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1 Cinema e Ópera: Um encontro estético em Wagner Índice Introdução ....................................................................................................3 Capítulo I ......................................................................................................12 De como Ernst Bloch recuperou Wagner para a Pós-Modernidade ou como a ópera wagneriana vai ao encontro do cinema por uma estética de aproximação 1.1 Os paradoxos wagnerianos ...........................................................19 1.2 A “reflexão repetida” ou o leitmotiv wagneriano .......................33 1.3 A vontade universal como representação do homem e da natureza....................................................................................40 Capítulo II ....................................................................................................45 De como o espetáculo operístico do século XIX é revolucionado por Richard Wagner e caminha para a integração completa do som e imagem 2.1 A obra de arte total ........................................................................51 2.2 As luzes da ribalta e a mise-en-scène............................................56 2.3 A obra de arte do futuro .................................................................63 Capítulo III ...................................................................................................70 De como duas estéticas caminham na mesma direção ou como a ópera wagneriana e o cinema bebem nas mesmas fontes e produzem novas mentalidades no campo das artes e das ciências dos séculos XIX e XX 3.1 O jogo da arte ou a arte do jogo .....................................................80

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  • 1Cinema e pera:Um encontro esttico em Wagner

    ndice

    Introduo ....................................................................................................3

    Captulo I ......................................................................................................12

    De como Ernst Bloch recuperou Wagner para a Ps-Modernidade ou como apera wagneriana vai ao encontro do cinema por uma esttica de aproximao

    1.1 Os paradoxos wagnerianos ...........................................................19 1.2 A reflexo repetida ou o leitmotiv wagneriano .......................33 1.3 A vontade universal como representao do homem e da

    natureza....................................................................................40

    Captulo II....................................................................................................45

    De como o espetculo operstico do sculo XIX revolucionado porRichard Wagner e caminha para a integrao completa do som e imagem

    2.1 A obra de arte total ........................................................................51 2.2 As luzes da ribalta e a mise-en-scne............................................56 2.3 A obra de arte do futuro.................................................................63

    Captulo III...................................................................................................70

    De como duas estticas caminham na mesma direo ou como apera wagneriana e o cinema bebem nas mesmas fontes eproduzem novas mentalidades no campo das artes e das cinciasdos sculos XIX e XX

    3.1 O jogo da arte ou a arte do jogo.....................................................80

  • 2 3.2 Os primeiros passos da aglutinao...............................................89 3.3 Por uma igualdade esttica ou a msica no cinema Wagner...95

    Captulo IV...................................................................................................109

    De como o cinema entrou para a histria do sculo XX e formou uma nova maneira de ver e ouvir o mundo das imagens e dos sons

    4.1 A histria agora outra..................................................................115 4.2 E o futuro, como ser? ..................................................................118

    Concluso....................................................................................................121

    Bibliografia..................................................................................................123

  • 3Introduo

    Ter exercido, por mais de 18 anos, a atividade profissional

    de crtico de cinema ensinou-me a amar, respeitar e concluir

    que sei que nada sei sobre a stima arte. A fascinao sempre

    foi, e continua sendo, o sentimento primeiro da minha relao

    com o cinema. Como no admirvel Cinema Paradiso de

    Giuseppe Tornatore, sinto-me ainda o pequeno Tot que est

    sempre olhando encantado a magia da imagem em movimento.

    Ou ainda como o menino de outro extraordinrio filme italiano,

    Splendor, de Ettore Scola, que o primeiro a chegar com seu

    banquinho para a sesso que se dar na praa da aldeia. Hoje,

    certamente obedecendo a um outro ritual, tenho a convico de

    que o cinema no est mais s, nem mais o nico e est em

    permanente dilogo com outros mundos da modernidade.

    Foi esse sentido de fronteira que me levou aventura de

    tentar promover um encontro entre o grande espetculo do

    sculo XIX, o drama wagneriano, e o smbolo mais caracterstico

    do sculo XX, o cinema. No pretendo ir alm desse agradvel e

    estimulante encontro. Nada desejo provar, nem alcanar

    verdades cientficas. uma reflexo que me proporcionou

    muitos prazeres aos olhos e ouvidos, ao corao e mente.

    Este encontro me exigiu viagens por muitos caminhos j

    percorridos e outros absolutamente novos, onde o sabor da

    aventura se acentuou. Comea exatamente com a estimulao

  • 4provocada por um filsofo, Ernst Bloch, que tem, como

    categoria central de seu pensamento, uma das realidades mais

    difceis de serem percebidas e vividas pelo homem - a

    esperana. Na busca dessa utopia, ele encontrou a msica.

    Sua especulao tornou-se de fato uma filosofia da msica.

    Suas anlises so sempre muito penetrantes e trazem ngulos

    novos para velhos problemas da esttica musical. Wagneriano

    de primeira hora, Bloch no se deixou levar tanto pela paixo.

    Procurou entender a obra do compositor alemo, revelando as

    suas intimidades estticas mais profundas. Abriu espaos de

    especulao inusitados, que me permitiram uma aproximao

    com o cinema.

    A partir desta inspirao procurei reorganizar a histria

    desse espetculo, enfatizando suas novidades e possveis

    ligaes com o futuro. O destaque vai para a produo da

    imagem cnica associada ao som. Imagem e sonoridade so os

    focos de interesse.

    Segue-se a indagao sobre identidade das formas, e,

    portanto, das artes. Suas estticas, em suma. Objetivava

    entender como o pensamento filosfico filtrou as caractersticas

    dessas manifestaes que do sentido ao ser humano e s a ele

    pertencem, porque s ele as cria. Nenhum outro ser realiza essa

    extraordinria proeza. Meu percurso foi breve e muito simples.

    Permitiu-me, no entanto, avaliar melhor o caminho que Wagner

    fez para chegar sua concepo de obra de arte total, um

  • 5evidente e feliz encontro com o cinema, que ele no chegou a

    conhecer.

    Por fim, a conexo com o mundo da imagem, do som e do

    movimento era um natural corolrio. Ambos representao do

    mundo e do homem, pera e cinema chegavam ao ponto de

    entroncamento. Uma vez juntos logo se separavam por

    exigncia mesma da nova inveno. Novamente as identidades

    aparecem como definidoras de campos e objetos. Caminham por

    um sculo em diferentes espaos, embora guardando evidentes

    sinais de comunho. Esse certamente o futuro que cada vez

    est mais perto dos nossos coraes e mentes.

    Durante toda essa aventura intelectual, uma coisa me

    causou forte impresso. A personalidade e a determinao

    desse personagem existencialmente contraditrio, mas de um

    talento transbordante. Wagner nasceu em 1813, em Leipzig, e

    morreu em 1883, em Veneza. No chegou a completar 70 anos.

    Sua obra, porm, monumental e est enraizada

    profundamente na cultura alem, dali se universalizando.

    Homem do seu tempo, estava de olho no futuro. Viveu uma

    Alemanha esfacelada que inicia o sculo medieval e termina

    moderna e poderosa. Tornou-se um smbolo da modernidade

    no apenas pelo acorde inical de Tristo e Isolda , mas por

    uma vastssima produo intelectual que inclui, alm da obra

    musical, obras de pesquisa, ensaios, artigos, poemas e todos os

    libretos de suas peras. Foi tambm idealizador e construtor,

    com a ajuda de arquitetos e engenheiros, do teatro que se

  • 6tornou uma espcie de templo de peregrinao para os adeptos

    dessa quase religio que a pera wagneriana.

    Para uma melhor contextualizao de sua obra, fao, a

    seguir, um perfil das principais peras de Wagner, com base no

    belssimo livro de Andr Tubeuf1.

    O Navio Fantasma ( 1843)

    Este navio tornou-se um mito, mas o ttulo de origem

    alem, Der fliegende Hollnder. Um capito holands

    literalmente voa de mar em mar, sem poder repousar por ter

    sido amaldioado ao desafiar os cus passando pelo Cabo das

    Tempestades. No poder tocar a terra durante sete anos. S

    uma mulher fiel o poder salvar dessa maldio.

    Wagner, aos 30 anos, tambm no tinha porto seguro.

    Apaixonou-se por esse personagem a ele apresentado por uma

    novela de Heinrich Heine. Tambm ele se sentia exilado e sem

    ligaes com o mundo. Senta a personagem salvadora. Uma

    jovem cheia de f que conhece a balada do holands e o salva,

    pagando com a sua prpria vida.

    Personagens: Vanderdecken, o navegador errante

    holands; Daland, capito noroegus; Senta, sua filha; Erik, um

    caador; Mary, governanta de Senta; e o timoneiro.

    Tannhuser ( Dresden 1841/ Paris 1861)

    1TUBEUF, Andr: Wagner: LOpera des Images. Paris. Chne, 1993.

  • 7Uma lenda medieval forneceu a Wagner um segundo heri

    com o qual ele tambm se identificou. Tannhuser um artista,

    um prncipe do canto, que est prisioneiro dos encantos de

    Vnus em sua gruta, do mesmo modo que Ulisses foi de Circe. E

    no foi por prazer que ele se ligou a ela, mas talvez pelo gosto de

    sua prpria perdio. Como todo artista tem tambm seus

    demnios!

    Mas uma outra voz o chama e o traz de volta ao mundo.

    a lembrana de Elisabeth. Tannhuser rompe ento as ligaes

    com Vnus e toma de novo seu lugar como cantor. Ela, no

    entanto, reaparece no hino que ele canta ao amor. Elisabeth

    intercede pelo cantor que dever ir em peregrinao a Roma,

    para expiar sua falta. O Papa, porm, no lhe d o perdo.

    Tannhuser retorna ao seu pas com a maldio ainda sobre

    ele. Elisabeth morre de tanto suplicar pelo pecador. Ele tambm

    tem o mesmo fim. S que um grupo de novos peregrinos que

    volta de Roma traz o cajado papal, agora florido, para indicar

    que Tannhuser fora perdoado graas devoo de Elisabeth.

    Para a verso apresentada, em Paris, em 1861, Wagner

    acrescentou uma bacanal na gruta de Vnus. Esse fato suscitou

    o mais famoso escndalo da histria da arte. O Jockey-Club

    vaiou; Baudelaire adorou.

    Personagens: Tannhuser; Elisabeth; Conde Herman;

    Vnus; Um jovem pastor; Outros cavaleiros e menestris;

  • 8Wolfram von Eschenbach; Walter von der Vogelweide; Heinrich

    der Schreiber; e Reiman von Zweter.

    Lohengrin (l850)

    O terceiro heri que tambm se identifica com Wagner

    Lohengrin. Ele vem do cu para salvar Elsa, injustamente

    acusada de matar o prprio irmo. um cavaleiro de armas

    prateadas que chega montado num cisne. Na verdade, o

    prprio irmo de Elsa transformado pelos feitios de Ortrude.

    Esta casada com o conde Telramund que era o tutor dos

    irmos. Perante o rei, Lohengrin duela com ele, e vence. Mas

    antes de defender a Elsa, impe uma condio: nunca lhe

    indagar o nome nem o lugar de onde veio. Essa condio

    quebrada por ela e o cavaleiro volta para o Monsalvat, no

    realizando o amor prometido.Os encantos tambm se quebram e

    o cisne volta a ser Gottfried.

    Personagens: Elsa de Brabant; Lohengrin; Rei Henrique;

    Conde Telramund; e Ortrud.

