Comentário a F. Limongi, Institucionalização política

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    INSTITUCIONALIZAO POLTICA (COMENTRIO CRTICO)1

    Fbio Wanderley Reis

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    Ao aceitar o convite da ANPOCS para atuar como comentador dotrabalho de Fernando Limongi, no sabia que eu prprio seria temadestacado do trabalho. A situao envolve certo desconforto pessoal. Mas,

    pensando bem, no h razo para no ver com bons olhos a oportunidade deconfronto de posies e idias que dela resulta, embora a cultura das cincias

    sociais brasileiras se mostre avessa ao debate.

    O texto de Limongi que vai publicado neste volume a reformulaode uma primeira verso bem mais longa, que me coube discutir em reunio

    promovida pela ANPOCS como parte do projeto que se fecha com apublicao do volume. Possivelmente em alguma medida comoconsequncia dos meus comentrios de viva voz, na verso final (que , defato, a terceira, pois houve uma segunda verso que me foi remetida comosendo a definitiva e sobre a qual trabalhei longamente na redao desta

    resposta) o enxugamento do texto resultou em substancial reduo do espaoque me era dedicado. No obstante, vou seguir aqui o mesmo procedimentoadotado na reunio mencionada: os comentrios se referiro sobretudo aosmeus prprios trabalhos, recusando meu casamento com BolvarLamounier que Limongi promove e que lhe permite deslocar-se dareferncia seletiva a passagens de um ou de outro para enunciados de maioralcance em que a crtica socializada e estendida a ambos (na forma final,alis, o artifcio redunda o mais das vezes em criticar textos de Lamounier e

    pretender que a crtica se aplica tambm a mim, tratando-se com frequnciade enunciados rombudos em que no chego a reencontrar as idias de

    Lamounier que conheo, quanto mais os matizes das minhas prprias idias,que naturalmente tenho melhores razes para ter presentes). A recusa do

    1Comentrio ao texto Institucionalizao poltica, de Fernando Limongi. Tanto o

    texto de Limongi quanto o comentrio foram publicados em O que ler na cincia socialbrasileira, volume 3, organizado por Sergio Miceli (So Paulo, Editora Sumar/Anpocs,1999).

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    casamento, contudo, no me impede de reconhecer certa afinidade deperspectivas com Bolvar Lamounier. Da me parecer que boa parte do quetenho a dizer seja tambm relevante para as crticas que lhe so dirigidas,apesar de que ele possa certamente dispensar a minha ajuda.

    A sucesso de verses do texto cria, porm, um problema de maiorrelevncia. Ocorre que elas so cada vez menos afirmativas quanto disposio crtica que Limongi exibe a respeito dos trabalhos discutidos. Aconsequncia mais importante disso se d naquilo que diferencia as duasltimas verses. Enquanto os dois textos so praticamente idnticos em suaquase totalidade, h um ponto crucial em que eles contrastammarcadamente. A segunda verso se fecha com o convite (reiteradoespecialmente na primeira) a que se estude como a democracia brasileirafunciona efetivamente e com a afirmao categrica de que isso implica

    abandonar a tica da institucionalizao poltica. J a terceira, aquipublicada, conclui com a afirmao de que a literatura sobre ainstitucionalizao poltica gerou uma agenda significativa de pesquisas,acompanhada pela idia de que ainda falta cumprir adequadamente essaagenda no plano do trabalho emprico e pelo convite implcito a que se tratede execut-la.

    O leitor talvez estranhe que eu comece por me referir s diferentesverses. Imagino que a expectativa, de acordo com as prticas usuais, seja ade que eu me atenha verso final. Mas estou diante de uma situao

    peculiar. Alm do fato de ter tido de comentar oralmente a primeira verso erecebido como definitiva a segunda para elaborar o presente comentrioescrito, as objees que tenho a fazer ao trabalho de Limongi referem-se inconsistncia de sua disposio crtica quanto perspectiva dedesenvolvimento poltico e institucionalizao, disposio que subsiste,mesmo na verso final, no tom claramente negativo que permeia aapresentao do material examinado. Ora, que melhor argumento posso terquanto a essa inconsistncia do que o fato de que o prprio Limongi extraiconcluses to nitidamente contrastantes do arrazoado idntico constante das

    duas ltimas verses? A reviravolta dramtica nas concluses leva, naverdade, a que no se saiba mais qual de fato a posio de Limongi, o que que ele efetivamente trata de dizer-nos.

    Dada a situao produzida, o que decidi fazer tomar Limongi asrio: vou dialogar com o Limongi que pretende tercrticas importantes aorecurso s noes de desenvolvimento poltico e institucionalizao e que se

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    atreve a enunciar suas crticas. Isso significa que o texto que se segue , compequenas alteraes que se impuseram, o mesmo que redigi comocomentrio segunda verso. Se o leitor, ou talvez o prprio Limongi,contestar a propriedade desse procedimento com a alegao de que a posiodeste, atravs das confuses do texto, na verdade a que se expressa naviso da noo de institucionalizao como instrumento terico capaz deengendrar uma agenda de pesquisa significativa, ento no me restar (com

    breve reclamao a respeito das confuses...) seno concordar com aexortao de Limongi no sentido de que se pesquise mais e convid-lo aque se junte ao esforo, com sua aptido para a pesquisa emprica. De todaforma, a discusso que fao certamente oportuna diante do fato de que asvicissitudes do tema do desenvolvimento poltico representam (com oabandono da aposta bsica contida na perspectiva correspondente em favor,

    por exemplo, da recente literatura sobre transies) exemplo destacado do

    efeito negativo dos modismos que tendem a marcar o trabalho no campo daCincia Poltica e das cincias sociais em geral.

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    Um trao saliente do trabalho de Limongi consiste em que aextensssima bibliografia que acompanha o texto no de fato utilizadaseno em parte bem reduzida, o que sem dvida se aplica mesmo se noslimitamos aos autores em que ele decide concentrar a ateno, justamenteBolvar Lamounier e eu prprio. Ora, a seletividade assim exercida se traduzem lacunas indesculpveis numa avaliao marcada pelo nimo crtico enegativo que perpassa o texto.

    Minha objeo principal ao trabalho a de que os recursos analticospor ele trazidos discusso ficam claramente aqum da complexidade dosproblemas tericos e conceituais que a temtica geral envolve e da riquezados dados empricos examinados na literatura discutida. O resultado que aleitura realizada por Limongi do material disponvel no s seletiva, mastambm muito tosca, carregando-se de equvocos srios e, por vezes, banais

    ao ponto de colocar prova a pacincia do leitor informado, que dizer da dosautores comentados. Limongi se empenha em reduzir o material a duas outrs posies ou idias (que se enunciavam de maneira mais insistente eclara na verso inicial do trabalho, mas que esto presentes com suficienteclareza na verso final), apresentadas como sendo as posies quedefendemos Lamounier e eu. (1) Em primeiro lugar, denuncia-se o recurso

    perspectiva de desenvolvimento poltico, que destaca a noo de

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    institucionalizao poltica, vistas ambas por Limongi no apenas comocorrespondendo a algo dmod, mas tambm como levando a um indevido

    pessimismo e como problemticas no que se refere traduo em termos dequestes empricas. (2) Em segundo lugar, a dinmica poltica do Brasilseria erroneamente interpretada em termos de continuidades, como acontinuao indefinida do pretorianismo e de deficincias correlatas,incluindo aquelas que dizem respeito ao sistema partidrio. (3) Finalmente,haveria a imprpria viso do eleitorado brasileiro como deficiente (noracional, no ideolgico), o que se ligaria com a idia, tambm errnea ouindevidamente pessimista, de que a democracia no possvel no Brasil.

