CIências Sociais: Saberes Coloniais e Eurocêntricos

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    Lander, Edgardo. Cincias sociais: saberes coloniais e eurocntricos. En libro:Acolonialidade do saber: eurocentrismo e cincias sociais. Perspectivas latino-americanas.Edgardo Lander (org). Coleccin Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autnoma de Buenos Aires,Argentina. setembro 2005. pp.21-53.

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    RED DE BIBLIOTECAS VIRTUALES DE CIENCIAS SOCIALES DE AMERICA LATINA Y ELCARIBE, DE LA RED DE CENTROS MIEMBROS DE CLACSO

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    Cincias sociais:

    saberes coloniais e eurocntricos1

    Edgardo Lander*

    NOS DEBATES POLTICOS e em diversos campos das cincias sociais, tm sido notrias as dificuldadespara formular alternativas tericas e polticas primazia total do mercado, cuja defesa mais coerente foiformulada pelo neoliberalismo. Essas dificuldades devem-se, em larga medida, ao fato de que oneoliberalismo debatido e combatido como uma teoria econmica, quando na realidade deve sercompreendido como o discurso hegemnico de um modelo civilizatrio, isto , como uma extraordinriasntese dos pressupostos e dos valores bsicos da sociedade liberal moderna no que diz respeito ao serhumano, riqueza, natureza, histria, ao progresso, ao conhecimento e boa vida. As alternativas spropostas neoliberais e ao modelo de vida que representam no podem ser buscados em outros modelos outeorias no campo da economia, visto que a prpria economia como disciplina cientfica assume, em sua

    essncia, a viso de mundo liberal.A expresso mais potente da eficcia do pensamento cientfico moderno especialmente em suas

    expresses tecnocrticas e neoliberais hoje hegemnicas o que pode ser literalmente descrito como anaturalizao das relaes sociais, a noo de acordo com a qual as caractersticas da sociedade chamadamoderna so a expresso das tendncias espontneas e naturais do desenvolvimento histrico dasociedade. A sociedade liberal constitui de acordo com esta perspectiva no apenas a ordem socialdesejvel, mas tambm a nica possvel. Essa a concepo segundo a qual nos encontramos numa linhade chegada, sociedade sem ideologias, modelo civilizatrio nico, globalizado, universal, que tornadesnecessria a poltica, na medida em que j no h alternativas possveis a este modo de vida.

    Essa fora hegemnica do pensamento neoliberal, sua capacidade de apresentar sua prpria narrativahistrica como conhecimento objetivo, cientfico e universal e sua viso da sociedade moderna como a formamais avanadae, no entanto, a mais normal da experincia humana, est apoiada em condies histrico-

    culturais especficas. O neoliberalismo um excepcional extrato purificado e, portanto, despojado de tensese contradies, de tendncias e opes civilizatrias que tm uma longa histria na sociedade ocidental. Issolhe d a capacidade de constituir-se no senso comum da sociedade moderna. A eficcia hegemnica atualdesta sntese sustenta-se nas tectnicas transformaes nas relaes de poder ocorridas no mundo nasltimas dcadas. O desaparecimento ou derrota das principais oposies polticas que historicamente seconfrontavam com a sociedade liberal (o socialismo real e as organizaes e lutas populares anticapitalistasem todas as partes do mundo), bem como a riqueza e o poderio militar sem rivais das sociedades industriaisdo Norte, contribuem para a imagem da sociedade liberal de mercado como a nica opo possvel, como ofim da Histria. No entanto, a naturalizao da sociedade liberal como a forma mais avanada e normal deexistncia humana no uma construo recente que possa ser atribuda ao pensamento neoliberal, nem atual conjuntura poltica; pelo contrrio, trata-se de uma idia com uma longa histria no pensamento socialocidental dos ltimos sculos.

    A busca de alternativas conformao profundamente excludente e desigual do mundo moderno exige umesforo de desconstruo do carter universal e natural da sociedade capitalista-liberal. Isso requer oquestionamento das pretenses de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de naturalizao e

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    legitimao dessa ordem social: o conjunto de saberes que conhecemos globalmente como cincias sociais.Esse trabalho de desconstruo um esforo extraordinariamente vigoroso e multifacetado que vem sendorealizado nos ltimos anos em todas as partes do mundo. Entre suas contribuies fundamentais se destacam:as mltiplas vertentes da crtica feminista2, o questionamento da histria europia como Histria Universal(Bernal, 1987; Blaut, 1992; 1993), o desentranhamento da natureza do orientalismo (Said, 1979; 1994), aexigncia de abrir as cincias sociais (Wallerstein, 1996), as contribuies dos estudos subalternosda ndia

    (Guha, 1998; Rivera Cusicanqui e Barragn, 1997), a produo de intelectuais africanos como V. Y. Mudimbe(1994), Mahmood Mamdani (1996), Tsenay Serequeberham (1991) e Oyenka Owomoyela, e o amplo espectroda chamada perspectiva ps-colonial que muito vigor encontra em diversos departamentos de estudos culturaisde universidades estadunidenses e europias. A procura de perspectivas do saber no eurocntrico tem umalonga e valiosa tradio na Amrica Latina (Jos Mart, Jos Carlos Maritegui) e conta com valiosascontribuies recentes, dentre as quais as de Enrique Dussel (Apel, Dussel e Fornet B., 1992; Dussel, 1994;1998), Arturo Escobar (1995), Michel-Rolph Trouillot (1995), Anbal Quijano (1990; 1992; 1998), Walter Mignolo(1995; 1996), Fernando Coronil (1996; 1997) e Carlos Lenkersdorf (1996).

    Este texto inscreve-se dentro de tal esforo, argumentando que possvel identificar duas dimensesconstitutivas dos saberes modernos que contribuem para explicar sua eficcia neutralizadora. Trata-se de duasdimenses de origens histricas distintas, que s adquirem sua atual potncia neutralizadora pela via de suaestreita imbricao. A primeira refere-se s sucessivas separaesou partiesdo mundo real que se dohistoricamente na sociedade ocidental e as formas como se vai construindo o conhecimento sobre as basesdesse processo de sucessivas separaes. A segunda dimenso a forma como se articulam os saberesmodernos com a organizao do poder, especialmente as relaes coloniais/imperiais de poderconstitutivas domundo moderno. Essas duas dimenses servem de sustento slido a uma construo discursiva neutralizadoradas cincias sociais e dos saberes sociais modernos.

    I. As mltiplas separaes do Ocidente

    Uma primeira separao da tradio ocidental de origem religiosa. Um substrato fundamental dasformas particulares do conhecer e do fazer tecnolgico da sociedade ocidental associado por Jan Berting separao judaico-crist entre Deus (o sagrado), o homem (o humano) e a natureza. De acordo com Berting(1993), nesta tradio:

    Deus criou o mundo, de maneira que o mundo mesmo no Deus, e no se considera sagrado. Isto est

    associado idia de que Deus criou o homem sua prpria imagem e elevou-o acima de todas as outras

    criaturas da terra, dando-lhe o direito [...] a intervir no curso dos acontecimentos na terra. Diferentemente da

    maior parte dos outros sistemas religiosos, as crenas judaico-crists no estabelecem limites ao controle da

    natureza pelo homem3.

    , no entanto, a partir da Ilustrao e com o desenvolvimento posterior das cincias modernas que sesistematizam e se multiplicam tais separaes4. Um marco histrico significativo nestes sucessivosprocessos de separao representado pela ruptura ontolgica entre corpo e mente, entre a razo e omundo, tal como formulada na obra de Descartes (Apffel-Marglin, 1996: 3).

    A ruptura ontolgica entre a razo e o mundo quer dizer que o mundo j no uma ordem significativa, est

    expressamente morto. A compreenso do mundo j no uma questo de estar em sintonia com o cosmos,como era para os pensadores gregos clssicos. O mundo tornou-se o que para os cidados do mundo

    moderno, um mecanismo desespiritualizado que pode ser captado pelos conceitos e representaes construdos

    pela razo (Apffel-Marglin, 1996: 3).

    Esta total separao entre mente e corpo deixou o mundo e o corpo vazios de significado e subjetivou

    radicalmente a mente. Esta subjetivao da mente, esta separao entre mente e mundo, colocou os seres

    humanos numa posio externa ao corpo e ao mundo, com uma postura instrumental frente a eles (Apffel-

    Marglin, 1996: 4).

    Cria-se desta maneira, como assinalou Charles Taylor, uma fissura ontolgicaentre a razo e o mundo(Apffel-Marglin, 1996: 6), separao que no est presente em outras culturas (Apffel-Marglin, 1996: 7).