    Tristo e Isolda (1865)

    Lugar de identificao suprema para Wagner: os amantes

    lendrios, arqutipos da paixo amorosa ocidental. Mas Wagner

    mistura os venenos. Tristo filho da Noite, nascido da morte

    da me, sua nica aspirao a volta ao lugar de origem. Isolda

  • 9tambm deseja a morte uma vez que uma esposa prometida e

    no pode amar Tristo. Mas, em vez do veneno ambos tomam a

    poo mgica do amor. Desaparecem as interdies e vivem um

    profundo idlio amoroso, mas Tristo ferido de morte. Seu

    desejo de morrer em sua terra natal concedido e Isolda

    tambm se despede da vida com o famoso Liebestod. a morte

    de amor.

    Personagens: Tristo; Isolda; Brangne; O rei Marke;

    Kurwenal; e Melot.

    Os Mestres Cantores (1868)

    a histria de um concurso de canto, como Tannhuser.

    Nesta pera Wagner se divide em dois. ao mesmo tempo

    Walter, o cavaleiro que aprendeu tudo com os passarinhos, e

    que nada conhece das regras do bem cantar, mais parecendo

    um outsider na conservadora Nuremberg, e Hans Sachs o

    sapateiro-poeta que concorre pelos belos olhos de Eva. H ainda

    um terceiro concorrente o escrivo Beckmesser. Na disputa, a

    juventude de Walter empolga. Mas o sapateiro Hans Sachs

    rene a tradio e a jovialidade, entusiasmando a todos.

    Personagens: O jovem cavaleiro Walter; Eva, filha do

    ourives; Madalena, sua companheira; David, aprendiz de

    sapateiro; e os 12 Mestres Cantores, com destaque para o

    sapateiro Hans Sachs.

  • 10

    O Anel dos Nibelungos (1869/1876)

    O ciclo dos Nibelungos composto por quatro peras: O

    Ouro do Reno, Walkiria, Siegfried e O Crepsculo dos Deuses.

    Narram a saga de um estranho Olimpo. Na primeira pera, o

    ano Alberich renuncia ao amor para ficar com o ouro do Reno,

    enquanto Wotan, o deus dos deuses, contrata com os gigantes

    Falsot e Fafner a construo do Walhalla, um palcio para

    repouso dos heris. Quando os gigantes terminam a obra e vo

    cobrar a paga a Wotan, ele no tem outra soluo seno

    arrancar de Alberich o tesouro do Reno. Os gigantes brigam

    entre si, e um deles se transforma em drago para guardar a

    riqueza.

    Esse tesouro roubado acaba provocando, ao longo das

    histrias seguintes, toda a sorte de tramias entre os deuses, os

    heris e habitantes das profundezas. O amor sempre

    impossvel e os deuses parecem no ter mais salvao. Todas as

    relaes se deterioram at que o prprio Walhalla destrudo,

    determinando o crepsculo dos deuses.

    Os personagens centrais desse complexo drama so os

    seguintes: Wotan, Alberich, Mime, Frika,Freia, Erda, Froh, Loge,

    Donner, as donzelas do Reno (Woglinde, Wellgunde e

    Flosshilde), Brunhilde, Siegmund, Sieglinde, Hunding, Siegfried,

    Fafner, Gunther, Hagen e Waltraute.

    Parsifal (1882)

  • 11

    a busca da redeno salvfica, representada no clice

    sagrado que teria sido usado por Cristo na ltima Ceia. Vrios

    destinos se cruzam representando mundos opostos. De um

    lado, a luz, de outro, as trevas. A peregrinao de Parsifal para

    cumprir sua misso redentora atravessa perigos, tentaes,

    amores, lutas, violncias e pecados. Mas, no final, Parsifal ser

    rei, batizar Kundry e dar sade a Amfortas, cumprindo-se a

    redeno pelo amor.

    Personagens: Parsifal, Kundry, Gurnemans, Amfortas,

    Klingsor e Titurel.

  • 12

    Captulo 1

    De como Ernst Bloch recupera Wagner para a Ps-

    Modernidade ou como a pera wagneriana vai ao encontro

    do cinema por uma esttica aproximativa

    Cinema e msica sempre se deram bem. Parece terem sido

    feitos um para o outro. Se nos primrdios do cinema a msica

    foi usada para abafar o som do projetor, logo a seguir ela se

    meteu no interior do drama e da comdia produzidos pela nova

    inveno que iria revolucionar a face mais criativa do homem do

    sculo XX. No h a menor dvida que essa atrao natural foi

  • 13

    prdiga em efeitos que ainda no foram de todo assimilados

    pela reflexo acadmica. To pouco no se pode colocar em

    dvida que esse acaso feliz foi facilitado por criaes e

    pesquisas que embora guardassem autonomia de objeto,

    mtodos e tcnicas, acabaram por definir fronteiras e

    intersees entre as artes.

    Nesse caminho histrico, muitos encontros se realizaram a

    partir da interdependncia das formas artsticas, das novas

    tecnologias, da especulao filosfica, at mesmo sem que seus

    autores suspeitassem. De qualquer modo, so indagaes que

    esto sempre na ordem do dia a desafiar a sensibilidade e a

    inteligncia de artistas e estudiosos dos fenmenos estticos.

    Wagner certamente foi uma dessas personalidades

    inquietas que alm de produzir a sua arte, tambm refletiu

    sobre o seu ofcio e deixou para a posteridade o registro de seu

    pensamento. A obra de sua vida foi exatamente a constante,

    pertinaz e incansvel busca da forma de arte total: a pesquisa

    do espetculo que fosse uma espcie de amlgama de todas as

    artes, e, por isso mesmo, se constitusse em algo autnomo,

    novo e que respondesse s necessidades espirituais do prprio

    homem. No foi por outra razo que chamou a pera de drama

    musical. De fato, queria estabelecer uma diferenciao com o

    passado, mesmo que seu conceito, na realidade, pouco alterasse

    o prprio sentido da pera. Marcar a diferena da sua

    concepo para as demais era uma espcie de mote permanente

    de seus escritos.

  • 14

    Sem dvida, foi em pera e Drama que esse tema foi

    mais profundamente abordado por ele. No entanto, sobre esses

    aspectos mais ou menos especficos relativos problemtica do

    drama musical, falarei em outra parte deste trabalho. Neste

    espao, o que me interessa mais retomar a idia do encontro

    entre Wagner e o cinema. Comeo por recuperar o artigo de

    Jacques Bourgeois2, Musique dramatique et Cinema,

    publicado na Revue du Cinma nmero 60, de fevereiro de

    1948. Nele, o autor invoca o trabalho artstico de Wagner para

    mostrar como a msica no apenas est presente no cinema,

    mas como ela faz parte intrnseca de seu discurso.

    Bourgeois distingue o que ele chama de msica dramtica,

    do que tambm chama de msica pura. Assim, ele define a

    primeira como aquela que exprime, sustenta ou se impe

    ao dramtica, em oposio a uma esttica da msica pura.

    Faz referncia ainda msica de programa que, sem dvida

    alguma, atingiu a plenitude de sua riqueza formal no sculo

    XIX. E sobre a herana dessa msica narrativa que ele faz a

    sua anlise, apontando a Wagner como o criador da msica

    dramtica moderna.

    J o maestro e violinista Yehudi Menuhin diz o seguinte da

    obra de Wagner: Seus dramas musicais so escritos como

    filmes, atribuindo temas a cada personagem, refletindo cada

    mudana de tenso emocional, e suas tcnicas de

    2 BOURGEOIS, Jacques: Musique dramatique et cinma. In Revue du Cinema n 60/fev.48

  • 15

    composio ter-se-iam adaptado bem ao cinema .3 sobre o

    encontro possvel entre o cinema clssico e a pera wagneriana

    que este trabalho pretende refletir. A suposio do maestro

    Menuhin foi a mesma que a minha. Imaginei o poderoso

    Richard Wagner chegando ao sculo XX, e, num passe de

    mgica, assumindo um set de filmagem tal como Fellini o fez

    em E la nave va, por exemplo. 4 Mas, certamente, no apenas

    Wagner chegaria ao cinema. A pera um produto de muitas

    fontes, assim como o cinema.

    Se, por um lado, Wagner cunhou a expresso obra de arte

    total, por outro, suas teorias sempre estiveram em sintonia com

    a busca de uma esttica que, de alguma forma, desse pera

    autonomia artstica. Seus escritos caminham muito nessa

    direo, como alis os de muitos tericos do cinema. No

    parece, pois, ser uma mera suposio a observao do maestro

    Menhuin. Mais que isso, a fronteira entre as artes deve ser

    objeto de constante pesquisa. No h dvida que Wagner

    identificado primeiro como msico, embora muitos o

    considerem mais como homem do espetculo. Certamente esta

    vestimenta cabe tambm na sua personalidade artstica. Mas,

    mais do que o homem, interessa aqui o seu legado. E a partir

    dele exatamente que Ernst Bloch faz a sua reaproximao com

    o compositor j nos anos 60. Esse novo olhar lana as bases

    3 MENUHIN, Yehudi e DAVIS, Curtis W. : A msica do homem. Sao Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 250.

    4A citao a Fellini to aleatria quanto outra qualquer. Apenas a imagem do cineasta italiano, dominandocompletamente o espao de seus dramas, me leva a esta aproximao aparentemente fora de propsito. Noquero estabelecer comparaes. Apenas fustigar a imaginao.

  • 16

    das relaes possveis da pera wagneriana com o cinema, que

    eu pretendo abordar.

    Bloch est sob a influncia das novas verses e montagens

    capitaneadas pelos netos de Wagner, Wieland e Wolfgang.

    sabido que a aproximao da nora de Wagner com o nazismo, e,

    em especial com Hitler, comprometeu bastante a imagem de

    Bayreuth. E o esforo todo dos netos foi no sentido de tentarem

    desvincular-se desse passado imediato. Permitiram-se ousadias

    que talvez o av no aprovasse. No entanto, as reflexes de

    Ernst Bloch adquirem tambm um significado de atualidade

    que pode perfeitamente tornar-se uma espcie de reencontro do

    legado wagneriano com a arte emblemtica do sculo XX, o

    cinema.

    Trata-se de um artigo que introduz uma srie de textos

    escolhidos de Wagner. O filsofo aproveita a ocasio para

    elaborar algumas linhas de pensamento que no apenas

    reabilitam o compositor, mas tambm apontam para uma nova

    forma de entender suas propostas. Antes, porm, traa, em

    poucas linhas, uma espcie de trajetria das hostilidades que

    envolveram a obra wagneriana.

    O primeiro momento identificado como aquele que durou

    at os anos 80 do sculo passado, quando o compositor alcana

    um grande sucesso ainda em vida. Essa situao dura at os

    anos 20 quando novamente entra na sombra. o momento em

    que surge na Alemanha a chamada nova objetividade. Com

    incrvel rapidez, a recusa a Wagner virou moda, diz Ernst

  • 17

    Bloch. Essa segunda onda acaba difundindo entre os jovens

    uma indiferente ignorncia em relao sua obra.

