Christian Laval - Nova Razão do Mundo

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CHRISTIAN LAVAL NOVA RAZÃO DO MUNDO

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CHRISTIAN

LAVAL

NOVA RAZÃO

DO MUNDO

LA NOUVELLE RAISON DU MONDE ESSAI SUR LA SOCIÉTÉ NÉOLIBERALE

1

Introdução

Não terminamos com o neoliberalismo. Não é uma ideologia nem

simplesmente uma política econômica. Trata-se do modo com o qual vivemos,

pensamos, sentimos: é uma forma de nossa existência. Ele define uma certa

norma de vida que nos provoca a viver num universo de competição

generalizada, instiga as populações a entrar em luta econômica umas contra as

outras, ordena as relações sociais ao modelo de mercado, transforma até o

indivíduo, chamado a conceber-se como uma empresa. Pode se falar de nova

razão do mundo porque é global em dois sentidos: é mundial porque vale na

escala do mundo. Tende a totalizar, quer dizer "construir mundo" pelo seu

poder de integração de todas as dimensões da existência humana. Razão do

mundo, é ao mesmo tempo "razão-mundo". O neoliberalismo é a razão do

capitalismo contemporâneo, de um capitalismo libertado de suas referências

arcaicas e plenamente assumido como construção histórica e como norma

geral da vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos

de práticas, de dispositivos que determinam um novo modo de governo dos

homens segundo o princípio universal da concorrência.

Uma das grandes novidades do neoliberalismo não consiste num ilusório

retorno ao estado natural de mercado, mas sim no estabelecimento jurídico e

político de uma nova ordem mundial de mercado cuja lógica implica não a

abolição, mas sim a transformação dos modos de ação e das instituições

públicas em todos os países.

A tese defendida por esse livro é precisamente que o neoliberalismo,

antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é primeiro e

fundamentalmente uma racionalidade e que, sendo isso, ele tende a estruturar

e organizar, não somente a ação dos governantes, mas até a conduta dos

próprios governados. Governar não é governar contra a liberdade ou apesar

dela, é governar pela liberdade, quer dizer jogar ativamente sobre o espaço de

1 DARDOT Pierre/LAVAL Christian, La nouvelle raison du monde, essai sur la société

néoliberale, Paris, La Découverte, 2009

liberdade deixado aos indivíduos para que eles venham a se conformar por

eles mesmos a certas normas.

Capítulo 5: crise do liberalismo e nascimento do

neoliberalismo

É uma crise da governabilidade liberal, que coloca essencialmente o

problema prático da intervenção política e matéria econômica e social e o de

sua justificação doutrinal. O que era posto como uma limitação externa a essa

ação, em particular aos direitos invioláveis do indivíduo, tornou-se um puro e

simples fator de bloqueio da "arte de governar", no momento em que essa é

precisamente confrontada a questões econômicas e sociais ao mesmo tempo

novas e prementes. É a necessidade prática da intervenção governamental

para enfrentar às mutações organizacionais do capitalismo, aos confrontos de

classe ameaçando a "propriedade privada", às novas relações de força

internacionais, que coloca em crise o liberalismo dogmático.

O triunfo liberal do meio do século XIX não durará. Os capitalismos

americano e alemão, as duas potências emergentes da segunda metade do

século, demonstravam que o modelo atomístico de agentes econômicos

independentes, isolados, guiados pela preocupação do seus interesses bem

compreendidos e cujas decisões eram coordenadas pelo mercado

concorrencial, não correspondia mais às estruturas e às práticas do sistema

industrial e financeiro realmente existente. Esse último, cada vez mais

concentrado nos setores maiores da economia, dominado por uma oligarquia

estreitamente conectada aos dirigentes políticos, era regido pelas "regras do

jogo" que não tinham nada a ver com as concepções rudimentares da "lei da

oferta e da procura" dos teóricos da economia ortodoxa. O que o liberalismo

clássico não tinha integrado o suficiente era o fato mesmo da empresa, de sua

organização, de suas formas jurídicas, da concentração de seus meios, das

novas formas de competição. As novas necessidades da produção e da venda

chamavam por um "management científico", mobilizando os exércitos

industriais enquadrados num modelo hierárquico de tipo militar por pessoas

qualificadas e devotadas.

O aparecimento de grandes grupos cartelizados marginalizava o

capitalismo de pequenas unidades, o desabrochar de técnicas de venda

enfraquecia a fé na soberania do consumidor, os entendimentos, as práticas

dominadoras e manipuladoras dos oligopólios sobre os preços arruinavam as

representações de uma concorrência leal a ser aproveitada por todos. A

democracia política parecia definitivamente comprometida pelos fenômenos

maciços de corrupção em todos os níveis da vida política.

A inadequação das fórmulas liberais às necessidades de reformulação da

condição salarial, sua incompatibilidade com as tentativas de reformas sociais

aqui e acolá constituíram um outro fator de crise do liberalismo dogmático. É o

que levou os neoliberais a forjar um discurso ao mesmo tempo teórico e político

que dê razão, forma, sentido à intervenção governamental. Contudo, mesmo

quando os neoliberais admitem a necessidade da intervenção do estado e que

rejeitam a pura passividade governamental, eles se opõem a qualquer ação

que viria travar o jogo da concorrência entre interesses privados. A intervenção

do estado tem mesmo um sentido contrário: trata-se não de limitar o mercado

por uma ação corretiva ou compensadora do Estado, mas sim de desenvolver

e purificar o mercado concorrencial por um enquadramento jurídico

cuidadosamente adaptado. Não se trata mais de postular um acordo

espontâneo entre os interesses individuais, mas sim de optimizar as condições

para que seu jogo de rivalidade satisfaça o interesse coletivo. O neoliberalismo

combina a reabilitação da intervenção pública e uma concepção do mercado

centrada na concorrência, fazendo dela o principio central da vida social e

individual mas ele reconhece que a ordem de mercado não é um dado da

natureza, mas sim o produto artificial de uma história e de uma construção

política.

Capítulo 8: o homem empreendedor

Não se entende o neoliberalismo se não se vê nele como ponto focal a

relação entre as instituições e a ação individual. Com Ludwig Von Mises e

Friedrich Hayek, existe uma mudança em relação ao liberalismo tradicional que

reside na valorização da concorrência e da empresa como forma geral da

sociedade. O pensamento deles está totalmente estruturado pela oposição

entre dois tipos de processos, um processo de destruição e um processo de

construção. O primeiro chamado por Von Mises de "destruccionismo" tem

como agente principal o Estado. Ele repousa sobre a concatenação perversa

da ingerências estatais que levam até o totalitarismo e à regressão econômica.

O segundo que corresponde ao capitalismo tem como agente o empreendedor,

quer dizer, potencialmente, todo agente econômico.

Colocando o foco na ação individual e no processo de mercado, os

autores austros-americanos visam em primeiro lugar produzir uma descrição

realista de uma máquina econômica que tende para o equilíbrio se não for

perturbada por um moralismo ou intervenções políticas e sociais destruidoras.

Visam em segundo lugar mostrar como se constrói na concorrência geral uma

certa dimensão do homem, o entrepreneurship, que é o principio de conduta

potencialmente universal o mais essencial para a ordem capitalista. O

neoliberalismo se apresenta bem como um projeto político que busca criar uma

realidade social que é suposta já existir. É precisamente essa dimensão

antropológica do homem-empresa que será a principal contribuição dessa

corrente.

É uma outra concepção da concorrência que constitui o fundamento

especifico do "concorrencialismo" neoliberal. O grande passo a frente dado por

Von Mises e Hayek consiste em olhar a concorrência no mercado como um

processo de descoberta da informação pertinente, como um certo modo de

conduta do sujeito que busca superar e ultrapassar os outros na descoberta de

novas ocasiões de ganho. A doutrina austríaca privilegia uma dimensão

agonística, a da competição e da rivalidade. É a partir da luta dos agentes que

se poderá descrever, não a formação de um equilíbrio definido por condições

formais, mas a própria vida econômica cujo ator real é o empreendedor, cuja

mola propulsora é o espírito empreendedor que anima cada um em graus

diferentes e cujo único freio é o Estado quando ele trava ou suprime a livre

competição.

Essa revolução no modo de pensar inspirou muitas pesquisas,

principalmente em relação à informação e à inovação. Contudo, ela chama

principalmente para uma política que ultrapassa de longe os mercados de bens

e de serviços e concerne a totalidade da ação humana. Existe uma orientação,

talvez mascarada e não imediatamente percebida, de restabelecer ou sustentar

dimensões de rivalidade na ação e, mais fundamentalmente, em modelar os

sujeitos para fazer deles empreendedores sabendo agarrar as oportunidades

de ganho, prontos a engajar-se no processo permanente da concorrência. É

mais particularmente no management que essa orientação encontrou sua

tradução.

O que vem atrapalhar a perfeita democracia do consumidor e abre a via

para o despotismo totalitário é a intrusão de princípios éticos diferentes do

princípio do interesse pessoal, heterogêneos ao processo de mercado porque o

Estado pretenderia saber no lugar do indivíduo o que ele precisa.

Uma nova concepção do mercado

Se o pensamento austro-americano dá um papel central ao mercado, é

que ele olha para ele como um processo subjetivo. A palavra chave, mercado,

é bem a mesma que no pensamento liberal tradicional: contudo, o conceito

designado por ela mudou. Não é mais o mesmo de Adam Smith nem dos neo-

clássicos. É um processo de descoberta e de aprendizagem que modifica os

sujeitos ajustando os uns aos outros. A coordenação não é estática: ela não

liga sujeitos sempre semelhantes a eles mesmos; ela é produtora de uma

realidade sempre mutante, de um movimento que afeta os ambientes nos quais

os sujeitos evoluem e os transforma também. O mercado não é um ambiente

dado uma vez por todas, regido por leis naturais, governado por um princípio

misterioso do equilíbrio. Ele é um processo regrado que coloca em movimentos

processos psicológicos e competências específicas. É um processo não tanto

auto-regulador (quer dizer conduzindo ao equilíbrio perfeito) mas sim auto-

criador, capaz de se auto-gerar no tempo. O mercado é, então, concebido

como um processo de auto-formação do sujeito econômico, como um processo

subjetivo auto-educador e auto-disciplinar pelo qual o indivíduo aprende a

conduzir-se. O processo de mercado constrói seu próprio sujeito: é auto-

construtivo. Não é pela "natureza" que o homem sabe se conduzir, é graças ao

mercado que constitui um processo de formação. A economia é escolha mais

do que cálculo de maximização ou, mais exatamente, este é só um momento

ou uma dimensão da ação que não pode resumi-la inteiramente. A escolha é

mais dinâmica: ela implica criatividade e indeterminação. A economia é uma

teoria da escolha.