    A meu juzo, as crticas de Limongi em conexo com esses pontossem dvida no fazem justia a Bolvar Lamounier. De todo modo, eu

    prprio definitivamente no me reconheo nelas. Vejamos como se pode

    lidar com elas, comeando pela postura geral que se traduz nas lacunasanteriormente referidas. Tais lacunas incluem:

    (1) O fato de que Limongi ignora sobranceiramente as discusses denatureza terica que desenvolvi em diferentes publicaes e que, no meu

    prprio entendimento, informam de maneira decisiva os trabalhos sobretemas especficos e as pesquisas empricas que realizei. Alis, o que seencontra de tentativa de enquadramento mais amplo dos fragmentos queLimongi se dedica a criticar resume-se em afirmar a influncia de SamuelHuntington e em lig-la, bem como idia de desenvolvimento polticoutilizada por alguns de ns, com nada menos do que o ambiente intelectual

    produzido pela influncia de Talcott Parsons sobre a Sociologia norte-americana do ps-guerra.2 De qualquer forma, o leitor que tenha tomadoconhecimento, por exemplo, do artigo de muitos anos atrs (Reis, 1974b) emque procuro elaborar uma teoria de desenvolvimento poltico capaz de iralm das canduras e do etnocentrismo da literatura norteamericana sobre o

    2 Seramos, assim, nada mais que parsonianos. O interesse desse tipo decaracterizao se pode aquilatar quando se pondera que, em comentrio naimprensa ao livro organizado por Bernardo Sorj e Maria Hermnia Tavares de Almeida

    (1983), Wilson Martins se sentiu vontade para desqualificar sem mais a minhacolaborao (que se dirigia a alguns dos mesmos temas discutidos por Limongi) porconsider-la excessivamente marxista. Cabe notar ainda a forma pela qual Limongi,apontando aspectos discutveis de certas anlises ligadas perspectiva dedesenvolvimento poltico (por exemplo, a nfase de Huntington no grau de governo,em contraste com a questo de maior ou menor democracia), no s parecepretender que tais aspectos caracterizariam a perspectiva como tal, mas tambmsugere tacitamente que os autores brasileiros comentados compartilham a visoapontada, sem se dar ao trabalho de documentar a sugesto por referncia aosnossos textos.

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    tema e de realizar a articulao dos aspectos estruturais,psicossociolgicos e institucionais relevantes no encontrar em Limongiqualquer tentativa de confrontar-se com esse esforo e de apontar o que hnele de insuficiente ou equivocado, embora o artigo conste da bibliografia esejam mesmo tomadas dele algumas passagens relativas a estdios, comose isso esgotasse o assunto. Saliento que as formulaes do artigo, em vez dacontraposio simplista entre a poltica dos pases desenvolvidos e a dossubdesenvolvidos, resultam num instrumental analtico que, contra certassugestes mais ou menos explcitas de Limongi, pode aplicar-se criticamente(e aplicado) aos prprios pases economicamente desenvolvidos e que aavaliao da condio brasileira, em vez de corresponder s premissasnunca discutidas de que fala Limongi, se d com recurso a argumentoslaboriosamente formulados luz desse instrumental. Talvez me seja

    permitido destacar ainda que o ponto central do artigo gira em torno da idia

    de mecanismos de mercado que se afirmam em escala cada vez maisabrangente, num jogo em que se tem articuladamente integrao eindividualizao: a lgica do processo nele caracterizado levava, assim, j hmuitos anos, a dar nfase percepo dos estados nacionais como focosespeciais de adscrio e solidariedade particularstica e a conceber, demaneira afim aos desafios correntes do processo de globalizao, a tarefa deconstruo institucional capaz de produzir num marco planetrio as formasde solidariedade requeridas pela atividade de agentes soltos e autnomos.

    (2) O fato de que no h tampouco qualquer tentativa de avaliar osdados apresentados e as discusses deles realizadas em diferentes trabalhosque so supostamente objeto da ateno de Limongi. Diante da evidente como cham-la? falta de gosto de Limongi pela reflexo terica e dasrecomendaes de sabor empirista que marcam seu texto, essa deficincia especialmente estranha. A estranheza se aplica particularmente ao que serefere discusso sobre as caractersticas do eleitorado brasileiro, tendo emvista a importncia que assumem na avaliao de Limongi e a abundnciados dados discutidos e analisados em diversos textos por ele citados. Asconsequncias podem ser apreciadas por referncia a dois exemplos.

    O primeiro tem a ver com o tratamento dado ao volume Os Partidos eo Regime (Reis, 1978), que representa o produto final de extenso esforo de

    pesquisa em colaborao (em que estivemos envolvidos Bolvar Lamounier,Olavo Brasil de Lima Junior, Hlgio Trindade, Judson de Cew e eu prprio)e no qual se analisam minuciosamente dados procedentes de cidades dequatro diferentes estados do pas. Limongi v nele o mais ambicioso dos

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    estudos eleitorais levados a cabo no perodo. No entanto, sua discussorestringe-se a transcrever repetidamente a apresentao do volume, dealgumas pginas, e a reproduzir um par de breves passagens de um dostextos de minha autoria nele includos, passagens estas vistas comoadequadas para corroborar suas prprias teses. Especialmente revelador ofato de que sua estratgia se dispensa at mesmo de qualquer exame daconcluso do volume, redigida por mim, onde trato de mobilizar certaaparelhagem conceitual para dar conta de maneira integrada dasconstataes das diversas anlises de material emprico nele contidas e paratentar apreender num esquema abrangente a lgica geral do processoeleitoral brasileiro mas que Limongi prefere (injustificadamente, se comisto pretende indicar a ausncia de referncia aos dados) desqualificar comode cunho mais propriamente terico em breve referncia de rodap, e

    pronto.3

    O segundo exemplo se tem com o uso feito de artigo de minha autoriaem colaborao com Mnica Mata Machado de Castro (Reis & Castro,1992). Pois esse artigo retoma o problema geral da lgica do processo3 Note-se que o esquema geral que extraio das verificaes do volume foi por mimutilizado, com certos refinamentos, em outra publicao tambm citada por Limongi(Reis, 1983), o que no ajuda a impedir que ele seja simplesmente ignorado.Aproveito para advertir para alguns pormenores que revelam o pouco cuidado postopor Limongi no processamento do material revisado (e que na verdade chegariam aser desfrutveis, no fosse certa feio desagradvel de que o procedimentoenvolvido se reveste). Por um lado, a maneira como Limongi transcreve uma das

    passagens que menciono acima redunda pura e simplesmente em inverter, semmais, as intenes evidentes da anlise feita: enquanto falo da sensibilidade doeleitor possvel afinidade entre as linhas que separam um PTB e uma UDN, de umlado, um MDB e uma ARENA, de outro como exemplo de constataespositivas arespeito dele, que permitem refutar em bases slidas a hiptese que pretenda veros setores populares do eleitorado urbano brasileiro como um aglomerado amorfo emanipulvel (Reis, 1978, p. 287), a citao feita por Limongi transforma minhaafirmao na de que durante a democracia populista, as percepes dos eleitorespermitiam to somente traar as linhas que separam um PTB e uma UDN (grifomeu). Por outro lado, essa mesma passagem seguida de nota de rodap em que, apropsito da referncia que fao, em outro texto, a uma forma singela debipartidarismo latente que marcaria a conscincia popular, Limongi observa: significativo que o principal partido do perodo, o PSD, no figure na lista. Ora,

    ocorre que no apenas a passagem de onde extrada a citao (Reis, 1985, p. 27)no se refere exclusiva ou especificamente ao perodo de 1945/64, como tampoucoh nela, ou no artigo como um todo, qualquer lista de partidos de onde o PSDpudesse ser excludo, e simplesmente no h como saber do que que Limongi estfalando. Um esforo generoso de empatia permite imaginar que Limongi estejatomando a referncia de 1978 sensibilidade do eleitor s linhas que separam umPTB e uma UDN (que naturalmente no tem por que ser lida como envolvendo asuposio de que o PSD no existia) como presumida manifestao do bipartidarismolatente mencionado no texto de 1985. Voltarei adiante sobre o tema geral deeleitores e partidos.