    Para Bloch, so os remanescentes da mentalidade

    conservadora, ainda presos pera-ballet. Embora jovens,

    quando se opunham a Wagner, era a carta de Mendelssohn que

    jogavam ao invocar o nome de Brahms. Logo o Brahms que se

    debruou sobre a partitura dos Mestres Cantores durante

    semanas! Nada leva a crer, portanto, que essa onda contra

    Wagner tenha qualquer reparo musical digno de importncia.

    Falava-se do romntico tardio, com cheiro de mofo. Mas, o

    definitivo dessa repulsa foi, sem dvida, a admirao de Hitler

    pela obra de Wagner, atravs de algumas idias perigosas como

    a teutomania e o arianismo. Entre tantas outras manifestaes,

    o canto final de Sachs dos Mestres Cantores, encenado no

    Congresso Nacional do Partido Nazista em Nuremberg foi um

    elemento significativo para tornar o mundo wagneriano ainda

    mais suspeito.

    A polmica, relata ainda Bloch, voltava-se sobretudo

    contra as partituras wagnerianas, requentadas, pomposas,

    segundo esses crticos. Por outro lado, os mesmos diziam que

    eram perfeitas como composio. Um certo exagero dominava

    essas mentes que se referiam inclusive ao aspecto diablico das

    dinmicas wagnerianas. a partir dessas crticas, nem sempre

    razoveis, que Ernst Bloch lana o seu olhar sobre as

    montagens feitas no incio dos anos 60 em Bayreuth. Ele

    presencia o que chama de renascimento da cena graas

  • 18

    direo das luzes que so guiadas pela msica. Bloch prenuncia

    assim uma retomada favorvel a Wagner, depois de um

    crepsculo to longo quanto o que se iniciou nos anos 20. Diz

    mais: a profundidade desta msica no foi at agora

    esclarecida. Alguns sinais de uma nova aurora wagneriana so

    objeto de seu estudo.

    Depois de uma srie de consideraes sobre como as novas

    geraes devem se aproximar da pera wagneriana, Ernst Bloch

    aproveita a ocasio para desmistificar alguns preconceitos que

    se formaram, ao longo dos anos, em torno de certos temas que

    freqentemente foram responsveis por atitudes apaixonadas e

    pouco refletidas. No apenas aspectos musicais, mas tambm

    de encenao, so por ele recolocados, a partir de uma nova

    viso do espetculo operstico. Um deles certamente a questo

    do Bel Canto.

    Para Bloch, Wagner pode e deve ser executado em sua

    forma meldica. Nada de gritos e estridncias. So poucos os

    momentos em que o registro quase uniforme. Como exemplo,

    ele cita certas narraes de Wotan. Mas, considerar que

    impossvel cantar Wagner, como muitos fizeram crer, um

    absurdo, segundo afirma Bloch. verdade que as grandes

    sopranos disparam agudos estridentes de dar calafrios. Os

    grandes tenores trombeteiam satisfeitos ou ameaadores. raro

    ouvir dos cantores wagnerianos uma emisso nobre,

    aculturada, com destaques ntidos, e uma voz que sobe e desce

    e desce e sobe com uma adequada preparao, diz ainda o

  • 19

    autor. E completa comparando os mesmos intrpretes que

    cantam Mozart ou Verdi sem que nada disso acontea.

    claro, diz ainda Bloch, que Wagner tem a sua parte de

    responsabilidade pelas vozes super-excitadas e ameaadoras,

    alm daquele timbre que aparenta o violoncelo, sem, no

    entanto, a ele se igualar. De qualquer modo, essa questo do

    Bel Canto tambm de responsabilidade dos maestros, assim

    como o prprio peso das orquestras em relao s vozes. Ele d

    como exemplo o interldio da Viagem de Siegfrid sobre o Reno

    que vai, de certo modo contra a corrente, movido pelo canto,

    embora, de fato, siga a corrente. So certas acentuaes e

    coloridos propostos por Wagner que encontram em seus

    intrpretes formas diferenciadas, por mais que o compositor

    tenha deixado instrues bastante explcitas sobre como

    executar suas criaes.

    Os paradoxos wagnerianos

    So os paradoxos que tm maior relevo, num primeiro

    momento da anlise que Ernst Bloch faz da obra de Wagner.

    Quem d muito dar qualquer coisa a algum. Com esta frase,

    Bloch quer afirmar que Wagner atende tanto ao vulgar como ao

    erudito. Este paradoxo intriga os especialistas. Mas, no se

    trata de uma msica simplista em oposio a formas mais

    complexas. Simplesmente, diz ele, Wagner toma, em matria de

    inveno, aquilo que encontra. Isto vale no s para o Canto

  • 20

    Estrela Vnus, um romance banal mas sempre denso de

    sentimento. Vale ainda, e a responsabilidade bem maior, para

    o juhu - uma aspirao de pequenos burgueses em frias - no

    Hojotohoou no Jerumde Hans Sachs cheio de golpes de

    acompanhamento. Bloch cita ainda outras passagens que

    foram definidas como msica para ouvintes no-musicais.

    Este primeiro paradoxo - a juno, numa mesma obra, de

    elementos populares e eruditos - talvez a razo principal da

    grande audincia da melodia wagneriana. Mas no se pode dizer

    simplesmente que a banalidade sobressai ao refinamento. De

    fato, ele surpreende quase sempre. Sua msica desafia

    permanentemente as convenes. muito mais moderna, na

    expresso de Bloch. essa mistura de ouvidos - o erudito e o

    vulgar - que cria a figura que Bloch chama de olhar sonoro

    que rompe no improviso, emergindo de uma profundidade

    insuspeita, e segura a ateno.

    um pouco como a obra cinematogrfica que a todo

    momento busca elementos de encantamento do espectador. A

    surpresa talvez uma das suas chaves fundamentais. Procura

    seduzir a ateno do espectador com uma tcnica prpria de

    representao das idias e dos sentimentos. De certo modo, as

    dissonncias wagnerianas tm tambm um carter de ruptura.

    Bloch d o exemplo do acorde inicial de Tristo e Isolda, hoje

    j bastante citado e conhecido, mas que provocou um imenso

    estranhamento nos ouvidos mais tradicionais. Diz ele:

  • 21

    construdo de modo que seja impossvel definir

    nitidamente at mesmo a tonalidade. Alm disso,

    tambm conceitos de harmonias tradicionais como

    modulao, alterao, etc. , no confronto se tornam

    plidos. Assim como, com freqncia, intervm tambm

    uma outra dissonncia no resolvida, ou seja, uma

    outra dissonncia no mais referida ao contexto

    harmnico surpreendente num duplo sentido: tanto

    imprevista quanto previsvel. Mas um prever que

    irrompe quase que imediatamente em uma frase

    estranha tonalidade. O canto de Brangne do alto da

    torre, que soa amplo e quase estranho, com aqueles

    violinos que Thomas Mann definiu como os mais

    agudos de qualquer regio, traduz um xtase musical

    que com certeza oposto angstia e advertncia que

    parece significar na estrutura da pera.

    O paradoxo parece ser assim algo inerente opera

    wagneriana. No, porm, o paradoxo da mera aparncia. E sim

    o que vai essncia dos sentimentos humanos. como se

    Wagner lutasse o tempo todo para encontrar uma sada. E neste

    sentido, como diz ainda Bloch, o contra-Wagner est contido

    no verdadeiro Wagner.

    Praticamente toda a obra do autor est mesclada com

    esses aspectos aparentemente contraditrios. So muitos os

    exemplos dados por Ernst Bloch. No o caso aqui de cit-los.

    Interessa apenas enfatizar essa relao entre o texto, a msica e

  • 22

    a encenao. Todos colaboram, em sua medida e limites

    prprios, para uma viso e audio do todo. O detalhe do incio

    recolhido mais adiante, retornando na sua identidade prpria

    ou na sua identidade modificada. No se trata apenas do

    leitmotiv musical, mas tambm dos espaos cnicos e da

    prpria postura dos atores-cantores. , sem dvida, um

    verdadeiro processo de montagem em que cada elemento

    singular se liga ao todo para construir uma narrativa ampla e

    unitria.

    Neste sentido, vale examinar um pouco o paradoxo da

    relao msica e palavra, apontado por Ernst Bloch, na obra de

    Wagner. A primeira observao diz respeito mltipla

    estratificao que palavra e msica assumem nas peras

    wagnerianas. Mas, antes mesmo de classificar essa

    estratificao, bom esclarecer que Bloch no pensa essa

    relao de forma mecnica. Tanto a percepo do ouvinte

    atento, como a viso do espectador seduzido podem se dar em

    terrenos muitas vezes no explcitos. So espaos e tempos que

    se passam no interior das sugestes musicais, textuais, cnicas

    e psicolgicas dos personagens. Essas filigranas podem estar

    at mesmo na conformao de um instrumento. como se

    aquele som estivesse imbudo de um esprito infundido no corpo

    do instrumento sonoro. Wagner, de certo modo, buscou at

    mesmo a conformao material de alguns instrumentos para

    obter a sonoridade espiritual, material e sensual desejada.

    Palavra e msica, portanto, no coincidem espontaneamente de

  • 23

    modo agradvel aos sentidos, para citar a expresso de Bloch.

    Basta lembrar que o mesmo leitmotiv usado em diferentes

    peras, como no caso da tetralogia, assumindo significados

    mltiplos.

    Obviamente os paradoxos se formam exatamente nessa

    relao complexa e multifacetada. Numa tentativa de

    classificao, ainda que provisria, Bloch, de certo modo,

    aponta trs funes principais, mas no exclusivas, para se

    entender a relao palavra e msica em Wagner. A primeira a

    funo de simultaneidade. Neste caso, a msica reclama o

    texto. Haveria uma atrao entre as duas formas de expresso.

    Uma no informa nada de diferente da outra. como se palavra

    e msica se identificassem de tal modo que uma serve outra

    por fora da necessidade intrnseca de ambas. Essa primeira

    funo tem muitos exemplos na obra wagneriana. Bloch mesmo

    os fornece. Mas, o que interessa no momento mostrar como

    essa atrao de dois modos de produzir sentido podem

    enriquecer de significado um discurso artstico. Se nas suas

    peras Wagner at mesmo elaborou tcnicas prprias de

    composio, encenao, uso de texto, orquestrao e

    instrumentos, entre tantas outras inovaes, ele o fez com o

    propsito de buscar a integrao entre as diversas formas de

    expresso.

    esta espcie de uso diferenciado de materiais que produz

    a novidade. Aparentemente tudo igual, isto , palavras e

    temas musicais unidos conduzem a um entendimento da

  • 24

    histria narrada e do sentimento vivido pelos personagens.

    Acontece que a idia de um sentido unvoco pode at ter sido o

    motivo central do controle criativo de Wagner, mas no se fecha

    apenas na sua inteno. Objetivamente falando, o que Wagner

    criou no mais dele, mas de seus executantes e intrpretes.

    Assim, quando Ernst Bloch fala da funo de simultaneidade

    entre palavra e msica, na pera wagneriana, est abrindo a

    possibilidade de que essa mesma funo possa ser observada

    em outro contexto. Embora, mais adiante este tema v ser

    retomado, no quero deixar de registrar aqui o quanto essa

    simultaneidade est presente no cinema. Ele no apenas

    relaciona palavra e msica em simultaneidade, mas todas as

    suas outras matrias, como a imagem animada, por exemplo.

    Isso faz com que a polmica antiga entre cinema mudo e cinema

    falado no tenha hoje qualquer sentido.