O mercado e o conhecimento

Não se pode ter economia de mercado sem a primazia absoluta do

interesse, excluídos todos os outros motivos da ação. A limitação do poder

governamental encontra seu fundamento, não nos "direitos naturais", nem

mesmo, ultimamente, na prosperidade gerada pela livre iniciativa privada, mas

sim nas próprias condições de funcionamento da máquina econômica. A

condição de funcionamento da mecanismo de mercado é a livre escolha de

decisão em função das informações que cada um possui. O mercado é mesmo

um desses instrumentos que funciona sozinho, justamente porque ele

coordena os trabalhos especializados otimizando os conhecimentos dispersos.

No passado, o objeto econômico por excelência era o problema da

coordenação das tarefas especializadas e da alocação dos recursos. Para

Hayek, é o problema da divisão do conhecimento que constitui o principal

problema da economia e mesmo das ciências sociais. Não se trata do

conhecimento científico: knowledge significa para Hayek um certo tipo de

conhecimentos diretamente utilizáveis no mercado, as que dizem respeito às

circunstâncias de tempo e de lugar, as que dizem respeito não ao porque mas

sim ao quanto, as que um indivíduo pode adquirir na prática, de que só ele

pode perceber o valor e que só ele pode utilizar de modo proveitoso para

ultrapassar os outros na competição. O problema da economia não é mais o

equilíbrio geral mas sim de saber como os indivíduos vão poder tirar o melhor

partido da informação fragmentária da qual eles dispõem.

O empreendedorismo como modo de governo de si

Não se pode entender essa defesa do livre mercado sem relacioná-la ao

postulado que a acompanha necessariamente: não há necessidade de intervir

porque somente os indivíduos são capazes de calcular a partir das informações

que eles possuem. É o postulado da ação humana racional que arruína

antecipadamente as pretensões do dirigismo. Daí a importância do esforço de

Von Mises a fazer repousar a ciência econômica sobre uma teoria geral da

ação humana, a "praxeologia". Esse subjetivismo permite evitar de pagar

politicamente o preço tão caro de um resultado teórico tão duvidoso como o do

equilíbrio geral que não apresenta grande interesse para o conhecimento do

funcionamento das economias reais. Trata-se mais de entender como age

realmente o sujeito, como ele se conduz quando está numa situação de

mercado. É a partir desse funcionamento que a questão do modo de governo

de si poderá ser colocada.

Esse auto-governo tem um nome: entrepreneurship. Essa dimensão

supera a capacidade calculadora e maximizadora da teoria econômica padrão.

Todo indivíduo tem algo de empreendedor em si e a economia de mercado tem

como característica liberar e estimular essa capacidade empreendedora. O

puro espírito de mercado não precisa de nenhuma dotação inicial porque se

trata de explorar uma possibilidade vender mais caro um bem que não se

comprou. O empreendedor não é um capitalista, não é um produtor, não é o

inovador schumpeteriano que modifica sem cessar as condições da produção e

constitui o motor do crescimento. É um ser dotado de um espírito comercial, em

busca de toda ocasião de ganho que se apresenta para ele e que ele pode

agarrar graças às informações que ele detém e que os outros não têm. Ele se

define unicamente pela sua intervenção específica na circulação dos bens.

Para Mises, o empreendedor é o homem que age para melhorar sua sorte

utilizando os espaços de preços entre os fatores de produção e os produtos. O

espírito que ele desenvolve é o da especulação, mesclando risco e

antecipação. O homem que quer melhorar sua sorte deve constituir quadros de

fins e de meios nos quais ele deverá fazer suas escolhas. A pura dimensão de

empreendedorismo, a vigilância para a ocasião comercial, é uma relação de si

mesmo para si mesmo que está no princípio da crítica da interferência. Somos

todos empreendedores, ou mais exatamente aprendemos a ser, formando nos

pelo jogo do mercado só a governar a nos mesmos como empreendedores. O

que quer dizer também que, se o mercado é olhado como um livre espaço para

os empreendedores, todas as relações humanas pode ser afetadas por essa

dimensão empreendedora, constitutiva do humano. O mercado é um processo

de aprendizagem contínua e de aprendizagem permanente. O sujeito de

mercado está engajado numa experiência de descoberta onde ele o que ele

descobre primeiro é que ele não sabia que ele ignorava. Essa descoberta do

que não sabíamos não se confunde com uma busca deliberada de

conhecimento que supõe que saibamos antecipadamente o que não sabemos.

A descoberta permitida pela experiência de mercado repousa sobre o fato de

que não sabíamos que ignorávamos, que ignoramos o que ignorávamos. É

essa ignorância, não sabida como tal que é o ponto de partida da análise do

mercado. A surpresa, a descoberta ao acaso, desencadeia a reação dos que

são mais alertas, os empreendedores.

Essa racionalidade efetiva, que é adaptação eficaz dos meios aos fins,

exclui todo racionalismo que faria da reflexão sobre a ação uma condição do

agir bem.

Essa valorização do empreendedorismo e a idéia do que essa faculdade

só pode ser formada num ambiente de mercado são constitutivas da

redefinição do sujeito de referência da racionalidade neoliberal. Essa

proposição genérica, de natureza antropológica, redesenha bastante a figura

do homem econômico: ela dá para ele um formato mais dinâmico e mais ativo

do que no passado. Essa concepção do indivíduo como um empreendedor ao

mesmo tempo inovador e explorador das oportunidades é o ponto de chegada

de várias linhas de pensamento.

A nova racionalidade

Capítulo 10: A grande virada

As políticas desenvolvidas pelos governos Tatcher e Reagan engajam

uma mudança muito mais importante do que simplesmente uma volta a um

liberalismo tradicional. Elas têm por característica principal modificar

radicalmente o exercício do poder governamental assim como as referências

doutrinais no contexto de uma mudança de regras de funcionamento do

capitalismo. Elas testemunham de uma subordinação de um certo tipo de

racionalidade política e social articuladas à mundialização e à financiarização

do capitalismo. Assim, existe uma "grande virada" por causa da elaboração de

uma nova lógica normativa capaz de integrar e de reorientar duravelmente

políticas e comportamentos numa nova direção: "Economia livre, Estado forte".

O que não está sempre bem percebido é o caráter disciplinar dessa nova

política, dando ao governo o papel de guardião vigilante de regras jurídicas,

monetárias, comportamentais, atribuindo a ele a função oficial de fiscal das

regras de concorrência no quadro de uma colusão oficiosa com os grandes

oligopólios e, talvez mais ainda, dando para ele o objetivo de criar situações de

mercado e formar indivíduos adaptados às lógicas de mercado. Em outras

palavras, a atenção dada à ideologia do "laissez-faire" distraiu do exame das

práticas e dos dispositivos encorajados, ou diretamente colocados, pelos

governos. Consequentemente, foi a dimensão estratégica das políticas

neoliberais que foi paradoxalmente negligenciada na crítica "antiliberal" padrão,

na medida em que essa dimensão é imediatamente presa numa racionalidade

global que permaneceu desapercebida.

O que entender exatamente por "estratégia"? No seu significado mais

corrente, o termo designa a escolha de meios empregados para alcançar um

fim. Por mais legítimo que seja, esse uso do termo "estratégia" poderia levar a

pensar que o objetivo da concorrência generalizada entre empresas,

economias e Estados foi elaborado a partir de um projeto amadurecido há

muito tempo, como se fosse objeto de uma escolha tão racional e dominado

quanto os meios colocados a disposição dos objetivos iniciais.

Contudo, parece aos autores que o objetivo de uma nova regulação pela

concorrência não preexistiu à luta contra o Estado Providência na qual se

engajaram círculos intelectuais, grupos profissionais, forças sociais e políticas,

frequentemente por causa de motivos heterogêneos. Segundo os autores, esse

objetivo constituiu-se no decorrer do próprio enfrentamento, que ele se impôs a

forças diferentes em razão da própria lógica do enfrentamento e que, a partir

desse momento, ele desempenhou um papel de catalisador oferecendo um

ponto de junção para forças até então relativamente dispersas. Para entender

isso, é preciso recorrer a um outro sentido do termo "estratégia".

É um sentido que não faz a estratégia proceder da vontade de um

estrategista ou da intencionalidade de um sujeito. Essa idéia de uma

"estratégia sem sujeito" ou "sem estrategista" foi elaborada por Michel

Foucault. Tomando o exemplo do objetivo estratégico da moralização da classe

operária nos anos 1830, ele afirma que esse objetivo então produziu a

burguesia como agente de sua operacionalização em vez de ser a burguesia,

como sujeito pré-constituído, que tivesse concebido esse objetivo a partir de

uma ideologia já elaborada. O que precisa ser pensado aqui é uma certa

"lógica das práticas": primeiro existem as práticas, frequentemente disparatas,

que operacionalizam técnicas de poder (no primeiro plano técnicas

disciplinares) e é a multiplicação e a generalização de todas essas técnicas

que imprimem aos poucos uma direção global, sem que ninguém seja o

instigador desse "impulso em direção a um objetivo estratégico". Não se

poderia dizer melhor o modo pelo qual a concorrência constituiu-se como nova

norma mundial a partir de certas relações entre as força sociais e de certas

condições econômicas, sem ter sido "escolhida" de modo premeditado por um

qualquer "estado maior". Fazer aparecer a dimensão estratégica das políticas

neoliberais, significa não só fazer aparecer como elas se referem à escolha de

determinados meios (segundo o primeiro sentido do termo "estratégia"), é

igualmente fazer aparecer o caráter estratégico (no segundo sentido) do

objetivo da concorrência generalizada que permitiu dar a todos esses meios

uma coerência global. Precisamos analisar os seguintes pontos: a relação de

apoio recíproco entre as políticas neoliberais e as transformações do

capitalismo; essa transformação foi precedido e foi acompanhado por uma luta

ideológica, principalmente contra o Estado-previdência; foi preciso obter uma

transformação dos comportamentos que aconteceu via técnicas e dispositivos

disciplinares; a progressiva extensão desses sistemas disciplinares assim

como sua codificação institucional levaram finalmente ao estabelecimento de

uma racionalidade geral, espécie de novo regime das evidências impondo-se

aos governantes de todos as tendências como único quadro de inteligibilidade

das condutas humanas.

