Claudio Willer - Art - Alguns Poetas Da Natureza e o Sagrado

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35 ecopolítica, 6: mai-ago, 2013 alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53 Alguns poetas da natureza e o sagrado 1 Some nature poets and the sacred Claudio Willer RESUMO: O artigo apresenta a relação entre ecologia e literatura (ou, natureza e literatura) a partir de escritores românticos, simbolistas, surrealistas e beats, e trata da manifestação desta relação na poesia do brasileira Roberto Piva. Palavras-chave: ecologia, literatura, surrealismo, geração beat. ABSTRACT: The article presents the relationship between ecology and literature (or between nature and literature) within romantic, symbolists, surrealists and beats writers. It also deals with the manifestation of this relationship in the poetry of the Brazilian Roberto Piva. Keywords: ecology, literature, surrealism, beat generation WILLER, Claudio (2013). Alguns poetas da natureza e o sagrado. Revista Ecopolítica, São Paulo, n. 6, mai-ago, pp. 35-53. Recebido em 05 de maio de 2013. Confirmado para publicação em 20 de maio de 2013. 1 O presente ensaio é adaptado de “A natureza e alguns poetas românticos, mo- dernos e contemporâneos”, palestra no 12º Festival de Inverno de Bonito, Mato Grosso do Sul, a 30 de julho de 2011; versões anteriores foram apresentadas como um dos ensaios do término do meu pós-doutorado em 2011 e na revista literária Celuzlose em agosto de 2012; serviu como base para um curso sobre poetas da na- tureza que ministrei no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, em abril de 2012. Poeta, ensaísta e tradutor. Doutor em Letras pela USP, São Paulo, Brasil, é autor de Jardins da Pro- vocação (1981) Geração Beat (2009) e Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia (2010). Contato: [email protected].

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  • 35ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    Alguns poetas da natureza e o sagrado1

    Some nature poets and the sacred

    Claudio Willer

    RESUMO: O artigo apresenta a relao entre ecologia e literatura (ou, natureza e literatura) a partir de escritores romnticos, simbolistas, surrealistas e beats, e trata da manifestao desta relao na poesia do brasileira Roberto Piva. Palavras-chave: ecologia, literatura, surrealismo, gerao beat.

    ABSTRACT:The article presents the relationship between ecology and literature (or between nature and literature) within romantic, symbolists, surrealists and beats writers. It also deals with the manifestation of this relationship in the poetry of the Brazilian Roberto Piva. Keywords: ecology, literature, surrealism, beat generation

    WILLER, Claudio (2013). Alguns poetas da natureza e o sagrado. Revista Ecopoltica, So Paulo, n. 6, mai-ago, pp. 35-53.

    Recebido em 05 de maio de 2013. Confirmado para publicao em 20 de maio de 2013.

    1 O presente ensaio adaptado de A natureza e alguns poetas romnticos, mo-dernos e contemporneos, palestra no 12 Festival de Inverno de Bonito, Mato Grosso do Sul, a 30 de julho de 2011; verses anteriores foram apresentadas como um dos ensaios do trmino do meu ps-doutorado em 2011 e na revista literria Celuzlose em agosto de 2012; serviu como base para um curso sobre poetas da na-tureza que ministrei no Museu da Lngua Portuguesa, So Paulo, em abril de 2012.

    Poeta, ensasta e tradutor. Doutor em Letras pela USP, So Paulo, Brasil, autor de Jardins da Pro-vocao (1981) Gerao Beat (2009) e Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia (2010). Contato: [email protected].

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    A natureza est na poesia, desde seus primrdios. Mas a postura

    romntica e de alguns modernos e contemporneos perante a natureza

    distinta daquela de clssicos e neo-clssicos. rcades, por exemplo,

    podiam povoar o quanto quisessem seus jardins e bosques idlicos de

    ninfas e faunos; mas suas representaes no tinham o sentido de uma

    insurreio contra a massificao, a industrializao e as agresses ao

    ambiente natural na sociedade burguesa.