    Tambm a segunda funo, entre palavra e msica na

    pera wagneriana, apontada por Bloch, tem uma forte

    aproximao com o cinema. Trata-se do que ele chama de

    antecipao. Segundo ele, a palavra pode, de algum modo,

    antecipar situaes. Mas, o mais freqente a msica exercer

    essa funo, atravs dos motivos-temas. Bloch, no entanto, d

    um exemplo em que o texto, de certa forma, pr-anuncia algo

    que ainda ir acontecer. Refere-se ele ao episdio em que

    Sieglinde, quase sonhando, parece ver sua prpria imagem

    rememorando o passado e imaginando ver Siegmund no tempo

    e no espao onde no apenas j o havia visto antes, como

  • 25

    tambm ouvira a sua voz, e, no meio do canto diz: e agora

    novamente o sinto ao longe. um canto, ainda segundo Bloch,

    que caminha do indeterminado para o explcito ao terminar o

    jbilo primaveril do antes e do depois. Significa que o

    sentimento vivido por Sieglinde se projeta num futuro que est

    de algum modo ligado ao passado. A experincia vivida projeta o

    idlio futuro. Essa situao primaveril, no entanto, em outros

    momentos, torna-se trgica. Na obra de Wagner, essa oscilao

    atmosfrica bastante caracterstica. como se o drama quase

    comandasse as aes musicais - afirmao contestada por

    muitos autores, inclusive por Bloch.Cito aqui, por exemplo, A

    pera como drama de Joseph Kerman:

    ...Em pera, o dramaturgo o compositor. O que

    conta no a narrativa, situao, smbolo, metfora, e

    assim por diante, conforme estabelecido por um libreto,

    mas o modo como tudo isso interpretado por uma

    inteligncia superior. Essa inteligncia escreve a

    msica. Estou ciente, claro, de que esta viso da

    pera to perscritiva quanto descritiva. Uma obra de

    arte em que a msica no consegue exercer a funo

    articuladora central deveria se chamar qualquer coisa,

    menos pera.5

    Essa questo da primazia da msica sobre o drama tem

    todo o sentido em outros compositores, mas em Wagner no.

    Ele sempre foi o criador completo de suas obras. Essa

    5KERMAN, Joseph: A pera como drama. Rio. Jorge Zahar, 1990, p. 12.

  • 26

    articulao de que fala Kerman era uma coisa natural no

    compositor. mais ou menos como no cinema hoje chamado

    autoral. evidente que o fazer cinematogrfico se divide em

    mltiplas funes. H tambm os casos em que se renem

    numa nica pessoa os aspectos mais criativos da stima arte.

    Mas, o que importa aqui muito menos a funo no fazer. ,

    sim, o criar como ato autnomo, pessoal. E no h dvida:

    neste particular, Wagner foi um criador, assim como tantos

    cineastas o so hoje. Importa tambm mostrar como essa

    funo de antecipao faz parte da linguagem cinematogrfica

    mais corriqueira, assim como a terceira funo expressa por

    Bloch, que chamo aqui de recordao.

    No cinema, essa figura de linguagem chamada flashback

    tem significado semelhante ao efeito recordao das peras

    wagnerianas. No se trata de uma recordao qualquer, mas

    algo que faz o drama musical caminhar, aprofundar seu

    sentido, abrir novas perspectivas de entendimento dos aspectos

    enfocados na ao. tambm este o sentido que muitas vezes a

    recordao transmite no cinema. Sobre esssas relaes, tratarei

    mais profundamente em outro captulo. Volto agora aos

    paradoxos de que fala Ernst Bloch.

    No h dvida de que o modo como Wagner constri seus

    dramas musicais lembra muito o processo da montagem

    cinematogrfica, pelos menos no que diz respeito aos mtodos.

    E bvio que numa viso eisensteiniana o que aparece em

    primeiro lugar exatamente a atrao, o contraste, o paradoxo,

  • 27

    a contradio. Muitas vezes essa forma de trabalhar com os

    opostos acaba produzindo um tipo de reflexo que, de certo

    modo, transcende os prprios dados da ao dramtica em si.

    Bloch, ao levantar esses elementos paradoxais na pera

    wagneriana, no faz outra coisa seno explicitar o sentido que,

    na essncia, Wagner desejava transmitir com a sua arte.

    claro que mesmo considerando a palavra importante, o

    compositor cria as suas referncias mais contundentes pela

    msica, e, em particular, no seu caso, pelos leitmotiven. So

    eles que, de algum modo, levam identificao de personagens,

    situaes e at mesmo objetos de diversas naturezas. Mas, no

    apenas a uma mera identificao. Seu objetivo vai muito mais

    alm. Revela sentimentos futuros ou recorda situaes j

    sentidas, mesmo que apenas no inconsciente. Esse trnsito

    espao-temporal torna seu relato musical extremamente denso

    e complexo de sentidos.

    Os paradoxos so, portanto, elementos de uma realidade

    criativa que est na prpria estrutura da pera wagneriana. No

    so considerados apenas os aspectos formais. Outras camadas

    de elementos a eles se associam na elaborao do discurso

    musical. Muitos autores j se aventuraram na exegese dos

    mistrios wagnerianos e realizaram belas construes. No

    entanto, esse trabalho de Ernst Bloch merece especial ateno

    por se tratar de um levantamento com evidentes conexes com

    a arte do cinema.

  • 28

    Ao analisar os dramas musicais, Bloch no s elabora uma

    slida construo, como a conecta com as abordagens de outros

    autores que, como ele, perceberam os paradoxos iluminadores e

    verdadeiramente dialticos das montagens sonoras, textuais e

    cnicas de Wagner. E para exemplificar uma dessas situaes,

    Bloch escolhe Baudelaire. Diz ele: No foi sem razo que

    Baudelaire amou esta msica. No apenas s como msica,

    mas como msica de uma eficaz montagem. E um vrtice dessa

    irradio sonora est, sem dvida, em Siegfried , quando

    Mime quer ensinar a Siegfried o sentimento do medo, e Siegfried

    ouve, apenas acenado, o leitmotiv que em si j contm -

    embora de forma remota e, portanto, em Siegfried ainda no

    consciente - a presena de Brunhilde, e o motivo do amor, ainda

    desconhecido, fundido com o do medo. um paradoxo? Sem

    dvida. Fundir o medo com o amor no parece ser a forma mais

    normal de expressar esses dois sentimentos aparentemente

    inconciliveis. Mas, no modo de construir essa arquitetura

    musical, Wagner cria novos sinais sonoros que interferem no

    andamento do drama narrado e na prpria reao psicolgica

    dos personagens envolvidos. como se o sinal sonoro desse ao

    espectador-ouvinte um sentido de antecipao da ao

    dramtica para relativizar a prpria auto-suficincia do heri

    que acabara de zombar de seu pai adotivo (Mime) e de se

    gabar de ser impenetrvel ao medo. Se o medo aparece como

    um desafio absolutamente transponvel, o amor soa como uma

    espcie de destino muitas vezes ameaador, condenado,

  • 29

    impossvel, romntico, e s uma vez redentor, ao que tudo

    indica na pera Parsifal.

    Na tetralogia, esses sentimentos se entrecruzam numa

    espcie de metfora do mundo, s que vivida pelos deuses

    ancestrais. E por isso, talvez, a ousadia wagneriana no tem

    limites. E nesse mundo de contradies, a msica estabelece os

    parmetros, mas, ao mesmo tempo, amplia a gama de sentidos

    possveis no seu drama musical, tornando-o mais complexo e

    aberto a novas interpretaes. A cada tempo novas descobertas

    so realizadas e suas inspiraes so de tal forma provocantes

    que, em menos de cem anos aps sua morte, bibliotecas

    inteiras se formaram no estudo e interpretao de suas obras.

    Paradoxos como estee apontados por Bloch so uma espcie de

    marca registrada da obra wagneriana.

    Continuando esse provisrio levantamento, Bloch mostra

    como o mtodo wagneriano no se restringe apenas a uma

    tcnica banal de utilizar o leitmotiv ou os temas condutores. A

    inter-relao de formas realiza plenamente os objetivos do

    criador. De um lado, ele utiliza o enredo do drama para adensar

    o sentido desejado. E de outro, a msica confirma ou no essa

    abordagem. Para mostrar como Wagner realiza essa ampliao

    de sentido, cito textualmente a passagem de Bloch falando de

    um trecho da pera Crepsculo dos Deuses:

    Siegfrid j bebeu a poo do esquecimento que Hagen

    lhe deu. Ela age rapidamente e desencadeia um efeito

    verdadeiramente desconcertante: no momento preciso

  • 30

    em que pronunciado o nome de Brunhilde, a

    recordao dela desaparece completamente em Siegfrid,

    como se de uma tumba sonora surgisse o tema do

    esquecimento. Mas, algum tempo depois - um tempo

    cheio de horrveis enganos, como o da encomenda a

    Brunhilde e o casamento escandaloso de Gutrune -

    durante a caa no Odenwal, Hagen toca ainda mais

    uma vez no mesmo assunto com Siegfrid ainda

    inconsciente.E, quando Siegfrid, liberado do

    encantamento, transpassado pela lana de Hagen,

    reconquista a memria e, moribundo, v a face da

    morte, exatamente neste momento ecoa pela segunda

    vez o motivo do despertar, o mesmo e na mesma

    tonalidade de d maior que novamente passa de forma

    majestosa para o acorde de r menor, aquele mesmo

    acorde que havia acompanhado, como uma sonoridade

    primordial, o abrir-se a luz dos olhos de Brunhilde, o

    seu ingresso na vida, na existncia suprema. E

    exatamente o mesmo motivo agora tocado - identidade

    do no idntico - com o beijo de Brunhilde, um beijo

    dado morte. Nesta ltima identidade entre luz e morte

    (completamente diferente das notas da morte por amor)

    est de fato o paradoxo mais profundo e mais

    significativo da expresso musical wagneriana.

    Este exemplo caracteriza bem como os elementos no tm

    vida prpria. Esto sempre a servio de uma determinada ao.

  • 31

    Mesmo a msica, matriz de todo o processo criativo de Wagner,

    de algum modo, se submete a outros elementos do drama. So

    at subvertidas as regras da composio que ainda vigoravam

    no sculo em que o autor viveu. Sem tornar o exemplo de Bloch

    um paradigma do seu trabalho, creio que extremamente

    elucidativo desse processo de construo que se estrutura, no

    pela integrao dos fatores, mas por sua oposio. curioso

    como esta busca de um sentido oculto, que est no ntimo dos

    personagens e s vezes at no seu inconsciente, uma espcie

    de destino que acompanha cada passo da pica ou da tragdia

    narradas. Trata-se, sem dvida, de uma busca insacivel. Em

    praticamente todas as peras de Wagner, esta observao est

    presente. como se o autor estivesse em constante pesquisa

    sobre a alma humana. Certamente escolheu criar seus heris

    na mitologia para no ferir mais as susceptibilidades de seus

    contemporneos, pois, de fato, o que Wagner fez foi uma grande

    metfora dos comportamentos do ser humano com suas

    paixes, mesquinharias, interesses, arrebatamentos, luzes e

    trevas. Porm, mais do que isso, se assim posso dizer, Wagner

    perseguiu sempre o Graal, entendido no apenas como a

    relquia sagrada, mas como uma forma de absoluto que, de

    certo modo, imprime sentido a todas as coisas. Trata-se,

    indiscutivelmente, de uma caminhada cheia de contradies e

    ousadias, que, no entanto, sempre busca um sentido para a

    vida.

