecida porque,

decididamente, houve em ambos os países um

empobrecimento cultural avassalador. Entre os nomes

que constituem a nova poesia argentina, pode-se citar

Claudio Sesín, Eduardo Dalter, Arturo Herrera, José

Emílio Talarico, Sofía Vivo, Alejandro Acosta, Mirta

Popesciel, Daniel Chirom, Ricardo Ruiz, Elizabeth

Molner, Gisele Rodríguez e outros.

Um poeta que constitui um exemplo dessa nova

poesia argentina é Claudio Sesín (1959), praticante de

“uma poética renovadora, que retoma o projeto lírico,

sem abandonar o compromisso com a crítica social”, na

definição do poeta e crítico Ronaldo Cagiano, um dos

poucos que têm tido a preocupação de reconstruir as

pontes culturais com a Argentina e outros países latino-

americanos.

Poeta de Catamarca, região noroeste da Argentina,

vizinha a Oeste do Chile, de paisagens montanhosas e

crepúsculos deslumbrantes, cuja capital San Fernando

del Valle de Catamarca fica a mais de mil quilômetros de

Buenos Aires, Sesín sempre foi um poeta cercado pelos

cumes nevados da cordilheira e isolado em sua

província. Como se tivesse optado por viver um desterro

permanente e que, por isso, reluta em largá-lo. Até

mesmo quando sai de sua terra, a viagem é parte do seu

exílio. É o que diz no poema “El árbol” que faz parte de

seu livro El Signo del Crepúsculo (Buenos Aires,

Editorial Dunken, 2006):

Cuando uno se dirige a la frontera,

el viaje es una parte del exilio. (....)

(....) Sentir y hasta querer este destierro.

El hombre se acostumbra a la tristeza.

Um árbol infinito con ramas de tinieblas

ensombrece la ausencia, la apacienta.

Donde voy a llorar, entre qué brazos?

Siempre es llorar por uno,

este viajar en sombras por la niebla.

III Como observa o poeta Arturo Herrera no prólogo

que escreveu para este livro, a poesia de Sesín é

exatamente oposta à retórica e contorções lingüísticas

que se vê em demasia na poesia pós-moderna. Para ele,

este livro deveria ter como título Libro de la

Permanencia ou apenas Permanencia porque “a

maioria das composições sustenta este conceito como

uma solitária pedra na

palma da mão aberta e ao seu redor se modulam as

distintas sensações do tempo”. O título do livro, no

entanto, provém do poema “El signo del crepúsculo”

que fecha a obra e que, em sua estrofe final, diz:

(...) Hoy me dejo llevar a la extensión del tiempo

y voy, un peregrino de mi suerte,

buscando qué lugar, qué detalle en penumbras

en quién sabe qué imagen, qué piel o qué tristeza,

esta felicidad por los ocasos.

De fato, a passagem do tempo parece fascinar o

poeta e constitui palavra-chave de El Signo del

Crepúsculo, ao lado do sentimento de perda que

acompanha o homem quando encara o ocaso de sua

vida e a inutilidade de acumular tesouros na terra,

como se pode ler também no poema “Los comediantes”:

(...) A veces creo que el tiempo que nos lleva

es un viejo gitano en sus caprichos,

que nos compra y nos vende con sus dichos,

y tan sólo nos deja en nuestras manos,

un sueño sin edad de algún verano

y el volver a vibrar del precipicio. (...)

IV Claudio Sesín nasceu em Villa Dolores, Valle

Viejo, mas passou toda a sua infância em Pomán,

província de Catamarca. Foi em 1983 que começou a

publicar seus escritos em jornais de Catamarca,

especialmente poesia, prosa poética e relatos breves.

Desde 1986, integra o Movimento de Escritores pela

Liberação (MEL), de Córdoba, e em 1987 passou a fazer

parte da redação do periódico cultural El Cronopio,

daquela instituição. De 1996 a 1997, colaborou com as

revistas Cain e Gaia, de Catamarca, e Cultura Abierta,

de Buenos Aires.

Em 1993, publicou o seu primeiro livro de poesia,

La Barbarie, edição de autor. Em 1997, publicou o seu

segundo livro, El Círculo de Fuego, também edição de

autor. Em 2008, lançou El Libro de los Poemas

Casuales/O Livro dos Poemas Casuais (Buenos Aires:

Editorial Dunken) em edição bilíngüe com traduções

para o português por Anderson Braga Horta e Antonio

Miranda.

