Ciencia Cultura

15
1 A CIÊNCIA COMO CULTURA: IMPLICAÇÕES NA COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA Um projecto de cooperação luso-brasileiro * Maria Eduarda Moniz dos Santos Centro de Investigação em Educação da F. C. da Universidade de Lisboa – Portugal [email protected] Denise de Freitas ** Depto de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos – Brasil [email protected] Cecília Galvão Centro de Investigação em Educação da F. C. da Universidade de Lisboa - Portugal [email protected] Haydée Torres de Oliveira *** Departamento de Hidrobiologia da Universidade Federal de São Carlos – Brasil [email protected] RESUMO Este trabalho reporta-se ao projecto “A ciência como cultura: implicações na comunicação científica. Procura contribuir para um currículo não disciplinar de pós-graduação. Orienta-se no sentido de uma ciência para o cidadão, partindo de uma reflexão crítica sobre a forma como os currículos mais tradicionais e os media apresentam a ciência. Dá particular relevo a problemas comunitários reais, em que a ciência é uma componente indispensável à tomada de decisão dos cidadãos. Valoriza o aprender a pensar, o aprender a aprender, o diálogo de saberes e de racionalidades, ferramentas indispensáveis a uma adequação à aprendizagem ao longo da vida. Centra-se em conhecimentos para a acção. Em termos de realização, escolheram-se problemas comunitários controversos, situados no Brasil e em Portugal. As intervenções pedagógico-investigativas centraram-se numa sequência de actividades de âmbito CTS implementadas no decurso do desenvolvimento de duas disciplinas curriculares de carácter optativo de programas de pós-graduação de Brasil e Portugal. Nesta comunicação, para além de algumas linhas de força teóricas, propormo-nos discutir o valor das actividades desenvolvidas e das suas implicações para a elaboração de um “novo” modelo curricular. INTRODUÇÃO Esta comunicação propõe-se fundamentar e fazer um balanço preliminar de um projecto luso- brasileiro em curso de realização. Um projecto que visa introduzir inovações curriculares sustentadas por conteúdos e metodologias facilitadoras de uma educação cidadã. É nossa intenção facultar elementos de reflexão que contribuam para atenuar a opacidade de ideais, conceitos, operacionalizações e práticas relacionadas com a elaboração de um modelo de currículo de pós-graduação, bem como precisar e sistematizar certas “verdades” que, por parecerem evidentes, não deixam por isso de ser mais ou menos descuradas. A comunicação compreende quatro partes. Na primeira, são facultados alguns elementos de reflexão em aspectos de índole teórica que fundamentam o projecto. Uma segunda parte, reporta-se a breves referências à metodologia seguida nas intervenções pedagógico-investigativas. Numa * A equipa que compõe este projecto é formada, além desses autores, pelos pesquisadores: Pedro G. R. dos Reis do CIE da FC da Universidade de Lisboa - Portugal; Alberto Villani e Jesuína L. A. Pacca da Universidade de São Paulo /USP-Brasil; Elisabeth Barolli da Universidade Estadual de Campinas/ UNICAMP- Brasil; Alice H.C. Pierson e Vânia G. Zuin da Universidade Federal de São Carlos/UFSCar – Brasil. ** Com apoio parcial do CNPq e da CAPES *** Com apoio da CAPES

Transcript of Ciencia Cultura

Page 1: Ciencia Cultura

1

A CIÊNCIA COMO CULTURA: IMPLICAÇÕES NA COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA

Um projecto de cooperação luso-brasileiro*

Maria Eduarda Moniz dos Santos Centro de Investigação em Educação da F. C. da Universidade de Lisboa – Portugal

[email protected] Denise de Freitas**

Depto de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos – Brasil [email protected]

Cecília Galvão Centro de Investigação em Educação da F. C. da Universidade de Lisboa - Portugal

[email protected] Haydée Torres de Oliveira***

Departamento de Hidrobiologia da Universidade Federal de São Carlos – Brasil [email protected]

RESUMO Este trabalho reporta-se ao projecto “A ciência como cultura: implicações na comunicação científica. Procura contribuir para um currículo não disciplinar de pós-graduação. Orienta-se no sentido de uma ciência para o cidadão, partindo de uma reflexão crítica sobre a forma como os currículos mais tradicionais e os media apresentam a ciência. Dá particular relevo a problemas comunitários reais, em que a ciência é uma componente indispensável à tomada de decisão dos cidadãos. Valoriza o aprender a pensar, o aprender a aprender, o diálogo de saberes e de racionalidades, ferramentas indispensáveis a uma adequação à aprendizagem ao longo da vida. Centra-se em conhecimentos para a acção. Em termos de realização, escolheram-se problemas comunitários controversos, situados no Brasil e em Portugal. As intervenções pedagógico-investigativas centraram-se numa sequência de actividades de âmbito CTS implementadas no decurso do desenvolvimento de duas disciplinas curriculares de carácter optativo de programas de pós-graduação de Brasil e Portugal. Nesta comunicação, para além de algumas linhas de força teóricas, propormo-nos discutir o valor das actividades desenvolvidas e das suas implicações para a elaboração de um “novo” modelo curricular. INTRODUÇÃO

Esta comunicação propõe-se fundamentar e fazer um balanço preliminar de um projecto luso-

brasileiro em curso de realização. Um projecto que visa introduzir inovações curriculares

sustentadas por conteúdos e metodologias facilitadoras de uma educação cidadã. É nossa

intenção facultar elementos de reflexão que contribuam para atenuar a opacidade de ideais,

conceitos, operacionalizações e práticas relacionadas com a elaboração de um modelo de

currículo de pós-graduação, bem como precisar e sistematizar certas “verdades” que, por

parecerem evidentes, não deixam por isso de ser mais ou menos descuradas. A comunicação

compreende quatro partes. Na primeira, são facultados alguns elementos de reflexão em

aspectos de índole teórica que fundamentam o projecto. Uma segunda parte, reporta-se a

breves referências à metodologia seguida nas intervenções pedagógico-investigativas. Numa