Nova regulação pela concorrência

O estabelecimento da norma mundial da concorrência operou-se pela

conexão de um projeto político com uma dinâmica endógena, ao mesmo tempo

tecnológica, comercial e produtiva. O programa político de Tatcher e de

Reagan, duplicado em seguida por um grande número de governos e replicado

por grandes organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial,

apresenta-se primeiramente como um conjunto de respostas a uma situação

considerada impossível de ser gerenciada. Principalmente, nascia da

consciência propagada por vários estudos, principalmente "The Crisis o

Democracy" da Comissão Trilateral, documento chave que testemunha da

consciência da "ingovernabilidade" das democracias compartilhada por muitos

dirigentes dos países capitalistas. Os peritos, convidados para formular seu

diagnóstico em 1975, constatavam que os governantes tornaram-se incapazes

de governar devido ao fato da demasiada implicação dos governados na vida

política e social. Segundo eles, a democracia política só pode funcionar com

"um certo grau de apatia e de não-participação de certos indivíduos e de certos

grupos". Eles pediam o reconhecimento do fato que "existe um limite desejável

para a extensão infinita da democracia política".

Essa chamada para colocar um limite às reivindicações traduzia a seu

modo a entrada em crise da antiga norma fordista. Essa última colocava em

coerência os princípios do taylorismo com a regras de partilha do valor

agregado favoráveis ao aumento regular dos salários reais (por indexação

sobre os preços e os ganhos de produtividade). Essa articulação da produção e

do consumo de massa apoiava-se também sobre o caráter relativamente auto-

centrado desse modelo de crescimento que garantia uma certa "solidariedade"

macroeconômica entre o salário e o lucro. Assim, esse crescimento sustentado

da renda assegurado pelo aumento dos ganhos de produtividade permitia de

escoar a produção de massa em mercados fundamentalmente domésticos. A

organização da atividade produtiva repousava sobre uma divisão do trabalho

muito forte, uma automatização crescente mas rígida, um ciclo

produção/consumo longo, permitindo obter economias de escala em bases

nacionais ou mesmo internacionais, essas últimas já sendo ligadas à

deslocalização massiva de seções de montagem nos países asiáticos. Tais

condições tornavam possíveis, no plano político e social, arranjos articulando

até um certo ponto a valorização do capital e um aumento dos salários reais. (o

"compromisso social democrata").

Contudo, desde o fim dos anos 1960, o modelo "virtuoso" do crescimento

fordista encontra limites endógenos. As empresas conhecem uma diminuição

sensível de suas taxas de lucro. Essa queda da lucratividade explica-se pelo

decréscimo dos ganhos de produtividade na relação com as forças sociais e a

combatividade dos assalariados (1968), pela forte inflação ampliada pelos

choques petroleiros dos anos 1973 e 1979. A estagflação parece assinar o

atestado de óbito da arte keynesiana de "pilotar a conjuntura" que suponha

uma arbitragem entre a inflação e a recessão.

O desregramento do sistema internacional estabelecido depois da

Segunda Guerra constituirá um fator suplementar de crise. A flutuação geral

das moedas a partir de 1973 abre a via para um aumento da influência dos

mercados sobre as políticas econômicas e, num contexto novo, a abertura

crescente das economias solapa as bases do circuito auto-centrado "produção

– renda – demanda".

A nova política monetarista tenta responder aos dois problemas maiores

que constituem a estagflação e o poder de pressão exercido pelas

organizações dos assalariados. Tratava-se, quebrando a indexação dos

salários sobre os preços, de transferir a punção operada pelos dois choques

petroleiros sobre o poder de compra dos assalariados a favor das empresas.

Os dois eixos principais da reviravolta da política econômica foram a luta contra

a inflação galopante e a restauração do lucro no fim dos anos 1970. O aumento

brutal das taxas de juros, pagando o preço de uma recessão severa e do

aumento do desemprego, permitiu relançar uma série de ofensivas contra o

poder sindical, de baixar as despesas sociais e os impostos e de favorecer a

desregulamentação.

Por um outro "círculo virtuoso", essa alta das taxas de juros desembocou

numa crise da dívida dos países latino-americanos o que permitiu que o FMI

impusesse determinadas reformas fundamentais em troca da negociação das

condições de reembolso da dívida.

Uma nova orientação tomou assim consistência nos dispositivos e

mecanismos econômicos que modificaram profundamente as "regras do jogo"

entre os vários capitalismos nacionais assim como entre as classes sociais

dentro de cada espaço nacional. As mais famosas das medidas engajadas

foram a grande vaga de privatização das empresas públicas (quase sempre na

bacia das almas) e o movimento gera de desregulamentação da economia. A

idéia diretora dessa orientação é que a liberdade dada aos atores privados, os

quais beneficiam de um melhor conhecimento do estado dos negócios e do seu

próprio interesse, é sempre mais eficaz do que a intervenção direta ou a

regulação política. Se a ordem econômica keynesiana e fordista repousava

sobre a idéia de que a concorrência entre empresas e economias capitalistas

devia ser enquadrada por regras fixas comuns em matéria de taxa de câmbio,

de políticas comerciais e de partilha de renda, a nova norma neoliberal

implementada no fim dos anos 1980 erige a concorrência como regra suprema

e universal de governo. Esse sistema definiu o que se pode chamar de sistema

disciplinar mundial. A formulação mais condensada foi o famoso "Consenso de

Washington".

As políticas seguidas pelos governos do Norte como dos do Sul

consistiram em buscar no aumento de suas fatias de mercado no nível mundial

a solução dos seus problemas internos. Ao mesmo tempo atores e objetos da

concorrência mundial, construtores e auxiliares do capitalismo financeiro, os

Estados são cada vez mais submetidos à lei de uma dinâmica da

mundialização escapa largamente a eles. Os dirigentes dos governos e dos

organismos internacionais (financeiros e comerciais) podem assim sustentar

que a mundialização é um fatum embora trabalhando continuamente para a

criação dessa suposta "fatalidade".

O desabrochar do capitalismo financeiro

No nível mundial, a difusão da norma neoliberal encontra um veículo

privilegiado na liberalização financeira e na mundialização da tecnologia. Um

mercado único de capitais instala-se através uma série de reformas da

legislação, sendo as mais significativas a liberação total do mercado de

câmbio, a privatização do setor bancário, o fim da separação dos vários setores

do mercado financeiro e, no nível regional, a criação da moeda única européia.

Essa liberalização política da finança está fundamentada na necessidade

financiamento da dívida pública que será satisfeita pelo recurso aos

investidores internacionais. Justifica-se no nível teórico pela superioridade da

concorrência entre atores financeiros sobre a administração do crédito pelo que

diz respeito ao financiamento das empresas, das famílias e dos Estados

endividados. Foi facilitada por uma revisão progressiva da política monetária

americana que abandonou o estritos padrões do monetarismo doutrinal.

A finança mundial conheceu durante duas décadas uma extensão

considerável. O volume de transações a partir dos anos 80 mostra que o

mercado financeiro se autonomizou em relação à esfera da produção e das

trocas comerciais, aumentando a instabilidade, que se tornou crônica, da

economia mundial. Desde quando a "globalização" é puxada pela finança, a

maioria dos países estão na impossibilidade de tomar medidas que iriam ao

encontro dos detentores do capital. Por isso eles impediram nem a formação

das bolhas especulativas nem seu estouro.

A passagem do capitalismo fordista para o capitalismo financeiro foi ainda

marcada por uma modificação sensível das regras de controle das empresas.

Uma das transformações maiores reside nos objetivos perseguidos pelas

empresas sob a pressão dos acionistas. De fato, o poder financeiro dos

proprietários da empresa fez com que eles conseguissem obter dos managers

que eles exercitem uma pressão contínua sobre os assalariados para aumentar

os dividendos e aumentar o preço das ações. Segundo essa lógica, a "criação

de valor" das ações, quer dizer a produção de valor para os acionistas tal qual

determinada pelos mercados de ações, torna-se o principal critério de gestão

dos dirigentes. Os comportamentos das empresas serão profundamente

afetados: elas desenvolverão todos os meios de aumentar essa "criação de

valor" financeira. A governança de empresa (corporate governance) está

diretamente ligada a vontade de tomada do controle da gestão da empresa

pelos acionistas. O mercado financeiro foi assim constituído como agente

disciplinador para todos os atores da empresa, desde o dirigente até o

assalariado da base: todos devem ser submetidos ao princípio de

accountability, quer dizer à necessidade de "prestar contas" e de ser avaliados

em função dos resultados obtidos.

Outras conseqüências importantes: primeiro, a concentração de renda e

dos patrimônios acelerou-se com a financiarização da economia. A deflação

salarial traduziu o aumento de poder dos possuidores de capitais que lhes

permitiu de captar um acréscimo importante de valor impondo seus critérios de

rendimento financeiro ao conjunto da esfera produtiva e colocando em

concorrência as forças de trabalho na escala mundial.

Segundo, a relação do sujeito consigo mesmo que foi profundamente

atingida. Devido a condições fiscais mais atrativas e a um encorajamento dos

poderes públicos, o patrimônio financeiro e imobiliário de muitas famílias de

classe média ou classe média alta aumentou consideravelmente nos anos 90.