EL SIGNO DEL CREPÚSCULO, de Claudio Sesín. Buenos Aires: Editorial Dunken, 80 págs., 2006. E-mail: [email protected] Site: www.dunken.com.ar

Page 30: Chicos 38

Emerson Teixeira Cardoso

Carteira de cronista

Em uma linguagem que remete ao

Salinger de O apanhador do campo de centeio,

José Antonio busca num tempo perdido (e no

agora) da mítica infância/adolescência o

assunto de suas deliciosas crônicas. E aí está a

sua maior qualidade: técnica sui generis aliada

à memória cinematográfica. Mas é ele um autor

inédito? Mais ou menos: José Antonio integrou

o quarteto que veio a se chamar “Os cronistas

da rua Alferes”, em referência ao livro que

publicou com Vanderlei Pequeno, Emerson

Teixeira Cardoso e José Vecchi. Portanto, é

quase inédito, exceto pelos artigos e contos

publicados na e-zine Chicos, alguns constando

deste Fantasias de Meia Pataca. José Antonio

escreve e consegue o que é indispensável na boa

prosa: unir o sentimento à arte, pois o

sentimento é arte, e ambos são expressão. O

livro, quando nos leva à representação da

infância, evoca nomes, lugares, firmas

comerciais, acontecimentos políticos, festas

populares, como as quermesses da igrejinha do

Rosário, o carnaval, de onde resgata a gostosa

marchinha Citran de Cataguarino: “Citran de

Cataguarino chegô...ô...ô...ô... Trouxe um

varau de galinha... uma cestinha de ovos...

Citran de Cataguarino chegô”. O lado

Macunaíma é revelado na ironia existente em

outras faces de seu estilo: Milagres de

economistas; O meu mil novecentos e sessenta

e oito; Primeiro de abril de 1964; e Não é

minha culpa. Pedi a um jovem que desse uma

olhada nos originais de Fantasias de Meia

Pataca e depois perguntei o que havia achado

do livro. E ele: “Na crônica A vila, depois de

dizer o que essa vila era para ele em sua

infância, José Antonio completou: ‘Notei que

meus amigos estavam engrenados num papo

sobre futebol. Acho que até o leitor me

abandonou’. Pelo contrário, o meu interesse no

livro ali apenas começou” – emendou o rapaz.

Seu lado cinematográfico nos leva a

perambular pelo Bixiga dos anos 80, sua Roma

paulista. Somente mesmo um cinéfilo de

carteirinha para nos guiar pelo felliniano

bairro, estabelecendo correspondência com a

emblemática capital italiana, com direito à

Fonte de Trevi e Anita Elkberg em La Dolce

Vita. Entre mentiras, verdades e fantasias

rolavam muito papo e cerveja. Pelas mãos de

Ady Resende, é singela homenagem que nos

remete ao início dos anos 70, quando tivemos

as primeiras impressões do colégio de

Niemeyer. Para chegar ao artesanato popular, o

mestre nos guiava pelas barras gregas, o

desenho geométrico, o artístico, com sombras e

perspectivas, e a pintura propriamente dita,

com o necessário aprendizado das cores

básicas. Apenas depois de passar pelos clássicos

Rembrant, Matisse, Van Gogh, Toulose Lautrec

e Portinari, que ainda estava ali, na nossa cara,

causando estranhamento. Para terminar estas

já longas considerações acerca do belo livro de

crônicas do José Antonio, destacarei o

Barbastião, os dois, o bar e dono. Infelizmente

já extintos, ressurgem nas figuras do Cossaco,

Rubão e outros bebuns anônimos e

incorrigíveis, onde, nas sextas-feiras, como nas

outras também, era servido regiamente o

tradicional café dos três efes: frio, fraco e

fodido. Entra Vasco era a senha para voltarem

os olhos para a calçada quando mulher bonita

passava pela porta do boteco. Quem se arvorar

à leitura deste Fantasias de Meia Pataca não se

arrependerá da empreitada. O José Antonio

tem bala.

Page 31: Chicos 38

Antônio Jaime

Sobre: O Caso da Menina que perdeu a voz

Fernando Abritta estreou em livro com

'umÁrvore', viagem poético-ecológica pelo que se pode

chamar o Brasil profundo, o das riquezas naturais, seu

povo e costumes. Depois, ilustrou com desenhos o livro

'Uma verde História', escrito por Joaquim Branco.