*A equipa que compõe este projecto é formada, além desses autores, pelos pesquisadores: Pedro G. R. dos Reis do CIE da FC da Universidade de Lisboa - Portugal; Alberto Villani e Jesuína L. A. Pacca da Universidade de São Paulo /USP-Brasil; Elisabeth Barolli da Universidade Estadual de Campinas/ UNICAMP- Brasil; Alice H.C. Pierson e Vânia G. Zuin da Universidade Federal de São Carlos/UFSCar – Brasil. ** Com apoio parcial do CNPq e da CAPES *** Com apoio da CAPES

Page 2: Ciencia Cultura

2

terceira parte apresenta-se uma breve sinopse das actividades de intervenção a que recorremos

com grupos de pós-graduação no tratamento de temas/problemas, directa ou indirectamente,

relacionados com interacções de Ciência/Tecnologia/Sociedade (CTS). Finalmente,

destacamos um projecto de inovação curricular que foi emergindo no decurso das

intervenções-piloto. Trata-se da proposta de uma nova disciplina de opção que se afasta de

opções estritamente disciplinares.

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

Os desafios curriculares do projecto “Ciência como cultura” inserem-se numa tentativa de

inovação epistemológica. Têm em conta que o novo “ethos” social é muito exigente em

competências cognitivas; a sociedade actual baseia-se, cada vez mais, no uso intensivo do

conhecimento. Confrontações sociais, face a injustiças cognitivas, começam a constituir um

factor de desestabilização do “velho” modelo epistemológico que ainda nos domina. Vivemos

num tempo em que, timidamente, se divisam os contornos de uma nova ordem que

compromete a lógica centralizadora e o entendimento homogéneo do mundo que a ciência

tem vindo a impor. Uma ordem mais propensa à realização das liberdades de informação e

comunicação dos cidadãos.

Quando as certezas epistemológicas expressas pelo positivismo modernista estão a dar lugar à multiplicidade de dúvidas da pós-modernidade, erguem-se saberes e princípios epistemológicos que questionam a racionalidade da ciência moderna de raiz iluminista e que se orientam para um diálogo de saberes e para racionalidades distanciadas de posturas empiristas, fora do círculo unitário do projecto positivista (Santos, M-E, 2005a: 59).

Neste sentido, a análise da “sociedade de risco” de Beck (1992) augura que, na “modernidade

tardia”, já estão a surgir novas relações entre ciência e cidadãos. Por sua vez, na visão de

Irwin (1998), a pós-modernidade, a par de alguns equívocos, abre algumas esperanças ao

perspectivar a emergência de uma “ciência cidadã”. Uma ciência que não se limita a respostas

à resolução universal de problemas, que tem em conta os contextos em que os problemas são

gerados, que dá voz aos cidadãos, que valoriza os conhecimentos empíricos das pessoas

afectadas por ameaças ambientais e que esbate fronteiras entre laboratório e sociedade. Uma

ciência que se abre a interacções CTS.

O novo “ethos” social é marcado por orientações transnacionais de política educativa. São

elas que estão a definir linhas de rumo para uma educação cidadã1 a nível internacional.

1 Sobre o conceito de educação cidadã - uma educação vocacionada para aprender a ser, a conviver, a ouvir os outros, a protelar juízos, a harmonizar o nosso interesse com o interesse colectivo, a respeitar os direitos humanos, a gerir dificuldades, a negociar, a comunicar, a argumentar, a apreciar o valor do conhecimento, da democracia, da solidariedade, da equidade, da tolerância, do empenhamento na construção colectiva do bem

Page 3: Ciencia Cultura

3

• Uma política que não se alheia de que na sociedade actual é cada vez mais forte o

desenvolvimento interligado da ciência e da tecnologia, mas que os nossos currículos

tendem a ignorar. Continuam apostados na rigidez disciplinar e não dão relevo às

complexas relações CTS. Tal, dificulta a inserção do conhecimento científico na cidadania,

constitui uma barreira a uma progressiva aproximação da ciência aos cidadãos;

• Uma política que, ao preconizar uma educação cidadã, tem vindo a contribuir para que o

sentido do conceito recorrente de cidadania e das questões que levanta tenham reemergido

como centro dos actuais debates públicos. “Debates particularmente agudizados pelo

recrudescer desenfreado do individualismo, da liberalização, da dessocialização, da razão

iluminista, da tecnociência e da tecnocracia” (Santos, 2005a: 14).

São estas e outras dificuldades que o projecto luso-brasileiro “Ciência como cultura” se

propõe enfrentar através de desafios à inovação curricular.

O currículo é um problema central em educação mas tem que ser repensado. Na realidade

escolar resulta de frequentes propostas sectoriais que provêm de especialistas de diversas

disciplinas. Ao privilegiar listagens de temas e de tópicos com uma organização e uma

sequencialidade tradicionalmente consagradas pelas disciplinas, surge fragmentado e afastado

de uma unidade conceptual e axiológica. Face a tais constatações, o nosso projecto contrapõe

aos tradicionais projectos curriculares, concebidos com a finalidade de armazenar uma

elevada quantidade de conhecimentos na vida escolar, propostas curriculares que sirvam não

só para aprender mas também para aprender a aprender. Estas têm a pretensão de se inserir

num projecto curricular global de formação de cidadãos, com uma dinâmica unitária, e em

particular, num modelo de formação pós-graduada de cidadãos-professores. A sua concepção

pressupõe que: (a) se ganha tempo na implementação de um currículo ‘perdendo-o’ na sua

preparação; (b) um projecto curricular só se constrói verdadeiramente no seu processo de

desenvolvimento; (c) este desenvolvimento mais do que num projecto radica numa rede de

projectos diferenciados mas aparentados, articulados horizontal e verticalmente e

vocacionados para resolução de problemas práticos; (d) a unidade da rede é marcada por uma

consistência teórica coerente, por uma intencionalidade dominante e por um equilíbrio

curricular entre diferentes tipos de conhecimento a oferecer à opção livre, porque esclarecida,

dos aprendentes. Assim, é numa rede de projectos cuja intenção básica é preparar melhor o

cidadão para lidar com as realidades tecnocientíficas da vida actual, a desenvolver em cursos comum e de um mundo melhor… - ver Carvalho et al (Eds), (2005), Clarke (1996), Heater (2004), Santos, M-E (2005a) e Valente (2001).