Cada sujeito foi conduzido a conceber-se e comportar-se em todas as

dimensões de sua existência como um portador de capital a ser valorizado:

estudos universitários pagos, constituição de uma poupança aposentadoria

individual, compra da sua moradia, investimentos a longo prazo em bolsa,

esses são os aspectos dessa "capitalização da vida individual" que, ganhando

terreno no assalariado, contribuiu a erodir um pouco mais as lógicas de

solidariedade.

O que se chamou de "desregulamentação", expressão equívoca que

poderia deixar a entender que o capitalismo não conhece nenhum modo de

regulação, é na realidade um novo modo de pôr ordem nas atividades

econômicas, nas relações sociais, nos comportamentos e nas subjetividades.

O novo capitalismo está profundamente ligado à construção política de uma

nova finança global regida pelo princípio da concorrência generalizada. Pelas

suas reformas de liberalização e de privatização, o Estado constituiu uma

finança de mercado em vez de uma gestão mais administrada dos

financiamentos bancários das empresas e das famílias. Por um choque de

volta de sua própria ação, o Estado foi ele mesmo obrigado a realizar de modo

acelerado sua adaptação à nova situação financeira internacional. As

privatizações, assim como o encorajamento para a poupança individual,

acabaram dando um poder considerável para os banqueiros e as companhias

de seguros.

A assim chamada "liberalização da finança", que é mais propriamente a

construção dos mercados financeiros internacionais, gerou uma "criatura" cujo

poder é ao mesmo tempo difuso, global e incontrolável.

Paradoxalmente, o papel ativo dos Estados favoreceu o escorregão das

instituições de crédito . É bem a concorrência exacerbada entre instituições de

crédito "multifuncionais" que as levou a correr riscos cada vez maiores para

manter sua própria rentabilidade. Essa tomada de risco só era possível se o

Estado permanecesse o garante supremo do sistema. Na realidade, o Estado

neoliberal tem o papel de emprestador de último recurso.

Ideologia : "o capitalismo livre" e o "Estado previdência" e a

desmoralização dos indivíduos

Que tal ilusão seja tão comum é devido em parte a uma estratégia eficaz

de conversão dos espíritos que tomou desde os anos 60 e 70 a dupla forma de

uma luta ideológica contra o Estado e as políticas públicas de um lado e uma

apologia do capitalismo mais desbragado do outro lado. Essa conquista política

e ideológica foi objeto de números trabalhos (Hayek, Von Mises, Friedman). É

pela fixação e a repetição dos mesmos argumentos que uma vulgata conseguiu

se impor em todos os lugares, particularmente na mídia, nas universidades e

no mundo político. Não se pode, contudo, esquecer que não é somente a força

das idéias neoliberais que assegurou sua hegemonia. Elas se impuseram a

partir do enfraquecimento das doutrinas de esquerda e do desabamento de

toda alternativa ao capitalismo.

Ao mesmo tempo, um grande número de teses, de relatórios, de ensaios

e de artigos buscarão calcular o custo e as vantagens do Estado para concluir

que os salários desempregos e a cobertura das despesas de saúde aprofunda

os déficits e provoca a inflação dos custos e as políticas de redistribuição de

renda não reduzem as desigualdades e desencorajam o esforço e tornam os

impostos mais pesados. Isso sem considerar, segundo esses autores, o custo

moral: o Estado Previdência destrói as virtudes da sociedade civil, a

honestidade, o gosto para o trabalho bem feito, o esforço pessoal, a civilidade,

o patriotismo. Não é o mercado que destrói a sociedade civil pelo "apetite pelo

lucro", porque ele não poderia funcionar sem essas virtudes da sociedade civil.

Uma das constantes do discurso neoliberal é sua crítica do

"assistencialismo" gerado pela cobertura generosa demais dos riscos dos

sistemas de assistência social. Não somente os reformadores neoliberais

usaram o argumento da eficácia e do custo, eles focaram também a

superioridade moral das soluções de mercado ou inspiradas pelo mercado.

Essa crítica baseia-se num postulado que diz respeito à relação do indivíduo

com o risco. O "Estado Providência", querendo promover o bem-estar da

população por mecanismos de solidariedade, desresponsabilizou os indivíduos

e os dissuadiu de buscar trabalho, de estudar, de cuidar dos seus filhos, de

premunir-se contra as doenças devido a práticas nocivas. O remédio consiste

em usar em todos os campos e em todos os níveis, porém primeiramente no

nível, microeconômico, dos indivíduos, os mecanismos do cálculo individual.

Isso deveria ter um duplo efeito: uma moralização dos comportamentos e uma

maior eficiência dos sistemas sociais. Numa palavra, a proteção social é

destruidora dos valores sem os quais o capitalismo não poderia mais funcionar.

Um novo discurso valorizando o "risco" inerente à existência individual e

coletiva tenderá a fazer pensar que os dispositivos do Estado Social são

profundamente nocivos para a criatividade, a inovação, a auto-realização. Se

cada um for o único responsável pela própria sorte, a sociedade não lhe deve

nada, enquanto ele deve constantemente trazer as provas que ele merece as

condições de sua existência. A vida é uma perpétua gestão dos riscos que

exige uma rigorosa abstenção das práticas perigosas, o controle permanente

de si, uma regulação dos próprios comportamentos que mescla ascetismo e

flexibilidade. A grande palavra da sociedade do risco é a "auto-regulação".

Essa "sociedade do risco" tornou-se uma dessas evidências que acompanha

as mais variadas proposições da proteção e do seguro privados. Um imenso

mercado da segurança pessoal desenvolveu-se em paralelo ao

enfraquecimento dos dispositivos de seguros coletivos obrigatórios, reforçando

assim o sentimento do risco e da necessidade de proteger-se individualmente.

Por uma espécie de extensão dessa problemática do risco, um certo número

de atividades foram reinterpretadas como meios de proteção pessoal. Assim, a

educação e a formação profissional são olhadas como escudos que protegem

contra o desemprego e aumentam a "empregabilidade".

Para entender essa nova moral, é preciso entender a "revolução" operada

por economistas americanos desde os anos 60 (por exemplo G. Becker). A

razão econômica aplicada a todas as esferas da ação privada e pública permite

derreter as linhas de separação entre política, sociedade e economia. Global,

ela deve estar na base de todas as decisões individuais, permite a

inteligibilidade de todos os comportamentos, e só ela deve estruturar e legitimar

a ação do Estado. É preciso sair dos domínios tradicionais da análise

econômica para generalizar a análise custo-benefício para o conjunto do

comportamento humano.

Os economistas americanos querem estabelecer que as ferramentas mais

tradicionais da análise são suscetíveis de uma maior extensão, mostrando que

se pode fazer da economia uma revolução paradigmática e conservar as

velhas ferramentas do cálculo de maximização. A família, o casamento, a

delinqüência, a educação, o desemprego, assim como a ação coletiva, a

decisão política, a legislação tornam-se objetos do raciocínio econômico.

Assim, G. Becker formula uma nova teoria da família, considerando-a uma

firma utilizando um certo volume de recursos em moeda e em tempo para

produzir "bens" de várias naturezas: competências, saúde, auto-estima e

outras "mercadorias" como as crianças, o prestígio, a inveja, o prazer dos

sentidos etc.

O fundamento da reflexão de G. Becker consiste a estender a função de

utilidade utilizada na análise econômica de tal modo que o indivíduo seja

considerado um produtor e não um simples consumidor. Ele produz

mercadorias que o satisfarão utilizando bens e serviços comprados nos

mercados, tempo pessoal e outros inputs que têm valor, preços escondidos

mas calculáveis. Trata-se portanto de escolher entre as "funções de produção",

supondo que todo bem é "produzido" pelo indivíduo que mobiliza recursos

variados, dinheiro, tempo, capital humano e mesmo as relações sociais

identificadas a um "capital social".

O essencial, nesse re-investimento da regiões exteriores ao campo

classicamente delimitado pela ciência econômica, é dar uma consistência

teórica à antropologia do homem neoliberal para fornecer apoios discursivos

indispensáveis a governabilidade neoliberal da sociedade. Contudo, por mais

influente que seja, sozinha essa concepção do homem como capital – o que é

propriamente o significado do conceito de "capital humano" – não pôde

produzir as mutações subjetivas de massa que se pode constatar hoje. Foi

preciso para isso que ela se materialize por meio de dispositivos múltiplos,

diversificados, simultâneos ou sucessivos, que modelaram duravelmente a

conduta dos sujeitos.

Disciplina 1: um novo sistema de disciplinas

O conceito mesmo de governabilidade, enquanto ação sobre as ações

dos indivíduos supostamente livres para sua escolhas, permite redefinir a

disciplina como técnica de governo própria para as sociedades de mercado.

Longe de opor a "disciplina", a "normalização" e o "controle", Michel Foucault

fez cada vez aparecer melhor a matriz dessa nova forma de "conduta das

condutas", a qual pode ser diversificada segundo os casos a serem tratados,

desde o fechamento dos prisioneiros até a vigilância da qualidade dos produtos

a serem vendidos no mercado. Se "governar for estruturar o campo de ação

eventual dos outros", a disciplina pode ser redefinida, de modo mais amplo,

como um conjunto de técnicas de estruturação do campo de ação, diferentes

segundo a situação na qual o indivíduo se encontra.

Desde a idade clássica das disciplinas, o poder não pode ser exercido

simplesmente por uma pura pressão sobre os corpos: deve acompanhar o

desejo individual e orientá-lo fazendo valer todos os aspectos da "influência".

Isto supõe que ele penetre no cálculo individual, que ele participe dele, para

agir sobre as antecipações imaginárias que fazem os indivíduos: para reforçar

o desejo pela recompensa, para enfraquecê-lo pela punição, para desviá-lo

pela substituição de objeto.

Essa lógica que consiste em dirigir indiretamente a conduta é o horizonte

das estratégias neoliberais de promoção da "liberdade de escolher". Não se

enxerga sempre a dimensão normativa que lhes pertence necessariamente: a

"liberdade de escolher" identifica-se à necessidade de obedecer a uma conduta

de maximização num quadro legal, institucional, regulador, relacional que deve

precisamente ser construído para que o indivíduo escolha "em toda liberdade"

o que ele deve obrigatoriamente escolher para seu próprio interesse.

