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    Chimamanda Adichie: O perigo de uma nica histria.

    http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html

    Translated into Portuguese (Brazil) byErika Barbosa

    Reviewed byBelucio Haibara

    Eu sou uma contadora de histrias e gostaria de contar a vocs algumas histrias pessoaissobre o que eu gosto de chamar "o perigo de uma histria nica".

    Eu cresci num campus universitrio no leste da Nigria. Minha me diz que eu comecei a lercom dois anos, mas eu acho que quatro provavelmente mais prximo da verdade. Ento, eufui uma leitora precoce. E o que eu lia eram livros infantis britnicos e americanos. Eu fuitambm uma escritora precoce. E quando comecei a escrever, por volta dos sete anos,histrias com ilustraes em giz de cera, que minha pobre me era obrigada a ler, eu escreviaexatamente os tipos de histrias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos deolhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam mas. (Risos da plateia) E eles falavam muitosobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido. (Risos da plateia), apesar dofato que eu morava na Nigria.

    Eu nunca havia estado fora da Nigria. Ns no tnhamos neve, ns comamos mangas. E nsnunca falvamos sobre o tempo porque no era necessrio. Meus personagens tambmbebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britnicos que eu liabebiam cerveja de gengibre. No importava que eu no tivesse a mnima ideia do que era

    cerveja de gengibre. (Risos da plateia) E por muitos anos depois, eu desejei desesperadamenteexperimentar cerveja de gengibre. Mas isso outra histria. A meu ver, o que isso demonstra como ns somos impressionveis e vulnerveis em face de uma histria, principalmentequando somos crianas. Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagenseram estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua prpria natureza, tinham que terestrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu no podia me identificar. Bem, ascoisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. No havia muitos disponveis e elesno eram to fceis de encontrar quanto os livros estrangeiros, mas devido a escritores comoChinua Achebe e Camara Laye eu passei por uma mudana mental em minha percepo daliteratura. Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de chocolate, cujoscabelos crespos no poderiam formar rabos-de-cavalo, tambm podiam existir na literatura.

    Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia. Bem, eu amava aqueles livrosamericanos e britnicos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginao, me abriam novosmundos. Mas a consequncia inesperada foi que eu no sabia que pessoas como eu podiamexistir na literatura. Ento o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma nica histria sobre o que os livros so.

    Eu venho de uma famlia nigeriana convencional, de classe mdia. Meu pai era professor.Minha me, administradora. Ento ns tnhamos como era normal, empregada domstica, quefrequentemente vinha das aldeias rurais prximas. Ento, quando eu fiz oito anos, arranjamosum novo menino para a casa. Seu nome era Fide. A nica coisa que minha me nos disse sobreele foi que sua famlia era muito pobre. Minha me enviava inhames, arroz e nossas roupas

    usadas para sua famlia. E quando eu no comia tudo no jantar, minha me dizia: "Termine sua

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    comida! Voc no sabe que pessoas como a famlia de Fide no tem nada?" Ento eu sentiauma enorme pena da famlia de Fide.

    Ento, num sbado, ns fomos visitar a sua aldeia e sua me nos mostrou um cesto com umpadro lindo, feito de rfia seca por seu irmo. Eu fiquei atnita! Nunca havia pensado quealgum em sua famlia pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo que eu tinha ouvido sobreeles era como eram pobres, assim havia se tornado impossvel pra mim v-los como algumacoisa alm de pobres. Sua pobreza era minha histria nica sobre eles.

    Anos mais tarde, pensei nisso quando deixei a Nigria para cursar universidade nos EstadosUnidos. Eu tinha 19 anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Elaperguntou onde eu tinha aprendido a falar ingls to bem e ficou confusa quando eu disseque, por acaso, a Nigria tinha o ingls como sua lngua oficial. Ela perguntou se podia ouvir oque ela chamou de minha "msica tribal" e, consequentemente, ficou muito desapontadaquando eu toquei minha fita da Mariah Carey. (Risos da plateia) Ela presumiu que eu no sabiacomo usar um fogo.

