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Os artigos publicados nos são indexados por Clase cadernos Nietzsche São Paulo – 2001 N o 11 ISSN 1413-7755 cadernos Nietzsche

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Os artigos publicados nos

são indexados por Clase

cadernosNietzsche

São Paulo – 2001

No 11ISSN 1413-7755

cadernosNietzsche

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no 11 – São Paulo – 2001ISSN 1413-7755

Editor / Publisher: GEN – Grupo de Estudos NietzscheEditor Responsável / Editor-in-Chief

Scarlett Marton

Editor Adjunto / Associated EditorVânia Dutra de Azeredo

Revisor / ReviserFernando de Moraes Barros

Conselho Editorial / Editorial AdvisorsErnildo Stein, Gerd Bornheim, Paulo Eduardo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho

Comissão Editorial / Associate EditorsAndré Luís Mota Itaparica, Clademir Luís Araldi, Ivo da Silva Júnior, Sandro Kobol Fornazari,

Wilson Antônio Frezzatti Júnior, Alberto Marcos Onate

Endereço para correspondência / Editorial Officescadernos Nietzsche

Profa. Dra. Scarlett MartonA/C GEN – Grupo de Estudos Nietzsche

Departamento de Filosofia – Universidade de São PauloAv. Prof. Luciano Gualberto, 315

05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel.: 55-11-3818.3761 – Fax: 55-11-3031.2431

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cadernos Nietzsche é uma publicação do

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Projeto gráfico e editoração / Graphics Editor: Logaria Brasil®Foto da capa / Front Cover: C. D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818

1.000 exemplares / 1.000 copies

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Fundado em 1996, o GEN – Grupo de EstudosNietzsche – persegue o objetivo, há muito acalenta-do, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamen-to de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acer-ca de questões que dele emergem.

As atividades do GEN organizam-se em torno dosCadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que têmlugar em maio e setembro sempre em parceria comdiferentes departamentos de filosofia do país.

Procurando imprimir seriedade aos estudos nietzschia-nos no Brasil, o GEN acolhe quem tiver interesse, porrazões profissionais ou não, pela filosofia de Nietzsche.Não exige taxa para a participação.

Scarlett Marton

GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – was founded in1996. Its aim is to gather Brazilian researchers onNietzsche’s thinking, and therefore to promote the dis-cussion about questions which arise from his thought.

GEN’s activities are organized around its journal andits meetings, which occurr every May and Septemberin different Brazilian departments of philosophy.

GEN welcomes everyone with an interest in Nietzsche,whether professional or private. No fee for member-ship is required.

Scarlett Marton

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Sumário

O corpo-escritura de Nietzsche 7Sandro Kobol Fornazari

Homem e estilo em Nietzsche 13Germán Meléndez

Um estilo de coisas cansadas,quase perdidas. Notas sobre“Homem e estilo em Nietzsche”de Germán Meléndez 41Marcelo Percia

Caminhos de Dioniso:Platão e Nietzsche(a propósito do diálogo Symposium) 59Rachel Gazolla

Arte e Conhecimento em Nietzsche 87Olímpio Pimenta

Perspectivas

Nietzsche na filosofia atual:o eterno retorno comoacontecimento do pensar 101Estela Beatriz Barrenechea

A emancipação da mulher 107Silvio Juan Maresca

Trabalho, escravidão, rivalidadeUm modo de organização social trágico 113Roberto Mario Magliano

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Sobre o futuro de nossosestabelecimentos educacionais 121Osvaldo Langellotti

Filosofia Trágica e Iluminismo 127Mónica Virasoro

Aspectos do paganismono pensamento de Nietzsche 135Leandro Pinkler

O ateísmo como vontade de ocaso 143Raúl A. Yafar

A verdade em Nietzsche 155Guillermo A. Maci

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O corpo-escritura de Nietzsche

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* Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

O corpo-escriturade Nietzsche

Sandro Kobol Fornazari*

Resumo: Suscitado pela leitura de “Homem e estilo em Nietzsche” deGermán Meléndez, este artigo pretende indicar uma via de discussão so-bre o ato de criação filosófica, tendo como perspectiva a reflexãonietzschiana sobre o tema. Reflete-se sobre as possibilidades de leitura deNietzsche, na medida em que tomar contato com seus pensamentos seriaser atravessado pela tensão de seu corpo-escritura.Palavras-chave: corpo – estilo – filosofia – “estado de fato”

“Ricardo Reis tem uma curiosidade para satisfa-zer, [e pergunta a Fernando Pessoa,] Quem estiver aolhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-oa si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu,Uma soma de nós ambos dividida por dois, Não, di-ria antes que o produto da multiplicação de um pelooutro, Existe essa aritmética, Dois, sejam eles quemforem, não se somam, multiplicam-se.” (O Ano daMorte de Ricardo Reis, José Saramago).

Escrever, exprimir “estados internos” ou “estados de fato”, darà expressão uma multiplicidade que atravessa o corpo, ou melhor,que é o corpo, fazer-se palavra. Processo involuntário de identifica-ção entre mundo e linguagem, o que se faz palavra é o efetivar-se

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da existência, carne que se faz verbo, corrigindo a narrativa do evan-gelho de João1. O estilo de Nietzsche, mais propriamente, os estilosde Nietzsche são o resultado desses trasbordamentos de forças quebuscam a cada vez estender sua potência.

Escreve Nietzsche em Ecce Homo: “Ouve-se, não se procura;toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz como re-lâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma – nunca tiveaqui uma escolha.” (EH/EH, Assim Falava Zaratustra § 3). Não terescolha é constatar a ilusão da subjetividade pura, do intelecto“alheio ao tempo e à dor” (GM/GM III § 12), na medida em que opensamento é exatamente tempo e dor, “vivências” corporais comosuas condições de possibilidade, “testemunho” da pluralidade deafetos, de olhares. Todo pensamento tem origem no corpo, no modocomo este impõe exigências ao mundo ou, ao contrário, no modocomo responde às ameaças com que se depara. O corpo, nunca édemais ressaltar, entendido como singular conformação de impul-sos, organização provisória da multiplicidade sob uma determinadaperspectiva. A palavra é expressão de uma vida ascendente ou deseu contrário, uma vida declinante, em fuga.

Mas o pensamento, que comumente identificamos ao conteúdo,é também forma, isto é, estilo. Poemas, aforismos, dissertações, au-tobiografia, cada estado de fato encontra sua adequada expressãoestilística – também cada parágrafo, frase, palavra. Indissociáveis,portanto, pensamento (vida) e estilo (obra), um reenvia ao outro;antes de qualquer outra coisa, é pela forma que travamos contatocom um conceito.

Germán Meléndez, com seu artigo “Homem e estilo emNietzsche”, identifica algo mais, sumamente importante: o esforçode Nietzsche em mostrar que sua obra é a de um indivíduo incon-fundível e, em contrapartida, que apenas através do contato diretocom seu estilo é que se pode compreender corretamente seu pensa-mento. Nietzsche quer se fazer visível, quer mostrar quem são seus

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escritos: daí o esforço prematuro de escrever aos 44 anos uma au-tobiografia (obviamente não sabia que não teria outra chance) emque assume o dever de declarar “eu sou tal e tal” (EH/EH, Prólogo§ 1). Quando ali narra a história de Assim Falava Zaratustra, nocapítulo ou subcapaítulo dedicado a essa obra, Nietzsche não serefere a precursores, estudos, debates acadêmicos, refere-se sim asuas viagens e caminhadas em Surlei e pela Itália: Chiavari, Roma,Nice. Agilidade muscular e força criadora seriam indissociáveis paraNietzsche, só levava a sério pensamentos surgidos ao ar livre, nun-ca quando se estava sentado. Modos idiossincráticos de criação filo-sófica: assim se manifestava nele Nietzsche, e apenas nele, a possi-bilidade de uma vida afirmativa, o modo como seu corpo impunhasuas exigências ao mundo, criando a si mesmo e à sua obra, ousendo arrebatado por ela.

Nietzsche quer se fazer visível, mas sua luz mais própria, diráMeléndez, mais que a história visceral do surgimento de seus escri-tos, é seu estilo, aquilo que o singulariza toda vez em que um pen-samento se expressa, toma forma. Por isso, afirma, não se podeadequadamente compreender Nietzsche senão através de sua pró-pria obra, de uma “leitura sem intermediários”, do contato com asmúltiplas formas em que ela se apresenta. O estilo deixa claro qualé a perspectiva a partir de que se fala, por mais provisória que sejaa unidade alcançada que originou tal perspectiva.

O próprio Nietzsche trabalha essa questão quando do anúnciodo eterno retorno em Assim Falava Zaratustra. Em “O convales-cente”, Zaratustra resolve finalmente desafiar seu pensamento doeterno retorno para que ele se pronuncie, depois de mais de umavez haver recusado sua vinda. Antes que seja capaz de fazê-lo, con-tudo, vêm a ele o nojo e o desespero de saber que o homem não épassível de aperfeiçoamento, que é eterno também o retorno dopequeno homem (que nega e se ressente da vida), e diante disso serincapaz de superar o niilismo, a proclamação de que a vida não

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vale a pena. Zaratustra cai enfermo e permanece um longo tempoem convalescença. Seus animais, a águia e a serpente, é que vãoromper o silêncio incitando Zaratustra a cantar, a criar uma novalira para novas canções. Cantar: tornar-se aquilo que ele é, ou seja,o mestre ensinador do eterno retorno. Criar uma nova lira: dar novaforma ao seu pensamento, criar para ele um estilo único. (Mas nãoé isso o que faz o próprio Nietzsche com seu Zaratustra, ou seja,criar uma forma nova de expressão filosófica que desse conta acimade tudo do pensamento do eterno retorno?)

Os animais roubam a palavra de Zaratustra e fazem eles mes-mos o esperado anúncio, Zaratustra não está sadio o suficiente paraisso. Ele deve ainda atravessar seu “grande silêncio” como estraté-gia de cura e fortalecimento, mas principalmente como ensejo paraa criação de uma nova lira que lhe permitisse cantar em exaltação àvida e à eternidade.2 Toda canção exige um instrumento adequado,mesmo Zaratustra tem de se tornar esse instrumento para ser capazde abraçar seu pensamento do abismo. Do mesmo modo Nietzscheteve de se tornar Assim Falava Zaratustra, fazer-se palavra e estilopara expressar o eterno retorno de todas as coisas.

O artigo de Meléndez assume que é possível falar acerca de umtema qualquer em Nietzsche, mas por princípio não se pode pres-cindir da forma em que este assunto aparece em determinado localpara termos um acesso adequado ao seu pensamento. Mas o autorde fato deixa transparecer que tal “acesso adequado” é justamenteo contrário de uma mera “compreensão correta”.

Pois, se a obra de Nietzsche é expressão direta do “estado defato” nietzschiano, corpo que se faz pensamentos, que dá a si mes-mo novos contornos que extrapolam sua suposta organicidade, en-tão ler Nietzsche não seria justamente ser atravessado pela mesmatensão que precipitou tais pensamentos? Se respondermos que sim,então ler Nietzsche ou escrever sobre ele não é apenas um “exercí-cio de estilo”. Sua filosofia é o acontecimento Nietzsche, ou vários

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O corpo-escritura de Nietzsche

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acontecimentos Nietzsche, oportunidades para que uma dada hie-rarquia pulsional expanda sua potência, torne-se visível e audível.Ler ou escrever sobre Nietzsche, nesse sentido, é certas vezes maisque o compreender, é permitir que com ele se componham formasnovas, estilos, é ensejar que com ele novos mundos (hierarquias) seexpressem. A leitura que a filosofia de Nietzsche convida a que sefaça de si exige a interferência daquele que lê com aquilo que estáescrito, tocar e deixar-se tocar pelo corpo-escritura que ali se fezexpressão, compor com ele uma nova multiplicidade. Não é outracoisa que faz Meléndez com seu artigo, seduzindo-nos a fazer omesmo.

Abstract: Roused up by the reading of Germán Meléndez’s “Man andStyle in Nietzsche”, this article aims at indicating a certain way to discussthe act of philosophical creation considering Nietzsche’s own reflection onthe theme. It takes into consideration the possibilities of reading Nietzschethrough the presupposition that making contact with his thoughts wouldmean to be crossed by the tension of its script-body.Keywords: body – style – philosophy – “state of fact”

notas

1 João 1, 14.2 Cf. Za/ZA III O outro canto de dança e Za/ZA III Os sete

selos.

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referências bibliográficas

1. FORNAZARI, Sandro K. “O grande silêncio de Zaratus-tra”. In: Fragmentos de cultura, Goiânia, UCG, nov/dez 2000.

2. MELÉNDEZ, Germán. “Homem e estilo em Nietzsche”.In: Cadernos Nietzsche, 11, 2001. São Paulo, Discur-so Editorial.

3. NIETZSCHE, F. Samtliche Werke Kritische Studien-ausgabe. Edição de Colli e Montinari, 15 volumes.Berlim, Walter de Gruyter, 1988.

4. _______. Obras Incompletas. Tr. Rubens R. Torres Filho.São Paulo, Abril Cultural, 2.ª edição, 1978.

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Homem e estilo em Nietzsche

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* Tradução de Sandro Kobol Fornazari.** Professor da Universidad Nacional de Colombia.

Homem e estiloem Nietzsche*

Germán Meléndez**

Resumo: A integridade entre homem e obra insinuada na filosofia deNietzsche permite compreender a importância central, tanto formal comotemática, do estilo em seus escritos. Do ponto de vista temático, pode-seconstatar que em torno da noção de “unidade de estilo” se encontramatados os conceitos centrais de sua filosofia: em especial grandeza, arte epoder. Do ponto de vista formal, o estilo de Nietzsche, ao apontar para aparticularidade de sua pessoa, busca entre outras coisas que suas verda-des sejam abraçadas como verdades incondicionais.Palavras-chave: estilo, grandeza, unidade, multiplicidade, verdade.

Durante suas últimas oito semanas de lucidez, Nietzsche traba-lha num escrito que com o título de Ecce Homo deveria aplainar oterreno para a publicação de uma obra planejada com o título ATransvaloração dos Valores. Recém completados seus 44 anos e aco-metido in media vita de um inigualável sentimento de plenitude egratidão1, Nietzsche decide se entregar à “tarefa extremamente di-fícil de contar a mim mesmo meus livros, minhas opiniões (...) en-fim, me contar minha vida”.2 Nietzsche se encontra convencido danecessidade de chamar a atenção sobre sua pessoa e assim o fazsaber nas primeiras linhas do “Prólogo” a Ecce Homo: “Na antevisão

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de que dentro em breve terei de me apresentar à humanidade coma mais difícil exigência que jamais lhe foi feita, parece-me indispen-sável dizer quem sou eu. No fundo se poderia sabê-lo, pois não me“deixei sem testemunho”. A desproporção, porém, entre a grandezade minha tarefa e a pequeneza de meus contemporâneos, alcançousua expressão no fato de que nem me ouviram, nem sequer me vi-ram. Vivo de meu próprio crédito (...). Nessas circunstâncias há umdever, contra o qual se revolta, no fundo, meu hábito, e mais aindao orgulho de meus instintos, ou seja, de dizer: Ouçam! pois eu soutal e tal. Não me confundam, sobretudo!” (EH/EH, Prólogo § 1)3.

“Quem sou eu?” pergunta-se Nietzsche para em seguida res-ponder: “No fundo se poderia sabê-lo, pois não me ‘deixei sem tes-temunho’”. Nietzsche não pode estar se referindo aqui a outra coisaque a seus escritos previamente publicados. Parece então estar con-vidando a que de início desfaçamos, para seu caso, a habitual dis-tinção entre o pensador e o homem, o autor e a pessoa. Quem éNietzsche? Sua resposta pareceria ser: “Eis (já) ali as obras, eis alio homem”. Ainda mais, Nietzsche destaca que tal evidência pode-ria, em princípio, já ter sido suficiente testemunho de si.4

Não é óbvio à primeira vista que os escritos de um autor te-nham que se interpretar como testemunho de sua pessoa. Muitosautores (e também muitos intérpretes falando em seus nomes) insis-tem, ao contrário, na necessidade de separar claramente o homemda obra. Por ponderadas razões que ele mesmo se encarrega deaportar, Nietzsche não era nem esse tipo de intérprete, nem essetipo de autor.5 Pode-se observar, por exemplo, o que como intér-prete ele disse daqueles autores que costumamos incluir no gênerofilosofia.6 Nietzsche insiste em que neles a filosofia emerge do mais“pessoal”: de seu corpo e, mais concretamente, da saúde ou da en-fermidade do mesmo.7 Nietzsche não concebe a si mesmo como umaexceção no tocante a esta relação entre a filosofia e o corpo como omais pessoal. Pode-se citar, com efeito, o que ele mesmo indica

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Homem e estilo em Nietzsche

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acerca da conexão de suas obras com seu próprio oscilar entre aenfermidade, a convalescença e a saúde. No “Prólogo” à Gaia Ciên-cia, referindo-se a si mesmo, escreve: “Um filósofo que passou pormuitas saúdes, e que sempre passa de novo por elas, também atra-vessou outras tantas filosofias: nem pode ele fazer de outro modo,senão transpor cada vez seu estado para a forma e distância maisespirituais – essa arte de transfiguração é justamente filosofia. Nósfilósofos não temos a liberdade de separar entre alma e corpo (...) emenos ainda temos a liberdade de separar entre alma e espírito.Não somos rãs pensantes, nem aparelhos de objetivação e máqui-nas registradoras com vísceras congeladas – temos constantementede parir nossos pensamentos de nossa dor e maternalmente trans-mitir-lhes tudo o que temos em nós de sangue, coração, fogo, pra-zer, paixão, tormento, consciência, destino, fatalidade.” (FW/GC,Prólogo § 3).8

Nietzsche tem, pois, suas razões para rechaçar a separação en-tre espírito e corpo e, portanto, entre autor e homem.9 Sejam quaisforem estas razões, o certo é que, desde o primeiro até o último,cada um dos escritos de Nietzsche porta um inconfundível e indelé-vel “selo pessoal” como não podem deixar de reconhecer todos seusleitores, tanto os que se sentem atraídos como os que se sentemrepelidos por ele. Isto se explica não tanto pelas ocasionais (ou, com-parativamente, talvez não tão ocasionais) referências expressas a suapessoa, como pelo fato de que cada um de seus escritos exibe umestilo.10 Entenda-se daqui por diante por estilo, para usar uma defi-nição de cabeceira, “a forma individual como o autor dá expressãolingüística a sua particular visão de mundo”.11

Pois bem, neste ponto se poderia fazer eco à conhecida senten-ça: “o estilo é o homem”. E bem se poderá dizer, como veremos,que para Nietzsche a grandeza do primeiro radica na grandeza dosegundo. Contudo, dizer “o estilo é o homem”, tomado por si só eutilizado sem as devidas reservas, resulta vago demais para que se

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corra de imediato o risco de confundir o caso de Nietzsche com ode outros ou de todos os outros. Pois poder-se-ia querer interpretaresta sentença de tal maneira que fosse possível dizer que todo ho-mem tem indefectivelmente seu próprio estilo. Isso pareceria deri-var da legítima compreensão do estilo como algo irredutivelmenteindividual, somada à ligeira suposição de que todo homem portaindefectivelmente desde sempre e para sempre o selo do irreduti-velmente individual. No entanto, uma das particularidades do pen-samento de Nietzsche está em conceber a individualidade como algoque, se tanto, arduamente se ganha e se conquista, algo excepcio-nal a que se chega, a que se ascende. O comum é, pelo contrário,valha a redundância, o ser comum. Em princípio não sou eu quemeu sou. Em princípio não se é quem se é; apenas, se tanto, torna-sequem se é. Não em vão se fala de uma busca de si mesmo. A eva-são, a má compreensão e o ocultamente constituem a relação origi-nária e persistente com respeito a si mesmo.12

É este o lugar para um breve parêntese. Ainda a mais rasa com-preensão da sentença “o homem é o estilo” pode prevenir o leitoracerca de uma falsa expectativa. Toda paráfrase e exegese do pen-samento de Nietzsche, toda apresentação de sua obra, por infor-mada, ajustada e lúcida que se a considere, deixará obrigatoriamentealgo fundamental de fora, talvez o fundamental. Estará inevitavel-mente compelida a deixar o inconfundível de seu estilo de fora e,com isso, precisamente o homem. No caso de Nietzsche, ignorar-se-ia o homem cuja “mais difícil exigência” demanda, como vía-mos, que se saiba quem é. Não há, pois, no que corresponde aoestilo e ao homem, lugar para intermediários, intérpretes, apresenta-dores, enfim, para pessoas interpostas (entre o autor e seus leito-res). Pode ser que a outros autores se possa chegar a conhecer deouvido (ainda que também isto se possa colocar em dúvida). Se sequer conhecer Nietzsche há de se o ler diretamente. Assim, esta alu-são ao estilo oferece um convite a sua leitura sem intermediários.

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Mas adentremos um pouco mais no assunto do estilo. Escuta-mos há alguns instantes Nietzsche afirmar que seu trânsito atravésduma pluralidade de saúdes é nele, por seu turno, o trânsito atra-vés duma pluralidade de filosofias. Deste modo, na obra de Nietzscheencontram lugar não só um mas muitos e variados estilos e, portan-to, não só uma mas muitas e variadas pessoas. Nietzsche mesmofala orgulhosamente da sua como a “mais diversa arte do estilo deque um homem já dispôs.” (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons§ 4; ênfase minha). Estes muitos estilos se podem encontrar disse-minados não só dentro de uma mesma obra mas, com maior razão,distribuídos entre uma obra e outra e entre os diferentes períodosde seu pensamento. Alguém poderia então se sentir tentado a con-cluir que, se bem que, por um lado, o homem e a obra parecemconformar em Nietzsche uma certa unidade ou integridade entre si– unidade que se faria particularmente patente através do estilo, areconhecida pluralidade deste último levaria a pensar, por outrolado, que não há em Nietzsche um só homem se expressando numpensamento unitário. Não seria possível falar de uma obra em sen-tido estrito. Poder-se-ia falar, no limite, de correspondência entreum e outro (por assim dizer), isto é, da unidade que cada parte daobra de Nietzsche guardaria em seu momento com seu respectivoautor.

É freqüente associar a Nietzsche a idéia de uma multiplicidadede máscaras em que se dissolve sua identidade e conceber, em con-cordância, a sua obra como fragmentária. No entanto, nem semprese entendem corretamente estas e similares afirmações pois são en-tendidas unilateralmente como se com elas se excluísse todo o ras-tro de uma unidade capaz de abraçar a (por demais inegável) plura-lidade que exibem os estilos e os pensamentos de Nietzsche. Já opróprio Nietzsche parecia querer se defender contra esta unilatera-lidade num breve aforismo: “Crês que deve ser obra fragmentáriaporque se oferece (e se deve oferecer) em pedaços?” (VM/OS § 128).

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Este breve aforismo leva significativamente por título: “Contra osmíopes”.

Pois bem, para não ir muito além, as apreciações do próprioNietzsche acerca do que constitui o estilo decadente podem ajudara corrigir os tipos de má interpretação antes mencionados: “Comocaracterizar toda décadence literária? Com isto: a vida deixa de es-tar alojada no todo. A palavra se faz soberana e salta fora da ora-ção, a oração transborda e obscurece o sentido da página, a páginaganha vida em detrimento do todo – o todo já não é mais um todo.Mas isto é a imagem para todo estilo da décadence: em todo mo-mento anarquia dos átomos, desagregação da vontade, “liberdadedo indivíduo”, falando moralmente, – ou ampliado a uma teoriapolítica “igualdade de direitos para todos”. A vida, a idêntica vitali-dade, a vibração e exuberância da vida, encerrada nas menores for-mações: o resto, pobre em vida. Por toda parte paralisação, dificul-dade, petrificação ou então hostilidade e caos: as duas coisasfazendo-se cada vez mais patentes à vista mais se ascende a formasde organização mais altas. O todo deixa de ter vida: é algo compos-to, calculado, artificial, um artefato.” (WA/CW § 7).13

A fim de evitar uma nova unilateralidade, desta vez de sinalinvertido, é preciso recordar aqui neste ponto a caracterização queNietzsche faz de si mesmo em Ecce Homo como um decadente ecomo seu contrário: “Pois, sem contar que sou um décadent, soutambém seu oposto.” (EH/EH, Por que sou tão sábio § 2). Destacara presença do plural em Nietzsche reduzindo-o a “uma anarquiados átomos”, teria de eqüivaler então, no melhor dos casos, a umaverdade pela metade. Com efeito, contra toda tendência anarquizanteem matéria de estilo e igualmente contra toda tendência homoge-neizante (que quisesse dotar de uma idêntica vida a cada pequenaparte do todo), Nietzsche insiste desde muito cedo em conceber (eem que, com isso, seus leitores e intérpretes logrem conceber) suaobra e sua pessoa como uma artística sujeição do mais diverso sob

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uma unidade. Tal sujeição do mais díspar constitui, por sua vez,sua definição tanto da grandeza do homem como da grandeza doestilo: uma unidade que não é mas sim que se torna: faz, desfaz erefaz a si mesmo triunfando reiteradamente sobre o mais antitético,não só no sentido do mais dessemelhante e contrário, mas tambémno sentido do mais ocasional e fortuito.14 Como tantas outras coisasem Nietzsche a unidade não é algo dado mas sim criado.

Para que não se tenha que dar por fé esta delicada mas, emminha opinião, decisiva caracterização de Nietzsche como autor ecomo homem que se esforça em corpo vivo por imprimir no múlti-plo a forma do uno e o selo do único (e que como pensador repensao inveterado tema do uno no múltiplo na história da filosofia); paraque se compreenda melhor o sentido da praxis e da teoria da gran-deza do homem e do estilo, devo me deter em dar a tal caracteriza-ção a devida sustentação textual. Ao fazê-lo, notar-se-á como, emtorno a esse duplo conceito de grandeza, juntam-se alguns dos con-ceitos centrais de seu pensamento. Entre eles encontramos, em pri-meiro lugar, dois conceitos centrais e conexos da obra precoce deNietzsche (especialmente do jovem Nietzsche): o conceito de cultu-ra (Kultur) e o de formação (Bildung).

Na primeira de suas Considerações Extemporâneas Nietzsche nosoferece a seguinte definição de cultura: “Cultura é, acima de tudo,unidade de estilo artístico em todas as manifestações da vida de umpovo. Saber muito, ter aprendido muito não é, no entanto, nem meionecessário para a cultura nem é signo da mesma e, chegado o caso,tudo isso resulta compatível ao máximo com o contrário da cultura,com a barbárie, isto é: a falta de estilo ou a caótica confusão [chao-tisches Durcheinander] de todos os estilos.” (DS/Co. Ext. I § 1).

Se algo caracteriza o jovem Nietzsche, é, como se sabe, ser umcrítico da cultura e, muito especificamente, um decidido detratordo caráter desintegrado da cultura moderna. Nietzsche despreza ohomem e a cultura modernos como algo irreparavelmente fragmen-

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tado, disperso, desarticulado, cindido. Esta crítica, que não deixaráde subscrever até o final, toma inicialmente a forma de uma desfa-vorável comparação da cultura moderna (e, muito particularmente,da cultura alemã de seu tempo) com a cultura grega. Ao final dasegunda Extemporânea (“Da utilidade e desvantagem da históriapara a vida”) Nietzsche escreve: “Houve séculos nos quais os gre-gos se encontravam expostos a um perigo semelhante ao que hojenos espreita, a saber, o de acabar varridos pela maré do estranho edo passado, pela “história”. Nunca viveram o orgulho do intocável:sua “formação” [Bildung] foi durante longo tempo um caos de for-mas e conceitos estrangeiros, semíticos, babilônicos, lídios, egípci-os, e sua religião, uma verdadeira pugna das divindades de todo oOriente (...) No entanto, a cultura helênica não se converteu numagregado (...) Aprenderam os gregos gradualmente a organizar ocaos ponderando (...) sobre si mesmos, isto é, sobre suas legítimasnecessidades e descartando as pseudonecessidades (...) Eis aqui umaalegoria para cada um de nós como indivíduo: o indivíduo há deorganizar o caos que leva em si, ponderando sobre suas legítimasnecessidades. Sua honestidade [Ehrlichkeit], sua diligência capaz everaz tem de rebelar-se cedo ou tarde contra o imitar, o copiar e oreproduzir como comportamento exclusivo; chegará então a com-preender que a cultura pode ser outra coisa que uma decoração davida (...) Deste modo se revelará o conceito grego da cultura (...), asaber, que a cultura é uma physis [uma natureza] nova e aperfeiço-ada (...) sem fingimento nem convencionalismo, a cultura como umaharmonia entre o viver, o pensar, o parecer e o querer. Desta formaaprenderá (...) que todo aumento de veracidade promove também,e necessariamente, a exigência que prepara a verdadeira formação:ainda que esta veracidade em algumas ocasiões danifique seriamenteo que naquele tempo oportuno se chama por culto [Gebildetheit15] eseja suscetível inclusive de provocar o desmoronamento de todacultura decorativa.” (HL/Co. Ext. II § 10).

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Plasticidade artística na transformação e incorporação do pas-sado e estranho (cf. HL/Co. Ext. II § 1), ascensão a uma nova eaperfeiçoada natureza e naturalidade, organização do caos, unida-de do viver e do pensar, honestidade, veracidade, enfim, verdadei-ra formação contra uma vida artificialmente decorada e carente deestilo: tudo isto, diz ele, é uma alegoria e exortação para o indiví-duo. Sabemos que Nietzsche levou a peito esta exortação e alego-ria. O que Nietzsche nos diz nesse escrito juvenil (nas ConsideraçõesExtemporâneas) sobre a cultura será encontrado até o final reitera-damente referido ao indivíduo. Assim, por exemplo, num texto pós-tumo de 1887 intitulado “Sobre a hierarquia” se encontra o seguin-te: “O que é medíocre no homem comum? Que ele não entenda anecessidade da outra face das coisas: que combata os inconveniente[die Übelstande] como se alguém pudesse prescindir deles, que nãoqueira tomar uma face junto com sua oposta – que quisesse elimi-nar e extinguir o caráter típico de uma coisa, de um estado de coi-sas, de uma época, de uma pessoa, aprovando tão somente umaparte de suas propriedades e desejando abolir as demais (...). Nos-sa concepção é a oposta: que com cada crescimento do homem suaoutra face terá que crescer também, que o maior dos homens, su-pondo que tal conceito seja lícito, seria o homem que representassemais fortemente o caráter antitético da existência, como sua glória eúnica justificação... Aos homens ordinários só lhes está permitidorepresentar um rincão e uma esquina ínfima do caráter natural:perecem quando a multiplicidade dos elementos e a tensão dos con-trários, ou seja, as precondições para a grandeza do homem, au-mentam.” (XII, 10 [111]).16

Suspendamos por um momento a leitura deste texto para subli-nhar o seguinte. A multiplicidade e a contrariedade não são, toma-das por si mesmas, sinal inequívoco da grandeza de um homem.Também podem se fazer presentes num homem ordinário e justa-mente nele significando não riqueza e plenitude, mas sim dilacera-

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mento, ruína e destruição. A multiplicidade e a contrariedade nãoconstituem, como Nietzsche mesmo acentua, a grandeza mesma.Trata-se tão somente de precondições da mesma. São, no limite, con-dições necessárias mas não suficientes.17 O que realmente singula-riza o grande homem, segundo Nietzsche, é a integridade que umhomem logra enfrentando e vencendo estas condições de máximadiversidade e contraditoriedade que a outros são ou poderiam serfatais: “A maioria representa ao homem como pedaços e partes se-paradas: só quando se os soma obtém-se um homem. Épocas intei-ras, povos inteiros têm neste sentido algo fragmentário; quiçá fazparte da economia do desenvolvimento humano que o homem devase desenvolver por partes. Não por isso se deve esquecer nem porum instante que seja que somente o que se trata é de que o homemsintético chegue a ter lugar: que os homens baixos, a enorme maio-ria, são apenas prelúdios e ensaios de cuja combinação surge dequando em vez o homem inteiro, o homem-contíguo que mostra atéonde chegou o progresso da humanidade.” (XII, 10 [111]).18

O que importa entender em Nietzsche pela síntese que logra o“homem sintético”, o que importa entender, em outras palavras,pelo tipo de unidade que o homem inteiro logra criar a partir dafragmentariedade do resto da humanidade é algo que, como maisadiante se sugerirá, teria de fazer-se mais claro à medida em que sepenetrasse em outro crucial círculo de conceitos nietzschianos: osconceitos de domínio, sujeição, poder.19

Vale a pena, por ora, adentrar um pouco mais pelo conceito degrandeza. De tal incursão surgem conexões com outros conceitoscentrais: com conceitos desta vez provenientes da obra madura deNietzsche. Escutemos como o Nietzsche maduro de Para além deBem e Mal reitera em relação ao conceito de grandeza o expressadopelo jovem das Considerações Extemporâneas em relação ao concei-to de estilo: “Face a um mundo de ‘idéias modernas’, que gostariade confinar cada um num canto e numa ‘especialidade’, um filóso-

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fo, se hoje pudesse haver filósofos, seria obrigado a situar a grandeza,o conceito de ‘grandeza’, precisamente em sua vastidão e multiplici-dade, em sua inteireza [Ganzheit] na multiplicidade: ele determi-naria inclusive o valor e o grau, conforme quanto e quantas coisasum indivíduo pudesse aguentar e aceitar, conforme até onde pudes-se estender sua responsabilidade. (...) [O] filósofo revelará algo deseu próprio ideal quando afirmar: ‘...precisamente a isto se chama-rá grandeza: poder ser tanto múltiplo como inteiro [ganz], tanto vas-to como pleno.’” (JGB/BM § 212; ênfase minha).