    Somente sobre a base destas separaesbase de um conhecimento descorporizado e descontextualizado concebvel esse tipo muito particular de conhecimento que pretende ser des-subjetivado (isto , objetivo) e

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    universal.

    Estas tendncias radicalizam-se com as separaes que Weber conceitualizou como constitutivas damodernidade cultural, e uma crescente ciso que se d na sociedade moderna entre a populao em geral eo mundo dos especialistas. Como assinala Habermas:

    [Weber] caracterizou a modernidade cultural como a separao da razo substantiva expressa na religio e a

    metafsica em trs esferas autnomas: cincia, moralidade e arte, que se diferenciaram porque as vises domundo unificadas da religio e da metafsica se cindiram. Desde o sculo XVIII, os problemas herdados destas

    velhas vises do mundo puderam ser organizados de acordo com aspectos especficos de validade: verdade,

    direito normativo, autenticidade e beleza, que puderam ento ser tratados como problemas de conhecimento, de

    justia e moral ou de gosto. Por sua vez, puderam ser institucionalizados o discurso cientfico, as teorias morais,

    a jurisprudncia e a produo e crtica de arte. Cada domnio da cultura correspondia a profisses culturais, que

    enfocavam os problemas com perspectiva de especialista. Este tratamento profissional da tradio cultural traz

    para o primeiro plano as estruturas intrnsecas de cada uma das trs dimenses da cultura. Aparecem as

    estruturas das racionalidades cognitivo-instrumental, moral-prtica e esttico-expressiva, cada uma delas

    submetida ao controle de especialistas, que parecem ser mais inclinados a estas lgicas particulares que o

    restante dos homens. Como resultado, cresce a distncia entre a cultura dos especialistas e a de um pblico

    mais amplo.

    O projeto de modernidade formulado pelos filsofos do iluminismo no sculo XVIII baseava-se no desenvolvimento de

    uma cincia objetiva, de uma moral universal, de uma lei e uma arte autnomas e reguladas por lgicas prprias

    (Habermas, 1989: 137-138).

    Na autoconscincia europia da modernidade, estas sucessivas separaes se articulam com aquelasque servem de fundamento ao contraste essencial estabelecido a partir da conformao colonial do mundoentre ocidental ou europeu (concebido como o moderno, o avanado) e os Outros, o restante dos povos eculturas do planeta.

    A conquista ibrica do continente americano o momento inaugural dos dois processos quearticuladamente conformam a histria posterior: a modernidadee a organizao colonial do mundo5. Com oincio do colonialismo na Amrica inicia-se no apenas a organizao colonial do mundo mas simultaneamente a constituio colonial dos saberes, das linguagens, da memria (Mignolo, 1995) e doimaginrio (Quijano, 1992). D-se incio ao longo processo que culminar nos sculos XVIII e XIX e no qual,pela primeira vez, se organiza a totalidade do espao e do tempo todas as culturas, povos e territrios doplaneta, presentes e passados numa grande narrativa universal. Nessa narrativa, a Europa ou semprefoi simultaneamente o centro geogrfico e a culminao do movimento temporal. Nesse perodo modernoprimevo/colonial do-se os primeiros passos na articulao das diferenas culturais em hierarquiascronolgicas (Mignolo, 1995: xi) e do que Johannes Fabian chama de a negao da simultaneidade(negation of coevalness)6. Com os cronistas espanhis d-se incio massiva formao discursiva deconstruo da Europa/Ocidente e o outro, do europeu e o ndio, do lugar privilegiado do lugar de enunciaoassociado ao poder imperial (Mignolo, 1995: 328).

    Tal construo tem como pressuposio bsica o carter universal da experincia europia. As obras deLocke e de Hegelalm de extraordinariamente influentes so neste sentido paradigmticas. Ao construir-se anoo de universalidade a partir da experincia particular (ou paroquial) da histria europia e realizar a leiturada totalidade do tempo e do espao da experincia humana do ponto de vista dessa particularidade, institui-seuma universalidade radicalmente excludente.

    Bartolom Clavero realiza uma significativa contribuio a esta discusso em sua anlise das concepesdo universalismo, e do indivduo e seus direitos, no liberalismo clssico e no pensamento constitucional. Este um universalismo no-universal na medida em que nega todo direito diferente do liberal, cuja sustentaoest na propriedade privada individual (Clavero, 1994; 1997).

    A negao do direito do colonizado comea pela afirmao do direito do colonizador; a negao de um direito

    coletivo por um direito individual; Locke no segundo Treatise of Government, elabora mais concretamente esse

    direito como direito de propriedade, como propriedade privada, por uma razo muito precisa. A propriedade, para

    ele, fundamentalmente um direito de um indivduo sobre si mesmo. um princpio de disposio pessoal, de

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    liberdade radical. E o direito de propriedade tambm pode s-lo sobre essas coisas desde que resulte da prpria

    disposio do indivduo no apenas sobre si mesmo, mas sobre a natureza, ocupando-a e nela trabalhando. o

    direito subjetivo, individual, que constitui, que deve assim constituir o direito objetivo, social. A ordem da sociedade

    ter de responder faculdade do indivduo. No h direito legtimo fora desta composio (Clavero, 1994: 21-22).

    Let him [the Man] plant in some in-land, vacant places of America, que assim o homem colonize as terras vazias daAmrica, um territrio que pode ser considerado vazio juridicamente porque no est povoado de indivduos que

    respondam s exigncias da prpria concepo, a uma forma de ocupao e explorao da terra que produza antes

    de tudo direitos, e direitos antes de mais nada individuais (Clavero, 1994: 22).

    [...] se no h cultivo ou colheita, nem a ocupao efetiva serve para gerar direitos; outros usos no valem, essa parte

    da terra, esse continente da Amrica, ainda que povoado, pode ser considerado desocupado, disposio do

    primeiro colono que chegue e se estabelea. O indgena que no se atenha a esses conceitos, a tal cultura, no tem

    nenhum direito (Clavero, 1994: 22).

    Eis aqui a linha de chegada do discurso proprietrio, ponto de partida da concepo constitucional. E no desde

    logo uma mera ocorrncia de um pensador isolado. Estamos diante de uma manifestao realmente paradigmticade toda uma cultura, talvez ainda da nossa (Clavero, 1994: 22-23).

    Para a perspectiva constitucional, para esta nova mentalidade, os indgenas no renem as condies para terem

    direito algum, nem privado nem pblico. The Wealth of Nations de Adam Smith, sua riqueza das naes no

    menos paradigmtica, contm e difunde a concluso: The native tribes of North America no tm por seu

    particular state of society, por um estado julgado primitivo, neither sovereign nor commonwealth, nem soberano

    nem repblica, tampouco algum direito poltico .

    Com este alcance de privao jurdica da populao indgena, poder-se- alegar por terras americanas inclusive para

    efeitos judiciais no s John Locke, mas tambm Adam Smith, sua Wealth of Nations. Valem mais como direito para

    privar de direito que o prprio ordenamento particular (Clavero, 1994: 23).

    Foi, assim, necessrio estabelecer uma ordem de direitos universais de todos os seres humanos comoum passo para exatamente negar o direito maioria deles.

    O efeito no a universalizao do direito, mas a entronizao do prprio universo jurdico, com expulso radical de

    qualquer outro. J no se trata simplesmente de que o indgena se encontre numa posio subordinada. Agora o

    resultado que no possui lugar algum se no se mostra disposto a abandonar completamente seus costumes e

    desfazer inteiramente suas comunidades para integrar-se ao nico mundo constitucionalmente concebido do direito

    (Clavero, 1994: 25-26).

    [...] no se concebe apenas um direito individual, este direito privado. Direito, tambm se admite coletivo, de uma

    coletividade, mas s aquele ou somente daquela que corresponda ou sirva ao primeiro, ao direito de autonomiapessoal e de propriedade privada, a esta liberdade civil fundamental que assim se concebia. Dito de outro modo, s

    tem cabimento como pblico o direito no de qualquer comunidade, mas somente da instituio poltica constituda de

    acordo com o referido fundamento, com vistas a sua existncia e asseveramento.

    Tanto as comunidades tradicionais prprias como todas as estranhas, tais como as indgenas sem soberano

    nem constituio, ficam excludas de um nvel paritrio do ordenamento jurdico ou mesmo do campo do direito;

    o primeiro no que diz respeito s prprias, o segundo, o mais excludente, no que diz respeito s alheias, as que

    no respondam forma estatal (Clavero, 1994: 27).