  • 32

    Na anlise feita por Ernst Bloch, o personagem Siegfrid

    encarna um sentimento que no se esgota no momento

    presente da ao. A morte no fecha o ciclo da vida. De certo

    modo, o despertar beira da morte, associado idia de luz,

    torna-se algo prximo ao que se pode chamar de outra vida. No

    propriamente uma ressurreio, pois, de fato o mundo dos

    deuses est acabado. Mas, sem dvida, uma esperana,

    consubstanciada, alis, pelo emocionante canto final de

    Brunhilde. Talvez a redeno pelo amor, como diz Ernest

    Newman em seu estudo sobre a pera O Crepsculo dos

    Deuses. Bloch, no entanto, prefere ficar com o conceito de

    paradoxo, ao invs da soluo pela redeno. Na sua concepo,

    o final do Crepsculo no significa uma concluso. O tema da

    redeno que, de fato se estende e parece no encontrar fim,

    embora rico de pulses meldicas, demasiadamente

    ecoante para se tornar uma concluso efetiva. Para Bloch ele

    mais um paradoxo que leva a alguma coisa de novo. Neste

    sentido, esta abordagem confirma um pouco o que disse antes:

    Wagner s concluir sua inquietante busca no Parsifal, obra,

    esta sim, conclusiva. Alis, Nietzsche percebeu logo esse

    movimento e se afastou em definitivo do amigo, de forma

    extremamente agressiva, chamando esta ltima obra de

    decadente. Certamente Nietzsche se equivocou. J Gabrielle D

    Annunzio o disse num livro chamado La Musica di Wagner e la

    Genesi del Parsifal, editado, em 1914, em Florena, pela

  • 33

    Quatrini. Neste pequeno ensaio, D Annunzio mostra todos os

    equvocos nietzscheanos com relao ao Parsifal.

    O Parsifal, segundo Bloch, uma obra dualstica. Ela se

    desenrola sobre Montsalvat que est dividido em duas

    alternativas: o jardim encantado de Klingsor e o celeste templo

    do Graal. No primeiro, sob a influncia rabe, observa-se um

    mundo demonaco e triste. J no segundo, com caractersticas

    gticas, resplandece o ambiente purificado, depois de um

    perodo tenebroso. Esses dualismos que se estruturam em

    paradoxos esto tambm em Tristo e Isolda e outras peras

    de Wagner.

    A reflexo repetida ou o leitmotiv wagneriano

    Alm dos paradoxos, Ernst Bloch destaca a questo dos

    leitmotiven. Esse talvez tenha sido o recurso wagneriano mais

    freqente que o cinema utilizou e utiliza ainda. No h a

    menor dvida de que esta forma foi uma das que mais se

    adaptou prpria linguagem cinematogrfica, numa

    assimilao natural e no consciente por parte dos criadores da

    stima arte. Bloch, naturalmente preocupado em limpar o

    nome de Wagner e apresentar sua obra s novas geraes,

    dedica ao tema observaes extremamente pertinentes e

  • 34

    lcidas. Embora essa questo dos leitmotiven v ser objeto de

    um certo aprofundamento mais adiante, registro aqui alguns

    princpios que me parecem inspiradores para a relao que

    desejo fazer com o cinema enquanto expresso dos conflitos da

    vida e da prpria condio humana. Alis, nesse contexto que

    o prprio Bloch realiza a sua leitura de Wagner.

    A primeira questo levantada diz respeito origem do

    leitmotiv. bvio que a discusso se inicia por rebater

    algumas expresses, at certo ponto irnicas, de alguns crticos

    de Wagner, como a de Debussy que comparou os leitmotiven a

    uma agenda de endereos. Citando o prprio Wagner em pera

    e Drama, onde ele diz que os seus leitmotiven so expresso

    plstica de um sentimento, colunas do edifcio dramtico, do

    qual retornam mudados e bem calibrados fazendo nascer

    absolutamente sozinha a mais alta forma musical unitria.

    No se tratava, ainda segundo Bloch, nem mesmo de dar nomes

    fixos a cada motivo condutor, como aconteceu posteriormente

    em Bayreuth, muitas vezes de forma bastante problemtica.

    Mas Wagner aceitaria, de bom grado, a comparao de seu

    sistema de leitmotiv ao que Goethe chamava de reflexo

    repetida para se referir ao dj vu acstico. No se trata,

    portanto, de uma repetio mecnica. Mas, de algo que poderia

    tambm ser comparado s concordncias da Bblia de Lutero,

    ainda segundo palavras de Bloch. Isto quer dizer que tanto no

    quadro comparativo da bblia luterana, como na reflexo de

  • 35

    Goethe, o leitmotiv wagneriano acrescenta novos significados

    s motivaes originais.

    Esta problemtica questo , no entanto, historicamente

    muito anterior, embora tenha aparecido como uma novidade em

    Wagner, ou, ao menos, como um fenmeno aparentado a ele.

    Um dos incios certamente est ligado s tpicas floraturas com

    as quais se cantava o amor ou o dio no antigo melodrama.

    Depois, continua ainda Bloch, encontra-se freqentemente a

    mesma figurao - confiada aos arcos ou aos sopros - quando

    aparece um criado, um empregado ou ainda um velho. O motivo

    recorrente de Samiel no Franco Atirador, de Carl Maria von

    Weber, torna-se caracterizante, assim como o motivo da morte

    na Carmen se aproxima tambm a este modelo e no aos

    exemplos dinmicos encontrados em Wagner. O exemplo mais

    evidente e fascinante est em Berlioz em sua Sinfonia

    Fantstica, no tema da idia fixa, que retorna continuamente

    nos vrios movimentos da pea sinfnica.

    Os exemplos acima so apenas aluses, uma vez que todo

    esse processo de retomada de temas tem origem mesmo na

    sonata clssica, segundo opina Ernst Bloch. Em funo dessa

    observao, tentou-se explicar todas as outras retomadas

    wagnerianas que, assim, respeitariam a estrutura da sonata

    clssica. Bloch, no entanto, mostra como, em Wagner, a

    estrutura dos motivos condutores assume uma nova identidade,

    deixando de ser apenas um mero elemento construtivo, na

    expresso de Alfred Lorenz que, em seu livro O Segredo da

  • 36

    Forma em Richard Wagner, analisa as conexes estruturais da

    obra wagneriana. Para Bloch, o leitmotiv wagneriano tem de

    fato um qu de especfico cuja expresso e funcionalidade no

    se esgotam na forma sinfnica.

    Algumas referncias, nem sempre lisongeiras, so

    lembradas por Bloch em relao aos leitmotiven. Uma delas

    diz respeito idia de que o motivo condutor invade, sem pedir

    licena e de forma quase autoritria, o ouvinte-espectador. E

    isso traz lembrana o prprio sentido da publicidade

    moderna. claro que esta referncia, trazida tona por Bloch,

    no significa que o leitmotiv tenha servido a propsitos de

    carter comercial. Simplesmente quer mostrar que, de algum

    modo, a repetio penetra no mago dos desejos e os faz aflorar,

    despertando as vontades que estavam adormecidadas ou

    embotadas. Essa uma curiosa referncia, no inventada por

    Bloch, que explorada pelos adeptos da teoria da indstria

    cultural moderna. Mas, o que importa o que Bloch diz a

    seguir:

    Por mais que esta msica - as peras de Wagner -

    pressuponha a ao, tambm a ao j foi concebida na

    concepo desta msica. Explicando melhor: foi

    concebida na criao de um amlgama que separa a

    msica de Wagner da msica absoluta, inclusive nos

    seus preldios e interldios em que o texto est

    ausente. O leitmotiv transparente em relao ao

    texto no apenas a partir de sua prpria residncia

  • 37

    tonal, mas por ele mesmo ser metafrico, e, portanto,

    diferente da forma sonata.

    Bloch invoca tambm diversos autores, inclusive Thomas

    Mann, para conferir o status de poticos aos motivos

    condutores de Wagner. Refere-se tambm ao fato de que a

    poesia est tambm no andamento musical quando este

    consiste no aprofundar e no aflorar, no retornar e no concordar

    com intermitncias, como no caso do motivo do sono, da chama

    ou do encantamento que so to plenos de alegorias. Fala de

    Theodore Storm e Mann com expresses como o jardim, o frio

    cortante que penetra obliqamente, enfim, poesia recheada de

    elementos alegricos, para dizer que Wagner manipulou de

    forma semelhante seus motivos condutores. nesses meandros

    da alegoria que o leitmotiv se afirma no apenas como

    regresso recuperada, mas tambm como antecipao

    acelerada.

    Normalmente se conhece mais a funo leimotvica como

    retorno ou recordao. Neste contexto, o inconsciente ou o

    esquecido que ressurge no personagem que muitas vezes age,

    por ele movido, apenas num lampejo de ao instantnea, e,

    portanto, caracterstico de uma situao passada que volta.

    tambm muitas vezes uma aluso sonora que surge, sem que

    precise durar muito. Nestes casos, o passado vem tona de um

    modo integrado ao personagem sem qualquer interferncia

    externa. como se o seu mundo interior fosse assaltado por

    esse retorno e o movesse para a frente ou para o

  • 38

    desenvolvimento da ao em foco. Mas, com mais freqncia, o

    passado permanece em profundidade, na soleira da conscincia,

    no mbito daquilo que foi, e dali se anuncia. Esse anncio vem

    muitas vezes s pela orquestra, num plano em si mesmo

    inferior em relao ao personagem que atua na cena mais

    acima. Bloch refere-se naturalmente situao em que Wagner

    colocou a orquestra, o fosso, exatamente para obter, entre

    outras coisas, esse efeito.

    Para ilustrar esse tipo de leitmotiv, Bloch recorre a um

    pequeno momento da Walkyria em que Siegmund est

    narrando a sua histria para Sieglinde e Hunding. Trata-se

    ainda do primeiro ato, quase no final da cena dois. Siegmund

    fala das lutas que travou com diversos inimigos, sempre

    junto com o seu pai. Num determinado momento, porm,

    acabou se separando dele. Tentou, por todas as formas,

    encontr-lo. Buscou por toda a floresta seus rastros,

    encontrando apenas a pele de um lobo. E neste ponto canta o

    seguinte: Vazia estava diante de mim ( a pele do lobo) ao pai

    no encontrei. Nesse exato momento, os trombones, como se

    estivessem a uma grande distncia, entoam o motivo do

    Walhalla, com uma parada sobre a ltima nota, marcando uma

    espcie de olhar para trs. E continua Bloch: O texto cantado

    na cena no fala e no atua completamente onde atua o

    motivo condutor da msica; por isso que nasce a uma

    enunciao desdobrada, na cena e na orquestra, embora uma

    ressoe na outra, criando uma assincronicidade contempornea.

  • 39

    Bloch afirma ainda que a tcnica do monlogo interior

    em James Joyce foi declaradamente elaborada sob a influncia

    desta enunciao.