Também, com desenhos seus, finalizados sobre tecido,

em ponto-cruz, numa caprichadíssima edição, ele agora

está todo prosa, no livro 'O Caso da Menina que Perdeu a

Voz'. Neste, Fernando descreve uma aventura

empreendida por Menino, Moleque, Gavião, Curicaca e

BeijaFlor , numa expedição do balacobaco, em meio a

incontáveis contratempos, na missão, para eles, sagrada,

de resgatar a vozque Menina perdeu.

Pelo caminho, enfrentam perigos e mais perigos, sem

falar de pedras que conversam, criaturas assombrosas,

os CruzCredo, os CredoemCruz, o Gigante misterioso, a

beldade com um estranho colar que tem vida própria, o

escambau a quatro. Extensa galeria de personagens que

mantêm o leitor aceso, ligado, grudado na história,

sentindo-se parte dela.

Livro conduzido numa escrita simples, ágil e sem

gramatiquices, feito o vocabulário de seus pequenos

personagens. Pé no chão e cabeça lá nas grimpas dos

morros de Cataguarino, onde nasceu Fernando, em

1950, neto de Boaventura Abritta, educador respeitável,

a ponto de ter impedido uma briga de foice, com um

simples raspar de garganta.

Esta e outras façanhas, que incluem histórias pitorescas

de valentões, jagunços, almas penadas, típicas do meio

rural, alimentaram a imaginação de Fernando e

incutiram em sua personalidade o gosto, verdadeiro

amor , pela natureza. Imaginação que não para de dar

frutos, tanto que já tem mais um livro pronto, chamado

'MulaSemCabeça', outro mergulho desenfreado em

situações absurdas, encantatórias, ainda em fase de

edição.

Pronto para ser lido, está este 'O Caso da Menina que

Perdeu a Voz'. Lido e ouvido, pois vem acompanhado de

um CD em que atores narram a trama, interpretando os

personagens, todos os ingredientes para fazer do livro

um clássico, no gênero. E tem cacife para inspirar uma

boa peça de teatro, filme, história em quadrinhos, até

seriado de TV .

Curicaca neles, Fernando.

Page 32: Chicos 38

Ronaldo Brito Roque

Zoom em Cataguases

Nasci em Cataguases e não

pude evitar a infância do

cataguasense típico. Joguei bola ao

lado de um mural de Portinari,

estudei num colégio projetado por

Oscar Niemeyer, dei meus

primeiros beijinhos em frente a

uma igreja exótica, de arquitetura

sui generis, quase surreal (não digo

que fosse surreal porque estava de

pé). Mas, como qualquer criança de

dez anos, eu não fazia a menor idéia

de como essas coisas eram raras e

valiosas. Minha cabeça infantil

imaginava que qualquer cidade

brasileira tinha seus murais

cubistas, suas igrejas extravagantes

e seus colégios longilíneos, com

rampas e corredores intermináveis.

Só comecei a perceber que

Cataguases tinha algo de especial

quando conheci cidades vizinhas,

como Leopoldina, Astolfo Dutra,

Barbacena e similares. Então

compreendi que o cataguasense

desfruta de uma posição

privilegiada. Temos, na esquina ao

lado, um acervo artístico que outras

cidades de mesmo porte não

possuem nem em seus museus.

Essa experiência bastaria para

despertar definitivamente minha

curiosidade e meu gosto pela arte.

Mas, no meu caso, o destino quis ser

ainda mais generoso. Por uma série

de golpes da sorte, vim a conhecer

certas figuras cataguasenses que

estiveram visceralmente ligadas à

história da cidade. Washington

Magalhães morava perto do

escritório dos meus pais, e me

emprestou exemplares da famosa

revista Verde. Emerson Teixeira

Cardoso me emprestou livros de

Rosário Fusco e Chico Peixoto, e

publicou, na extinta Trem Azul,

alguns dos meus inevitáveis versos

de juventude. Antonio Jaime e

Fábio de Paula (nosso querido

Fabinho) me falaram dos festivais

de música popular, me mostraram,

às vezes recitando de cor, poemas e

canções de Carlos Moura, Ronaldo

Werneck, Joaquim Branco. E assim

fui descobrindo que a história

artística de Cataguases não se

limitava à materialidade das artes

plásticas. Tivemos poetas e

escritores que influenciaram o resto

do Brasil e gravaram

definitivamente o nome da cidade

na história nacional. E tive a sorte

de conhecer o trabalho deles, não

em salas de aula, diante de

professores indiferentes e mal

pagos, mas em mesas de bar,

bebendo com pessoas que

realmente gostavam do que estavam

falando. Algumas cervejas ao lado

de Emerson, Antonio Jaime e

Fabinho, me desculpem a

franqueza, valeram dez vezes mais

que uma palestra sobre

modernismo brasileiro numa

universidade federal qualquer.