    O tratamento no mais decorativo do natural, porm crtico, ilustrado por

    um contemporneo brasileiro, Roberto Piva. Entre outros lugares, em uma

    srie de textos intitulada Sindicato da natureza, publicada em Estranhos

    sinais de Saturno, volume 3 de suas Obras reunidas. No Manifesto do

    partido surrealista-natural, associa a defesa do ambiente ao paganismo:

    Dionysos, na Grcia Antiga, era o Deus da vegetao, da orgia, do vinho, da anarquia. Pra comear a falar em Ecologia, precisamos iniciar a gira invocando Dionysos, que traz a renovao da primavera & da vegetao.[...] preciso no confundir Ecologia com jardinagem.A Ecologia uma ramificao da Biologia, que estuda as interaes entre os seres vivos & seu meio ambiente.Nos anos 60 quando eu falava de Ecologia, a resposta das pessoas, que se amontoavam em bandos direita & esquerda, era sempre uma profisso de f na prpria mediocridade. Com tanta gente passando fome, esse cara vem falar de natureza. Como se a vida do cretino no dependesse exatamente do equilbrio ecolgico. Os trabalhadores tm a CUT, a CGT. A ona pintada no tem sindicato. Os rios no tm sindicato. O mar no tem sindicato. (Piva, 2008: 178)

    A dessacralizao da natureza e o banimento do dionisaco so atribudos

    por Piva ao cristianismo. Para os propsitos da presente argumentao, no

    importa discutir se a destituio do carter sagrado da natureza tem sua

    gnese no desencantamento do mundo, associado por Max Weber tica

    protestante; no advento do homem fustico, dominador do mundo, de

    Spengler; no cristianismo; nas religies dualistas e grandes monotesmos

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  • 37ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    em geral; na geometrizao e subordinao do mundo por Descartes; no

    racionalismo grego; no Iluminismo e em sua ideologia do progresso; no

    primado da viso cientfico-tecnolgica na sociedade moderna.

    Catlicos poderiam responder a Piva que a natureza obra de Deus;

    portanto sagrada e Piva retrucaria que o cristianismo dualista e, na

    Idade Mdia, a ordem franciscana esteve no limite de ser banida como

    hertica.

    Interessa a continuidade ou sintonia de afirmaes como essas de Piva

    com o que j dizia, ao final do sculo XVIII, William Blake, iniciador

    do romantismo e profeta da modernidade potica e um pantesta

    que vislumbrava a unidade do homem e do universo, da conscincia

    individual e daquela csmica. Seu iderio foi expresso, entre outras

    passagens de sua obra enorme, em O casamento do cu e do inferno:

    O rugir dos lees, o uivo dos lobos, a ira do mar revolto e a espada devastadora so pores de eternidade demasiado grandes para o olho humano. [..]A altivez do pavo a glria de Deus.A lascvia do bode a ddiva de Deus.A fria do leo a sabedoria de Deus.A nudez da mulher a obra de Deus. (Blake, 2007: 28)

    Detalhes ou desdobramentos de sua proclamao de que tudo o que

    vive sagrado.

    Em outras passagens, Blake chegou a referir-se ao mundo vegetal.

    Isso foi interpretado por estudiosos (por exemplo, Harold Bloom e

    Northrop Frye) como depreciao da natureza. Mas no s em O

    casamento do cu e do inferno, porm em suas Canes da inocncia e

    experincia, a natureza manifestao do divino. Um dos exemplos, o

    antolgico poema sobre o tigre:

    [...]Tygre, Tygre, fogo ativo,Nas florestas da noite, vivo,

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  • 38ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    Que mo imortal armariaTua terrvel simetria? (Blake, 2005: 121)

    Ameaadora e destruidora ou bela e sublime, a fera , em sua

    ambivalncia, a manifestao e encarnao de Deus.

    O encantamento diante da natureza marca inmeros dentre os autores

    romnticos, desde Rousseau, que criou o termo romantismo e idealizou o

    natural. Sua expresso mais intensa est na poesia de Wordsworth. E tambm

    em um iniciador do romantismo francs, Chateaubriand: multiplicador de

    bons selvagens, exerceu enorme influncia sobre romnticos brasileiros;

    est na gnese do indianismo, tanto de Gonalves Dias quanto de Jos

    de Alencar.

    Mas obrigatrio, ao se comentar a associao da viso romntica da

    natureza ao paganismo, citar um conhecido poema de Grard de Nerval:

    VERSOS DOURADOSCus! tudo sensvel.

    PitgorasHomem! livre pensador! sers o nico que pensaNeste mundo onde a vida cintila em cada ente? De tuas foras tua liberdade dispe naturalmente,Mas teus conselhos todos o universo dispensa.