    O que me impressionou foi que: ela sentiu pena de mim antes mesmo de ter me visto. Suaposio padro para comigo, como uma africana, era um tipo de arrogncia bem intencionada,piedade. Minha colega de quarto tinha uma nica histria sobre a frica. Uma nica histria decatstrofe. Nessa nica histria no havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de

    jeito nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade.Nenhuma possibilidade de uma conexo como humanos iguais.

    Eu devo dizer que antes de ir para os Estados Unidos, eu no me identificava,conscientemente, como uma africana. Mas nos EUA, sempre que o tema frica surgia, aspessoas recorriam a mim. No importava que eu no soubesse nada sobre lugares como aNambia. Mas eu acabei por abraar essa nova identidade. E, de muitas maneiras, agora eupenso em mim mesma como uma africana. Entretanto, ainda fico um pouco irritada quando sereferem frica como um pas. O exemplo mais recente foi meu maravilhoso voo de Lagos,dois dias atrs, no fosse um anncio de um voo da Virgin sobre o trabalho de caridade na"ndia, frica e outros pases". (Risos da plateia)

    Ento, aps ter passado vrios anos nos EUA como uma africana, eu comecei a entender areao de minha colega para comigo. Se eu no tivesse crescido na Nigria e se tudo que euconhecesse sobre a frica viesse das imagens populares, eu tambm pensaria que a fricafosse um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas incompreensveis, lutando guerrassem sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por elas mesmas e esperandoserem salvos por um estrangeiro branco e gentil. Eu veria os africanos do mesmo jeito que eu,quando criana, havia visto a famlia de Fide.

    Eu acho que essa nica histria da frica vem da literatura ocidental. Ento, aqui temos umacitao de um mercador londrino chamado John Locke, que navegou at o oeste da frica em1561 e manteve um fascinante relato de sua viagem. Aps referir-se aos negros africanoscomo "bestas que no tem casas", ele escreve: "Eles tambm so pessoas sem cabeas, quetm sua boca e olhos em seus seios. Eu rio toda vez que leio isso, e deve-se admirar a

    imaginao de John Locke. Mas o que importante sobre sua escrita que ela representa oincio de uma tradio de contar histrias africanas no Ocidente. Uma tradio da fricasubsaariana como um lugar negativo, de diferenas, de escurido, de pessoas que, naspalavras do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, so "metade demnio, metade criana".

    E ento eu comecei a perceber que minha colega de quarto americana deve ter, por toda suavida, visto e ouvido diferentes verses de uma nica histria. Como um professor, que uma vez

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    me disse que meu romance no era "autenticamente africano". Bem, eu estavacompletamente disposta a afirmar que havia uma srie de coisas erradas com o romance, queele havia falhado em vrios lugares. Mas eu nunca teria imaginado que ele havia falhado emalcanar alguma coisa chamada autenticidade africana. Na verdade, eu no sabia o que era"autenticidade africana". O professor me disse que minhas personagens pareciam-se muito

    com ele, um homem educado de classe mdia. Minhas personagens dirigiam carros, elas noestavam famintas. Por isso elas no eram autenticamente africanas.

    Mas eu devo rapidamente acrescentar que eu tambm sou culpada na questo da nicahistria. Alguns anos atrs, eu visitei o Mxico saindo dos EUA. O clima poltico nos EUA quelapoca era tenso. E havia debates sobre imigrao. E, como frequentemente acontece naAmrica, imigrao tornou-se sinnimo de mexicanos. Havia histrias infindveis de mexicanoscomo pessoas que estavam espoliando o sistema de sade, passando s escondidas pelafronteira, sendo presos na fronteira, esse tipo de coisa. Eu me lembro de andar no meuprimeiro dia por Guadalajara, vendo as pessoas indo trabalhar, enrolando tortilhas nosupermercado, fumando, rindo. Eu me lembro que meu primeiro sentimento foi surpresa. Eento eu fiquei oprimida pela vergonha. Eu percebi que eu havia estado to imersa na

    cobertura da mdia sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma coisa em minhamente: o imigrante abjeto. Eu tinha assimilado a nica histria sobre os mexicanos e eu nopodia estar mais envergonhada de mim mesma. Ento, assim que se cria uma nica histria:mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e ser o que elese tornar.