Quem duvidar que os convide para

uma noitada e comprove pela

própria experiência.

Mas, se por um lado fui brindado

com esses depoimentos vívidos e

saborosos, por outro fiquei com a

impressão de que a vida cultural de

Cataguases era um fato que

pertencia ao passado. Todas aquelas

coisas memoráveis de que Emerson

e Antonio Jaime me falavam, o

festival de música, o sucesso de

Maria Alcina, as aventuras d’O

Anunciador, tudo isso tinha

acontecido vinte ou trinta anos

atrás. Eu tinha a sensação de que

meus próprios amigos não

tardariam a se tornar peças de

algum museu municipal e a história

da cidade morreria com seus

últimos suspiros.

Page 33: Chicos 38

Essa sensação se intensificava

quando eu percebia que os

jovens da minha idade nem

sequer sabiam quem fora

Rosário Fusco ou Ascânio

Lopes. Recitar de cor um poema

de Ronaldo Werneck ou

Joaquim Branco, infelizmente,

era coisa de velhos excêntricos

que não aumentava em nada a

minha popularidade com as

garotas. O presente da própria

cidade parecia estar relegando

sua história a uma espécie de

porão sombrio onde

esquecemos os brinquedos e as

quinquilharias inúteis.

Foi então que o destino

providenciou uma nova série de

coincidências que me

mostraram que a vida cultural

de Cataguases estava bem viva e

ainda por cima disposta a

interagir comigo.

Um dia presenteei meu pai com

um CD de Césaria Évora, e, ao

ver a gorda zarolha na capa, ele

exclamou, surpreso: “Já vi esta

senhora aqui em Cataguases.”

Mais surpreso fiquei eu,

pensando que ele tivesse

abusado do café ou de bebidas

mais fortes. Mais tarde descobri

que ele não havia alucinado.

Cesária Évora estivera mesmo

em Cataguases, para nada

menos que um festival

internacional de cinema!

Poucos anos depois Geraldo

Filho me convidou a participar

de um festival nacional de

literatura, o surpreendente

Felica. Tive a chance de falar

um pouco sobre meus

primeiros passos como escritor,

e ainda o prazer memorável de

palestrar na mesma noite que

Emerson Teixeira Cardoso, que

fora, como mencionei, meu

professor informal e uma

personalidade marcante da

minha juventude. Foi sem

dúvida uma noite que não

esquecerei.

Mais tarde tomei

conhecimento, na Casa de

Leitura de Cataguases, do

trabalho encantador do grupo

GPTO, cuja qualidade é

evidentemente de nível

internacional. Na mesma tarde,

quando fui agendar o

lançamento do meu livro,

descobri, atônito, que a cidade

lança quase um escritor por

mês, uma média muito acima

das outras cidades brasileiras.

Na semana do meu lançamento,

resolvi passar uns dias na

cidade e fui brindado com mais

surpresas positivas. Descobri,

por exemplo, a Revista Tic-Tac,

periódico independente que

funciona há anos sem nenhuma

ajuda da administração pública

local. Flanando pelas ruas do

centro, fui dar numa espécie de

casarão antigo que funciona

como teatro amador. A peça que

estavam levando era divertida e

bem escrita, e tive a impressão

de que falta pouco para o teatro

infantil de Cataguases chegar ao

nível de qualidade das nossas

capitais.

E já que comecei a fazer,

inadvertidamente, essa espécie

de lista de realizações culturais

recentes, não posso deixar de

mencionar duas outras

publicações que me chamaram

a atenção. O livro “Alma de

Brinquedo”, de Leonardo

Campos, que deveria ser

publicado e distribuído por uma

editora de abrangência

nacional; e a revista literária

amadora “Chicos”, que não raro

traz textos de uma qualidade

excepcional e, na minha

modesta opinião, também

merece ser conhecida num

âmbito maior que o interior de

Minas. Pelas minhas parcas

informações, essa é outra

publicação que não conta com

nenhum tipo de apoio da

administração municipal, sendo

tocada exclusivamente pela

iniciativa e boa vontade do seus

editores. Claro que essa

condição, aos meus olhos, só a

torna ainda mais meritória.