Page 4: Ciencia Cultura

4

de pós-graduação em Portugal e no Brasil, que assentam os nossos desafios a mudanças

curriculares de tipo CTS. A nossa intenção majorante é valorizar o estatuto CTS no currículo

escolar. No currículo de Ciências Físicas e Naturais no 3º ciclo do Ensino Básico em Portugal

(Galvão, 2002), a perspectiva CTS é uma presença marcante, tendo por objectivo a educação

dos jovens, num equilíbrio curricular de valorização da ciência, da tecnologia e da sociedade

em ligação estreita. Mais uma razão para que cursos de pós-graduação fomentem a discussão

fundamentada, alertando e dando argumentos a cidadãos que se querem preparados para uma

sociedade em mudança.

Caminhar no sentido de uma “educação cidadã” é a pulsão pedagógica que nos move. Tal

exige currículos substancialmente diferentes dos tradicionais e uma clara ideia da cidadania

para que se pretende caminhar. Ora, no mundo em que nos movemos é evidente a

omnipresença e o entrecruzamento de diferentes, e mesmo contraditórias, concepções de

cidadania. “O termo é usado por todos pensando coisas diferentes. São-lhe atribuídos

significados que variam com interpretações mais ou menos ingénuas, com a ideologia e com o

entendimento das características que ‘fazem’ um cidadão” (Santos, M-E, 2005a: 18). Por

outro lado, como todos sabemos, a cidadania é um conceito em construção historicamente

situado. Corresponde a uma cultura a construir e a “ciência como cultura” é chamada a

intervir activamente nessa construção. A sua evolução segue de muito perto a “teoria

geracional dos direitos humanos”2. A “cidadania clássica”, legou-nos uma dimensão de

participação política que atravessa todos os aspectos de vida na polis. A “cidadania moderna”,

cuja forma mais universal é a cidadania liberal, consolidou-se em termos de linguagem de

direitos. Legou-nos, a par de direitos de primeira e de segunda gerações valores universais:

liberdade, igualdade e justiça social. Actualmente, no contexto da ordem pós-tradicional, face

ao predomínio da lógica da monocultura, à exaltação liberal do individualismo abstracto, à

identificação de direitos civis a direitos de mercado, à progressiva desvalorização dos direitos

sociais, à minoração da relação cidadania/conhecimento, à falta de credibilidade da ciência, ao

declínio da solidariedade entre os cidadãos…, começam a configurar-se formas pós-liberais

de cidadania que, todavia, enfrentam fortes obstáculos3. Formas mais apostadas numa

integração cognitiva e cultural do que numa integração política e que requerem uma auto-

2 Para aprofundar perspectivas da educação no séc. XXI, a “teoria geracional dos direitos humanos”, o universo conceptual de cidadania e marcos históricos que marcam a evolução do conceito ver Santos, M-E. (2005a e 2005b). 3 Para além de obstáculos epistemológicos, ver outros obstáculos no caminho para uma cidadania renovada em Santos, M-E. (2005a).

Page 5: Ciencia Cultura

5

construção do ser e do saber. Uma construção que não pode, todavia, prescindir dos outros

nem de prestações institucionais.

A “nova” cidadania procura diluir uma política de homogeneidade cívica. Apela ao direito a

uma diversidade que se correlaciona, estreitamente, com a valorização da inter-

multiculturalidade. Mais do que a cidadania tradicional, valoriza a dimensão ambiental das

relações sociais e a relação cidadania/conhecimento, de forma a dar resposta ao “cisma”

ciência-cidadãos. Reclama “novos direitos” e a construção do “conhecimento emancipação”

(conhecimento como ferramenta para a emancipação do cidadão), baseado numa

solidariedade de saberes. Propõe-se ampliar direitos, outrora apenas centrados no homem, de

forma a garantir, também, a integridade do “património comum da humanidade” e o

reconhecimento jurídico dum princípio de responsabilidade para com as gerações futuras. A reconfiguração da cidadania a nível global é, em grande parte, fruto da cidadania

ambiental4. Uma cidadania em construção com o fulcro em questionamentos socioambientais,

que privilegia as dimensões de participação e de solidariedade de cidadão para cidadão, a

comunicação dialógica e o pragmatismo da gestão de uma individualidade que se vai

estruturando, intersubjectivamente, de forma activa e flexível, numa grande quantidade de

situações. Que sobrepõe a valores materialistas uma ética socioambiental - uma “ética de

futuro” que respeite os limites objectivos do planeta que habitamos e a responsabilidade pelas

gerações futuras e pelos outros seres vivos que dependem de nós. Uma cidadania que alarga

os limites da solidariedade em termos espaciais (apoio ao terceiro Mundo), em termos

temporais (solidariedade com as gerações vindouras), em termos inter-espécies (direitos

naturais para os não humanos, particularmente no respeitante à biodiversidade) e em termos

inter-culturais (reconhecimento e respeito pela diversidade cultural). A construção de uma

nova cidadania não é alheia à emergência de uma nova matriz social e tecnológica da ciência,

ao novo “ethos” da ciência em ruptura com o paradigma positivista em que se tem apoiado a

ciência e a cidadania modernas.

Debater as profundas transformações na “matriz social e tecnológica da ciência”, que as

mudanças em curso estão a fazer emergir, é um ponto crucial deste projecto. A construção de

uma cidadania cultural, crítica e activa demanda, como estratégia epistemológica, ancorar os

conhecimentos em ciência e sobre ciência em perspectivas CTS eticamente orientadas. Faz

4 As características da nova cidadania e do seu motor - a cidadania ambiental são desenvolvidas em Santos M-E (2005a).

Page 6: Ciencia Cultura

6

parte do nosso sentido cívico analisar, compreender e reavaliar uma mudança que reclama

rupturas com um paradigma em que se tem apoiado a ciência e a cidadania modernas.