    Honra na fera o esprito que fermenta...Cada flor uma alma em Natura nascente;Um mistrio de amor no metal reside dormente;Tudo sensvel! E poderoso em teu ser se apresenta.

    Receia, no muro cego, um olhar curioso: prpria matria encontra-se um verbo unido...No te sirvas dela para qualquer fim impiedoso!

    Quase sempre no ser obscuro mora um Deus escondido.E, como um olho novo coberto por suas plpebras,Um esprito puro medra sob a crosta das pedras! (Nerval, 1995: 24)

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  • 39ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

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    No se trata apenas, nesse poema, de encantamento frente ao natural,

    porm de vitalismo e pantesmo. Para Nerval, a flor tem alma; o

    muro, um olhar; em tudo, em cada coisa, h um Deus escondido.

    J foi observada, por Octavio Paz e outros, a sincronia desse poema

    de Nerval com aquele, seu contemporneo e igualmente famoso, de As

    flores do mal de Baudelaire:

    CORRESPONDNCIASA Natureza um templo onde vivos pilaresDeixam filtrar no raro inslitos enredos;O homem o cruza em meio a um bosque de segredosQue ali o espreitam com seus olhos familiares.

    Como ecos longos que distncia se matizamNuma vertiginosa e lgubre unidade,To vasta quanto a noite e quanto a claridade,Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

    H aromas frescos como a carne dos infantes,Doces como o obo, verdes como a campina,E outros, j dissolutos, ricos e triunfantes,

    Com a fluidez daquilo que jamais termina,Como o almscar, o incenso e as resinas do Oriente,Que a glria exaltam dos sentidos e da mente. (Baudelaire, 1995: 125)

    Como se sabe, Baudelaire foi contraditrio e paradoxal. Manifestava-

    se em favor do artificial e abominava a natureza e o natural. Foi o

    que declarou o poeta em seus elogios modernidade e sua defesa da

    imaginao: Acho intil e fastidioso representar aquilo que , porque

    nada daquilo que existe me satisfaz. A natureza feita, e prefiro os

    monstros de minha fantasia trivialidade concreta. (Idem: 804).

    Mas em Correspondncias a natureza um templo; lugar sagrado.

    O poema uma proclamao em favor do pensamento analgico,

    afirmando sua crena nas correspondncias entre macrocosmo, o universo,

    e microcosmo, o mundo natural.

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  • 40ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

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    De Baudelaire os simbolistas adotaram a doutrina hermtica das

    correspondncias de macrocosmo e microcosmo; o dandismo e as

    provocaes (no texto e na vida); o satanismo; o culto ao artificial

    e anti-naturalismo e muito mais. A conhecida narrativa de J-K.

    Huysmans, s avessas, o brevirio da decadncia (Huysmans, 1987),

    expe essa potica e viso de mundo atravs da histria do aristocrata

    que se isola e constri um ambiente absolutamente artificial. Em outra

    de suas narrativas, En rade (Huysmans, 1984), o mundo natural um

    cenrio de horror que se confunde com os pesadelos de seu protagonista.

    A natureza importante na poesia de outro simbolista, Jules Laforgue.

    Mas, de modo muito original, retira-a da Terra em Litanias da Lua e a

    transfere para nosso satlite no poema Clima, fauna e flora da Lua

    (Laforgue, 1989: 73).

    No mbito do surrealismo, herdeiro e continuador do simbolismo, a natureza

    no ressurge apenas atravs do apreo por culturas arcaicas, sociedades

    tribais, seus mitos e criaes, atravs de obras capitais como Le miroir du

    mrveilleux, de Pierre Mabille, a antologia de contos e mitos indgenas

    preparada por Benjamin Pret e os relatos de viagens etnogrficas de Michel

    Leiris, entre outros. Recebe um tratamento especialmente original em uma

    obra matricial, O campons de Paris, de Louis Aragon, de 1926. A segunda

    parte dessa narrativa intitula-se O sentimento da natureza no parque Buttes-

    Chaumont. Possudo pela vertigem do moderno, pela sensao de tocar

    numa fechadura do universo, o narrador pe-se a descobrir o semblante

    do infinito sob as formas concretas que me escoltavam, andando ao longo

    das alias de terra. Reencontra o sagrado: Pareceu-me que o homem est

    pleno de deuses como uma esponja imersa em pleno cu. Para ele, Tudo

    o que extravagante no homem e o que h nele de errante, de extraviado,

    sem dvida poderia caber nessas duas slabas: jardim (Aragon, 1996: 140-

    145). E acaba por concluir que a natureza equivale ao inconsciente.