Resumindo minhas descobertas

dos últimos anos, só posso dizer

que a vida cultural de

Cataguases continua rica e

variada como sempre foi. Os

cataguasenses continuam um

povo privilegiado frente a seus

vizinhos mineiros. Quantas

outras cidades, com menos de

cem mil habitantes, contam

com periódicos independentes,

com teatro infantil de

qualidade, com livros lançados

à proporção de um por mês, e

escritores dignos de visibilidade

nacional? Vendo tudo isso

de longe só posso dizer que a

cidade merece sua fama de jóia

mineira, e o povo cataguasense

deve fazer o que estiver a seu

alcance para conservar e

renovar incessantemente a

riqueza e a variedade da sua

vida cultural.

Page 34: Chicos 38

Chicos

Sebastião Nozza Bielli Lotti

Propriedade particular

A cidade vai fechando os

horizontes. O descampado onde os

parques e os circos são armados

– também onde, pela manhã, faço

alguns exercícios –, um dos

elementos que compõem a vista

relativamente aprazível que

observo da minha janela, com o

Cristo no morro do BNH (raquítico,

ao lado da torre de TV), as árvores

e as palmeiras, agora é uma

propriedade privada. Colocaram a

placa e alguns operários já estão

terminando a cerca de arame

farpado.

Luiz Antônio, “o homem dos

cachorros”, como ficou conhecido

pela turma que faz caminhada pela

alameda das palmeiras,

continuando até a entrada da Vila

Reis, me fala não saber se vai ser

um condomínio. Ele construiu uma

barraca de plástico preto onde

passa a maior parte do tempo,

apesar de ter uma quitinete

alugada, e improvisou, com refugos

de madeira e outros

materiais,pequenos abrigos

individuais para os seus

acompanhantes. Todos pretos e

saudáveis.

Ele diz que não está muito

preocupado, porque ganhou um

terreno, lá pros lados da Taquara

Preta, onde pretende alojá-los em

melhores condições. Comentou

sobre a época em que os recolhiam

pelas ruas, levando-os a Viçosa

para serem exterminados.

Chegamos também a comentar que

a plataforma de um vereador

recém-eleito, o Aquiles Branco

(cuidado com o calcanhar!), inclui

o projeto para esterilizá-los, o que,

em minha opinião, é mais louvável.

A lembrança dos cachorros que

passaram pela minha vida, vez por

outra aparece. Os “bebuns” da

venda no Corgo da Posse, área

rural de Ubá, riam da minha

cachorrinha magrela que eu

batizei de Baleia – depois de Vidas

Secas, filme do Nelson Pereira dos

Santos, todas as minhas cachorras

homenageavam a heroína do

Graciliano Ramos. A única que

fugiu à regra foi Suzana, a última,

já aqui em Cataguases.

Maísa havia lhe dado esse nome

desde novinha, pois era sua. Ela me

aparecera pedindo socorro porque

as crianças cismaram de adestrá-la

para participar do circo que

organizavam no porão da minha

irmã e, daí em diante. ficou sendo

minha. Foi a mais bela – a cauda

emplumada –, a mais doce e

inteligente. Era uma amiga que me

ouvia e parecia entender.

Beethoven talvez a perturbasse um

pouco, mas curtia Bach e Mozart.

Outra Baleia, a da Praia de

Mauá, que o vizinho deixou comigo

ao se mudar, porque ela passava a

maior parte do tempo na minha

varanda, ficou por lá mesmo

quando voltei pra Copacabana, e

algumas outras – mais públicas –,

apenas foram passando pelas

minhas andanças.

Sempre gostei mais dos vira-latas,

mas convivi por muito tempo com o

Barão, um buldogue assustador,

num sobrado da Rua Correia

Dutra, no Flamengo que, apesar de

tudo – eu vivi o momento preciso

em que ele abocanhou um gato

vacilante em cima do muro – era

gente fina.