Num mundo profundamente transformado pela ciência e pela tecnologia, quando a tecnociência se tornou objecto de conflito social e de debate político, é crucial repensar a ciência, a tecnologia, o mercado, o estilo de vida a que nos habituámos, bem como o sistema de valores e de crenças que nos rege (Santos, M-E, 2005a:60).

Já há seis décadas, Haldane (1943, apud Santos, 2005a) alertava: “a democracia não pode ser

total, numa altura em que a ciência afecta continuamente as nossas vidas, sem um

conhecimento mais alargado da ciência”. De facto, a ideologia democrática supõe que os

cidadãos possam influenciar as decisões políticas que afectam as suas vidas e tal exige uma

alfabetização científica e tecnológica. "Para ser um indivíduo autónomo e um cidadão

participativo numa sociedade tecnicizada é preciso ser técnica e cientificamente alfabetizado"

(Fourez, 1985: 23).

Repensar a ciência demanda um afastamento da lógica da monocultura – da via cognitiva de

construção da cidadania que tem vindo a privilegiar epistemologicamente a forma de

conhecimento que se costuma designar por ciência moderna. Implica ter em atenção, para

além de conhecimentos substantivos de ciência e de tecnologia, conhecimentos sobre ciência

e não descurar semelhanças e diferenças entre o “modo 1” e o “modo 2” de produção da

ciência5. Requer reflectir sobre a força de mercado arrogante em que a ciência se tem vindo a

tornar e sobre o aprofundamento do fosso de credibilidade ciência-cidadãos. Exige reflectir

sobre o estatuto e propósitos da tecnociência e questionar, como refere López-Cerezo

(2004:6) “os usos políticos do conhecimento científico, o valor económico da inovação

tecnológica e dilemas éticos de algumas tecnologias”. Um modo de pensar que recusa o

modelo mecano-produtista: progresso científico → progresso técnico → desenvolvimento

económico → progresso social, que se afasta da racionalidade científica, típica do

positivismo, que abre caminho à construção de novas racionalidades e que tem em conta uma

“constelação” de conhecimentos interactivos.

Repensar a ciência exige romper com “o campo de extermínio unitário”, vulgarmente

designado por projecto positivista. À lógica da monocultura, imposta por doutrinas

iluministas contrapõe a solidariedade e o diálogo de saberes, de culturas e de racionalidades.

Requer uma reaproximação ao senso comum. Demanda um entrelaçar de saberes e de práticas

5 As relações entre o “modo 1” e o “modo 2” de produção da ciência são analisadas neste Colóquio na Comunicação (Pacca et.al. 2006) Ver, também, Santos, B. (1989 e 2000), Santos, M-E. (1999 e 2001) e Reigner, A. (2003).

Page 7: Ciencia Cultura

7

científicas com saberes e práticas não científicas. A “ruptura epistemológica” formulada por

Bachelard, que Santos, M-E. (1998) aprofundou e que, separando a ciência do senso comum,

foi imprescindível para constituir a ciência, progressiva e desnecessariamente, lançou os

outros saberes do cidadão para o descrédito e subjugação à ciência – “epistemologia do lixo”

(Santos, B,. 1989). Daí os apelos deste autor a uma “nova ruptura epistemológica”, que rompa

com a distância entre conhecimento científico e senso comum e que proporcione condições

epistemológicas e sociais de emergência de novas concepções multiculturais e de uma

pluralidade de conhecimentos.

A educação CTS6 é, quanto a nós uma via privilegiada de educação cidadã. CTS implica uma

temática estruturante e de síntese que serve de esqueleto à estrutura curricular que nos

propomos ajudar a construir. Funciona no nosso projecto como ideia mãe geradora de

múltiplos itinerários de preparação para o exercício da cidadania. Como refere Santos, M-E

(1999; 2001 e 2005d), esta área de conhecimento é integradora a vários níveis, e não

meramente a nível de conteúdos; é geradora de encontros das lógicas disciplinares com a

lógica do senso comum e de debates em torno de valores. Atravessa vários campos do saber, é

de carácter holístico, comporta tópicos controversos, é comum a muitas situações vivenciadas,

tem grande significado socioambiental, revela interesse actual e prático, faculta elementos

para análises, sínteses, avaliações e articula-se a questões de cidadania. Corresponde a uma

forma aberta do cidadão atingir o “conhecimento emancipação” (Santos, B., 1989).

Perspectiva-se para a solução de problemas concretos, tem potencialidades para evidenciar a

complexidade e o imbricamento desses problemas e de facultar uma representação mais clara

e global do mundo. Afasta-se da racionalidade científica típica do positivismo e abre caminho

à construção de novas racionalidades. Propõe-se refundamentar o saber sobre o mundo, não

expulsando a razoabilidade nem a afectividade e fazendo ressaltar a importância da

contextualidade. Os processos envolvidos nesta perspectiva implicam, como dizem Galvão e

Freire (2004) saber olhar inteligentemente para o que nos rodeia, mudando o que pensamos

sobre nós e sobre os outros, caminhando para uma consciência no seu plano mais complexo e

elaborado.

A importância das interacções CTS é, hoje, reconhecida internacionalmente. Tais interacções

implicam uma racionalidade CTS e são essenciais a uma apreciação da ciência como

6 Sobre o ensino numa perspectiva CTS, ver Aikenhead (1994), López-Cerezo (2004), Martins (1995) e Santos, M-E. (1994, 1999 e 2001), Solomon (1994) e Yager & Lutz (1995).

Page 8: Ciencia Cultura

8

elemento da cultura e para que o cidadão possa dar sentido a problemáticas socioambientais.