    impossvel falar sobre nica histria sem falar sobre poder. H uma palavra, uma palavra datribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e apalavra "nkali".

    um substantivo que livremente se traduz: "ser maior do que o outro". Como nossos mundos

    econmico e poltico, histrias tambm so definidas pelo princpio do "nkali". Como contadas, quem as conta, quando e quantas histrias so contadas, tudo realmente dependedo poder. Poder a habilidade de no s contar a histria de outra pessoa, mas de faz-la ahistria definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se vocquer destituir uma pessoa, o jeito mais simples contar sua histria, e comear com "emsegundo lugar". Comece uma histria com as flechas dos nativos americanos, e no com achegada dos britnicos, e voc tem uma histria totalmente diferente. Comece a histria como fracasso do estado africano e no com a criao colonial do estado africano e voc tem umahistria totalmente diferente.

    Recentemente, eu palestrei numa universidade onde um estudante me disse que era umavergonha que homens nigerianos fossem agressores fsicos como a personagem do pai no meuromance. Eu disse a ele que eu havia terminado de ler um romance chamado "PsicopataAmericano" - (Risos da plateia) e que era uma grande pena que jovens americanos fossemassassinos em srie. (Risos da plateia e aplausos) bvio que eu disse isso num leve ataque deirritao. (Risos da plateia)

    Nunca havia me ocorrido pensar que s porque eu havia lido um romance no qual umapersonagem era um assassino em srie, que isso era, de alguma forma, representativo detodos os americanos. E agora, isso no porque eu sou uma pessoa melhor do que aqueleestudante, mas, devido ao poder cultural e econmico da Amrica, eu tinha muitas histriassobre a Amrica. Eu havia lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill. Eu no tinha uma nicahistria sobre a Amrica.

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    Quando eu soube, alguns anos atrs, que escritores deveriam ter tido infncias realmenteinfelizes para ter sucesso, eu comecei a pensar sobre como eu poderia inventar coisas horrveisque meus pais teriam feito comigo. (Risos da plateia) Mas a verdade que eu tive uma infnciamuito feliz, cheia de risos e amor, em uma famlia muito unida.

    Mas tambm tive avs que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreuporque no teve assistncia mdica adequada. Um dos meus amigos mais prximos, Okoloma,morreu num acidente areo porque nossos caminhes de bombeiros no tinham gua. Eucresci sob governos militares repressivos que desvalorizavam a educao, ento, por vezes,meus pais no recebiam seus salrios. E ento, ainda criana, eu vi a geleia desaparecer docaf-da-manh, depois a margarina desapareceu, depois o po tornou- se muito caro, depois oleite ficou racionado. E acima de tudo, um tipo de medo poltico normalizado invadiu nossasvidas.

    Todas essas histrias fazem de mim quem eu sou. Mas insistir somente nessas histriasnegativas superficializar minha experincia e negligenciar as muitas outras histrias que meformaram. A nica histria cria esteretipos. E o problema com esteretipos no que eles

    sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um histria tornar-se a nicahistria.

    Claro, frica um continente repleto de catstrofes. H as enormes, como as terrveisviolaes no Congo. E h as depressivas, como o fato de 5.000 pessoas candidatarem-se a umavaga de emprego na Nigria. Mas h outras histrias que no so sobre catstrofes. E muitoimportante, igualmente importante, falar sobre elas. Eu sempre achei que era impossvelrelacionar-me adequadamente com um lugar ou uma pessoa sem relacionar-me com todas ashistrias daquele lugar ou pessoa. A consequncia de uma nica histria essa: ela rouba daspessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difcil.Enfatiza como ns somos diferentes ao invs de como somos semelhantes. E se antes de

    minha viagem ao Mxico eu tivesse acompanhado os debates sobre imigrao de ambos oslados, dos Estados Unidos e do Mxico? E se minha me nos tivesse contado que a famlia deFide era pobre E trabalhadora? E se ns tivssemos uma rede televisiva africana quetransmitisse diversas histrias africanas para todo o mundo? O que o escritor nigeriano ChinuaAchebe chama "um equilbrio de histrias."