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    eleitoral brasileiro no apenas luz de dados em que se combinam variveisestruturais, de informao e de opinio (o que j era o caso no livro de1978), mas tem tambm de particular o ineditismo de trabalharcomparativamente dados relativos s eleies de 1982 e provenientes denada menos de sete capitais do pas, alm de dados de algumas regies dointerior, e de tratar meticulosamente de buscar a constncia e a variao de

    padres nos diferentes contextos assim observados, com especial atenopara o papel dos aspectos de natureza cognitiva que so, naturalmente,cruciais para o problema das deficincias apontadas no eleitorado e que tantoindispem Limongi. Pois bem: o processamento que faz do artigo nossoavaliador no vai alm de tomar dele quatro palavras (alheamento,deferncia e conformismo), citadas como mera corroborao de minhaviso negativa do eleitorado. particularmente interessante observar que na

    passagem em que ocorrem as expresses citadas estou exatamente

    questionando a concepo que destaca deficincias do eleitorado popular eme indagando sobre os matizes que certo aspecto dos dados sugere sernecessrio introduzir a respeito, questionamento que se desdobra noempenho de relacionar esse aspecto com outros dos mesmos dados e com osdados discutidos no livro de 1978. Naturalmente, do esforo de anliseempreendido em ambos os trabalhos brotam argumentos, e argumentosempiricamentefundados, que Limongi opta por ignorar e como se, noobstante a pletora de dados produzidos e analisados, a viso negativa ourestritiva de certas caractersticas do eleitorado popular brasileiro fosseapenas uma espcie de mania, causada pelo pessimismo supostamenteinerente perspectiva de desenvolvimento poltico.

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    Apreciadas em termos substantivos, as deficincias tericas deLimongi surgem em especial naquilo que , bem claramente, o ponto crucialde sua perspectiva, apesar das vacilaes indicadas: a postura assumida arespeito do papel a ser atribudo idia central de institucionalizao e, porconsequncia, noo de desenvolvimento poltico. Afirmando a

    necessidade de que se estude como a democracia brasileira funcionaefetivamente, coisa que supostamente seria impedida pela agenda imprpriaque decorreria da referncia idia de institucionalizao, Limongi chega asustentar este era mesmo, como assinalei, o fecho de ouro da segundaverso de seu texto que esse estudo implica abandonar a tica dainstitucionalizao poltica.

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    Essa posio, que surpreende pela forma cndida em que se chegou aapresentar, tem consequncias formidveis, das quais a mudana nasconcluses de Limongi parece indicar que ele comeou a se dar conta. Poisela redunda em desqualificar num gesto impaciente todo o complicado

    problema das relaes entre teoria e prtica na poltica, com desdobramentosinevitveis, naturalmente, para a questo de como se haver de entender econduzir o trabalho de investigao emprica. Tomemos o trabalho empricodo prprio Limongi, que tem estudado, por exemplo, as relaes entre os

    poderes executivo e legislativo no Brasil: por que ser que Limongi decidiufazer disso um tema de investigao?4 De duas, uma: ou se trata de um jogoftil em que ele se entretm ou Limongi v nas relaes entre o presidenteda Repblica e o Congresso um problemaprtico importante. Mesmo nahiptese de que o prprio Limongi entenda o que faz como mero jogo, que

    poderia em princpio ser jogado com qualquer outro tema que lhe desse na

    veneta (caso em que difcil imaginar que lhe ocorressem boas perguntas afazer a seus dados, ou que pudesse orientar-se apropriadamente, em geral, notrabalho emprico), o interesse do que ele venha a ter a dizer-nos a respeitodepende crucialmente da importncia do problema que aquelas relaesrepresentam para ns como problema prtico o que remeteinexoravelmente concepo de uma forma adequada ou boa de se daremtais relaes e, ao cabo, a uma concepo doutrinria da democracia e de seuformato institucional. Ora, se a concepo da boapolity ou (para falar comoHabermas) do estado antecipado correspondente sociedadedemocraticamente institucionalizada em termos adequados , assim,simplesmente indispensvel a uma cincia da poltica que pretenda fazersentido, como abrir mo de tratar de refletir sobre o processo queeventualmente leva a ela e sobre as maneiras pelas quais poderemos talvezinterferir benignamente nesse processo?

    Por certo, Limongi tem todo o direito de no gostar desta ou daquelaforma especfica de conceber o processo de desenvolvimento poltico

    4 Note-se, a respeito, o fato de que tambm Bolvar Lamounier tem se dedicado, em

    anos recentes, a realizar estudos empricos sobre o Congresso Nacional e outrosaspectos da temtica poltico-institucional do pas (veja-se, por exemplo, Lamounier& Souza, 1991): por que as pesquisas de Limongi podem ser vistas como significandoo estudo do funcionamento efetivo da democracia atualmente existente e no asde Lamounier ? Alis, o mesmo se aplica, naturalmente, ao conjunto de nossosestudos sobre o processo eleitoral: o fato de que boa parte deles tenha sido realizadadurante o regime autoritrio est longe de justificar a presuno de que sejamirrelevantes agora, e possvel lembrar que meu texto com Mnica M. M. de Castrocitado acima se refere s eleies de 1982, quando vrios dos partidos atuais jcompunham o quadro partidrio.

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    assim como eu prprio no gosto de muitos dos traos especficos daliteratura sobre desenvolvimento poltico produzida nos anos 60 e inciodos 70 (incluindo aspectos salientes do trabalho de Huntington, cujasinconsistncias so alvo frequente de crtica em meus textos5), o queacredito transparea bastante nididamente no empenho de superao dasdificuldades dessa literatura que marca o meu prprio esforo quanto aoassunto. Mas, ao desqualificar o tema do desenvolvimento poltico comotal e a idia correlata de institucionalizao no sentido em que esta surgeem conexo com ele, Limongi, em busca de um slido empirismo, condenasimplesmente irrelevncia equivocada toda uma tradio milenar dereflexo sobre a poltica, a prpria teoria da democracia e a buscacontempornea de formas adequadas de constru-la e institucionaliz-la(faremos democracia formal? substantiva? democracia deliberativa,frum? algo mais afim ao espontanesmo do mercado? democracia

    representativa? com quais mecanismos de accountability, e como oscompatibilizaremos com o desiderato de eficincia governativa?), alm dedisciplinas inteiras que se tm vindo desenvolvendo h algumas dcadas(como a chamada teoria da escolha social, com seu contedo normativo),os vrios esforos de implantar um novo institucionalismo6 etc. etc. Semfalar de que se coloca em confronto at com seu mestre e parceiro sniorem vrios trabalhos, o nosso Adam Przeworski, que, afinal, tem estado svoltas (Przeworski, 1995; Przeworski e outros, 1995) com o problema dascondies de consolidao e durabilidade das democracias e com o papeldas instituies no processo correspondente. Na verdade, talvez o contra-exemplo mais notvel na Cincia Poltica recente seja a literatura sobretransies, a qual, fechando os olhos para a literatura anterior sobredesenvolvimento poltico e abdicando do atrevimento terico quecaracterizou esta ltima, viu-se condenada a perseguir resfolegantemente asconjunturas cambiantes, em sucessivas descries teoricamente mopes daimplantao dos autoritarismos, de sua dinmica, dos processos deabertura, das transies democracia, da consolidao democrtica... eDeus queira que no tenha de comear de novo, se sobreviver correria.