Três aspectos das disciplinas neoliberais devem ser distinguidas:

1. A liberdade dos sujeitos econômicos supõe primeiro a segurança

dos contratos e a fixação de um quadro estável. O cálculo individual deve

poder apoiar-se numa ordem de mercado estável, o que exclui de fazer

do próprio quadro o objeto de um cálculo.

2. A estratégia neoliberal consistirá então em criar o maior número

possível de situações de mercado, quer dizer em organizar por vários

meios (privatização, concorrência de serviços públicos etc.) a "obrigação

de escolher", para que os indivíduos aceitem a situação de mercado tal

como lhes é imposta como "realidade" quer dizer como única "regra do

jogo", e integrem a necessidade de operar um cálculo de interesse

individual se eles não quiserem perder "no jogo" e, mais ainda, se

quiserem valorizar seu capital pessoal num universo onde a acumulação

parece ser a lei geral da existência.

3. Dispositivos de recompensa e de punição, sistemas de incitação e

de "desincitação" substituirão enfim as sanções do mercado para guiar a

escolha e a conduta dos indivíduos lá onde as situações comerciais ou

quase comerciais não são inteiramente realizáveis.

O orçamento torna-se ele mesmo um instrumento de disciplina dos

comportamentos. O objetivo da diminuição da pressão fiscal assim como a

recusa em aumentar as cotizações sociais foram os meios, mais ou menos

eficazes segundo as situações de relação de força, de impor reduções dos

gastos públicos e dos programas sociais em nome do respeito dos equilíbrios e

da limitação da dívida do Estado. Tudo acontece assim como se o Estado

proibisse para si mesmo, por essas regras, de usar algumas alavancas sobre o

nível de atividade; ao mesmo tempo, obrigando os agentes a interiorizá-las, ele

se dá os meios de agir permanentemente por uma "corrente invisível", para

usar a expressão de Bentham, que os obrigaria a comportar-se como

indivíduos em competição uns com os outros.

Um dos argumentos maiores das políticas neoliberais consistiu em

denunciar a demasiada rigidez do mercado de trabalho. A idéia diretora é a

contradição que existiria entre a proteção da mão de obra e a eficácia

econômica. Não se trata de suprimir puro e simplesmente toda ajuda aos

desempregados, mas de agir de modo que a ajuda leve a uma maior docilidade

dos trabalhos privados de emprego. Trata se de fazer do mercado do emprego

um mercado muito mais conforme ao modelo da concorrência pura, não

simplesmente por cuidado dogmático, mas para disciplinar melhor a mão de

obra ordenando ela aos imperativos da restauração da rentabilidade. Assim, a

disciplina neoliberal consiste em "responsabilizar" os desempregados utilizando

a arma da punição para quem não aceitaria o suficiente dobrar-se às regras do

mercado. Essa política disciplinar questiona radicalmente os princípios de

solidariedade com as vítimas econômicas eventuais dos riscos econômicos.

Disciplina 2: a obrigação de escolher

A "liberdade de escolha" é um tema fundamental das novas normas de

conduta dos sujeitos. Parece que não se pode conceber um sujeito que não

seja ativo, calculador, na espreita das melhores oportunidades. Trata-se de fato

de construir novas pressões que colocam os indivíduos em situações nas quais

eles são obrigados a escolher entre ofertas alternativas e são incitados a

maximizar seu interesse próprio. A "liberdade de escolher", que resume para

M. Friedman todas as qualidades que se pode esperar do capitalismo

concorrencial, constitui uma das principais missões do Estado. Não só ele tem

por tarefa de reforçar a concorrência nos mercados existentes, mas ele tem

igualmente a de criar a concorrência onde ela não existe ainda. É que o

capitalismo é o único sistema capaz de proteger a liberdade individual em

todos os campos, particularmente no campo político. Trata-se portanto de

introduzir dispositivos de mercado e incitações quase mercantils para obter que

os indivíduos se tornem ativos, empreendedores, "atores de suas escolhas",

"tomadores de riscos".

Disciplina 3: a gestão neoliberal da empresa

A extensão e a intensificação das lógicas de mercado tiveram efeitos

muito sensíveis na organização do trabalho e nas formas de emprego da força

de trabalho. A lógica do poder financeiro só acentuou o disciplinamento dos

assalariados submetidos a exigências de resultados cada vez mais elevadas. A

busca obsessiva da mais valia nas bolsas não só acarretou garantir aos

proprietários do capital um aumento continuo da sua renda em relação à dos

assalariados, o que levou a uma divergência maior da evolução dos salários

relativamente à dos ganhos de produtividade e uma acentuação cada vez

maior das desigualdades de distribuição de renda. Outrossim, traduziu-se pela

imposição de normas de rentabilidade mais elevadas em todas as economias,

em todos os setores e em todos os escalões da empresa. Um número cada vez

maior de assalariados está sendo submetido a sistemas de incitação e de

sanção visando atingir ou ultrapassar objetivos de criação de valor para os

acionistas, objetivos por sua vez definidos por métodos de ajuste a normas

internacionais de rentabilidade. Toda uma disciplina de valor aos acionistas

tomou assim forma nas técnicas contábeis e avaliadoras da gestão de mão de

obra cujo princípio consiste em fazer de cada assalariado um "centro de lucro"

individual. É que o princípio da gestão neoliberal visa ao mesmo tempo

"internalizar" as coações da rentabilidade financeira na própria empresa e fazer

interiorizar pelos assalariados as novas normas de eficácia produtiva e de

performance individual.

O sentido da obediência foi também profundamente modificado: mais do

que obedecer a procedimentos formais e a comandos hierárquicos, os

assalariados são conduzidos a dobrar-se às exigências de qualidade e de

prazos impostos pelo "cliente" erigido em fonte exclusiva de coações

incontornáveis. Em todos os casos, a individualização das performances e das

gratificações permitiu a colocação em concorrência dos assalariados entre eles

como tipo normal de relação dentro da empresa. Tudo aconteceu como se o

mundo do trabalho tivesse "internalizado" a lógica da competição exacerbada

existindo ou devendo existir entre as empresas ao mesmo tempo que a lógica

concorrencial para captar e guardar os capitais trazidos pelos acionistas,

empurrando para a "criação de valor" em seu proveito.

Esse "novo management" tomou formas muito diversificadas:

contratualidade das relações sociais, descentralização das negociações entre

assalariados e patrões no nível da empresa, colocação em concorrência das

unidades da empresa entre elas ou com unidades externas, normalização pela

imposição generalizada de padrões de qualidades, surgimento da avaliação

individualizada dos resultados. A fronteira entre o que está dentro e fora da

empresa tornaram-se mais fluídas com o advento da terceirização, a

autonomização das entidades na empresa, o recurso ao emprego temporário,

as estruturas de projeto, o trabalho recortado em "missões" e o uso de

consultores externos.

Isso levou a um enfraquecimento e uma instabilidade dos coletivos de

trabalho. Essa gestão mais "personalizada" e mas fluída influencia a

concorrência entre assalariados e entre segmentos da empresa para coagi-los

por uma comparação dos resultados e dos métodos (benchmarking) a alinhar-

se segundo um processo sem fim às performances máximas e às "melhores

práticas". A avaliação torna-se a chave da nova organização o que não deixa

de cristalizar as tensões de todos os tipos, por exemplo a que vem da

contradição entre a injunção à criatividade e à tomada de risco e o julgamento

social que vem como uma chamada a lembrar as relações efetivas de poder na

empresa.

Esse novo modo de organização da empresa teve conseqüências

importantes para o trabalho e o emprego. Traduziu-se pela intensificação do

trabalho, pelo encurtamento dos prazos, pela individualização dos salários.

Esse último método, ligando a remuneração com a performance e a

competência, aumenta o poder da hierarquia e reduz todas as formas coletivas

de solidariedade. O management procura assim captar as energias individuais,

não segundo uma lógica "artista" ou "hedonista" mas segundo um regime de

autodisciplina que manipula as instâncias psíquicas de desejo e de

culpabilização.

Esse controle da subjetividade opera eficazmente só no quadro de um

mercado de trabalho flexível onde a ameaça do desemprego está no horizonte

de cada assalariado. É também o produto de técnicas de gestão que buscaram

objetivar as coações de mercado e as exigências de rentabilidade financeira

sob a forma de indicadores cifrados de objetivos e de resultados e, pela

individualização de performances medidas e discutidas no decorrer de

conversas pessoais, fazer interiorizar pelos assalariados a necessidade vital de

melhorar sem cessar sua "empregabilidade". O cúmulo do autocontrole, quer

dizer também do mecanismo perverso que faz de cada um o "instrumento de si

mesmo", acontece quando o assalariado é convidado a definir não só os

objetivos que ele deve atingir mas também os critérios segundo os quais ele vai

ser julgado.

Racionalidade: a prática dos peritos e dos administradores

Não se trata mais como no tempo do Estado de Bem Estar Social de

redistribuir bens segundo um regime de direitos universais à vida, quer dizer à

saúde, à educação, à integração social, à participação política, mas sim de

apelar para a capacidade calculadora dos sujeitos para fazer escolhas e para

atingir resultados postos como condições de acesso a um certo bem-estar. O

que supõe que os sujeitos, para "serem responsáveis" disponham dos

elementos de cálculo, dos indicadores de comparação, das traduções

contábeis de suas ações ou ainda, mais radicalmente, da monetarização de

suas escolhas: é preciso "responsabilizar" os doentes, os alunos e suas

famílias, os estudantes, os que estão à procura de um emprego, fazendo que

eles arquem por uma parte crescente do "custo" que eles representam,

exatamente como é preciso "responsabilizar" os assalariados individualizando

as recompensas e as penalidades ligadas a seus resultados. Esse trabalho

político e ético de responsabilização está de acordo com numerosas formas de

"privatização" da conduta porque a vida apresenta-se tão somente como o

resultado de escolhas individuais.