    O universalismo da filosofia da histria de Hegel reproduz o mesmo processo sistemtico de excluses. A

    histria universal como realizao do esprito universal7

    . Mas desse esprito universal no participamigualmente todos os povos.

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    J que a histria a figura do esprito em forma de acontecer, da realidade natural imediata, ento os momentos do

    desenvolvimento so existentes como princpios naturais imediatos, e estes, porque so naturais, so como uma

    pluralidade fora da outra e, ademais, de modo tal que a um povo corresponde um deles, sua existncia geogrficae

    antropolgica(Hegel, 1976: 334).

    Ao povo a que corresponde tal momento como princpio natural, -lhe encomendada a execuo do mesmo noprogresso da autoconscincia do esprito do mundo que se abre. Este povo, na histria universal e para essa

    poca, o dominante e nela s pode fazer poca uma vez. Contra este seu absoluto direito de ser portador do

    atual grau de desenvolvimento do esprito do mundo, os espritos dos outros povos no tm direitos, e eles,

    como aqueles cuja poca passou, no contam na histria universal (Hegel, 1976: 334-335).

    Deste universalismo eurocntrico excludente, derivam as mesmas concluses que podemos observar emLocke com relao aos direitos dos povos. Diferentemente dos povos que so portadores histricos da razouniversal, as naes brbaras (e seus povos) carecem de soberania e de autonomia.

    Um povo no ainda um Estado, e a passagem de uma famlia, de uma horda, de uma cl, de uma multido, etc.,

    a uma situao de Estado constitui a realizao formal da idia em geral nesse povo. Sem essa forma, carece,

    como substncia tica que em si(an sich), da objetividade de ter nas leis, como determinaes pensadas, umaexistncia emprica para si e para os outros universal e vlida para todos e, portanto, no reconhecido: sua

    autonomia, j que carece de legalidade objetiva e de racionalidade firme para si, apenas formal e no

    soberania (Hegel, 1976: 335).

    [...] ocorre que as naes civilizadas consideram a outras que lhes ficaram para trs nos movimentos

    substanciais do Estado (os povos pastores face aos caadores, os agricultores face a ambos, etc.), como

    brbaros, com a conscincia de um direito desigual, e tratam sua autonomia como algo formal (Hegel, 1976:

    336).

    A narrativa de Hegel est construda sobre uma trade de continentes (sia, frica, Europa). Estas partes

    do mundo no esto [...] divididas por casualidade ou por razes de comodidade, mas se trata de diferenasessenciais8. A Histria move-se do Oriente ao Ocidente, sendo a Europa o Ocidente absoluto, lugar no qualo esprito alcana sua mxima expresso ao unir-se consigo mesmo9. Dentro desta metanarrativa histrica, aAmrica ocupa um papel ambguo. Por um lado o continente jovem, com a implicao potencial que estacaracterizao pode ter como portador de futuro, mas sua juventude se manifesta fundamentalmente em serdbil e imaturo (Gerbi, 1993: 527 y 537). Enquanto sua vegetao monstruosa, sua fauna frgil (Gerbi,1993: 537), e mesmo o canto de seus pssaros desagradvel (Gerbi, 1993: 542). Os aborgenesamericanos so uma raa dbil em processo de desaparecimento (Gerbi, 1993: 545). Suas civilizaescareciam dos grandes instrumentos do progresso, o ferro e o cavalo (Gerbi, 1993: 537).

    A Amrica sempre se mostrou e continua mostrando-se fsica e espiritualmente impotente10.

    Mesmo as civilizaes do Mxico e do Peru eram meramente naturais: ao se aproximarem do esprito, achegada da incomparvel civilizao europia, no lhes podia acontecer outra coisa que no fosse seu

    desaparecimento (Gerbi, 1993: 545, 548).

    II. A naturalizao da sociedade liberal e a origem histrica das cincias sociais

    O processo que culminou com a consolidao das relaes de produo capitalistas e do modo de vidaliberal, at que estas adquirissem o carter de formas naturais de vida social, teve simultaneamente umadimenso colonial/imperial de conquista e/ou submisso de outros continentes e territrios por parte daspotncias europias, e uma encarniada luta civilizatria no interior do territrio europeu na qual finalmenteacabou-se impondo a hegemonia do projeto liberal. Para as geraes de camponeses e trabalhadores quedurante os sculos XVIII e XIX viveram na prpria carne as extraordinrias e traumticas transformaes(expulso da terra e do acesso aos recursos naturais), a ruptura com os modos anteriores de vida e desustento condio necessria para a criao da fora da trabalho livre e a imposio da disciplina do

    trabalho fabril, este processo foi tudo, exceto natural.As pessoas no entraram na fbrica alegremente e por sua prpria vontade. Um regime de disciplina e de

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    normatizao cabal foi necessrio. Alm da expulso de camponeses e de servos da terra e da criao daclasse proletria, a economia moderna exigia uma profunda transformao dos corpos, dos indivduos e dasformas sociais. Como produto desse regime de normatizao criou-se o homem econmico (Escobar, 1995:60).

    Em diversas partes da Europa, e com particular intensidade no Reino Unido, o avano deste modelo deorganizao no apenas do trabalho e do acesso aos recursos, mas do conjunto da vida, sofreu ampla

    resistncia tanto nas cidades como no campo. Detenhamo-nos na caracterizao dessa resistncia, desseconflito cultural ou civilizatrio, como o formula o historiador ingls E. P. Thompson, lcido estudioso dasensibilidade popular de tal perodo:

    Minha tese a de que a conscincia do costume e os usos do costume eram especialmente robustos no sculo

    dezoito: de fato, alguns dos costumes eram de inveno recente e eram na realidade demandas por novos direitos

    [...] a presso para reformar foi resistida obstinadamente e no sculo dezoito abriu-se uma distncia profunda, uma

    alienao profunda entre as culturas de patrcios e plebeus (Thompson, 1993: 1).

    Esta , ento, uma cultura conservadora em suas formas que apela aos usos tradicionais e busca refor-los. So

    formas no-racionais; no apelam a nenhuma razo atravs do folheto, sermo ou plataforma; impem as sanes

    do ridculo, a vergonha e as intimidaes. Mas o contedo e o sentido desta cultura no podem ser facilmente

    descritos como conservadores. Na realidade social, o trabalho est-se tornando, dcada a dcada, mais livre dos

    tradicionais controles senhoriais, paroquiais, corporativos e paternais, e mais distante da dependncia clientelista

    direta do senhorio (Thompson, 1993: 9).

    Da um paradoxo caracterstico do sculo: encontramos uma cultura tradicional rebelde. A cultura conservadora

    dos plebeus resiste, em nome do costume, a essas racionalizaes econmicas e inovaes (como o

    cercamento de terras comuns, a disciplina no trabalho e os mercados livres no regulados de gros) que

    governantes, comerciantes ou patres buscam impor. A inovao mais evidente na camada superior da

    sociedade que nas classes baixas, mas como esta inovao no um processo tecnolgico/sociolgico neutro e

    sem normas (modernizao, racionalizao) e sim a inovao do processo capitalista, freqentemente

    experimentada pelos plebeus na forma de explorao, ou apropriao de seus direitos de uso tradicionais, ou a

    ruptura violenta de modelos valorizados de trabalho e cio... Portanto, a cultura plebia rebelde na defesa dos

    costumes. Os costumes defendidos so os do prprio povo, e alguns deles esto, de fato, baseados em

    recentes asseres na prtica (Thompson, 1993: 9 -10).

    As cincias sociais tm como piso a derrota dessa resistncia; tm como substrato as novas condiesque se criam quando o modelo liberal de organizao da propriedade, do trabalho e do tempo deixam deaparecer como uma modalidade civilizatria em disputa com outra(s) que conserva(m) seu vigor, e adquirehegemonia como a nica forma de vida possvel11. A partir deste momento, as lutas sociais j no tm comoeixo o modelo civilizatrio e a resistncia a sua imposio, mas passam a definir-se no interior da sociedadeliberal12. Estas so as condies histricas da naturalizao da sociedade liberal de mercado. A superioridadeevidente desse modelo de organizao social e de seus pases, cultura, histria e raa fica demonstradatanto pela conquista e submisso dos demais povos do mundo, como pela superao histrica das formasanteriores de organizao social, uma vez que se logrou impor na Europa a plena hegemonia da organizaoliberal da vida sobre as mltiplas formas de resistncia com as quais se enfrentou.

    este o contexto histrico-cultural do imaginrio que impregna o ambiente intelectual no qual se d aconstituio das disciplinas das cincias sociais. Esta a viso de mundo que fornece os pressupostosfundacionais de todo o edifcio dos conhecimentos sociais modernos. Esta cosmoviso tem como eixoarticulador central a idia de modernidade, noo que captura complexamente quatro dimenses bsicas: 1)a viso universal da histria associada idia de progresso (a partir da qual se constri a classificao ehierarquizao de todos os povos, continentes e experincias histricas); 2) a naturalizao tanto dasrelaes sociais como da natureza humana da sociedade liberal-capitalista; 3) a naturalizao ouontologizao das mltiplas separaes prprias dessa sociedade; e 4) a necessria superioridade dosconhecimentos que essa sociedade produz (cincia) em relao a todos os outros conhecimentos.