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    A propsito, cabe anotar de passagem que a leitura de Huntington feita por Limongino est isenta de gritantes impropriedades, como a atribuio a ele da idia de quea estabilidade poltica s possvel sob o autoritarismo. Sem falar de outrasconfuses a respeito de estabilidade sob democracia e sob autoritarismo que soclaramente de Limongi, apesar de atribudas a Lamounier.6 Exemplo de particular interesse se tem com o trabalho recente de Douglas C. Northe colaboradores, que, apesar da referncia ltima s condies de bom desempenhoeconmico, tem de particular a notvel proximidade, pela nfase no papel dodesenvolvimento de instituies e normas no plano poltico, com a literaturaespecfica de desenvolvimento poltico (veja-se North, 1996).

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    O que as deficincias da literatura sobre transies indicam comclareza a necessidade de tematizar o prpriofluxo em que se do taisoscilaes e procurar entender, se possvel, a lgica doprocesso como talque a tem lugar. Sem dvida, ao nos deslocarmos para este plano, sobretudocom a difcil articulao entre o analtico e o prtico ou normativo que a seimpe, as dificuldades para o estabelecimento de amarras empricasadequadas para o trabalho se tornam bem maiores do que as deparadas nomero empenho descritivo com respeito a este ou aquele aspecto especficode certo regime autoritrio ou ao funcionamento efetivo desta oudaquela democracia. Mas no h qualquer razo para presumir queestaremos melhor renunciando a fazer frente aos desafios importantes erefluindo para um empirismo estpido, que eventualmente constata aexistncia ou inexistncia de democracia de acordo com indicadores de

    algum tipo e no enxerga mais qualquer problema.

    H claros equvocos, contudo, envolvidos na cobrana de amarraoemprica que faz Limongi quanto ao estudo de processos de mais longo

    prazo em que as idias de desenvolvimento e institucionalizao estejamenvolvidas. Em primeiro lugar, se a institucionalizao definida em termosque remetem interiorizao efetiva de normas democrticas pelos membrosde uma coletividade dada, as quais passam a sustentar o processamentoregular dos problemas do dia-a-dia, no h por que pretender que no se

    possa ter acesso a dados empricos pertinentes, como os numerosos estudosde cultura poltica demonstram. Por certo, existe a possibilidade, discutidatambm por Przeworski recentemente (Przeworski, 1995), de que se venha ater concatenao precria entre a implantao formal das normas, por umlado (ou mesmo sua eventual assimilao mais extensa e intensa pelosmembros da coletividade, acrescento eu) e, por outro, os equilbriosespontneos que resultam do jogo dos agentes em busca de seus interesses.A considerao dessa possibilidade (que, no caso de Przeworski, esbarra emdificuldades pela aposta excessiva na dimenso correspondente aosinteresses) representa uma importante forma de se enriquecer e dar maior

    consistncia prpria noo de institucionalizao, contra certo idealismoedificante de muito da literatura que se vale da idia de cultura poltica. Mas bem claro que temos um problema da maior importncia na questo decomo obter o acoplamento bem sucedido entre as normas e o substratorealista dos interesses, ou como obter a institucionalizao no sentido doestabelecimento deparmetros normativos eficazes para o prprio jogo dosinteresses problema para o qual estaramos cegos se prevalecesse a

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    perspectiva negativa de Limongi a respeito do recurso idia deinstitucionalizao. Por outro lado, a possibilidade de nos valermos de dadosempricos capazes de iluminar os mecanismos em jogo nesta formulaomais sofisticada do problema se demonstra com alguns dados brasileiros queeu prprio venho analisando no momento, nos quais se evidencia oimportante papel exercido por fatores cognitivos, e pelo consequenterealismo na definio das situaes, sobre a possibilidade de que as normas,mesmo convencionalmente assimiladas, venham a ter sustada, em benefciodo clculo de interesses, sua operao efetiva.7

    Mas h outros equvocos quanto questo das relaes entre teoria,entendida em termos genricos, e dados empricos. Eles tm a ver com o fatode que, ao contrrio do que d a entender a posio que deriva do tortoarsenal terico-metodolgico de Limongi, no h por que pretender que

    qualquer enunciado ou conjunto de enunciados deva ter, numa cincia socialde boa qualidade, traduo imediata em termos de verificao emprica. Essa

    posio envolve o desconhecimento do complexo mapa do trabalho emcincias sociais cuja descrio encontramos, por exemplo, no clssico deHans Zetterberg sobre Teoria e Verificao em Sociologia (Zetterberg,1954): h taxonomias (esquemas conceituais, linguagens), cujo teste ovalor heurstico e que trabalham com definies e ensejam diagnsticos, eh teorias em sentido estrito, que propiciam diretamente explicaes ese compem deproposies afirmativas que so, elas sim, passveis

    propriamente de verificao emprica e h, naturalmente, a frequentemescla de muitas dessas categorias estilizadas em qualquer exemploconcreto de trabalho dos especialistas. O que pretendo ponderar com essasevocaes banais apenas que muito do trabalho de teorizao a respeito dedesenvolvimento poltico e categorias correlatas (como de qualquer reatemtica) envolve legitimamente o trabalho de esclarecimento conceitualcom pretenses fecundidade heurstica e capacidade de orientar otrabalho propriamente proposicional quanto a dimenses mais especficasdos problemas pertinentes. O resultado, espera de uma eventual

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    Trata-se de dados (infelizmente ainda no publicados) produzidos pelo projetoPacto Social e Democracia no Brasil, executado pelo autor em colaborao comMnica Mata Machado de Castro, Edgar Magalhes, Antnio Augusto Prates e MaloriPompermayer. Eles revelam que, em amostras de categorias diversas da populaobrasileira, nveis mais altos de informao e sofisticao se acham associados, emcondies normais, com maior propenso ao comportamento orientado por normasou valores solidrios ou cvicos; contudo, na ocorrncia de circunstncias queevidenciem o carter incuo ou ineficaz da postura cvica, quanto maiores ainformao e a sofisticao, tanto maior a propenso a substituir a postura cvicapela disposio defesa desembaraada ou cnica do interesse prprio.

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    consolidao mais ampla e definitiva de qualquer rea dada de problemas (se que cabe efetivamente contar com essa consolidao nas cinciassociais...), ser um campo composto, sem dvida, de aspectos carentes deverificao, mas que, no melhor dos casos, ajudam a conformar um espaoem que se integram coerentemente aspectos queso objeto de verificao.Proponho modestamente que meu prprio trabalho representa um exemplo

    positivo com respeito ao desiderato a contido, articulando o esforo deesclarecimento conceitual do tema do desenvolvimento poltico (ele mesmofundado em elaboradas discusses de temas de teoria poltica geral e deepistemologia das cincias sociais ver, por exemplo, Reis, 1984) com odiagnstico interpretativo da evoluo poltica brasileira e com o estudoemprico de aspectos especficos da atualidade poltica do pas,especialmente do processo eleitoral, que se articulam de maneira coerentecom as definies e interpretaes formuladas. E explicito o desafio de que

    Limongi, em vez de aflorar os textos correspondentes com certo tomaborrecido, se enfrente de fato aos argumentos que neles so expostos.