Capítulo 12: O governo empreendedor

Por razões contrárias, os "liberais" assim como os "antiliberais" parecem

sempre ratificar a separação tradicional entre a esfera dos interesses privados

e a do Estado, como se a primeira pudesse funcionar de modo autônomo e

auto-regulado. Contudo, faz muito tempo que a fábula da imaculada conceição

do mercado espontâneo e autônomo já foi posta em dúvida. Esquece-se

demais do que o neoliberalismo não procura tanto o "recuo" do Estado e o

alargamento dos campos da acumulação do capital quanto a transformação da

ação pública fazendo do Estado uma esfera regida, também, pela regras da

concorrência e submetida às exigências de eficácia semelhantes às das

empresas privadas. É a transformação da concepção da ação publica que

mudou sob o efeito da lógica da competição mundial. Se o Estado for olhado

como um instrumento encarregado de reformar e de gerir a sociedade para

colocá-la a serviço das empresas, ele deve submeter-se ele mesmo às regras

de eficácia das empresas privadas.

O management se apresenta como um modo de gestão "genérico", válido

para todos os campos, como uma atividade puramente instrumental e formal

transponível para o setor público inteiro. Essa mutação empreendedora não

visa simplesmente aumentar a eficácia e a reduzir os custos da ação publica:

subverte radicalmente os fundamentos modernos da democracia, quer dizer o

reconhecimento dos direitos sociais ligados ao estatuto de cidadão.

Essa redução da intervenção política a uma interação horizontal com

atores privados introduz uma mudança de perspectiva. Não é mais

simplesmente, como no tempo dos primeiros utilitaristas, a questão geral da

utilidade de sua ação que é colocada para o Estado, é a questão da medida

quantificada de sua eficácia comparada à de outros atores. É essa nova

concepção "desencantada" da ação publica que conduz a ver no Estado uma

empresa situada no mesmo plano das entidades privadas, a qual "empresa

estadual" tem só um papel reduzido em matéria de produção do "interesse

geral".

A instituição do mercado regido pela concorrência, construção querida e

sustentada pelo Estado, foi confortada e prolongada por uma orientação que

consistiu a "importar" as regras de funcionamento do mercado concorrencial no

setor publico, no sentido mais largo, até pensar o exercício do poder

governamental segundo a racionalidade da empresa.

Da "governança de empresa" para a "governança de Estado"

A palavra "governança" tornou-se a palavra chave da nova norma

neoliberal na escala mundial. A palavra "governança" (gobernantia) é antiga: no

século XIII, ele designa a arte de governar. O termo desdobrou-se

progressivamente nas noções de soberania e de governo durante todo o

período de formação dos Estados-Nações. Reencontrou um vigor nos países

anglo-saxônicos para significar num primeiro tempo uma modificação das

relações entre managers e acionistas, antes de receber um significado político

e um alcance normativo quando ele foi aplicado às práticas dos governos

submetidos às exigências da mundialização. Torna-se então a categoria

principal empregada pelos grandes organismos internacionais encarregados da

difusão dos princípios da disciplina neoliberal na escala mundial. A polissemia

do termo é uma indicação do seu uso. Permite de fato reunir três dimensões do

poder, cada vez mais mescladas: a conduta das empresas, a conduta dos

Estados e, finalmente, a conduta do mundo.

Essa categoria política de "governança" ou, mais exatamente, de "boa

governança", desempenha um papel central na difusão da norma da

concorrência generalizada. A "boa governança" é a que respeita as condições

de gestão colocadas para os empréstimos de ajuste estrutural e, em primeiro

lugar, a abertura aos fluxos comerciais e financeiros, de modo que ela está

estreitamente ligada a uma política de integração ao mercado mundial. Aos

poucos, ela toma o lugar da categoria antiquada e desvalorizada de

"soberania". Um Estado não deverá mais ser julgado sobre sua capacidade de

assegurar sua soberania sobre um território, segundo a concepção ocidental

clássica, mas sobre seu respeito das normas jurídicas e das "boas práticas"

econômicas da "governança".

A governança dos Estados empresta da governança da empresa um

caráter maior. Assim como os managers da empresa foram colocados sob a

vigilância dos acionistas no quadro da corporate governance a dominante

financeira, os dirigentes dos Estados foram colocados pelas mesmas razões

debaixo do controle da comunidade financeira internacional, de organismos de

expertise, de agências de notação. A homogeneidade dos modos de

pensamento, a identidade dos instrumentos de avaliação e de validação da

políticas publicas, as auditorias e os relatórios de consultores, todo indica que a

nova maneira de refletir a ação governamental tomou largamente emprestado

da lógica managerial implementada nos grandes grupos multinacionais.

A partir do momento em que os investidores estrangeiros respeitam as

regras da corporate governance eles esperam que os dirigentes locais adotam

as regras de state governance. Percebe-se assim que essa última consiste em

uma tomada de controle dos Estados por um conjunto de instâncias supra-

governamentais e privadas determinando os objetivos e os meios da política a

ser conduzida. Nesse sentido, os Estados são olhados como "unidades

produtivas" como as outras no meio de uma vasta rede de poderes político-

econômicos submetidos às mesmas regras. A nova norma concorrencial

acarretou o desenvolvimento crescente de formas múltiplas de concessão de

autoridade às firmas privadas, até o ponto que se pode falar, em múltiplos

campos, de uma co-produção público-privada de normas internacionais. O

Estado concorrencial não é o Estado árbitro entre os interesses: é o Estado

parceiro dos interesses oligopolistas na guerra econômica mundial

Capítulo 13: A fábrica do sujeito neoliberal

O sujeito neoliberal em formação é o correlato de um dispositivo de

performance e de gozo que é o objeto de numerosos trabalhos mas esse

quadro muito geral é ainda insuficiente para perceber como uma nova lógica

normativa conseguiu se impor nas sociedades ocidentais. Particularmente, ele

não permite apontar as modificações que a história do sujeito ocidental pôde

conhecer nesses últimos três séculos, menos ainda as transformações em

andamento que podem ser relacionadas à racionalidade neoliberal.

É que, se existir um novo sujeito, ele deve ser apanhado nas práticas

discursivas e institucionais que, no fim do século XX, geraram a figura do

homem-empresa ou do "sujeito empreendedor" favorecendo a implementação

de uma rede de sanções, de incentivos, de implicações que tiveram por efeito

de produzir funcionamentos psicológicos de um novo tipo. Fazer acontecer o

objetivo de reorganizar de ponta a cabeça a sociedade, as empresas, as

instituições pela multiplicação e a intensificação dos mecanismos, dos

relacionamentos e dos comportamentos de mercado, eis o que não pode não

acarretar um tornar-se outro dos sujeitos. O homem neoliberal é o homem

competitivo, integralmente imerso na competição mundial.

O sujeito plural e a separação das esferas

O sujeito ocidental vivia em três espaços diferentes: o das prestações e

crenças de uma sociedade ainda rural e cristianizada; o dos Estados-Nações e

da comunidade política; o do mercado monetário do trabalho e da produção.

Essa repartição foi sempre muito flexível, e todo o jogo das relações de força e

das estratégias políticas consistia precisamente em fixar e modificar as

fronteiras. Mais importantes e mais difíceis a serem percebidos são as

modificações progressivas das relações humanas, a transformação das

práticas cotidianas induzidas pela economia nova, os efeitos subjetivos das

novas relações sociais no espaço mercantil e as novas relações políticas no

espaço de soberania.

As democracias liberais foram o universo de tensões múltiplas e de surtos

disjuntivos. Podem ser descritas como regimes que permitiam e respeitavam

em certos limites um funcionamento heterogêneo do sujeito, no sentido de que

elas asseguravam ao mesmo tempo a separação e a articulação das diferentes

esferas da vida. Essa heterogeneidade traduzia-se pela independência relativa

das instituições, das regras, das normas morais, religiosas, políticas,

econômicas, estéticas, intelectuais. Isso não quer dizer que se esgota, por essa

característica de equilíbrio e de "tolerância", a natureza do movimento que as

animou. Dois grandes surgimentos paralelos tiveram lugar: a democracia

política e o capitalismo. O homem moderno, então, desdobrou-se: o cidadão

dotado de direitos inalienáveis e o homem econômico guiado pelo próprio

interesse; o homem como "fim" e o homem como "ferramenta". A historia dessa

"modernidade" consagrou o desequilíbrio em favor do segundo pólo.

Com a urbanização, a mercantilização das relações sociais foi um dos

fatores mais poderosos da "emancipação" dos indivíduos em relação às

tradições, das raízes, dos vínculos familiares e das fidelidades pessoais. Essa

mercantilização expansiva tomou nas relações humanas a forma geral da

contratualização. Os contratos voluntários engajando pessoas livres, contratos

sempre garantidos pela instância soberana, substituíram as formas

institucionais da aliança e da filiação e, mais geralmente, as formas antigas da

reciprocidade simbólica. O contrato tornou-se mais do que nunca o padrão de

todas as relações humanas. Assim, o indivíduo tem cada vez mais

experimentado na sua relação com os outros sua plena e inteira liberdade de

engajamento voluntário, percebendo a "sociedade" como um conjunto de

relações da associação entre pessoas dotadas de direitos sagrados. Aí está o

coração do que se chama de "individualismo" moderno.

Como mostrou Émile Durkheim, existe uma grande ilusão na medida em

que, no contrato, existe sempre mais do que o contrato: sem a garantia do

Estado, nenhuma liberdade pessoal conseguiria existir. Pode se dizer também,

com Michel Foucault, que debaixo do contrato existem muitas outras coisas

diferentes do contrato assim como debaixo da liberdade subjetiva, existe outra

coisa diferente da liberdade subjetiva. Existe o agenciamento de processos de

normalização e de técnicas disciplinares que constituem o que pode ser

chamado de dispositivo de eficácia. Nunca os sujeitos seriam voluntariamente

ou espontaneamente "convertidos" à sociedade industrial e mercantil somente

pela propaganda da livre troca nem mesmo somente pela atração do

enriquecimento privado. Foi preciso pensar e instalar, por uma "estratégia sem

estrategistas", formas de educação do espírito, de controle do corpo, de

organização do trabalho, de habitat, de descanso e de lazer que eram a forma

institucional do novo ideal do homem, ao mesmo tempo indivíduo calculador e

trabalhador produtivo. É esse dispositivo de eficácia que forneceu à atividade

econômica os "recursos humanos" necessários, é ele que não cessou de

produzir almas e corpos aptos a funcionar no grande circuito da produção e do

consumo. Numa palavra, a nova normatividade das sociedades capitalistas

impôs-se por uma normalização subjetiva do sujeito particular.