A este máximo de responsabilidade assumida se refere Nietzscheneste mesmo trecho de Para Além de Bem e Mal (§ 212) como sinalinequívoco de fortaleza da vontade (Stärke des Willens). Numa obraposterior, Nietzsche nos dá um importante exemplo disto que aquidescreve como fortaleza da vontade: o exemplo de Goethe20: “Goethe– não um acontecimento alemão, mas um acontecimento europeu:um intento grandioso de superar o século XVIII mediante uma voltaà natureza, mediante uma ascensão até a naturalidade do Renasci-mento, (...) não se desligou da vida, submergiu nela, não foi diminuí-do e assumiu sobre si, por cima de si e em si tanto quanto era pos-sível. O que ele queria era totalidade [Totalität]; combateu adesunião entre razão, sensibilidade, sentimento, vontade (desuniãopredicada com uma escolástica espantosa por Kant,21 o antípoda deGoethe), impôs a si uma disciplina encaminhada à inteireza[Ganzheit], criou-se a si mesmo. (...) Em meio a uma época de men-talidade irrealista, Goethe foi um realista convicto: disse sim a tudoo que a este respeito lhe era afim22 (...). Com um fatalismo alegre econfiante esse espírito que se tornou livre está imerso no todo, na fé[Glauben] de que só o individual [das Einzelne: o individual comooposto ao total, quer dizer, o isolado e solto] é reprovável, de que,tomado em conjunto [im Ganzem], tudo se redime e afirma – esseespírito já não nega (...). Porém tal fé é a mais alta de todas as pos-

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síveis: eu a batizei com o nome de Dioniso.” (GD/CI, Incursões deum Extemporâneo § 49).23

Aqui nos deparamos com um importante apelativo para aquiloque Nietzsche entende por grandeza em geral e do homem em par-ticular: inteireza que se torna tal, inteireza que se logra, que se cria(não unidade que se tem ou se toma como dada, como dom). Refi-ro-me ao nome de Dioniso.24 Curiosamente, em torno ao dionisíacose tem gerado um tipo de má compreensão semelhante à que maisacima se caracterizava como uma interpretação anarquizante deNietzsche. Segundo ela, Dioniso representaria, sem mais, o frag-mentário e o caótico quando o certo é que o próprio Nietzsche ain-da numa de suas últimas apreciações retrospectivas de O Nascimentoda Tragédia reiterava que: “Com a palavra ‘dionisíaco’ se expressa:um urgir até a unidade (...) um fascinado dizer sim ao caráter totalda vida como o igual em toda mudança, o igualmente poderoso,igualmente bem-aventurado; a grande compenetração panteísta naalegria e na dor (...) como sentimento da unidade e a necessidadeda criação e da destruição.” (XIII, 14 [14]; ênfase minha).

Este texto se encontra em clara consonância com aquele em queNietzsche se vale de sua exaltação de Goethe para introduzir sua féem Dioniso. Também aqui se faz patente que, para Nietzsche, odionisíaco não é (ou, em todo caso, não é sem mais nem menos)sinônimo de uma pluralidade indômita, irredutível, de desagrega-ção absoluta e caos. Com o nome de Dioniso se aponta, ao contrá-rio, para uma integridade (unidade como totalidade) à luz da qualtodo individual e isolado não pode aparecer senão como horrorosoe insuportável dilaceramento. Não se trata, valha o esclarecimento,de uma unidade indivisa e simples, mera ausência de multiplicida-de ou exclusão da mesma. Trata-se, reiteramos, de uma sujeição do(mais) diverso e inclusive contraditório sob ou dentro de uma uni-dade. No entanto, não é esta a ocasião de abordar o difícil conceitode domínio ou de potência em Nietzsche. Sua doutrina da vontade

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de domínio, da vontade de potência, é quiçá a mais mal compreen-dida de suas doutrinas e seria convidar a uma redobrada má com-preensão se suscitasse agora a impressão de que se a pode explicarde passagem. Em todo caso, já se notará a estas alturas que seNietzsche pode pretender alguma originalidade em sua compreen-são do mais antigo problema da filosofia (o problema do um e domúltiplo) isso dependerá da singularidade de sua compreensão doque é a potência e de sua compreensão da unidade como unidadedinâmica. Não se trata, pois, do falso problema de se se concebeou não Nietzsche como pensador da unidade. Trata-se, antes, doproblema acerca do tipo de unidade que nos delineia, temática eformalmente falando.

Não irei aqui mais longe em meu intento de documentar a no-ção de grandeza em Nietzsche como inteireza e domínio. Esperoque se advirta melhor, com base nas observações anteriores, quequem quiser medir em Nietzsche sua pretendida grandeza como ho-mem e escritor terá que medir, portanto, não só a amplitude (a di-versidade) que alcança seu espírito ao expandir-se, mas sim o grauque alcança a sujeição de tal amplitude, a integral afirmação domais diverso e adverso dentro de uma totalidade. O primeiro exigeuma leitura ampla da obra de Nietzsche. O segundo requer umaleitura que pretenda e represente ela mesma uma lograda sujeição(exegética) da mais ampla diversidade sob um máximo possível deunidade (dinâmica).

Resumamos o exposto até aqui. Víamos no começo como a exi-gência que Nietzsche diz querer apresentar aos homens requer quese advirta com a maior claridade quem é o portador de tal exigên-cia. Trata-se de uma exigência que terminaria por ser desatendidajustamente no caso de aparecer como uma exigência impessoal, anô-nima; trata-se de uma exigência com respeito à qual apenas resultacongruente que quem a faz se faça visível em toda sua singularida-de. Víamos do mesmo modo como Nietzsche crê, em todo caso, que

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o pensamento de todo pensador emerge inadvertidamente do maispessoal. Por isso mesmo, uma crucial diferença marcaria não só ofato de que Nietzsche advirta a conexão entre a obra e a pessoa outambém entre o espírito e o corpo, mas inclusive o fato de que bus-que do mesmo modo fazê-la inocultável para seus leitores. Todo oprecedente explica por que o estilo desempenha, formalmente fa-lando, um papel importante na obra de Nietzsche. Víamos tambémque não só o estilo mas inclusive seu conceito desempenha conse-qüentemente um papel importante dum ponto de vista temático. Estaimportância temática se faz manifesta no fato de que uma elucidaçãodo conceito nietzschiano de estilo nos remete indefectível e imedia-tamente aos pensamentos centrais da obra de Nietzsche (cultura,grandeza, potência, Dioniso). Em outras palavras, é possível nosaproximarmos dos conteúdos centrais de seu pensamento partindodo que em princípio não parecesse ser mais que a tematização deum assunto puramente formal: o assunto do estilo.

O exposto conflui, pois, na constatação de uma particular con-gruência de forma e conteúdo na obra de Nietzsche. Pois bem, talcongruência se faria ainda mais patente se pudéssemos mostrar queo caminho da forma até o conteúdo pode ser percorrido tambémem direção contrária: do conteúdo temático até a forma estilística.Pode-se, por exemplo, percorrer um caminho que parta do tema dacrítica do conceito do verdadeiro (como o incondicionado) para che-gar à conseqüente contrapartida estilística de tal crítica em Nietzsche.Trata-se de um caminho que, valha dizer, já têm percorrido algunsdos intérpretes de Nietzsche.

A temática da verdade tem duas facetas conexas entre si: umanegativa e outra positiva. Tem-se, por um lado, a crítica da verda-de, a crítica do que a seus olhos é a concepção tradicional da ver-dade. Tem-se, por outro lado, a doutrina do perspectivismo e o con-ceito nietzschiano de interpretação. Permito-me como continuaçãoo conveniente atalho de enunciar o problema tal como já se encon-

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tra delineado num intérprete que pode muito bem ser tomado comorepresentativo neste particular: “A idéia e o estilo do ‘perspectivis-mo’ é central nos escritos de Nietzsche de seu período médio (...) Àdiferença da maioria dos filósofos, que argumentam diretamente emfavor da verdade de uma idéia ou de um sistema, Nietzsche argu-menta por uma pluralidade de perspectivas, uma pluralidade de‘verdades’ se se quiser, das quais nenhuma é a ‘verdadeira’. O pro-blema radica em como defender esta tese sem cair em contradiçãoauto-referencial ou em relativismo (ao qual Nietzsche qualifica de‘infantil’). Nesse sentido, enquanto a maioria dos filósofos escrevena voz abstrata e onisciente da terceira pessoa, Nietzsche escrevefreqüentemente em primeira pessoa – regularmente na primeirapessoa do singular, ocasionalmente na primeira pessoa do plural –e não deixa dúvida alguma acerca de a quem pertence a opiniãoque está proferindo. Seu estilo atrai a atenção sobre o autor, e àdiferença da maioria dos filósofos (...) os escritos de Nietzsche abun-dam em auto-referências e autoglorificações, recordando-nos queseus juízos, seus pontos de vista, suas perspectivas são justamente assuas.”25

Noutra interpretação recente de Nietzsche encontramos apreci-ações similares. Cito novamente: “A oposição de Nietzsche aodogmatismo [ao dogmatismo como conseqüência direta da concep-ção da verdade que Nietzsche critica] não consiste na idéia parado-xal de que é incorreto pensar que as opiniões que alguém tem sãoverdadeiras, mas sim na idéia de que as opiniões de alguém nãosão, nem teriam de ser, verdadeiras para todo mundo [o autor citaaqui Para Além de Bem e Mal, § 43]. (...) [Não obstante,] Comotodo outro autor Nietzsche também quer que sua audiência aceitesuas opiniões. Apesar de lançar um firme e complicado ataque àsnoções de verdade e conhecimento, seria absurdo sustentar que es-creve para que não se creia em si. O ponto de seu ataque (...) éoutro e está dirigido contra as condições sob as quais se aceitam

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determinadas concepções como verdadeiras. Quer que se creia emsi mas não incondicionalmente (...).26

(...) Que hão de fazer aqueles autores que querem produzir con-cepções acerca do mundo mas que querem também advertir a seusleitores que o que estão lendo não é mais que o ponto de vista deum autor? E, o que é mais urgente, que há de fazer um autor quequer chegar a sustentar que todo escrito é desta natureza? [Um poucomais adiante, o intérprete que citamos nos dá a solução ao problema:]Nietzsche usa sua mudança de gêneros e estilos para evitar que seusleitores passem por alto o fato de que suas concepções têm necessa-riamente sua origem nele. Apela a seus muitos estilos para sugerirque não há uma linguagem única e neutra na qual se pudesse apre-sentar seus pontos de vista ou quaisquer outros. Sua constante pre-sença estilística mostra que suas teorias são tão variadas e idiossin-cráticas como o tipo de escrito ao qual estão incorporadas.”27

Em seu aspecto de conteúdo, quer dizer, em seu aspecto temá-tico, a obra de Nietzsche se ocupa explicitamente em determinar evalorar as condições sob as quais se aceita uma determinada persua-são. Aceita-se enquanto se pode assumir que é verdadeira. Nietzschereflete, então, acerca das condições sob as quais se crê possuir umapersuasão verdadeira e determina que se a crê possuir quando seassume implicitamente que ela se encontra numa relação de corres-pondência ou adequação com a maneira como as coisas são em simesmas. Por razões que não é o caso examinar neste momento,Nietzsche repudia esta concepção da verdade.28 Pode-se dizer, semtemor de exagerar, que o sentido e propósito mais próprios de suaspersuasões se veria irrecuperavelmente perdido em caso de que seas aceitasse (ou rechaçasse) da mesma maneira como se tem assu-mido (ou rechaçado) inveteradamente toda persuasão: enquantoverdadeiras no sentido antes descrito (ou enquanto falsas num sen-tido correspondente). Conseqüentemente, Nietzsche aspira a quesuas próprias concepções (incluída, em primeiro lugar, sua própria

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concepção de verdade) sejam adotadas de uma nova maneira. Paraisso, vale-se certamente de considerações temáticas confluentes nadoutrina do perspectivismo. No entanto, Nietzsche conta com outrorecurso que, diferentemente do anterior, goza, por assim dizer, dodom da ubiqüidade: o recurso do estilo. O estilo é formalmente oni-presente como não pode ser o tema da verdade ou do perspectivis-mo ou da interpretação ou o próprio tema do estilo, nem qualqueroutro tema independentemente de sua importância.

Nietzsche se esforça sempre em expor suas concepções em de-terminada forma. A forma em que Nietzsche apresenta suas con-cepções se converte assim não só em indicativa da maneira comoele mesmo as assume, mas resulta inclusive condicionante da ma-neira como teriam de ser adequadamente assumidas (ou rechaçadas)por seus leitores. Assim como a postura temática de Nietzsche comrespeito ao problema da verdade sugere que temos de nos aproxi-mar de uma maneira renovada de suas concepções em geral, domesmo modo, seu estilo convida sempre a uma modificação condi-zente na forma de nos acercarmos (ou distanciarmos) delas.

Desse modo, a imbricação entre forma e conteúdo na obra deNietzsche, muito especialmente a que correspondente ao tema daverdade, faz com que seu estilo resulte decisivo para a adequadamaneira de assimilar ou descartar suas idéias. O adequado acessoao pensamento de Nietzsche requer, por conseguinte, que se o apro-xime dentro da forma e estilo em que seu autor lhe deu expressão.Não pode haver apresentações que possam desempenhar um papelsubstitutivo. Pode-se, sem dúvida, falar acerca do estilo da obra deNietzsche porém, por princípio, não se pode transmiti-lo ou repro-duzi-lo do modo como cremos que podemos parafrasear a um ter-ceiro os pensamentos de alguém.

Num texto póstumo, escreve Nietzsche:

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É-se artista ao preço de sentir como conteúdo, como “a coisamesma”, o que os não-artistas chamam “forma”. Pertence-se,por isso, a um mundo invertido: pois nesse instante se convertepara alguém o conteúdo em algo meramente formal – incluin-do nossa vida. (XIII, 18 [6]; cf. XIII, 11 [3]).

Se o precedente não é uma constatação impessoal de Nietzsche,teríamos então aqui corroborada a importância da forma dento desua obra. Die Sache selbst, “a coisa mesma”, o que realmente é “oassunto” (também no sentido do que realmente importa) isso é numartista, diz Nietzsche, a forma. O artista efetua, assim, uma inversãovalorativa (uma transvaloração) do usualmente considerado priori-tário. Para ele o decisivo é o que para outros é uma “mera” questãoformal, uma formalidade. Importa o estilo e, como diz no final dacitação, é de capital importância não só o que se imprime a umaobra, mas também à vida. A vida mesma aparece como obra dearte. Significativamente, esta idéia constitui um dos primeiros aces-sos ao noduloso pensamento do eterno retorno. Numa das notas iné-ditas que acompanham a primeira aparição da idéia do eterno re-torno em seus cadernos de 1881, encontra-se o seguinte:

Queremos experimentar sempre de novo uma obra de arte! As-sim se deve dar forma à própria vida de maneira que se tenhao mesmo desejo com respeito às partes particulares! Este é opensamento capital! (IX, 11 [165]).

Esta questão capital de forma referente ao como (diferentemen-te do que) da vida, é precisamente a idéia do eterno retorno (comose deduz do entorno textual imediato desta citação em seus cader-nos póstumos29). Pois bem, se vida e obra se fundem em Nietzsche,como sugere a citação de Ecce Homo com que começamos este tex-to, então é possível que não estejamos aqui diante de dois, mas simno fundo ante um só ato estilístico.

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Abstract: The integrity between man and writing suggested in Nietzsche’sphilosophy enables us to comprehend the nuclear importance of the stylein his work. From a thematic point of view, it is possible to verify that thecentral ideas of his philosophy are well-connected with the notion of “unityof style”: specially the ideas of largeness, art and power. From a formalpoint of view, Nietzsche’s style aims, amongst other things, at holding itstruths as they were unconditional truths while it points out to the particu-larity of his own person.Keywords: style – largeness – unity – multiplicity – truth

notas

1 Veja-se a respeito a epígrafe que, de próprio punho e letra,Nietzsche intercala entre o “Prólogo” e o primeiro capítulode Ecce Homo. Compare-se também a carta a Naumann de6 de novembro.

2 Carta a Constantin G. Naumann de 6 de novembro de 1888.3 Em relação aos trechos citados de Nietzsche, demos prefe-

rência em transcrever as traduções de Rubens RodriguesTorres Filho (Abril Cultural, Coleção “Os Pensadores”) oude Paulo César de Souza (Cia. das Letras). Contudo, quan-do havia quaisquer diferenças, em palavras ou expressões,que pudessem comprometer a argumentação do autor, op-tou-se por verter para o português a tradução feita pelopróprio autor (o mesmo vale para os casos em que nãoexistem tais traduções disponíveis em português). (NT).

4 Certamente, no final de 1888, quer dizer, aos seus 44 anose pouco antes do colapso que interromperia definitivamen-te sua vida como escritor, Nietzsche bem podia declarar,no momento de redigir estas linhas, que havia dado amplo

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testemunho de si em sentido literário. Havia escrito dezobras que, seja dito de passagem, Ecce Homo comenta comseus leitores uma atrás da outra em dez partes que inte-gram o soberbo capítulo “Por que escrevo livros tão bons”.Valha dizer que a outra metade de Ecce Homo não deixade ser em grande parte um comentário aos seus escritos,às vezes geral, às vezes pormenorizado, ainda com a licen-ça de um tratamento não seqüencial. Às obras comentadasnesta estranha autobiografia que é Ecce Homo teríamos deagregar outros três escritos que Nietzsche não chega a co-mentar nela mas que chega a dar por concluídos e enviar àprensa antes de finalizado o prolífico ano de 1888: OAnticristo, Ditirambos de Dioniso, Nietzsche contra Wagner.

5 A despeito duma indicação em Ecce Homo que pareceriadizer o contrário: “uma coisa sou eu, outra são meus escri-tos.” (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons § 1). Nãocreio que esta oração deva ser entendida como dizendo:uma coisa sou eu e outra coisa muito diferente são meusescritos. Uma tradução mais literal do texto alemão é: “umsou eu, outro são meus escritos” (Das Eine bin ich, dasAndere sind meine Schriften). No contexto do que Nietzschese propôs a fazer em Ecce Homo (uma apresentação ourelato de si mesmo) esta oração deve significar que seusescritos são (a outra) parte complementar do que é suapessoa.

6 “Gradualmente se foi revelando para mim o que toda gran-de filosofia foi até o momento: a autoconfissão [Selbstbeken-ntnis] de seu autor, uma espécie de memoires [memórias]involuntárias e inadvertidas (...).” (JGB/BM § 6).

7 Veja-se FW/GC, Prólogo § 2. Também XI, 36 [36].8 Nietzsche se pergunta se “a filosofia até agora não foi em

geral somente uma interpretação do corpo e um mal-enten-dido sobre o corpo”. (FW/GC, Prólogo § 2). Entenda-se aquio genitivo não só como genitivo objetivo mas sim como

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genitivo subjetivo. Quer dizer, entenda-se aqui o corpo nãosimplesmente como o que é objeto de interpretação massim como aquilo mesmo que interpreta. O corpo se inter-preta a si mesmo na linguagem do espírito. É o corpo“quem” filosofa (cf. Za/ZA, Dos desprezadores do corpo:“por trás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão,se encontra um soberano poderoso, um sábio desconheci-do – chama-se si-mesmo. Em teu corpo habita, é teu cor-po.”). O corpo é o autor. E pode haver por acaso algo mais“pessoal” que o corpo e suas necessidades? De fato,Nietzsche se refere ao corpo como “o si-mesmo” (das Selbst)privando deste qualificativo ao eu, o qual Nietzsche vê de-finido pela superfície da consciência. (Za/ZA, Dos ultra-mundanos). No entanto, o corpo careceu da autotransparên-cia, da veracidade que lhe permita se reconhecer como overdadeiro “autor”. Comporta-se como um ventríloquo quecrê escutar a voz do Ser sem reconhecer que se trata desua própria voz, da linguagem visceral de seu apetite (ibid.).

9 Seguindo Nietzsche neste ponto, poder-se-ia tentar inclusi-ve uma breve “genealogia”, uma breve reflexão crítica acer-ca da origem da separação entre autor e pessoa. Tal refle-xão detectaria em última instância que esta separação temsua origem justamente naquela mesma falta de veracidadeque, segundo Nietzsche, se encontra escondida tanto namoral quanto na arte, na filosofia e, em geral, na vida intei-ra do espírito. Veja-se o comentado na nota anterior acercada falta de veracidade.

A falta de veracidade dos filósofos volta a ser tema, aindaque em termos um pouco diferentes, em Para Além de Beme Mal. Na seção intitulada “Dos preconceitos dos filóso-fos” encontramos: “O que leva a considerar os filósofoscom olhar meio desconfiado, meio irônico (...) é (...) quenão se mostrem suficientemente íntegros, enquanto fazemum grande e virtuoso barulho tão logo é abordado, mesmoque de leve, o problema da veracidade [Wahrhaftigkeit].

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Todos eles agem como se tivessem descoberto ou alcança-do suas opiniões próprias pelo desenvolvimento autônomode uma dialética fria, pura, divinamente imperturbável (...)quando no fundo é uma tese adotada de antemão, umaidéia inesperada, uma intuição, em geral um desejo íntimotornado abstrato e submetido a um crivo, que eles defen-dem com razões que buscam posteriormente – eles sãotodos advogados que não querem ser chamados assim, ena maioria defensores manhosos de seus preconceitos, quebatizam de ‘verdades’ – estando muito longe de possuir acoragem da consciência [Gewissen] que admite isso, justa-mente isso (...)” (JGB/BM § 5). No que diz respeito àqueleolhar desconfiado que Nietzsche lança aos filósofos, con-vém acrescentar que Nietzsche mesmo incita ao leitor alançar tal olhar sobre sua própria filosofia: “Quero suscitara máxima desconfiança com respeito a mim mesmo: sófalo de coisas vividas e apresento não só coisas que aconte-cem na cabeça.” (XI, 27 [77]). “Meus escritos falam ape-nas de minhas próprias vivências – afortunadamente expe-rimentei muitas coisas –: estou nelas de corpo e alma –para que ocultar isso?” (XII, 6 [4]). Compare-se VM/OS,Prefácio § 1.

10 O tema do estilo é um dos mais recorrentes de Nietzschecomo intérprete de sua própria obra. Encabeçando o pri-meiro dos tomos da edição alemã de seus escritos inéditosjuvenis, encontra-se uma primeira autobiografia escrita naterna idade dos 14 anos. Ali encontramos Nietzsche co-mentando seus escritos os quais já divide, segundo o esti-lo, em três períodos (NIETZSCHE, 1994, p. 1-32).

11 FRANK, p. 11.12 Quiçá em nenhum outro lugar de suas obras expressa

Nietzsche o precedente com maior clareza e insistênciaque em sua terceira Extemporânea (“Schopenhauer comoEducador”): “No fundo, todo homem sabe muito bem que

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se encontra no mundo tão somente uma vez, como umunicum e que nenhum estranho acaso aglutinaria pela se-gunda vez uma pluralidade tão assombrosamente coloridaem uma só coisa: o homem sabe mas oculta esse fato comouma má consciência – por quê? Por temor ao vizinho queexige as convenções e encobre a si mesmo com elas. Maso que é que obriga o indivíduo a temer o vizinho, a pensare agir como ser de rebanho, a não tirar proveito de simesmo? (...) Na grande maioria das vezes se trata da co-modidade, da inércia, da inclinação à ociosidade (...) Ohomem que não quisesse pertencer à massa apenas ne-cessitaria deixar de ser acomodado com respeito a si mes-mo; que siga a voz de sua consciência que lhe sussurra:‘Sê tu mesmo! Tu não és tudo isso que agora fazes, opi-nas, desejas.’”

13 Sobre a influência exercida por Paul Bourget sobreNietzsche na definição do conceito de “decadência literá-ria”, ver o artigo de Müller-Lauter “Décadence artísticaenquanto décadence fisiológica” (in Cadernos Nietzsche n.º6 (1999)), em especial as páginas 11-13. (NT).

14 De tanta concentração na crítica de Nietzsche a toda unida-de como unidade dada, alguns de seus intérpretes igno-ram sua igualmente insistente incitação à unidade comocriação, como logro, como expressão de uma (mais oumenos) exitosa vontade de sujeição. Chamaria esta unidadede unidade dinâmica a fim de recordar o fato de que todaunidade representa sujeição de umas forças por outras.

15 Veja-se VII, 19 [307]: “Formado [Gebildet] chamamos aquem se converteu numa formação [ein Gebild], a quemtomou forma: o oposto à forma é aqui o amorfo informe,sem unidade.”

16 O texto continua com a oração: “Que o homem tem que sefazer melhor e mais malvado, esta é minha fórmula paraesta inevitabilidade.”

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17 Todo grande homem hospeda um máximo de multipli-cidade e contrariedade mas nem todo homem que hospe-da um máximo de multiplicidade e contrariedade é eo ipsoum grande homem.

18 A citação continua: “Não avança [a humanidade] de umsó golpe: freqüentemente se perde o tipo já alcançado (...)– com toda tensão dos últimos trezentos anos, por exem-plo, não pudemos chegar todavia de novo na altura dohomem do Renascimento que, por seu turno, ficou paratrás com respeito ao homem antigo.”

19 Não se pode prejulgar então que tipo de síntese e unidadeé esta sem examinar esses outros conceitos. Agora, so-mente o fato de que nos vejamos remetidos ao conceito depoder para explicar o conceito de unidade aqui envolvidosugere de imediato que não pode ser nossa intenção a deassemelhar Nietzsche com quaisquer pensadores de qual-quer unidade ou qualquer totalidade. É aqui que é neces-sário (e hoje mais necessário) estabelecer as distinçõescruciais e não naquele plano em que se reduz Nietzsche aum pensador duma pluralidade indômita enfrentando pen-sadores da unidade e totalidade concebidas como factum,como algo dado (como algo presente nas coisas “em si”mesmas). Esta dicotomia é uma falsa dicotomia (que ope-ra de acordo com uma concepção reduzida de unidade).Reduz-se o pensamento de Nietzsche ao que simplesmen-te é uma parte do mesmo. Nietzsche critica certamentetoda concepção do uno e inteiro como dado, argumentan-do que se há algo que seja dado é justamente o caos comopluralidade indômita. Neste plano se encontrará Nietzscheafirmando que o mundo, a natureza, é caos. Porém, o queinteressa a Nietzsche é o que se faz e se cria a partir de talpluralidade indômita, (E a natureza mesma é para Nietzschetambém um fazer e criar e o caos é somente seu “a partirde”, ou seja, em termos clássicos, sua “matéria”). O que

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interessa a Nietzsche é o repto que deste reconhecimentoda pluralidade surge para o homem com vistas a seu do-mínio. Não se trata de um simples “deixá-la ser”. Inclusi-ve, também como parte do estímulo necessário para umavontade de domínio, ela mesma pode se dar à tarefa decriar pluralidade e caos. Mas em tal caso se trata justa-mente de criar o que é apenas precondição, trata-se, porassim dizer, de criar as condições para um criar intensifi-cado que em última instância se mostra logrado ou malo-grado na maior ou menor sujeição dum máximo de diver-sidade e contrariedade. Sobre o caos como estímulo dopotência, veja-se XI, 25 [335]: “[Todos os grandes ho-mens] querem dar uma única forma ao múltiplo, ao nãoordenado, excita-os ver o caos.”

20 Veja-se o uso expresso do conceito de grandeza referido aGoethe em GD/CI, Incursões de um Extemporâneo § 50.Nietzsche se refere a Goethe como “o último alemão porquem tenho respeito”.

21 Salta à vista neste ponto o paralelismo entre a crítica deKant por parte de Nietzsche e por parte do jovem Hegel.

22 Quer dizer: o que lhe era afim em seu convicto realismo.23 Assim se expressa Nietzsche em Ecce Homo sobre Zara-

tustra: “Este espírito, o mais afirmativo de todos, contra-diz com cada uma de suas palavras; nele todos os opostosse fundem numa nova unidade.” (EH/EH, Assim FalavaZaratustra § 6).

24 Já que nos encontramos no terreno dos nomes e apelativos,mencionemos, a propósito, outra das fórmulas queNietzsche adota para a grandeza, uma “fórmula” com aqual Nietzsche sublinhará sua compreensão própria desse“alegre e confiante fatalismo” mencionado na citação re-ferente a Goethe: “Minha fórmula para a grandeza no ho-mem é amor fati [amor ao destino]: não querer nada de

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outro modo, nem para frente, nem para trás, nem em todaeternidade. Não meramente suportar o necessário, e me-nos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidadediante do necessário –, mas amá-lo...” (EH/EH, Por quesou tão esperto § 10).

25 SOLOMON, p. 9.26 NEHAMAS, p. 33.27 NEHAMAS, p. 35-7.28 Em poucas palavras, Nietzsche repudia esta concepção da

verdade em razão de que ela representa um obstáculo(possivelmente o obstáculo) para o surgimento e consoli-dação de um tipo de homem que Nietzsche está interessa-do em promover: um homem profundamente autônomo,um homem livre para prescrever a si mesmo seu bem eseu mal e suspender sua vontade por cima de si mesmocomo uma lei, um homem capaz de ser juiz para si mesmoe vingador de sua lei, como nos disse Zaratustra em AssimFalava Zaratustra (I, Do caminho do criador). Não obstanteo que Nietzsche entende por autonomia requer cruciaisprecisões a fim de que não se o confunda com outros pen-sadores modernos.

29 O fragmento continua em forma algo enigmática mas osuficientemente clara para o que queremos concluir (quea idéia de converter a própria vida numa obra de arte éum acesso à doutrina do eterno retorno): “Este é o pensa-mento capital! Só ao final se expõe a doutrina da recorrênciade tudo o que existiu depois de que se haja inserido aidéia de criar algo que possa prosperar cem vezes maisfortemente sob a luz solar desta doutrina.” (IX, 11 [165]).

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referências bibliográficas

1. FRANK, M. Stil in der Philosophie. Stuttgart, Reclam,1992.

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3. NIETZSCHE, F. Jugendschriften. Herausgegeben von HansJoachim Mette. Munique, Deutscher Taschebuch Ver-lag, 1994, Vol. 1: Frühe Schriften 1854-1861.

4. _______. Obras incomletas. Col. Os Pensadores. Trad. deRubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril,1978.

5. _______. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo césar deSouza. São Paulo, Cia. das Letras, 1992.

6. _______. Kritische Studienausgabe: Sämtliche Werke, ed.por Giorgio Colli y Mazzino Montinari, DTV & Walterde Gruyter, Munique, Berlim, 1980. 15 vols.

7. SOLOMON, R., Higgins, K. (eds.) Reading Nietzsche,Oxford University Press, Oxford, 1990.

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* Este trabalho foi apresentado nas Jornadas Nietzsche 2000 que transcorre-ram de 17 a 22 de outubro na Universidade de Buenos Aires. A carta e asdemais intervenções foram formuladas por Marcelo Percia, psicanalista, queenquanto debatedor, elaborou um texto na forma de uma carta de um possívelanalisando como uma estratégia de abordagem da temática apresentada porGermán Meléndez no mesmo evento. Traduzido por Sandro Kobol Fornazari.

** Professor de Psicologia na Universidade de Buenos Aires.

Um estilo de coisascansadas, quase perdidasNotas sobre “Homem e estiloem Nietzsche” de Germán Meléndez*

Marcelo Percia**

Resumo: A partir do artigo de Germán Meléndez, “Homem e estilo emNietzsche”, procura-se tecer comentários e reflexões sobre o tema do esti-lo. Os comentários estão entremeados por um relato de um analisando aoseu analista em que se procura definir a arte de falar em sessão, seu esti-lo, como insinuação e desejo pela persuasão perfeita.Palavras-chave: estilo – solidão – incoincidência – insinuação – persuasão

Escreve Meléndez: “Em oposição à suposta impessoalidade dopensamento filosófico, Nietzsche se esforça por criar transparênciaem torno do fato de que a sua é a obra de um indivíduo inconfundí-vel.” Quiçá a idéia de um indivíduo inconfundível ventila o assuntoda solidão. Uma solidão não individual. Uma solidão em grupo. Uma

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solidão povoada. Uma solidão que se povoa desamparando. Umasolidão tão povoada quanto abandonada. Todo o contrário do es-ponjoso abraço de um rebanho. Uma solidão como multidão des-prendida, desfeita, desunida. Uma solidão desamparada de quê?De uma garantia gregária? Talvez uma solidão desabrigada de mo-ral. Uma solidão amante da estranheza.

Fico em dúvida entre escrever ou não estas notas. Por que medirigi ao seu consultório durante tanto tempo? Às vezes pensoque não falava na sessão para informar sobre coisas que havi-am se passado comigo ou que estavam se passando, mas paraentender as coisas à minha maneira. Esclareço, antes que opergunte, disse: à minha maneira. Sim, meus modos de dizer,calar, insinuar, evocar, chamar, responder, perguntar. Meusmodos de habitar esses infinitos. Essas formas impessoais. Esseramalhete de ações comuns. Admito, antes que o pense, quecomecei a falar para que você me quisesse. Para que me vissetal como eu costumava me olhar. Em todos esses anos tratei decativá-lo. Talvez precisasse de seu amor para confirmar algoque já não importa: a máscara pessoal que, no princípio, con-fundi com meu estilo. Não sei. Agora que intento me explicarsucede o mesmo que ocorria nas seções. Deslizo-me para outroslugares. Distancio-me do que queria dizer. Você me interrom-pe até quando lhe escrevo uma carta. Dirigia-me até o seu con-sultório todas as semanas para persuadi-lo. Para incitá-lo aentender as coisas tal como eu as entendia. Para infiltrar-meem seu modo de olhar. Você dirá: que pretensão desmedida!Cada vez que lhe contava algo, queria preenchê-lo com meusrelatos. Ocupá-lo com minhas descrições. Saturá-lo com mi-nhas imagens. Algemá-lo com minhas razões. O que buscava?Um estado de correspondência. A aceitação plena. Um domí-nio que me colocasse a salvo da suspeita. Está certo, para con-segui-lo eram necessários recursos, paciência, obstinação. Tal-vez, para mim, a análise (digo antes que você o pense) era abusca desesperada de uma coincidência. Um modo de anular

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a distância que, finalmente hoje, nos separa. Então, sonhavaque um dia estaríamos unidos na percepção comum do que mepassava. Queria que minha maneira fosse sua maneira.

Meléndez se apoia numa citação de Robert Solomon que dizque: “A oposição de Nietzsche ao dogmatismo não consiste na idéiaparadoxal de que é incorreto pensar que as opiniões que alguémtem são verdadeiras, mas sim na idéia de que as opiniões de al-guém não são, nem teriam de ser, verdadeiras para todo mundo.”Meléndez acentua a idéia de que Nietzsche argumenta a favor deuma pluralidade de perspectivas. Uma pluralidade de verdadesmediadas por um vocábulo singular. Meléndez destaca que Nietzschenão escreve com a voz abstrata e onisciente da terceira pessoa. Subs-creve a idéia de que o uso da primeira pessoa não deixa dúvidassobre a quem pertence a opinião que estamos lendo. Recorda-nosque essa perspectiva é a sua. Meléndez conclui que Nietzsche querque se creia nele, mas não incondicionalmente. A primeira pessoado singular como ingresso de um teatro na escritura? A primeirapessoa como o arrebatamento que se desprende do tom ascético,anônimo, arrependido, das metodologias?

Tratava de inspirar suas conclusões. Pôr os fatos diante dosseus olhos para, depois, atraí-lo suavemente até meus pontosde vista. Não só queria demonstrar que as coisas que sentiaestavam justificadas, pretendia impressioná-lo. Inclinar lenta-mente suas valorações. Minhas posições estavam bem funda-das, mas necessitava atraí-lo para o terreno dos meus argumen-tos. Você recordará o assunto que tive com certa mulher. Euestava convencido de minha inocência. Não se me podia atri-buir responsabilidade nesse fato lamentável. Queria que vocêpensasse o mesmo. Que confirmasse que essa injustiça se de-veu, antes de mais nada, à minha inocente e espontânea inte-ligência. Porém, não somente aspirava convencê-lo com acontundência de minhas provas, desejava conquistar o seu

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amor. Necessitava que você dissesse: “Eis aqui um homem sin-cero, não esconde nada, trata de elevar-se acima de todas assuas misérias e, ainda que às vezes se equivoque, é indiscuti-velmente bom! Acabemos, por fim, com as suspeitas que pesamsobre suas intenções!” Adivinhava, por outro lado, a desconfi-ança, por trás dos seus olhos, cada vez que falávamos desseassunto. Falávamos? Bem, cada vez que me deixava cair emseu ouvido labiríntico. Quando tratava de contar-lhe o que mepassava, perdia-me. Era uma sensação insuportável. Imagine-se: chegava ao encontro com uma idéia, um itinerário, umpercurso; inclusive, às vezes, me dava ao trabalho de ordenardetalhes. Reunia um montão de coisas já processadas para al-cançar a meta de um modo conciso, econômico, eficaz. Che-gava até seus ouvidos com extrema prolixidade. Mas, sempreocorria algo. Em nossos encontros, as torpezas tiveram maisforça que minhas precauções. A inquietude começava em mi-nhas costas. Nunca me escutava como eu queria ser escutado.A falta de controle que imperava em nossas conversações eradesesperante.

Meléndez cita A. Nehamas, que escreve: “Que hão de fazeraqueles autores que querem produzir concepções acerca do mundomas que querem também advertir a seus leitores que o que estãolendo não é mais que o ponto de vista de um autor? E, o que é maisurgente, que há de fazer um autor que quer chegar a sustentar quetodo escrito é desta natureza?” Mais adiante o mesmo Nehamas ofe-rece uma resposta a estas perguntas. Escreve: “Nietzsche usa suamudança de gêneros e estilos para evitar que seus leitores passempor alto o fato de que suas concepções têm necessariamente suaorigem nele. Apela a seus muitos estilos para sugerir que não háuma linguagem única e neutra na qual se pudesse apresentar seuspontos de vista ou quaisquer outros. Sua constante presençaestilística mostra que suas teorias são tão variadas e idiossincráticascomo o tipo de escrito ao qual estão incorporadas.”

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Às vezes não entendia em que consistia seu trabalho. Reconhe-cia, em contrapartida, esforço, entrega, pontualidade, esmero,dedicação, inclusive fervor de minha parte, para que nossosencontros chegassem aonde tinham de chegar. Mas onde? Co-nheço suas perguntas de memória. Você me endereçava umrepertório de perguntas previsíveis! No princípio, suas pergun-tas eram um sintoma molesto em nossas conversas. Inconvenien-tes próprios de cada encontro. A irrupção do filho de uma avó.Um berro que me tirava do curso. Muitas vezes, você era só ainterrupção do meu relato. Durante todos esses anos (não o digopara fazer alarde, você sabe que não improviso, nem me apres-so em tirar conclusões) tentei diferentes formas de chegar atévocê. Apesar de minhas urgências, nunca deixei de levar emconta sua especial circunstância como ouvinte. Muitas vezesteria gostado de começar a falar sem nenhuma introdução, ouabandonar uma história pela metade para seguir com outracoisa, ou ainda me deixar levar por incoerências. Mas não,não o fiz. Tratei de ordenar e eleger argumentos para que vocêpudesse me seguir. Recordo que uma vez tive a precaução decomeçar com um comentário sobre como o dia estava caloroso.Uma concessão para que tivesse tempo de entrar no assunto.Contudo, o meu nunca chegou à categoria de uma estratégiaou de uma tática expositiva. Creio que foram somente cortesi-as que tratavam de facilitar e tornar amenos nossos encontros.

Escreve Meléndez: “No entanto, uma das particularidades dopensamento de Nietzsche está em conceber a individualidade comoalgo que, se tanto, arduamente se ganha e se conquista, algo excep-cional a que se chega, a que se ascende. O comum é, pelo contrá-rio, valha a redundância, o ser comum. Em princípio não sou euquem eu sou. Em princípio não se é quem se é; apenas, se tanto,torna-se quem se é. Não em vão se fala de uma busca de si mesmo.A evasão, a má compreensão e o ocultamente constituem a relaçãooriginária e persistente com respeito a si mesmo.”

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Você dirá que tratei de influenciar suas emoções ou tentar seussentimentos para que julgasse as coisas à minha maneira. Vocênão havia feito o mesmo? Nunca esperei que me condenasseou me absolvesse. Minhas condutas eram as que eram. Estavaclaro que eu mesmo punha em dúvida, antes que você pudessesugerir algo, a razão de cada um de meus atos. De fato, àsvezes deixava algum detalhe para que você interviesse. Nessecaso, aprovava suas pontuações, mesmo entendendo que deviaseguir minha rota. O caminho das coisas importantes. O lugarfinal ao qual havia conduzido tudo. Interpretei algumas desuas interrupções como inoportunas precipitações de um inte-ressado. Compreendia que não podia esperar. Apesar de suasdistrações, sentia-me sendo ouvido.

Meléndez cita um fragmento da terceira Extemporânea,Schopenhauer Educador. Nietzsche diz que estamos no mundo comoum unicum somente uma vez. A colorida pluralidade que se aglutinaem cada um não é passível de repetição. Diz que, no entanto, desa-parecemos por trás das convenções. Que nos submetemos por co-modidade, inércia, preguiça. Pensa que pertencer à massa nos pro-tege de uma incomodidade.

Quando percebi seu gosto pelas brincadeiras, exercitei-me naarte de rir de mim mesmo. Adiantava-me às suas ironias. Preferiazombar de mim ao invés de aparecer ridicularizado em suas imper-tinências. Fazia o mesmo cada vez que cometia um tropeçolingüístico. Você foi testemunha de que eu me detinha diante deminha falta. Não tentava passar ao largo como fazem alguns incau-tos. Aprendi que cada interrupção era a chegada de um indesejávelque tinha de ser atendido. Sempre me pareceu exagerado seu res-peito por esses intrusos. Como sabia que os parêntese eram inevitá-veis, não perdia tempo. Aprendi a sacrificar minha história sem quevocê tivesse algo para me dizer. Aceitava cortar o fio com meus pró-prios dentes. Tratava de estabelecer relação com esses parasitas que

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eram seus protegidos. Aprendi a satisfazer os desejos que adivinha-va em seus ouvidos.

Escreve Meléndez: “Não se trata, valha o esclarecimento, deuma unidade indivisa e simples, mera ausência de multiplicidadeou exclusão da mesma. Trata-se, reiteramos, de uma sujeição do(mais) diverso e inclusive contraditório sob ou dentro de umaunidade.”

Entre nós não se podia falar de um diálogo espontâneo. Masnão creio que se tratava de atitudes resistentes ou manobrasdefensivas. Enfatizo que não era espontâneo para que repareno meu trabalho. Para que valorize minha dedicação. Tudoaquilo que fiz para que você pudesse me escutar. Deveria sefalar de uma maestria do analisando. Tratava de apresentar,descrever, argumentar com fundamento, clareza e beleza. Mas,como expor a paisagem de um sonho? A geografia de uma afli-ção, de um tormento? Como passar do pensamento às pala-vras? Muitas coisas eu devia ter em conta: atrair, seduzir, en-cantar, orientar, esperar, deixar-me interromper. E ainda assim:como assegurar um relato que o colocasse diante da minhavida? Diante de meus segredos sem linguagem?

Escreve Meléndez: “A ênfase na multiplicidade tem sido a ên-fase dominante por parte de alguns intérpretes recentes. Tem sidotalvez uma ênfase unilateral que pode ter levado alguns leitores apensarem em Nietzsche já não como um defensor da riqueza implí-cita na sujeição do mais diverso e contrário, mas sim algo assim comoum defensor da diversidade (inclusive um promotor do caos) comofim em si mesma.” Meléndez sugere que a grandeza de um homemse mede por sua capacidade de sujeição do díspar. Talvez essa su-jeição do díspar suponha uma sintaxe excessiva. Uma idéia de uni-dade que se tolere como conglomerado, como multiplicidade. Umaunidade que queira a si mesma como incoincidência.

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Você era meu público. No princípio só falava para ter suareação. Nunca quis apanhá-lo em minha rede de convicções,derrotá-lo em sua posição. Cada vez que me contradizia, acei-tava seu ponto de vista. Meu lema era: em sessão não se discu-te. Dizia a mim mesmo: “Não é sua culpa. Não entendeu por-que eu não soube me explicar. Sua diferença não é umadiferença, mas uma prova da deficiência de meus argumen-tos”. A persuasão perfeita não demonstra, não convence. Apersuasão perfeita conquista sem nenhuma violência. É fonteinsurgente do próprio numa consciência alheia. Transforma umoferecimento em apetite de uma demanda que requer o mesmoque se oferece. Mas, como pôr em seus ouvidos formas que pu-dessem suscitar aquilo que vivia em meus sentimentos? Sem-pre soube que era um ouvinte especial. Conhecia suas inclina-ções desde o princípio. Sua inclinação pela psicanálise meprevenia de que ia escutar segundas intenções em cada coisaque eu dissesse. Suas inclinações pelo marxismo me preveniamde que ia pensar meu teatro privado como parte do cenário dopaís. Sabia que era um homem desgostoso com o heroísmo, aculpa, a autocompaixão. Que ouvinte! Dava gosto me entre-gar sabendo que, por seu lado, não cairíamos no perigo de pri-meiras núpcias, individualismos, autocastigos.

Escreve Walter Benjamin, num texto dedicado a Proust, queEm Busca do Tempo Perdido é a expressão da irremediável discre-pância crescente entre vida e poesia. O fastio do estilo. Recordaque “seu editor Gallimard contou como os costumes de Proust de-sesperavam os linotipistas. As provas lhes eram sempre devolvidascom as margens completamente escritas. Porém não escusava umasó errata; todo o espaço disponível recheava com texto novo. A le-galidade da lembrança repercutia assim na dimensão da obra. Pos-to que um acontecimento vivido é finito, ao menos está incluído naesfera da vivência, e o acontecimento recordado carece de barrei-

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ras, já que é apenas explicação para tudo o que veio antes dele edepois dele.”

Se você me permite, adaptaria ao meu trabalho uma fórmulaque pertence a Aristóteles. Refere-se à arte dos retóricos. Diz:“a tarefa do retórico é em cada caso determinar: 1) o que énecessário dizer e 2) como há de se dizê-lo”. Escute minha ver-são atual: “durante anos tratei de cativar sua atenção, arran-car sua aprovação, seu aplauso, seu lamento; sem ter nada paradizer, contando somente com meu modo de dizê-lo”.

Escreve Nietzsche, no prólogo de Para a Genealogia da Moral,que somos desconhecidos para nós mesmos, que cada um é o maisestranho, o mais distante de si mesmo.

Aprendi a atendê-lo sem que estivesse na minha frente. Muitosacreditam que quando um paciente está deitado no divã per-de-se o domínio da situação. Não estou de acordo. É certo quenão podia ver suas reações, mas aprendi (o tempo foi meu pro-fessor) a senti-las em sua respiração, em suas mudanças depostura, quando se coçava ou seguia sendas pelos franzidos desua calça. Como não podia vê-lo, comecei a olhá-lo. Aprendia olhar escutando você. Creio que a única existência que con-ta é a que vive numa voz.

Uma ocorrência: no princípio pretende coincidir com um estra-nho; com o tempo, pressente que uma multidão indocumentadahabita em sua unidade.

Alguns confundem a persuasão com uma técnica. Um repertó-rio de formas preconcebidas, frias manobras desentendidas decircunstâncias únicas, que não se pode repetir. Não sabem davertigem de um encontro impossível. Aprendi que as coisas queeu dizia nunca chegavam até seus ouvidos tal como saíam demim. Entendi que em minha boca ocorriam coisas raras. Ob-

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servei que em meus pensamentos eram pensadas coisas dasquais nunca me inteirava. Cada uma de minhas intenções semodificava no ar. Não se assuste se lhe confesso que tinha vi-sões. Às vezes sentia que alguns encarapuçados seqüestravamvivências deixando em seu lugar palavras desocupadas. Ou queseus elefantes se metiam em minhas histórias rompendo cris-tais finos e delicados. O que me surpreendia intrépido em meioa uma multidão que não entendia minha língua. Que fainade palavras falantes faz um paciente que fala em sessão! Quan-ta energia desprezada! Os inexperientes desconhecem este tra-balho. Confundem nosso labor com a infundada suspeita dasresistências. Claro, resistências, ocultamentos, disfarces: sãorecursos da persuasão. Não há um modo despido de falar. Nãohá modo de escapar às formas. Todo relato tem alguma hipo-crisia. A dignidade de um engano que leva sentimentos de umcorpo a outro. Não creio que um abraço ou as carícias sejamum atalho, um caminho direto para a percepção. Em todo caso,imaginava em seu ouvido um corpo quente, emocionado,amante. Um ouvido que me escutava para além de qualquerentendimento. Observe que coisa: tantos anos para concluir queseu ouvido navegava pela superfície das minhas palavras sementender nada!

Outra ocorrência: com A Interpretação dos Sonhos, Freud se in-ventou como analisando.

Sobre este ponto há muitos equívocos. Não escolhia os assun-tos sobre os quais falava. Muitas vezes as circunstâncias meobrigavam. Não me refiro apenas a assuntos que se colocavamem meus pensamentos cada vez que ia ao seu consultório, ouaos tópicos que durante a semana se propunham como candi-datos. Refiro-me, também, às recomendações com as quais meencontrava. Conselhos do tipo “isto terias de falar em tua tera-pia”, “comentastes tal coisa com teu analista?”

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Nada teria funcionado sem o meu esforço. Às vezes tentei, ape-sar de suas contínuas distrações, ir ao centro de um assunto,ao miolo de uma história, ao mais difícil de uma confissão.Outras vezes optei por chegar sem um plano prévio. Falar detodas as coisas que passavam pela minha cabeça. Fiz da asso-ciação livre um fluir sem mediações. Não era simples, sobretudopor suas malditas interrupções. Ademais, em meio a vertigensde palavras, encontrava-me com o problema da superposiçãoassociativa. Eu o explico: começava a dizer algo que me recor-dava outra coisa, mas essa outra coisa não era outra coisa esim multidões no pensamento, povoações de vozes em cada voz,inumeráveis interrupções em seu ouvido. Por mais que me em-penhasse, chegava um momento em que tinha de me render.Não podia satisfazer todos os cursos. Comparada com a ilimi-tada possibilidade de falar, suas seções eram tão limitadas!Não pense que eu o condeno por não termos feito psicodramaou exercícios com o corpo. Teriam sido outra ilusão para che-gar ao mesmo lugar. A que lugar cheguei? Conheço suas per-guntas de memória.

Outra ocorrência: o estilo é a dor de uma incoincidência. A al-garavia do não correspondido. Uma canção do inadequado.

Você recorda daquela mulher de quem tanto eu falava? Elame explicou que meu modo de atuar na análise parecia a prá-tica de um silogismo incompleto. Você recordará que eu fala-va na sessão esperando que você completasse. Apresentava umasérie de premissas sem concluir para que você chegasse até ondeeu queria chegar. Esperava escutar minhas soluções saindo desua boca. Desejava que nossa coincidência ocorresse como fatonatural. Como puro acidente. Como encontro absoluto. Nãoqueria que me desse razão (como fazem com os loucos). O certoé que para conseguir algo semelhante, isso requeria de minhaparte procedimentos sofisticados. Expunha minhas convicções,meus sentimentos sinceros e, ao mesmo tempo, retinha minhas

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conclusões. Fazia com que minhas retenções parecessem dúvi-das, esperas, limites, pedidos de auxílio.

Meléndez toma de Manfred Frank uma idéia sobre o estilo. Diz:“Entenda-se daqui por diante por estilo, para usar uma definiçãode cabeceira, ‘a forma individual como o autor dá expressão lin-güística a sua particular visão de mundo’”.

Um tema à parte são as sessões de perguntas que lhe eram diri-gidas. Não me refiro às ocasionais, tipo se a chamo ou não achamo, renuncio ou sigo mais um tempo, peço-lhe ajuda ouarranjo-me sozinho, digo o que sinto ou espero que as coisas setornem mais claras. Não me refiro a essas torpezas em formade dilema. Refiro-me a perguntas sobre a existência. Quandovou morrer? O que me assegura a saúde? Alguma vez estiveapaixonado? Sempre terei trabalho? Já sei, não o diga: as per-guntas dos clássicos! A mulher da qual eu sempre lhe falavadizia que a parábola do bom paciente era a do homem querecostado sobre o divã transformava o silogismo da morte emuma pergunta transcendental. Recordará: “Todos os homenssão mortais; Sócrates é um homem; logo, Sócrates é mortal”.Ela dizia que um analisando deveria aprender a formulá-lodesta maneira: “Se não é possível elucidar o destino da morte,como viver sabendo dessa condenação inapelável?”. Minhaamiga dizia que qualquer um que pronunciasse essas palavrasalcançaria o coração da psicanálise. Talvez tivesse razão. Àsvezes penso que se não fosse essa mulher não teríamos faladocomo o fizemos. Uma confidência: cada vez que lhe falavadela, desfrutava imaginando que você a evocava do modocomo eu queria que a visse. Uma deusa com um saber que nãopoderíamos apanhar. Um corpo que nunca chegamos a pos-suir. Uma ocorrência fora de controle. Uma voz que sem concor-rer não deixava de aparecer em meus pensamentos. Ela me fa-zia duvidar das coisas que lhe estava dizendo. Às vezes penso

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que sem essa mulher nossas conversas teriam caído num círcu-lo vicioso.

Escreve Meléndez: “Deste modo, na obra de Nietzsche encon-tram lugar não só um mas muitos e variados estilos e, portanto, nãosó uma mas muitas e variadas pessoas.” Meléndez sugere que apluralidade de estilos na obra de Nietzsche corresponde à multipli-cidade e contrariedade das máscaras que ostenta.

Uma vez sonhei que havia sobrevivido a você. Comparecia àconsulta apesar de você ter morrido. Naqueles anos pensavaem sua morte antes da minha. Mas, como vê, nem sequer coma sua morte imaginava um modo de terminar a análise. Apro-veito para mencionar o problema de sua existência como indi-víduo. Saber que você estava vivo me desvelava. Perguntava-me quanto dinheiro teria, quantos quilos pesava, como estavaseu coração, que relação tinha com seus filhos. Recordo quebuscava fazer com que minhas opiniões coincidissem com assuas. Não tolerava que nos encontrássemos em posições políti-cas opostas. Esta aresta da relação era muito delicada. Guar-dava na minha memória cada uma de suas ironias, de seussilêncios, de suas perguntas. Tratava de reconstruir e comple-mentar seus pontos de vista. Num momento senti que poderiapensar como você sobre qualquer coisa. Só requeria um poucode concentração para evocar o tom, logo as opiniões saiam deminha boca como se tivessem saído da sua. Nesses momentossaboreava nossa maravilhosa coincidência. Por fim podia vi-ver sem que você me faltasse. A penetração perfeita de um cor-po em outro, de uma consciência em outra, de um sonho emoutro. Não se assuste. Não creio que isso possa desabonar omodo como você conduzia o tratamento. Só poderia reprová-lopor não haver terminado a tempo. Adivinho outra vez sua per-gunta: quando teria sido a tempo?

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Escreve Nicolás Rosa em A Língua do Ausente que: “A leiturasintomal é a única que pode projetar os fantasmas da criação,objetivamente do estilo. A fórmula inquestionável: o estilo não é osujeito mas sim o objeto, não só formaliza as versões de estilo tradi-cionais como a de Buffon, como nos obriga a pensar nesse objetoduro e reluzente que se prende à escrita: o estilo é a enfermidadedas formas genéricas.”

Um comentário sobre meu estilo. Dedicava-me a você. Queriaque pensasse em mim como alguém distinto, incomparável,único. Creio que o estilo é a reserva amorosa do analisando.Como lhe parece minha definição? Minha ilusão final. A últi-ma esperança da fala. A constatação de que não tinha nadapara dizer. Que as coisas que contei durante anos eram seme-lhantes a milhões de relatos que se dizem por aí. Só muda aminha maneira. A distinção de meus modos de chegar, de co-meçar, de fazer tempo, de trazer recordações, de rir, de chorar,de me emocionar, de partir, de querer dizer mas de não ter nadapara dizer. Só ficam meus rodeios, vacilações, temores, atrevi-mentos. Só fica meu modo de estar nesses relatos. Inclusive re-conheço que vivi algumas coisas para podê-las contar. Muitasvezes falava com a intenção de esgotar o que teria de dizer.Propunha-me a não deixar nada sem mencionar, sem comen-tar, sem vincular. Tentei me esvaziar de palavras. Como se ti-vesse desejado morrer de falar. Por sorte, este súbito desfalecernunca foi completo. Talvez você terminasse a sessão no pontoem que eu poderia sobreviver à morte. Veja o que agora penso.Talvez você desconfiasse da entrada da morte cada vez quedizia: “deixemos por hoje”. Estes cortes estiveram quase sem-pre em suas mãos. Digo quase sempre porque com o tempo sou-be antecipar esses momentos. Aprendi a pressenti-los. Inclusiveadquiri a perspicácia de dosar as palavras para não sofrer umadespedida abrupta. Não queria sair com pensamentosdesordenados, com expectativas insatisfeitas. Creio que a artede falar em sessão é um gênero cheio de segredos. Uma

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estilística de relatos partidos. Uma estilística provocada pelodesejo de outro. Uma estilística de palavras extraviadas numouvido alheio. Uma estilística de multidões falantes numa sóvoz. Quantos falam quando uma palavra sai de uma boca?Dá-me preguiça descrever aqueles atos de fala povoados porinfinitos falantes saindo de minha boca, infinitos falantes in-gressando por seus ouvidos, seus olhos, suas mãos. Encontrosde um infinito com outros infinitos. Esboços de um percursosem representação. Vertigem de um falar que é o estilo de umamultidão. Um estilo de água, de água que corre, de água queevapora, de água que nutre a terra, de água que se bebe. Umestilo que, agora, é recordação. Desejo de um estilo. O desejode um estilo que não se apaga.

Escreve Meléndez que: “Nietzsche se esforça sempre em exporsuas concepções em determinada forma. A forma em que Nietzscheapresenta suas concepções se converte assim não só em indicativada maneira como ele mesmo as assume, mas resulta inclusive con-dicionante da maneira como teriam de ser adequadamente assumi-das (ou rechaçadas) por seus leitores.”

Não quero reduzir meu empenho impossível a um conjunto derecordações. Um ramo de figuras transmissíveis. Entende-me?Mas como falar do meu estilo sem dizer nada sobre mim? Comoreconhecer algo se desse algo não é possível falar. Conservo aidéia de meu estilo como uma insistência que não cessa. Por-que, ainda que eu tenha deixado de visitá-lo, não deixei defalar para você. Sempre seguirei lhe falando daquilo que sepassa comigo. Não necessito de sua presença para realizar esteato, necessito da suspeita de sua existência, isso é tudo. Aí se-gue outra definição de estilo: suspeita da existência de outropara quem se deveria falar de uma maneira única. Ou: estilo,maneira única de dizer algo que talvez não se diga nunca.Potência de uma maneira que não se realiza nunca. Traço quenão traça, que não se inscreve.

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Ao finalizar Para Além de Bem e Mal, Nietzsche discute seuspensamentos escritos. Desaprova-lhes ares de honradez, exibiçõesorgulhosas, pretensões de verdade. Nietzsche se pergunta quais sãoos sentimentos que se deixam escrever. Diz que só podemos captu-rar emoções que estão a ponto de murchar e que começam a per-der seu perfume. Só podemos compreender tempestades que seafastam e se dissipam. Sentimentos tardios que se põem amarelos.Diz que só apanhamos pássaros cansados de voar, aves extravia-das, criaturas que se deixam agarrar por uma mão torpe. Diz quenossos pensamentos só governam um mundo de coisas cansadas,quase perdidas.

Não confunda meu estilo com um dialeto, com um jargão, comum modismo pessoal. Meu estilo é a perseguição de algo quenão alcanço. O desejo de uma persuasão perfeita. Meu estilonão deve se buscar nas palavras que freqüentava, em meus gi-ros sintáticos mais marcados, em meus modos previsíveis defalar. Essas coisas seriam codificáveis. Enquanto que o quechamo meu estilo era insinuação. Odeio as classificações clí-nicas. Esse manual de doenças que parece um dicionário deretóricas emocionais. Tormentos de símbolos. Racionalidadede paixões. Normativas psiquiátricas, médicas, psicológicas.Não são o estilo, são cadáveres de uma estilística. O estilo nãoé o analisando. Não creia que estou falando de uma supostafrondosidade de minha pessoa. De uma suposta multiplicida-de que não se pode capturar. Não tenho nada contra a botâni-ca. Reconheço a utilidade das classificações telefônicas. Meuestilo era uma insinuação que não chegava a ser forma, modo,figura. Um estado de tensão de algo que não termina de con-vergir, nem de expandir-se até desprender-se do todo. O arre-medo do que foi apenas escutado, do nunca dito, do dito semser ouvido, do propagado até um limite que não pode ser escu-tado. Um estilo de coisas cansadas, quase perdidas.

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Escreve Nietzsche ao terminar Para Além de Bem e Mal: “Oh,que são vocês afinal, meus pensamentos escritos e pintados! Hápouco tempo ainda eram tão irisados, tão jovens e maldosos, comespinhos e temperos secretos, que me faziam espirrar e rir – e ago-ra? Já se despojaram de sua novidade, e alguns estão prestes, re-ceio, a tornar-se verdades: tão imortal já é seu aspecto, tão patetica-mente honrado, tão enfadonho! E alguma vez foi diferente? Quecoisas escrevemos e pintamos, nós, mandarins com pincel chinês,eternizadores do que consente em ser escrito, que coisa consegui-mos apenas pintar? Oh, somente aquilo que está a ponto de mur-char e perder seu aroma! Oh, somente pássaros que se fatigaram eextraviaram no vôo, e agora se deixam apanhar com a mão – com anossa mão! Eternizamos o que já não pode viver e voar muito tem-po, somente coisas gastas e exaustas! Apenas para sua tarde eu te-nho cores, meus pensamentos escritos e pintados, muitas cores tal-vez, várias delicadezas multicores, e cinqüenta amarelos e vermelhose marrons e verdade: – mas com isso ninguém adivinhará comoeram vocês em sua manhã, vocês, imprevistas centelhas e prodígiosde minha solidão, vocês, velhos e amados – maus pensamentos!”(JGB/BM § 296).

Abstract: Through the reading of Germán Meléndez’s “Man and Style inNietzsche”, the present article aims at reflecting and making comments onthe theme of style. The comments are intermixed with a report given by apatient to his analyst in which the art of speaking during a psychoanalysissession – his style – is defined as insinuation and desire for perfect per-suasion.Keywords: style – solitude – non-coincidence – insinuation – persuasion

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* Rachel Gazolla de Andrade é doutora em História da Filosofia Antiga, docentena PUC-SP; [ Na sua primeira escrita, este texto foi exposto em palestra minis-trada na Anpof de 1997 e publicada na revista “Philosophía” da Universidadede Cuyo, Mendoza, Argentina (1999). O texto atual foi revisado e aumentadopara fins de publicação nos “Cadernos Nietzsche” e faz parte de uma investi-gação mais ampla sobre “Eros em Platão”].

Caminhos de Dioniso:Platão e Nietzsche(a propósito do diálogo Symposium)

Rachel Gazolla

Resumo: A partir da leitura do diálogo platônico Symposium, o artigopretende expor uma das perspectivas que permitem aproximar Platão eNietzsche, qual seja, a presença de Dioniso. Conta, ainda, rever algunsaspectos não tematizados por Nietzsche na leitura da filosofia de Platão.Palavras-chave: Tragédia – Apolo – Dioniso – dialética – diálogo –filosofia

I. Nietzsche e Sócrates

Um texto com esse título lembra, imediatamente, a obranietzschiana A origem da tragédia no espírito da música1, que reme-te ao par de opostos bem conhecido na obra do filósofo, Apolo-Dio-niso. Que há uma leitura específica de Nietzsche sobre a cultura

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trágica helênica, sabemos. Que a tragédia grega seja uma expres-são cultural bem mais complexa do que os contornos que lhe deu ofilósofo no século XIX, também sabemos. Que ele tem uma visãoda metafísica conforme assentada pela tradição medievo-moderna,é fato depreendido da leitura de seus textos. Nesta ocasião, preten-do expor uma das perspectivas que podem relacionar Platão eNietzsche, dois filósofos aparentemente inconciliáveis: Dioniso.

Nas obras Sobre o Niilismo e o Eterno Retorno (1884-1888)2,Nietzsche apresenta a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco res-gatada do interior da alma grega para sua época. Ele afirma de seupróprio ângulo de leitura: “(...) Não me esforcei, no fundo, por nadasenão adivinhar por que precisamente o apolinismo grego teve de bro-tar de um fundo dionisíaco: o grego dionisíaco tinha necessidade dese tornar apolíneo: isso significa quebrar sua vontade do descomunal,incerto, assustador, em uma vontade de medida, de simplicidade, deordenação a regra e conceito. O desmedido, o deserto, o asiático, estáem seu fundamento: a bravura do grego consiste no combate com seuasiatismo: a beleza não lhe foi dada de presente, como tampouco alógica, a naturalidade do costume – ela foi conquistada, querida,ganha em combate – ela é a sua ‘vitória’.”

A alma grega, a cultura grega, assenta-se, a compreender-se essapassagem, no movediço solo de Dioniso e se constrói, aos poucos,com os tijolos claros de Apolo. Note-se que assim foi feito por dese-jo e gosto. Se o teatro trágico é a expressão desse embate resgatadopelo poeta ao apresentar a crise na qual está mergulhada o herói,uma crise que o impele à desmedida e à impossibilidade de supe-rar a própria destinação, nós, simples espectadores, não supor-taríamos vivenciá-la. No entanto, suportamos a filosofia como tenta-tiva de sair do trágico. A filosofia seria uma opção direcionada aomais ordenado, ao menos ‘asiático’, à procura dos nexos. Nesse sen-tido, ela é força apolínea. Parece ser isso que se compreende quan-do Nietzsche critica Sócrates e Platão e considera-os anti-gregos,

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sintomas da ‘caducidade’ da alma grega, por se colocarem nega-tivamente diante da vida, pensada na obra citada como fluxo dioni-síaco, ao optarem por um de seus ângulos, aquele mais permanente.No entanto, têm esses filósofos especial valor: esses grandes sábiosdecadentes são ‘sintomas de’, e deles emanam apenas interpreta-ções, argumentos sobre o valor da vida sem que aflua a vida mesma:“(...) Juízos, juízos de valor sobre a vida, pró ou contra, nunca podem,em definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintomas, só comosintomas entram em consideração – em si tais juízos são estupidezes.”(GD/CI, “O Problema de Sócrates”, § 12).

Os filósofos gregos não são trágicos, não são heróis, vale dizer,não podem, não querem, afirmar a vida como luta, embate, e ape-sar deles mesmos emanam sinais dessa vida através da forçaargumentativa que tanto prezam e do mundo como verdade. Parali-semos esse primeiro quadro. Na A origem da Tragédia..., Nietzschedeixa claro que o olhar dionisíaco é possível no teatro trágico por-que mostra a vida como inextinguível vir-a-ser, como expressão deseres em combate que na sua inocência estão aquém (ou além?) dacivilização, da cronologia das gerações e mudanças, e de seus valo-res. Só o afiado olhar heleno, diz ele, consolado nessa vivência me-tafísica, pode suportar o sofrimento ao penetrar no fundo aniquila-dor de identidade, sem história (nesse abismo caro aos românticos?),e deparar-se com o “...horror da natureza” (GT/NT §7). Nessa pers-pectiva, o homem apolíneo como é o filósofo grego, que pretende aordem, a medida, a excelência como expressão da beleza e do bem,é decadente porque se afasta do dionisíaco vital ao negar o “...ani-quilamento das fronteiras e limites habituais da existência”, opta pelomundo do cotidiano do agir que pode reconhecer-se em cada pas-so, assentado no principium individuationis.

Seus herdeiros, os homens modernos, sustentados pela inter-pretação da temporalidade como medida cronológica e pelo cons-tructo histórico-argumentativo, não podem assumir o nojo do cotidi-

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ano provocado pelo que não é cotidiano. Como produtor e produtoda cultura histórica, como sábio acumulativo que decifra com pre-cisão o ’sentido das coisas’ – segue Nietzsche –, o homem-filósofo,hoje, é herdeiro da decadência grega pela via de Sócrates e Platão,e permanece esquecido da força dionisíaca que lhe é inerente. Ofluxo da vida lhe é distante, mas é próxima a tábua de valores quedirige seus sentidos, transformadas, afinal, ‘em indigestas pedras’que roncam no estômago3.

Esse homem-filósofo que procura a sabedoria, senhor do tempoque ele mesmo nomeia passado, presente e futuro4, é uma alusãobem menos aos gregos e bem mais às Filosofias da História nas-cidas do idealismo precedente ao século XIX. Por que, então, aidiossincrasia com relação a Sócrates e Platão, nem de longe ‘filó-sofos da história’? Como irá Nietzsche criticar a ‘décadence’ desdeSócrates? Para ele, trata-se do filósofo que tem o saber capaz derecusar o olhar dionisíaco, esse olhar que a tragédia captura e sus-tenta e que o maiêutico Sócrates soube perder. Entretanto, Nietzschenão é um pensador linear, nem um dualista transparente. Ao mesmotempo em que acomoda Sócrates e Platão nos sintomas da deca-dência grega – como se fossem eles pré-kantianos –, pergunta,espantado e fascinado, que força extraordinária impulsiona Sócratesao negar os saberes que perambulam pela cidade e, altivamente,perguntar sobre a essência da virtude, da coragem, da beleza, numaousadia generalizadora cujo porte é, no mínimo, arrogante? Que for-ça de perversão é essa que tem Sócrates? Ele pergunta e responde:“...Quem é esse que pode ousar, sozinho, negar a essência grega, essaessência que, em Homero, Píndaro, Ésquilo, em Fídias, em Péricles,em Pítia e Dioniso, como o mais profundo dos abismos e a mais altadas alturas, está segura de nossa admiração assombrada? Que forçademoníaca é essa, que pode atrever-se a despejar essa poção mágicano pó? Que semideus é esse, ao qual o coro espiritual dos mais nobresda humanidade tem de clamar: Ai de nós! Ai de nós! Tu o destruíste,

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o mundo da beleza, com teu punho poderoso; ele se desmorona, ele sedesfaz! Uma chave para a essência de Sócrates nos é oferecida poraquele maravilhoso fenômeno, que é designado como ‘daímon deSócrates’.” (GT/NT § 13).

Esse fragmento nietzschiano é muito rico para esgotá-lo nessaocasião. Parcialmente, pode-se perguntar que Sócrates é esse queparece ter deixado a Estética pela Ética? O que é essa voz divina, odaímon? Nós, hoje, talvez a consideremos a consciência, essa falainterior da alma, contudo, tal interpretação é moderna em demasia.Nietzsche fala em ‘voz divina’, uma espécie de sabedoria instintivaque, nesse mestre amante dos jovens, dissuade, impede (cf. idem).Ora, o peso que o filósofo dá ao daímon socrático está nos verbosdissuadir, impedir. Se a manifestação ‘daimônica’ socrática é impe-ditiva, dissuasiva, é todavia força instintiva, pulsional, necessária,presente em todos os homens e que se manifesta desse modo nega-tivo, restritivo, em Sócrates – mas poderia firmar-se como força cri-adora-afirmativa. É força de qualquer modo, pressentida por elequando imantava os jovens com seus logoì, um poder usado lucida-mente (ainda segundo Nietzsche), até para conseguir provocar o co-nhecido veredicto ateniense que o fez imortal. Seria a alma socráti-ca a expressão de uma vontade de potência interiorizada em tal grau,que figuraria a ‘má-consciência’? (GM/GM II § 8), ou seja, a forçavital dionisíaca, sim, porém introjetada e nomeada pelos homens‘alma’? Assim parece. Vejamos um fragmento da Genealogia daMoral: “...Todos os instintos que não se descarregam para fora ‘vol-tam-se para dentro’ – é a isto que denomino a ‘interiorização’ do ho-mem: é somente com isso que cresce no homem aquilo que mais tardese denomina sua ‘alma’...A hostilidade, a crueldade, o gosto pelaperseguição, pelo assalto, pela mudança, pela destruição – tudo issose voltando contra os possuidores de tais instintos: ‘essa’ é a origemda ‘má consciência’.” (GM/GM II § 16).

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Sócrates: o de má-consciência; Sócrates, um Apolo-Dioniso, umtrágico, um ser do auto-sacrifício; Sócrates ressentido, negador davida e afirmador do reverso, ou da máscara. Sócrates, aquele queassume a mentira que é a verdade (WL/VM § 1). É a mesma forçaem uma de suas faces. Apesar da ‘racionalidade’ e do ‘auto-enga-no’ filosófico dessa ‘décadence’, há em Sócrates a intensidade deum poder que o tornou ‘senhor-de-si mesmo’ – como se expressa ofilósofo –, que lhe deu a potência de capturar a própria épocaateniense em sua silenciosa degenerescência. Isso fascina Nietzsche.Sócrates foi o pharmakós (a droga que é remédio ou veneno) e dooua Atenas o que ela necessitava; Platão foi o discípulo que provou deperto essa droga, como apontarei.

II. Nietzsche, Platão e os Sofistas

Platão não é um trágico, Platão é um filósofo. Sua vontade depotência, forte como foi a de Sócrates, não está a serviço da vida;além disso, não há daímon platônico. Sintoma da decadência, Platãoé o dialético por excelência. O que isso significa? Para Nietzsche, odialético despotencializa o intelecto do adversário. Se em Sócrates amaiêutica foi uma espécie de vingança contra os atenienses – suamorte afirmou-o para a vida histórica –, para Platão o que teria sidoa dialética? Simples instrumento despotencializador? Nietzsche lêPlatão como aquele que busca a verdade contra a vida, dividindo omundo em verdade e aparência para a construção de um caminhovalorativo, no que foi seguido pelo cristianismo e por Kant, segundoele. O Platão nietzschiano, aquele amoldado à geografia das alturascomo quis G.Deleuze5, não é um artista trágico que afirma a vidasem pessimismo, ele não diz ‘sim’ ao terrível, ele não é dionisíaco.Fabula o discípulo de Sócrates um outro mundo, inalcançável, reden-tor, verdadeiro, belo e bom. É a moral contra a natureza6, é o Platão

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ascético que retira a força do adversário em nome de um télos. Platãoafasta Trasímaco, destrói Cállicles7. Nesse sentido, não há reden-ção8: “...Em relação a Platão sou um cético radical e nunca fui ca-paz de fazer coro com a admiração pelo ‘artista’ Platão, que é tradi-cional entre eruditos..Platão entremeia, ao que me parece, todas asformas de estilo; com isso ele é o primeiro ‘décadent’ do estilo...Paraque o diálogo platônico, essa espécie de dialética assustadoramenteautocomplacente e infantil possa ter efeito de atrativo, é preciso nun-ca ter lido bons franceses...Platão é enfadonho...Na grande fatalida-de do cristianismo, Platão é aquela ambigüidade e fascinação cha-mada ‘ideal’, que tornou possível às naturezas nobres da antigüidadeo mal-entendido sobre si mesmas e o primeiro passo na ‘ponte’ queconduzia à cruz...”. (GD/CI, “O que devo aos antigos”, II § 8).

Será que Nietzsche tem razão ao aproximar Platão do cristianis-mo e recusá-lo como artista? Será tão auto-complacente e infantil adialética platônica para esse olhar afiado à margem do cotidiano?Ou haverá um ‘dionisismo’ platônico e um certo espírito trágico emsua filosofia? O Nietzsche que assim fala não quis ver outro Platãoem suas críticas, quiçá comprometido com uma certa significaçãode metafísica herdada pelo século XIX e recebida, por sua vez, daleitura assentada do Platão medieval, do ‘divino’ Platão como cha-mavam-no os grandes teólogos. Será essa metafísica a platônica?Com certeza, não.

* * *

Tem-se que o lógos platônico dos primeiros escritos é bastantesocrático, segundo o significado que a tradição interpretativa reco-lheu do que tenha sido a maiuêtica. Para essa leitura, há uma gran-de limitação no modo como Platão vai tecendo seus primeiros diá-logos, obrigando o discípulo a encarcerar sua ânsia de debate, na

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mesma medida em que o método de perguntas-respostas obriga oouvinte a um certo movimento ordenador do lógos.9 Porém, é exa-tamente esse aparente encarceramento – que não é o caso de apro-fundar nesta ocasião – que tece a trama forte da dialética platônica.Está claro que a maiêutica dos primeiros diálogos cumpre um papeldeterminado na filosofia platônica – para não avançar no papel psi-cológico e lógico da complicada relação mestre-discípulo que, emgeral, nos escapa. E, apesar de o filósofo ampliá-la nitidamente nosdiálogos de maturidade, nunca deixará de utilizá-la.

Platão está preocupado em criticar o modo sofista de utilizaçãodo lógos; nessa perspectiva, compreende-se que ao recusar os dissoìlogoì sofísticos – os argumentos duplos que implicam no combatede teses e na indicação de uma tese vencedora, aquela que tiver ológos mais forte – quer afastar a força da persuasão como funda-mento para a construção dos valores. A persuasão assenta-se napotência do lógos como processo técnico, e Platão procura-o em outrade suas faces, aquela que pode dar o conhecimento mais perma-nente possível, que auxilia o acolhimento da clareza, da força daevidência (alétheia) que, porque evidência, mostra-nos até onde épossível conhecer. É este um dos pontos fundamentais dos diálogosque não podemos perder de vista, assunto ao qual voltarei ao finaldesta exposição. Platão considerou que o julgar humano apresentacerta possibilidade de retidão ou de ‘verdade’, a que nomeou dóxaalethés.. Essa busca platônica, esse télos do saber impulsionado pelavida prática direcionada à eudaímonia, essa valoração incomodaNietzsche. Estará ele mais próximo dos sofistas?

Para os sofistas, como se sabe, é possível falar sobre qualquerassunto antinomicamente. É esta, exatamente, a força do lógos nohomem, e os estudiosos de Platão bem sabem que ele não pôdedispensá-la. Pelo combate dos logoì, o homem expande a força desua alma logística, e a Sofística indica ser o próprio homem a medidadessa força que passa por ele e se determina especificamente nele.

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Afinal, também a phýsis é combate de forças e nós somos phýsis.Isso diriam os sofistas e também, de modo geral, Platão, mesmoque os nossos manuais de História da Filosofia criem uma oposiçãoradical entre a Sofística e a Academia. A diferença – que de fatoexiste – não está, entretanto, nesse aspecto. Questões como “se hádestino ou não”, ou “se é ou não virtuoso querer obter tudo para sie contra todos” terão respostas vindas no bojo do embate retórico,onde um dos combatentes terá, necessariamente, o lógos mais fortee vencerá. Foi, também, pela prática dos discursos sofistas do sécu-lo IV, dos professores de retórica importantes aos tribunais, queAtenas condenou Sócrates. Nesse ângulo recai primeiramente a crí-tica platônica.

Os temas dos sofistas desse século, apesar de fundamentais, nãotêm a finalidade de transformar os que ouvem, assim lê Platão. Po-derá haver ou não um destino, de fato; ou ainda, poderá um ho-mem ser virtuoso (ou não) obtendo a qualquer preço o que quer,pouco importa, pois as teses estarão sujeitas à luta argumentativa,não sendo priorizada a tentativa de vincular o tema a uma claridademaior para os fins práticos, e o lógos adequa-se a isso. Essa é asegunda crítica platônica.10

Ora, aprender a argumentar, a bem dispor as palavras, signifi-ca, em última instância, saber persuadir, portar-se bem nos tribu-nais, nas assembléias; é saber dizer e ter o poder de criar um agir apartir da potência de persuasão, porém Peithó, a divina Persuasão,encerra-se em si mesma sem atrelar-se ao télos mas ao skopós, aofim imediato. Para fugir da relatividade de tal conduta afeita às téc-nicas, Platão unilateraliza o lógos ao tentar domar uma de suas fa-ces e cria um outro tipo de problema: como comunicar o movimen-to do próprio lógos para o outro? Difícil. Que se recorde oconstrangimento das respostas dos discípulos que seguem o mestre.No Críton, por exemplo, o discípulo e amigo de Sócrates, após ten-tar dissuadi-lo quanto a permanecer em Atenas, ouve do mestre ar-

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gumentos que o impedem de continuar seus propósitos. Respondecom conhecidas expressões: “Sim, certamente, é forçoso, assim é,evidentemente...”, e, aparentemente, Críton está derrotado. Seráassim, efetivamente, o que se passa? Ou terá o discípulo seguidotão de perto os ensinamentos socráticos, que está persuadido quan-to ao vazio de sua pretensão primeira? Expressaria sua derrota ousua compreensão ao usar nas sua última fala, as palavras: “...nadamais posso dizer, Sócrates.”?11

Assim como no Críton, é possível perceber no dialético o mes-mo trajeto firme de um domador e transformador de almas, em ou-tros diálogos. Na busca do mais evidente – ou melhor seria dizer,na busca da transformação? –, Platão sacrifica a potência do diálo-go como debate, ao mesmo tempo em que desvenda sua enormeplasticidade, suas múltiplas faces – violenta, branda, autoritária,dúbia, astuta, criadora, etc. Trata-se de fazer com que aquele queaprende possa seguir a par e passo o mestre-iniciador12. Outrosmoldes formadores não são aceitos por Platão em função de suaprópria reflexão ético-política e do que pensa ser a Filosofia.

E o que é, para ele, a Filosofia? Platão começa a apresentar ofio condutor de sua mais profunda reflexão, creio, nos diálogos di-tos médios, entre os quais escolho como exemplo o Symposium, umdiálogo sobre o Amor, do modo como dramatizou o filósofo, quenos dá uma boa direção sobre sua filosofia e dialética. Platão nãoobedece totalmente, nesse diálogo, as regras socráticas.13 Que pen-saria Nietzsche desse daímon que é Eros, pintura em movimento daprópria reflexão platônica?

III. A ambigüidade do ‘Symposium’

Examinemos, rapidamente, o diálogo em questão: um diálogosobre o Amor que é contado, em terceira mão, por Apolodoro, anos

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depois do acontecido em casa do poeta Agaton. Em meio à bebida,à comida, à dança e música – ambiente propício a Dioniso e Apolonessa mescla de limites claros e obscuros, se podemos falar assim –, o tema não poderia ser outro que o Amor. As palavras de Fédonde Mirrinote, de Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agaton de-senrolam-se belamente, entremeadas de colocações mítico-religio-sas, cívicas e médicas em vigência no século IVa.C., que tangenciamos saberes técnicos e alcançam os valores referentes ao agir. Não sevê sombra da altivez socrática nesse diálogo quando, ao iniciar suafala, pergunta a Agaton, após o cuidadoso discurso deste sobre osatributos de Eros, o que é o amor e não quais suas qualidades. Esseinício socrático levará o poeta a dizer que nada sabia sobre o quefalara. E como todos esperam que Sócrates explique com desenvol-tura tal tema, no momento em que lhe cabe discursar dá humilde-mente a palavra a uma mulher, Diotima, sacerdotisa de Mantinéia.14

Cabe perguntar: por que tal desvio, inédito nos primeiros diálo-gos? por que, exatamente, uma sacerdotisa de Mantinéia, debela-dora de uma peste ateniense? O nome Mantinéia relaciona-se à Mân-tica, à arte da adivinhação, e se recorrermos ao Fedro o correto seriafalar em arte do delírio, Maniké e não Mantiké, uma transformação(o acréscimo do ‘t’) que os homens não deveriam ter feito, mas fize-ram. A arte da adivinhação é um poder que alguns têm para lersinais que trazem o invisível ao visível. Não é essa uma funçãoapolínea, por excelência? Sim, é Apolo o deus de Delphos que dáaos homens tal possibilidade mediante um modo de embriagueziniciática, uma possessão específica diversa daquela de Dioniso.Apolo é o deus que divide o templo com Dioniso no correr do ano,este também uma divindade que toma posse do homem na manía,transportando-o para a embriaguez que lhe é peculiar. Ainda se-gundo o diálogo Fedro, há na manía adivinhatória – que não estáatada necessariamente à adivinhação mais superficial e conhecidados sinais visíveis15 – um estado divino, e vivê-lo é algo belo pois

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que provém dos deuses. Para consegui-lo, há necessidade dos ritospurificatórios e de iniciação, de modo que, através do deus “... aqueleque prova corretamente do delírio e da possessão, tem meios de livrar-se dos males atuais.”16

Deixando a difícil exposição desse que é um dos mais belos eintrigantes diálogos platônicos, lembremo-nos que, no Symposium,Diotima é sacerdotisa dos mistérios e seu saber e ensinar estão es-treitamente ligados ao delírio divino. Não é sem razão tal desvio deSócrates, pois é o próprio tema – o amor – quem o exige, dado queé realmente misterioso o fato de os homens viverem o estado amo-roso sem que o procurem. Ademais, o que há de mais difícil com-preensão que o impulso do corpo e da alma para apenas uma pes-soa? Que desconhecido delírio toca o homem que ama e o transportapara perto das divindades? O elogio ao amor que faz Platão atravésde Sócrates/Diotima (no Fedro através de Sócrates/Stesíchoro) apre-senta o que todo grego sabe: o amor é algo sagrado que ocorre aoshomens de modo inefável e compreendê-lo faz parte dos mistérios.

Então, que lógos, que palavras corretas e bem encadeadas têm,afinal, os amantes da sabedoria para falarem sobre o amor se nãopodem sujeitá-lo às regras argumentativas? E o amor se sujeita tãomal a elas, que Platão nunca argumenta sobre Eros; ao invés, dá aoutros personagens – Diotima e Stesíchoro – o discurso oracular epoético, os mythoí, de modo a que seu próprio lógos possa conti-nuar, retirando deles a força. O tema ‘amor’ é difícil para a Filoso-fia, e Platão está consciente disso. Afirmar isso, pode contrariar aleitura mais usual que se faz do Symposium, diálogo propiciador dafamosa expressão ‘amor platônico’. Analisemos um pouco mais esseproblema. Quando na tragédia Antígona, por exemplo, Creonte,diante da resistência da sobrinha às suas ordens exige sua morte,diz ele sobre o amor de seu filho Hémon à heroína que “...há outrossulcos para Hémon arar ..”, ao que Ismênia responde: “... mas nãoum outro amor como aquele que cresceu entre ele e ela..”.17

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Trata-se, nesse caso, do amor individual, aparentemente o anti-tema para a filosofia, mas o tema trágico por excelência. Contudo,Platão afirma nos diálogos de maturidade ao procurar compreen-der o que é a alma, que ela é sede dos hábitos, caráter, opiniões,apetites, prazeres, penas, conhecimentos de todos os tipos: a almaé uma ousía, uma essência que contém todos os movimentos lógi-cos, psicológicos e vitais do ser humano, quer saibamos de todoseles, quer não18. Lembremos que a alma platônica, nas suas trêsdynámeis, tem na potência logística (logistikón) a sede do noûs; elaé a mais perfeita entre as três, pois que lhe pertence o movimentodo próprio cosmos. Conforme a exposição do Timeu, pertence à almaoutro tipo de movimento que não o mais perfeito, referente às ou-tras potências (timoeidés e epithymetikón). Sendo o homem um du-plo – corpo-alma – é, entretanto, mais que duplo, uma vez que Platãoestabelece a alma com duas formas (eidé), a mortal e a imortal19. Ohomem é, assim, um ser misturado e pleno de contrários, cósmicoda perspectiva anímica logística e singular da perspectiva anímicados sentimentos e afecções, quando da mistura da alma mortal como corpo. O corpo é gênero, como a alma, mas são singularidadesque vivem essa difícil mescla20.

Observo tais aspectos, sem aprofundá-los, somente para que nãose perca tal ângulo, pois algumas passagens do Symposium adqui-rem nova luz nessa ótica. Quando Diotima fala, há a famosa expli-cação do processo de ‘sublimação’ do amor, tão lido e relido naHistória do Ocidente, no qual não me deterei. Sucintamente: do amoraos belos corpos ao amor a um só belo corpo, até que se pos-savislumbrar que esse belo de um só está em muitos corpos; daí, apren-der a amar a bela alma e alcançar o amor às belas almas; a seguir,amar a beleza das técnicas, dos saberes, e, finalmente, a beleza comoidéia. A crucial passagem, já se adivinha, não está no último degraudessa ascese mas no segundo, ou seja, do amor a um só belo corpoe uma só alma para o amor plural – ao belo nos corpos e almas –,

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deixando para trás a singularidade, amando a beleza abstraída doscorpos e almas sem a carência daquele amor ao qual dirigimos nos-sas emoções psico-físicas. É possível ao homem, um ser misturado,fazer tal abstração em sua vida? Não, enquanto ser singular. Sim,como ser logístico que decide instrumentalizar o lógos expandindo-o em todo seu poder, dirigindo-o além de sua própria vida singular,buscando os fins últimos do conhecer e agir.

Na ascese proposta por Diotima há uma grande astúcia que,numa espécie de amaciamento da força das emoções para alcançara força das abstrações, impõe silenciosamente esse difícil degraucomo se tal ‘subida’ pudesse dar-se à semelhança dos nexos persu-asivos dos logoì nos tribunais e assembléias; como se os argumen-tos tivessem tal poder vital. Dito em outras palavras: do sentido in-dividual do amor ao seu sentido universal está implicado o escapedos afetos como entraves à ascese inteligível, à semelhança dos ini-ciados órficos. Desviar-se dos sentimentos de carência e completudepróprios do estado amoroso é possível somente na ascese religiosa,por isso é Diotima quem fala, uma sacerdotisa dos mistérios. E Platãocomo filósofo?

Sabe ele que as coisas humanas não são assim, por mais clara esagrada que seja a fala de Diotima. Do amor particular ao amoruniversal talvez não haja argumentos. Se a sacerdotisa tem a falasagrada, o dizer humano cotidiano afunda em contingências inespe-radas, como a anterior crise de soluços de Aristófanes que, impe-dindo-o de falar, rompe a ordem pré-estabelecida no simpósio21.Quem poderia esperar em um diálogo filosófico tal incidentecorpóreo tão banal? Não creio que essa banalidade do corpo, essesinal demasiado humano seja um mero episódio sem significaçãona estruturação do diálogo, uma vez que para o comediante, comose sabe, o ponto nevrálgico é o par amoroso originário, marca dopoder da singularidade que Diotima quer ultrapassar.

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A Filosofia parece pretender o caminho mais próximo a Dioti-ma, pois é ‘apolineamente erótica’: ela é o mover-se daimônico dosmortais aos imortais e dos imortais aos mortais, ou, do visível aoinvisível e deste ao visível quanto ao conhecimento do Ser. Todavia,é movimento desejante, então é carência e completude como o amorsensível, imagem que Platão tão bem expôs no mito de Eros. A Fi-losofia, com referência ao amor, deseja ultrapassar o singular, masdesejar não é ter, mesmo porque não sendo ela sabedoria não teme não terá a força da vidência divina: ela é a procura da sophía,como bem marcou Platão, a despeito das interpretações posterioresque o fazem pai da ‘metafísica da verdade’. Não sendo o filósofosábio, não sendo ignorante, é aquele que ao fazer a intermediação(méthexis) desses campos busca o que é possível ao ser humano. Eo que é possível à vida humana mista, contingente, sublunar comodirá o discípulo Aristóteles, é a dóxa alethés quanto ao conhecimen-to. Alcançar a força da evidência (alétheia) significa ter a presençadivina por instantes em nossa alma, momentos em que se pode dis-pensar o argumento para, depois, continuá-lo. Se a dóxa alethés é afinalização de um arrazoado até sua máxima correção (orthé dóxa),que relação há entre o amor e o conhecimento?

No que concerne ao amor pelo belo e pelo bem, conformeexplicitado por Diotima, ele é o impulso que respeita ao filósofo,àquele que pretende o dizer evidente sobre as coisas que são e re-conhece os paradigmas formais como fundamento da própria alma(logo, do conhecer):as idéias. Pela visão das idéias, ele pode e deveensinar sobre o parentesco do não divino com o divino, naquele in-cessante movimento daimônico que lhe compete. A ‘verdade’ geo-graficamente distante ou como processo ao final do qual a ‘apanha-mos’ como se ela fosse uma coisa, é bem mais uma cristalizaçãohistórica e menos uma colocação platônica.22 Os filósofos gregos, ébom que se lembre, não vêem “a verdade” como adequatio mascomo claridades que se impõem, o que não é obscuro e a todos faz

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crer por sua própria força. A alétheia pontifica os logoì e temosmuitas vias de não obscuridade além dos argumentos propiciadoresde evidência23.

Diante desse quadro, na teatralização dos lógoi dos participan-tes do simpósio e no de Diotima, nota-se uma abertura que não ha-via nos primeiros diálogos. Platão parece assumir o solo astucioso ecriativo dos argumentos, solo que indica os limites do conhecimen-to e das ações humanas, bem como de seus poderes. Ao usar derecursos mítico-poéticos (mitos, metáforas, imagens, fábulas, rela-tos, alegorias, jogo de personagens...), explicita também as faces dológos, seus rostos dionisíaco e apolíneo, sua plasticidade sinalizadanas máscaras que assume, quer como essa espécie de delírio báquicono qual nos arrastam os encadeamentos argumentativos, quanto oestado adivinhatório que nos assalta a cada novo avanço das sen-tenças de uma rede argumentativa. Ambos divinos, ambos presen-tes no pensar-dizer filosófico, tanto a manía quanto o encadeamen-to gramaticalmente bem exposto são a matéria primeira para filosofiaplatônica. É esse o Eros que carrega o lógos.

Agora podemos voltar a Nietzsche. Ele não atentou a tais deta-lhes, ou não quis ou não pôde fazê-lo. Mýthos e Lógos não estãodissociados embora não se mesclem, e não há limites nítidos entreeles. Como se sabe, o Sócrates do início do Fédon lamenta não sercriador de mythoì. Se Dioniso e Apolo são deuses que levam o ho-mem ao conhecimento através da manía, e se no mito de Teuth doFedro o lógos como escrita é fixado por regras, será na intersecçãodos instrumentos mítico-poéticos e na oralidade do ensino da Aca-demia que o filósofo resgatará sua potência e movimento mais am-plos. Tanto no Symposium quanto no Fedro, Platão mostra não ser omaiêutico dos primeiros diálogos, rompe claramente com os sofis-tas ao não aceitar ser um ‘senhor do lógos’ para os fins de domíniode uma técnica que pode produzir no outro o que se quer – como orétor pode fazer. Pretende, antes, libertar-se e libertar o discípulo

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para uma relação bela e bem equacionada: uma libertação atravésdo ensinar e aprender amoroso que não dispensa a téchne e aepistéme presentes na dialética24. A loucura divina de Dioniso e deApolo incorporam-se à exposição dia-lógica e teatral dos diálogos,como foi incorporada na tragédia.

No profundo conhecimento de que para dizer certas coisas nemsempre o lógos dominador e técnico cumprem seu papel, assume-seriscos. Até mesmo o silêncio anunciado obtém, por vezes, maiorêxito que a articulação dos sons em palavras, como mostra umapassagem do Timeu quando este, para falar do nascimento da almacósmica, diz que não há lógos adequado para certas coisas que nostranscendem, e é melhor recorrer ao mýthos. Assim sendo, acreditoque por um bom motivo, ao invés de terminar o Symposium com afala de Diotima – o que o leitor esperaria –, Platão estrutura aintempestiva entrada de um Alcibíades belo, inteligente, corajoso,amado por todos, mas... completamente embriagado, possuído porDioniso. Por isso mesmo, é respeitado na medida em que todos ospresentes sabem que oinós kaí paídes alétheís.25

IV. Platão e Alcibíades

Se há uma embriaguez apolínea no saber de Diotima, não é amesma que se apresenta em Alcibíades. Corpo e mente do jovemestão sob um outro domínio que não aquele afeito às regras cívicas:a inesperada entrada de um ébrio, como foi inesperada a crise desoluços de Aristófanes, e Platão põe em cena Apolo e Dioniso:Sócrates e Diotima de um lado, com o lógos filosófico construídoapolineamente do visível ao invisível, e Alcibíades, de outro lado,sob o signo de Dionisio e com a palavra psico-fisiológica das emo-ções do corpo e da alma embriagados. Com Alcibíades, Platãoretorna à questão do amor individualizado.

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O jovem propõe falar claramente, de modo que obtenha a anuên-cia de todos os presentes porque o que tem a falar não é obscuro aninguém, é tés alethés, são fatos conhecidos pelos atenienses. Ten-tará falar, anuncia, através de imagens (que também Platão utilizouanteriormente ao expor o mito de Eros). Todavia, diz que não o faráde forma ridícula, apesar de um ébrio ter sempre algo de ridículo.Ora, na embriaguez está Dioniso, patrono da tragédia e da comé-dia, e Alcibíades é tragicômico em sua aparição apesar de sua falapresentear os ouvintes (leitores) pela clareza. Ele nos afirma umSócrates duplo, ambíguo, astucioso, dionisíaco em seus mascara-mentos; um Sócrates que apanha o discípulo como fazem os silenos(animais e homens)de Dioniso, que encanta como Mársias, o flau-tista sob o patronato de Apolo que, exímio em sua arte, pretendeudesafiar o deus, particularidade que é preciso grifar. Os logoìsocráticos são como veneno de serpente, diz ele, como poção mági-ca: perturbam a alma, deixam-na em condição servil, provocam osmais contraditórios sentimentos, das lágrimas à irritação, servilidadebem pertinente a Dioniso.

O pharmakós socrático é remédio e é veneno, sim, do qual pro-vou Alcibíades (e também Platão) de modo indelével. Sócrates, po-rém, não encanta qualquer jovem, segundo testemunha o beloAlcibíades, mas procura os belos jovens, e ao modo dos sátirosdionisíacos toma posse deles encantando-os como as sereias encan-taram Odisseu. Sócrates deixaria os jovens no segundo degrau daascese de Diotima? Diz o vinhoso Alcibíades na sua clareza26: “...Euentão, mordido por algo mais doloroso, e no ponto mais doloroso emque se possa ser mordido, pois foi no coração ( kardían) ou na alma (psychén), ou qualquer que seja o modo de nomear a isto, fui golpeadoe mordido pelos discursos filosóficos (tôn en philosophía lógôn) quetêm mais virulência que a víbora quando pegam uma jovemalma....Todos vós, com efeito, participastes em comum do delírio fi-

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losófico e dos seus transportes báquicos (tés philosóphou manías te kaíBakcheías)...”.

As palavras do Alcibíades, rejeitado em seu amor, denotam seuencarceramento como discípulo dos discursos socráticos e do en-cantamento pelo indivíduo Sócrates, sem a pretendida passagempara graus mais abstratos, como ensinava Diotima. Ora, Sócratesprecisa encantar para ensinar, seduz realmente os jovens ao mesmotempo em que nega tal sedução quando, ambiguamente, os mantématraídos para libertar o corpo em favor da alma e esta para a filosofia.O aprisionamento do jovem exteriormente belo – o belo corpo, opropriamente estético, ponto inicial do movimento amoroso27 –, deveser deixado, depois, em nome da beleza interior e da beleza em si.Como diz o jovem amante, confuso e ressentido, a divindade socrá-tica esconde-se no interior de Sócrates como as pequenas divinda-des fabricadas pelos escultores de silenos, que as colocam na partede dentro da estátua para só aparecerem quando abertas. Despre-venidos, os jovens deixam-se arrastar nesse caminho. Afinal, somostodos crianças e abrimos as coisas para explorá-las28.

O jogo é: interior, exterior. Sócrates é um homem estranho quetodos querem ver; é capaz de ficar dia e noite em pé, em silêncio,como se refletisse; andar na neve sem sandálias como se não sentis-se frio nos pés; mas é também aquele que luta bravamente nas guer-ras, que cumpre os deveres de cidadania, que age segundo as re-gras gregas e o que dele se espera como cidadão. Sócrates, afinal,afirma-se civicamente para todos e, no encantamento das palavrasdirigidas aos jovens belos impõe-se individualmente. Paradoxalmen-te, quer negar o individual. Estranho semi-deus que não ama comoos homens amam! E Platão certamente provou desse distanciamento.Resta indagar: por que Platão termina o diálogo anunciando umSócrates dionisíaco, distante da imagem de sobriedade e rigor, órficaaté? Uma resposta possível recai na força da ambigüidade socráti-ca, tão bem exposta por Alcibíades.

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V. Nietzsche contra a metafísica platônica

Há metafísica platônica? A vida é movimento, é alma, diz Platãono Timeu, e sendo a alma movimento não há como descansar napermanência do em-si-por-si. Ora, o amor é o menos repousantedos temas, mesmo porque é o daímon que transita mais propria-mente nos contrários. É significativa a insistência platônica, noPhilebo, em afirmar o mundo como míxis – mistura do péras eápeiron (limitado e ilimitado) já anunciados no Timeu – na intençãode unir o que nomeamos Estético a todos os outros campos reflexi-vos (Ético, Político, Gnoseológico) quando diz29: “...Não é deles, dosilimitados e dos limitados, que nascem as estações e todas as belezasque desfrutamos, quando estão misturados?”

O Platão da mistura, dos intermediários, assume a medida e adesmedida em todos os níveis: cósmico, ético-político, estético, epis-temológico, psicológico, e suas reflexões sobre o amor como movi-mento ‘ligante’ são prova disso. Suas argumentações quebram-se etransmutam-se freqüentemente em mitos, metáforas, alegorias, pará-bolas, silêncios astuciosos, no abandono de temas por demais insti-gantes, no uso de personagens oraculares, indicando que nossas re-flexões e ações sempre mostram nossos limites e que, mesmo assim,lutamos para ultrapassar a nós mesmos como se heróis fossemos.Não deixamos a contradição que nos é inerente ao pensarmos sobreo absoluto sem ter lógos para ele. Platão é um filósofo do devir e dapermanência e o famoso parricídio parmenideano do diálogo So-fista, se de fato houve, talvez deva ser pensado em conjunto comessa espécie de ajuste amoroso da lembrança do seu mestre noSymposium.

Usando a linguagem nietzschiana, Platão foi ao ‘fundo das coi-sas’ como os pensadores que o antecederam, e soube da absolutanecessidade humana de aí não permanecer a não ser por um ins-tante: este é o vértice da tragédia, mas não somos heróis trágicos, a

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filosofia não é heróica, não quer permanecer em hýbris. Ela estádesvinculada da áte, da sombra que escurece a família trágica, e ofilósofo não tem um saber que se move por parentescos destinais,não se insere na cadeia de crimes de sangue: seus parentes são ló-gicos. Atenas matou Sócrates que, por sua vez, aceitou Atenas. Essamorte tem que ser superada pelo discípulo.

Ao concluir essas considerações, lembro que Nietzsche na suaobra Introdução à leitura dos diálogos de Platão30 afirma que a Teo-ria das Idéias platônica é algo muito espantoso, uma preparaçãoinestimável ao idealismo kantiano. Ora, se Nietzsche pensa o núcleoda epistemologia platônica como ‘preparação’ a Kant, sua perspecti-va deixa de ser propriamente grega para inserir-se no fio condutorque ele mesmo critica. Que respondam os kantianos sobre essa es-pantosa aproximação. Ademais, a afirmação dos limites e deslimitesdo cosmos, da cidade e do homem que Platão expõe nos últimosdiálogos dão-lhe uma dimensão reflexiva tão densa quanto foi den-sa a explosão humana, demasiado humana, de Alcibíades ao finaldo Symposium. A metafísica platônica – se quisermos manter essapalavra de pouquíssima incidência nos diálogos – não é a medieval,e esse pequeno passeio agora feito pelo Symposium deve mostrarparte dos numerosos matizes que pontuam um texto platônico.

Se os diálogos sucumbiram às interpretações das épocas, fixadosna tradição interpretativa de modo a parecerem claros, bem delinea-dos e conduzidos a um fim previsto, podemos, hoje, desconfiar dessacristalização atentando cuidadosamente ao texto, à cultura e à gramáti-ca grega antiga. Finalmente, uma citação da última obra de Platão, asLeis, deixa aos leitores uma afirmação sobre a ação mimética – que épropriamente a ação da arte, da poiésis como fabricação. Ele que,enquanto um ex-poeta no sentido estrito e enquanto filósofo de diálo-gos permanece parcialmente no campo poético (como os trágicos),considera, como se sabe, a arte (téchne) como forma de conhecimen-to menor quando relacionada à epistéme, diz, todavia31: “... somos

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autores de tragédias e, na medida do possível, autores da mais bela eda melhor tragédia, pois toda nossa constituição (politéia) não temoutra razão de ser que imitar a vida mais bela e mais excelente, e é aíque se encontra, segundo nossa opinião, a tragédia mais autêntica...”.

Assim, talvez Nietzsche guarde mais condimentos platônicos doque se possa suspeitar. Se Platão afirma que nosso conhecimento éimitação das divinas idéias e que o cosmos foi fabricado por umdemiurgo que teve um modelo a imitar o mais perfeitamente possí-vel, tem-se que estamos num grande palco e podemos conhecer oque se dá como espetáculo. As coisas são, no rigor dos termos,máscaras e máscaras que se seguem, múltiplas, vagantes como so-nhos, assim como múltiplos e vagantes são os conhecimentos quetemos sobre esse aparecer do estofo cósmico, os fenômenos. E aspalavras... são pharmakós.32 Ora, se voltarmos a algumas passagensda obra nietzschiana, não leremos frases muito diferentes dessa vi-são. Que a verdade seja um batalhão de metáforas, que é ilusão,podemos ler em Sobre a Verdade e Mentira no sentido extramoral;que o jorro dos signos é incessante e nossa razão adequada a certastrilhas não pode seguir sem adotar um amplo olhar ‘perspectivo’,também lemos nas Considerações Extemporâneas. E seria possívelexpandir quantitativamente tais passagens em outros textosnietzschianos. Porém, se de um lado Nietzsche tem o perfil platônicoquanto aos limites do humano, quanto ao solo movediço em quenos encontramos, ao jogo de máscaras que guarda o invisível emcombate, ele não tem, certamente, a mais ‘alta’ das afirmações dafilosofia de Platão: a idéia de Bem como gênero supremo (mégistosgénos), ao menos não a tem claramente33.

Para o filósofo grego, o Bem é a idéia fundante de toda a ordemdo cosmos, é fundamento do próprio conhecer, dos nexos que cri-am um organismo, dos nexos que criam o pensamento, é o sinal dapresença efetiva de Eros. No entanto, diz Platão que há a possibili-dade da desordem, do que não é o Bem, algo perfeitamente pensável

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na forma da Anánke, da Necessidade, ou, se quisermos, do Malcomo destruição. Anánke quebra os laços, os nexos, quebra Erosque tudo liga de modo imprevisível34. É por Anánke que Platão sedistancia, definitivamente, da teleologia medieval que lhe impôs amodernidade.

Não sei se Nietzsche, por mais astuciosa que seja a armadilhacriada aos seus leitores-intérpretes, conseguiu destruir um ponto fixode onde cria uma multidão de pontos móveis para expor seu lógos35.Por mais que tal intenção esteja sinalizada, continua havendo umtópos que irradia lógos. A hermenêutica é movente, o hermeneuta,nem tanto. Platonicamente: a plasticidade do lógos é um fato, masseus limites certamente se impõem independentes da “Razão”, equando isso ocorre nenhuma gramática, nenhum estilo, nenhumahermenêutica é capaz de superar, nem mesmo as mais criativas comoo poema-parábola de Zaratrusta. Mas essa visão do lógos é da anti-ga Grécia, não é moderna.

Abstract: Taking in to account the reading of Symposium, the article aimsat exposing one of the perspectives that enables us to relate Plato andNietzsche, i. e., the presence of Dionysus. It tries to review some aspectsthat have been commonly neglected by Nietzsche in his reading of Plato’sphilosophy.Key-words: Tragedy – Apollo – Dionysus – dialectics – dialogue –philosophy

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notas

1 A tradução usada para as obras de Nietzsche aqui citadas,com raras exceções apontadas, é do Prof. Dr. Rubens Ro-drigues Torres (ed. Abril, col. Os Pensadores, São Paulo,baseada na ed. Kröner, 5 volumes – F.Nietzsche, Werke,Herausgegeben von Nietzsche-Archiv, Alfred Kröner,Verlag Leipiz, s/d).

2 Eterno Retorno...”, aforismo 1050 (na ed.Kröner sob o tí-tulo geral “Wille zur Macht”).

3 Cf. HL/Co.Ext. II § 1.4 Idem, § 1 e § 4.5 In La logique du sens, 18.6 Idem, aforismo 6.7 In República (livro I) e Górgias, respectivamente.8 Não se deve esquecer que Nietzsche, na sua escolhida

ambigüidade, valoriza o sofrimento de Cristo na cruz, bemcomo o de D.Quixote ao morrer, como importante formade conhecimento, pois a sobriedade trazida pela dor, ensi-na (frase semelhante foi dita por Sófocles em algumas tra-gédias). Diz o filósofo em Aurora § 114: “...É possível queisso (a sobriedade trazida pela dor) tenha acontecido aofundador do cristianismo na cruz: pois as mais amargas detodas as palavras, ‘Meu Deus, por que me abandonaste!”,contêm, entendidas em toda a sua profundeza...o testemu-nho de um global desengano e elucidação sobre a ilusão desua vida...assim como o poeta conta do pobre dom Quixotemoribundo.”.

9 Para compreender essa aparente ‘mordaça’ do discípulo ea dimensão dialética e ética dos diálogos, a obra de H.G.Gadamer Platos dialektische Ethik (L’Éthique dialectiquede Platon, ed. Actes Sud, 1994) é de extrema importância.

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10 O Eutidemo é um bom exemplo dessa crítica.11 Críton, 54 d.12 Não abordarei a importante questão sobre o poder do mes-

tre que não é uma forma de autoritarismo, mas sim deautoridade, pois seus ensinamentos estão mergulhados naphilía. Tal assunto foi brilhantemente estudado porH.G.Gadamer na obra anteriormente citada.

13 Talvez Nietzsche tenha confirmado demais a tradição in-terpretativa sobre o platonismo e não se apercebeu, ounão quis manifestar-se, ou não lhe era interessante fazê-lo, da dimensão dessa Filosofia e de seu ‘dionisismo’, filo-sofia que estudou veementemente, como se sabe. Por umdesses motivos não a redimiu em suas críticas.

14 Diotima é personagem criado por Platão. Não é sem razãoque a sacerdotisa é aproximada do médico Erixímaco que,anteriormente, falara da Medicina como a arte de ler si-nais mostrando a analogia com a Mântica, que também lêsinais. A Filosofia, a Medicina e a Mântica têm proximida-de (assunto que não é possível desenvolver aqui). Nãoparece haver dúvida, também, quanto à metáfora sobre apeste ateniense curada pela sacerdotisa, e que Platão pa-rece deslocar para o período final da Tirania dos Trinta ea volta à democracia que condenou Sócrates.

15 Provavelmente, Platão refere-se aos caldeus e outros adi-vinhos que lêem sinais nas praças públicas.

16 Fedro, 245 a.17 Antígona, v. 568 ; Martha Nussbaum em sua obra “The

fragility of goodness’,pág.174 ( ed.Cambridge, 1992) citaessa fala da tragédia no contexto de seu tema sobre oamor individual de Alcibíades a Sócrates.

18 Conforme Fèdon, Timeu e Philebo, principalmente.19 Timeu, 43 a ss.

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20 Timeu, 69 a ss.21 Symposium, 189a.22 idem, 203 a e seguintes. Com relação à má geografia

platônica das ‘alturas’, bem como à fixação do eidos como‘essência’ – de sabor medieval –, em contraposição extre-mada à aparência entendida como mera ilusão, seria maisproveitoso traduzir tás doxádzontas por ‘as coisasopináveis’, e não “aparências”, a não ser que se entendaesta expressão por ‘coisas que aparecem’ – vide Repúbli-ca, 476 c e seguintes. Desenvolvi tal temática na obra‘Platão: o cosmo, o homem e a cidade’, parte II (ed.Vozes)

23 Sobre a questão da alétheia e veritas – e a posterior sedi-mentação como “verdade” – é tema extenso que atualmenteinvestigo. Adianto, porém, sobre a necessidade de tentarcompreender alétheia à margem da noção sedimentadade verdade, esta, sim, mais pertinente ao que entendemoshoje por ‘metafísica da verdade”.

24 Cf.vários diálogos, principalmente República, a dialética étéchne e epistéme.

25 “No vinho e na criança, o não obscuro.”26 Symposium, 218 a,b27 A relação Amor-Beleza está estudada no Fedro e no Timeu,

principalmente..28 É interessante a colocação de Martha Nussbaum (ob. cit.

pág. 189-90) quanto à dimensão do falar humano, quan-do diz que “...toda vez que podemos falar, estamos ten-tando desvelar coisas...”; para ela, o falar como necessi-dade de desvelar tem uma dimensão sexual e epistemoló-gica inseparáveis, pois é um desejo humano primário emuito forte. A imagem que Alcibíades faz de Sócrates como‘guardador’ de pequenas estátuas no seu interior – quedevem ser descobertas – vai nessa direção.

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Caminhos de Dioniso: Platão e Nietzsche

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29 Philebo, 26 b.30 Introduction à la lecture des dialogues de Platon, ed.L’éclat,

Paris,199131 Leis, 817 b.32 In República, livro IV e Fedro 274 b ss.33 Talvez haja algo nessa vertente em Assim falava Zaratustra.34 Timeu, 47 a ss.35 Refiro-me ao belo texto de Franklin Leopoldo e Silva, nos

Cadernos Nietzsche 4: “O lugar da interpretação” (1998).

referências bibliográficas

1. “Cadernos Nietzsche 4”. São Paulo, GEN/Discurso Ed.,1998.

2. “Cahiers de Royaumont – Nietzsche” (Philosphie IV).Paris, ed. de Minuit, 1967.

3. MARTON, S. “Nietzsche-das forças cósmicas aos valoreshumanos”. São Paulo, Humanitas, 2000.

4. NUSSBAUM, M. “The fragility of goodness”. Cambridge,ed. Cambridge Univ. Press, 1986.

5. VATTIMO, G. “Introduzione a Nietzsche”. Roma-Bari,Laterza & Figli, 1988.

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* Texto apresentado no II Colóquio Nacional “Assim falou Nietzsche”, na UNIRIO,em Novembro de 1999. O autor manteve o texto na forma de exposição.

** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto.

Arte e Conhecimentoem Nietzsche*

Olímpio Pimenta**

Resumo: Este artigo pretende analisar aspectos concernentes ao proble-ma do conhecimento, da racionalidade e da verdade, em Nietzsche, vi-sando à composição de um painel no qual a arte inscreva-se como ele-mento necessário. A distinção entre “a arte das obras de arte” e atividadeou atitude artística introduzida por Nietzsche em Humano demasiado hu-mano aparece como pano de fundo da análise.Palavras-chave: arte – conhecimento – verdade – racionalidade – reali-dade – trágico

Para o Miguel A. B.

No que tange às questões consagradas pela gnoseologia como“sua tradição”, a herança de Nietzsche tem uma vida extremamen-te curiosa. Longe de esgotar-se pelo uso, seu legado segue em cons-tante expansão. Isto se dá, não porque se lhes acrescentam novasdescobertas, – afinal, o baú do filósofo tem fundo – mas porque, aoque parece, a lição de um respeitável leitor é ainda amplamente

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válida. Se, por um lado, pensar “o que diz” Nietzsche é um contra-senso, pois não há nele doutrina ou convicções, “pensar com ele”,por outro lado, é sempre uma estratégia promissora. É sob essesauspícios que pretendo avançar até o elenco temático proposto. Pelorecurso a certas formulações inscritas na obra nietzschiana, vou exa-minar de modo pontual alguns aspectos dos problemas do conheci-mento, da racionalidade e da verdade, com vistas à composição deum painel, no qual a arte figure como elemento necessário.

A magnitude desse escopo impõe que se façam escolhas quantoaos pontos de ataque a serem adotados. Nesse sentido, as seguintesrestrições vão ter vigência aqui. Em primeiro lugar, optou-se pornegligenciar a periodização canônica relativa ao conjunto da obrade Nietzsche, uma vez que sua admissão implicaria um enorme tra-balho de detalhamento dos tópicos em exame, incompatível com oformato dessa exposição. Há, pois, alguma generalização envolvidanela, que se mostrará legítima ou não em vista dos resultados even-tualmente conseguidos. Em segundo lugar, optou-se por não incluirentre os textos visitados O Nascimento da Tragédia, bem pondera-das as razões propostas a seu respeito no Ecce Homo: “desprendeum repugnante odor hegeliano e em algumas fórmulas está impreg-nado do amargo perfume cadavérico de Schopenhauer” (EH/EH,O nascimento da tragédia, § 1). Em terceiro lugar, por fim, tomou-se como horizonte – ou mesmo como fio condutor – a distinçãointroduzida pelo filósofo em Humano, Demasiado Humano, que se-para “a arte das obras de arte” da atividade ou da atitude artísticaspropriamente ditas. Sua explicação permite, já, uma primeira in-cursão até o mérito dos problemas em foco.

Com efeito, no parágrafo 174 daquele livro, Nietzsche estabele-ce um repertório de funções inerentes à arte cujo sentido é, em suma,civilizatório. Antes de mais, o serviço da arte está em “fazer comque nós próprios nos tornemos toleráveis e, se possível, agradáveisuns aos outros” (VM/OS, § 174) O convívio através de mediações,

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capaz de atender a um senso mínimo de proporção, termina por sefazer desejável. A seguir, o serviço da arte desdobra-se em outrafrente: “esconder ou reinterpretar tudo o que é feio, penoso, apavo-rante, repugnante [...] e no inevitável, [...] fazer transparecer o sig-nificativo” (VM/OS, § 174). Assim, o artificial vela o brutal, enquantomantém-no sob controle, explorando, nesse duplo movimento, o quevale à pena ser destacado e impedindo a recaída dos homens numregime de convívio mais adequado às bestas. A longa duração e oêxito final desse processo produzem, então, uma conseqüência demenor monta. Trata-se da “arte das obras de arte”, efeito da dispo-nibilidade de um “excedente de tais forças para embelezar, escon-der, reinterpretar” (VM/OS, § 174), que é cristalizado em objetos –as assim chamadas obras de arte. Fica claro, para começar, que olance da arte não se resume, em Nietzsche, numa estética em sentidoestrito. Não obstante o interesse inerente ao estudo de uma discipli-na assim, cumpre pensar a arte em uma acepção menos acanhada.

Ainda no mesmo livro, parágrafo 119, Nietzsche oferece umabreve genealogia do sentido artístico, vislumbrado como prepara-ção para o aparecimento, entre os homens, de pretensões sustentá-veis quanto ao exercício da racionalidade. Como em toda genealo-gia, a discussão é irredutível a um eixo argumentativo unívoco.Apesar disto, cabe assinalar o seguinte segmento do raciocínio comoum dos núcleos da passagem: “Bastante mais sutil é aquela alegriaque surge à vista de tudo o que é regular e simétrico, em linhas,pontos, ritmos, pois em virtude, de uma certa semelhança é desper-tado o sentimento por tudo o que é ordenado e regular na vida,exclusivamente ao qual se tem de agradecer todo bem-estar...” (VM/OS, § 119) Ora, o que se cultiva junto com a arte, a dar ouvidos aofilósofo, é uma modalidade de estruturação de nossas percepções,expectativas e apreciação do mundo. A atmosfera da arte é o ambi-ente no qual as condições de todo pensamento racional erguem-seinicialmente e em que surgem pela primeira vez os elementos que

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virão a germinar na consolidação de semelhante modo de pensar.Está-se, assim, diante de uma espécie de proto-história da ciência:a aptidão para demonstrar uma proposição ou o coroamento de umateoria qualquer com a chancela do “êxito preditivo” são manifesta-ções derivadas do impulso descrito acima, que encontra prazer naregularidade e na ordenação.

O reconhecimento de algo como um ar de família a aproximararte e conhecimento sugere o seguinte esboço: entre duas irmãs, amais velha, intuitiva e engraçada, inspira, na segunda, por contra-ponto, modos um tanto graves, meticulosos, responsáveis. Cada qualà sua maneira, seguem ambas dedicadas à condução de uma rotinacotidiana serena e sem sobressaltos, capaz de absorver o espantosoinerente à vida. Diante disso, um saldo fica patente: há muito queaprender com a arte – ou, dito de outra forma, a arte tem muito aensinar.

A compatibilidade – ou mesmo continuidade – entre os domí-nios em consideração torna-se ainda mais evidente se se esclarece aconcepção de conhecimento forjada por Nietzsche. Eqüidistante dastendências que polarizaram o campo epistemológico na moder-nidade, ele entende haver, na formação de qualquer corpo de sabe-res, o concurso de um sem número de influxos e de determinaçõescuja procedência é muito diversificada. Não resta dúvida que ele-mentos teóricos e empíricos são aí articulados, mas o que conta comotraço primordial é a significação do conhecer. Trata-se, sem mais,da apropriação, por uma comunidade, de regiões ou fatias do mun-do, através da associação entre expectativas motivadas valorativa-mente e tudo o que estiver disponível em termos de experiências,experimentos ou do que for aceito, por convenção, como fato. Umesquema qualquer, uma malha lingüística mais ou menos elegante,é lançado alhures: aquilo que vem recolhido nesta rede e é por elasimplificado e configurado pode, enfim, ser compartilhado comopatrimônio de todos os envolvidos no empreendimento. Por conse-

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guinte, o que se toma como realidade é o resultado da interaçãoentre o arranjo teórico e a colheita concreta, naquilo que tal interaçãoprevê em termos dos valores prediletos da maioria. Se estes são,como é o caso, ordem, rotina, previsibilidade – numa palavra: se-gurança – teremos uma imagem do mundo em que a legalidade é oponto fundamental. Substância, causalidade e coisas afins vão com-por o equipamento desses amigos do conhecimento, sejam eles filó-sofos ou cientistas. No entanto, não custa lembrar: sua atividade foiviabilizada pela celebração do ritmo posta em circulação pela arte.A garantia que empresta credibilidade a seus feitos não é aobjetividade ou a correspondência entre o que se diz e o que acon-tece, mas as lições de cortesia lentamente sedimentadas ao longode gerações, constitutivas do serviço da arte. Pensar o conhecimentocomo uma noção independente, com dignidade e estatuto próprio,é um resultado tardio e discutível da história espiritual do ocidente.

A gratidão pelo sucesso das disciplinas científicas positivas deveser, portanto, repartida também com as artes. Mas as coisas nãoparam por aí. Pode-se argüir, por outro lado, que não apenas a men-talidade artística, mas mesmo seus apêndices, as obras de arte, exi-bem valor cognitivo apreciável. É certo que a grande arte não em-prega, para veicular seus conteúdos, provas ou justificativasdialéticas. Entretanto, ainda que sua validade cognitiva não possaser aferida em função de seu caráter demonstrativo, há ainda am-pla margem de proveito em suas lições. Um caso bem contado podetornar inteligível uma vivência opaca, trazendo à tona uma verdadecom a qual não se havia anteriormente atinado. O dispositivo retóri-co em uso – seja ele literário, cinematográfico, musical – está aptoa produzir para seu usuário, autor ou espectador, o banquete dasignificação. Nenhum tratado torna mais certo o perfil de fé cien-tificista do que a trajetória de Simão Bacamarte contada por Ma-chado de Assis. Nunca se entenderá melhor a alma da província do

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que quando se acompanha as peripécias de uma Madame Bovary –e assim por diante.

Por continuidade, cabe passar à consideração do próximo tema.Aceitando como norte as idéias expressas na Introdução TeoréticaSobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extra Moral, deve-se reto-mar o problema da racionalidade a partir da constatação de seunexo constitutivo com o apetite humano para a criação. Em chaveeminentemente crítica, Nietzsche aproxima, aqui, os poderes do inte-lecto e o deleite experimentado ao se fruir a ilusão. Dada a impossibi-lidade de haver o real, descontadas as perspectivas de acesso, im-põe-se concluir que o que ocorre entre nós e o mundo é um processode construção. Quem atua, então, é o aparato instrumental próprioda espécie. Animal engenhoso, o homem põe o signo no lugar dacoisa, tornando-a manipulável. Estão presentes, novamente, o en-tendimento de que conhecer é dominar, bem como a descrição doprocesso de estabelecimento dos conceitos como reelaboração deum procedimento típico do fazer artístico: a invenção de metáforas.

Tais proposições permitem discernir alguns campos de exercí-cio da racionalidade, em função das diferenças entre as regras e osjogos que se adotam e se jogam. Assim, por exemplo, para a circu-lação de conceitos na mecânica clássica estão prescritos limites eexigências distintos dos que valem para a circulação de imagens noCinema Novo dos anos 60. Uma distinção de fundo, do tipo “a pri-meira quer a verdade enquanto o segundo busca a ilusão” restaproblemática, dado que ambas as produções, cinema e física, têmem comum o nascimento na ficção. Não obstante, sua inscrição emregistros distintos pode ser útil no varejo do dia a dia: através derestrições de superfície, as esferas da ciência e da arte podem de-terminar seus respectivos objetivos, rotinas de aprendizado e audiên-cia a ser cativada. A partir daí, as tarefas são distribuídas e ferra-mentas adequadas podem ser adquiridas com facilidade. Se se querfirmar a confiabilidade de um motor, recorra-se o método científico

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e aos expedientes de teste cabíveis. Se se quer, por outro lado, sa-ber como lidar com um fantasma, recorra-se à encenação da histó-ria de Hamlet.

A conseqüência do exposto é direta: é impertinente pensar naprodução de uma hierarquia entre modos diferentes de operar coma racionalidade, ou mesmo entre as diferentes formas de racionali-dade possíveis. Cumpre buscar a proficiência nos diversos jogosexistentes, e não a superioridade de uns sobre os outros. Se emoutras partes a noção de hierarquia é decisiva para Nietzsche, é ra-zoável pensar que, para o ponto em causa, o mais apropriado é umacomposição “more genealógico”, que não prescreve a posição, masreconhece as articulações e justaposições entre os estratos sujeitose sua inspeção.

Se entre os saberes e suas razões não vigora uma classificaçãosistemática, nada autoriza a transferência dessa indiferenciação atéo plano da meditação sobre a verdade. À primeira vista, tem-se aíum negócio tremendamente complexo e ambivalente, dada a feiçãoliteral das muitas declarações de Nietzsche a seu respeito. Sendoóbvio que a recuperação de suas intenções primitivas é uma empre-sa absurda, importa, mais uma vez, sublinhar a indicação de inter-pretação ora adotada: vale ler o texto “detendo-se em certas pala-vras, analisando certas frases, e nada mais”. Isto é: melhor quepretender reconstruir uma virtual doutrina nietzschiana da verda-de, cumpre que a investigação se atenha a determinadas ocorrênciastextuais do tema, aproveitando-as em sua imanência. Tal processopoderá, inclusive, conduzir do complexo ao simples e converter oambivalente em polivalente.

Um primeiro ponto é inequívoco: longe de defender uma posi-ção cética quanto ao assunto, Nietzsche considera a pesquisa deverdade uma tarefa filosófica da maior relevância. O Prólogo do EcceHomo, por exemplo, nos diz que sob o lema “lancemo-nos ao proi-bido” “vencerá um dia minha filosofia, pois até agora o que sempre

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se proibiu, por princípio, foi unicamente a verdade” (EH/EH, Pró-logo, § 3). No mesmo parágrafo, são enunciadas também as ques-tões seguintes: “Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousaum espírito?” – segundo a estimativa de que “isto tornou-se, paramim, cada vez mais, o autêntico medidor de valor” (EH/EH, Prólo-go, § 3). Crenças e convicções andam junto do erro, geram o climapropício à perpetuação do erro. Em sentido afirmativo, o cultivo daverdade vale como um processo aberto, ocupado mesmo com o queé “estrangeiro e problemático na existência”. Daí, seu característi-co apelo extra-moral, já anunciado pelo filósofo quinze anos antesdesse texto. Nesse sentido, e talvez exclusivamente nele, o trabalhoa favor da verdade chega a receber sua mais alta validação desde opensamento de Nietzsche.

O nome do espetáculo em curso é a “superação de si da vonta-de de verdade”, examinada na Genealogia da Moral, § 27 e na GaiaCiência, § 357. Espetáculo, é certo, mas também enigma. Pois énecessário ultrapassar a vocação ascética que inspira a adesão àvontade de verdade, ao mesmo tempo em que deve-se estimularuma atitude de espírito investigativa e leal à razão. A ligação entreduas injunções tão díspares só pode ser obtida com sua projeçãocontra o referencial de vontade de potência. Tomada, em esquema,como eixo da cosmologia especulativa nietzschiana, a expressãodesigna a direção do fluxo das forças a favor da contínua configura-ção de arranjos mais ou menos estáveis entre elas. Sua credencialou regra de composição é o poder de incorporação investido emcada força: o quanto de energia ela é capaz de pôr a seu serviço,deslocando, impondo, distribuindo, regendo.

Com o aporte teórico da vontade de potência, torna-se mais cla-ra a combinação prevista pelo filósofo. O impulso para a verdadenão é essencialmente vinculado a qualquer projeto moralizante nacivilização. O fato de tal dominação ter se dado, o fato da moralida-de dos costumes ter se assenhorado do impulso em causa e ter feito

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dele seu aliado por muito tempo, não decide pelo seu “status” emdefinitivo. Embora seja um hábito muito antigo, a vigilância jacobi-na dos epistemólogos sobre a verdade no discurso não é a últimapalavra sobre a questão. A eleição do logos apodítico como únicoforo para o debate sobre a verdade ignora que qualquer impulsovale, basicamente, pelo que agrega. Não é à toa que Nietzsche reite-ra: a verdade pura e desinteressada é uma contradição em termos.

Recapitulando: no que lhe é próprio – disposição indagativa,lealdade racional – o impulso à verdade não mantém laço indisso-lúvel com qualquer território da cultura. Além disso, sua sobrevi-vência isolada ou independente é impossível, pois a pureza epistê-mica não passa de um ideal – aliás, apenas mais um desses queNietzsche ensina, não a refutar, mas, simplesmente, a congelar.Pode-se, então acertar a conta: tendo exaurido as possibilidades vi-tais de sua trajetória junto à moral, o impulso à verdade está libera-do para recobrar a companhia ou das artes ou das ciências aplica-das. Fruto da ilusão e do artifício, que tipificam a ação de umintelecto que é específico dos homens, pode agora exercer-se deso-brigado de compromissos com a determinação de um fundamentopara si próprio. Após um exílio de séculos, a oportunidade do reen-contro entre verdade, ilusão e boa consciência está dada no porvirda filosofia de Nietzsche.

Em vista disso e de acordo com a orientação dada em Gaia Ciên-cia § 110, pode-se delinear, à guisa de conclusão, os dois níveis emque a predicação do verdadeiro vai ser desdobrada. Quanto à consis-tência do discurso aspirante à verdade, seguem valendo as regrasformais disponíveis na ocasião. Ou seja: define-se, no interior de umacomunidade de pesquisa ou de uma escola de estilo, os parâmetroslógicos e metodológicos pelos quais o desempenho de seus mem-bros deve se pautar. Este é o nível estritamente epistêmico da histó-ria: sua instrumentalização faculta que se detectem e eliminem er-ros, mantendo o avanço conjunto do grupo no rumo de sua verdade.

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Num segundo nível, a atribuição da verdade não depende ape-nas de um acerto interno no discurso. O verdadeiro, aqui, deve sertestado no palco e nos termos apontados por Nietzsche: “O pensa-dor: este é agora o ser em que o impulso à verdade e os erros con-servadores da vida combatem seu primeiro combate. [...] Em pro-porção com a importância desse combate, tudo o mais é indiferente:a pergunta última pela condição de vida é feita aqui, e aqui é feito oprimeiro ensaio, com o experimento de responder a essa pergunta.Até que ponto a verdade suporta a incorporação? – eis a pergunta,eis o experimento” (FW/GC, § 110).

Ora: o que entra em jogo, assim, é a significação vital da verda-de. Insisto: não se movimenta aqui no plano do contraste absolutoentre verdadeiro e falso, pois está admitido de antemão que a abor-dagem de todo e qualquer objeto é sempre condicionada e con-dicional. Mais do que ser capaz de provar o que diz, o sujeito queinveste, em sentido vital, no processo de construção de verdade,deve ser capaz de fazer a subordinação de todos os demais impul-sos aos interesses dessa. Curioso sem descanso, que reconhecer tudoo que puder das vertentes e variantes da experiência humana domundo. Seu alvo não é a “adequatio” ou o consenso, mas a aventu-ra da apropriação intelectual do que lhe for dado viver. Se se dis-ser, contra sua perspectiva, que a maioria deseja, da verdade, osefeitos estabilizadores e a segurança, é provável que se veja apenasindiferença como resposta. Alexandre marchou até a Índia, e mor-reu querendo prosseguir – eis aí o seu modelo.

A definição da verdade como “processus in infinitum” talvezseja o principal de Nietzsche sobre o tema, servindo para esta apre-sentação como fecho conveniente. Um tal mar aberto, do qual nãohá mapa ou fronteira conhecidos, dá ensejo a uma chance rara.Trata-se da convergência entre arte e conhecimento, ao longo daslinhas de força desenhadas acima. Isto, bem entendido, não comoum fim em si mesmo, mas como alimento para um modo de viver

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no qual o trágico de nossa condição venha a ser, de novo, reconhe-cido como digno de afirmação.

Abstract: Taking into consideration the distinction introduced in Human,all too human between “the art of the works of art” and the artistic activityor artistic attitude, this article aims at analyzing aspects of the problem ofknowledge, rationality and truth in Nietzsche. It tries to compose a frame-work in which the art can inscribe itself as a necessary element.Keywords: art – knowledge – truth – rationality – tragic

referência bibliográficas

1. Sämtliche Werke – Kritische Studienausgabe, edição orga-nizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim:Walter de Gruyter & Co., 1967/1978. 15 vol.

2. Nietzsche – Obras Incompletas, coleção “Os Pensadores”,tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Pau-lo, Abril Cultural, 1978.

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Nietzsche na filosofa atual: o eterno retorno como acontecimento do pensar

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Perspectivas

Os textos que se seguem consistem emintervenções apresentadas por intelectuais,professores de filosofia e psicanalistas ar-gentinos no âmbito do Simposio Nietzsche– Homenaje a los 100 años de su muerte1900 – 2000 organizado pelo Departamen-to de Filosofia da Universidad ArgentinaJohn F. Kennedy em Buenos Aires. Con-cebido em torno de núcleos temáticos, oevento realizado entre os dias 29 e 30 deagosto de 2000 buscou propiciar a interlo-cução e o debate dos participantes acercadas mais diversas questões suscitadas pelafilosofia nietzschiana.

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Nietzsche na filosofa atual: o eterno retorno como acontecimento do pensar

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Nietzsche na filosofia atual:o eterno retorno comoacontecimento do pensar*

Estela Beatriz Barrenechea

A filosofia, tal como eu tenho entendido e vi-vido até este momento, é a investigação voluntá-ria dos aspectos mais detestados e infames daexistência. (Fragmentos Póstumos – primavera/verão de 1888, 16 (32)).

A tomada de posição da filosofia nietzschiana canaliza-se emum pensamento da imanência que se distingue, com seu postuladofundamental da morte de Deus, das linhas transcendentes e tran-cendentalistas da filosofia ocidental.

A assimilação de que Deus está morto (Za/ZA, Prólogo, § 2) nosabre o vazio sem fundo da eternidade na vida mesma. Não há maisgarantias, nem fundamentos. Não há Deus que dê conta da identi-dade do eu, nem sujeito estático do conhecimento. Efetivamente, eunão sou o mesmo eu de um momento ao outro.

* Tradução Vânia Dutra de Azeredo.

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Barrenechea, E.B.

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Nietzsche, em sua “investigação voluntária dos diferentes as-pectos da existência, mesmo os mais detestados e infames, vive,como ele mesmo diz, uma filosofia experimental, no espaço da qualfaz uma afirmação dionisíaca do mundo tal como ele é” (cf. Frag-mentos Póstumos – primavera/verão de 1888, 16 (32)). Sua fórmu-la amor fati implica “querer o círculo eterno: as mesmas coisas, amesma lógica e idêntico ilogismo do encadeamento” (FragmentosPóstumos – primavera/verão de 1888, 16 (32)).

O pensamento do Eterno Retorno implica a afirmação da ne-cessidade: “Retornar ao que vem a ser; necessidade vivida e porreviver”.

A perspectiva de uma filosofia experimental torna evidente porque o pensamento do Eterno Retorno aparece a Nietzsche na forma“de uma certa tonalidade da alma”( Fragmentos Póstumos – prima-vera/verão de 1888, 16 (32)).

A partir desta intensa experiência, o pensamento desprende-sedo eu que o pensa, fazendo com que o eu caia novamente no es-quecimento que é justamente aquilo que oculta na vida o eterno vira ser. No instante fugaz, quando vivo a experiência do Eterno Re-torno, deixo de ser eu mesmo (hic et nunc) e sou suscetível de vir aser inumeráveis outros, até que caio novamente no esquecimento.

Esta experiência do eu conecta-se com a memória, mas com umamemória que se encontra fora dos limites de uma consciência atual.Se minha consciência atual é esquecimento, que oculta o eterno vira ser e absorve todas as identidades no eu, a memória, ao contrário,dá-se no instante de minha renúncia ao meu eu atual. Mas aindasuprimindo minha identidade, sei que tornará a cair no esquecimen-to como parte da lei do círculo vicioso. O esquecimento do EternoRetorno implica a sua verdade.

O pensamento do Eterno Retorno é um pensamento supremoque vem acompanhado de um sentimento elevado que nos impulsi-ona a viver, desejamos reviver porque necessariamente reviveremos.

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Nietzsche na filosofa atual: o eterno retorno como acontecimento do pensar

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Este estado de ânimo encontra-se com a ambição suprema daespécie humana: a eternidade. O tempo como fugacidade detém-se. Como disse o Fausto de Goethe: “instante fugaz, detenha-se, ésbelo”.

Encontramo-nos com uma nova dimensão do pensamento, comum entrelaçamento conceptual cuidado até o extremo e que nosleva a uma visão estética do mundo como fenômeno artístico, mastambém com um dispositivo ético enunciado na regra que manifes-ta o Eterno Retorno: “aquilo que queres, queira-o de tal maneira,que queiras também o seu Eterno Retorno” (cf. Fragmentos Póstu-mos – primavera/outono de 1881, 11 (161), (163))

Com a morte de Deus perdeu-se o princípio de identidade, quegarantia um Eu idêntico a si mesmo assim como a realização detodas as identidades, em vista disso, nos abrimos à multiplicidadeinfinita.

O eu como intensidade em si tem um destino: intervir, selecio-nar, valorar.

O eu absorve os infinitos eus.É, por isso, que o filósofo Nietzsche pode dizer “Sou no fundo

todos os nomes da história” (Carta a Burckhardt, 6 de janeiro de1889).

Se bem que, na vertigem do Círculo Vicioso, o combate entreesquecimento/ memória é eterno para aquele a quem a Verdade re-vela-se na necessidade do Retorno como enunciação ética, “age co-mo se fosse reviver e desejasse reviver inumeráveis vezes, porqueterás que eternamente viver e recomeçar” (Fragmentos Póstumos –primavera/outono de 1881, 11 (163). Não se restabelecerá o esque-cimento, pois com o Eterno Retorno caio em amnésia e me inteiroque sou outro ao saber que não sou o mesmo eu.

Fazer do eterno retorno um pensamento comunicável obriga-nos a penetrar na temática da significação e do sentido. Se o senti-do é tudo aquilo que está fora para uma consciência idêntica a si

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Barrenechea, E.B.

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mesma, está, pois, em regiões silenciosas, para além das proposi-ções de uma lógica da identidade, então uma nova maneira de abor-dagem do sentido adquire transcendência, já que o Eterno Retornoé acontecimento criador de sentido.

Como o Retorno liga-se ao fortuito e aos avatares azarosos daexistência, o pensamento do Eterno Retorno fica ligado ao azar.Zaratustra afirma todo o azar, o fatal e necessário “amor fati” fazcom que os acontecimentos que dão sentido à vida estejam sujeitosao poder criador e inventivo do homem assim como estão sujeitostambém ao poder azaroso dos contextos histórico-culturais.

O pensamento de Nietzsche é fundador e genealógico. Os ve-lhos conceitos tornam-se novos frente à invenção de categorias ou-sadas em sua obra.

A invenção do conceito de Eterno Retorno carrega as palavrasde sentidos ao tratar-se de invenções afirmativas que potencializama Vontade de Potência.

Nietzsche diz que “a essência verdadeira das coisas é uma in-venção do Ser que se representa as coisas, sem esta invenção o Sernão poderia representar-se nada. No meu entender esta enunciaçãofaz surgir o problema da Verdade e de sua designação. (cf. WL/VM, § 1-2)

O circuito de signos e designações múltiplas manifesta, quandosaímos de uma lógica da identidade, a incoerência na qual caem oeu e o mundo no contexto dos signos cotidianos.

Se pensamos o Círculo Vicioso que define o Eterno Retorno eque por sua vez indica o poder de todo pensamento, advertimosque retornar ao que vem a ser marca o sentido do círculo.

No Círculo, a vontade morre contemplando esse retornar no vira ser, para renascer quando se manifesta uma discordância com ocírculo.

Com a discordância as cadeias de cativeiro do círculo sãorompidas.

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Nietzsche na filosofa atual: o eterno retorno como acontecimento do pensar

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A discordância rompe as cadeias de cativeiro do círculo. A par-tir desse rompimento, processa-se a volta a querer o querido e oreconhecimento da vontade de seleção como Vontade de Potênciaem toda a sua capacidade criadora. Esta Vontade supõe em seupercurso o caudal abrumador de todas as experiências possíveis,de todas as felicidades e sofrimentos possíveis. Nesse percurso, elaentra no jogo de azar que de uma vez e para sempre jogou os dadosde uma vida, mas que, por sua vez, permite sortear cada vez quevaloramos e selecionamos.

A Vontade de Potência em Nietzsche excede a vontade cons-ciente do agente e o modifica. É este excesso que fala para além detodo o sujeito de conhecimento.

Como não advertir que a filosofia nietzschiana é disparadora denovos conceitos que revolucionam e imprimem força à filosofia atual?

Como não pensar em conceitos tais como inconsciente, signifi-cante, acontecimento, lógica do sentido, diferença, repetição, cam-pos de subjetivação, desejo, Verdade (como produção de sentido),a priori histórico - cultural e muitos outros que conformam as ferra-mentas imprescindíveis para afrontar o grave e pensar analítica ecriticamente nossa época?

Se Deus está morto, a espécie humana tem capturado com seupensamento a multiplicidade condensada no Uno de Deus e enfrenta-se com a infinitude do pensamento àquilo que não perece no trajetode uma vida.

O homem apresenta-se na imortalidade do pensamento (as épo-cas histórico– culturais sucedem-se, porém a Vida como fenômenode Arte mantém-se).

Este pensar imanente rompe com toda filosofia da transcendên-cia e faz do pensar o caminho necessário para produzir Verdade.

Verdade é o que vem a ser, produto da multiplicidade e do azardos encontros, invenção afirmativa que potencializa a Vontade dePotência. O homem do Eterno Retorno aposta na criação.

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Barrenechea, E.B.

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A memória dos tempos vividos joga azarosamente com o esque-cimento justamente para dar lugar à memória dos tempos para quemconhece do Eterno Retorno o valor singular, valor que se faz uni-versal na criação, pois recria-se eternamente a si mesmo.

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A emancipação da mulher

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A emancipação da mulher*

(§ 231 - § 239, JGB/BM)

Silvio Juan Maresca

Assim como o nacional-socialismo empenhou-se em divulgaraqueles textos de Nietzsche que pareciam justificar sua peculiarbarbárie, o pós-modernismo preocupa-se em ocultar piedosamenteas afirmações de Nietzsche que poderiam ferir a sensibilidade de-masiado delicada do homem contemporâneo.

O discurso nietzschiano sobre a mulher é complexo e proble-mático e possui arestas fartamente desagradáveis que a gente se senteimediatamente inclinado a silenciar. Não obstante, dificilmente po-deria indicar-se uma obra de Nietzsche que não contenha um nú-mero considerável de observações sobre a mulher.

Nietzsche recusa-se, na maior parte das vezes, a referir-se aohomem em geral e isto constitui uma das mais profundas originali-dades do seu pensamento. Não só se negou a identificar o homemantigo com o homem moderno, cristão e pós-cristão, mas inaugurouuma forma de consideração sexuada a partir da qual tem-se de dis-tinguir o homem da mulher, ou masculino e o feminino. Um pensa-

* Tradução de Vânia Dutra de Azeredo.

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Maresca, S.J.

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mento da diferença, a sutil arte das distinções, não poderia ignorartão elementar diversidade.

Perseguir pacientemente as idéias de Nietzsche acerca da mu-lher ao longo de toda a sua obra talvez nos permita alguma vez co-meçar a elaborar alguma resposta a perguntas que não têm sido atéagora sequer formuladas, a saber, qual a referência da mulher aoalém do homem? Qual é sua singular experiência do eterno retor-no? Como configura-se no caso da vontade de potência? Qual é avivência feminina do niilismo? Por último: São pertinentes estasperguntas ou elas têm algo irremediavelmente nulo, devido a natu-reza de “a” mulher?

Sabemos que existe para Nietzsche uma relação privilegiada damulher com a verdade ou, melhor dito, uma identificação entreambas, segundo certas condições, quer dizer, certos aspectos sele-cionados do feminino identificaram-se com determinada concepçãode verdade, a verdade trágica.

Porém não tem questão sobre a qual Nietzsche não lance umamirada perspectivista e múltipla. Assim, a assimilação da mulhercom a verdade coexistiria com o duro rancor frente ao discurso desua emancipação, como se adivinhará, um subproduto da doestadaRevolução Francesa.

Os parágrafos 231-239 de Para além de bem e mal apresentamuma das exposições mais acabadas contra a emancipação feminina.Resenharemos os argumentos de Nietzsche introduzindo algunsapontamentos próprios.

O tema é introduzido por um ângulo inesperado, coisa freqüenteem Nietzsche. O aprender não só mantém, mas transforma. Semembargo, todo ensinamento tem seus limites, a educação não é oni-potente. Nos problemas mais radicais têm algo que não se modificaque se repete sempre idêntico mais além ou mais aquém de qual-quer presumido progresso da ilustração: isso processa-se com rela-ção à questão do homem e da mulher. Ao pensador está vedado

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A emancipação da mulher

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aprender a respeito algo novo, unicamente lhe cabe descobrir até ofinal o que não pode comover. Chama atenção que o problema damulher seja colocado de antemão em relação ao homem.

Logo deste preâmbulo o parágrafo 232 encara diretamente aquestão: “A mulher quer ser independente”, diz Nietzsche, “e comtal objetivo começa a esclarecer os homens sobre a ‘mulher em si’– este é um dos piores progressos no enfeamento geral da Europa”O que irrita tanto a Nietzsche neste programa? Na seqüência, acu-mulam-se os argumentos. Pois o que não porá luz a este autodesnu-damento cientificista. O pudor feminino tem seus fundamentos, hátanta coisa “pedante, superficial, sabichã, mesquinhamente arro-gante, mesquinhamente irrefreada e imodesta”. Basta examinar suarelação com as crianças! Até este momento todos esses aspectos têmestado reprimidos, não têm ocupado um primeiro plano, pelo medoao homem, que parece fazer as vezes de um inexistente “super-ego”feminino. Neste ensaio de autoconsciência, dirigido não obstante aohomem, a mulher corre o risco de esquecer sua inteligência e suaarte, a saber, “a arte e a manha, a da graciosidade, do jogo, doafastar aflições, do aliviar e tomar com leveza, e sua refinada apti-dão para desejos agradáveis” (JGB/BM, § 232). O discurso da mu-lher ameaça inscrever-se em um registro médico.

Ademais, a mulher científica é algo de mau gosto. Porém, isto éo decisivo, a mulher quer efetivamente aclarar-se a si mesma? Eainda supondo que seja assim; pode querê-lo? Buscará um novo ador-no, inspirar medo, uma nova forma de domínio, porém jamais averdade. A mulher não quer a verdade. “Desde o começo, nadaresulta mais estranho, repugnante, hostil na mulher que a verdade,– sua grande arte é a mentira, sua máxima preocupação são a apa-rência e a beleza” (JGB/BM, § 232). Porém, quem diz a mulher diza verdade. Com efeito, a verdade, a verdade-mulher, não se quer asi mesma, a reflexão a repugna pois só a enfrenta com seu próprio,insuportável, horror; a mentira, a aparência e a beleza serão desde

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sempre seu destino anelado. Além disso, a mulher, tal como a ver-dade, não faz gênero: o real é extragenérico. Na verdade, não exis-te a mulher senão sempre uma mulher. Nietzsche, num profundoinstinto adivinhador, o diz assim: “E não é verdadeiro que, tudosomado, ‘a mulher’ foi sempre mais desprezada pela mulher mes-ma? – e de forma alguma por nós. Nós, homens, desejamos que amulher não continue a se comprometer através do esclarecer (...)”(JGB/BM, § 232). O discurso sobre a mulher, “a mulher em si”,como diz ironicamente Nietzsche, é um despropósito, pura aliena-ção masculina.

Algum incauto ou, em seu defeito, incauta acreditaria queNietzsche está mandando as mulheres para a cozinha, como costu-ma-se dizer. No parágrafo 234 encarrega-se pontualmente de des-menti-lo. A estupidez na cozinha, a mulher como cozinheira, a mu-lher não compreende o que significa a comida. Se o compreendesse,não se haveria retardado e prejudicado o desenvolvimento dohomem.

O lugar de uma mulher? A frase de Madame Lambert a seufilho talvez indique algo: Meu amigo, não se permita senão loucurasque lhe dêem grande prazer. (JGB/BM, § 235).

O parágrafo 238 retoma “o problema básico ‘homem e mulher’”,o problema enunciado no parágrafo 231. Agora entendemos me-lhor porque homem e mulher e não já o homem. O homem nãoexiste. A retirada da totalização de a mulher arruina a espécie, jánão cabe falar do homem. Entre homem e mulher repete-se eterna-mente “um granito de fatum espiritual”, quer dizer, “o antagonis-mo mais abismal e a necessidade de uma tensão eternamente hos-til” (JGB/BM, 231). Ridículo então propor, ao calor da Ilustração,direitos iguais, educação, exigências e obrigações. Diferente nãosignifica sempre, não obstante, melhor ou pior, superior ou inferior.

Sustentar uma abstrata igualdade entre homens e mulheres emnome de uma ainda mais abstrata igualdade dos homens é, segun-

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A emancipação da mulher

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do Nietzsche, um “signo típico de superficialidade”, suficiente parajulgar a obra inteira de um presumido pensador.

O parágrafo 239 oferece um final a toda orquestra. Hoje, comoparte da tendência e o (mal) gosto democráticos, as mulheres sãotratadas pelos homens com particular estima. Porém esta estimaofende, a mulher prefere lutar por seus direitos. Assim, perde opudor e o gosto ou, dito de outra maneira, sua peculiar posição sub-jetiva com respeito à verdade. Desaprende a temer o homem. Talcoisa não é estranha em uma época na qual “já não se quer nem secultiva o “homem existe no homem”, porém com isso a mulher de-genera. Onde o espírito industrial triunfa as mulheres – por quenão dizer aqui a mulher? – aspiram à “independência econômica elegal de um caixeiro”. “A mulher em si”, quer dizer, “a mulhercomo caixeira”. Sorrateiramente, entretanto, elevando as bandeirasdos direitos e o progresso, a mulher retrocede. Desde a RevoluçãoFrancesa seu poder não tem feito mais que diminuir, apesar dosreclames emancipatórios acaudilhados por mulheres e “cretinos”.O movimento de emancipação da mulher faz pompa de uma estupi-dez tipicamente masculina. A construção de um racionalismocartesiano tresnoitado só pode provocar pena; quando uma mulherconfunde-se até esse extremo respeito de si perde toda capacidadeestratégica; a diminuição de seu poder é o único resultado previsí-vel. Existe tática mais suicida do que dissuadir o homem “de que amulher tem que ser mantida, cuidada, protegida, tratada com in-dulgência, qual um animal doméstico bastante delicado, estranha-mente selvagem e, a miúdo, agradável?” (JGB/BM, § 239).

Todo um exército de idiotas e asnos doutos, cujo papel não sedeve menosprezar, aconselha as mulheres a deixarem de ser femi-ninas (desfeminizarse) para imitar tardiamente a perimida subjetivi-dade cartesiana, quer dizer, “imitar todas as estupidezes de que naEuropa está enfermo o ‘homem’, a ‘masculinidade’ européia – eles

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Maresca, S.J.

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quiseram rebaixar a mulher até a ‘cultura geral’, incluindo até lerperiódicos e intervir na política” (JGB/BM, § 239).

Mediante o acesso à cultura pretende-se fazer forte o sexo frá-gil: não é difícil ler aqui a interpelação do niilismo às mulheres.Frente a isso é preciso insistir que cultivo e debilitamento sempretêm estado de mãos dadas. Debilitamento significa desagregaçãode força da vontade, atributo ao qual justamente “as mulheres maispoderosas e influentes têm devido seu poder e sua preponderânciasobre os homens”. A emancipação da mulher é uma “idéia moder-na”. Recusando semelhante decadência uma mulher bem constituí-da compreenderá, de novo, que “o que em uma mulher impõe res-peito e, com bastante freqüência, temor, é sua natureza, a qual é‘mais natural’ que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidadeferina, sua garra de tigre por baixo da luva, sua inocência no egoís-mo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o caráter inapreensí-vel, vasto, errante de seus desejos e virtudes...” (JGB/BM, § 239).

Ao medo feminino corresponde, sem biunivocidade, o medomasculino de outra natureza, porque como bem diz Lacan, não temrelação sexual. Sem embargo, uma “idéia moderna”, a emancipa-ção da mulher, ameaça nos fazer perder um dos poucos aspectostrágicos da existência que misteriosamente subsistem, a tensão ho-mem-mulher, “sempre com um pé na tragédia, que dilacera ao en-cantar” (JGB/BM, § 239).

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Trabalho, escravidão,rivalidade*

Um modo de organizaçãosocial trágicoA propósito de “O Estado grego”e “A disputa de Homero”

Roberto Mario Magliano

No primeiro dos escritos mencionados1 – que junto com “Sobreo pathos da verdade”, “Pensamentos sobre o futuro de nossos esta-belecimentos de ensino” e “A relação da filosofia de Schopenhauercom uma cultura alemã” compõem os Cinco prefácios para cinco li-vros não escritos, de 1872 – Friedrich Nietzsche começa por referir-se a dois conceitos que passam a preocupar seriamente os moder-nos de então e que segue inquietando os modernos de hoje (se aindanos couber essa denominação). Tais conceitos são os de “dignidadedo homem” e “dignidade do trabalho”.

Nietzsche encontra esses conceitos atuando no modo de pensarda modernidade, mas não no da antigüidade grega. Só se pode fa-lar neles em razão da influência do cristianismo e de suas diversasramificações. O conceito de “dignidade”, no sentido grego, é in-

* Tradução de Ivo da Silva Júnior, revisão de Lígia Ciorlia.

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Magliano, R.M.

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compatível e contraditório com o conceito de “trabalho” e de “ho-mem”. E isso resulta, precisamente, da visão trágica que o gregoteve do mundo e da sociedade.

Por que se crê na “dignidade do homem” e na “dignidade dotrabalho”? Observe-se que, a princípio, se fala de tais “dignidades”sempre e quando se atribui à existência cotidiana uma dignidade eum valor maiores do que as filosofias e as religiões se esforçarampor atribuir. Haja vista a missão das filosofias e religiões que foi,até o presente momento, a de proporcionar um sentido transcendenteà condição mísera do homem.

Para o mundo moderno, assevera Nietzsche, “dignidade dohomem” e “dignidade do trabalho” operam como consolo. O ho-mem possui o impulso (trieb) de existir, de perdurar a “qualquerpreço”2 (CV/CP, “O Estado grego”). A partir disso, trava-se uma“espantosa luta pela existência” (ibid.). É no âmbito dessa luta queos homens vêem-se incentivados a trabalhar; o trabalho não é maisdo que o resultado de uma necessidade (Not), de uma penúria. Oshomens sentem-se inclinados a perpetuarem-se a qualquer preço,tanto que direcionam todo seu esforço para o trabalho, mesmo queisso resulte, como de fato acontece, exaustivo e desagradável. E, devez em quando, diz Nietzsche, a “vontade” seduz o intelecto, quecria um “engano conceitual”, com o qual o homem supõe que, tan-to ele como o trabalho, são algo “dignos”.

A suposta “dignidade” nasceria do que Nietzsche designa de“fusão anti-natural” (unnatürlichen Verschmelzung): o homem em-preende uma impiedosa luta pela existência ao mesmo tempo quesente o impulso de uma “cultura artística”. Traço característico domundo moderno, segundo Nietzsche, duas ambições (Gier) se en-frentam: a da dura luta pela existência e a da necessidade de arte(Kunstbedürfnis)3. Em vista disso, o filósofo afirma a necessidade (Not)que se tem em desculpar nosso penoso trabalho com a ilusão de queo esforço do labor consagra-se a essa necessidade de arte. Essa

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Trabalho, escravidão, rivalidade

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última necessidade (Bedürfnis), de algum modo, redimiria, ao ocul-tar, o ter de trabalhar pela subsistência e a vida miserável que issoacarreta. Denomina-se “dignidade do trabalho” a maneira de evitarque se veja o sentido infame que o trabalho encerra.

Qual a peculiaridade dos gregos diante do trabalho? SegundoNietzsche, os gregos “não precisam destas alucinações conceituais”(CV/CP, “O Estado grego”). Eles não se recusaram a enfrentar averdade de que “o trabalho é um ultraje” (CV/CP, “O Estado gre-go”), uma vergonha. E isso em razão de que há no trabalho uma“sabedoria mais velada” que diz: “a existência não possui nenhumvalor [em si mesma]4” (CV/CP, “O Estado grego”). Aqui desmasca-ra-se o caráter trágico da vida humana. Ainda que as obras das ilu-sões artísticas tenham algum valor [em si mesma]5, a verdade deque o trabalho é uma penúria cósmica permanece, já que o homem,por ter de lutar pela sobrevivência, não tem como levar-se ao esta-tuto de artista pleno.

“Dignidade do trabalho”, assim como “dignidade do homem”,são nomes enganosos que o escravo, em um mundo que se compor-ta toto coelo como escravo, cria para suportar viver. Tais nomes ocul-tam, escamoteiam o sentido do escravo, revestindo-o com uma (bela)aparência de “homem livre”. Essa é a principal vicissitude do mun-do moderno, de nosso mundo atual. O homem moderno se crê dig-no porque pensa em termos de “homens em si”. Torna digno o quenão é – o homem em si – e se engana a esse respeito. O grego, aocontrário, considera humilhante e vulgar até mesmo a produção ar-tística, envergonhando-se dela. O homem de estirpe nobre pode sen-tir-se muito atraído pelos grandes artistas e suas obras, mas jamaispensaria em ser um deles. E isto porque a criação artística não dei-xa de ser um trabalho e, por conseguinte, uma desonra.

Então, como o grego pôde contornar semelhante situação? Comosujeitar-se a uma inevitável necessidade de arte – que coloca os fun-damentos de uma cultura – e, ao mesmo tempo, sentir vergonha do

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trabalho que ela requer? Para que floresça uma cultura artística,que seja necessária também ao caráter trágico da existência, requer-se que uma imensa maioria esteja a serviço de uma minoria que,isenta da luta pela existência, seja capaz de “gerar e satisfazer” umnovo mundo de necessidade (artística), do qual possa resultar suaestirpe fundadora.

Nietzsche lança então uma advertência quase impossível de su-portar: “(...)temos de consentir em apresentar, como o eco de umaverdade cruel, o fato de que a escravidão pertence à essência deuma cultura (Kultur) (...) A miséria dos homens que vivem penosa-mente ainda tem de ser aumentada para possibilitar, a um númerolimitado de homens olímpicos, a produção de um mundo artístico(...)” (CV/CP, “O Estado grego”).

Contra essa verdade, algumas “personagens” do mundo moder-no, como os comunistas, socialistas e liberais, foram de encontro.Que armas usaram? Os sentimentos compassivos, que ocultam, atrásda fachada dos bons propósitos a favor de uma humanidade espoli-ada, uma furiosa raiva contra toda possibilidade de uma culturaartística, como foi a da antigüidade clássica grega. Para Nietzsche,a exaltação da compaixão acarretou uma total pobreza de espíritoe, sobretudo com a glorificação das massas oprimidas e seu despre-zo pelas seletas minorias consagradas à arte, minou-se o autênticosentido que fornece a razão de ser à nossa cultura: de um lado, acompreensão da essência trágica da existência como dor e contradi-ção, mas também como avidez de viver; e, de outro, a compreensãoda necessidade de arte, como permanente ação transfiguradora dohorror em beleza.

Os homens modernos só lutam por oferecer excessivos cuida-dos ao homem, supõe Nietzsche, ao invés de terem verdadeira eprofunda misericórdia por toda miséria e de sustentar, por conse-guinte, um modelo social trágico: dar nascimento àquele homem cul-tural emancipado em cujo serviço todo o resto tem de consumir-se.

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Esse projeto moderno só pode produzir ondas de “calamidades so-ciais”, já que cada vez é mais difícil satisfazer todas as demandasfundamentadas sobre o princípio – herança cristã – de que todos oshomens são iguais e possuem igualdade de direitos.

Dor, contradição, avidez, afastam do mundo grego antigo qual-quer equivalente da moderna “segurança social” e despertam amorà justa, prazer pela disputa. Por que esse amor pela disputa? Por-que nela se encontra a alegria vital ante a condição mísera da exis-tência humana, no desejo de triunfo e vitória que só pode se obternuma rivalidade. Por que essa disputa é trágica? Porque ao mesmotempo se sente a rivalidade como uma necessidade da qual não hácomo furtar-se; ambiciona-se a glória da vitória final, sem concebertérmino para a disputa.

Curiosa manifestação da tragédia em que o grego se empenhapor ser o melhor, embora seu estilo de organização social exija queninguém o seja absolutamente. Isto tem, contudo, o objetivo de nãoesgotar a luta, a rivalidade, além de impedir que se coloque emrisco o fundamento vital da própria sociedade. Estabelece então paraa comunidade a seguinte norma: “eliminam-se aqueles que sobres-saem, para que o jogo da disputa desperte novamente: um pensa-mento é inimigo da ‘exclusividade’ do gênio, em sentido moderno”(CV/CP, “O Estado grego”). A rivalidade grega se assenta na “am-bição”, nos “ciúmes”, na boa “luta” (na boa Éris6), sem, contudo,ultrapassar seu limite, sua medida, que, no instável jogo trágico assimestabelece: ser o melhor sem jamais fomentar o domínio de um só.

O segredo para que a disputa se mantenha incólume é conhe-cer o limite e a medida que a rege. O grego sentia o impulso dedestacar-se, mas nunca a qualquer preço, ou melhor, nunca ao pre-ço de comprometer a comunidade. A paidéia grega estimulava oegoísmo, mas para a saúde e grandeza da pólis. A pólis (a socieda-de pode-se dizer?) operava com limite e medida da ambiçãoindividual e constituía o espaço da autêntica liberdade. A rivalida-

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de acrescenta o próprio ser, mas com um limite que o homem mo-derno desconhece totalmente: não é o triunfo do e para o indivíduo;cada triunfo é um triunfo da sociedade, da “cidade” a que se per-tence: “cada ateniense devia desenvolver-se até o ponto em que istoconstituísse o máximo de benefício para Atenas, trazendo o mínimode dano” (CV/CP, “O Estado grego”).

Tudo o mais é a “rivalidade” moderna, que pode ser definidafundamentalmente como competência econômica. Para Nietzsche, a“rivalidade” moderna (como sua própria ambição) é “desmedida[hybris]7 e incalculável” devido ao que se pensa em termos de infi-nitude. A competência moderna se ufana de um suposto bem-estarconseguido a custo da desmesura mais incontrolável. Acaso a prima-zia incondicionada do sujeito individual não representa hoje o exem-plo mais nítido dessa desmesura? Como revolvê-la? Poderá nossacultura tomar consciência de que conceder demasiado espaço à uni-versalidade (chamada agora de globalização?) e ao individualismonada mais é que alimentar a possibilidade de pensar desmedidamen-te, e, portanto, contribuir para acelerar sua própria aniquilação?

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Trabalho, escravidão, rivalidade

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notas

1 O autor recomenda a leitura completa dos textos menciona-dos no subtítulo, “O estado grego” e “A disputa de Home-ro”, que, em português, encontram-se em Nietzsche, Fried-rich. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. dePedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996 (NT).

2 Utilizarei, nas citações de “O estado grego” e “A disputade Homero, a tradução de Pedro Süssekind, cujas referên-cias bibliográficas já trouxe acima (NT).

3 Duas são as palavras alemãs que Nietzsche utiliza no texto“O estado grego” para o termo necessidade: Not e Bedürfnis.A primeira delas é empregada para se referir ao esforçoinevitável que somos instados ao trabalho. E a segunda,para a “força urgente do impulso artístico”. Por estes ter-mos possuírem sentidos distintos, tomei a liberdade decolocar a palavra alemã entre parênteses frente à expres-são “necessidade de arte” que a traduz (NT).

4 Completei, entre colchetes, a frase de Nietzsche ora citada,como meio de deixar mais clara a argumentação do autordeste trabalho (NT).

5 Complementação do tradutor pelas mesmas razões acimaarroladas (NT).

6 Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo, logo após o proêmio,inicia a narrativa mítica nomeada “As duas lutas”. E é aíque o poeta introduz a distinção entre uma éris boa e umaéris má. Interpretando-as, Nietzsche assevera que a pri-meira delas (a referida pelo autor no texto) “estimula oshomens para a ação” graças ao ciúme, ao rancor e à invejaque provoca entre os semelhantes; a segunda, “nenhummortal a preza”, pois ela impele o homem à mútua aniqui-lação (CV/CP 3, p. 79) (NT).

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7 Nietzsche se refere à desmedida, em “A disputa de Ho-mero”, utilizando o termo em grego (NT).

referências bibliográficas

1. Nietzsche, Friedrich. “Der griechsche Staat” , “Homer’sWettkampf”. In: Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebe-nen Büchern. Werke. Kritische Studienausgabe. Ediçãode Colli e Montinari. Berlim: Walter de Gruyter &Co., 1980. V. 1.

2. _______. “El estado griego”, “El certamen de Homero”.In: Maresca, Silvio (org). Friedrich Nietzsche: verdady tragedia. Trad. de Mariana Rojas-Bermúdez (o pri-meiro texto) e Alfredo Tzveibel e Mariana Rojas-Ber-múdez (o segundo texto). Buenos Aires, 1997.

3. _______. “ O estado grego”, “A disputa de Homero”. In:Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. dePedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

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Sobre o futuro de nossos estabelecimentos educacionais

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Sobre o futuro de nossosestabelecimentoseducacionais*

Osvaldo Langellotti

Estas conferências foram pronunciadas por Nietzsche desde odia 16.02.1872, a primeira, até a última em 23.03.1872, num to-tal de cinco.

Em suas reflexões, ele requer de seu leitor três requisitos: lersem pressa, sereno, ler entrelinhas, isto é, pensar, porque não bas-ta ter pontos de vista somente e não imiscuir sua formação (Bildung)na compreensão do que se lê.

Esta é uma meditação de generis futuri. Deste modo podemosempreender com o autor um largo caminho. As conferências estãoimpregnadas de um marcado platonismo que não só se evidenciapela citação do Fedro, senão também pela menção das idéias e daforma de diálogo como cenário teatral. O colégio foi preparatórionos tempos da Reforma, nos tempos de Schiller e Goethe e tevecomo “broto dessa asa de que fala Platão e que eleva a alma, en-quanto entra em contato com o belo, até o reino dos arquétipos imu-táveis, puros e uniformes das coisas”.

* Tradução de Alberto Marcos Onate.

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Langellotti, O.

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Nietzsche quer promover uma renovação, revigoração e depu-ração dos estabelecimentos educacionais para devolver-lhes a prís-tina tendência sublime que presidiu à sua fundação. A renovaçãodo espírito alemão fará que pareçam antigos e novos, enquanto queagora pretendem ser tão-só “modernos” e “atuais”. Há em suas re-flexões uma identificação entre a formação e a natureza, por issovaticina o triunfo da renovação, porque a atual é anti-natural, con-vencional e expressão de uma pseudocultura.

Sua tese: há nos estabelecimentos educacionais alemães duastendências aparentemente opostas, de igual gravitação perniciosa eidentificadas nos resultados: o impulso a uma máxima ampliaçãoda Bildung e o impulso à restrição e ao debilitamento da mesma. Noprimeiro sentido, pretende-se levar a formação a círculos cada vezmais vastos, enquanto que pelo outro impulso se exige que a forma-ção renuncie a suas supostas reivindicações de autonomia e se su-bordine a outra modalidade de vida, a do Estado. Contra estas duastendências haverá de lhe contrapor duas tendências genuinamentealemãs: o impulso à contração e concentração da formação, comoréplica a sua máxima ampliação, e o impulso à consolidação eautarquia, como réplica a sua restrição e subordinação frente aoEstado.

A ilustração mais generalizada é a barbárie, porque só um exígüonúmero alcança uma verdadeira formação. Procede-se a demo-cratizar os direitos do gênio. No gênio alcança a natureza sua re-denção porque nele logra sua meta. A democratização não é outracoisa senão iludir a penosa necessidade de ter de trabalhar pelogênio, para fazer possível seu nascimento.

Esta formação à altura da “época” é fazer indivíduos “corren-tes” como “moeda corrente”, de modo que extraia de sua quantida-de de conhecimento e saber a máxima quantidade de ganho e feli-cidade. Seu postulado ético é “aliança de inteligência e bens”.Repudia-se toda formação que conduza ao isolamento e fixe suas

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metas além do dinheiro e da ganância (...) sem a censura de “egoís-mo superior”, “epicurísmo imoral da formação”. À ela se contra-põe uma formação veloz para ganhar muito dinheiro (...) a humani-dade tem um forçoso direito a felicidade terrenal (...) para isto senecessita a ilustração. Isto encadeia um gravíssimo perigo: que asmassas se saltem esta etapa intermediária e se encaminhemdiretamente à felicidade terrenal. Isto é a “questão social”. A restri-ção da formação conduz à especialização e só nisto o ilustrado ésuperior ao vulgo. Isto conduz à destruição da formação. Este estadode coisas tem um gênero literário que o representa: o periodismo. Operiodismo é hoje a capa aglutinante e pegajosa que se interpõe entreas ciências. O periodismo toma o lugar da formação. O periodista éo servidor do momento, substituiu ao grande gênio, ao guia paratodos os tempos, àquele que redime do momento, do Tempo.

Pilar da formação é a língua vernácula. Hoje, porém, a línguaestá ultrajada. Só estilo periodístico, e no melhor dos casos, erudi-ção. Diz Nietzsche que a língua se estuda nos clássicos dela e nãocom critério historicista. Há de estudá-la como corpo vivente, nãoaos estudos anatômicos.

Para Nietzsche a verdadeira formação é reprimir a ridícula pre-tensão de opinar por conta própria. Há de acostumar o jovem a umasubordinação estrita sob o cetro do gênio... Personalidade livre: dis-tintivo da barbárie. A pátria da formação é a Grécia.

O espírito alemão: a Reforma, a música alemã, a filosofia alemãe a lealdade do soldado alemão. Tudo desde um ardente desejo dogrego. Representantes da formação são Schiller e Goethe. A culturade hoje é “sedução”, “simulacro”, superabundância numérica deinstitutos, professores, alunos, leis, regulamentos que não redundamnuma “ubertas ingenii”. A verdadeira formação é a que sustenta anatureza aristocrática do espírito. Seu objetivo é: formação de indi-víduos seletos, capacitados para obras grandes e duradouras. O gêniotem uma origem metafísica, uma pátria não natural. A verdadeira

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formação do povo a aclara com a alegoria da mãe, a qual nasce doinconsciente e do mito. Com a instrução generalizada perde o povoseu vínculo com o eterno através do gênio. O gênio maduro deveinstruir-se na matriz da formação do gênio, para vinculá-lo com oeterno, redimindo-o da esfera cambiante do momentâneo.

A falsa formação fica desconcertada ante ao misterioso e or-giástico aspecto da antigüidade. Aceita só o Apolo esclarecido e en-tende o ateniense como um homem apolíneo sereno e cordato, ain-da que um pouco imoral. Diz não à filologia comparada e àsetimologias, porque os filólogos terminariam lamentando-se de queHomero não escreveu em indo-germânico primitivo. Deve-se con-centrar no divergente dos povos, não nas concordâncias.

A Prússia subordina a formação aos fins do Estado, recolhe comêxito a filosofia hegeliana, “cuja apoteose do Estado certamente cul-mina com esta subordinação”. O filósofo está condenado a viver àparte, alienado à sua herança. A formação, outrora deusa etérea depés delicados, é hoje a servidora e conselheira das necessidades davida, da subsistência e da pressão material ... Só esta oposição: “eupor minha parte conheço somente uma verdadeira oposição. Esta-belecimentos da formação e estabelecimentos das necessidadesda vida: a este segundo gênero pertencem todos os existentes, po-rém eu falo dos primeiros”. A contraposição é a de ginásio e esco-las profissionais.

Há dois caminhos: o massivo e o seleto. Os do primeiro fazemcircular palavras pomposas: “desenvolvimento integral da persona-lidade livre dentro de firmes convicções nacionais e morais huma-nas comuns”, ou bem definem suas metas como “a fundação doEstado popular baseado sobre a razão, a formação e a justiça”. Pa-ra os mais raros, os estabelecimentos de formação devem consumarsua obra apesar da hostilidade dos demais. Devem ficar depuradosdos vestígios da subjetividade e elevados por cima da mudança dostempos, como reflexo acrisolado do eterno e imutável ser das coi-

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sas. Todos, por tal depuração da subjetividade, devem contribuir apromover o nascimento do gênio e a realização de sua obra. A no-ção de gênio que utiliza é a de Schopenhauer: “gênio é um homemque tem duplo intelecto: um para si a serviço de sua vontade e outropara o mundo, cujo espelho se torna ao compreendê-lo objetivamentepuro”1.

A universidade distribui hoje educação “acromática”, ou seja,é da boca ao ouvido, e tanto o falante como o ouvinte estão libera-dos do que ouvem e escrevem. Só muitos ouvintes é o que interes-sa. Denomina-se isso de “liberdade universitária”. À discreta dis-tância está vigilante o Estado, para recordar-lhes que ele é o fim, ameta e a quintessência deste procedimento singular sobre a base defalar e ouvir. A interpretação profunda dos problemas imutáveis ésubstituída paulatinamente pela dilucidação e indagação historicis-ta, filológica... Fica assim desterrada a filosofia mesma... Destemodo, não se promove a verdadeira formação. Pilares da formação:instinto de filosofia, capacidade de arte e os gregos. A pesudofor-mação os transforma em periodistas, na metamorfose do desespe-ro. A filosofia se converteu em filologia tal como a formulou Sêneca2.

Houve uma tentativa séria de procurar a ampla visão do espíri-to alemão, a Burschenschaft, Associação estudantil fundada em 1815em Viena.

Fazem falta grandes condutores. O ponto de partida de todaformação é a obediência. O gênio, numa metempsicose fulminante,se introduziria “em todos esses corpos semi-animais e todos eles jánão podem ser senão um único olho demoníaco (...) harmonia prees-tabelecida entre condutor e conduzidos e, como na ordem dos espí-ritos, tudo tende a semelhante constelação”. Com esta alegoria querque se entenda o verdadeiro instituto educacional e a universidadelhe nega tal caráter.

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notas

1 Schopenhauer, SW , Darmstadt 1968, Bd.5, “Parerga undParalipomena”, § 51, p. 90.

2 Cf. Homero e a filologia clássica, sua dissertação inauguralde 1869, em que Nietzsche havia invertido o sentido dafrase de Sêneca para afirmar que o que era filologia sehavia convertido em filosofia.

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Filosofia Trágica e Iluminismo

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Filosofia Trágicae Iluminismo*

Mónica Virasoro

A idéia é uma interpretação de Nietzsche deslindando três mo-mentos de estrutura similar à dialética hegeliana no sentido de quetudo já está no começo. Todos os motivos nietzschianos já estão emgérmen nas primeiras obras. Eles serão postos, serão negados, paravoltar finalmente, não diria superados, mas transfigurados, enrique-cidos, não através do desenvolvimento do conceito como em Hegel,mas através de uma experiência de vida. Todo o pensamento deNietzsche está ligado inseparavelmente às suas próprias transfigu-rações, o que, em outros termos, ele mesmo define como mudançade pele, transformações voluntárias, nada que tenha de ver com ose deixar levar pela molície, ou guerra contra si mesmo que elequalifica de infidelidade heróica: “O maior obséquio que pode nosreservar o destino é fazer com que combatamos algum tempo aolado de nossos adversários.” (FW/GC, § 323) Ou, ainda, como es-creveu na epígrafe de Aurora: “A serpente perece quando não podemudar de pele. Do mesmo modo como os espíritos que são impedi-dos de mudar de opinião; deixam de ser espíritos.” (M/A, § 573).

* Tradução de Vânia Dutra de Azeredo.

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O primeiro momento corresponde ao do jovem Nietzsche, o deO nascimento da tragédia e das Considerações extemporâneas, o crí-tico da cultura alemã e por extensão da cultura européia, apoiadona fé em um ressurgimento do espírito dionisíaco através da músicaalemã na primeira obra e na fé no surgimento do gênio na segunda.Seja este o filósofo educador ou o artista Wagner, e para o caso nãoimporta que este gênio portador da absoluta novidade seja Wagnerou o próprio Nietzsche como ele mesmo confessa em Ecce homo.Este momento compreende uma concepção da cultura autênticacomo cultura não histórica, que se alcança “desviando a mirada dovir a ser para a arte e a religião, essas forças que a ciência temcomo adversas porque só lhes interessa o exame das coisas” (cf.HL/Co. Ext. II). A arte e a religião, nos confins da moral, são zonasde perigo, de risco, de abismo, elas nos provêm os componentesessenciais de uma cultura trágica: a ilusão, o mistério, a embria-guez, ingredientes também de tudo o que vive vida própria. Se osentido histórico faz perder o sentimento de surpresa, se o sentidohistórico desenraíza do porvir porque destrói a atmosfera de ilusãoúnica de onde pode florescer o que tem desejo de viver, então teráde lhe opor os efeitos da arte, um ideal estético que sempre con-serva os instintos e pode despertar o querer. Embriaguez, mistério,ilusão: eis aqui o necessário, tanto para a vida quanto para a cultu-ra. Eu não me preocupo com a verdade, dirá Nietzsche, porque oimportante não é a verdade, senão o que dela nos serve para a vida.Para isso, assinala-nos também o caminho de retorno aos gregos,sim, porém não para repetir nem imitar mas para se deixar fecun-dar pelo oráculo délfico, o “conhece-te a ti mesmo” como caminhopara organizar o próprio caos, apoiar-se não sobre a ciência queamontoa e se alimenta das experiências alheias, mas sobre a sabe-doria que é experiência própria que enquanto provém de um peri-go e inspira um desafio é capaz de um ato heróico.

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Filosofia Trágica e Iluminismo

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O segundo momento corresponde à mirada genealógica que nãocomeça em Para genealogia da moral mas em Humano demasiadohumano. Costuma-se falar de crítica genealógica, gostaria de assina-lar uma diferença: não se trata do que na Segunda ExtemporâneaNietzsche chama história crítica como mirada daquele a quem tor-tura uma angústia e quer desembaraçar-se de sua carga, história,portanto, que julga e condena. Abre-se em Humano demasiado hu-mano uma etapa do todo diferente anunciada já em suas primeiraspáginas quando Nietzsche, depois de haver criticado na SegundaExtemporânea a cultura histórica, reclama para a filosofia sentidohistórico e acusa o pecado original dos filósofos, a falta de sentidohistórico, o fato de que o homem, por exemplo, seja entendido comouma eterna veritas. A genealogia teria por fim terminar com a pre-tensão de verdade e, portanto, terminar com a metafísica enquantobusca de fundamento. Deve pôr manifesto que todas as coisas nas-cem de seus contrários, que todas as coisas valoradas tiveram ori-gens baixas e mesquinhas. A genealogia é a busca da correlação deforças que deram origem aos valores. Porém, não há uma atitudede juízo ou de condenação; a vontade de verdade, por exemplo,conectada com a criação de casos idênticos, acha-se a serviço davida. Nietzsche os entende como erros necessários à autoconserva-ção, de modo que as fictícias estruturas ontológicas que a genealo-gia desmascara são na realidade as que constituem nosso mundo,este que nos toca, nos pertence e daí o nome de “humano demasia-do humano”. Assim, a não verdade, o fato de que nos enganemos,é condição de vida. Há uma correspondência entre ser e pensar,entretanto, em um sentido oposto ao da filosofia tradicional herda-da dos eleatas, não no sentido de uma adequação do pensar ao ser,mas no sentido de que o ser seria uma pura ficção.

A genealogia aparece, desse modo, como esta tarefa que Fou-cault chama cinzenta, meticulosa, uma mirada desencantada quecorrobora fria e serenamente a origem carente de grandeza de to-

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dos os valores, mirada que permitirá uma compreensão científicade nossa cultura. Tenha-se em conta que quando Nietzsche emHumano demasiado humano fala de ciência, que nesta etapa apare-ce valorada positivamente frente à arte e à religião, geradoras defalsas ilusões e pertencentes a uma etapa infantil da humanidade,não está falando de ciência no sentido tradicional, mas referindo-sea esta tarefa genealógica que mira ao homem de cima a abaixo eque sempre observa as coisas pelo reverso, que se impulsiona poruma impaciente curiosidade em busca do “conhecimento a todocusto”, porque, “Não pode haver nada mais sereno, mais desperto(...) mais divertido do que o mundo e sua sabedoria”. Uma tarefaque exige um certo estranhamento, esfriamento, desilusão, que re-quer também solidão, mas, ao mesmo tempo, reflete uma “almaconfortada, suavizada e no fundo alegre (gozosa), um estado de âni-mo que não necessita estar sempre em guarda contra as perfídias”.Atento sempre às diferenças de estilo, Nietzsche atribui a Humanodemasiado humano uma mudança de tom, “o livro será considera-do inteligente, frio, por vezes duro e sarcástico” (EH/EH, HumanoDemasiado Humano, § 1). Gosto intelectual versus exaltação daspaixões. Vale a pena recordar o ensaio de autocrítica de 1886; des-taca ali como aqui a recusa da ilusão, da busca do ideal, elementosque na primeira etapa considerava necessários para o surgimentode uma cultura autêntica.

Desde este ponto de vista, a genealogia aparece como métodooposto à dialética e pelo mesmo motivo vinculada ao sentimento trá-gico, mas em um sentido diferente daquele em que se opunha àcultura não histórica. Se na primeira etapa, Nietzsche opõe-se aohegelianismo em nome do supra-histórico que vai além do vir a ser,aqui se opõe em nome da história empírica. E por que esta opo-sição entre genealogia e dialética?

A razão em Hegel é sintética, busca o acordo, em Nietzsche, arazão, nesta modalidade genealógica, não realiza nenhum acordo,

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portanto, falta o fundamento de um discurso histórico no sentido deesforço sintético, totalizador, não há lugar para nenhuma teleologiaque acorde ser e pensar, razão e prática. A genealogia quer des-mistificar as falsas legitimações, a genealogia viria a ser o desmas-caramento dessa falta de acordo, e a tragédia, o espírito trágico, acontemplação desencantada da contradição, da diferença, a cons-ciência da impossibilidade de uma autêntica cultura que resolva atensão entre vida e idéia.

Entre os elementos teóricos que se põe em questão está a idéiade totalidade. Ainda que se siga falando, no interior da crise, detotalidade, esta não é mais que uma idéia vazia de sentido interno,não é mais que a soma das determinações particulares. A idéia detotalidade dará lugar em seu processo de dissolução a uma lógicado fragmento.

O outro elemento teórico questionado é a noção de sujeito. Àdissolução da idéia de totalidade segue-se a crise do sujeito trans-cendental que vem a ser então sujeito empírico. Desaparecendo Deuscomo garantia desaparece também o sujeito enquanto garantia daordem do mundo e esta falta de garantias afeta tanto o sujeito doconhecimento quanto o sujeito da práxis, seu ser no mundo é atra-vessado pela incerteza e insegurança. A perda do centro, desselugar transparente e poderoso, dá lugar a outra forma de experiên-cia, experiência da multiplicidade, da dispersão, experiência pre-cária, sim, mas, efetivamente, o verdadeiro destino do homem mo-derno é o humano demasiado humano. E assim à idéia de sujeitosegue-se a de indivíduo que se apresenta como índice de dissocia-ção, contradição irresolúvel, atravessado por uma cisão insolúvel.

Nos encontramos no campo do niilismo, fragmentação, não con-ciliação, e o começo de um novo momento no pensamento deNietzsche que considero iniciar em A gaia ciência e atingir seu cumeem Assim falava Zaratustra, momento desejado como uma libera-ção, mas que supõe ter atravessado as coisas mais amargas, ásperas

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e dolorosas do conhecimento. Poderíamos perguntar: há emNietzsche um intento de superação do niilismo, de ir para além doniilismo? A resposta deixaremos em suspenso. Em todo caso, nãose trataria de conciliação ao modo hegeliano, nem da volta à identi-dade lógico metafísica que mascara as antinomias; a via nietzschia-na não será a do conceito, mas a da vida onde se encontram a insti-tuição e o paradoxo; a saída como em Kierkegaard será através dosalto, não para um momento superior, mas para uma loucura su-perior. Há sim, uma nova mudança de tom sobretudo a partir dosúltimos fragmentos de A gaia ciência. A mirada de cima abaixosobre o homem dá lugar a um discurso dirigido ao indivíduo e pre-sidido pelo “tu”. Retornam os temas do primeiro Nietzsche agoratransformados, transfigurados, e, em que pese a tudo, em termoshegelianos, poderíamos dizer superados. Já não há mesura e sere-nidade mas a desmesura, a exaltação dos instintos, o gosto pelosextremos e o habitar nas cornijas, a vida é perigo e desafio e assimhá de se vivê-la. Como no primeiro período Nietzsche diz já não sepreocupar com a verdade, o que interessa não é a verdade ou afalsidade de um juízo senão em que medida ele favorece a vida,“Com todo valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, de-sinteressado: é possível que se deva atribuir à aparência, à vontadede engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e mais funda-mental para a vida” (JGB/BM, § 2). A arte também retoma seu lu-gar central. “...a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, avontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõe-se bemmais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético” (GM/GM, III,§ 25). Nietzsche fala agora aos ébrios de enigmas, aos que poden-do adivinhar odeiam o deduzir. Reaparece a idéia de gênio, porémagora também transfigurada. Nietzsche já não fala de gênio, fala dohomem grande, o grão homem (el gran hombre), aquele que tendoposto entre parênteses o instinto de conservação possui uma forçatransbordante, que não pode medir, que não pode frear, que inces-

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Filosofia Trágica e Iluminismo

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santemente se esbanja porque sua grandeza está no dar-se. É o ho-mem, que tendo desenvolvido ao máximo sua vontade de potênciae entesourado todo o passado, transforma-se em uma força vulcâni-ca prestes a voar por cima de seu tempo e projetar-se ao porvir, éum extemporâneo. Dele pode nascer o além do homem que não éuma entidade real mas uma meta, o homem é uma ponte, uma cor-da estendida, um trânsito para essa outra coisa, o além do homem,uma quimera, um porvir. E ademais – fato sintomático – aparece aidéia do eterno retorno. É certo que aparece como o mais pesadodos pesos na voz de um demônio que persegue na mais solitária dassolidões, embora haja a possibilidade desse demônio ser visto comoum Deus. Essa cantinela do espírito do peso pode ser também amais exultante revelação. “Quanto é preciso amar a vida para nãoquerer mais do que essa suprema e eterna confirmação...” (FW/GC, § 341).

É o caminho de retorno, podemos fazer um esboço do pensa-mento nietzschiano sobre o modelo da dialética hegeliana. O pontode partida regressa conservado, superado: romantismo, iluminismo,ou espírito trágico, intelectualismo e retorno ao espírito trágico, ouainda crítica da cultura e filosofia do porvir. Muitas são as maneirasde expressar estas transfigurações provocadas por essa vontade desacrifício de si, de infidelidade heróica, de renúncia ao si mesmopara permanecer no si mesmo.

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Aspectos do paganismo no pensamento de Nietzsche

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Aspectos do paganismono pensamento de Nietzsche*

Leandro Pinkler

A noção de paganismo só pode ser definida a partir de sua opo-sição ao cristianismo, uma vez em que a palavra pagani foi utilizadapelos praticantes de tal religião não apenas para dar significado ao“não cristão”, mas, também, ao “não judeu”. E foi desta maneiraque acabou, posteriormente, por ser aplicada ao conjunto das reli-giões indo-européias antigas – com todos os seus sincretismos. Anoção pode, pois, referir-se tanto à antiguidade greco-latina comoaos mitos celtas e germânicos presentes na obra de Wagner, e, domesmo modo, as mais antigas tradições indo-iranianas. Há que seter em vista tal distinção para poder sustentar que o paganismo tem,no pensamento de Nietzsche, duas referências essenciais: o deusDioniso e o Imperium Romanum.

A obra do próprio Nietzsche marca um novo ciclo na revalori-zação da religião grega, algo que pode ser apreciado em muitas dasvisões do séc. XX como, por exemplo, a de W. Otto e K. Kerényi.Com efeito, quando Kerényi define a religião antiga como “uma re-ligião da positividade do mundo” que pode ser reconhecida por seu“caráter festivo”, ele nada mais faz do que admitir, no discurso eru-

* Tradução de Fernando de Moraes Barros.

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dito, a afirmação de O Anticristo § 55 de acordo com a qual os “pa-gãos são todos aqueles que dizem sim à vida, para os quais ‘Deus’ éuma palavra para designar o grande Sim a todas as coisas...” (AC/AC, § 55) e a idéia presente em Humano, demasiado humano vol.2, § 220 de que o verdadeiramente pagão é “a festa organizadapara glorificar as paixões”. O testemunho da religiosidade pagã dáa conhecer ao homem ocidental o fato de que “existem formas maisnobres de se servir da ficção poética dos deuses, que não seja paraessa crucificação e auto-degradação do homem”: os deuses dos ho-mens gregos “valentes como leões” (cf. GM/GM, II, § 23). Desde Onascimento da tragédia acha-se presente, em Nietzsche, a idéia deque os deuses gregos são uma forma de agradecimento e glorifica-ção da vida, sendo que é sob esta perspectiva que se produz o “des-cobrimento” do dionisíaco por parte do jovem Nietzsche – pois, comexceção de Burckhardt, os demais helenistas haviam obviado a im-portância de tal deus. Este, por sua vez, se expressa na certeza deque a capacidade para sofrer e gozar é exatamente a mesma, algoapto a situar a divindade para além do bem e do mal, algo total-mente diferente da “ridiculez de um Deus bom”, “esse deplorávelDeus do monótono-teísmo cristão” (cf. AC/AC, § 19).

A presença do pagão na obra deste filósofo-filólogo é tão pode-rosa e constante que não pode ser interpretada como um mero aditivoou motivo de inspiração. Trata-se, em nosso entender, de uma ma-triz de pensamento da qual derivam os núcleos fundamentais deseu pensamento. Tal é, pois, o caso do eterno retorno, que resultade uma reformulação de antigas crenças indo-européias contráriasà concepção criacionista de cunho semítico. A ser assim, apresenta-mos sinteticamente as crenças básicas que articulam a Weltanshau-ung pagã (em oposição à cristã) a partir da perspectiva concebidapor Nietzsche, isto é, em que as crenças não se medem por seusuposto grau de adequação ao real, senão por sua eficácia para avida. Tal é a aceitação da vida, a positividade do mundo da concep-

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Aspectos do paganismo no pensamento de Nietzsche

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ção pagã (contra o além-mundo cristão): os deuses gregos não sãotranscendentes, mas imanentes ao mundo e à natureza. Por issomesmo, ela pode ser considerada uma religião epifânica, sendo quea palavra epifanía – que significa “manifestação” – indica que umadivindade aparece viva e presente naquilo que há de mais concretoe cotidiano. Afrodite é o sexo, Hades a morte, Zeus é o céu, o pai, alei. Poseidon não é o deus do mar, é, pura e simplesmente, o mar,com tudo o que este envolve e possui de numioso. Não há, dessemodo, nada de sobrenatural entre os gregos; é, ao contrário, a na-tureza mesma, a physis que se mostra sagrada em todas as suas di-mensões. Da mesma forma, em tal cultura não há sentido a pergun-ta pela crença em deus, pois os deuses estão, aqui, manifestos nopróprio mundo. Seu equivalente não é “crer em deus”, mas “consi-derar os deuses” (toús theoús nomízein), o que significa lhes prestaratenção e cuidado na prática do culto. Nesse mesmo trilho, a pala-vra ateu (átheos) significa, em seu uso originário, “desprovido dedeuses” e pretende indicar – por assim dizer – não que alguém nãoacredita nos deuses, senão que os deuses não acreditam em alguém.

Uma segunda oposição que se formula é a da Estética da exis-tência contra a moralização de prêmios e castigos post mortem. Aconcepção – proposta em O nascimento da tragédia – de Apolo eDioniso como Kuntztriebe revela o sentido pagão de que só estetica-mente a existência está justificada, como o próprio Nietzsche expõeem seu comentário a tal obra: “ver a ciência com os olhos da arte ea arte com os olhos da vida” (cf. GT/NT, Ensaio de autocrítica). Aestética da existência funda-se em uma atitude de aceitação in-clemente da vida sem nenhum tipo de teleologia ou escatologia ouqualquer tipo de sentido moral. Não se trata de um mero hedonismoimediatista, mas de uma tarefa que faz da existência uma obra dearte. É-se chamado a tomar a própria vida e o próprio ser – deacordo com a metáfora reiterada – como o escultor toma uma pe-dra de mármore. Tal modo de viver resultará em algo contrário a

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toda esperança de recompensação post mortem, constituindo, demaneira bem outra, a experiência mesma do eterno retorno, em quecada instante é o que é como presença atual. Por isso, Nietzscheafirmava com certa sorna e ironia – em Ecce homo – que sua mãe esua irmã, as quais detestava, eram sua única objeção contra o eter-no retorno. A vida só se justifica por si mesma sem a presença dequalquer adereço imaginário: nenhuma transcendência ou escato-logia moralizante dá sentido à vida; resultam, ao contrário, em fontedo niilismo. Por outro lado, antes do cristianismo houve – segundoNietzsche – outros modos de existência, quer dizer, que não neces-sitavam da criação de um “outro mundo”. Com efeito, nem o mitoheróico nem a tragédia podem ser concebidos no contexto de umaescatologia de prêmios e castigos ou no quadro das crenças re-encarnacionistas. Estas concepções são introduzidas no mundo hel-ênico através do orfismo e foram consideradas por E. Rohde, o gran-de filólogo amigo de Nietzsche, como “um sangue estranho às veiasda Grécia”. A crença na imortalidade da alma representou, pois,uma estranha novidade para os gregos, mas fora, no entanto,eternizada pelo platonismo, sendo a textualidade platônica a princi-pal prova da introdução de tal crença e de um sistema de prêmios ecastigos escatológicos, basta recordar – entre outros – os mitos queencerram o Górgias e A República. Por essas razões, o cristianismoconstitui, para Nietzsche, “platonismo para o povo”, já que ele di-vulgará para todos a necessidade demencial de um outro mundo:seja ele o das idéias ou o Reino dos céus, pouco importa a Nietzsche.O filósofo interpreta-o, em ambos os casos, como um desprezo pelaefetividade. As esplendorosas figuras dos deuses olímpicos, por outrolado, situam-se para além do bem e do mal: “quem busca nelesaltura ética, austeridade, espiritualidade incorpórea, terá, de ime-diato, que lhes dar às costas, desgostado...” (cf. GT/NT, § 4).

Em terceiro lugar, como um outro modo de formular a mesmacrítica, Nietzsche opõe os valores afirmadores da vida consoantes à

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Aspectos do paganismo no pensamento de Nietzsche

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cultura greco-latina (contra os valores imaginários da civilização cris-tã). A oposição é, em tais termos, algo simples: o que é bom para osgregos é mal para os cristãos, o que é bom para os cristãos é malpara os gregos; devido a essa transmutação de todos os valores de-senvolveu-se, pois, o cristianismo como decadência dos valores no-bres caídos nas mãos da canalha – a décadence. Ou, em termosparadoxais já expressados em O nascimento da tragédia: os valoresafirmadores da vida que supõem uma instintividade forte e gozadorase articulam em um Pessimismo, enquanto os negadores, surgidosde uma corporeidade raquítica, se enunciam em um Otimismo. Istoé exemplificado claramente no fato de que a esperança é um malpara os gregos (cf. Humano, demasiado humano) e uma virtude paraos cristãos (algo já antecipado pelo otimismo do homem teórico, so-crático). Tudo no cristianismo resulta de uma relação de seres ima-ginários (Deus, alma) com causas imaginárias (pecado) e conseqü-ências imaginárias (redenção, inferno) – (cf. AC/AC, § 15). Estaatitude de negação dos valores efetivos, os quais tornam a vida dig-na e gozosa, decorre de uma sorte de raquitismo e esgotamento dosseres humanos produzidos pelo poder dos sacerdotes na “educa-ção” da humanidade (tese desenvolvida de ponta a ponta em Paraa genealogia da moral).

Deriva-se, como conseqüência disso, a última oposição que con-tamos apresentar: erotismo e cultivo do corpo (contra a castidade, opecado e o desprezo da sexualidade). Segundo um aforismo de Paraalém de bem e mal, o cristianismo deu a Eros veneno para beber eeste não morreu, mas degenerou em vício. Enquanto a sexualidaderepresenta algo sagrado para o mundo da cultura antiga, tal comoas figuras de Eros e Afrodite entre os deuses gregos, Nietzscheenfatiza o caráter morboso que adquirem estes aspectos essenciaisda vida na ótica cristã. Em Aurora § 76, ele indica que “um modode pensar malvado torna malvadas as paixões”, isto é, que a visãoperversa que se arremessou sobre a sexualidade fez de Eros e

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Pinkler, L.

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Afrodite demônios do mal. A condenação com que ele finaliza OAnticristo é, nesse sentido, particularmente eloqüente: “Todo des-prezo da vida sexual (...) constitui o autêntico pecado contra o espí-rito santo da vida” (AC, Lei contra o cristianismo).

Todas as qualidades do mundo pagão estão condensadas no sím-bolo do deus Dioniso ao qual Nietzsche aludirá ao largo de toda asua vida; o mesmo deus que, à maneira de Shiva na Índia, dançaeternamente nos ciclos do cosmo e constitui a representação mitoló-gica do eterno retorno, como o coro de Sátiros presente em O nasci-mento da tragédia que baila constantemente marcando os limitesde nossa mentira civilizada. Mas, como antecipamos, o outro refe-rencial que igualmente representa o paganismo em sua realizaçãohistórica é o Império Romano, o qual Nietzsche admirou como aencarnação da vontade de potência, indo, assim, de encontro à con-cepção de sua época – re-instaurada por Hollywood – que fez doImpério o símbolo de um despotismo decadente. A esse propósito,lemos em Para a genealogia da moral II §16: “não houve sobre aterra homens mais fortes e mais nobres”; surge, neste texto, a for-mulação do conflito fundador do Ocidente que será, por sua vez,continuado na obra de O. Spengler: toda a história do Ocidente podeser sintetizada na fórmula “Roma contra Judéia, Judéia contraRoma” e fica claro quem ganhou – adverte o filósofo um pouco maisadiante – apenas observando perante a quem se ajoelha a Europa.Ora, há que se recordar que Nietzsche estima o mundo latino maisque o grego em muitos aspectos concretos e estéticos – ama Horácioe despreza Platão (cf. GD/CI, “O que devo aos antigos”). Destamesma perspectiva, Nietzsche se lamenta duramente: “O trabalhointeiro do mundo antigo em vão, não tenho palavra que expresse oque sinto ante um fato tão monstruoso...” (AC/AC, § 59).

Com a morte de Pan da qual fala Plutarco, o fim do paganismomarcará um certo pranto da natureza: o fim das celebrações dosMistérios, o fechamento das escolas filosóficas, a destruição da bi-

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blioteca alexandrina de Serapião, a perseguição do corpo de Afro-dite, os esquecimento dos valores guerreiros.

A alta valoração do paganismo na obra de Nietzsche não res-ponde a uma idealização do passado, mas a uma crítica ativa dacultura que hoje precisa ser atualizada e reformulada, enquanto aAntigüidade continua representando um momento em que o serhumano, sempre disposto a criar ficções, abraçou a riqueza domundo efetivo desenvolvendo uma visão de mundo afirmadora davida em seus diversos aspectos. Visão propícia para a superação desi mesmo, tal como indica a fórmula do evangelho de Nietzsche, aspalavras de Zaratustra: “Só o querer os tornará livres”.

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O ateísmo como vontade de ocaso

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O ateísmocomo vontade de ocaso*

Raúl A. Yafar

“Tudo merece perecer”. Friedrich Nietzsche.

Introdução

Entre os muitos aspectos que possui o tema do ateísmo emNietzsche, existe um que eu pretendo destacar nesta comunicação.Primeiramente, trata-se de uma de suas conseqüências explícitas: asolidariedade da morte e da criação, quer dizer, a co-implicância en-tre a finitude da instância do Pai e a sobrevivência da instância doFilho para além dele. Também destacarei o finca-pé viabilizado peloautor de Assim falava Zaratustra no qual essa finitude do paterno –seja qual for o campo do qual estamos falando – não deve ser ape-nas assumida ou aceita, mas inevitável e propriamente desejada. Porúltimo, trata-se de ver de que modo isso tem importância para a

* Tradução Fernando de Moraes Barros.

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clínica e a teoria psicanalítica, já que Nietzsche, na maioria dos ca-sos, nos orienta e permite dar um passo para além de tudo o que foirefletido até o momento.

Deus representa, para Nietzsche, uma realidade que se situapara além do homem, um âmbito transcendente do mundo. Existi-rá, então, de maneira indubitável, um ateísmo banal, pertencenteao positivismo racionalista e que não merecerá nosso comentário. Oque nos interessa, por outro lado, são seus argumentos acerca dadestruição do teísmo. Estes, por seu turno, são enumerados reitera-das vezes: a sombra pavorosa de Deus conserva-se como um refle-xo negativo dos ideais humanos nas projeções que os homens dife-renciam, com uma natureza demasiada alheia, de seus pequenosapetites. É ateu considerar que o mundo não respira nem pulsa,que não é uma construção maquinal sujeita a fins nem que regulaos seus próprios movimentos, mas que se agita em um caos neces-sário que se repete eternamente enquanto afirma o seu poder. Ouniverso não é impiedoso, insensato ou imoral; ele carece de leis e,sobretudo, de legislador; carece de finalidades e, por conseguinte,de um acaso autêntico. Nada novo suspira em uma matéria não trans-cendente que carece de um valor próprio e que, só raramente, podechamar a si própria de vivente.

Tudo isto é claro, mas há, digo eu, um apetite humano de di-vindade mais forte que todos, um apetite que ensombrece ainda oreino da morte: é o indivíduo que resiste a si, que se perpetua em suapretensão de persistir, apropriando-se do tempo mesmo.

I

Quando Nietzsche fala acerca da morte do criador, ele não serefere, em absoluto, a um desejo de morte do pai – genitivo objetivo– que se acomodaria, à maneira freudiana de assassinato, na alma

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do filho. Não tem em mente, do mesmo modo, a aceitação que talfilho deve realizar a propósito da finitude de seu pai e tampouco daassunção da própria morte que ele mesmo deve elaborar – este é,por sinal, o passo teórico que encontramos no pensamento de Jac-ques Lacan. Nietzsche tem em mente, ao contrário, um desejo demorte do pai – genitivo subjetivo – que tem como protagonista opróprio pai. Assim, esse desejo implica, para parafrasear o próprioNietzsche, naquilo que chamarei de “vontade de ocaso”.

Chegado o momento, o coração de Zaratustra vibra inexoravel-mente: tal como faz o sol, quando chega o entardecer, ele desejaoutorgar-se e repartir-se, mas, para tanto, ele deve descender (unter-gehen) aos abismos. Zaratustra pede ao astro uma bênção para ataça que conta transbordar. É com tal invocação que começará, pois,o ocaso (Untergang) de Zaratustra.

Eis o motivo pelo qual o anseio de Zaratustra o leva para longe.Ele não pergunta como deve o homem se conservar, mas de queforma se encerra o tempo do homem. O que devemos amar nele é asua vontade de seguir rumo ao ocaso. A fim de dar seu lugar à vida,cumpre-lhe acolher a morte em seu seio, retornando ao sentidointramundano da terra. Isto é, revelado em uma longa confissão deamor de Zaratustra.

Ele ama aqueles que não sabem viver senão para desaparecer,para se anular, os que não querem preservar a si mesmos e que, aodesaparecem em sua imolação, não buscam a razão disso atrás dasestrelas, mas se sacrificam à terra mesma. Zaratustra ama os que“se prodigalizam e dilapidam a sua alma”, as almas daqueles queestão tão repletas que transbordam, daqueles que esquecem de simesmos, dos que dão mais do que haviam prometido. Pois, tudo oque se encontra em suas almas é o que lhes empurrará até o abismo.

Tais almas são tão vastas que podem se extraviar e errar longa-mente dentro de si mesmas. Mas é por prazer que se precipitam atéseu final. Submersas no vir-a-ser, elas querem se afundar no de-

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sejar, escapando de si próprias e alcançando a si mesmas: as almasdaqueles que possuem o coração e o espírito livre, pois sua cabeçanão constitui senão as entranhas de um tal coração. E é ele que oslevará ao ocaso.

Trata-se, a ser assim, daqueles que são augúrios, mensageirosque, como tais, desaparecem.

A dor desse pai, seu coração desgarrado, é de quem adverteque quer morrer dessa felicidade. Morrer com a ébria e fúnebrefelicidade da meia-noite, já que o que foi realizado quer morrer paraque os herdeiros se lancem em direção aos seus destinos: a hora davindima ceifará os frutos já maduros, que desaparecerão ao gerarum produto novo e distinto, do qual fluirá a embriaguez da criação.Essa dor diz: rebenta-te e sangra, anula a felicidade do prazer –que quer somente a si mesmo –, desintegra-te de uma vez para quesurja a obra.

Assim, tudo morre e tudo volta a florescer.Zaratustra, o ateu, o advogado da vida, o que faz falar o seu

abismo, diz: “Há que se morrer a tempo!”. Pois ele mostra a “mor-te benfeitora”, que é para aqueles que vivem segundo “aguilhão epromessa”. Quem se realiza por completo morre vitorioso, rodeadode pessoas que esperam e prometem. De tal modo dever-se-ia apren-der a morrer. A morte que ele predica é a sua. É a morte voluntária:“quem tem uma meta e um herdeiro, quer a morte em um momen-to justo para a meta e o herdeiro”. E por respeito a eles, não há dependurar “coroas secas” no santuário da vida. Será livre para a mortee na morte, exercendo a “difícil arte de ir-se a tempo”.

Oxalá chegassem as tempestades dos predicadores da morterápida, sacudindo verdadeiramente as árvores da vida! Caso con-trário sua morte terá malogrado. Nossa nobreza não deve olhar paratrás, senão para adiante. “Proscritos dos países dos pais e dos ante-passados”, devemos amar apenas a terra de nossos filhos. No meiode sua obra, Zaratustra se encaminha até eles, pois, por este amor

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radical, precisa consumar a si mesmo. A vida imola a si própria por-que quer se superar, porque é da destruição que nasce a criação.Trata-se de amar e afundar-se voluntariamente no ocaso: duas coi-sas que andam juntas desde a eternidade. A vontade deste amor é ade estar, de bom grado, disposto a morrer.

O silêncio sem voz lhe diz: “O que importas tu, Zaratustra? Digatua palavra e faz-te em pedaços! Oferece, ao morrer, a mais rica desuas dádivas, como o sol imensamente rico declina e derrama nomar o ouro de seu tesouro inesgotável”, até que o mais “miserávelpescador reme com remos de ouro”. Ele diz: “Que me importa afelicidade! Aspiro à minha obra!” Os homens subirão até ele nomomento em que os signos anunciam seu ocaso. Assim declina, talcomo tem que fazer, entre eles. Ao fim e ao cabo, Zaratustra dizsua palavra e sucumbe como anunciador.

II

Untergehen é, segundo os distintos tradutores de Nietzsche, umapalavra-chave de seu discurso. Em astronomia possui o sentido de“pôr-se” (o sol, por exemplo). Em navegação – com referência auma embarcação –, é traduzida por “afundar”, “submergir” ou “ira pique”. Outros sentidos são: “ir à ruína”, “perecer”, “extinguir-se”. Algumas vezes é traduzida pelo verbo “trasmontar” (de “trans-montar”), quer dizer, passar para o outro lado dos montes”. Esta éa típica ação do sol quando se põe, atravessando o horizonte. Desteverbo deriva o substantivo Untergang, que é o que geralmente setraduz por “ocaso” em seus textos.

Este termo pode, do mesmo modo, ser explorado na obra deSigmund Freud. O criador da psicanálise assegura, por exemplo,que a cidade de Pompéia malogra em seu ocaso, indo-se “ao funda-mento” (zugrunde gehen), até que é... desenterrada. Pareceria su-

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gerir-nos que a profundidade fundamental das coisas estaria situa-da no coração mesmo da efetividade humana. Vemos que a expres-são dá conta de uma “destruição” muito posterior e diferente daqual produziu o Vesúvio, uma “segunda” finitude com respeito aodesaparecimento de suas ruas e à morte de seus habitantes, longedo patetismo das dores sofridas por cada um dos indivíduos que aliviviam. Não se trata do fim da história de uma cidade, mas, especi-ficamente, o contrário disso, quer dizer, de um ocaso que é, aomesmo tempo, uma recuperação. Pois, esta segunda morte “pordesenterro” marca a interiorização de Pompéia nos valores da cultu-ra humana universal. Já não se trata de um mero morrer, mas deum fenecimento re-fundador, como o mito de Fênix e de Dioniso.

A primeira tradução freudiana para o espanhol optou, na suaocasião, por traduzir Untergang por um termo bastante adequadodentro do contexto psicanalítico: dissolução. Se retornarmos ao temado ateísmo, poderemos falar, agora, não meramente de “morte deDeus” – o que implicaria unicamente num movimento de descons-trução –, mas de uma “dissolução de Deus”. Dissolução medianteesse ocaso (Untergang) que é, pois, sua consumação afirmativa. Jus-tamente por se tratar de uma aposta de fundação é que Nietzsche,dirigindo-se a uma instância futura – movimento reconstruivo –, falada mesma ótica e dentro do mesmo contexto sobre o tema comple-mentar do além do homem – o qual não trataremos aqui.

Obviamente, “algo dissolvido” – ainda que tenha perdido seuestado originário – não desaparece completamente. Postulemos que,a partir de uma dissolução, deverão ser produzidas posteriormentemanifestações de retorno daquilo que foi afetado por esse processo“destrutivo” especial, manifestações discerníveis como sua contra-face criativa. E recordemos também, a esse propósito, o exemplode Schelling da semente “dissolvida” que cria, de todos os modos, apromessa da futura árvore. Diz Schelling: “todo nascimento vai daobscuridade à luz; a semente tem que ser mergulhada na terra e mor-

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rer nas trevas para que a mais formosa forma luminosa se erga e sedesdobre sob os raios solares”. É comum, pois, o exemplo mais pro-saico e cotidiano da “aspirina”. Esta, como outros medicamentos,só funciona melhor se estivar dissolvida. Encontramos, aqui, tantoo sentido de “digerida” ou “metabolizada” como o de “elaborada”ou “assumida” pelo organismo.

Pompéia foi, da mesma forma, “elaborada” e “assumida” pelacultura depois de seu descobrimento e desenterro posterior. Tor-nar-se-ão possíveis, pois, graças a este ocaso dissolutório, Escolasde História Pompeiana, Cátedras de Estudos Pompeianos, um estilopompeiano de arquitetura, uma moda de cerâmicas, decoração ouvestimentas “à la pompeiana”, nomes de ruas, poemas ou canções,personagens teatrais ou pictóricos que lhe tragam à memória, etc.

III

Como se singulariza o ateísmo para a psicanálise? Dissemos quea clínica de Freud também discerniu a importância destes temas. Oproblema da filiação diz respeito a um tópico essencial da teoriaque é, por sua vez, a constituição do sujeito. A função paterna estáimplicada no enredamento daquilo que se chamou Complexo deÉdipo, cujo centro resolutivo é a “morte do pai”. O deus-pai decada analisando deve, pois, perecer. Todavia: saberá ele morrer atempo ou será necessário assassiná-lo?

O Édipo masculino baseia-se sempre em algum gênero de miti-ficação: trata-se de uma poetização (metaforização) daquele que épai mediante um intenso duelo simbolizador. A figura do pai, arre-messada para fora da cena, vê-se duramente obscurecida, questio-nada, degradada por sua falha estrutural implícita. O que é recebidopelo filho deve ser transformado e reestruturado até ser e não ser oque foi, constituindo um retorno diferenciador que é, por sua vez,

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uma verdadeira assunção por apropriação do que foi herdado. Osideais paternos são alterados em cada passagem da geração, emcada salto temporal de vida do sujeito – assim como ocorrerá nasvidas de seus próprios descendentes –, pois não se confundem como desejo que anima o sujeito a percorrer o seu próprio caminho. Vive-rá, então, livremente, mas em um mundo sem deuses paternais.

O sistema de Ideais é um elemento assaz relativo para toda asubjetividade, é apenas um suporte historiado e que não pode, dife-rentemente da personagem paterna divinizada, pretender a imorali-dade ou a imutabilidade. O sujeito deverá entrar para “história”(de sua família, de sua raça, de sua nação ou do mundo) por suacapacidade de sustentar aquilo que seu desejo orienta. Isto lhe for-nece um lugar, que constitui uma marca, um signo, um sinal unica-mente de sua passagem: talvez a posteridade, sempre mundana, masnunca a eternidade. Por isso, em psicanálise, podemos falar – pa-radoxalmente – de uma transcendência “intramundana”.

O pai, então, já não poderá retornar em suas diversas encarna-ções divinas. As figuras dos pais da clínica freudiana, os pais-deu-ses – figuras endemoninhadas, ao fim e ao cabo –, com suas vozescruéis, com seus olhares moribundos e que ocuparam tanto espaçono discurso dos analisandos, hão de caducar. Em psicanálise, dize-mos que se tratou de uma transição: do pai como a instância doSuperego à causa de desejo que opera no sujeito. Da divindade pa-terna ao ato do sujeito.

A identificação com o herdado, que pretende arcar com essapesada materialidade, “espiritualiza-se” e perde-se mediante umduelo. O paterno idealizado deixa de ser origem dos sintomas neu-róticos em uma encenação eternizada e repetida – “para além doprincípio de prazer”, diria Freud – para impelir, pois, o sujeito ahistoriar seu desejo.

Freud cita o Fausto de Goethe em diferentes lugares. Trata-se,a rigor, de uma frase da primeira cena: “Aquilo que herdastes de

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teus pais, adquire-o para possuí-lo”. A tradução mais ajustada se-ria, em realidade, “para dele gozar”, quer dizer, para usá-lo, usu-fruir no momento adequado. A herança, então, há de se perderenquanto tal em uma operação que lhe altera em termos de suaconsistência material, e, assim, pode conseguir com que, mesmoevaporada, retorne como metaforização do herdado, quer dizer, doassumido, apropriado ao sujeito. Esse movimento possibilita-lhe umaespécie de destruição simbólica: aquela na qual ele se apodera doherdado. Eleva-se espiritualmente para além da carne paterna, su-blima o pai a fim de ser filho em sentido pleno, isto é, ao “vencê-lo”pela simbolização e, a partir daí, encarná-lo de um outro modo. Oque estava “em suspenso” como herdado é o próprio de si que, ago-ra, trabalha para seu destino com desejo, colocando-se em nome pró-prio, em ato, em sua história.

O chamado “assassinato do pai” não é um crime eternamenteanelado, perpetrado e, ao mesmo tempo, rechaçado, oscilando en-tre a culpa e a reconciliação amorosa, mas um Ato de Morte Simbó-lica, um ocaso voluntário do pai e uma assunção ativa do filho. Nãose trata de que o filho deva crer religiosamente ou não na figura deseu pai, mas de que o pai se consuma pelo fato de acreditar e seconsagrar à aposta futura que tal filho encarna. Isto implica num“entregar-se” à morte por parte do pai que, por sua vez, se dissolveenquanto detentor de seus Ideais, permitindo ao filho ser o deposi-tário de uma tarefa de renovação. Mas Nietzsche, de sua parte, des-taca que não se trata simplesmente de uma mera e cônscia aceita-ção, senão de um desejo muito ativo de renovação do vital.

Este processo, digamos, “ateiza” a idealização do pai graças àsua destruição por dissolução (Untergang) e gera uma construçãode ideais próprios, trans-valorativos, que são ficções absolutamentesingulares e operativas para o sujeito. O sentido é o de uma criaçãosublimatória, de um “invento” que se opõe a toda idealização divi-na. Todo filho como ateu de seu pai em cada um de seus atos –

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Lacan, aliás, combina a palavra ateísmo com o termo “ato” e tam-bém fala do ateísmo do psicanalista –, quer dizer, por vontade as-sumida de finitude de sua figura. Finitude, além do mais, ansiadapor ele mesmo.

A obra do pai não perece simplesmente, mas sofre um processomuito mais complexo mediante tal vontade de ocaso paternal: oselementos “dissolvidos” na aceitação de sua morte acoplam-se àvontade do filho, submetendo-se ao seu influxo, incorporando-se,insensivelmente, a um processo transformador que poderemos cha-mar de movimento de transmissão. Esta forma fundamental de morteretorna com força nos atos com os quais o sujeito conquista seu lu-gar entre os seus semelhantes.

Não se procura, em tal processo, fundar massificações do insti-tuído, mas movimentos instituidores que vão para além do própriofundador. Criar “escolas” singulares de pensamento nas quais nãose adora a figura do pai, mas onde seja possível ler na escritura desua morte o que por ele foi dito. Herdeiro é aquele que lê nesseensinamento o que resta do Pai Originário e pode consagrar-se, poramor a sua letra – sem idealizá-la –, a fundar uma tradição mutável.O pai passível de divinização morreu, mas mediante uma forma demorte – assumida, ansiada, justificada em seu desejo – que o tornamais eficaz morto do que vivo, na media em que sua palavra se“dissolveu” no fundamento íntimo de cada um de seus filhos.

A sublimação de um pai por sua vontade de ocaso, longe deuma idealização, retorna como espiritualidade de um nome novo. Oocaso não é uma destruição pura e simples ou uma demolição ca-tastrófica, mas um trabalho de duelo que requer elaboração e queestá no fundamento do progresso das gerações. Pois, assim como oreprimido no sentido freudiano retorna – na neurose – num regres-so que chamamos “sintoma”, o dissolvido pela vontade de ocaso re-gressa como sublimação criacionista de um Nome Próprio.

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Não há, pois, nome de Deus, senão o ateísmo disperso de seusnomes infinitos, a denominação inovadora e constante de cada umadessas finitudes nas quais, com sorte – e aqui está a aposta do painietzschiano –, vibrará algum traço de “singularidade”.

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A verdade em Nietzsche

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A verdade em Nietzsche*

Guillermo A. Maci

“Há uma comunidade de homens radicais, quenão conheçam o perdão e que se chamem ‘destrui-dores’, que apliquem a todas as coisas o metro dacrítica e se imolem à verdade. Saia à luz a malda-de e a falsidade! Não queremos construir prematu-ramente, não sabemos se poderemos construir, nãose será melhor não construir. Há pessimistas covar-des, resignados, aos quais não queremos pertencer”(Considerações extemporâneas).

A verdade não está no céu das idéias, nem nos santuários idolá-tricos, nem nas ideologias de poder, nem nas cumplicidades doscorruptos políticos, senão na luta nômade que a recupera em qual-quer parte, porém sempre no terreno da luta, do risco, contra todasas tergiversações que a desacomodam do perigoso caminho de sus-tentá-la. Assim falava Zaratustra uma vez mais. Assim se repete avontade de potência de uma afirmação sempre maior que impõe averdade por seu eterno retorno, idêntico a si mesmo.

* Tradução de Alberto Marcos Onate.

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Maci, G.A.

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A verdade não é a adequação ao que fica bem, à imagem que afaz brilhar alienada por todos os prestígios da moralina em uso. Averdade não é o sumo bem dos ideais da enfatuação, nem se medepor sua correspondência com eles. A verdade está Para além debem e mal. Por isso, impele ao homem mais além de seu lugar “na-tural”, a um lugar que o ponha por cima de suas concessões, suanarcotização pelo gozo vazio do parecer, o que a cada um lhe pare-cer ser e o que parece que ele é. A verdade é sempre em cadainstante, a que corro o risco de viver o perigo de reconhecer e reco-nhecer-me em seu ser, como o que não renuncia a ser.

A verdade está sempre no conflito de uma posição usurpadapela ativa dissimulação da censura. A verdade é o reverso polêmicoe rebelde de toda repressão. A verdade é pólemos, luta pelo lugaronde cabe ser o que se é. Por isso é preciso superar o preconceitoda cumplicidade com o prestígio da canonização tardia. A verdadevive para o hoje no instante que já é o amanhã do ontem, não parao cálculo mesquinho do futuro.

A verdade atua repetindo a Umwerthung aller Werte (transvalo-ração de todos os valores). A transvaloração não se produz só umavez, senão que é a repetição, o novo começo, a Aurora da Gaia Ciên-cia, do saber da alegria que dança porque arrojou o lastro da dis-simulação. Então os alemães, como dizia Nietzsche, deixaram deter os pés pesados.

Todas as formas de poder conformista, revestidas nas investi-duras da suástica ou da dama republicana, são a forma ativa doantipoder contra toda afirmação da verdade. Por isso se afirma aWille zur Macht (vontade de potência).

“A ciência é mulher e ama aos guerreiros” (Za/ZA, I, ‘Do ler edo escrever’), dizia Nietzsche. O saber não se iguala à covardia “de-corosa” dos intelectuais. O poder da verdade, a verdade como po-der afirmativo, vai mais além do bem miserável dos tiranozinhosvesânicos e suas variadas formas de “beneficência”.

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A verdade em Nietzsche

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A verdade não é a citação de prestígio, senão o risco de pensaro impensável. A verdade não é “doutrina”, senão aposta submetidaà prova. A verdade é na oposição que a sustenta e a afirma no aquie agora de quem se faz cargo do que lhe concerne dela. Não vale nocéu hiperbóreo do cosmotheorós, referido por Kant. A verdade écriação, por isso “a arte é mais importante que a verdade”, paraque a verdade possa ser tão importante como a criação e coincidacom o chegar a ser e não com o mero aparecer das sombras.

Hoje compreendemos que os representantes dos ideais coletivossão os grandes responsáveis das catástrofes sociais. Não é a nature-za humana a que nos aniquila, senão seus ideais em benefício delideranças monopolizantes. Os ideais filisteus de poder impõem seusídolos que pronto revelam ser fetiches perseguidores. Assim falavaZaratustra, uma vez mais.

E qual é o homem de hoje? O homem pós-moderno: um hiper-bólico e enfatuado, sem afã algum, dedicado a qualquer coisa, nemsequer a droga, um ressentimento sem ânimo de luta, só disposto àvingança do ressentimento. Em tal sentido, der Mensch ist etwas dasüberwinden werden soll (O homem é algo que tem de ser superado).

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Convenção para a citaçãodas obras de Nietzsche

Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela ediçãoColli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em português acom-panham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho de lei-tores pouco familiarizados com os textos originais.

I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:

I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:

GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:

Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:David Strauss, o devoto e o escritor)

HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzenund Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneasII: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)

SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauerals Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como edu-cador)

WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: RichardWagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagnerem Bayreuth)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiadohumano (vol. 1))

VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen(Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sen-tenças)

WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und seinSchatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua som-bra)

M/A – Morgenröte (Aurora)IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falou Zaratustra)JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)NW/NW – Nietzsche contra Wagner

I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:

AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)EH/EH – Ecce homoDD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)

II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:

GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia)DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensa-

mento trágico)BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de

nossos estabelecimentos de ensino)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefáciosa cinco livros não escritos)

PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofiana época trágica dos gregos)

WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre ver-dade e mentira no sentido extramoral)

Edições:Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas

por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Stu-dienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.

Forma de citação:Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará

o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábicoremeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remete-rá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,indicará o aforismo.

Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,conforme o caso, indicará a parte do texto.

Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volumee os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Contents

Nietzsches’s script-body 7Sandro Kobol Fornazari

Man and Style in Nietzsche 13Germán Meléndez

Style of weary things, almost lost:notes on Germán Meléndez’s“Man and Style” 41Marcelo Percia

Paths of Dionysus: Plato and Nietzsche 59Rachel Gazolla

Art and Knowledge in Nietzsche 87Olímpio Pimenta

Perspectives

Nietzsche in the present philosophy 101Estela Beatriz Barrenechea

The emancipation of woman 107Silvio Juan Maresca

Labour, slavery, rivalryA tragic mode of social organizationOn the “Greek State”and “Homer’s Contest” 113Roberto Mario Magliano

On the future of oureducational institutions 121Osvaldo Langellotti

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Tragic philosophy and enlightenment 127Mónica Virasoro

Aspects of paganismwithin Nietzsche’s thought 135Leandro Pinkler

Atheism as will to go under 143Raúl A. Yafar

The truth in Nietzsche 155Guillermo A. Maci

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

165cadernos Nietzsche 11, 2001 |

NOTES TO CONTRIBUTORS

the author’s last name, initials,followed by the year of publi-cation in parentheses, should beheaded ‘References’ and placedon a separate sheet in alphabe-tical order.

3. All articles will be strictly refer-eed, but only those with strictilyfollowed the convention ruleshere adopted for the Nietzsche’sworks.

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

1. Os trabalhos enviados parapublicação devem ser inéditos,conter no máximo 55.000caracteres (incluindo espaços) eobedecer às normas técnicas daABNT (NB 61 e NB 65) adapta-das para textos filosóficos.

2. Os artigos devem ser acompa-nhados de resumo de até 100palavras, em português e inglês(abstract), palavras-chave emportuguês e inglês e referênciasbibliográficas, de que devemconstar apenas as obras citadas.Os títulos dessas obras devem

ser ordenados alfabeticamentepelo sobrenome do autor enumerados em ordem cres-cente, obedecendo às normasde referência bibliográfica daABNT (NBR 6023).

3. Reserva-se o direito de aceitar,recusar ou reapresentar o origi-nal ao autor com sugestões demudanças. Os relatores de pa-recer permanecerão em sigilo.Só serão considerados para apre-ciação os artigos que seguirema convenção da citação das obrasde Nietzsche aqui adotada.

1. Articles are considered on theassumption that they have notbeen published wholly or in parte lse-where. Contr ibut ionsshould not normally exceed55.000 characters (includingspaces).

2. A summary abstract of up to 100words should be attached to thearticle. A bibliographical list ofcited references beginning with

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates emtorno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexãonietzschiana.

Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo inter-rompeu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se àsua figura, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conheci-do sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruirídolos, Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de nosso tem-po, deixou uma obra polêmica que continua no centro da discussão filo-sófica. Daí, a oportunidade destes cadernos.

Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernosNietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéi-as do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que seconsagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra,estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com osde outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específi-cos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham emavaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano.

Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua juntoao Departamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contamdifundir ensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos deautores estrangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de dou-torandos e mestrandos ou mesmo graduandos.

Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernosNietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly -every May and September. Its purpose is to provide a much needed fo-rum in a professional Brazilian context for contemporay readings ofNietzsche. In particular, the journal is actively committed to publishingtranslations of contemporary European and American scholarship, origi-nal articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduatedstudents on Nietzsche’s philosophy.

Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an interna-tionally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journalhas already made its mark as a forum for innovative work by both newand established scholars. Contributors to the journal have includedWolfgang Müller-Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, MichelHaar, and Richard Rorty.

Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes placeat the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernosNietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has acurrent circulation of about 1000 copies and is actively engaged in ex-panding its base, especially to university libraries. And it has been sentfree of charge to the Brazilian departments of philosophy, foreigner librariesand research instituts, in order to promote the discussion on philosophicalsubjects and particularly on Nietzsche’s thought.

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