    H ainda outro aspecto do descontentamento de Limongi quanto idia de institucionalizao e as supostas consequncias da adeso a ela quecabe tratar neste ponto. Refiro-me insatisfao com a constatao decontinuidades, especialmente a idia do pretorianismo visto como umacondio de prolongada instabilidade poltica, o paradoxo da instabilidade

    permanente, na expresso tomada por ele de Bolvar Lamounier. Valelembrar, para comear, que minha posio insistentemente crtica comrespeito a certa perspectiva essencialista que pretende ver uma mesmacultura poltica (ibrica, autoritria) como caracterstica permanente doBrasil, e o que quer que meus trabalhos apontem de aspectos decontinuidade, como o pretorianismo da vida poltica brasileira neste sculo,se d num quadro em que fatores estruturais e de psicologia coletiva searticulam de maneira dinmica e cambiante. Isso posto, voltemos ainda umavez a Przeworski, que prope que se entenda a democracia como umequilbrio, a ocorrer como resultado da operao de mecanismosautomticos ouself-enforcingcorrespondentes ao jogo espontneo dos

    interesses: como vimos acima, uma indagao importante a emergir dadiscusso de Przeworski, seja qual for a qualidade da resposta que lhe d elemesmo, a de como este aspecto da democracia vir a articular-se com o dasnormas e instituies. Ora, se possvel falar de uma situao de equilbrio

    produzida objetivamente pelo jogo dos interesses com respeito democraciaconsolidada, onde com frequncia se tende a supor a importncia dasnormas, por que razo no poderemos falar do mesmo equilbrio objetivo em

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    correspondncia com a falta de consolidao da democracia, ou em situaesem que supostamente as normas no chegaram a enraizar-se? esta,naturalmente, a intuio envolvida na idia de pretorianismo: a de umaespcie de crculo vicioso em que a busca do interesse prprio por parte dosagentes sociopolticos se d na ausncia de regras capazes de operarefetivamente e inviabiliza, com sua lgica, o prprio enraizamento efetivodas regras e instituies, fazendo que a implantao do bom equilbrio dademocracia dependa da ruptura do perverso equilbrio pretoriano. Apesar detorcer o nariz para ela, Limongi no chega a dizer com clareza qual o

    problema com essa intuio, ou com a idia de que a dinmica poltica podeassumir a forma de um pantanal em que se chapinha sem se conseguirrealmente avanarem termos de enquadramento institucional efetivo eestvel. Se tomamos o caso brasileiro, no me parece haver como negar queessa idia se ajusta bastante bem s oscilaes da histria republicana do

    pas, com a alternncia secular entre quarteladas e autoritarismos, de umlado, e perodos em que se procura construir instituies democrticas, deoutro. O que tem Limongi para colocar no lugar da intuio da instabilidade

    poltica duradoura? A observao de que experimentamos agora vrios anosde democracia... Ora, tivemos cerca de 20 anos de democracia no ps-45 evimo-los serem seguidos por 21 anos de ditadura. Alm disso, perodosdemocrticos mais longos e democracias que pareciam mais firmementeconsolidadas em outros pases desembocaram em desastres trgicos comoa aparente vitrine democrtica que era o Chile da dcada de 60, ou oformidvel xito institucional que era, aos olhos de Huntington, o Paquistode Ayub Khan pouco antes de sua calamitosa derrocada, sem falar dos

    problemas atuais da democracia venezuelana longamente exemplar. evidente que isso no autoriza presumir que a democracia seja impossvel noBrasil, e no sei de onde, em meus textos (ou mesmo nos de Lamounier),Limongi ter extrado essa consequncia, ou a tese de que inferimoscaractersticas sistmicas dos traos individuais apresentados peloseleitores. Mas igualmente evidente que esses fatos retiram plausibilidade idia de que se alcanar o conhecimento efetivo da democracia brasileira(incluindo, naturalmente, a questo crucial das ameaas que eventualmente a

    rondem) atravs do estudo, por meritrio que seja, do seu funcionamento,se por isso se entende algo que redunda no abandono da preocupao com oscondicionantes complexos de sua institucionalizao e eventualconsolidao e atravs da substituio da prudente ateno para os fatos,que Limongi v como pessimismo, pela candura capaz de afirmar, poucodepois de se ver o aventureirismo de um Collor empolgar facilmente o

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    governo do pas com alguns truques de marketing, que, aoquetudoindica,a democratizao no representou a volta ao populismo (grifo meu).

    Sem dvida, h aqui um aspecto especial a ponderar. A viso de umprolongado equilbrio pretoriano se articula, em meus textos, com a idia deum problema constitucional no resolvido, que destaca a necessidade daacomodao institucional bem sucedida (como a que haveria nos pasesdemocrticos de capitalismo avanado ou a que se acreditou haver, demaneira diferente, nos pases que passaram por revolues socialistas) noconvvio entre categorias e classes sociais, aps os deslocamentos e amobilizao produzidos pela dinmica do capitalismo e os processosestruturais correlatos, com a corroso por eles realizada da estruturaoligrquica tradicional. crucial, nessa perspectiva, a presena (ao menossubjetivamente sentida como tal, independentemente de sua efetividade

    objetiva nesta ou naquela circunstncia) de uma ameaa revolucionria decunho socialista pairando sobre as turbulncias do dia-a-dia, ameaa esta quecertamente marcou o pretorianismo de massas de muitos decnios dahistria brasileira recente e banal apontar, por exemplo, o papeldestacado exercido pelas foras armadas como protagonistas daquilo que se

    percebia como a manifestao domstica do confronto capitalismo-socialismo no plano internacional. Ora, temos recentemente, a respeito,novidades importantes no cenrio internacional, em que a intensa aceleraodo processo de globalizao se associa com os eventos espetaculares, quenos surpreenderam a todos, da derrocada do socialismo e se impe,naturalmente, a indagao sobre que tipo de incidncia tem o novo quadrosobre o problema constitucional tal como definido. bem claro, por umlado, que a ameaa propriamente de uma eventual revoluo socialistadissipou-se ao desaparecer o possvel respaldo internacional para iniciativasque se orientassem nessa direo e ao ver-se comprometido o prprio idealsocialista como tal, sem falar do enfraquecimento que os mecanismosligados globalizao acarretam para vrios atores sociopolticos quetinham o socialismo como referncia. Significar isso, entretanto, que estejaresolvido o problema da acomodao institucional do convvio social, e que

    as perspectivas que se abrem sejam de tranquilidade e estabilidade? Apostarnessa direo exigiria que o otimismo de Limongi se transformasse emfantasia descabelada. Pois o que temos antes a intensificao perversa daatuao de fatores de desigualdade social, com toda uma srie de seqelasnegativas, em circunstncias em que se debilita a capacidade de ao socialdo estado e em que o desafio institucional extraordinariamentecomplicado pelo fato de que os mecanismos institucionais requeridos

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    correspondem, por um lado, escala transnacional em que operam osmecanismos de mercado (e onde surge, assim, um imperioso problemaconstitucional novo), mas tm nos estados nacionais, por outro lado, comtoda a sua debilidade, um agente de importncia certamente decisiva.8