    Trata-se, portanto, de um terreno em que participam no

    apenas a msica, mas o universo psicolgico que estrutura as

    histrias narradas na cena. E a o leitmotiv tanto pode vir na

    forma de recordao quanto de antecipao. No h dvida que

    esta tcnica de composio, feita com material j apresentado

    ao ouvido do espectador, tem no conjunto das peras O anel

    dos Nibelungos a sua construo mais sofisticada e mais

    completa. Nesse contexto extremamente rico de relaes e de

    significados, a habilidade criativa de Wagner nos leva a

    proposies que transcendem o imediatismo das aes cnicas e

    buscam, de fato, um sentido, no mnimo metafrico, para no

    dizer at metafsico, como Bloch chega a afirmar. Da mesma

    forma, os motivos condutores so uma espcie de suporte que

    faz aflorar freqentemente o inconsciente no apenas dos

    personagens, mas at mesmo de espaos sagrados que j

    contm em si uma memria acumulada de elementos vividos ou

    de sinais de futuro.

    Bloch chega a afirmar que esses sinais so uma espcie de

    momento plstico do sentimento do leitmotiv, que atualiza o

    personagem, atravs de um aceno orquestral ou por fragmentos

    sonoros e musicais que vem superfcie. Muitas vezes essa

    premonio orquestral aparece exatamente porque o

    personagem em cena no pode ainda ter conhecimento do que

  • 40

    ainda est por acontecer. Mas, para o espectador/ouvinte essa

    antecipao parcial funciona como motivo de expectativa e at

    mesmo de seduo para segurar a sua ateno, como alis o

    cinema sempre faz. claro que com tcnicas e meios

    completamente diferentes, mas com um modelo esttico muito

    prximo desse proposto por Wagner e to bem sublinhado por

    Ernst Bloch, cinema e pera chegam a uma ntida aproximao

    de estruturas artsticas.

    Para concluir esta exposio de Ernst Bloch sobre os

    leitmotiven wagnerianos, falta dizer que os motivos condutores

    no esto sempre servindo ao dramtica. Eles tambm

    formam sua prpria matria, tendo obviamente vida prpria.

    Em seu percurso nos dramas musicais wagnerianos, os

    leitmotiven assumem at mesmo um carter utpico. Mas isso

    uma outra histria que no se justifica no contexto deste

    trabalho. J estaramos falando da concepo central da

    filosofia de Ernst Bloch, o que foge ao nosso objetivo.

    A vontade universal como representao do homem e da

    natureza

    Bloch desenvolve ainda um outro tema que, sem dvida,

    pode ser aproximado s questes estticas do cinema.Trata-se

    do que ele chama de pastoral ecoante. Ele fala, em ltima

    instncia, da msica que, de alguma forma descreve a natureza.

    Diz ele que o que caracteriza a obra de Wagner uma pulsao

  • 41

    interior que invade a cena de modo vibrante. Mas sua msica

    canta tambm o mundo externo. Corre, murmura, vacila, se

    apaga pouco a pouco, ilumina, retumba. Mas, diz ele, os

    riachos e os campos j estavam presentes na expresso musical

    antes de Wagner. Em Mozart, por exemplo, podem-se ouvir

    esses elementos, como no pequeno dueto entre Susanna e a

    condessa Almaviva, em As bodas de Fgaro. A criada Susanna

    termina o seu canto entre as estradas que vo dar no jardim do

    amor que est imerso na noite, dizendo: Que suave brisa esta

    noite soprar sobre os pinheiros do bosque. E no canto

    alternado: Chega enfim o momento em que gozarei, sem

    ansiedade, nos braos do meu dolo. As referncias ao jardim

    do amor assim como a outros elementos naturais, como a noite,

    o luar, as rosas, enfim, descries musicais naturalistas.

    E o que dizer ento da sinfonia Pastoral de Beethoven,

    onde o riacho e o furaco so no apenas descritos, mas se

    transformam numa imagem sonora que a tantos j inspirou?

    Mas Bloch diz que a msica naturalstica pr-romntica, em

    sua maior parte, era feita de modo relativamente simples. Fala,

    por exemplo, da figuratividade grfica dos oratrios e cantatas

    de Bach, assim como dos quadros sonoros de Haydn na

    Criao e outras peas, dizendo inclusive que esta tendncia

    musical remonta ao perodo medieval tardio, especialmente o

    francs. Analisa ainda exemplos de outros compositores , como

    Mendelssohn em Sonho de uma noite de vero, onde a

    Stimmung (atmosfera, ambiente, clima...) tambm uma

  • 42

    imagem sonora. Invoca ainda outros msicos somente para

    dizer que esse tipo de msica que, de alguma forma, est no

    apenas na inspirao de todas as pocas, como se integra

    completamente sensibilidade humana.

    No caso especfico de Wagner, o que Bloch enfatiza que

    todos os elementos se associam para criar o brilho natural que

    tanto a natureza, quanto a construo humana so capazes de

    nos transmitir. Neste sentido, nada mais revolucionrio que o

    preldio de O ouro do Reno, que tanto deixou espantados os

    espectadores que o ouviram pela primeira vez, em 1869,

    segundo observao de Ernest Newman6: Consiste em nada

    mais que um som persistente, durante 136 compassos, em tom

    de mi bemol. Sua finalidade de sugerir o Reno; a idia , antes

    de tudo, uma espcie de inundao, seguida de vagas fortes e

    depois de outras, cada vez mais fracas. Certamente a

    preocupao de Wagner no se restringe a este tipo de

    metonmia, se assim se pode dizer. Ele estava tambm

    interessado em tornar a msica figura sonora integradora de

    um espetculo nico e de inspirao schopenhaueriana. Alis, a

    origem talvez esteja em Schelling que, em sua filosofia, diz que

    a msica est suspensa no espao para tecer, com o corpo

    transparente do som e do tom, um universo audvel. Mas, sem

    dvida Schopenhauer, aqui citado por Bloch, que explicita

    completamente essa idia wagneriana: A msica faz aparecer

    imediatamente a coisa em si, e esta , sob diferentes nveis de

    6NEWMAN, Ernest: Histria das grandes peras e de seus compositores. Porto Alegre. Globo, 1952

  • 43

    observao do fenmeno, a vontade vida, desesperada,

    jubilosa, e, em suma, apaixonada. Essa viso de Schopenhauer

    integralmente assimilada por Wagner. Diz Bloch: A superfcie

    musical vibrante das figuras do mundo deglutida pela unidade

    absoluta da vontade que atemporal, aespacial e acausal; e

    fogo, gua, terra, pessoas, destinos so, no s seus efeitos

    reais, quanto a sua anunciao.

    Bloch quer dizer que Wagner, com sua msica da

    natureza, no quer estar ligado a uma raiz sonora apenas. A

    coisa em si de Schopenhauer no conhece nenhum princpio de

    individuao. Tambm a msica wagneriana, segundo Ernst

    Bloch, conhece pouco ou at no conhece as autnticas

    pessoas. Pertencem todas, evidentemente como atores,

    natureza universal que a nica de fato a agir. Elas agem

    tambm, claro, sob o impulso da natureza, parecendo,

    portanto, homogneas ao tempo, ao fogo, primavera. Tanto os

    destinos individuais, como os elementos da natureza irradiam

    essa vontade universal, cujo sentido s pode ser explicado na

    sucesso de paradoxos em que homem e natureza se agitam

    para alcanar a vontade universal.

    Certamente estas anlises de Ernst Bloch mereceriam ser

    ampliadas e discutidas com maior profundidade. Mas, o que

    interessa aqui a maneira como esta espcie de retrica

    musical-cenogrfica funciona na construo de um espetculo

    que junta, no sentido de amalgamar, a pica e a tragdia dos

  • 44

    gregos a uma filosofia da msica para erguer um edifcio nico

    que Wagner chamava de drama musical. E exatamente o que

    da resulta que, sem dvida, realiza o encontro esttico com o

    cinema. E para concluir esta apresentao sobre as lcidas

    categorias interpretativas de Ernst Bloch, cito o prprio autor

    quando fala que a pastoral musical do futuro leva em seus

    ombros Wagner, como uma nave com vento favorvel e como a

    luz no coro final de Os mestres cantores: a aurora vermelha de

    chamas que desponta entre as foscas nuvens. E para no

    aparecer nua, a luz chamar sempre para si tambm estas

    nuvens escuras, para carregar-se de cores.

  • 45

    Captulo 2

    De como o espetculo operstico do sculo XIX

    revolucionado por Richard Wagner e caminha para a

    integrao completa do som e imagem

  • 46

    Bertolt Brecht disse, certa vez, que, no sculo XIX, toda a

    cidade alem, com mais de 50 mil habitantes, tinha a sua

    pera, ou um teatro onde se apresentavam encenaes

    opersticas. Este fenmeno no era exclusivo da Alemanha. Em

    toda a Europa, a pera ganhava espao e se tornava mesmo

    quase popular. Ao mesmo tempo, esse gnero musical se

    adaptava s novas exigncias de seu pblico, cada vez mais

    frvolo e de interesses imediatistas, caracterstica alis da franca

    consolidao do capitalismo no mundo ocidental.

    A pera chegou ao sculo XIX depois de um percurso de

    mais de 200 anos, desde que Dafne, de Jacopo Peri, com

    libreto de Ottavio Rinuccini, foi montada, pela primeira vez, no

    Palcio Corsi, em Florena, em 1597. Na poca foi chamada de

    unpera in musica, para talvez se distinguir da Camerata

    Florentina que reunia nobres e msicos para discutir o teatro

    grego e at fazer pequenas encenaes musicais. Peri fazia parte

    do grupo criado pelo conde Giovanni de Bardi. E , no mnimo,

    curiosa a escolha do mito de Dafne para este primeiro drama

    musical. Filha do rio Ldon ou Peneu, era amada por Apolo que

    a perseguia insistentemente. No conseguindo escapar a esse

  • 47

    assdio, Dafne pediu ao pai que a transformasse. Assim, ela se

    tornou um loureiro que ficou sendo a rvore predileta de Apolo e

    de cujas folhas eram feitas as coroas oferecidas aos guerreiros

    heris. A pera foi montada diversas vezes, mas a msica se

    perdeu, embora o libreto tenha sido preservado.

    Deste incio associado nobreza florentina, a pera logo se

    deslocou para outras cidades italianas. J em 1607, Claudio

    Monteverdi escreveu Orfeu, sua primeira pera, em Veneza.

    Melhor msico que Peri, j havia composto madrigais e suas

    peras eram menos aristocrticas e acadmicas e mais

    sofisticadas do ponto de vista musical. Ainda em Veneza,

    inaugurado o primeiro teatro de pera, o San Cassiano, em

    1637. Nos fins do sculo XVII, a cidade tinha 20 teatros desse

    gnero. Foi tambm com os compositores venezianos que os

    termos ria e recitativo comearam a substituir arioso, rtulo

    preferido pelo grupo Camerata. A estrutura da ria e do

    recitativo atravessou os sculos, sofrendo mudanas aqui e ali,

    mas, em essncia, cumprindo as mesmas funes. A ria era

    uma cano cheia de ornamentos vocais, cantada em solo. J o

    recitativo contava a histria acompanhada por cravo ou rgo.

    Distinguiam-se os recitativos em: secco, acompanhado s pelo

    cravo: e accompagnato, com a participao de toda a orquestra.

    Foi tambm a partir do sculo XVII que os castrati passaram a

    ter grande relevo nas encenaes opersticas, uma vez que em

    alguns estados italianos as mulheres no podiam se apresentar

    nos palcos.