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  • 41ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    Jardins urbanos e parques so lugares, portanto, de um encontro

    de duas esferas ou planos; equivalem a uma sntese do consciente e

    inconsciente:

    A experincia sensvel aparece ento para mim como o mecanismo da conscincia e a natureza, v-se no que ela se torna: a natureza meu inconsciente. Aquilo a que meus sentidos se entregam, para falar a linguagem do hbito, no est separado dela. Mas por instantes, em limiares raros, reconheo esse liame que une os dados dos meus sentidos, alguns desses dados, prpria natureza: ao inconsciente (Idem: 150).

    O encontro com a idia antiga da natureza leva-o ao mito: seria

    possvel perguntar se no existiria hoje um sentimento mtico particular,

    eficaz, que se restringisse quilo que outrora foi a natureza (Ibidem:

    152).

    Aragon , inequivocamente, um baudelairiano; sua vertigem do

    moderno est em perfeita relao de continuidade com o que Baudelaire

    escreveu em O herosmo da vida moderna em Salo de 1846 e os

    subsequentes elogios modernidade. Oferece um quadro de referncia

    para situar o tratamento dado natureza e ao natural na obra de alguns

    poetas, atravs de termos ou categorias binrias: mito e logos, sagrado e

    profano, pensamento analgico e lgica do discurso, potico e prosaico,

    natural e urbano, inconsciente e consciente.

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    Depois dos romnticos e precedendo o modernismo, a literatura

    brasileira teve Cruz e Souza entre outras qualidades, um poderoso

    poeta da natureza, reproduzindo e multiplicando, de modo exuberante, as

    correspondncias de Baudelaire. Em um de seus derradeiros sonetos, Luz

    da natureza, o lugar Onde a f do meu sonho se condensa! (Cruz e

    Souza, 2008: 543); em uma de suas prosas, Manh destio, o lugar

    de todas as sinestesias, destes murmrios todos, pelo fenmeno acstico

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  • 42ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

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    da recepo e transladao dos sons, como em placas fotogrficas

    (Cruz e Souza, 2008a: 375) como se desse aula sobre sinestesias

    baudelairianas; e, precursor, usasse uma ento inexistente aparelhagem

    sonora para ampli-las.

    Modernistas brasileiros celebraram, notoriamente, a natureza. Foram

    continuadores do nativismo romntico. Em todos os grupos Verde, Anta,

    e at mesmo, de modo mais refinado e crtico, na Poesia Pau Brasil

    de Oswald de Andrade, h uma representao do Brasil: a pujana da

    natureza seu emblema e metfora.

    Dentre aqueles poetas brasileiros que podem ser associados ao

    modernismo, certamente o mais telrico, em cuja obra o binmio

    natureza-inconsciente, identificando os dois termos, se apresenta de modo

    mais forte, Jorge de Lima. Especialmente, em Inveno de Orfeu, sua

    colossal epopia, um monumento literrio. H testemunhos de que partes

    desse poema de longo curso foram escritos em estado sonamblico ou

    delirante (Cf. Willer, 2008), enquanto seu autor era consumido pela

    doena que o mataria.

    Mas Jorge de Lima j antecipara o delrio e o surrealismo na poesia

    nativista de Poemas negros; e, especialmente, no Livro de sonetos:

    No procureis qualquer nexo naquiloque os poetas pronunciam acordados,pois eles vivem no mbito intranqiloem que se agitam seres ignorados (Lima, 1997: 473).

    Tambm nos sonetos, a efuso telrica:

    Entre a raiz e a flor: o tempo e o espao,e qualquer coisa alm: a cor dos frutos,a seiva estuante, as folhas imprecisase o ramo verde como um ser colao (Idem: 474).

    Mas em Inveno de Orfeu o poeta sonmbulo, em transe febril, desce

    a um mundo arquetpico, pr-verbal e pr-civilizado:

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  • 43ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

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    O cu jamais me d a tentao funestade adormecer ao lu, na lomba da floresta,

    onde h visgo, onde certa erva sucosa e friacarnvora de certo o sono nos espia.