    Tal como o caracterizam Immanuel Wallerstein (1996) e o grupo que trabalhou com ele no RelatrioGulbenkian, as cincias sociais se constituem como tais num contexto espacial e temporal especfico: em

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    cinco pases liberais industriais (Inglaterra, Frana, Alemanha, as Itlia e os Estados Unidos) na segundametade do sculo passado. No corpo disciplinar bsico das cincias sociais no interior das quaiscontinuamos hoje habitando estabelece-se em primeiro lugar uma separao entre passado e presente: adisciplina histria estuda o passado, enquanto se definem outras especialidades que correspondem aoestudo do presente. Para o estudo deste ltimo delimitam-se mbitos diferenciados correspondentes aosocial, ao polticoe ao econmico, concebidos propriamente como regies ontolgicas da realidade histrico

    social. A cada um destes mbitos separados da realidade histrico-social corresponde uma disciplina dascincias sociais, suas tradies intelectuais, seus departamentos universitrios: a sociologia, a cinciapoltica e a economia. A antropologia e os estudos clssicos definem-se como o campo para o estudo dosoutros.

    Da constituio histrica das disciplinas cientficas que se produz na academia ocidental interessa destacardois assuntos fundacionais e essenciais. Em primeiro lugar est a suposio da existncia de um metarrelatouniversal que leva a todas as culturas e a todos os povos do primitivo e tradicional at o moderno. A sociedadeindustrial liberal a expresso mais avanada desse processo histrico, e por essa razo define o modelo quedefine a sociedade moderna. A sociedade liberal, como norma universal, assinala o nico futuro possvel detodas as outras culturas e povos. Aqueles que no conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorvel dahistria esto destinados a desaparecer. Em segundo lugar, e precisamente pelo carter universal daexperincia histrica europia, as formas do conhecimento desenvolvidas para a compreenso dessasociedade se converteram nas nicas formas vlidas, objetivas e universais de conhecimento. As categorias,conceitos e perspectivas (economia, Estado, sociedade civil, mercado, classes, etc.) se convertem, assim, noapenas em categorias universais para a anlise de qualquer realidade, mas tambm em proposiesnormativas que definem o dever ser para todos os povos do planeta. Estes conhecimentos convertem-se,assim, nos padres a partir dos quais se podem analisar e detectar as carncias, os atrasos, os freios eimpactos perversos que se do como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outrassociedades.

    Esta uma construo eurocntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e do espao para toda ahumanidade do ponto de vista de sua prpria experincia, colocando sua especificidade histrico-culturalcomo padro de referncia superior e universal. Mas ainda mais que isso. Este metarrelato damodernidade um dispositivo de conhecimento colonial e imperial em que se articula essa totalidade depovos, tempo e espao como parte da organizao colonial/imperial do mundo. Uma forma de organizao ede ser da sociedade transforma-se mediante este dispositivo colonizador do conhecimento na forma normaldo ser humano e da sociedade. As outras formas de ser, as outras formas de organizao da sociedade, as

    outras formas de conhecimento, so transformadas no s em diferentes, mas em carentes, arcaicas,primitivas, tradicionais, pr-modernas. So colocadas num momento anteriordo desenvolvimento histrico dahumanidade (Fabian, 1983), o que, no imaginrio do progresso, enfatiza sua inferioridade. Existindo umaforma natural do ser da sociedade e do ser humano, as outras expresses culturais diferentes so vistascomo essencial ou ontologicamente inferiores e, por isso, impossibilitadas de se superarem e de chegarema ser modernas (devido principalmente inferioridade racial). Os mais otimistas vem-nas demandando aao civilizatria ou modernizadora por parte daqueles que so portadores de uma cultura superior parasarem de seu primitivismo ou atraso. Aniquilao ou civilizao imposta definem, destarte, os nicosdestinos possveis para os outros13.

    O conjunto de separaes sobre as quais est sustentada essa noo do carter objetivo e universal doconhecimento cientfico est articulado com as separaes que estabelecem os conhecimentos sociais entrea sociedade moderna e o restante das culturas. Com as cincias sociais d-se o processo de cientifizao dasociedade liberal, sua objetivao e universalizao e, portanto, sua naturalizao. O acesso cincia, e arelao entre cincia e verdade em todas as disciplinas, estabelece uma diferena radical entre associedades modernas ocidentais e o restante do mundo. D-se, como aponta Bruno Latour, umadiferenciao bsica entre uma sociedade que possui a verdadeo controle da natureza e outras que no otm.

    Aos olhos dos ocidentais, o Ocidente, e apenas o Ocidente, no uma cultura, no apenas uma cultura.

    Por que se v o Ocidente a si mesmo desta forma? Por que deveria ser o Ocidente e s o Ocidente no uma cultura?

    Para compreender a Grande Diviso entre ns e eles. Devemos regressar a outra Grande Diviso, aquela que se d

    entre humanos e no-humanos... De fato, a primeira a exportao da segunda. Ns ocidentais no podemos ser

    uma cultura mais entre outras, j que ns tambm dominamos a natureza. Ns no dominamos uma imagem, ou uma

    representao simblica da natureza, como fazem outras sociedades, mas a Natureza, tal como ela , ou pelo menos

    tal como ela conhecida pelas cinciasque permanecem no fundo, no estudadas, no estudveis, milagrosamenteidentificadas com a Natureza mesma (Latour, 1993: 97).

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    Assim, a Grande Diviso Interna d conta da Grande Diviso Externa: ns somos os nicos que diferenciamos

    absolutamente entre Natureza e Cultura, entre Cincia e Sociedade, enquanto que a nossos olhos todos os demais,

    sejam chineses, amerndios, azandes ou baruias, no podem realmente separar o que conhecimento do que

    sociedade, o que signo do que coisa, o que vem da natureza daquilo que sua cultura requer. Faam o que fizerem,

    no importa se adaptado, regulado ou funcional, eles sempre permanecem cegos no interior desta confuso. So

    prisioneiros tanto do social quanto da linguagem. Ns, faamos o que fizermos, no importa quo criminosos ou

    imperialista possamos ser, escapamos da priso do social e da linguagem para ter acesso s coisas mesmas atravs de

    uma porta de sada providencial, a do conhecimento cientfico. A separao interna entre humanos e no-humanos

    define uma segunda separaoexterna desta vez atravs da qual os modernos puseram-se a si mesmos num plano

    diferente dos pr-modernos (Latour, 1993: 99-100).

    Este corpo ou conjunto de polaridades entre a sociedade moderna ocidental e as outras culturas, povos esociedades, polaridades, hierarquizaes e excluses estabelece pressupostos e olhares especficos noconhecimento dos outros. Neste sentido possvel afirmar que, em todo o mundo ex-colonial, as cinciassociais serviram mais para o estabelecimento de contrastes com a experincia histrica universal ( normal) daexperincia europia (ferramentas neste sentido de identificao de carncias e deficincias que tmde ser

    superadas), que para o conhecimento dessas sociedades a partir de suas especificidades histrico-culturais.Existe uma extraordinria continuidade entre as diferentes formas atravs das quais os conhecimentoseurocntricos legitimaram a misso civilizadora/normalizadora a partir das deficincias desvios em relaoao padro normal civilizado de outras sociedades. Os diferentes recursos histricos (evangelizao,civilizao, o fardo do homem branco, modernizao, desenvolvimento, globalizao) tm todos comosustento a concepo de que h um padro civilizatrio que simultaneamente superiore normal. Afirmandoo carter universal dos conhecimentos cientficos eurocntricos abordou-se o estudo de todas as demaisculturas e povos a partir da experincia moderna ocidental, contribuindo desta maneira para ocultar, negar,subordinar ou extirpar toda experincia ou expresso cultural que no corresponda a esse dever ser quefundamenta as cincias sociais. As sociedades ocidentais modernas constituem a imagem de futuro para oresto do mundo, o modo de vida ao qual se chegaria naturalmente no fosse por sua composio racialinadequada, sua cultura arcaica ou tradicional, seus preconceitos mgico-religiosos14 ou, mais recentemente,pelo populismo e por Estados excessivamente intervencionistas, que no respondem liberdade espontnea