A racionalidade CTS insere a construção da cidadania no ensino disciplinar; intenta

reconfigurar o ser através do saber. Procura ultrapassar o fosso cognitivo ciência-cidadãos e o

défice escolar para capacitar o cidadão para funcionar melhor na sociedade; para aprender a

lidar efectiva e funcionalmente com questões científicas e tecnológicas que afectam as suas

vidas. Presta especial atenção a situações que permitam debates éticos e culturais. Opõe-se ao

cientismo e à tecnocracia. Convoca diferentes matrizes de racionalidade (científica,

tecnológica, social, cultural...), questiona-as, dialoga com todas, mas diferencia-se delas.

Abre-se ao campo da acção, à diversidade e à diferença. Ao apontar para uma diversidade de

perspectivas e para uma “constelação” de conhecimentos interactivos, insere-se numa

“aventura” epistemológica radicada num diálogo de saberes. Ao demarcar-se de ópticas

vincadamente académicas, aproxima-se de ópticas baseadas nas realidades quotidianas. Ao

configurar mudanças na compreensão do mundo potencializa diferentes formas de exercitar a

cidadania.

As interacções CTS abrem-se a questões do tipo: porque é que a ciência e a técnica já não se ufanam da sua modernidade? Porque é que a tecnociência é, crescentemente, posta em causa por grupos de cidadãos? Porque é que estes passaram a exigir-lhe explicações, e a impor-lhes normas de actuação? Porque é que a progressão da ciência e da técnica, em clara aceleração, vai produzindo uma crescente influência negativa na configuração da sociedade, nos planos económico, político, simbólico-cultural e na forma de exercer a cidadania? Porque é que promete aos industriais grandes lucros? Porque é que negoceia com o estado protecção, subsídios e bolsas em troca de prestígio internacional e do reforço dos poderes civis e militares?... (Santos, M-E., 2005a: 108)

2. ENQUADRAMENTO METODOLÓGICO

As metodologias de intervenção do projecto “Ciência como cultura” propõem-se capitalizar

na “aprendizagem ao longo da vida”. Uma forma de entender a educação que actualmente

adquiriu estatuto de prioridade política. Investem no “aprender a aprender” como

conhecimento estratégico para continuar a aprender. Giram em torno de estratégias do pensar

e de argumentar como caminho para a autonomia cidadã. Procuram ultrapassar graves

problemas abertos na nossa realidade escolar: (a) separação de entre referências teóricas e

práticas escolares, o que contraria a apropriação conjunta de um campo de saberes e de

práticas bem como o recurso à teoria como instrumento de reflexão antes, durante e depois

das práticas; (b) hábitos de proporcionar um conjunto de teorias, como "dádiva" inicial, que

os aprendentes tentam, melhor ou pior, pôr em prática, sem oportunidade de devolução dos

resultados aos proponentes. Tal não se presta à regulação da "dádiva" nem a uma validação

externa da prática ensaiada; (c) apresentação de propostas pontuais e sectoriais no campo

Page 9: Ciencia Cultura

9

curricular sem uma lógica curricular coerente; (d) esperar-se tudo, ou quase tudo, da mediação

escolar, sem evocação de situações vividas e sem questionar concepções previamente

construídas nem práticas cristalizadas num conjunto de hábitos automáticos; (e) não

proporcionar situações interactivas que permitam a cada um assumir o poder de dirigir a sua

própria formação. Ou seja, não levar o aprendente a assumir um projecto profissional

objectivado, como meio de apropriação da formação e de funcionalização de propostas

teóricas; (f) entendimento da prática docente apenas como instrumento de aplicação da teoria

e não como instrumento de investigação do professor em formação….

Um ponto central das metodologias das intervenções pedagógico-investigativas reside na sua

natureza desestruturante. Propomo-nos levantar e analisar resistências e dificuldades

relacionadas com a educação pela ciência. Resistências de conjugar conhecimentos em

ciência e sobre ciência com formas de exercer e exercitar a cidadania. O nosso projecto

“valoriza a educação sobre ciência, não descura a educação em ciência e dá particular atenção

à educação pela ciência” (Santos, 2001:16)7. Propõe-se contribuir para desestruturar a forma

tradicional de apresentação da ciência pelos currículos disciplinares e pelos mass-media,

dissociando a ideia de currículo da ideia de disciplinaridade. Uma ideia que funciona como

lugar de fechamento, de rigidez, de desenraizamento do meio e logo de desajustamento

sociocultural. Porém, a inovação curricular que temos pela frente não se faz à margem das

disciplinas. Reconhece que as disciplinas são um obstáculo a inovações curriculares, mas não

um obstáculo intransponível. Entende ser irrealista ignorar a força que ainda têm nos

currículos escolares. Para além de múltiplos defeitos, têm virtualidades que, bem

aproveitadas, podem vir a desempenhar um papel decisivo na mudança curricular. Este

projecto põe em questão as disciplinas mas passa por elas; pela sua reformulação. Propõe-se

chamar á consciência os seus aspectos inconsistentes para promover insatisfação e

desconstrução. Simultaneamente, procura abrir caminho à reorganização estrutural com

propostas que se pretendem inteligíveis, plausíveis e fecundas. Em todo este processo as

necessidades e experiências culturais dos aprendentes, são entendidas como cruciais, como

ponto de partida para um entendimento progressivo da ciência como cultura.

Ao inovar por dentro das disciplinas, empenhamo-nos na sua modificação interna. Uma

mudança que se pretende racionalmente preparada. Ao propor, a curto prazo, como opção de 7 Para aprofundar a construção do conceito de tecnociência, as relações entre o ethos da ciência moderna e o da ciência pós-moderna, as relações entre Educação em Ciência, Educação sobre Ciência e Educação pela Ciência e mitos ancestrais sobre a ciência, cultivados particularmente pelo ensino escolar ver Santos, M-E. (1999 e 2001).