    Que culpa temos ns dessa planta de infncia,de sua seduo, de seu vio e constncia? [...]

    Minha cabea estava em pedra, adormecida,quando me sobreveio a cena pressentida.

    Em sonmbulo arriei os ps e as mos culpadosdos passos e dos gestos em vo desperdiados [...] (Ibidem: 525).

    Em Jorge de Lima, a natureza total; luxuriante, ao longo da epopeia

    em que se props a cantar de cantos como um novo Orfeu:

    a bela natureza com seus ouros,relembranas incertas, noviciados,fagotes bifurcados e barrocos (Ibidem: 589).

    Ainda a propsito de surrealistas, ou dos poetas brasileiros com maior

    afinidade com o surrealismo, o pensamento analgico e a sacralizao do

    natural reaparecem em Manoel de Barros. um poeta do microcosmo,

    das pequenas coisas. E, assim como os msticos, hermticos e neo-

    platnicos, enxerga o universo em cada coisa; o alto no baixo, o maior

    no menor. Outro poeta com relao ao qual Correspondncias de

    Baudelaire serve como paradigma.

    Por exemplo, em O Guardador de guas:

    XX[...]Nas brisas vem sempre um silncio de garas.Mais alto que o escuro o rumor dos peixes.Uma rvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa afazer parte dos pssaros que a gorjeiam.Quando a r de cor palha est para ter - ela espicha os

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  • 44ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

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    olhinhos para Deus.De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdemo rumo das grotas.Todas estas informaes tm uma soberba desimportncia cientfica - como andar de costas (Barros, 2010: 253).

    E, de modo quase expositivo, didtico, tambm desdobrando ou

    multiplicando correspondncias, em O livro das ignoras, na parte

    intitulada Mundo pequeno:

    IO mundo meu pequeno, Senhor.Tem um rio e um pouco de rvores.Nossa casa foi feita de costas para o rio.Formigas recortam roseiras da av.Nos fundos do quintal h um menino e suas latas maravilhosas.Todas as coisas deste lugar j esto comprometidas com aves.Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que esto no incndio.Quando o rio est comeando um peixe, Ele me coisa Ele me rEle me rvore.De tarde um velho tocar sua flauta para inverter os ocasos (Idem: 315).

    4

    A Gerao Beat norte-americana formou-se em ambientes metropolitanos;

    especialmente aquele de Nova York. Mas teve grandes cultores da

    natureza. Entre eles, seu porta-voz, Jack Kerouac que entra neste

    ensaio por ter escrito obra especificamente potica, e por haver sido,

    em suas narrativas, um extraordinrio poeta em prosa. Maravilhava-se

    diante das paisagens e amplides norte-americanas, como neste trecho

    de On the Road:

    [...] tambm havia amplitudes selvagens no Leste; era a mesma imensido na qual Bem Franklin se arrastara no tempo dos carros de boi quando era agente do correio, a mesma imensido

  • 45ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    do tempo em que George Washington era um recruta destemido que combatia os ndios, quando Daniel Boone contava histrias sob lampies na Pensilvnia e prometia encontrar a passagem no Desfiladeiro, quando Bradford abriu sua estrada e os homens subiram ruidosamente por ela construindo suas cabanas de toras (Kerouac, 2008: 138).

    E no registro de seu isolamento no topo de uma montanha em Anjos

    da desolao. Ou em seus Hai-kais ocidentais, sintticos, em um

    aparente contraste com o que sua prosa tem de hiperblico, exagerado,

    marcado por frases extensas:

    Pssaros cantando no escuro- Aurora chuvosa (Kerouac, 1971: 43)

    Outro beat importante, o zen-budista Gary Snyder, autor de inmeros

    poemas de louvao natureza, como este, calcado em uma prece dos

    ndios Mohawk, na forma de cntico:

    Gratido Me terra, que navega noite e dia e a seu solo: rico, raro e doce em nossas mentes assim seja. Gratido s Plantas, folha voltada pro sol, que se transforma com a luz e pelos radiculares vistosos; em p, firme, resistindo ao vento e chuva; sua dana est no gro espiral que brota em nossas mentes que assim seja

    [...]Gratido ao Grande Cu que comporta bilhes de estrelas e vai ainda alm alm de todos os poderes e pensamento e ainda est dentro de ns Av Espao. A Mente sua Esposa assim seja (Snyder, 2005: 117)

  • 46ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    So, vrios dentre os poemas de Re-habitar, explicitamente polticos;

    manifestos ambientalistas:

    Os EUA lentamente perderam seu mandatoda metade at o fim do sculo vintenunca deram s montanhas e rios, rvores e animais, um voto [...] (Idem: 131).