  • 48

    Fenmeno tipicamente italiano, a pera logo se espalhou

    pela Europa, levada, por exemplo, para a Frana, por um

    italiano, Giovanni Lulli, que ficou mais conhecido como Jean

    Baptiste Lully. Ele introduziu esse espetculo na corte de Lus

    XIV, dando-lhe um grande requinte literrio, caracterstica que

    at hoje parece predominar na pera francesa. Alm do texto

    literrio de alto nvel, Lully introduz o bal nas suas montagens.

    Se Lully levou a pera para a Frana, Georg Friedrich

    Hendel a introduziu na ustria e a implantou na Inglaterra.

    Mas ainda na Itlia que aparece a pera cmica no sculo

    XVIII. La serva padrona, de Pergolesi, inaugura o gnero

    tambm chamado de opera buffa que acabou se opondo opera

    seria. Nas peras encenadas nos teatros lricos pblicos, o

    compositor no era a figura dominante em que mais tarde se

    tornou. Elas eram geralmente preparadas por compositores e

    poetas desses teatros, utilizando freqentemente msicas de

    diferentes origens para adapt-las e adequ-las aos cantores em

    voga, que, sem dvida alguma, eram a principal atrao. Esse

    tipo de comportamento acabou gerando uma srie de

    deformaes que distanciaram o espetculo, de suas origens.

    As concesses se tornavam cada vez maiores. Os libretos

    eram freqentemente tolos e inconsistentes. Nem a boa msica

    os conseguia salvar. Essa degradao atingia tambm as

    encenaes e o prprio mundo do espetculo operstico.

    Christoph Willibald Ritter von Gluck realiza uma grande

    reformulao na pera do sculo XVIII. Volta tragdia grega,

  • 49

    buscando na poesia e no drama o equilbrio entre a msica, o

    texto e o teatro. Nesse contexto, surge o gnio de Mozart que faz

    sucesso nos trs gneros opersticos: o singspiel ou pea

    cantada que era um texto falado combinado com nmeros

    musicais. So singspiel O rapto do serralho (1782) e A flauta

    mgica (1791); a opera seria, Idomeneo (1781) e La clemenza

    di Tito (1791); e a opera buffa, As bodas de Figaro (1786),

    Don Giovanni (1787) e Cosi fan tutte (1790). O gnio de

    Mozart imprimiu em suas peras msica sublime, comdias

    soberbas, e rias e recitativos extremamente criativos.

    Quando o sculo XIX comea, todos os gneros opersticos

    j deixaram praticamente o meio aristocrtico e foram para os

    grandes teatros pblicos, dando acesso a platias populares.

    Segundo o Dicionrio Grove de Msica7, uma manifestao

    desse fenmeno foi a popularidade das peras de resgate, das

    quais Fidelio (1805), de Beethoven, a mais conhecida. E

    continua: As platias burguesas foram sem dvida um fator

    influente na evoluo da grand opera francesa com seus

    enredos carregados de emoes, orquestrao cheia de colorido

    e trechos para grande coro; os exemplos de maior sucesso

    resultaram da colaborao entre o libretista Scribe e o

    compositor Meyerbeer. A natureza e o sobrenatural invadiram a

    substncia do drama, particularmente na Alemanha, com

    Weber, Marschner e outros.

    7Dicionrio Grove de Msica. Edio concisa por Stanley Sadie. Rio. Jorge Zahar Editor, 1994

  • 50

    neste novo contexto que aparece Richard Wagner com

    suas inovaes. Sua atuao se deu em todos os nveis do

    espetculo. claro que o sculo XIX foi tambm o tempo em

    que viveram o gnio de Giuseppe Verdi, Rossini, Donizetti e

    Puccini, para falar do principal quarteto operstico italiano. Em

    matria de compositores, o sculo XIX foi prdigo. A

    contemporaneidade de vrios gnios em diferentes

    manifestaes artsticas, cientficas e culturais contaminou,

    sem dvida, a impressionante produo criativa do sculo

    passado. bvio, que uns interagindo com outros

    impulsionaram um desenvolvimento da inteligncia mundial.

    Num tempo rapidssmo, por exemplo, a Alemanha passou de

    uma situao praticamente medieval no incio do sculo, para

    uma grande potncia, j no seu final. evidente que todo esse

    contexto ps-Revoluo Francesa significou uma crescente

    modernizao das relaes econmicas, sociais, polticas e

    culturais.

    A pera foi logicamente atingida por esse sopro

    modernizador. E Wagner soube valorizar como ningum sua

    genialidade. Traou um caminho a seguir, e dele no se afastou

    um instante sequer. Como todos os renovadores, voltou aos

    clssicos gregos. L encontrou o sentido mesmo do espetculo

    enquanto representao do mundo. Foi tambm l que se sentiu

    seguro para buscar nos mitos aquelas pulses mais elementares

    da prpria histria do homem. Suas primeiras tentativas de

    criao foram aliceradas no cultivo dos bons exemplos. Imitar

  • 51

    os mestres, copiar os mestres. Mas, acima de tudo, conhecer

    Beethoven profundamente. Esse era o seu ideal. Alis, suas

    cpias de partituras ficaram famosas.

    Embora tenha tido sua caligrafia musical elogiada, Wagner

    se sentia bem mesmo, era criando. E o fez em todos os sentidos.

    Escrevendo, compondo, dirigindo, interpretando, construindo,

    enfim, realizando todas as tarefas de um artista mtiplo,

    inquieto, quase insacivel, Wagner acabou por tornar realidade

    toda sua potencialidade. Suas teorias sobre a arte,

    especialmente sobre a pera, concretizaram-se em obras. Ao

    todo, Wagner comps 13 peras . Sua produo intelectual

    fertilssima. Alm de ter escrito muito, orientou de modo preciso

    a montagem se seus espetculos e at construiu um teatro para

    apresent-los.

    A obra de arte total

    Gesamtkunstwerk (obra de arte total) - era assim que

    Wagner via a pera. Para ele, era a nica arte que podia juntar

    todas as outras: msica, poesia, teatro, pintura, dana e

    escultura. Mas, para que essa juno fosse realizada era

    necessrio que cada parte perdesse algo da identidade prpria e

    se colocasse a servio de uma idia integradora e acima de

    qualquer individualidade. Portanto, no adiantava

    simplesmente juntar esses elementos numa espcie de balaio

    comum. Mas, porque a pera seria o caminho, o leito por onde

  • 52

    essa integrao se faria? No fundo mesmo a resposta est nos

    gregos.

    A tragdia, de fato, nunca foi outra coisa para os gregos

    seno um espetculo. Algo para ver, ouvir, sentir e entender.

    esta ltima capacidade humana, que nos dada pela

    inteligncia, que Wagner considera fundamental para o poeta.

    O homem s pode exprimir-se atravs da inteligncia, diz ele

    em pera e drama.8 E continua: ela, a inteligncia, que

    combina, decompe, distribui e separa. E mediante a lngua,

    esta sim derivada do sentimento, capaz de descrever as

    impresses e a prpria concepo do sentimento. Mas a lngua

    tambm limitada por condies dadas. Com este raciocnio, ele

    conclui que o criador do drama deveria passar da msica

    linguagem das palavras. E chega de novo tragdia grega:

    Na tragdia grega, acontece algo semelhante, mas por

    razes inversas. A sua base era a lrica. Porm, na sua

    evoluo foi adotando a forma da lngua falada, como a

    sociedade. Fundada sobre o sentimento natural, moral

    e religioso atinge o estado poltico. O drama do futuro

    dever, portanto, fazer o caminho inverso, isto , da

    inteligncia dever retornar ao sentimento, pois, ns

    progredimos da individualidade pensada para a

    individualidade real.

    Quis Wagner dizer, portanto, que a msica que exprime

    um sentimento mais amplo, caminha para a palavra como uma

    8WAGNER, Riccardo: Opera e dramma.Torino.Fratelli Bocca, 1894.

  • 53

    espcie de necessidade irresistvel. E, neste particular, assume

    o contexto cultural completo, incluindo a, bvio, o Estado, e,

    portanto, o nvel poltico. bom no esquecer que, no sculo

    passado, a tradio de censura era muito forte. O prprio

    Wagner foi obrigado a mudar algumas de suas peas em funo

    da censura.

    Embora essa justificativa para a entrada da palavra na

    msica, segundo a concepo de Wagner, no seja a nica, ela

    parece ter sentido, ainda mais se seu estudo pretendia projetar

    um novo tipo de espetculo. Sua prpria obra parece se

    conduzir segundo a pesquisa terica que foi fazendo ao longo de

    sua vida. De fato, o jovem Wagner (1830-1840) imita os

    compositores em voga, com a diferena de que mesmo nesse

    incio j era o libretista de suas composies. Nessa primeira

    fase, usa obras pr-existentes como inspirao e as adapta para

    o seu objetivo. Assim foi com o conto La Donna Serpente de

    Carlo Gozzi do qual se originou As Fadas; Measure for

    measurede William Shakespeare que inspirou Proibio de

    amar; e o romance Rienzi, the last of the roman tribunes de

    Edward Bulwer-Lytton que o levou a Rienzi. Ao assumir

    tambm as funes de libretista, Wagner percebeu o quanto era

    importante essa sua atitude, que j era preconizada pelos

    chamados profetas do romantismo musical alemo, em

    particular Ludwig Tieck, Jean-Paul Richter e Ernst Theodor

    Amadeus Hoffman. Entendeu ainda, segundo Marcel

  • 54

    Schneider,9 a vantagem de ser seu prprio libretista. Podia

    desenvolver os personagens, escolher os episdios em funo

    das possibilidades musicais que eles tinham, alm do fato de

    que na criao do roteiro, j tinha em vista a msica que iria

    compor. Esta deciso, de incio de carreira, deixa claro que

    Wagner no estava apenas interessado na imitao dos outros,

    mas tinha a ambio de caminhar com luz prpria.

    Como bem observa Marcel Schneider, no foram apenas

    os gregos e os romnticos alemes que guiaram os passos de

    Wagner na concepo desse novo espetculo. No perodo de

    transio (1839-1850) em que praticamente foram compostas

    O navio fantasma, Tannhuser e Lohengrin foi guiado pelo

    que chamou de meu anjo bom. Referia-se a Beethoven. No se

    tratava apenas de encontrar a palavra certa, mas tambm a

    msica certa. Com isso, abandona o bel canto e adota a

    sinfonia. Citada por Schneider, usa a seguinte metfora:

    Juntar, no leito do drama musical, a rica torrente da msica

    alem, como Beethoven fez. O estilo dramtico e o estilo

    sinfnico so assim pinados para participarem da sua

    novidade. Isto, de certo modo, consolida a idia de que a

    representao teatral um dos elos desse processo de

    assimilao de formas.

    Surge, ento, uma outra inveno, segundo ainda Marcel

    Schneider. Esta, de alguma forma, retoma e sistematiza a

    tradio que Carl Maria von Weber criara por instinto, ou

    9SCHNEIDER, Marcel: Wagner. So Paulo. Martins Fontes, 1991.

  • 55

    esprito da poca, em suas peras. A partir de O navio

    fantasma, Wagner vai buscar na lenda a matria prima de seus

    dramas. Mais tarde, na interpretao de Schneider, com o

    Anel, o mito substitui a lenda. E no Parsifal, troca o mito

    pela ao sagrada. Assim, levado por reflexes que a todo

    momento pululam na sua mente, Wagner vai concebendo

    alguma coisa que precisa de uma identidade prpria, pois bebe

    de muitas fontes e corre o risco de no ser nada. Portanto,

    perfeitamente explicvel sua reao pera que era

    apresentada no seu tempo. Os episdios negativos de Paris, por

    exemplo, acabaram por formar nele a convico de que a pera

    no poderia ser mais um mero divertimento, mas deveria se

    transformar numa espcie de cerimnia social e religiosa.

    Parsifal, queiramos ou no, foi a concretizao desse objetivo.

    E Bayreuth foi o templo construdo para esse ritual operstico.

    De qualquer modo, suas concepes so dinmicas e

    ganham sempre novos contornos. O que Wagner busca no

    drama, diz Schneider, a unidade orgnica profunda, o

    movimento contnuo da obra, o poder expressivo da msica, do

    ponto de vista do drama. E completa: A pera clssica

    sacrificava o assunto ao canto, a pera romntica sacrificava a

    msica ao movimento. Para Wagner, tratava-se de restaurar a

    dignidade do assunto, a importncia do movimento dramtico e

    de transformar a partitura em sinfonia.

  • 56

    As luzes da ribalta e a mise-en-scne

    Alm das questes que envolvem msica, poesia e drama,

    que so talvez o ncleo essencial da proposta wagneriana,

    aspectos referentes a outras formas de criao de espetculos

    passam tambm a fazer parte do conjunto de sua reflexo e

    produo criativa. Talvez uma das mais importantes tenha sido

    a revoluo operada nos teatros do sculo XIX. Principalmente

    em Paris. No h dvida que Wagner aprendeu muito naquela

    cidade que, no incio de sua carreira, representava para ele a

    possibilidade de conquistar o mundo. Paris era, de fato, o centro

    de maior irradiao da cultura operstica naquela fase do

    sculo. Apesar dessa sua primeira estada em Paris ( de

    setembro de 1839 a abril de 1842) ter sido um fracasso quase

    completo, teve ocasio de observar as grandes mudanas que

    estavam ocorrendo na pera francesa. Eram elementos que,

    pouco a pouco, se introduziam na representao e na

    encenao propriamente dita.

    Um deles foi a inveno das luzes da ribalta, em 1826.

    Outro foi a adoo dos livros de produo - livrets de mise-en-

    scne - ainda no comeo do sculo XIX. Esses livros incluam

    notas e ilustraes de cenrios e figurinos, mostrando como

    tinha sido a produo original parisiense. Seu objetivo inicial

    era orientar os teatros do interior no sentido de terem um guia

    de produo. Os livrets de mise-en-scne falavam ainda das

    necessidades de iluminao, como deveria ser a direo e quais

  • 57

    os requisitos vocais para os principais papis das peras. Eram

    uma espcie de roteiro de produo. claro que todos os

    compositores desejavam primeiro o sucesso em Paris. L,

    poderiam utilizar efeitos espetaculares, incluindo o bailado, que

    havia sido introduzido na pera francesa por Lully. Alis, as

    produes francesas ficaram tambm famosas por suas

    concepes de trajes, msica e cenrios, segundo afirma John

    Louis Digaetani.10

    Hoje talvez no nos demos conta da importncia de

    algumas dessas mudanas no desenvolvimento do espetculo

    operstico. Mas, s para ilustrar como foram decisivas essas

    novas conquistas, basta dizer que as chamadas luzes da ribalta

    deram um brilho extraordinrio ao palco. A substituio das

    velas de cera e dos lampies a leo, pelo gs de carvo, tornou a

    representao menos arriscada e menos enfumaada. Com a

    chegada da eletricidade aos palcos, os recursos de iluminao

    se ampliaram muito. Apenas seis anos separam a inaugurao

    da pera de Paris, da luz eltrica, que substituiu a iluminao a

    gs, em 1881. Ela havia sido projetada por Charles Garnier e

    inaugurada em 1875. Foi tambm no sculo XIX que foram

    inventados e levados para os palcos das peras o panorama, o

    diorama e o panorama parcial . O prprio Louis-Jacques

    Daguerre, um dos inventores da fotografia, aplicou esses efeitos

    ticos em produes teatrais.

    10DIGAETANI, John Louis: Convite pera. Rio. Jorge Zahar Editor, 1988.

  • 58

    Todas essas inovaes foram fruto da Revoluo Industrial

    e tornaram a apresentao de espetculos algo mais sedutor.

    No foram abandonados de imediato os teles pintados, nem

    muitas solues criadas na Itlia, Inglaterra e Frana,

    principalmente. No entanto, era bvio que o espetculo teatral

    tinha agora novas possibilidades, tambm mecnicas. As

    mquinas de teatro se aperfeioaram. De certo modo, a iluso

    passou a ser construda de forma mais convincente. Espao,

    movimento, cor, luz, construo se associam para um mesmo

    espetculo. Cenrios fantsticos e arquiteturas engenhosas

    passaram a fazer parte dos principais teatros de pera da

    Europa.

    claro que a tudo isso Wagner estava atento e refletindo

    sempre sobre o que via e observava. Por outro lado, estava

    sempre pesquisando e estudando. Portanto, quando ele realiza

    suas propostas ou escreve sobre elas, esse trabalho fruto de

    amadurecimento prvio bastante considervel. Basta observar

    as datas em que suas obras estrearam. H sempre a diferena

    de alguns anos entre elas, com exceo das primeiras obras.

    bvio que tambm Giuseppe Verdi inovou a pera do

    sculo XIX. Alis, ambos nasceram no mesmo ano e, em vrios

    momentos, Verdi declarou admirao por Wagner. No entanto,

    como o meu objetivo mostrar como a presena inovadora de

    Wagner o aproxima da esttica cinematogrfica, deixo apenas

    registrado que o grande compositor italiano tambm contribuiu

    para as transformaes que se operaram no campo do

  • 59

    espetculo operstico. Devo dizer ainda que as circunstncias

    histricas tambm influram muito nessas duas carreiras. Basta

    dizer que, tanto Alemanha como Itlia realizaram suas

    unificaes no perodo de vida de ambos os compositores.

    Revolucionrios, cada um a seu modo, produziram obras de

    extraordinria importncia para seus prprios pases e

    influram decisivamente nos seus destinos.

    Wagner talvez tenha sido mais contundente em suas

    propostas. Ele, de fato, refez a pera durante a sua vida,

    insistindo, em particular, que a pera era em primeiro lugar

    uma arte, e entre as artes, a primeira.11Fiel a esse princpio,

    procurou adequar todas as condies artsticas e materiais

    sua forma de conceber a pera. Ao contrrio de muitos de seus

    contemporneos, que no consideravam o drama importante -

    pois, para eles, era apenas uma espcie de desculpa para

    algumas rias para bons cantores e alguns efeitos de cena

    brilhantes - Wagner toma muito a srio a estrutura dramtica

    de suas narrativas musicais. O palco para ele um espao

    quase sagrado. Se a msica tinha uma funo essencial e

    fundamental na construo do espetculo, o drama no poderia

    de forma alguma ser desprezado. E mais que isso, era parte

    integrante desse conjunto, tornando-se, portanto, tambm

    essencial ao espetculo. No foi por outro motivo que Wagner

    mandou escurecer o auditrio. Com isto, quebrou uma rotina

    que estava enraizada nos hbitos do pblico. Muitos se

    11DIGAETANI, John Louis. Op. Cit..

  • 60

    acostumaram a conversar durante a apresentao. Outros iam

    visitar seus amigos nos camarotes. Outros ainda estavam mais

    interessados em observar as jias e roupas das mulheres do que

    em prestar ateno ao espetculo.

    Por causa dessa exigncia de escurecimento da sala,

    Wagner teve muitos opositores. Mas, no espao de dez anos

    todos os teatros de pera da Europa tinham adotado o mesmo

    procedimento. Seu objetivo era naturalmente fazer com que o

    espectador entrasse no clima da representao e fosse envolvido

    por sua magia. O palco deveria ser alvo de ateno total. O

    pblico no deveria se dispersar.

    No foi s essa mudana que Wagner executou no ritual

    do espetculo operstico. Cuidou muito tambm da cenografia.

    Talvez no tanto quanto desejasse, pois muitos efeitos

    cenogrficos exigiam condies que no estavam ainda

    disponveis. De qualquer modo, usou a iluminao de forma

    muito mais criativa, embora com recursos at inferiores aos que

    j existiam em Paris. Digaetani registra, por exemplo, a

    instalao de uma cortina de vapor atrs do arco do proscnio,

    na frente do palco, que produzia as cerraes e nevoeiros das

    produes.

    Outra inovao fundamental foi a colocao da orquestra

    abaixo do palco, escondida por uma lmina de metal curva.

    Tratava-se no apenas de esconder os msicos para no distrair

    o espectador, mas tambm liberar Wagner para usar certos

    sons, despercebidos em suas fontes. Gostaria aqui de abrir um

  • 61

    parntese para comentar a funo dessa percepo sonora

    wagneriana, em relao ao cinema. evidente que o cinema

    usar essa percepo quase que exaustivamente, criando uma

    associao nova entre msica e imagem. A fonte sonora no

    precisa necessariamente ser percebida em cena para conseguir

    o objetivo desejado. Muitas vezes, a sua no identificao

    espacial que acaba criando a atmosfera esperada, ou mesmo a

    identidade do personagem ou a explicitao da situao

    encenada. No quero me deter aqui sobre este tema, uma vez

    que mais adiante a ele voltarei com mais detalhes. Mas, era

    importante registrar essa concepo que o cinema ir

    desenvolver de forma extraordinria, no sculo XX.

    Alm dessa concentrao no drama, Wagner queria de

    seus espectadores um acompanhamento quase ritual de seu

    mundo musical. Quando construiu Bayreuth, por exemplo,

    queria que as cadeiras fossem duras para evitar qualquer tipo

    de cochilo, segundo registra Digaetani. Mas, acima de tudo, com

    a ajuda de Gottfried Semper e Karl Bundt, projetou Bayreuth,

    sem camarotes. Apenas um, para o rei Ludwig II da Baviera,

    que fora seu mecenas. Desejava tambm que esse teatro fosse

    para o povo e no para a decadente aristocracia. Pretendia que

    esse espao fosse mais democrtico.

    No que diz respeito ao trabalho dos cantores em

    cena,Wagner tambm inovou. Tinha sempre muito cuidado na

    escolha de seus intrpretes. Muitas vezes no conseguia os que

    desejava, mas sempre trabalhou muito com eles. Dava-lhes

  • 62

    instrues precisas no apenas em relao voz, mas tambm

    em relao ao comportamento em cena. Em alguns casos

    chegava mesmo a fazer a sua escolha a partir do physique-du-

    rle dos cantores, embora isso nem sempre fosse possvel,

    devido tradio de que os bons cantores tm sempre um corpo

    avantajado. De qualquer modo, sua escolha sempre levava em

    considerao, em primeirssimo lugar, a qualidade vocal do

    intrprete. No se pode, no entanto, deixar de salientar essa

    preocupao com a qualidade da encenao, da qual ele no

    abria mo.

    Por fim, gostaria de ressaltar que esse esmero com as