Do Saddam Hussein do meu

irmão, enorme, eu sempre quis

distância, mas gostava da Meir, que

o antecedeu. Certa tarde, há

bastante tempo, eu levei o Perrito,

um poodle cinza mestiço que

morreu atropelado, para beber

cerveja com sorvete de tangerina

(na época, eu achava que a

combinação era sublime) no Bar

Elite. Saímos meio altos para o

ponto do ônibus com destino à

Pampulha, em frente à Nacional,

num horário de pique, e acabou

acontecendo uma baita confusão

com a negativa do motorista em

transportar o animal e a torcida

dos passageiros, que gritavam:

– Deixa! Deixa!

Felizmente, ele acabou

permitindo e a viagem virou uma

festa. Desejo boa sorte ao Luiz

Antônio, que prefere a companhia

dos bichos.

Page 35: Chicos 38

A última entrevista de Manuel Bandeira

Numa tarde de março de 1964, três

décadas depois de ter publicado o

poema que lhe consagraria: “Vou-

me embora pra Pasárgada”, o

poeta Manuel Bandeira fala ao

jornalista Pedro Bloch, em sua

última longa entrevista

Ninguém sabe explicar como aquele

homem, castigado, tantos anos, pela

doença, não amargou. Disse Mário de

Andrade: “Eu fico espantado de como há

certos homens no mundo! Tu, por

exemplo. Essa sublime bondade

inconsciente, bem no íntimo, de quem

nem sabe que é bom”. Vou além. Acho

que Manuel Bandeira nem tem plena

consciência de sua imensa envergadura

de gente e poeta. Acho que, talvez, os

quatro anos que viveu em sua terra,

Recife, é que explicam, mais que os

males, o homem de hoje. Diante de mim

está o gigante de nossa poesia: Manuel

Bandeira, em seu modesto apartamento,

atulhado de livros e calor humano, na

Avenida Beira-Mar, no Rio. Do bem que

lhe querem todos, da ternura que

desperta em quem dele se aproxima,

basta dizer que Mário de Andrade só o

tratava de Manu ou Manuelucho;

Rodrigo Melo Franco de Andrade lhe

deu o nome de Manula; Madame Blank,

sua amiga de almoço de todo o dia, o

trata de Mané. Creio que nunca ninguém

teve tanto apelido, tanta gente

querendo chegá-lo à sua amizade.

(Edição e seleção de poemas Carlos

Willian Leite).

Manuel Bandeira: Do Recife tenho quatro anos de

existência consciente, mas ali está a raiz de toda a

minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de

minha meninice a quaisquer outros quatro anos de

minha vida é que vejo o vazio dos últimos.

Rua da União…

Como eram lindos os montes

das ruas da minha infância

Rua do Sol

(Tenho medo que hoje se chame

de dr. Fulano de Tal)

Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…

Manuel Bandeira: Meu nome todo é Manuel Carneiro

de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com

mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no

resto sou como meu pai

Que importa a paisagem,

a Glória,

a baía,

a linha do horizonte?

— O que eu vejo é o beco

Manuel Bandeira: Sabe, que meu avô reprovou Castro

Alves num exame? Erámos três irmãos. Os mais

velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem. Saí

do Recife com 2 anos. Deles nada recordo. Viemos pro

Sul e com 6 (quando da revolta da Esquadra, em 1892)

meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui

com 6 e voltei ao Rio com 10. Mas esses quatros anos…

Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois,

ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da

gente.

Page 36: Chicos 38

Hoje não ouço mais as vozes

daquele tempo

Minha avó

Meu avô

Totônio Rodrigues

Tomásia

Rosa

Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo

Estão todos deitados

Dormindo

Profundamente.

Manuel Bandeira: Papai, no Rio, não teve sorte. Aos 40

anos passou por crise religiosa. Dele recordo com

intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim,

menino de 6 anos: “É impossível que este menino não

saiba ler”. Trancou-se comigo na biblioteca, por duas

horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo

foi ouvi-lo exclamar ao morrer: “Meu Jesus Cristinho!”

E eu conto no poema: “Mas Jesus Cristo nem se

‘incomodou!’”

Vai por cinquenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A formas a forma.

Manuel Bandeira: Foi o livro de D’Amicis [Edmondo De

Amicis, escritor italiano] uma das coisas que mais me

marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no

Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para

o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras,

onde morávamos, nunca faltou pão; mas a luta era dura.

Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei

do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.)

Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos.

Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram

sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino

ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a

meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que

não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava

certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente

e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que

traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de

raridade, senão de uma espécie de resolução musical.

Como nas “Pombas” [poema de Raimundo Correia]:

“Raia, sanguínea e fresca, a madrugada”. Entre outros

eu tinha como colegas do Pedro II o professor [Antenor]

Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da

Costa. Acabei bacharel em Letras.

Ó caro ruído embalador,

Terno como a canção das amas!

Canta as baladas que mais amas,

Para embalar a minha dor

Manuel Bandeira: Como ainda não havia um bom curso

de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui

estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano

para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante

muitos anos vivi provisoriamente. Hemoptises, tosse,

febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia,

homeopatia, e em junho de 1913 segui para um

sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e

novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil

réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil réis que

valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de

1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude

continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer:

“Quanto tempo de vida o senhor me dá?” A resposta: “O

senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a

vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns

cinco… dez anos”. Calcule! (“Então, doutor!, não é

possível tentar o pneumotórax? — Não. A única coisa a

fazer é tocar um tango argentino.”)

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Manuel Bandeira: Na Suíça, conheci, como

companheiro de sanatório, o poeta Paul Éluard e Gala

[Gala Dalí], que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a

mulher de Salvador Dalí.

Não quero mais saber

do lirismo

que não é libertação.

Manuel Bandeira: Voltei. Mal tinha dado pra conhecer

Paris. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no

Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme,

diante das recriminações de todos. Em 1917 publiquei

meu primeiro livro, “A Cinza das Horas”, 200

exemplares me custaram 300 mil réis. Em “Carnaval”

(publicado em 1919), depois, eu dizia: “Quero beber!

Cantar asneiras!”. Pois um crítico observou: “Conseguiu

plenamente o que queria”. Nestes dois volumes e em

“Ritmo Dissoluto” estão poemas feitos em estado de

lucidez. A partir de “Libertinagem” é que me resignei à

condição de poeta.

Page 37: Chicos 38

Tomei cedo consciência de que era um poeta menor,

consciência de minhas limitações. Devo dizer que

aprendi muito com os maus poetas: o que devemos

evitar.

Ninguém passa na estrada.

Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela

uma procissão de sombras.

Sombras de todos os que passaram.

Os que ainda vivem e os que já morreram.

Manuel Bandeira: Ao voltar da Suíça eu era um inválido.

Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de

500 mil réis. Depois dos 50 é que eu pude começar a

trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino.

Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San

Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para

ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de

Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz

muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas,

durante a minha doença, dependi de meu pai (até que

morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica

musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao

desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não

sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo

conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da

nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald,

Álvaro Moreyra, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de

Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua “Pauliceia

Desvairada”. Foi a última influência que recebi. O que

veio depois me encontrou calcificado. Também não quis

participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve

o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava

de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha

entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo

era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos

sãos, porque a doença gerara em mim um

sentimentalão.

Andorinha lá fora está dizendo:

— “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha,

minha cantiga é mais triste!

Passei a vida à toa, à toa…

Manuel Bandeira: Não. Nunca fui um antiacadêmico. O

problema é que eu gostava de tomar minhas licenças

com a língua. Não aceito que não se possa dizer “me dê

isso”, “me dê aquilo” se até o Laet [Carlos de Laet] dizia.

Nada mais gostoso que: “pra mim brincar”. Todos os

brasileiros deviam querer falar como os cariocas que

não sabem gramática. “Ele já mo deu”… é horrível!

Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo

me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os

moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A

mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão.

Meu coração está sedento

De tão ardido pelo pranto.

Dai um brando acompanhamento

À canção do meu desencanto.

Manuel Bandeira: Em 1921, papai morto, continuei

vivendo com 500 mil réis. Outro dia, fui comprar um

queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia,

Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino,

tinha perdido o montepio: — os 500 mil réis exatos com

que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de

segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de

conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde

só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para

a Rádio Ministério da Educação.)

É que na tua voz selvagem,

Voz de cortante, álgida mágoa,

Aprendi na cidade a ouvir

Como um eco que vem na aragem

A estrugir, rugir e mugir,

O lamento das quedas-d’água!

Manuel Bandeira: Um dos mais chegados é o Rodrigo

Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma

cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao

Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei

na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos

admiramos muito, mas não temos convivência

doméstica.

Se queres sentir a felicidade de amar,

esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus ela pode encontrar satisfação.

Não noutra alma.

Só em Deus — ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Manuel Bandeira: A minha poesia tem tomado um

aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com

77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me

sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no

chão da poesia piso com alguma segurança. Estou

perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar.

Page 38: Chicos 38

Do que imaginei ver só “Ronda Noturna”, de

Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de

arte, “Vênus de Milo” e o resto, de tão divulgadas, já

não constituem mais surpresa. Não tenho a menor

curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento

Ocidental.

Provinciano que nunca soube

Escolher bem uma gravata;

Pernambucano a quem repugna

A faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa

Envelheceu na infância da arte,

E até mesmo escrevendo crônicas

Ficou cronista de província.

Manuel Bandeira: Posso dizer que pouco se me dá,

quando morrer, morrer completamente para

sempre na minha carne e na minha poesia.

Entretanto, já não será possível, para alguns de

meus versos, aquela serena paz da morte absoluta,

não por virtude própria, mas por culpa de Villa-

Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Francisco

Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez,

Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de

ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado.

Criancice? Deus conserve minhas criancices.

Morrer.

Morrer de corpo e de alma.

Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,

A exangue máscara de cera,

Cercada de flores,

Que apodrecerão — felizes! — num dia,

Banhada de lágrimas

Nascidas menos da saudade

do que do espanto da morte.

Manuel Bandeira: Espiritualmente… minha

filosofia é a de Einstein. “Minha religião — disse ele

— consiste numa humilde admiração pelo espírito

superior e sem limites que se revela nos menores

detalhes que possamos perceber com nossos frágeis

espíritos. Essa profunda convicção sentimental da

presença de uma razão poderosa e superior

revelando-se no incompreensível universo — eis a

minha ideia de Deus.” Quando li isto, disse comigo

mesmo: “É exatamente o que eu sinto”. Não

compreendo a negação absoluta de Deus. Como é

que veio essa coisa que não começa nem acaba?

Tempo infinito… Espaço infinito… Uma coisa

absurda que, no entanto, existe!

O pardalzinho nasceu

Livre. Quebraram-lhe a asa.

Sacha lhe deu uma casa,

Água, comida e carinhos.

Foram cuidados em vão:

A casa era uma prisão,

O pardalzinho morreu.

O corpo Sacha enterrou

No jardim; a alma, essa voou

Para o céu dos passarinhos!

Manuel Bandeira: Não sei por que, hoje em dia,

tenho pudor de fazer poemas de amor. Muitas

vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo

tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É

como se não quisesse que os outros entrassem na

minha confidência, no meu segredo. Amei, sim.

Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois…

Minhas finanças. Meus amores não podiam levar-

me ao casamento com quinhentos mil réis de

montepio.

Aquele pequenino anel que tu me deste,

— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou…

Assim também o eterno amor que prometeste,

— Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Page 39: Chicos 38

Teatro em Cataguases

A Quarta Parede

A Quarta Parede apresenta um

enredo extremamente instigante

e inovador, onde um enigma

teatral é apresentado por três

personagens que vão

vivenciando a ação sem que o

público perceba que uma peça de

teatro está sendo criada diante

de seus olhos, até o desfecho

inesperado.

O que de início parece ser um

conflito de gerações, entre uma

adolescente rebelde e um idoso

misterioso, de repente se torna

um embate de horror, ambos

confinados num espaço fechado,

sem nenhuma possibilidade de

fuga.

A adolescente Michele e o idoso

Túlio se enfrentam num embate

de vida ou morte, onde os papéis

de vítima se alternam numa

historia feita de camadas de

suspense, medo, dúvida e

emoção exacerbada, situações

agravadas com a entrada de

Claus, um bizarro deficiente

físico mascarado que fala

emitindo sons incompreensíveis.

Quem é Túlio? Um assassino, um

psicopata, um bancário

aposentado ou um ator

desempregado? Quem é Claus?

Um deficiente físico ou um ator

com sua máscara teatral? Sua

maneira de se expressar é real

ou ele é capaz de falar

corretamente? Como vai reagir

Michele diante daqueles

momentos cruciais que vão

marcar o rito de passagem de

sua adolescência para a

maturidade?

São indagações que tumultuam a

acuada Michele numa historia

onde nada é o que parece ser e

que provoca no público um

permanente estado de alerta

através das surpreendentes

revelações e situações de

suspense, culminando com a

grande surpresa no final.

A peça é um jogo de cenas que

mostra a magia do teatro sendo

desvendada mediante uma

sucessão de golpes teatrais, o

que impede que qualquer

detalhe do enredo seja revelado

previamente ao público.

Page 40: Chicos 38