    E se minha colega de quarto soubesse do meu editor nigeriano, Mukta Bakaray, um homemnotvel que deixou seu trabalho em um banco para seguir seu sonho e comear uma editora?Bem, a sabedoria popular era que nigerianos no gostam de literatura. Ele discordava. Elesentiu que pessoas que podiam ler, leriam se a literatura se tornasse acessvel e disponvelpara elas.

    Logo aps ele publicar meu primeiro romance, eu fui a uma estao de TV em Lagos para umaentrevista. E uma mulher que trabalhava l como mensageira veio a mim e disse: "Eurealmente gostei do seu romance, mas no gostei do final. Agora voc tem que escrever umasequncia, e isso o que vai acontecer..." (Risos da plateia) E continuou a me dizer o queescrever na sequncia. Agora eu no estava apenas encantada, eu estava comovida. Ali estavauma mulher, parte das massas comuns de nigerianos, que no se supunham ser leitores. Elano s tinha lido o livro, mas ela havia se apossado dele e se sentia no direito de me dizer oque escrever na sequncia.

    Agora, e se minha colega de quarto soubesse de minha amiga Fumi Onda, uma mulherdestemida que apresenta um show de TV em Lagos, e que est determinada a contar as

    histrias que ns preferimos esquecer? E se minha colega de quarto soubesse sobre a cirurgiacardaca que foi realizada no hospital de Lagos na semana passada? E se minha colega de

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    quarto soubesse sobre a msica nigeriana contempornea? Pessoas talentosas cantando emingls e Pidgin, e Igbo e Yoruba e Ijo, misturando influncias de Jay-Z a Fela, de Bob Marley aseus avs. E se minha colega de quarto soubesse sobre a advogada que recentemente foi aotribunal na Nigria para desafiar uma lei ridcula que exigia que as mulheres tivessem oconsentimento de seus maridos antes de renovarem seus passaportes? E se minha colega de

    quarto soubesse sobre Nollywood, cheia de pessoas inovadoras fazendo filmes apesar degrandes questes tcnicas? Filmes to populares que so realmente os melhores exemplos deque nigerianos consomem o que produzem. E se minha colega de quarto soubesse da minhamaravilhosamente ambiciosa tranadora de cabelos, que acabou de comear seu prprionegcio de vendas de extenses de cabelos? Ou sobre os milhes de outros nigerianos quecomeam negcios e s vezes fracassam, mas continuam a fomentar ambio?

    Toda vez que estou em casa, sou confrontada com as fontes comuns de irritao da maioriados nigerianos: nossa infraestrutura fracassada, nosso governo falho. Mas tambm pelaincrvel resistncia do povo que prospera apesar do governo, ao invs de devido a ele. Euensino em workshops de escrita em Lagos todo vero. E extraordinrio pra mim ver quantaspessoas se inscrevem, quantas pessoas esto ansiosas por escrever, por contar histrias. Meu

    editor nigeriano e eu comeamos uma ONG chamada Farafina Trust. E ns temos grandessonhos de construir bibliotecas e recuperar bibliotecas que j existem e fornecer livros paraescolas estaduais que no tm nada em suas bibliotecas, e tambm organizar muitos e muitosworkshops, de leitura e escrita para todas as pessoas que esto ansiosas para contar nossasmuitas histrias. Histrias importam. Muitas histrias importam. Histrias tm sido usadaspara expropriar e tornar maligno. Mas histrias podem tambm ser usadas para capacitar ehumanizar. Histrias podem destruir a dignidade de um povo, mas histrias tambm podemreparar essa dignidade perdida. A escritora americana Alice Walker escreveu isso sobre seusparentes do sul que haviam se mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a vidasulista que eles tinham deixado para trs. "Eles sentaram-se em volta, lendo o livro por siprprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraso foi reconquistado." Eu gostaria de

    finalizar com esse pensamento: Quando ns rejeitamos uma nica histria, quandopercebemos que nunca h apenas uma histria sobre nenhum lugar, ns reconquistamos umtipo de paraso. Obrigada. (Aplausos).