Page 10: Ciencia Cultura

10

um curso de pós-graduação, disciplinas curriculares que se confrontam com o tratamento de

problemas radicados na investigação na acção, temos como meta a auto-transformação

disciplinar de forma a contribuir a longo prazo para um currículo não disciplinar. Para além

de conhecimentos, o nosso contributo para a construção de um currículo de pós-graduação

aberto, flexível, estimulante, diversificado e de natureza cultural e ética, tem como intenção

estimular modos de pensar e de construir ideias, privilegiando o desenvolvimento de

competências e de processos intelectuais.

Derrubar fronteiras entre diferentes disciplinas escolares e entre estas e saberes não

escolares é a pulsão cognitiva que nos move. Pretendemos inovar nos modos de conhecer e na

orientação para incrementar a solidariedade e intercomunicação de saberes. e de culturas.

Apontamos para uma reflexão epistemológica sobre o saber e sobre a estrutura disciplinar,

preparando, racional e intencionalmente, uma mudança na lógica disciplinar que compense e

atenue as insuficiências da especialização disciplinar. Tal exige manter um estado de

vigilância interdisciplinar permanente relativamente ao ambiente epistemológico e

pedagógico total que nos envolve. Pretende-se conquistar, pouco a pouco, uma

inteligibilidade mais integrada que se coadune com uma articulação consciente das lógicas

disciplinares à lógica interdisciplinar8.

3. CAMINHOS PEDAGÓGICO-INVESTIGATIVOS EM ANÁLISE

As intervenções pedagógico-investigativas centraram-se numa sequência de actividades de

âmbito CTS implementadas no decurso do desenvolvimento de duas disciplinas curriculares

de carácter optativo de programas de pós-graduação. Uma, no 1º semestre do Programa de

Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (Brasil). Outra no 2º

semestre do Programa de Mestrado em Educação da FCUL (Portugal).

No desenvolvimento destas actividades procurámos: a) problematizar as relações ciência e

cultura; b) confrontar diferentes modos de produção da ciência, o ethos da ciência moderna e

o ethos da tecnociência, a cidadania clássica com a cidadania moderna e estas com discursos

pós-modernos de cidadania; c) conjugar conteúdos científicos, permeados de valores e de

princípios, a experiências de vida, a conceitos prévios, a saberes práticos, a aprendizagens

vicariantes. 8 Resultados de pesquisa que apresentam inovações curriculares tendo em vista a adopção de metodologias interdisciplinares na formação profissional, foram desenvolvidos no âmbito de outros projectos e podem ser encontrados em Freitas et al. (2001); Oliveira & Freitas (2004)

Page 11: Ciencia Cultura

11

Ressalvando especificidades próprias de cada disciplina, as actividades tiveram sequências

semelhantes no Brasil e em Portugal:

1. Recolha de dados num site didáctico, de autoria de um dos pesquisadores da

equipa portuguesa (BioQuest: http://www.nonio.eses.pt/bioquest/), cuja proposta

pedagógica é discutir questões controversas numa perspectiva CTS,

nomeadamente, o impacto socioambiental gerado pela construção de uma

barragem (Barragem do Alqueva) no Alentejo. Em resposta à questão colocada

pelo site, os estudantes recolheram informações sobre os aspectos sociais,

económicos, políticos, ambientais, culturais, científicos e tecnológicos por meio da

leitura de textos de carácter técnico, científico, jornalístico… Com base neste

estudo, posicionaram-se em relação à construção ou não da barragem em três

momentos correspondentes a níveis distintos de construção do pensar,

individualmente, em pequenos grupos e num debate aberto com o grupo de pós-

graduação os pesquisadores.

2. Debate acerca de aspectos relacionados com a Ciência, Educação científica e

Cidadania a partir de uma situação sociocientífica veiculada por um recurso

mediático - um filme, produzido nos USA em 2000 - Erin Brockovich, uma mulher

de talento. Esta actividade é analisada por Pierson et al (2005).

3. Debate com o fulcro numa exposição teórica e numa reflexão subsequente apoiada

por tópicos de discussão. A exposição teórica incidiu em diferentes modos de

produção da ciência, na comparação do ethos da ciência moderna com o ethos da

tecnociência e na contrastação entre a cidadania clássica e a cidadania moderna e

destas com discursos pós-modernos de cidadania. Os textos de apoio versaram

sobre: (1) Conhecimento do conhecimento científico e cidadania; (2) Auto-

socioconstrutivismo e cidadania; (3) Cidadania: um conceito em construção; (4)

Cidadania ambiental; (5) Obstáculos epistemológicos à relação ciência/cidadãos;

(6) Epistemologia do lixo (Santos, M-E., 2005c)

4. Discussão centrada em textos literários e em textos científicos para estabelecer

relações CTS. A partir de excertos de textos literários: “Ode Marítima” de

Fernando Pessoa, “Galileo”, “Lição sobre a água”, “Pedra filosofal” e “Lágrima de

preta” de António Gedeão, “Jangada de Pedra” de José Saramago, “Rios de

púrpura” de Jean-Christophe Granger, “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia

Marques, discutiu-se a importância do conhecimento científico para a

compreensão de enredos literários, quer de natureza poética quer de prosa. A partir

Page 12: Ciencia Cultura

12

de excertos de textos científicos como “Sentimento de Si” de António Damásio e

de “Mais rápido que a luz” de João Mageijo, discutiu-se a importância da literatura

para a compreensão de conceitos científicos. Estes textos foram a base de uma

discussão teórica sobre a necessidade de entender hoje em dia o conhecimento

como múltiplo, abrangente e complexo. Recorreu-se a teorias do pensamento

complexo e da neurobiologia para fundamentar este ponto de vista.

5. Debate centrado na interface ficção/realidade, despoletado por um filme brasileiro

de 2003 - “Narradores de Javé”. O filme retrata o drama de moradores de uma

pequena comunidade ameaçada pela construção de uma central hidroeléctrica. A

análise do conteúdo das narrativas dessa população ribeirinha permitiu evidenciar

rupturas e continuidades com o projecto da Barragem de Alqueva. Esta actividade

das questões CTS, priorizou relações do contexto sócio-histórico-cultural.