    do mercado.Na Amrica Latina, as cincias sociais, na medida em que apelaram a esta objetividade universal,

    contriburam para a busca, assumida pelas elites latino-americanas ao longo de toda a histria destecontinente, da superao dos traos tradicionais e pr -modernos que tm servido de obstculo aoprogresso e transformao destas sociedades imagem e semelhana das sociedades liberaisindustriais15. Ao naturalizar e universalizar as regies ontolgicas da cosmoviso liberal que servem debase a suas constries disciplinares, as cincias sociais esto impossibilitadas de abordar processoshistrico-culturais diferentes daqueles postulados por essa cosmoviso. Caracterizando as expressesculturais como tradicionais ou no-modernas, como em processo de transio em direo modernidade, nega-se-lhes toda possibilidade de lgicas culturais ou cosmovises prprias. Ao coloc-lascomo expresso do passado, nega-se sua contemporaneidade.

    To profundamente arraigados esto esta noo do moderno, o padro cultural ocidental e sua seqncia

    histrica como o normal ou universal, que este imaginrio conseguiu constranger uma alta proporo daslutas sociais e dos debates poltico-intelectuais do continente.

    Estas noes da experincia ocidental como o moderno num sentido universal com o qual necessriocomparar outras experincias permanecem como pressupostos implcitos, mesmo em autores queexpressamente se propem compreenso da especificidade histrico-cultural deste continente. Podemosver, por exemplo, a forma como Garca Canclini aborda a caracterizao das culturas latino-americanascomo culturas hbridas(1989). Apesar de rejeitar expressamente a leitura da experincia latino-americana damodernidade como eco diferido e deficiente dos pases centrais16, caracteriza o modernismo nos seguintestermos:

    Se o modernismo no a expresso da modernizao socioeconmica, e sim o modo como as elites assumem a

    interseco de diferentes temporalidades histricas e com elas tentam elaborar um projeto global, quais so as

    temporalidades na Amrica Latina e que contradies gera seu encontro?A perspectiva Pluralista, que aceita a fragmentao e as combinaes mltiplas entre tradio, modernidade e ps-

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    modernidade, indispensvel para considerar a conjuntura latino-americana de fim de sculo. Assim se comprova [...]

    como se desenvolveram em nosso continente os quatro traos ou movimentos definidores da modernidade:

    emancipao, expanso, renovao e democratizao. Todos se manifestaram na Amrica Latina. O problema no

    reside em que no nos tenhamos modernizado, e sim na forma contraditria e desigual pela qual estes componentes

    vm-se articulando (Garca Canclini, 1989: 330)

    Parece claro que aqui se assume que h um tempo histrico normal e universal, que o europeu. Amodernidade entendida como universal tem como modelo puro a experincia europia. Em contraste comesse modelo ou padro de comparao, os processos de modernidade, os processos da modernidade naAmrica Latina do-se de forma contraditria e desigual, como interseco de diferentes temporalidadeshistricas (temporalidades europias?).

    III. Alternativas ao pensamento eurocntrico-colonial na Amrica Latina hoje

    No pensamento social latino-americano, seja do interior do continente ou de fora dele e sem chegar aconstituir um corpo coerente produziu-se uma ampla gama de buscas, de formas alternativas do conhecer,questionando-se o carter colonial/eurocntrico dos saberes sociais sobre o continente, o regime de

    separaes que lhes servem de fundamento, e a idia mesma da modernidade como modelo civilizatriouniversal.

    De acordo com Maritza Montero (1998), a partir das muitas vozes em busca de formas alternativas deconhecer que se vm verificando na Amrica Latina nas ltimas dcadas, possvel falar da existncia deum modo de ver o mundo, de interpret-lo e de agir sobre ele que constitui propriamente uma episteme como qual a Amrica Latina est exercendo sua capacidade de ver e fazer de uma perspectiva Outra, colocadaenfim no lugar de Ns. As idias centrais articuladoras deste paradigma so, para Montero, as seguintes:

    - Uma concepo de comunidade e de participao assim como do saber popular, como formas deconstituio e ao mesmo tempo produto de uma episteme de relao.

    - A idia de libertaoatravs da prxis, que pressupe a mobilizao da conscincia, e um sentido crtico queconduz desnaturalizao das formas cannicas de aprender-construir-ser no mundo.

    - A redefinio do papel do pesquisadorsocial, o reconhecimento do Outro como Si Mesmo e, portanto, ado sujeito-objeto da investigao como ator sociale construtor do conhecimento.

    - O carter histrico, indeterminado, indefinido, inacabado e relativo do conhecimento. A multiplicidade devozes, de mundos de vida, a pluralidade epistmica.

    - A perspectiva da dependncia, e logo, a da resistncia. A tenso entre minorias e maiorias e os modosalternativos de fazer-conhecer.

    - A reviso de mtodos, as contribuies e as transformaes provocados por eles (Montero, 1998).

    As contribuies principais a esta episteme latino-americana so identificadas por Montero na teologia dalibertao e na filosofia da libertao (Dussel, 1988; Scalone, 1990), bem como na obra de Paulo Freire,Orlando Fals Borda (1959; 1978) e Alejandro Moreno (1995).

    IV. Trs contribuies recentes: Trouillot, Escobar e Coronil

    Trs livros recentes ilustram-nos o vigor de uma produo terica cuja riqueza reside tanto em suaperspectiva crtica do eurocentrismo colonial dos conhecimentos sociais modernos quanto dasreinterpretaes da realidade latino-americana que oferecem, partindo de outras suposies17.

    Michel-Rolph Trouillot

    As implicaes da narrativa histrica universal que tem a Europa como nico sujeito significativo soabordadas por Michel-Rolph Trouillot. Em Silencing the Past. Power and the Production of History, ele analisao carter colonial da historiografia ocidental mediante o estudo das formas como foi narrada a revoluo

    haitiana, enfatizando particularmente a demonstrao de como operam as relaes de poder18

    e os silnciosna construo da narrativa histrica19.

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    As narrativas histricas baseiam-se em premissas ou compreenses anteriores que por sua vez tmcomo premissas a distribuio do poder de registro (archival power). No caso da historiografia haitiana, comono caso da maioria dos pases do Terceiro Mundo, essas compreenses anteriores foram profundamentemodeladas por convenes e procedimentos ocidentais (Trouillot, 1995: 55).

    De acordo com Trouillot, a Revoluo Haitiana foi silenciada pela historiografia ocidental, porque dadassuas suposies, essa revoluo, tal como ocorreu, era impensvel (1995: 27).

    De fato, a afirmao de acordo com a qual africanos escravizados e seus descendentes no podiam imaginar sua

    liberdade e menos ainda formular estratgias para conquistar e afianar tal liberdade no estava baseada tanto na

    evidncia emprica quanto numa ontologia, uma organizao implcita do mundo e de seus habitantes. Ainda que de

    nenhum modo monoltica, esta concepo do mundo era amplamente compartilhada por brancos na Europa e nas

    Amricas, e tambm por muitos proprietrios no-brancos de plantaes. Mesmo que tenha deixado espao para

    variaes, nenhuma destas variaes incluiu a possibilidade de um levante revolucionrio nas plantaes de escravos, e

    menos ainda que fosse exitoso e conduzisse criao de um Estado independente.

    Assim, a Revoluo Haitiana entrou na histria mundial com a caracterstica particular de ser inconcebvel ainda

    enquanto corria (Trouillot, 1995: 73).

    Numa ordem global caracterizada pela organizao colonial do mundo, pela escravido e pelo racismo,no havia oportunidade para dvidas quanto superioridade europia e, portanto, acontecimentos que apusessem em questo no eram concebveis (Trouillot, 1995: 80-81).

    O impensvel aquilo que no pode ser concebido dentro do leque de alternativas disponveis, aquilo que subverte

    as respostas, pois desafia os termos com os quais se formulam as perguntas. Neste sentido, a Revoluo Haitiana foi

    impensvel em seu tempo. Desafiou os prprios pontos de referncia dos quais seus defensores e opositores

    vislumbravam a raa, o colonialismo e a escravido (Trouillot, 1995: 82-83).