Michel Foucault deu a esse processo uma primeira cartografia,

problemática. O princípio geral do dispositivo de eficácia não é tanto um

"adestramento dos corpos" quanto uma "gestão dos espíritos". Mais

exatamente, seria preciso dizer que a ação disciplinar sobre os corpos foi só

um momento e só um aspecto do funcionamento da subjetividade. O novo

governo dos homens penetra até seu pensamento, o acompanha, o orienta, o

estimula, o educa. Postular a liberdade de escolha, suscitar essa liberdade,

constituí-la praticamente, supõe que os sujeitos sejam conduzidos, como por

uma "mão invisível", a fazer escolhas que serão proveitosos para ele mesmo e

para todos. O pano de fundo dessa representação não está tanto um grande

engenheiro, segundo o modelo do Relojoeiro supremo, quanto uma máquina

que funciona idealmente sozinha e que encontra em cada sujeito uma

engrenagem pronta para responder às necessidades de agenciamento do

conjunto. Essa engrenagem deve ser fabricada e ter manutenção.

O sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial. Fabricar

homens úteis, dóceis para o trabalho, prontos para consumir, fabricar o homem

eficaz, eis o que é desenhado, já na obra de Bentham. Contudo, o utilitarismo

clássico, apesar do seu formidável trabalho de destruição das categorias

antigas, não conseguiu eliminar a pluralidade interior do sujeito assim como a

separação das esferas à qual essa pluralidade respondia. O princípio de

utilidade, cuja vocação homogeneizadora era explícita, não conseguiu absorver

todos os discursos e todas as instituições, assim como o equivalente geral da

moeda não conseguiu subordinar todas as atividades sociais. É precisamente

esse caráter plural do sujeito e essa separação que estão sendo questionados

hoje.

O momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do

discurso do homem ao redor da figura da empresa. Essa nova figura do sujeito

opera uma unificação sem precedente das formas plurais da subjetividade que

deixava subsistir a democracia liberal e com as quais ela sabia jogar para

melhor perpetuar sua existência. Várias técnicas contribuem para fabricar esse

novo sujeito unitário que podemos chamar indiferentemente de "sujeito

empreendedor" ou "sujeito neoliberal", ou, mais simplesmente ainda,

neosujeito. Não lidamos mais com as antigas disciplinas orientadas, por

coação, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis,

metodologia institucional em crise há muito tempo. Trata-se de governar um ser

cuja a inteira subjetividade deve ser envolvida na atividade que ele deve

cumprir. Para esse fim, deve se reconhecer nele a parte irredutível do desejo

que o constitui. Não se trata mais tanto de reconhecer que o homem ao

trabalho permanece um homem, não redutível ao status de objeto passivo;

trata-se de ver nele um sujeito ativo que deve participar totalmente, engajar-se

plenamente, entregar-se inteiramente na sua atividade profissional. O sujeito

unitário é assim o sujeito do comprometimento total de si. É a vontade de

realizar-se, o projeto que se quer levar adiante, a motivação que anima o

"colaborador" da empresa, enfim o desejo que é o alvo do novo poder. O ser

desejoso não é só o ponto de aplicação desse novo poder, é o retransmissor

dos dispositivos de direção das condutas. Porque o efeito buscado pelas novas

práticas de fabricação e de gestão do novo sujeito é fazer que o indivíduo

trabalhe para a empresa como se fosse para ele mesmo, suprimindo assim

qualquer sentimento de alienação e mesmo qualquer distância entre o

indivíduo e a empresa que o emprega. Ele deve trabalhar para a própria

eficácia, para a intensificação do próprio esforço, como se essa conduta de si

viesse dele mesmo, como se fosse mandada de dentro dele pela ordem

imperiosa do próprio desejo ao qual nem se pode pensar resistir.

As novas técnicas da "empresa de si" conseguem o cúmulo da alienação

pretendendo suprimir todo sentimento de alienação: obedecer ao próprio

desejo e ao Outro que fala baixinho dentro de si, é a mesma coisa. É o que

pode ser obtido as finas técnicas de motivação, de incitação e de estimulação.

A "cultura de empresa" e a nova subjetividade

A governabilidade empreendedora tem a ver com uma racionalidade de

conjunto que tira sua força de seu próprio caráter globalizante porque permite

descrever as novas aspirações e as novas condutas dos sujeitos, de

prescrever os modos de controle e de influência que devem ser exercidos

sobre eles nos seus comportamentos e de redefinir as missões e as formas da

ação pública. Do sujeito até o Estado, passando pela empresa, um mesmo

discurso permite articular uma definição do homem com o modo pelo qual ele

quer "ser bem sucedido" na sua existência assim como com o modo pelo qual

ele deve ser "guiado", "motivado", "formado" e "capacitado" para alcançar seus

objetivos. Em outras palavras, a racionalidade neoliberal produz o sujeito que

ela necessita dispondo os meios de governar para que ele se conduza

realmente como uma entidade em competição que deve maximizar seus

resultados expondo-se a riscos que deve enfrentar assumindo a

responsabilidade por fracassos eventuais. "Empresa" é assim o nome que se

deve dar ao governo de si mesmo na idade neoliberal. O novo governo dos

sujeitos supõe de fato que a empresa não seja primeiro uma "comunidade" ou

um lugar de realização, mas sim um instrumento e um espaço de competição.

Perito de si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo,

empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal leva o "eu" a agir sobre

si mesmo no sentido de seu próprio fortalecimento para sobreviver na

competição.

As técnicas de gestão (avaliação, projeto, normatização dos

procedimentos, descentralização) são supostas permitir objetivar a adesão do

indivíduo à norma de conduta que é esperada dele, de avaliar por grades, e

outros instrumentos de registro no "painel de bordo" do seu manager, sua

implicação subjetiva sob pena de penalização no seu emprego, na sua

remuneração e no seu plano de carreira. Isso não acontece sem

arbitrariedades de uma hierarquia convidada a manipular categorias

psicológicas apresentadas como devendo garantir a "objetividade" da medida

das competências e das performances.

A racionalidade empresarial apresenta a incomparável vantagem de

reunir todas as relações de poder na trama de um mesmo discurso. O léxico da

empresa apresenta um potencial de unificação dos diferentes "regimes de

existência", o que explica que os governos recorram bastante a ele.

Estabelecendo uma correspondência estreita entre o governo de si e o governo

das sociedades, a empresa define uma nova ética, quer dizer uma certa

disposição interior, um certo ethos, que precisa ser encarnado por um trabalho

de vigilância exercitado sobre si e que os processos de avaliação são

encarregados de reforçar e de verificar.

A "empresa de si", segundo B. Aubrey representativo dessa corrente de

pensamento, pode ser considerada como uma "entidade psicológica e social,

quase espiritual", ativa em todos os campos e presente em todas as relações.

É principalmente a resposta a uma nova regra do jogo que muda radicalmente

o contrato de trabalho, ao ponto de aboli-lo como relação salarial. A

responsabilidade relativamente à valorização de seu trabalho tornou-se o

princípio absoluto. Em outras palavras, o trabalho tendo se tornado um produto

cujo valor de mercado pode ser medido com cada vez mais precisão, o tempo

veio de substituir o contrato salarial por uma relação contratual entre "empresas

de si". Toda a atividade do indivíduo é concebida como um processo de

valorização de si. Por isso o termo "empresa" não é metafórico: ele significa

que a atividade do indivíduo em todas as suas facetas (trabalho remunerado,

trabalho voluntário, gestão da família, aquisição de competências,

desenvolvimento de uma rede de contatos, preparação de uma mudança de

atividade...) é pensada como empreendedora na sua essência.

"Management da alma"e management da empresa

Tudo isso faz reportar todo o peso da complexidade e da competição

unicamente sobre o indivíduo. Os "managers da alma" (expressão de Jacques

Lacan retomada por Valérie Brunel) introduzem uma nova forma de governo

que consiste em conduzir os sujeitos fazendo que eles assumam a espera de

um certo comportamento e de uma certa subjetividade ao trabalho.

Uma nova ascética encontra sua justificação última numa ordem

econômica que ultrapassa o indivíduo, porque é expressamente concebida

para harmonizar a conduta do indivíduo à "ordem cosmológica" da competição

mundial que o circunda. Trabalha-se sobre si mesmo para performar mais, mas

esse trabalho para performar mais tem por finalidade que a empresa, que

constitui a entidade de referência, performe mais. Mais ainda, os exercícios que

são supostos trazer uma melhoria na conduta do sujeito visam a fazer do

indivíduo um "microcosmo" em perfeita harmonia com o mundo da empresa e,

além dela, com o "macrocosmo" do mercado mundial.

Contrariamente às aparências, não se trata de aplicar no mundo da

empresa conhecimentos psicológicos ou problemáticas éticas; trata-se, pelo

contrário, pelo recurso à psicologia e à ética, de construir técnicas de governo

de si que são elas mesmas parte do governo da empresa. Nem a empresa nem

o mundo podem ser mudados: é um dado intangível. A gestão neoliberal de si

consiste em fabricar um eu de alto desempenho, que exige cada vez mais de si

e cuja auto-estima cresce paradoxalmente com a insatisfação para as

performances já atingidas. Os problemas econômicos são vistos como

problemas organizacionais que, por sua vez, são interpretados como

problemas psíquicos ligados a um domínio insuficiente de si e a falhas nas

relações com os outros. A fonte da eficácia está dentro da pessoa e não pode

vir de uma autoridade externa. O trabalho intra-psíquico torna-se necessário

para encontrar dentro de si a motivação profunda.