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    Concluo com o tema de eleitores e partidos. Para comear, rechao asimplificao que aparece com certa nfase em Limongi (apesar de tambmela suavizada em relao a enunciados mais problemticos da versoanterior do texto), segundo a qual se trataria, para mim e para outros, derecorrer ao postulado da existncia de uma relao causal entrecomportamento e atitudes do eleitorado e o sucesso da democracia, o que seliga com a questo das relaes entre traos individuais e caractersticas

    sistmicas. Meu esforo de pesquisa a respeito do comportamento poltico-eleitoral destacou sempre a articulao entre fatores ou variveis de naturezadiversa, incluindo fatores estruturais como posio socioeconmica eexperincia urbana,9 ao lado de variveis de opinio ou atitudinais e dandosempre grande nfase aos fatores de ordem cognitiva ou intelectual e osistema que trato de caracterizar com relao dinmica poltico-eleitoral

    brasileira, apresentado sinteticamente no esquema anteriormente

    8 nesse contexto, naturalmente, que devem ser apreciados os comentrios elpticos(e carregados de certa arrogncia) que faz Limongi, ao final da seo IV de seu texto,

    a respeito de argumentos realistas, contrapostos confusamente a argumentosnormativos e a institucionais, bem como a meno, em nota de rodap, a minhasugesto de 1986 a respeito de limitada incorporao constitucional do poder dasforas armadas. Confortavelmente instalado no ps-surpresa da derrocada socialista, fcil a Limongi, com enigmtica aluso aos rumos do debate nacional, dispensar-sede argumentar sobre as questes envolvidas. De novo, contudo, convm confrontar ootimismo apologtico de Limongi com a prudncia sugerida tanto por reveladorasexperincias correntes como a da Venezuela quanto por indcios como o que se temcom a posio manifestada, ainda em abril de 1994, pelo almirante Mrio CsarFlores, ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratgicos do governo ItamarFranco, no Frum Nacional organizado por Joo Paulo dos Reis Velloso: a de que oregime civil brasileiro atual no deve ser visto como a rendio incondicional dasforas armadas, mas apenas como um armistcio. Com o socialismo como

    possibilidade real ou sem ele, e com o que se poderia talvez descrever, em algumamedida, como a possvel substituio de um cenrio afim a Marx por outro afim aHobbes, sentir-se- Limongi realmente seguro sobre o que aconteceria (ouacontecer) no pas na eventualidade da vitria de um Lula ou assemelhado nadisputa da Presidncia da Repblica?9 Cabe lembrar, por exemplo, que j o ttulo de minha tese de doutorado de 1974 Political Development and Social Class (Reis, 1974a). Igualmente, o ttulo de meucaptulo de anlise dos dados de Juiz de Fora no livro citado de 1978 Classe Sociale Opo Partidria: As Eleies de 1976 em Juiz de Fora, alm do artigo com MnicaM. M. Castro sobre Regies, Classe e Ideologia no Processo Eleitoral Brasileiro.

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    mencionado e ignorado por Limongi, lida com essa articulao de fatores. Aquesto tem importncia devido a certas consequncias que extrai Limongida posio que me atribui. Minha afirmao, por exemplo, em artigo de1985, de que os fatores responsveis pela caracterstica pretoriana da vida

    brasileira continuam a operar lida como significando que os valores dossetores populares teriam permanecido os mesmos, o que traduz de maneira

    patentemente inepta a concepo de um problema constitucional noresolvido que acabo de expor brevemente, com a precria acomodao

    poltico-institucional de uma estrutura social marcada pela potencialidade deconflitos entre interesses de categorias diversas (no obstante oamadurecimento diferencial dessas categorias quanto capacidade de darexpresso sofisticada e politicamente consequente aos interesses, produzido

    por condies estruturais e fatores intelectuais correlatos).

    Mas o reconhecimento ou a afirmao da importncia de fatoresestruturais no d razo eventual pretenso de desqualificar o que se passana cabea do eleitor ao se procurar explicar o voto.10 claro que no se tratade recorrer a uma espcie de mecanicismo estrutural, e os fatores estruturaiss so importantes na medida em que, precisamente, condicionam o que se

    passa na cabea do eleitor, seja diretamente no plano das disposies a agirde uma forma ou de outra, seja no plano intelectual ou cognitivo cujointeresse crucial tem a ver justamente com a mediao por ele exercida entreas condies estruturais subjacentes e os valores e atitudes encontrados.

    Isso leva ao tema da racionalidade dos eleitores. Limongi apontacorretamente a importncia dos trabalhos de Phillip Converse sobreideological constraintquanto nfase dada em nossos trabalhos idia daestruturao ideolgica (que se refere ao grau em que o eleitor dispe deinformao sobre a variedade de temas em jogo em dada conjuntura polticae da capacidade de integr-los coerentemente) como forma de abordar aquesto espinhosa da racionalidade. Mas as proposies que formula emconexo com isso so de grande fragilidade.

    Em primeiro lugar, temos a questo de se nossos estudos terorevelado algo que seja peculiar ao eleitorado brasileiro, a propsito da qualLimongi lembra que Converse encontrou a mesma carncia de articulaode crenas entre eleitores americanos e franceses. claro, contudo, que o

    10 Como tentava fazer Limongi em sua verso anterior, citando com claro nimoirnico a aluso de Fiorina (1997, p. 394) tese de que o voto s pode ser entendidoquando se sabe what goes inside the head of the voter.

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    fato de que se tenha a ocorrncia de fenmenos da mesma natureza emdiferentes pases (e no h razo para duvidar de que ocorram em muitosoutros) no significa que ocorram em igual extenso. W. Russell Neuman(Neuman, 1986), por exemplo, com base em vrios estudos do eleitoradoconduzidos nos Estados Unidos, distingue trs pblicos naquele pas,incluindo um segmento minsculo (de talvez 5 por cento da populao)composto de lderes de opinio interessados, informados e sofisticados,um amplo segmento intermedirio de cerca de 75 por cento da populao eoutro segmento de cidados politicamente desinformados e desatentos quealcana provavelmente um quinto do total. Ora, os dados brasileiros indicamcom nitidez que, no nosso caso, os desinformados e desatentos que so aampla maioria do eleitorado. Se deixamos de lado os Estados Unidos, acomparao nos amplamente desfavorvel mesmo quando feita com aArgentina, por exemplo. Para usar dados de comeo da dcada de 70, que

    tenho mo, no Brasil de ento era preciso ir ao nvel mais alto entre cincocategorias de escolaridade (a categoria correspondente a curso secundriocompleto ou curso universitrio) para se alcanar uma porcentagem (39 porcento) de pessoas capazes de perceber a relevncia do governo nacional parasua vida cotidiana comparvel que podia ser encontrada na Argentina,aproximadamente na mesma poca, entre as pessoas de classe baixa (39,9

    por cento, em classificao que inclua ainda a classe mdia e a classealta).11

    Em segundo lugar, Limongi sugere no haver razo para esperar que,nessas condies, a consulta s urnas gerar sobressaltos. certo que oalheamento e a desinformao dos eleitores populares com respeito

    poltica no tm por que ser vistos, em si mesmos, como causa desobressaltos polticos, sendo at um tema frequente da literatura de CinciaPoltica a situao em que esses traos, e a apatia que tender a associar-secom eles, favorecero antes o conformismo e a estabilidade. Mas pareceigualmente inegvel a maneira pela qual, no processo poltico-eleitoral

    brasileiro dos ltimos decnios, as caractersticas em questo do nossoeleitorado popular majoritrio se articulam com o populismo e suas

    incertezas, em particular com a idia de massas manipulveiseventualmente propensas a se deixarem transformar em instrumentos de

    projetos de subverso, e com a deslegitimao consequente, aos olhos do

    11 Os dados argentinos so tomados de Kirkpatrick, 1971, p. 159. Os dados brasileiroscorrespondem a um surveyexecutado por Phillip Converse, Peter McDonough eAmaury de Souza, em 1973, sobre "Representao e Desenvolvimento no Brasil"(veja-se Reis, 1974a, especialmente p. 331, tabela 6.9).

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    establishmentde nosso excludente sistema socioeconmico, do prprioprocesso eleitoral. A sntese de alguns dados que apresento a seguircorrobora as vrias facetas disso.

    Finalmente, Limongi que, como vimos, no discute em nenhummomento nossos dados e a anlise deles feita no se peja de afirmar que acaracterizaco do eleitorado brasileiro encontrada nestes textos (...)[depende] pouco dos dados revelados pelos surveys e que a tese dafragilidade da estruturao das preferncias expressa na inconstncia dasescolhas eleitorais deduzida da teoria da institucionalizao poltica.