6. Análise de narrativas biográficas recolhidas por entrevistas que evidenciam

projectos de vida, os quais remetem para projectos socioambientais e de inovação

curricular. Tal análise foi suportada pelo visionamento de um vídeo com

depoimentos de vários profissionais de alguns sectores da sociedade: “catador” de

lixo; professor; estudante; pesquisador; médico. Posteriormente, os estudantes

foram convidados a estabelecer conexões com implicações da ciência na vida

quotidiana e na formação para a cidadania, bem como sobre a produção de

conhecimentos e saberes no contacto com diferentes culturas, ou aspectos culturais

específicos.

No Brasil a temática CTS foi inserida numa disciplina Diferentes concepções de trabalho

científico e suas implicações no ensino de Ciências e Matemática que tinha por objectivo

discutir as diferentes concepções epistemológicas de professores e alunos acerca da natureza

da ciência e da construção do conhecimento científico. Em Portugal a disciplina de opção

Trabalho de Projecto tinha entre outros objectivos dois que possibilitaram mais directamente

a articulação com os eixos deste projecto: 1) Analisar situações reais de desenvolvimento de

projectos, identificando virtualidades e constrangimentos; 2) Proporcionar intercâmbio de

diferentes visões culturais proporcionadoras de uma análise mais abrangente e integrada do

mundo, constituindo referentes de cidadania.

4. UM PROJECTO EM VIAS DE CONCRETIZAÇÃO

Como resultado deste primeiro ensaio realizado em disciplinas inseridas de forma

tradicional nos currículos de pós-graduação, nas quais se realizaram actividades curriculares

Page 13: Ciencia Cultura

13

inovadoras propomos, na continuidade do projecto, avançar de forma a superar uma

organização curricular demasiado fechada em si mesma, tendo em vista uma utopia mais

global: aproximação da construção de um modelo curricular teórico-metodológico cujo

aspecto central seja a ciência como cultura.

Para isso, estamos propondo rupturas mais profundas na estrutura e dinâmica de uma

disciplina, de carácter interdisciplinar, que está sendo proposta no âmbito de seis Programas

de Pós-graduação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar): Educação; Ecologia e

Recursos Naturais; Filosofia; Ciências Sociais e Engenharia de Produção e Engenharia

Urbana. Trata-se de uma disciplina intitulada “Ciência, Cultura e Ambiente” que tem como

objetivos: a) elaborar uma interpretação crítica e ontológica do mundo atual em suas

dimensões científicas e tecnológicas, nomeadamente, evidenciando aspectos ambivalentes da

ciência e da tecnologia e os efeitos profundos da tecnociência no ambiente, não só na sua

dimensão natural como na dimensão social e humana; b) confrontar diferentes contextos

culturais de produção de conhecimento; c) confrontar diferentes modos de produção da

ciência, o ethos da ciência moderna e o ethos da tecnociência, a cidadania clássica com a

cidadania moderna e estas com discursos pós-modernos de cidadania; d) relacionar as

abordagens de meio ambiente e sociedade e problematizar as relações

ciência/cultura/ambiente; e) evidenciar as dificuldades e barreiras conceituais e subjetivas que

comprometem as mudanças de relação indivíduo, sociedade e natureza.

Suas temáticas centrais são:

1. Desafios e barreiras conceptuais, sociais e subjetivas que comprometem as mudanças de

relação indivíduo, sociedade e natureza.

2. Os modos de produção da ciência: o ethos da ciência moderna e o ethos da tecnociência.

Aspectos ambivalentes da ciência e da tecnologia e os efeitos profundos no ambiente e na

sociedade.

3. Outros contextos culturais de produção de conhecimento.

4. As abordagens de meio ambiente e sociedade e suas múltiplas relações com o

conhecimento.

5. Génese da cidadania atual. Influência da cidadania ambiental e implicações na atuação

profissional e no quotidiano.

Para o desenvolvimento da disciplina, teremos quinze encontros presencias de quatro

horas de aula cada mais duas horas semanais para estudo livre. A dinâmica adoptada para o

estudo das temáticas centrais será feita em dois momentos: no interior de cada área de

Page 14: Ciencia Cultura

14

conhecimento; em grupos interdisciplinares, de diferentes áreas de conhecimento. O

conhecimento explicitado e produzido pela comunidade de sala de aula será elaborado

também em três níveis: a) estudo individualizado dos temas mediado pela orientação dos

professores de cada programa, por textos (científicos, literário, jornalístico e outros), artigos,

sites, filmes, obras de arte etc.; b) reflexão colectiva no âmbito da mesma área e inter-áreas

envolvendo estudantes e professores dos seis programas de pós-graduação; c) produção de

sínteses individuais ou em pequenos grupos (ora disciplinares, ora multidisciplinares)

Como produto espera-se que a comunidade de sala de aula – professores e alunos dos

diferentes programas – construam portfólios, artigos e uma colectânea a ser disponibilizada

para os programas e a utilização em outras disciplinas.

REFLEXÕES CONCLUSIVAS a) Desafiar a “ciência tal qual se faz”, no sentido de encontrar novas formas de operar na sociedade do conhecimento e implementar inovações curriculares através da “ciência tal qual se diz” são formas de preparar o cidadão para processos auto-reflexivos e decisórios. b) Questionar a racionalidade da ciência moderna de raiz iluminista e orientar os currículos para um diálogo de saberes e para racionalidades distanciadas de posturas empiristas e fora do círculo unitário do projecto positivista é uma forma de contribuir para a educação cidadã. c) Encarar a ciência como cultura condiciona significativas reconceptualizações referentes à forma de olhar o desenvolvimento curricular e constitui um meio excelente para a promoção da cidadania. Põe em causa o “velho” modelo epistemológico que ainda nos domina e que tem vindo a privilegiar epistemologicamente a forma de conhecimento que costuma designar-se por ciência moderna. A ciência como cultura ao privilegiar o “conhecimento emancipação” é uma ferramenta crucial para reposicionar o ser através do saber; d) Um projecto curricular de natureza CTS é fundamental, para a educação do cidadão comum, que, confrontado com a explosão tecnológica, precisa de se defender de uma alienação consumista e de se tornar mais competente e menos dependente no usufruto das inovações tecnológicas e na participação nas decisões das comunidades que envolvem juízos fundamentados. e) Pensar, de forma holística e interdisciplinar, nos problemas CTS, tendo em conta os diferentes aspectos desses problemas, sem os reduzir a uma dimensão apenas, seja ela, ecológica, ética, cultural, económica, política ou social é um aspecto fundamental de inovações curriculares dirigidas para a educação cidadã. As relações CTS pondo em jogo conceitos, atitudes e valores fundamentais, são particularmente relevantes no âmbito das dimensões epistemológica, ética e social do desenvolvimento curricular