    Ter Piva, ao propor um Sindicato da natureza, se inspirado em

    Snyder? possvel. O autor de Parania tambm conhecia outro poeta

    beat da natureza, de especial interesse para a presente argumentao:

    Michael McClure, que equiparou o eu profundo dos msticos, a

    verdadeira natureza humana, a um mamfero, e no a uma entidade

    espiritual, extra-mundana ou supra-terrena:

    QUANDO UM HOMEM NO ADMITE SER UM ANIMAL, ele menos que um animal. O grande MAMFERO William Blake importante pela beleza que apresenta, pela clareza da sua viso e pelo seu exemplo. [...] O homem um mamfero se experimentando. [...] O HOMEM NO UM ISMERO DE MAMFERO ele precisamente um mamfero. A rota para essa conscincia necessariamente biolgica. A poesia biolgica (McClure, 2005: 134).

    A identificao com mamferos e grandes predadores ilustrada por

    seus poemas de glossolalias e onomatopeias, a exemplo deste trecho:

    [...] HUUUUUUUUUU! HUUUUUU! GRAHH!GRUUUUUUUUUUUUUH! GRUUUUUUUUH! NAHHR!MHII1Gruuuuuuuur gruhta.MUAHH!Griiiiiiiii-gruuuuuuuuuuuuuu.GARHRRRRUUUUUUUUUUUUHRHUUG CLAUBB [...] (Idem: 216).

  • 47ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    Em vrios de seus escritos e na entrevista publicada na edio brasileira,

    A nova viso: de Blake aos Beats, McClure detalha e d exemplos:

    [...] a no ser que nos dermos conta de que um animal muito mais que o homem socializado considera, no teremos noo da amplitude de fronteiras e serem exploradas. [...] Eu fiz uma leitura de um poema de Ghost tantras para quatro lees num zoolgico e tivemos a sorte de ter gravado os animais rugindo junto com os poemas. Mais tarde, me pediram para fazer isso novamente para um grupo de documentaristas e de novo os lees me acompanharam na leitura. [...] H uma forte conexo entre o Ghost tantras e a minha crena de que quando um homem no admite que um animal, ele menos que um homem (Ibidem: 203-205).

    O portugus contemporneo Herberto Helder um poeta total: do

    sagrado e do profano, da palavra, do corpo; e um poderoso poeta da

    natureza. Poticas e modos de expressar-se de Helder e McClure so

    bem diversas. Mas como se, em poemas da srie Selos, de 1989,

    com ecos ou reminiscncias de quando morou em Angola, Helder

    comentasse ou ilustrasse McClure:

    So estes leopardo e leo: carne turva eatravessadamente rtmica a sonhar nas noites de gua aos buracos. [...]Montanhas das fricas,montanhas das rvores que sangram.H tanto ar rodeando as rvores nas montanhas: na sua animalidade dourada, lees e leopardos compactos aligeiram-secomo o ar onde crescem as montanhas. [...]Leopardos vivos debaixo das coroas, e os lees que algum soprou na boca. Como descem o are a gua das montanhas, comose embrenham pelas rvores sangrando no escuro e saem ao reluzir dos dedos e aos cantosroucos, nas fricas (Helder, 1991: 558).

    Em ambos, Helder e McClure, h correspondncia entre o rugido das

    feras e dizer poemas:

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  • 48ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    [...] O caos encontrava o equilbrio dos algarismos. Talvez cantassem, leo e leopardocomigo: garras e unhas lunadas, gargantas, as mesmaspupilas bruscas, a mesma seiva, o mesmo furordourado na escurido [...] (Idem).

    E, de modo mais incisivo, para no deixar dvidas quanto sincronia

    das vozes do animal e do poeta:

    [...] comea a ferver a luz como uma coroao, a realeza do poema animal leopardo e leo. Oh,cantam em msica humana, eles, no tronodas montanhas das fricas redivivas (Ibidem).