O risco e a "accountability"

O novo sujeito é olhado como proprietário de "capital humano" que ele

deve acumular por escolhas esclarecidas e amadurecidas por um cálculo

responsável dos custos e das vantagens. Os resultados conseguidos são frutos

de decisões e de esforços somente imputáveis ao indivíduo e não levam a

alguma compensação particular em caso de fracasso a não ser as contidas em

contratos de seguros privados facultativos. A distribuição dos recursos

econômicos e das posições sociais é exclusivamente olhada como a

conseqüência do percurso, bem sucedido ou não, da realização pessoal. O

sujeito executivo está exposto em todas as esferas da existência dele a riscos

vitais aos quais não pode subtrair-se, a gestão deles dependendo de decisões

puramente privadas. Isso não é novo: o que é novidade está na universalização

de um estilo de existência econômica reservado antigamente unicamente aos

empreendedores. O risco é dado como uma dimensão ontológica que está

ligada ao desejo que anima cada um.

O estado social tratou na forma de seguro social obrigatório alguns riscos

profissionais ligados à condição do assalariado. Hoje, a produção e a gestão

dos riscos obedece a uma lógica totalmente diferente: trata-se de uma

fabricação social e política de riscos individualizados a ser geridos não pelo

Estado social mas por empresas sociais cada vez mais numerosas e

poderosas que propõem serviços puramente individuais de gestão de risco. O

risco tornou-se um setor de mercado na medida em que se trata de produzir

indivíduos que poderão contar cada vez menos com formas de ajuda do seu

ambiente de pertença ou com mecanismos públicos de solidariedade. Segundo

Ulrich Beck, o capitalismo avançado é essencialmente destruidor da dimensão

coletiva da existência. Ele destrói não só as estruturas tradicionais que o

precederam, em primeiro lugar a família, mas também as estruturas que ele

contribuiu a criar, como as classes sociais.

A novidade do governo empreendedor reside no caráter geral,

transversal, sistemático do modo de direção fundado na responsabilidade

individual e no autocontrole. Essa faculdade responsabilidade não é dada como

adquirida, ela é tida como o resultado de uma interiorização das obrigações. O

indivíduo deve governar a si mesmo do interior por uma racionalização técnica

da sua relação a ele mesmo. O essencial e fabricar o homem accountable.

Seguindo os diversos sentidos da expressão inglesa em uso, isso significa que

o indivíduo deve ser ao mesmo tempo responsável por si próprio e prestar

conta dos seus atos para com os outros e totalmente calculável. A "entrada em

contabilidade" dos indivíduos não os torna simplesmente responsáveis, eles

tornam-se contábeis do seu comportamento a partir de escalas de medidas que

são dadas pelas áreas de gestão de recursos humanos e pelos managers. A

avaliação tornou-se o primeiro meio de orientar as condutas pela incitação para

a performance individual. Ela pode se definir como uma relação de poder

exercitada por superiores hierárquicos colocados em posição de expertise dos

resultados, relação que tem por efeito de operar uma subjetivação contábil dos

avaliados. Aceitando ser julgado por avaliações e aceitando suas

conseqüências, o sujeito torna-se um sujeito avaliável a cada instante, quer

dizer um sujeito que sabe depender de um avaliador e das ferramentas que ele

usa, isso porque ele foi formado a reconhecer antecipadamente a competência

do avaliador e a validade das ferramentas. Assim o sujeito não vale mais pelas

qualidades estatutárias que lhe foram reconhecidas durante seu percurso

pessoal e profissional, mas pelo valor de uso diretamente mensurável de sua

força de trabalho. O ideal,que constitui o modelo dessa atividade de avaliação,

consistiria em poder avaliar o retorno produzido por cada equipe ou cada

indivíduo considerados como responsáveis pelo valor em ações produzido pela

sua atividade. Isso engaja uma lógica de verdadeira subjetivação financeira dos

assalariados.

Enquanto as novas tecnologias focadas na produção da "empresa de si"

pareciam responder a uma aspiração dos assalariados para maior autonomia

no trabalho, a tecnologia de avaliação aumenta sua dependência em relação à

"corrente managerial". Obrigado a realizar "seu" objetivo, o sujeito da avaliação

é obrigado igualmente de impor ao outro, seu subordinado, cliente, paciente ou

aluno, as prioridades da empesa. As "transações" ocupam um lugar cada vez

maior do que as "relações" e assim a instrumentalização dos outros ganha

importância em relação a todos os outros modos possíveis de relação com o

outro.

O novo dispositivo performance/gozo

Não se entenderia a amplitude do desabrochar da racionalidade

neoliberal, nem as formas de resistência que ela encontra, se não se olhasse

por ela como a imposição de uma força mecânica sobre uma sociedade e

indivíduos que seriam seus pontos de aplicação externos. O poder dessa

racionalidade se dá no estabelecimento de situações que forçam o sujeito a

funcionar segundo os termos do jogo que lhe é imposto. É através da metáfora

do esporte que se obtém esse esforço de competição generalizada e esse

dever de performance (cf Ehrenberg). O sujeito neoliberal é produzido pelo

dispositivo "performance/gozo". É pedido ao novo sujeito de produzir cada vez

mais e de gozar cada vez mais. A máquina econômica não pode funcionar na

base do equilíbrio ou da perda. Ela precisa visar sempre um além, um mais.

Essa exigência própria do regime de acumulação do capital não tinha ainda

desenvolvido o conjunto dos seus efeitos. Isso acontece quando a implicação

subjetiva é tanta que é a busca desse "além de si" que é a condição do

funcionamento tanto do sujeito quanto das empresas. Subjetivação contábil e

subjetivação financeira definem em última análise uma subjetivação pelo

excesso de si sobre si mesmo ou pela superação infinita de si.

Da eficácia para a performance

O quadro natural do corpo humano, na economia clássica, impunha

limites ao gozo e à performance que se tornaram hoje inaceitáveis. O corpo é

hoje o produto de uma escolha, de um estilo, de uma modelagem. Cada um é

contábil do seu corpo, que ele reinventa e transforma segundo a própria

vontade. É esse novo discurso do gozo e da performance que obriga cada um

a dar-se um corpo que possa sempre ir além de suas capacidades atuais de

produção e de prazer. É esse mesmo discurso que equaliza cada um diante

das novas obrigações: nenhuma condição de nascimento ou de ambiente pode

ser um obstáculo intransponível para a implicação pessoal no dispositivo geral.

Essa virado só foi possível a partir do momento em que a função "psi",

suportada pelo discurso "psi", foi identificada como o motor da conduta e como

o alvo de uma transformação possível por técnicas "psi". É pela combinação de

uma concepção psicológica do ser humano, da nova norma econômica da

concorrência, da representação do indivíduo como "capital humano", da coesão

da organização pela "comunicação", do vínculo social como "rede", que se

construiu aos poucos essa figura da "empresa de si".

O discurso "psi" entendido como "tecnologia intelectual" permitiu conduzir

os indivíduos a partir de um saber relativo à sua constituição interna. Assim

fazendo, ele formou indivíduos que aprenderam a conceber-se como seres

psicológicos, a julgar-se e a modificar-se por um trabalho sobre si mesmos, ao

mesmo tempo que ele deu às instituições e aos governantes os meios de dirigir

essas condutas.

O discurso "psi", quando cruzou o discurso econômico, teve outros efeitos

na cultura cotidiana dando uma forma científica à ideologia da escolha. Numa

"sociedade aberta", cada um tem o direito de viver como ele entende, de

escolher o que quer, de obedecer às modas que prefere. A livre escolha não foi

recebida primeiro como uma ideologia econômica de "direita", mas sim como

uma norma de conduta de "esquerda", segundo a qual ninguém pode opor-se à

realização dos seus desejos. Enunciados econômicos e enunciados de tipo

"psi" encontraram-se para dar ao novo sujeito a forma de árbitro supremo entre

"produtos" e estilos diferentes no grande mercado de códigos e de valores. É

ainda essa conjunção que gerou essas técnicas de si visando a performance

individual por uma racionalização managerial do desejo. Contudo, é uma nova

modalidade dessa conjunção que permitiu o desdobramento do dispositivo de

performance/gozo, modalidade que consiste não a perguntar-se em qual

medida o indivíduo e a empresa, cada um com suas exigências próprias,

podem adaptar-se um ao outro, mas sim como podem identificar-se o sujeito

psicológico e o sujeito da produção.

A liberdade tornou-se uma obrigação de performance. A normalidade não

é mais um domínio e uma regulação da pulsões, mas sim seu estimulo

intensiva como fonte primeira de energia. Porque é ao redor da norma da

competição entre empresas de si que opera-se a fusão do discurso "psi" com o

discurso econômico, que se identificam as aspirações individuais e os objetivos

de excelência da empresa, que se acordam o microcosmo como o

macrocosmo.

Conclusão

Quatro grandes traços da razão neoliberal:

1. Contrariamente ao que pensavam os economistas clássicos, o

mercado se apresenta não como um dado natural mas sim como

uma realidade construída que requer enquanto tal a intervenção

ativa do Estado assim como o estabelecimento de um sistema de

direito especifico.

2. A essência da ordem de mercado reside não na troca mas sim na

concorrência definida ela mesma como relação de desigualdade

entre diferentes unidades de produção, ou "empresas". A missão

do Estado é implementar a "ordem-quadro" a partir desse princípio

"constituinte" da concorrência, de supervisionar o quadro geral e de

vigiar o respeito desse quadro por todos os atores econômicos.

3. O Estado não é simplesmente o guardião vigilante desse quadro;

ele é, ele mesmo, submetido na sua própria ação à norma da

concorrência. Segundo esse ideal de uma "sociedade de ordem

privada", não existe nenhuma razão para que o Estado seja

exceção às regras de direito que ele é encarregado de fazer

aplicar. Resulta dessa primazia absoluta do direito privado um

esvaziamento progressivo de todas as categorias do direito público

que vai na direção não na supressão delas mas da perda de sua

validade operacional.

4. A exigência de uma universalização da norma da concorrência

excede largamente as fronteiras do Estado: ela atinge diretamente

os indivíduos considerados nas relações que eles mantêm com

eles mesmos. A "governança empreendedora" que deve prevalecer

no nível da ação do Estado encontra um modo de prolongar-se no

governo de si do "indivíduo-empresa", ou, mais exatamente, o

Estado empreendedor deve, como os atores privados da

governança, conduzir indiretamente os indivíduos a conduzir-se

como empreendedores.