    Ora, no obstante a leitura deficiente de Limongi e sua apresentaodesconexa dos temas relacionados com o eleitorado e o processo eleitoral,eis, sinteticamente, alguns aspectos principais do que os dados revelam,

    aspectos estes que so discutidos reiterada e minuciosamente em vriostextos (Reis, 1978a, 1983 e 1991; Reis & Castro, 1992):

    (a) Os estratos populares do eleitorado brasileiro, que constituemclaramente a maioria dele, so grandemente desinteressados e desinformadosa respeito de assuntos polticos, o que se revela nas claras correlaes

    positivas sempre encontradas entre medidas de posio socioeconmica e deenvolvimento e informao ou sofisticao poltica. Isso no significa queno haja minorias informadas e sofisticadas mesmo nas categoriassocioeconmicas menos favorecidas, nem pode ser lido, naturalmente, demaneira que ignore (como s vezes parece ocorrer nas simplificaes deLimongi) as importantes diferenas entre diversas categoriassocioeconmicas que aquelas correlaes implicam quanto ao grau deenvolvimento e informao geral, com consequncias sobre o plano dasopinies e do comportamento poltico-eleitoral.

    (b) Em geral, encontra-se nos estratos populares, quando se trata deissues ou questes que aparecem usualmente como temas do debate poltico,maior propenso a opinies conformistas, que expressam satisfao com

    as condies existentes ou com as polticas governamentais. Tal propenso,que naturalmente no tem como ser associada com condies objetivas,d-se claramente em correspondncia com as deficincias quanto asofisticao e envolvimento poltico. O padro geral encontrado aqui, comono que se refere a outros aspectos do conjunto de observaes, indica arelevncia, no condicionamento das nuances que ocorrem, da idia decentralidade classicamente utilizada na sociologia eleitoral norte-

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    americana, em que fatores estruturais como posio socioeconmica eexposio a ambiente rural ou urbano so combinados com fatoressubjetivos dos quais a prpria inclinao ao envolvimento em assuntos

    polticos seria manifestao. Alm disso, a anlise de nossos dados indica ointeresse de se enriquecer a idia de centralidade pela considerao dadimenso geogrfica ou espacial, que se conjuga com as demais dimensesde maneira a sugerir um ntido padro em que as variaes na conexo dasatitudes polticas com a posio socioeconmica se mostram elas prpriassignificativas e coerentes, com o Sudeste do pas aparecendo como ponto deequilbrio de tendncias que se invertem medida que passamos do

    Nordeste para o Sul.

    c) Com iguais nuances em correspondncia com as vrias dimensesde centralidade, os setores populares do eleitorado so tambm

    inequivocamente, em geral, menos capazes de integrar coerentemente suasopinies polticas e de dar-lhes traduo adequada em termos de opo ouidentificao partidria o que quer dizer que a forma pela qual se juntamopinies sobre temas ou questes variadas e preferncias partidrias semostra, no caso dos estratos populares, menos conforme aos padres decoerncia esperados com base nas informaes que so moeda corrente entreanalistas ou profissionais supostamente competentes. Isso se traduz emtermos de que, como os dados sugerem com fora, no temos uma posturaissue-orientedtalvez mais afim a certa maneira frequente de se entender aidia de racionalidade nesta esfera, postura na qual o eleitor optaria porum partido ou candidato em funo da correspondncia das posies destescom as suas prprias posies sobre questes de relevncia. Em vez disso,muito do que se passa no plano das identificaes partidrias, ou polticasem geral, resulta em identificaes estabelecidas em torno de imagenssimples da estrutura social (e das clivagens nela percebidas) e distinguidasantes por certo carter difuso e projetivo: uma vez identificado com esteou aquele partido (ou candidato) em funo das imagens mencionadas, oeleitor atribui ao partido, quando indagado, as posies que suadesinformao lhe dita como corretas ou adequadas. Cumpre destacar que

    tais mecanismos tendem a envolver a percepo tosca da contraposio (nobipartidarismo latente que o comentrio de Limongi salienta) entre osinteresses de uma categoria popular e outra de elite, contraposio formuladausualmente em termos de ricos e pobres, e a identificao com acategoria dos pobres e com o partido ou o candidato dos pobres. Da

    podem decorrer, naturalmente, consequncias distintas do que se esperariacom base no conformismo desinformado a respeito das questes do debate

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    poltico (eventualmente ajudando, por exemplo, a viabilizar um partido dostrabalhadores, ainda que por razes que podem aparecer como erradas do

    ponto de vista doutrinrio dos seus fundadores ou lderes12) e nessasidentificaes singelas e destitudas de contedo em termos de issuesespecficos de qualquer natureza se teria o humo propcio ao populismo e sameaas ocasionalmente percebidas como brotando dele.

    Naturalmente, de observaes como essas que se trata quando falo (eo mesmo certamente se aplica a Bolivar Lamounier) de coisas como maiorou menor consistncia ideolgica dos eleitores e preciso pacincia parav-las reduzidas a distores grosseiras como a de que a falta deconsistncia ideolgica do eleitor deve ser lida pelo que de fato : a falta deadeso integral plataforma do MDB. Ser racional ou irracional oeleitor assim caracterizado? Nossas discusses fazem ressaltar os matizes

    com que deve ser considerada a prpria indagao, apesar de estarem longede esvazi-la. Assim, certamente possvel (de maneira consistente comuma concepo tautolgica de racionalidade que a identifica em qualquerao em que se busquem fins ou objetivos em condies dadas) recuperar aracionalidade do eleitor carente e precariamente informado que se orientaseja por imagens difusas dos partidos ou candidatos em conexo com a

    percepo tosca dos seus prprios interesses, seja pela troca clientelista dovoto por algum tipo de ganho imediato.13 Contudo, incontestvel queteremos tanto maior racionalidade quanto maior a sofisticao e a riqueza deinformaes e quanto maior, consequentemente, a possibilidade decontextualizar de modo mais complexo a deciso de voto, ou ocomportamento poltico-eleitoral em geral, por referncia articulao damultiplicidade de aspectos da conjuntura entre si e com os traos maisduradouros do universo sociopoltico com que o eleitor se defronta. Nocabe dvida de que o que se passa dentro da cabea do eleitor aquidecisivo e de que teramos condies de fazer melhor poltica, e melhordemocracia, com eleitores do segundo tipo do que com eleitores do primeiro.

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    Alguns dados relativos s eleies de 1982 (apresentados em Reis & Castro, 1992)ilustram aspectos relevantes da sndrome que assim se configura: nos nveisinferiores de renda, os eleitores paulistanos que se declaravam identificados com oPT incluam grandes propores cujas posies quanto a vrios itens de opinio(participao poltica dos militares, apoio a greves como recurso poltico etc.) eram ooposto do que se imaginaria a julgar pelo perfil ideolgico do partido.13Vejam-se, a respeito, as crticas que dirijo (Reis, 1991) a Jos Murilo de Carvalho

    pela tentativa de explicar o processo eleitoral brasileiro (especificamente ofenmeno Collor) pela suposta operao de fatores passionais, em contraste coma racionalidade tida por ele como prpria das democracias organizadas e estveis.

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    Mas as caractersticas do eleitorado, ou do eleitorado popular emparticular, por certo no determinam de maneira unvoca o que se h dedizer a respeito de temas como a chamada volatilidade eleitoral, ou dos

    partidos e sistemas partidrios, e da questo da institucionalizao poltica.

    Quanto volatilidade ou inconstncia das escolhas eleitorais (queLimongi afirma, no sei por que razo, ser suposta pela idia de

    pretorianismo), o resultado geral das nuances indicadas pelos dados podedescrever-se em termos de certa mescla, que rotulei s vezes de sndromedo Flamengo e procurei caracterizar em vrios escritos. Essa mescla reneo que chamei de consistncia populista, por uma parte, correspondente tendncia a buscar o lado popular no bipartidarismo singelo em que osestratos menos favorecidos do eleitorado tendem a estruturar o universo

    poltico, e, por outra parte, o componente errtico decorrente de que, na

    carncia de sofisticao intelectual e ideolgica e da orientao para issuesde qualquer tipo, no se pode contar com que esses estratos do eleitoradovenham a encontrar o rumo que os norteia de maneira objetivamenteconsistente nas condies fluidas e cambiantes do prprio ambiente polticoem que atuam. Nessas condies, um fator provavelmente decisivo para quese venha a ter constncia no comportamento eleitoral, ao invs devolatilidade, que haja constncia do prprio sistema partidrio como tal, eque seja dada ao eleitorado popular a chance de criar a identificao estvelcom algum partido, ou propriamente uma identidade partidria. Isso importaem dizer que o fator fundamental da instabilidade do sistema partidrio no a volatilidade dos eleitores mesmos, mas a manipulao institucional

    produzida no confronto poltico como resposta s consequncias sobre oprocesso poltico-eleitoral de algo em que se revelam antes as tendnciasmais constantes do eleitorado popular. E fundamental observar que, emfuno da natureza conflitual da poltica brasileira das ltimas dcadas, comsuas muitas vicissitudes e precria acomodao institucional, a possibilidadede referncia estvel a um sistema partidrio dado talvez a principal vtimaem termos do processo eleitoral: o amadurecimento da crise do regime de1945-64 e sua eventual ruptura, crise esta qual no alheia precisamente a

    crescente identificao popular com o PTB,14 levam ao bipartidarismo14 A propsito, Limongi observa em suas concluses, criticando os estudos relativosao perodo de 1945-64 e citando Antnio Lavareda e Argelina Figueiredo, que "peloque sabemos hoje o sistema partidrio passava por um processo de consolidao".Na verdade, sabemos disso h muito tempo. Basta evocar as anlises de GlucioSoares sobre o PTB no Rio de Janeiro e de Antnio Octvio Cintra sobre os partidospolticos em Belo Horizonte com dados produzidos em surveyque realizamosconjuntamente (Soares, 1964 e 1973; Cintra, 1968, nenhum dos quais figura nabibliografia de Limongi), anlises estas que eu prprio utilizei em discusso do

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    imposto de ARENA e MDB, que dura por sua vez at que este se transformeem referncia popular, quando novos artifcios tratam de diluir seu papelcomo tal...15

    Note-se, para concluir, que essa perspectiva no s no envolve aviso idealizada de um eleitor virtuoso e civicamente orientado, mastampouco supe eleitores altamente informados e sofisticados comocondio da eventual implantao de instituies consistentes na esfera

    poltico-eleitoral. O teste por excelncia da boa institucionalizao polticageral, como destacado sobretudo pelo realismo bem sucedido dos mentoresfederalistas da constituio norte-americana, a sua capacidade deeconomizar virtude (Ackerman, 1993) e de funcionar independentementedo egosmo dos atores polticos ou mesmo contando com o egosmo (a

    propsito, que ter a dizer a respeito a averso de Limongi ao realismo

    poltico?). Alm disso, parte importante do interesse das instituiesdemocrticas consiste justamente em viabilizar um ideal liberal e privatistade ir para casa em paz, em contraste com o ideal republicano da participaocvica, ou ao menos como complemento a ele. De qualquer forma, podemoster tambm instituies partidrias que se estabeleam de maneira estvelcom apoio em processos de identificao que economizem conhecimento,ou se dem na ausncia de maiores informaes e sofisticao do eleitorado

    popular. Como salientei em ocasies diversas (por exemplo, Reis, 1991, p.36; Reis & Castro, 1992, p. 131), a identidade est sempre em jogo no

    processo poltico-eleitoral e na poltica em geral, tendo consequnciasimportantes, quanto ao que aqui nos importa, para a estabilidade das

    perodo feita j em minha tese de doutorado e que so tambm lembradas e citadasem Reis, 1983.15 Apesar de apresentar de maneira insatisfatria, como continua a fazer, a idia queacabo de esboar da mescla entre fluidez e consistncia populista (formulando-a emtermos de uma suposta volta do prprio sistema partidrio ao seu leito natural, o queno corresponde ao que procuro dizer), Limongi destacava em nota com algumarazo, na verso anterior de seu texto, as dificuldades de teste emprico dasprevises possibilitadas por ela: qualquer resultado eleitoral poderia ser visto comoajustando-se a ela. Mas a intuio envolvida justamente a de que o processoeleitoral brasileiro tem exposto eleitores predominantemente alheios e

    desinformados a um sistema partidrio em fluxo, com a potencializao dos fatoresde fluidez e a consequncia de que os lados do jogo eleitoral se confundem. Emvez de sacrificar sem mais a plausibilidade substantiva daquela intuio, a posturaadequada quanto a sua corroborao emprica me parece ser a de indagar at queponto ela rene coerentemente os dados disponveis sobre os prprios eleitores, porum lado, e, por outro, a quota de imprevisibilidade presente nos resultados eleitoraisque efetivamente se obtm at que a eventual estabilizao do quadro partidriopermita aferir a consistncia da identificao partidria dos eleitores em confrontocom a volatilidade que supostamente resultaria da atrao exercida por lideranasde tipo propriamente populista e personalista, por exemplo.

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    preferncias ou opes partidrias. Mas a prpria identidade politicamenterelevante pode manifestar-se em formas diferentes, incluindo a que contacom fundamentos difusos e cognitivamente precrios e outra definida demaneira intelectualmente complexa e refinada.

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    Em discusso informal ocorrida h mais de trinta anos em Santiago doChile, lembro de ter ouvido de Fernando Henrique Cardoso, a propsito deartigo em que me dedicava a criticar certas prticas dialticasdaSociologia paulista de ento, a aluso, naturalmente no tom afvel e bem-humorado de sempre, ao sapateiro que tenta ir alm do chinelo. A sugesto, claro, era a de que ele e seus companheiros seriam dialetas sofisticados, ao

    passo que eu no passaria, talvez, de um reles funcionalista, na

    contraposio em que se comprazia o establishmentsociolgico brasileiro dapoca.

    No vou aplicar o mesmo dito popular a Fernando Limongi atporque, se lhe falta ainda demonstrar-nos de maneira cabal sua competncianum chinelo ou noutro, no tenho razes para duvidar de que ele possa vir arevel-la em qualquer arte maior. A tentativa de desqualificar Limongi seriatanto mais injustificada se pretendesse valer-se de certa diviso usual nocampo das cincias sociais, na qual o profissional que trabalha com dados contraposto figura (inequivocamente negativa, a meu ver) do especialistaem teoria. A recusa dessa diviso supe a idia de que, em vez damitificao (e mistificao) com frequncia erigida em torno do trabalhoterico, o que se faz necessrio a apropriada articulao entre a teoria e aindispensvel referncia emprica.

    Nesse sentido, porm, o nimo terico ele prprio indispensvel,no representando seno a disposio de refletir de modo suficientementedesenvolto e rigoroso sobre os problemas que eventualmente encontramdesdobramento no plano dos dados e para os quais se espera que estes

    tragam resposta. De vez em quando ser talvez possvel contar com algumadiviso do trabalho e deixar que algum mais, quem sabe um colaborador,faa a reflexo. Seja como for, o que certamente no aceitvel pretenderreduzir os problemas em qualquer rea temtica ao tamanho e feitio dosdados de que eventualmente se disponha ou com os quais, por alguma razo,se prefira trabalhar. Ainda menos aceitvel , naturalmente, quando se tratade assumir a responsabilidade de criticar o trabalho dos outros, abrir mo

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    no s de qualquer referncia aos prprios dados relevantes, mas tambm dadevida imerso no jogo das idias em que os dados se articulam e ganhamsignificado.

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