    5

    Semelhante identificao do animal ao sagrado, como se observa em

    Snyder, McClure e Helder, entre outros, tem fundamento em cosmovises

    e doutrinas arcaicas. substncia dos mitos, dos relatos daquele tempo,

    quando os animais falavam, como dito nas fbulas. Atestam-no

    totens, imagens teriomorfas (hbridas de animal e homem) desde as

    inscries em cavernas, os abraxas gnsticos e divindades animalescas

    em uma diversidade de manifestaes (Cf. Willer, 2010).

    correta a observao de Alain Danilou sobre o valor religioso do

    animal nas sociedades arcaicas, em Shiva e Dioniso:

    No universo csmico, os princpios que se manifestam nos deuses, nos gnios e nos homens tambm aparecem no mundo animal, vegetal e mineral. [...] Alguns animais, por sua natureza e pelos smbolos que representam, so sempre associados a certos deuses. Cada aspecto do divino est ligado a uma espcie animal, como o elefante de Indra (o rei do cu), o carneiro de Agni (deus do Fogo), o rato de Ganesha, o abutre de Vishnu, etc. Os princpios representados por Shiva e a deusa correspondem natureza do touro, da serpente, da pantera (s vezes substituda pelo tigre e pelo leo) e, no caso, venerados em Creta (Danilou, 1989: 97).

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  • 49ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    O estudioso ainda associa os grandes mamferos predadores, com

    aqueles com que McClure se relaciona preferencialmente, a Dioniso:

    Na tradio dionisaca, o leopardo consagrado a Dioniso e as mnades so assimiladas a panteras. [...] O carro sobre o qual se apresenta Dioniso , s vezes, puxado por panteras. As mnades brincam com panteras (Idem: 102).

    No h evidncia de que McClure e Helder conheam a obra de

    Danilou. E a busca de uma integrao profunda com o mundo natural

    por McClure precede cronologicamente a publicao de Shiva e Dioniso.

    Mas essa foi uma das obras de cabeceira de Piva, justificando terminar

    o presente artigo com a citao de mais algumas de suas contribuies

    ao tema. Em especial, nas etapas finais de sua obra, constitudas pelos

    livros Ciclones e Estranhos sinais de Saturno.

    Em Ciclones, a tnica dominante a oposio da vida natural e

    urbana:

    piratasplantadosna carne da aventuradesertaremos as cidadesilhas de destroos (Piva, 2008: 44).

    Manifesta-se pelos direitos no-/humanos do planeta (Idem: 56),

    sonhando sadas / definitivas da / cidade-sucata (Ibidem: 58), impelido

    pela fora do xam que provm do nada / do xtase / do Eros

    (Ibidem: 64), pois

    a rua muito estreitapara o exrcito de folhas & seu AX (Ibidem: 65).

    A primeira parte de Ciclones composta por flashes, registros de

    instantes de encantamento:

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  • 50ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    gaivotasestrelas que despencamno mar& se eclipsam (Ibidem: 32)

    A reintegrao equivale a uma experincia alucinatria:

    Bacome transformanum astro vibratriocom este elixirde cacto selvagem (Ibidem: 33)

    Ou:

    miraculosa Cannabisplanta do incesto do sol com as guas (Ibidem: 54)

    Em seu derradeiro livro, Estranhos sinais de Saturno, alternam-se

    invocaes e antemas Os rios revoltados sabero / vingar-se

    (Ibidem: 125) , reafirmaes do carter sagrado da natureza e vises

    da metrpole como cenrio de horror:

    E para que ser poeta em tempos de penria? Exclama Hlderlin adoidadoassassinos travestidos em folhagenshordas de psicopatas atirados nas praasenquanto os ltimos poetasperambulam na noite acolchoada (Ibidem: 149)

    O final de Estranhos sinais de Saturno cronologicamente, o final

    de sua criao potica a srie intitulada Uma dimenso extrema;

    sobre plantas; e todas essas plantas com uma funo mgica, por isso

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  • 51ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    presentes em rituais do sincretismo afro-brasileiro ou de ndios, assim

    propiciando ligaes com o sagrado: Guarapuvu, Jurema preta,

    Grumixama, Espinheira Santa, Ip roxo e Pau-ferro.