    A viso de mundo vence os fatos: a hegemonia branca natural, tomada como um elemento dado; qualquer

    alternativa ainda est no domnio do impensvel (Trouillot, 1995: 93).

    De acordo com Trouillot, o silenciamento da Revoluo Haitiana apenas um captulo dentro da narrativada dominao global sobre os povos no europeus (1995: 107).

    Arturo Escobar

    Em Encoutering Development. The Making and Unmaking of the Thirld World, Arturo Escobar prope-se acontribuir para a construo de um quadro de referncia para a crtica cultural da economia como estruturafundacional da modernidade. Para tanto, analisa o discursoe as instituies nacionais e internacionais dodesenvolvimento no ps-guerra. Este discurso, produzido sob condies de desigualdade de poder, constrio Terceiro Mundo como forma de exercer controle sobre ele20. De acordo com Escobar (1995: 5), dessasdesigualdades de poder, e a partir das categorias do pensamento social europeu, opera a colonizao darealidade pelo discurso do desenvolvimento21.

    A partir do estabelecimento do padro de desenvolvimento ocidental como norma, ao final daSegunda Guerra Mundial, d-se a inveno do desenvolvimento, produzindo -se substanciaismudanas nas formas como se concebem as relaes entre os pases ricos e os pobres. Toda a vidacultural, poltica, agrcola e comercial destas sociedades passa a estar subordinada a uma novaestratgia (Escobar, 1995: 30).

    Foi promovido um tipo de desenvolvimento que correspondia s idias e expectativas do Ocidente prspero, o que os

    pases ocidentais consideravam que era o curso da evoluo e do progresso [...] ao conceitualizar o progresso nestes

    termos, a estratgia do desenvolvimento transformou-se num poderoso instrumento para a normalizao do mundo

    (Escobar, 1995: 26).

    A cincia e a tecnologia so concebidas no apenas como base do progresso material, mas como aorigem da direo e do sentido do desenvolvimento (Escobar, 1995: 36). Nas cincias sociais do momentopredomina uma grande confiana na possibilidade de um conhecimento certo, objetivo, com base emprica,

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    sem contaminao pelos preconceitos ou pelos erros (Escobar, 1995: 37). Por isso, apenas determinadasformas de conhecimento foram consideradas apropriadas para os planos de desenvolvimento: oconhecimento dos especialistas, treinados na tradio ocidental (Escobar, 1995: 111). O conhecimento dosoutros, o conhecimento tradicional dos pobres, dos camponeses, no apenas era considerado nopertinente, mas tambm como um dos obstculos tarefa transformadora do desenvolvimento.

    No perodo do ps-guerra, deu-se o descobrimento da pobreza massiva existente na sia, na frica e na

    Amrica Latina (Escobar, 1995: 21). A partir de uma definio estritamente quantitativa, dois teros dahumanidade foram transformados em pobres e portanto em seres carentes, necessitando de intervenoquando em 1948 o Banco Mundial definiu como pobres aqueles pases cuja renda anual per capita era menordo que u$s 100 ao ano: se o problema era de renda insuficiente, a soluo era claramente odesenvolvimento econmico (Escobar, 1995: 24). Desta forma:

    O desenvolvimento entrou em cena criando anormalidades (os pobres, os desnutridos, as mulheres grvidas, os

    sem-terra), anomalias que ento se tratava de reformar. Buscando eliminar todos os problemas da face da Terra, do

    Terceiro Mundo, o que realmente conseguiu foi multiplic-los at o infinito. Materializando-se num conjunto de

    prticas, instituies e estruturas, teve um profundo impacto sobre o Terceiro Mundo: as relaes sociais, as formas

    de pensar, as vises de futuro ficaram marcadas indelevelmente por este ubquo elemento. O Terceiro Mundo chegou

    a ser o que , em grande medida, pelo desenvolvimento. Este processo de chegar a ser implicou escolhas entre

    opes crticas e altos custos, e os povos do Terceiro Mundo mal comeam a perceber sua verdadeira natureza

    (Escobar, 1991: 142).

    Por trs da preocupao humanitria e a perspectiva positiva da nova estratgia, novas formas de poder e de

    controle, mais sutis e refinadas, foram postas em operao. A habilidade dos pobres para definir e assumir suas

    prprias vidas foi erodida num grau indito. Os pobres transformaram-se em alvo de prticas mais sofisticadas, de

    uma variedade de programas que pareciam inescapveis. Originado das novas instituies do poder nos Estados

    Unidos e na Europa, dos novos rgos de planejamento das capitais do mundo subdesenvolvido, este era o tipo de

    desenvolvimento que era ativamente promovido, e que em poucos anos estendeu seu alcance a todos os aspectos

    da sociedade (Escobar, 1995: 39).

    A premissa organizadora era a crena no papel da modernizao como a nica fora capaz de destruir as

    supersties e relaes arcaicas, a qualquer custo social, cultural ou poltico. A industrializao e a urbanizao eram

    vistas como inevitveis e necessariamente progressivos caminhos em direo modernizao (Escobar, 1995: 39).

    Estes processos, de acordo com Escobar, devem ser entendidos no mbito global da progressivaexpanso destas formas modernas no apenas a todos os mbitos geogrficos do planeta, mas tambm aoprprio corao da natureza e da vida.

    Se com a modernidade podemos falar da progressiva conquista semitica da vida social e cultural, hoje esta

    conquista estendeu-se ao prprio corao da natureza e da vida. Uma vez que a modernidade se consolidou e a

    economia se transforma numa realidade aparentemente suprema para a maioria um verdadeiro descritor da

    realidade o capital deve abordar a questo da domesticao de todas as relaes sociais e simblicas restantesnos termos do cdigo de produo. J no so unicamente o capital e o trabalho per seque esto em jogo, mas a

    reproduo do cdigo. A realidade transforma-se, para tomar emprestada a expresso de Baudrillard, no espelho

    da produo (Escobar, 1995: 203).

    Na procura de alternativas a estas formas universalistas de submisso e controle de todas as dimensesda cultura e da vida, Escobar aponta para duas direes complementares: a resistncia local de grupos debase s formas dominantes de interveno, e a desconstruo do desenvolvimento (Escobar, 1995: 222-223), tarefa que implica o esforo da desnaturalizao e desuniversalizao da modernidade. Para esteltimo item necessria uma antropologia da modernidade, que conduza a uma compreenso damodernidade ocidental como um fenmeno cultural e histrico especfico (Escobar, 1995: 11). Isto passanecessariamente pela desuniversalizao dos mbitos nos quais se partilhou a sociedade moderna.

    Qual cdigo estrutural foi inscrito na estrutura da economia? Que vasto desenvolvimento civilizatrio resultou das atuais

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    concepo e prtica da economia? [...] Uma antropologia da modernidade centrada na economia conduz-nos a

    narraes de mercado, produo e trabalho, que esto na base do que se pode chamar de economia ocidental. Estas

    narrativas raramente so questionadas, so tomadas como as formas normais e naturais de ver a vida. No entanto, as

    noes de mercado, economia e produo so contingncias histricas. Suas histrias podem ser descritas, suas

    genealogias marcadas, seus mecanismos de poder e verdade revelados. Ou seja, a economia ocidental pode ser

    antropologizada, para demonstrar como se compe de um conjunto de discursos e prticas muito peculiares na histria

    das culturas.

    A economia ocidental geralmente pensada como um sistema de produo. Da perspectiva da antropologia da

    modernidade, entretanto, a economia ocidental deve ser vista como uma instituio composta de sistemas de

    produo, poder e significao. Os trs sistemas uniram-se no final do sculo dezoito e esto inseparavelmente

    ligados ao desenvolvimento do capitalismo e da modernidade. Devem ser vistos como formas culturais atravs das

    quais os seres humanos so transformados em sujeitos produtivos. A economia no apenas, nem sequer

    principalmente, uma entidade material. antes de mais nada uma produo cultural, uma forma de produzir sujeitos

    humanos e ordens sociais de um determinado tipo (Escobar, 1995: 59).

    Os antroplogos foram cmplices da racionalizao da economia moderna ao contribuir para a naturalizao das

    construes da economia, da poltica, da religio, do parentesco e similares, como os blocos primrios na construo de

    toda sociedade. A concepo de acordo com a qual estes domnios so pr-sociais deve ser rejeitada. Pelo contrrio,

    devemos interrogar-nos sobre os processos simblicos e sociais que fazem com que estes domnios apaream como

    auto-evidentes e naturais (Escobar, 1995: 99).

    Fernando Coronil

    Do livro de Fernando Coronil The Magical State, interessa destacar sua anlise de algumas cisesfundantes dos saberes sociais modernos que foram caracterizadas na primeira parte deste texto, assuntoabordado a partir da explorao das implicaes da excluso do espao e da natureza que se deuhistoricamente na caracterizao da sociedade moderna. De acordo com Coronil, nenhuma generalizaopode fazer justia diversidade e complexidade do tratamento da natureza na teoria social ocidental. Noentanto, considera que:

    os paradigmas dominantes tendem a reproduzir os pressupostos que atravessam a cultura moderna, na qual a

    natureza mais um pressuposto. As vises do progresso histrico posteriores ao Iluminismo afirmam a primazia do

    tempo sobre o espao e da cultura sobre a natureza. Nos termos destas polaridades, a natureza est to

    profundamente associada a espao e geografia que estas categorias freqentemente se apresentam como metforas

    uma da outra. Ao diferenci-las, os historiadores e cientistas sociais usualmente apresentam o espao ou a geografia

    como um cenrio inerte no qual tm lugar os eventos histricos, e a natureza como o material passivo com o qual os

    seres humanos constroem seu mundo. A separao da geografia e da histria e o domnio do tempo sobre o espaotm o efeito de produzir imagens de sociedades separadas de seu ambiente material, como se surgissem do nada

    (Coronil, 1997: 23).

    Nem nas concepes da economia neoclssica nem nas marxistas a natureza incorporada centralmentecomo parte do processo de criao de riqueza, fato que tem vastas conseqncias. Na teoria neoclssica, aseparao da natureza do processo de criao de riqueza expressa-se na concepo subjetiva do valor,centrada no mercado. Desta perspectiva, o valor de qualquer recurso natural determinado da mesma maneiraque o de outra mercadoria, isto , por sua utilidade para os consumidores tal como esta medida no mercado(Coronil, 1997: 42). Do ponto de vista macroeconmico, a remunerao dos donos da terra e dos recursosnaturais concebida como uma transferncia de renda, no como um pagamento por um capital natural. estaa concepo que serve de base ao sistema de contas nacionais utilizado em todo o mundo 22.

    Marx, apesar de afirmar que a trindade (trabalho/capital/terra) contm em si mesma todos os mistrios doprocesso social de produo23, acaba formalizando uma concepo da criao de riqueza que ocorre no

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    interior da sociedade, como uma relao capital/trabalho, deixando a natureza de fora. Como a natureza nocria valor, a renda refere-se distribuio, no criao de mais-valia24 (Coronil, 1997: 47).

    Para Coronil, fundamental a contribuio de Henry Lefebvre (1991) no que diz respeito construosocial do espao como base para pensar o espao em termos que integrem seu significado socialmenteconstrudo com suas propriedades formais e materiais (Coronil, 1997: 28). Interessam aqui dois a spectos dopensamento de Lefebvre sobre o espao. O primeiro refere-se concepo do espao como produto das

    relaes sociais e da natureza (que constituem sua matria-prima) (Coronil, 1997: 28).[O espao] tanto o produto como a prpria condio de possibilidade das relaes sociais. Como uma relao

    social, o espao tambm uma relao natural, uma relao entre sociedade e natureza atravs da qual a

    sociedade ao mesmo tempo em que produz a si mesma transforma a natureza e dela se apropria (Coronil, 1997:

    28)25.

    Em segundo lugar, para Lefebvre, a terra inclui os latinfundirios, a aristocracia do campo, o Estado -nao confinado num territrio especfico e no sentido mais absoluto, a poltica e a estratgia poltica 26.Temos assim identificadas as duas excluses essenciais implicadas pela ausncia do espao: a naturezae a territorialidadecomo mbito do poltico27.

    Coronil afirma que na medida em que se deixa de fora a natureza na caracterizao terica da produo e do

    desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna, tambm se est deixando o espao fora do olhar dateoria. Ao fazer-se a abstrao da natureza, dos recursos, do espao e dos territrios, o desenvolvimento histricoda sociedade moderna e do capitalismo aparece como um processo interno e autogerado da sociedade moderna,que posteriormente se expande s regies atrasadas. Nesta construo eurocntrica, desaparece do campo deviso o colonialismo como dimenso constitutiva destas experincias histricas. Esto ausentes as relaes desubordinao de territrios, recursos e populaes do espao no-europeu. Desaparece assim do campo de visoa presena do mundo perifrico e de seus recursos na constituio do capitalismo, com o qual se reafirma a idiada Europa como nico sujeito histrico.

    A reintroduo do espao e, por essa via da dialtica, dos trs elementos de Marx (trabalho, capital eterra) permite ver o capitalismo como processo global, mais que como um processo autogeradona Europa,e permite incorporar ao campo de viso as modernidades subalternas(Coronil, 1997: 8).

    Recordar a natureza reconhecendo teoricamente seu significado histrico permite-nos reformular as histrias

    dominantes do desenvolvimento histrico ocidental, e questionar a noo segundo a qual a modernidade a criao

    de um Ocidente autopropelido (Coronil, 1997: 7).

    O projeto da paroquializao da modernidade ocidental [...] implica tambm o reconhecimento da periferia como

    o lugar da modernidade subalterna. O propsito no nem homogeneizar nem catalogar as mltiplas formas da

    modernidade, menos ainda elevar a periferia por meio de um mandato semntico, mas sim desfazer as

    taxonomias imperiais que fetichizam a Europa como portadora exclusiva da modernidade e esquecem a

    constituio transcultural dos centros imperiais e das periferias colonizadas. A crtica do locusda modernidade

    feita de suas margens cria as condies para uma crtica inerentemente desestabilizadora da prpria

    modernidade. Ao desmontar-se a representao da periferia como a encarnao do atraso brbaro,

    desmistifica-se a auto-representao europia como a portadora universal da razo e do progresso histrico

    (Coronil, 1997: 74).

    Uma vez que se incorpora a natureza anlise social, a organizao do trabalho no pode ser abstradade suas bases materiais (Coronil, 1997: 29-30). Em conseqncia, a diviso internacional do trabalho tem deser entendida no apenas como a diviso social do trabalho, mas tambm como uma diviso global danatureza (Coronil, 1997: 29).

    O que se poderia chamar de diviso internacional da natureza fornece a base material para a diviso internacional do

    trabalho: ambos constituem duas dimenses de um processo unitrio. O foco exclusivo no trabalho obscurece a viso

    do fato inevitvel de que o trabalho sempre est localizado no espao, que transforma a natureza em localizaes

    especficas, e que portanto sua estrutura global implica tambm uma diviso global da natureza (Coronil, 1997: 29).

    Como a produo de matrias-primas na periferia est geralmente organizada em torno da explorao no

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    apenas do trabalho, mas tambm dos recursos naturais, acredito que o estudo do neocolonialismo requer uma

    mudana de foco do desigual fluxo de valor para a estrutura desigual da produo internacional. Esta

    perspectiva coloca no centro da anlise as relaes entre a produo de valor social e a riqueza natural

    (Coronil, 1997: 32).

    Para romper com este conjunto de cises, particularmente com as que se construram entre os fatoresmateriais e os fatores culturais(Coronil, 1997: 15), Coronil prope uma perspectiva holstica da produo queinclua tais ordens de um mesmo campo analtico. Assim como Arturo Escobar, concebe o processo produtivosimultaneamente como criao de sujeitos e de mercadorias.

    Uma perspectiva holstica em torno da produo abarca tanto a produo de mercadorias quanto a formao

    dos agentes sociais implicados neste processo e, portanto, unifica num mesmo campo analtico as ordens

    materiais e culturais dentro das quais os seres humanos formam a si mesmos enquanto fazem seu mundo. [...]

    Esta viso unificadora busca compreender a constituio histrica dos sujeitos num mundo de relaes sociais e

    significados feitos por seres humanos. Como estes sujeitos so constitudos historicamente, e j que so

    protagonistas da histria, esta perspectiva v a atividade que faz a histria como parte da histria que os forma

    e relata sua atividade (Coronil, 1997: 41).

    Uma apreciao do papel da natureza na criao de riqueza oferece uma viso diferente do capitalismo. A

    incluso da natureza (e dos agentes a ela associados) deveria substituir a relao capital/trabalho da

    centralidade ossificada que tem ocupado na teoria marxista. Juntamente com a terra, a relao capital/trabalho

    pode ser vista dentro de um processo mais amplo de mercantilizao, cujas formas especficas e efeitos devem

    ser demonstrados a cada instncia. luz desta viso mais compreensiva do capitalismo, seria difcil reduzir seu

    desenvolvimento a uma dialtica capital/trabalho que se origina nos centros avanados e se expande em

    direo periferia atrasada. Pelo contrrio, a diviso internacional do trabalho poderia ser mais adequadamente

    reconhecida simultaneamente como uma diviso internacional de naes e da natureza (e de outras unidades

    geopolticas, tais como o primeiro e o terceiro mundos, que refletem as cambiantes condies internacionais).

    Ao incluir os agentes que em todo o mundo esto implicados na criao do capitalismo, esta perspectiva torna

    possvel vislumbrar uma concepo global, no eurocntrica de seu desenvolvimento (Coronil, 1997: 61).

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    Notas

    * Universidad Central de Venezuela, Caracas.

    1 Quero comear agradecendo a meus estudantes no Doutorado de Cincias Sociais da Faculdade de Cincias Econmicas e

    Sociais pelas frutferas discusses que mantivemos sobre estes temas nos ltimos dois anos.

    2 Ver, por exemplo, os ensaios includos em Linda Christiansen-Ruffman (1998).

    3 De acordo com Max Weber, o cristianismo herdou do judasmo sua hostilidade ao pensamento mgico. Isto abriu o caminho para

    importantes conquistas econmicas, j que as idias mgicas impem severas limitaes racionalizao da vida econmica. Coma chegada do ascetismo protestante, esta desmistificao do mundo se completou (Berting, 1993).

    4 Dada a naturalizao tanto das relaes sociais quanto dos limites dos saberes modernos, inclusive a fundamental separao

    sujeito/objeto, acaba sendo difcil a compreenso do carter histrico cultural especfico destas formas do saber sem recorrer a

    outras perpectivas culturais, que nos permitem desfamiliarizar-nos e portanto desnaturalizar a objetividade universal destas formas

    de conceber a realidade. Um texto particularmente iluminador neste sentido o de Carlos Lenkersdorf, j citado. Lenkersdorf estuda

    a cosmoviso dos tojolabais atravs de seu idioma. Caracteriza o que chama de uma lngua intersubjetiva na qual no h separao

    entre objeto e sujeito, como expresso de uma forma de compreenso do mundo que carece das mltiplas separaes

    naturalizadas pela cultura ocidental.

    5 Nas palavras de Tzvetan Todorov: [...] o descobrimento da Amrica o que anuncia e funda nossa identidade presente; mesmo

    que toda data que permite separar duas pocas seja arbitrria, no h nenhuma que caia to bem para marcar o incio da era

    moderna como 1492, quando Colombo atravessa o Oceano Atlntico. Todos somos descendentes de Colombo, como ele comeanossa genealogiana medida em que a palavra comeo tem sentido (1995: 15).

    6 Por isso quero mencionar uma tendncia persistente e sistemtica de localizar as referncias da antropologia num tempo

    diferente do presente do produtor do discurso antroplogico (Fabian, 1983: 31).

    7 [...] a histria universal no o mero tribunal de sua fora, isto , necessidade abstrata e irracional de um destino cego, e sim, ela

    razo em si (an sich) e para si e seu ser para-si no esprito saber, nela um desenvolvimento necessrio, unicamente a partir do

    conceito de sua liberdade, dos momentos da razo e assim de sua autoconscincia e de sua liberdade, a explicitao e realizao

    do esprito universal (Hegel, 1976).

    8 G. W. F. Hegel, Enzyklopdie der philosophischen Wissenchaften (Werke) Vol. VI, 442, citado por Antonello Gerbi (1993: 535).

    9 G. W. F. Hegel 1975 Lectures on the Philosophy of History (Cambridge University Press) 172 e 190-191, citado por Fernando

    Coronil (1996: 58).

    10 G. W. F. Hegel, Philosophie der Geschite (Lasson) Vol. I, 189-191, citado por Antonello Gerbi (1993: 538).

    11 Para uma anlise extraordinariamente rica deste processo, ver o texto de E. P. Thompson, j citado.

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    12 a passagem, por exemplo, da resistncia mecanizao e disciplina laboral, luta pelo direito de sindicalizao e pela

    limitao da jornada de trabalho. Enquanto o capitalismo (ou o mercado) refizeram a natureza humana e a necessidade humana, a

    economia poltica e seu antagonista revolucionrio assumiram que esse homem econmico era para sempre (Thompson, 1993: 15).

    13 Os problemas do eurocentrismo no se localizam apenas na distoro na compreenso dos outros. Est simetricamente

    implicada igualmente a distoro na autocompreenso europia, ao conceberem-se como centro, como sujeitos nicos da histria

    da modernidade. Ver mais abaixo a discusso de Fernando Coronil sobre este assunto crucial.14 O estudo destes obstculos culturais, sociais e institucionais modernizao constituiu o eixo que orientou a vastssima

    produo da sociologia e da antropologia da modernizao nas dcadas de 50 e 60.

    15 O ambivalente discurso latino-americano, em sua rejeio dominao europia, mas em sua internalizao de sua misso

    civilizadora, assumiu a forma de um processo de autocolonizao, que assume distintas formas em diferentes contextos e perodos

    histricos (Coronil, 1997: 73).

    16 Perry Anderson 1984 Modernity and Revolution em New Left Review (Londres) N 144, maro-abril, citado por Nstor

    Garca Canclini (1989: 69).

    17 Estes trs textos, que foram publicados em ingls nos Estados Unidos, pertencem a Michel-Rolph Trouillot (1995), Arturo

    Escobar (1995) e Fernando Coronil (1997).

    18 O poder constitutivo da histria. Rastreando o poder atravs de vrios momentos simplesmente ajuda a enfatizar o carter

    fundamentalmente procedimental da produo histrica, insistir no que a histria importa menos que comotrabalha a histria; queo poder mesmo trabalha conjuntamente com a histria; e que as preferncias polticas declaradas dos historiadores tm pouca

    influncia na maioria das prticas reais do poder (Trouillot, 1995: 28).

    19 Os silncios so inerentes histria porque cada evento singular entra na histria carecendo de algumas de suas partes

    constitutivas. Algo sempre se omite enquanto algo registrado. Nunca h um fechamento definitivo de nenhum evento. Assim,

    aquilo que se converte em dado, f-lo com ausncias inatas, especficas a sua produo como tal. Em outros termos, o mesmo

    mecanismo que torna possvel qualquer registro histrico tambm assegura que nem todos os fatos histricos so criados iguais.

    Eles refletem os meios de controle diferencial dos meios de produo histrica desde o primeiro registro que transforma um evento

    num dado (Trouillot, 1995: 49).

    20 [...] se muitos aspectos do colonialismo foram superados, as representaes do Terceiro Mundo atravs do desenvolvimento no

    so menos abarcantes e eficazes que suas contrapartes coloniais (Escobar, 1995: 15).

    21 Em sntese, proponho-me a falar do desenvolvimento como uma experincia histrica singular, a criao de um domnio depensamento e ao pela via da anlise das caractersticas e inter-relaes dos trs eixos que o definem. As formas do

    conhecimento que se referem a ele e atravs das quais ele se constitui como tal e elaborado na forma de objetos, conceitos,

    teorias e similares; o sistema de poder que regula sua prtica; e as formas de subjetividade geradas por esse discurso, aquelas

    atravs das quais um povo reconhece a si mesmo como desenvolvido ou subdesenvolvido (Escobar, 1995: 10).

    22 Ao deixar a natureza fora do clculo econmico da produo de riqueza nas contas nacionais, o processo de criao-destruio

    que sempre est implicado na transformao produ tiva da natureza fica reduzido a uma de suas dimenses. Seu lado escuro, a

    destruio/consumo/esgotamento de recursos torna-se completamente invisvel.

    23 Citado por Fernando Coronil (1997: 57).

    24 A concepo estritamente social da criao da explorao em Marx busca evitar a fetichizao do capital, do dinheiro e da terra

    como fontes de valor. Mas termina excluindo a explorao da natureza da anlise da produo capitalista, e apaga seu papel na

    formao da riqueza (Coronil, 1997: 59).

    25 De acordo com Lefebvre, o modelo dual simplificado (capital/trabalho) no capaz de dar conta da crescente importncia da

    natureza para a produo capitalista.

    26 Ver Henry Lefebvre (1991: 325) citado por Fernando Coronil (1997: 57).

    27 S a partir destas excluses possvel a concepo do econmico como uma regio ontolgica separada tanto da natureza

    quanto da poltica, tal como se apontou na parte II deste captulo.