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aikenhead, G. (1994). What is STS science teaching? In J. Solomon & G. Aikenhead (Eds), STS education:

International perspective on reform (pp. 47-59). New York: Teachers College Press.~ Beck, U. (1992). Risk society: toward a new modernity. Londres: Newbury.

Page 15: Ciencia Cultura

15

Carvalho et al (Eds). (2005). Educar para a cidadania como dimensão do currículo escolar. Porto: Porto Editora. Clarke, P. (1996). Deep citizenship. London: Pluto Press. Freitas, D; Villani, A.; Pierson, A.H.C (2001). A formação de professores em ciências: Freire dialogando com a

Psicanálise. Pro-posições Campinas 12 (1), p.47-62. Fourez, G. (1985). Pour une éthique de l' enseignement des sciences. Bruxelles: Vie Ouvrière. Galvão, C. (Coord.), Neves, A., Freire, A. M., Lopes, A. M., Santos, M. C., Vilela, M. C., Oliveira, M. T. &

Pereira, M. (2002). Ciências Físicas e Naturais. Orientações curriculares para o 3º ciclo do ensino básico. Lisboa: Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica.

Galvão, C. & Freire, A. (2004). A perspectiva CTS no currículo das Ciências Físicas e Naturais em Portugal. In I. Martins, F. Paixão e R. Vieira (Org.). Perspectivas Ciência-Tecnologia-Sociedade na Inovação da educação em Ciência (pp. 31 – 38). Aveiro: Universidade de Aveiro

Heater, D. (2004). Citizenship (3ª ed.). Manchester: Manchester University Press. Irwin, A. (1998). Ciência cidadã. (M. Aubyn, trad.). Lisboa: Instituto Piaget. López-Cerezo, J. (2004). Aprender participando: Nuevas realidades sociales y nuevos retos de la educación

CTS. Conferência no III Seminário Ibérico CTS no Ensino das Ciências. Universidade de Aveiro. Martins, I. (1995). A ciência e a cultura científica. Desafios na formação de professores. Actas do V Congresso

Nacional de Ciências da Natureza (pp. 43-50). ESE de Portalegre. Oliveira, H.T. & Freitas, D. (2004) Ambientalização nos cursos de licenciatura por meio da inclusão curricular

de uma disciplina: o caso da Universidade Federal de São Carlos (Brasil). In: GELI, A.M., JUNYENT, M., SÁNCHEZ, S. Ambientalización Curricular de los Estudios Superiores. 4 - Acciones de Intervención y balance final del proyecto de Ambientalización Curricular de los Estudios Superiores. Girona: Universitat de Girona-Red ACES, Diversitas n. 49. ISBN 84-8458-202-7. p. 155-172 (319 p).

Pacca, J.; Pierson, A. & Santos, M-E (2006) A relação CTS incorporada a uma disciplina tradicional de pós-graduação. Anais do III Colóquio luso-brasileiro sobre questões curriculares. Braga: Universidade do Minho

Pierson, A.; Freitas, D. de & Zuin, V. G.(2005) Aspectos de ciência, educação científica e cidadania em debate a partir de uma situação sócio-científica. Anais do V Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Bauru, São Paulo.

Reigner, A. (2003). Uma nova racionalidade para a ciência? In B. Santos (Ed). Conhecimento prudente para uma vida decente. Porto: Afrontamento.

Santos, B. (1989). Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto: Afrontamento Santos, B. (2000). A crítica da razão indolente. Porto: Afrontamento. Santos, M-E. (1994). Área Escola/Escola: Desafios interdisciplinares. Lisboa: Livros Horizonte. Santos, M-E. (1998). Mudança conceptual na sala de aula. (2ª ed.). Lisboa: Horizonte. Santos, M-E. (1999). Desafios pedagógicos para o século XXI. Lisboa: Horizonte. Santos, M-E. (2001). A cidadania na “voz” dos manuais escolares. O que temos? O que queremos?. Lisboa:

Horizonte. Santos, M-E. (2005a). Que educação? Para que cidadania? Em que escola? (Tomo II- Que Cidadania?). Lisboa:

Santos-Edu. Santos, M-E. (2005b). Que educação? Para que cidadania? Em que escola? (Tomo I –Que Educação?). Lisboa:

Santos-Edu. Santos, M-E. (2005c). Ciência, epistemologia e cidadania. Comunicação apresentada num Seminário na

Universidade Federal de São Carlos a 28 de Junho de 2005. Santos, M-E. (2005d). Cidadania, conhecimento e educação CTS. Rumo a novas dimensões epistemológicas.

Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnologia y Sociedad – CTS, 6 (2). Solomon, J. (1994). Teaching Science-Technology-Society. Games, simulation and role-play. In Banks, F.

(Ed.). Teaching technology. London: Open University Press. Valente, O. (2001). Segredos da educação básica. In C. Freitas et al. (Eds). A reorganização curricular do

Ensino Básico. Porto: ASA. Wilkins, C. (1999). Making good citizens. Oxford Review of Education, 25 (1 e 2), 217-230. Yager, R. & Lutz, M. (1995). STS to enhance total curriculum. School Science and Mathematics 95 (1), 28-35.