    Mas um dos poemas de Ciclones, dedicado a um pai de santo, um

    babalaorix do candombl, equivale a um manifesto; incorpora temas,

    categorias e tpicas expostas neste ensaio. Por isso, merece completar

    a presente srie. A observar como anforas e repeties lhe conferem

    ritmo, fora e carter litrgico:

    Ritual dos 4 ventos & dos 4 gavies para Marco Antonio de Ossain

    Eu trago os guardies dos Circuitos Celestes Livro dos Mortos do antigo Egito

    Ali onde o gavio do Norte resplandece sua sombraAli onde a aventura conserva os cascos do vodu da auroraAli onde o arco-ris da linguagem est carregado de vinho subterrneoAli onde os orixs danam na velocidade de puros vegetaisRevoada de pedras do rioOlhos no circuito da Ursa Maior na investida loucaOlhos de metabolismo floralAlmofadas de florestaFocinho silencioso da suuarana com passos de sabotagemCarne rica de Exu nas couraas da noiteGavio-preto do oeste na tempestade sagradaIncendiando seu crnio no frenesi das aucenasBate o tambor no ritmo dos sonhos espantosos no ritmo dos naufrgios no ritmo dos adolescentes porta dos hospcios

  • 52ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    no ritmo do rebanho de atabaquesBate o tambor no ritmo das oferendas sepulcrais no ritmo da levitao alqumica no ritmo da parania de JpiterCaciques orgisticos do tamborcom meu Skate-gavioTambor na virada do sculo GanimedesIemanj com seus cabelos de espuma

    BibliografiaARAGON, Louis (1996). O Campons de Paris. Apresentao, traduo e notas de Flvia Nascimento. Rio de Janeiro: Imago.BARROS, Manoel (2010). Poesia completa. So Paulo: Leya.BAUDELAIRE, Charles (1995). Charles Baudelaire, Poesia e Prosa. Organizao de Ivo Barroso. Traduo de As Flores do Mal por Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.BLAKE, William (2005). Canes da Inocncia e da Experincia. Traduo, prefcio e notas de Mrio Alves Coutinho e Leonardo Gonalves. Belo Horizonte: Crislida._____ (2007). O Casamento do Cu e do Inferno. Traduo de Alberto Marsicano. Porto Alegre: L&PM.CRUZ E SOUZA (2008). Obra Completa, vol. 1: Poesia. Organizao de Lauro Junkes, Jaragu do Sul, SC: Avenida._____ (2008a). Obra Completa, vol. 2: Prosa Organizao de Lauro Junkes. Jaragu do Sul, SC: Avenida.DANILOU, Alain (1989). Shiva e Dioniso a religio da natureza e do Eros. Traduo de Edison Darci Heldt. So Paulo: Martins Fontes.HELDER, Herberto (1991). Poesia toda. Lisboa: Assrio & Alvim. HUYSMANS, J. K. (1987). s avessas. Traduo e prefcio de Jos Paulo Paes. So Paulo: Companhia das Letras._____ (1984). En rade. Paris: Gallimard.KEROUAC, Jack (2004). On the Road: P na Estrada. Traduo de Eduardo Bueno, Porto Alegre: L&PM. _____ (1971). Scattered Poems. San Francisco: City Lights.LAFORGUE, Jules (1989). Litanias da Lua. Traduo de Rgis Bonvicino. So Paulo: Iluminuras.LIMA, Jorge de (1997). Poesia Completa. Organizao de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.MABILLE, Pierre (1962). Le miroir du merveilleux. Paris: Les ditions du Minuit.MCCLURE, Michael (2005). A Nova Viso de Blake aos Beats. Traduo de Daniel Bueno, Luiza Leite e Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue.NERVAL, Grard de (1991). Aurlia. Traduo e prefcio de Contador Borges. So Paulo: Iluminuras.PERET, Benjamin (1960). Anthologie des mythes, lgendes et contes populaires dAmrique. Paris: ditions Albin Michel.PIVA, Roberto (2008). Estranhos sinais de Saturno obras reunidas, volume 3.

  • 53ecopoltica, 6: mai-ago, 2013

    alguns poetas da natureza e o sagrado, 35-53

    Organizao de Alcir Pcora. So Paulo: Globo.SNYDER, Gary (2005). Re-habitar. Traduo de Luci Collin; organizao de Luci Collin e Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue.WILLER, Claudio (2006). A escrita automtica e outras escritas. http://www.revista.agulha.nom.br/ag54willer.htm (consultado em 27/08/2013)._____ (2010). Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira.