Limongi: Governo Representativo e Democratização: Revendo o Debate (2015)

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93 Fernando Limongi Governo representativo e democratização: revendo o debate 1

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Revista Sinais Sociais 27 (9)

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    Fernando Limongi

    Governo representativo e democratizao: revendo o debate1

  • Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 67-91 | jan.-abr. 2015

    Contribuies da experincia internacional ao gerenciamento das rendas do petrleo do pr-sal brasileiro

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    Fernando LimongiFernando Limongi professor titular da Universidade de So Paulo (USP) e pesquisador do Cebrap/CEM/Neci e bolsista do CNPq. coautor, com Argelina Figueiredo, de Poltica oramentria no presidencialismo de coalizo (Rio de Janeiro, Editora FGV/Konrad Adenauer, 2008); Executivo e legislativo na nova ordem constitucional (Rio de Janeiro, Editora FGV/Fapesp 1999); e, com Adam Przeworski, Michael Alvarez e Jos Antonio Cheibub, de Democracy and Development: Political Institutions and Well-Being in the World, 1950-1990 (New York: Cambridge University Press, 2000).

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    Resumo Este artigo prope uma releitura do debate sobre a evoluo

    poltica do pas. Partindo das teses que sustentam a inviabilidade

    ou incompletude da democracia no Brasil, o artigo sugere uma

    reviso da forma de entender o processo de democratizao.

    Trata-se de revisitar um velho debate cujas origens so traadas

    a interpretaes clssicas como o de Victor Nunes Leal e Srgio

    Buarque de Holanda.

    Palavras-chave: Democracia. Governo representativo. Direitos

    civis. Direitos polticos.

    AbstractThis paper proposes a new reading of the debate on the countrys

    political evolution. Starting from the theses that support the infeasibility

    or incompleteness of democracy in Brazil, this paper proposes a review

    to understand the democratization process, addressing an old debate

    originated with the classical interpretations of Nunes Leal and Sergio

    Buarque de Holanda.

    Keywords: Democracy. Representative government. Civil rights. Political

    rights.

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    A histria poltica do Brasil pede uma reviso. A forma usual de recons-

    titu-la assume que a histria poltica do pas difere radicalmente da tra-

    jetria seguida em pases como a Inglaterra, Frana e Estados Unidos. A

    herana colonial, a ausncia de uma ruptura efetiva com o passado,

    uma varivel chave nas interpretaes cannicas sobre a evoluo do go-

    verno representativo e da democracia no pas. Contudo, estudos recentes

    sobre a evoluo poltica europeia e norte-americana recomendam uma

    reviso da forma usual de entendermos a evoluo poltica do pas. Este

    o objetivo deste trabalho.

    O governo representativo falseado

    Em seu clssico Coronelismo, enxada e voto, Victor Nunes Leal define seu

    objeto de estudo da seguinte forma: Concebemos o coronelismo como o

    resultado da superposio de formas desenvolvidas de governo represen-

    tativo a uma estrutura econmica e social inadequada (LEAL, 1975, p. 20).

    Mais que inadequao, teramos uma inviabilidade. O governo represen-

    tativo no encontraria no Brasil a realidade social sobre a qual se assen-

    tava em outros lugares.

    A descrio realista das prticas eleitorais do pas um dos sustentcu-

    los da anlise do autor. No essencial, estas prticas teriam experimen-

    tado pouca variao ao longo do primeiro sculo de vida independente

    do pas. As inmeras reformas da legislao eleitoral feitas no Imprio e

    na Primeira Repblica no teriam tido chances de sucesso. O problema

    fundamental residiria na ausncia de um eleitorado que apresentasse

    as condies exigidas para o funcionamento de um governo represen-

    tativo. No teramos, de fato, eleitores, pelo menos no os exigidos para

    um funcionamento efetivo do governo representativo. Srgio Buarque de

    Holanda argumenta que

    Proclamadas com eloquncia, e abraadas aparentemente com sinceri-

    dade, as doutrinas revolucionrias foram, assim, condicionadas no Brasil

    a fatores que no existiam, ou existiram de maneira diferente, em seus

    lugares de origem. [...] Mas se a derrocada do absolutismo e a afirmao

    da independncia ajudavam a remoo do obstculo, o certo que no

    Introduo1

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    poderiam, somente, suprir algumas lacunas srias da organizao pre-

    existente. [...] A mais notvel, entre estas lacunas, era a inexistncia de

    uma numerosa camada social intermediria entre os grandes senhores

    e a parte nfima da populao livre, que pudesse fazer as vezes de classe

    mdia. [...] Como entender, com efeito, um sistema representativo digno

    desse nome onde faltava o elemento que em toda a parte vinha consti-

    tuindo o nervo das democracias? (HOLANDA, 1972, p. 80).

    O contraste claramente enunciado nestas duas formulaes. Em certas

    sociedades, observa-se a adequao entre a forma e a realidade, entre o

    governo representativo e as prticas eleitorais. O Brasil caracterizado ne-

    gativamente, pelo que est faltando. A ausncia do elemento fundamen-

    tal sobre o qual se assentaria o governo representativo condiciona a sua

    adaptao aos trpicos. Adequado na origem, inadequado em sua cpia.

    A ausncia, o que faltaria sociedade brasileira, a tal camada intermedi-

    ria numerosa, o elemento central da caracterizao. O latifndio, her-

    dado do perodo colonial, o obstculo que a independncia no remove,

    gera a atrofia. O eleitor nacional tpico, porque dependente do proprie-

    trio de terra, no teria vontade autnoma a expressar. Votaria a mando,

    expressando a vontade de seus superiores.

    Destitudo de eleitores capacitados, o pas no poderia seno experimen-

    tar uma verso falseada do governo representativo. Em suas verses mais

    extremadas, estes argumentos sublinham o irrealismo de nossas elites

    polticas, a falta de percepo destas sobre as condies sociais vigentes

    no pas. A insistncia com que as elites nacionais teriam importado

    os modelos polticos da Inglaterra, Estados Unidos e Frana seria a prova

    de seu irrealismo.

    A suposio fundamental deste tipo de viso a de que em certos pases

    seriam observadas as condies sociais necessrias para o sucesso do go-

    verno representativo. Por l, haveria povo ou classe mdia, a matria ne-

    cessria para o funcionamento adequado do governo representativo. Au-

    sentes estas condies, a cpia redundaria em farsa. As formas desenvol-

    vidas do governo representativo no funcionariam porque fora de lugar.

    Se assim for, isto , se aceitarmos as premissas desta crtica, a histria

    institucional do Brasil no mereceria estudo. Para entender a evoluo ins-

    titucional do governo representativo, o correto seria estudar o que se

    passou com o original. Nada de relevante teria tido lugar nestas plagas.

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    A experincia do governo representativo no Brasil seria sempre e irre-

    mediavelmente marcada pelo atraso, expresso de forma mais clara nas

    prticas eleitorais viciadas, em que violncia e fraude campeariam.

    Nunes Leal, por exemplo, aps revisar a evoluo da legislao eleitoral

    brasileira, conclui:

    Atravs de todas essas tentativas, recebidas confiantemente por uns e,

    com descrena ou pessimismo por outros, o mecanismo representativo

    continuou a revelar deficincias, por vezes graves. [...] Sempre impressio-

    nou aos espritos mais lcidos o artificialismo da representao, que era

    de modo quase invarivel maciamente governista. Entretanto, a subsis-

    tncia de certos vcios exteriores ou formais, notadamente a insincerida-

    de da verificao de poderes [...] muito concorria para que se atribussem

    os defeitos do nosso regime representativo a fatores de ordem puramen-

    te ou predominantemente poltica. Por esse mesmo motivo, a ateno

    dos observadores quase sempre se desviava dos fatores econmicos e

    sociais, mais profundos, que eram e ainda so [1947], os maiores respon-

    sveis pelo governismo e, portanto, pelo falseamento intrnseco da nossa

    representao (LEAL, 1973, p. 241).

    A transformao da legislao eleitoral brasileira, portanto, teria pouco

    interesse: pura reafirmao do artificialismo. As reformas feitas e no

    foram poucas seriam apenas a prova do irrealismo de nossas elites,

    reafirmando, a cada nova tentativa, a impossibilidade de implantao

    de mecanismos representativos no pas. Consequentemente, o debate

    institucional nacional seria vazio porque descolado da realidade, por

    no atacar o problema de fundo, a realidade social por detrs do voto de

    cabresto.

    Quando analisada, invariavelmente, a evoluo da legislao eleitoral

    brasileira tende a ser vista como a comprovao do elitismo arraigado

    das nossas elites, de sua rejeio profunda a qualquer valor democrtico,

    expresso em uma constante negao de medidas que ampliassem a par-

    ticipao popular. A aprovao da Lei Saraiva em 1881 seria a expresso

    mais acabada deste reacionarismo.2 Como se sabe, esta lei levou a uma

    drstica reduo do direito ao voto, reduzindo-o a praticamente a 1% da

    populao do pas.3

    Frise-se a data: 1881. As elites brasileiras optaram por uma reduo do

    eleitorado no final do sculo XIX, no momento em que os pases euro-

    peus estariam caminhando na direo contrria. Por isto mesmo, quando

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    Fernando Limongi

    analisa a legislao eleitoral do imprio, Jos Murilo de Carvalho (1988,

    p. 140) afirma que no que se refere definio da cidadania, a evoluo

    da legislao foi uma involuo.4

    O reacionarismo das elites polticas brasileiras no poderia ser maior e

    mais completo, como mostrariam os debates parlamentares que acom-

    panharam a discusso e a aprovao da Lei Saraiva. Os eleitores pobres

    acabaram responsabilizados pelo desvirtuamento das prticas represen-

    tativas. Para moralizar as eleies, esta a concluso a que teria chegado

    a elite governante brasileira, seria necessrio afastar os pobres das elei-

    es, negar-lhes o direito a voto.

    Seguindo esta linha de argumentao, a literatura recente tende a afir-

    mar o carter anmalo do desenvolvimento poltico brasileiro, sua diver-

    gncia em relao ao modelo ocidental clssico representado, por exem-

    plo, no conhecido esquema proposto por T. H. Marshall para dar conta da

    expanso da cidadania na Inglaterra. Neste tipo de anlise, a nfase recai

    sobre a diferena, sobre a especificidade da experincia nacional cujo

    resultado ltimo seria uma democracia atrofiada e frgil.

    Estas anlises, em geral, carecem ou no so fundamentadas por um

    modelo explicativo claro para a emergncia do regime democrtico. A

    histria poltica do Brasil continua caracterizada pela negativa, pela au-

    sncia, a partir de um contraste a um modelo de desenvolvimento po-

    ltico modelar. A referncia a histria poltica da Inglaterra, Frana e

    Estados Unidos sem que estas sejam examinadas a fundo. Nas anlises

    recentes (CARVALHO, 2005; ODONNEL, 2011; HOLSTON, 2013), o modelo

    elaborado por T. H. Marshall para dar conta do caso ingls tomado como

    o padro, enquanto o Brasil (ou de forma mais geral, a Amrica Latina)

    assume o papel do caso desviante.

    Como afirma Jos Murilo de Carvalho (2003, p. 11), a sequncia identifica-

    da por Marshall tanto histrica quanto lgica. O ponto de partida define

    os degraus seguintes. Os direitos civis, cujo reconhecimento teria se dado

    na Inglaterra no sculo XIX, anunciam os direitos polticos e os sociais.

    Se todos os membros de uma comunidade poltica so iguais perante a

    lei, isto significa que se assume que todos so dotados da capacidade de

    tomar as decises, de celebrar contratos, enfim de ser responsveis pe-

    los seus prprios atos. Reconhecida esta igualdade fundamental, ento

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    apenas um passo aceitar que estes mesmo indivduos tm capacida-

    de para participar das decises polticas. A extenso dos direitos pol-

    ticos, que viria no sculo XIX, no seria seno o reconhecimento das

    consequn cias do primeiro avano. Tratar-se-ia de uma decorrncia his-

    trica e lgica. O encadeamento entre um e outro seria necessrio.

    A relao entre os direitos polticos e sociais seria da mesma ordem. A

    relao seria direta. Se o voto estendido aos mais pobres, ento um

    governo que siga a vontade da maioria deve adotar polticas que visem

    promoo da igualdade. No mnimo, os mais pobres devem ser prote-

    gidos dos azares do mercado. Se o governo com voto da maioria no o

    fizer, ento esta no uma democracia efetiva, real. No mximo, pode ser

    vista como uma democracia incompleta, atrofiada pela herana histria:

    a falta de uma ruptura com o passado no momento de implantao do

    direito civil.

    Dada a natureza da relao interna entre as fases da expanso da cidada-

    nia, isto , dado o carter ao mesmo tempo histrico e lgico da evoluo,

    segue que o ponto de partida o passo verdadeiramente fundamental,

    do qual os demais so derivados. O ponto de partida define a trajetria

    posterior. Como afirma David Held:

    A cidadania civil constitui um passo significativo no desenvolvimento

    dos direitos polticos; na medida em que o agente individual foi reconhe-

    cido como uma pessoa autnoma isto , uma pessoa capaz de refletir e

    de tomar decises sobre as condies bsicas da vida foi mais fcil pen-

    sar nessa pessoa como, em princpio, sendo capaz de responsabilidade

    poltica (HELD, 1995, p. 67 apud ODONNEL, 2011, p. 55).

    Se, de fato, o direito civil anuncia sua transformao no sculo seguinte,

    se esta pode ser deduzida daquela, ento a democratizao do sistema

    poltico ingls no precisa ser investigada. Tratar-se-ia de uma mera con-

    sequncia. Nesta explicao, a verdadeira ruptura a anterior, a afirma-

    o da cidadania civil, o reconhecimento da autonomia individual, da

    capacidade de cada um de tomar decises. Dada esta premissa, o reconhe-

    cimento de que todos teriam o direito de participar do processo poltico

    uma consequncia direta. O desdobramento ou passagem do civil ao

    poltico seria natural e necessrio. Houve resistncias, certo, mas estas

    estavam necessariamente fadadas ao fracasso. Seriam menos relevantes

    que a marcha inexorvel anunciada pela ruptura anterior.

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    Assim, neste tipo de anlise, por paradoxal que possa parecer, a demo-

    cratizao no problematizada ou estudada. Democracias emergem

    naturalmente das revolues burguesas, da quebra da velha ordem. Se-

    pultado o Antigo Regime, o novo florescer. Pode demandar tempo, mas

    a evoluo pode ser tomada como certa.

    Esta, digamos, seria a rota clssica, aquela que na formulao clssica

    de Barrington Moore Jr. (1966) permite combinar modernizao socioe-

    conmica e poltica, isto , na qual a modernizao culmina na demo-

    cracia representativa. Nos demais casos histricos analisados por Moore,

    a ausncia de uma ruptura violenta com o passado feudal condiciona

    o desenvolvimento histrico futuro, impossibilitando o nascimento de

    governos democrticos.

    A equao se revoluo burguesa ento democracia representativa per-

    mite que Moore desconsidere a democratizao das sociedades que exa-

    mina. Por exemplo, a reconstituio da histria poltica inglesa aban-

    donada em 1688. Isto , no interior do modelo explicativo oferecido por

    Moore, a Revoluo Gloriosa seria suficiente para estabelecer toda a tra-

    jetria subsequente do pas. A primeira reforma estendendo o sufrgio,

    contudo, s viria a acontecer um sculo e meio mais tarde, em 1832, aps

    longas e acirradas discusses, quando o direito de voto foi estendido a

    no mais que 20% da populao adulta masculina. Duas outras reformas

    (1867 e 1884) promoveram novas extenses de tal sorte que o direito do

    voto havia sido estendido a no mais que 60% da populao adulta mas-

    culina no final do sculo XIX. Mulheres e apenas algo como 40% delas

    obtm o direito de votar ao final da Primeira Guerra Mundial. O sufrgio

    universal s foi adotado na segunda dcada do sculo XX.5

    Assim, o perodo histrico olimpicamente omitido por Moore no pe-

    queno. Na literatura recente referncias a Barrington Moore e a revolu-

    es burguesas so escassas. Abordagens mais recentes tomam a ex-

    tenso da cidadania como eixo central para a construo das trajetrias

    divergentes. Marshall passou a ocupar o lugar que pertenceu a Moore.

    Em lugar da modernizao, o processo de longo prazo subjacente e que

    confere sentido s anlises passou a ser a expanso da cidadania. A afir-

    mao do princpio da igualdade, no importa se formal, continua a ser

    o marco inicial.

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    As referncias e variveis mudaram, a estrutura do modelo explicativo

    no. O esquema o mesmo. A histria da ampliao da cidadania com-

    portaria diferentes rotas, determinadas em ltima anlise pelo momento

    fundador ou original da instaurao da igualdade civil. O fundamental

    o grau de ruptura com o Antigo Regime e a afirmao da igualdade for-

    mal perante a lei. Onde esta ruptura foi para valer, direitos civis e polti-

    cos podem ser encadeados. Nas palavras de ODonnel (2011, p. 54):

    Quando em algum momento do sculo XIX, a maioria dos pases do No-

    roeste adotou democracias no inclusivas, j havia sido atribudo a uma

    grande parte da populao masculina uma srie de direitos subjetivos que

    regulavam boa parte de suas vidas. Mas estes no eram ainda os di-

    reitos polticos da aposta democrtica. Eram direitos civis e subjetivos [...]

    quando a plena incluso poltica comeou a ser debatida, nos pases do

    Noroeste, j existia um rico repertrio de critrios legalmente elaborados

    e sancionados para atribuio de agncia na esfera privada a um grande

    nmero de indivduos (em sua maioria homens). Certamente, segundo

    os padres contemporneos o alcance destes direitos era muito limitado.

    Mas tambm certo que, devido ao processo de atribuio de direitos sub-

    jetivos, preparou-se para tornar extensivos cidadania poltica e social.

    O modelo explicativo supe o contraste. Os direitos civis, se acompanha-

    dos do reconhecimento da autonomia do agente, incluem a aposta de-

    mocrtica. Mas os direitos civis podem ser apenas epidrmicos, casos

    em que no incluem o reconhecimento pleno dos agentes e, portanto,

    no carregam consigo os germes de sua transformao, para usar uma

    linguagem datada. As trajetrias histricas dos pases do Noroeste6 e da

    Amrica Latina so distintas. O que se pretende explicar a divergncia

    presente, a fragilidade ou falta de efetividade dos regimes democrti-

    cos na Amrica Ibrica. Como em Nunes Leal e em Srgio Buarque de

    Holanda, a ausncia da ruptura histrica atrofia a experincia futura. No

    caso da verso contempornea centrada na expanso da desigualdade, a

    democracia poltica no gera igualdade social.

    As nfases mudam, mas a essncia do modelo no. O que preciso ter

    claro que os processos de democratizao dos casos bem-sucedidos

    no so objeto de tratamento sistemtico. A evoluo poltica destes

    pases deduzida do modelo adotado. Marshall, que no dedica mais

    dos que uns poucos pargrafos extenso dos direito do voto, seria sufi-

    ciente para caracterizar a democratizao do sistema poltico ingls. Em

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    Fernando Limongi

    outras palavras, a construo do contraste das diferentes rotas trilhadas

    altamente dependente da idealizao do que teria sido o processo de

    democratizao da Inglaterra, Frana e Estados Unidos.

    A contraposio marca estes modelos explicativos. A afirmao de que o

    governo representativo no funcionaria adequadamente no Brasil supe a

    existncia de seu contrrio, isto , do funcionamento adequado desta for-

    ma de governo em determinados pases. Para retornar a Nunes Leal, o au-

    tor nos oferece uma viso realista de como de fato funcionam as eleies

    no Brasil, como por aqui os princpios do governo representativo so false-

    ados. Como afirma: A corrupo eleitoral tem sido um dos mais notrios e

    enraizados flagelos do regime representativo no Brasil (LEAL, 1975, p. 240).

    O complemento deste realismo a idealizao da operao do governo

    representativo alhures. Assume-se, implicitamente, que o que por aqui

    se busca, eleies limpas e verazes, teria sido alcanado onde a gran-

    de propriedade foi destruda e uma classe mdia numerosa se formou.

    E se as eleies so efetivas, para retornar verso contempornea do

    argumento, a igualdade social deveria ser uma consequncia da poltica.

    Contudo, cabe perguntar: sabemos se funcionou o governo representati-

    vo em que haveria uma adequao entre forma poltica e realidade so-

    cial? Podemos afirmar que, na origem, as sociedades inglesas, francesas

    e norte-americanas eram mais igualitrias que a brasileira (latino-ameri-

    canas)? Existem de fato duas experincias histricas com as instituies

    representativas, uma falseada e outra verdadeira?

    Nunes Leal uma vez mais a referncia inicial. Os termos que emprega

    em sua formulao clssica merecem ateno. A referncia ao gover-

    no representativo e no democracia. O centro de sua anlise so as

    eleies, seu funcionamento, ou melhor, seu desvirtuamento no Brasil

    em relao ao modelo. A referncia duplamente importante. Primeiro

    porque define de forma clara o ponto de partida ou origem a partir da

    qual a reconstituio histrica deve ser empreendida. O ponto de partida

    a adoo do governo representativo e no o liberalismo e muito menos

    a liberal-democracia. Segundo porque coloca as expectativas acerca das

    prticas eleitorais no centro do debate. A anlise das prticas eleitorais

    Governo representativo e desigualdade poltica

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    viciadas experimentadas pelo pas se ampara em uma contraposio, na

    expectativa de como elas deveriam funcionar. Mas como afinal deveriam

    funcionar eleies? Alm disto, estas expectativas se referem realidade

    ou ao modelo? Cabe considerar a hiptese: no estaramos construindo

    uma contraposio entre o real e o idealizado? Afinal, sabemos como

    evoluiu de fato o governo representativo na Inglaterra, Frana e Esta-

    dos Unidos? A omisso de uma anlise detida da histria destes pases,

    quando no da pura idealizao de como esta teria transcorrido, est na

    base do argumento empregado por Nunes Leal e tantos outros.

    Como frisou com propriedade Bernard Manin (1997), o sucedneo dos go-

    vernos hereditrios o governo representativo. A caracterstica essencial

    do governo representativo o fato de que neste a seleo de lderes se

    d por meio de eleies.7 Governantes so eleitos. Ainda que hoje asso-

    ciemos eleio democracia, na filosofia poltica clssica, o mtodo de

    seleo de governantes identificado com a democracia o sorteio e no

    a eleio. Este mtodo especfico, a eleio, como sublinha Manin, sem-

    pre foi associado ao governo aristocrtico e sua adoo no momento de

    criao do governo representativo se deu com plena conscincia desta

    associao.

    As consequncias desta associao no devem ser lidas como curiosi-

    dades ou provas de ilustrao. O carter aristocrtico das eleies era

    conhecido pelos que propuseram sua adoo. Para dizer de outro modo:

    seus efeitos no igualitrios pesaram na escolha. Quando eleies passa-

    ram a ser usadas para selecionar governantes no se esperava que repre-

    sentantes fossem iguais aos representados. Antes o contrrio. A expecta-

    tiva dos criadores desta forma de governo era de que eleies levassem

    seleo dos melhores, dos mais capacitados, da elite social e cultural.

    Caberia a estes governar. Eleies no so igualitrias porque nem to-

    dos tm as mesmas chances de serem eleitos e desempenhar funes de

    governo. Na origem, portanto, temos uma afirmao clara e explcita da

    desigualdade poltica.

    Eleies no foram pensadas com um expediente para contornar a im-

    possibilidade da deliberao direta, para contornar a impossibilidade

    prtica da democracia direta. Os tericos do governo representativo mo-

    vem-se, de forma consciente e explcita, na direo contrria demo-

    cracia. O governo representativo seria superior democracia justamente

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    Fernando Limongi

    por recorrer s eleies e, desta forma, garantir que representantes se-

    riam selecionados no interior da elite. O governo representativo era para

    ser o governo dos melhores. Melhor recorrer a Bernard Manin:

    O governo representativo foi institudo com amplo conhecimento de que

    os representantes eleitos seriam e deveriam ser cidados distinguidos,

    socialmente diferentes do que aqueles que os elegiam. Chamarei este de

    o princpio da distino (MANIN, 1997, p. 94, traduo nossa).

    Em sua origem, portanto, o apelo a eleies no aspirava criar um corpo

    representativo que espelhasse o corpo social. Eleies deveriam levar aos

    postos de mandos os mais capacitados, a elite. Basta esta referncia para

    questionar uma parte considervel dos estudos sobre o pensamento po-

    ltico brasileiro no sculo XIX. O elitismo no especfico ou suficiente

    para discriminar o pensamento poltico brasileiro. Os ingleses, franceses

    e americanos do perodo eram igualmente elitistas. Neste aspecto, o Bra-

    sil no singular.

    A superioridade dos eleitos no decorre do voto censitrio. A superiori-

    dade esperada tem por referncia um corpo eleitoral restrito. Represen-

    tantes devem pertencer a um grupo social superior ao dos seus eleitores.

    Medidas especficas foram tomadas com este fim. Isto , no apenas o

    voto era censitrio, como tambm o acesso aos cargos eletivos era prote-

    gido por exigncias de propriedade, renda e idade.

    Dito de outra forma: as exigncias legais para ser candidato eram maio-

    res do que as que limitavam o direito ao voto. Assim, necessariamente,

    por fora da lei, os ocupantes de cargos pblicos teriam status superior

    ao de seus eleitores. Afirma-se desta forma de maneira explcita e clara o

    carter no igualitrio do princpio representativo. Em geral, precaues

    foram tomadas para garantir que representantes fossem recrutados no

    interior de um grupo seleto. O ponto merece ser frisado: a distino fun-

    damental embutida no governo representativo diz respeito menos a quem

    pode votar do que quem pode exercer o poder. Dito de forma mais direta:

    possvel compatibilizar o sufrgio universal ao Governo Representativo.

    Tanto a legislao inglesa quanto a francesa regulavam de forma expl-

    cita o acesso aos cargos de governo, enquanto os Estados Unidos, por

    razes discutidas a seguir, deixou de regular a matria. Vale, uma vez

    mais, recorrer a Manin:

  • 106

    Governo representativo e democratizao: revendo o debate

    Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Os limites ao direito de voto nos primrdios do governo representativo

    so bem conhecidos []. O que menos notado e estudado, contudo,

    que, independente destas restries, existiam ainda um nmero de pro-

    vises, arranjos e circunstncias que asseguravam que os eleitos seriam

    de um estrato social mais elevado do que o eleitorado. Isto foi obtido de

    formas diversas na Inglaterra, Frana e Estados Unidos. De forma geral,

    se pode dizer que a superioridade social era garantida na Inglaterra por

    uma mistura entre estatutos legais, normas culturais e fatores prticos

    enquanto na Frana puramente com base na lei. O caso dos Estados Uni-

    dos mais complicado, mas tambm, por isto mesmo, como ser visto,

    mais revelador (MANIN, 1997, p. 95).

    O reconhecimento desta desigualdade fundamental crucial para uma

    reavaliao das origens e desenvolvimento do governo representativo e,

    consequentemente, para o surgimento das democracias representativas

    contemporneas. O elitismo, ou mais claramente, a negao explcita e

    direta da ideia da igualdade poltica est na origem da adoo do governo

    representativo. O mtodo de seleo de lderes adotado no igualitrio.

    No se esperava, portanto, que governantes fossem iguais aos governados.

    Se o governo representativo funcionar de acordo com suas expectativas,

    ento, os melhores, os mais aptos governam. Se no for assim, se os mais

    capazes no forem selecionados, ento h algo de errado com o processo

    eleitoral. A corrupo eleitoral, o desvirtuamento do governo representa-

    tivo, se d quando outros critrios que no a capacidade para o exerccio

    do poder prevalecem.

    Mas de onde vm estas expectativas? Por que se espera que o princpio

    da distino opere? Por que o funcionamento regular das eleies leva a

    seleo dos superiores socialmente? Uma resposta se encontra na pas-

    sagem transcrita anteriormente: por uma combinao entre leis, normas

    culturais e fatores prticos. A interao entre estes fatores deve garantir

    que o governo representativo leve ao governo das elites.

    Tanto na Inglaterra quanto na Frana, precaues legais critrios ex-

    plcitos de renda e idade foram tomados para assegurar que apenas os

    detentores de propriedade poderiam ser os eleitos.8 Na passagem citada,

    contudo, Manin afirma que o caso norte-americano mais revelador jus-

    tamente por dispensar precaues desta natureza. Mais especificamen-

    te, os Estados Unidos prescindem da interveno das leis para assegurar

    que representantes fossem socialmente superiores aos representados.

  • 107Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Fernando Limongi

    A alternativa seguida, contudo, no se deve a uma maior adeso ao credo

    democrtico ou aceitao do princpio da igualdade poltica.

    Segundo Manin (1997), ao longo dos debates constitucionais na Filadl-

    fia, os constituintes foram incapazes de encontrar um critrio legal que

    pudesse ser aplicado uniformemente nas 13 ex-colnias. O que seria

    um critrio de excluso adequado no Sul seria insuficiente no Nordeste.

    Como diz Manin (1997), a heterogeneidade social, geograficamente deli-

    mitada, impediu que os constituintes americanos chegassem a um acor-

    do neste ponto. Ideologicamente, a maioria era favorvel a uma restrio

    censitria tanto do direito ao voto quanto do acesso a cargos pblicos.

    Havia desejo de faz-lo, mas foi impossvel encontrar uma condio que

    servisse aos propsitos pretendidos. Assim, a regulao da matria foi

    deixada aos estados membros.

    O caso mais revelador justamente por esta omisso e a confiana obti-

    da de que no seria desnecessrio restringir o conjunto de cidados que

    poderiam se candidatar a exercer cargos pblicos. Reside a a importn-

    cia dos debates entre os federalistas e os antifederalistas.

    Os antifederalistas acusam os defensores da nova Constituio de favo-

    recer um governo aristocrtico. Afirmam que o modelo proposto faria

    com que a distncia social entre representantes e representados seria

    enorme. Somente os mais ricos seriam os eleitos. Os crticos da Consti-

    tuio falham, contudo, na identificao do mecanismo que produziria

    este resultado.

    De sua parte, os federalistas, defensores da Constituio, apontam para a

    inexistncia de barreiras legais para que representantes e representados

    sejam iguais. A Constituio no restringia a cidadania poltica e tam-

    pouco regulava quem poderia se candidatar. No havendo restrio, se

    os resultados das eleies confirmassem os temores dos antifederalistas,

    isto se daria pela livre escolha do povo.

    Como mostra Manin, a posio dos federalistas neste debate decorre da

    sua confiana no carter aristocrtico das eleies. Restries legais que

    discriminassem quem poderia ser eleito no seriam necessrias. Pela sua

    prpria natureza, eleies levariam diferenciao entre representantes

    e representados. O mecanismo, pela sua natureza, geraria a distino.

    Os federalistas confiavam que os mais ricos e destacados socialmente

  • 108

    Governo representativo e democratizao: revendo o debate

    Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    levariam vantagem sobre os demais, sobretudo em distritos amplos. Isto

    quanto maior o distrito, quanto mais eleitores fossem necessrios para

    eleger um representante, mais relevante a salincia social dos candida-

    tos para sua eleio.

    A linha de interpretao aberta por Manin, sem exagero algum, revolu-

    ciona o entendimento das origens das modernas democracias represen-

    tativas. Eleio dos lderes polticos parte de qualquer definio corren-

    te de democracia. Contudo, como argumenta Manin, as marcas da ori-

    gem no so inteiramente apagadas pelas transformaes que levaram

    democratizao do governo representativo. O componente aristocrtico

    e no igualitrio inerente eleio, no desaparecendo com a democra-

    tizao dos sistemas polticos:

    No interior de governos baseados exclusivamente em eleies nem to-

    dos os cidados tem as mesmas chance de serem governantes. Os cargos

    representativos so reservados para pessoas vistas como superiores ou

    para membros das classes mais altas. Governo representativo pode em

    certos aspectos se tornar mais popular e democrtico. Ainda assim, ele

    reter dimenses aristocrticas no sentido de que aqueles que so eleitos

    no seriam similares a aqueles que os elegem, mesmo quando ningum

    impedido de competir por cargos eletivos (MANIN, 1997, p. 134).

    Assim, a contribuio de Manin vai muito alm do estudo das origens

    do governo representativo. A inspirao aristocrtica tem consequncias

    para o entendimento das modernas democracias. Muitas das caracters-

    ticas constitutivas do governo representativo foram mantidas. Algumas

    destas decorrem da natureza do processo eleitoral, outras das definies

    do papel dos prprios representantes e seus vnculos com os eleitores,

    como ausncia de mandato imperativo ou recall.

    Contudo, para os fins deste artigo, estas consequncias so menos im-

    portantes que a caracterizao oferecida para entender a primeira apari-

    o do governo representativo. O fundamental a reter a consequncia

    do trabalho de Bernard Manin para entender tanto o momento original,

    para a caracterizao da ruptura poltica operada com o antigo regime,

    como tambm para o entendimento do processo de democratizao.

    Mais especificamente, cabe retomar a histria poltica da Inglaterra,

    Frana e Estados Unidos com novas lentes. O fim do governo hereditrio

    no seguido pela afirmao da igualdade poltica. Antes o contrrio.

  • 109Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Fernando Limongi

    O foco da anlise do processo de democratizao deve ser revisado. Im-

    porta menos quem pode votar do que quem pode ser votado.

    O governo representativo no pode ser interpretado como uma forma

    de governo protodemocrtica,9 da qual teria brotado, por desdobramento

    interno, como uma evoluo, a democracia moderna.10 Na origem, no

    h uma aposta democrtica ou inclusiva. Os Pais Fundadores do governo

    representativo se movem na direo contrria, reafirmando e sustentan-

    do teoricamente a distribuio desigual das possibilidades de exercer o

    poder. A desigualdade poltica entre os membros da comunidade no se

    afirma apenas na restrio ao direito de voto. Ela mais profunda. Na re-

    alidade, a extenso do direito de voto menos relevante que a distino

    quanto a quem pode exercer o poder.

    No se trata, por certo, de equiparar todas as experincias histricas. O

    estudo de Bernard Manin chama ateno para a variao da combinao

    entre legal provisions, cultural norms, and practical factors para explicar os

    processos polticos especficos experimentados pela Inglaterra, Frana e

    Estados Unidos. O estudo de nossa histria institucional sob esta pers-

    pectiva revelar, por certo, especificidades. Seja como for, porm, o fato

    que a perspectiva interpretativa aberta pelo trabalho de Manin fora

    uma reviso das noes estabelecidas sobre o ponto de partida trilha-

    do pelos pases ocidentais. Na origem, em qualquer lado do Atlntico e

    em qualquer hemisfrio, temos uma afirmao explcita da desigualdade

    poltica.

    Tomar os regimes instaurados no sculo XIX pelo que vieram a se tor-

    nar no sculo XX incorrer na falcia do determinismo retrospectivo

    (BENDIX, 1964, p.16). O desenvolvimento que estes regimes vieram a ter

    no era o esperado. Em muitos aspectos, as modernas democracias se

    baseiam em princpios e prticas no previstos pelos criadores do go-

    verno representativo. Entender o nascimento das modernas democra-

    cias, como estas se desenvolveram a partir do governo representativo,

    ocupa novamente posio de destaque na literatura comparada. Assim,

    a perspectiva inaugurada por Bernard Manin justifica uma releitura da

    experin cia brasileira com o governo representativo. No princpio, todos

    eram elitistas. O ponto de partida no a afirmao da igualdade.

  • 110

    Governo representativo e democratizao: revendo o debate

    Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    O ponto de partida, portanto, o governo representativo e no as re-

    volues burguesas e/ou afirmao da cidadania civil. Em lugar de to-

    mar como dada a existncia de experincias histricas divergentes, cuja

    constituio remontaria o momento da queda do Antigo Regime, passa-

    mos a ter uma origem comum. Mais que isto, um ponto de partida que

    no supe ou contm em embrio a ideia da igualdade entre represen-

    tantes e representados.

    A literatura latino-americana sequer cogita colocar a experincia poltica

    da regio em p de igualdade com a dos pases da regio temperada. A

    agenda de pesquisa sobre a histria poltica da regio voltada para ex-

    plicar seu desenvolvimento anmalo ou incompleto. No passado recente,

    a diferena dos resultados histricos era clara e evidente. A regio era

    marcada pela instabilidade poltica e pelo autoritarismo. No presente,

    contudo, a divergncia de resultados no mais to evidente. A cena po-

    ltica da regio mudou radicalmente nos ltimos tempos. A maioria dos

    pases tem regimes democrticos que j deram provas de sua estabilida-

    de. Ainda assim, persiste a ideia da inferioridade dos regimes polticos da

    regio, cujas democracias seriam marcadas por um dficit de cidadania,

    cujo passivo teria comeado a se acumular logo aps a independncia.

    A reviso de perspectiva proposta significa rejeitar a tese de que hist-

    ria poltica da Inglaterra e do Brasil, ou de forma mais geral, dos pases

    avanados e dos atrasados, devam ser tratadas como duas realidades

    distintas.11 Posto de forma positiva: os problemas polticos enfrentados

    por Inglaterra e Brasil so da mesma ordem. Trata-se de implantar o go-

    verno representativo. As trajetrias, ao menos no momento de sua im-

    plantao, esto sobrepostas.

    Os problemas institucionais brasileiros no devem ser analisados como

    problemas enfrentados pela adaptao do governo representativo aos

    trpicos, a uma realidade social inspita. A ideia de adaptao ou im-

    portao de ideias e instituies precisa ser questionada. H problemas

    que so inerentes ao governo representativo e que se manifestam onde

    quer que ele tenha sido instaurado. Cabe entender a lgica do governo

    representativo e no a de governos liberais. A diferena sutil, mas no

    sem consequncias.

    Governo representativo e democratizao

  • 111Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Fernando Limongi

    A viso segundo a qual governos liberais precedem governos democr-

    ticos e que a diferena essencial entre um e outro a restrio ao su-

    frgio que vigoraria no primeiro e no no segundo acaba por minimizar

    a ruptura entre governo representativo e a democracia contempornea.

    Implicitamente, ao faz-lo, os que adotam esta perspectiva acabam por

    negligenciar as caractersticas prprias do governo representativo iden-

    tificadas por Manin.

    Regimes liberais so geralmente caracterizados como democracias em

    gestao, como se o problema por excelncia com que se defrontariam

    fosse a regulao do direito do sufrgio. Nesta linha de argumentao,

    em ltima anlise, a divergncia entre a experincia poltica inglesa e a

    brasileira acaba por se resumir s atitudes das elites diante desse proble-

    ma, s respostas divergentes que estas teriam dado presso pela ex-

    tenso da igualdade poltica.12 Enquanto a Inglaterra estendeu o sufrgio,

    no Brasil o caminho tomado teria sido inverso. Tudo se passa como se

    somente nos trpicos as elites polticas tivessem explicitamente negado

    a igualdade poltica.

    A referncia ao governo representativo altera o foco. Como discutido na

    seo precedente, as premissas sobre as quais se assenta esta forma de

    governo so manifestamente antidemocrticas. Os pais fundadores des-

    ta forma de governo no eram democratas. No eram sequer protodemo-

    cratas. Eram declaradamente contrrios igualdade poltica. Vale voltar

    uma vez mais a Manin: eleio um mtodo de seleo de lderes no

    igualitrio e sua adoo se deu com plena conscincia desta caractersti-

    ca. Sabia-se e valorizava-se o fato que nem todos teriam a mesma chance

    de exercer o poder. O exerccio do poder ficaria reservado aos membros

    da elite.

    A restrio ao direito do voto, a defesa do voto censitrio, no , portanto,

    produto de uma inconsistncia com o princpio fundamental da igualda-

    de que, assim, seria eliminada naturalmente. Por revolucionria e radical

    que seja a afirmao da igualdade civil, esta no se estende naturalmen-

    te e necessariamente ao campo poltico. Benjamin Constant, ao fazer a

    clebre distino entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, estava

    justamente, como argumenta Rosanvallon (1999, p. 225), estabelecendo

    uma separao profunda entre a igualdade civil e poltica. Para os moder-

    nos, a segunda no decorreria da primeira.

  • 112

    Governo representativo e democratizao: revendo o debate

    Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Como afirma Rivera (2000, p. 31), o liberalismo das elites latino-america-

    nas no era mais contrrio democracia e participao popular que o

    liberalismo dos pais da moderna repblica liberal. Os regimes criados na

    Inglaterra, Estados Unidos e Frana no apenas se assentavam sobre so-

    ciedades altamente desiguais do ponto de vista social, como tambm su-

    punham que esta mesma desigualdade guiasse a distribuio dos cargos

    de poder. Os regimes criados naqueles trs pases eram to oligrquicos

    quanto seus pares latino-americanos. As divergncias entre estes dois

    mundos, nos campos social e poltico, so menores que as convergncias.

    Rivera (2000, p. 37) observa que no se deve assumir que o modelo do

    governo representativo tenha vindo ao mundo pronto e acabado, com

    respostas para todos os problemas com que viria a se defrontar. Mais do

    que isto: no se deve assumir que as falhas e inconsistncias do modelo

    teriam se manifestado exclusivamente na Amrica Latina.13 A implan-

    tao do modelo conviveu com os mesmos problemas nos dois lados do

    Atlntico e nos dois hemisfrios. Desde o ponto de vista institucional,

    no cabe falar em divergncia ou rotas. H uma histria comum, a da

    evoluo e transformao do governo representativo. Uma histria que

    necessariamente turbulenta e errtica em funo das inconsistncias

    do modelo original.

    O ponto de partida necessrio, portanto, uma caracterizao mais acu-

    rada do governo representativo, de seus princpios e forma de funciona-

    mento. Tomar a extenso do direito de voto aos mais pobres como o prin-

    cipal indicador, quando no o nico, de democratizao acaba por deixar

    em segundo plano as transformaes radicais, verdadeiras rupturas, que

    marcaram o nascimento da moderna democracia. Dito de forma diversa:

    no se deve assumir que o nico e o mais importante desafio institucio-

    nal enfrentado pelo governo representativo em sua evoluo tenha sido

    a extenso do sufrgio aos mais pobres.

    No se pode assumir que os pais fundadores do governo representativo

    tenham sido capazes de antecipar todas as vicissitudes prticas com que

    o modelo que criaram viria a se defrontar. Na realidade, a incompletu-

    de do modelo no tardou a se manifestar. Como argumentou Hofstadter

    (1969), o modelo criado no tinha lugar para a constituio de uma opo-

    sio legtima ao governo. No tinha lugar no sentido em que no era

    possvel acomodar uma oposio legtima aos princpios do governo

  • 113Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Fernando Limongi

    representativo identificados por Bernard Manin. Como afirma Hofstadter

    (1969, p. 8, traduo nossa):

    A ideia de uma legtima-oposio reconhecida, organizada e livre o sufi-

    ciente em suas atividades para ser capaz de retirar do poder o governo

    em exerccio, por meios pacficos, uma ideia imensamente sofisticada, e

    esta no era uma ideia que os Pais Fundadadores encontraram totalmen-

    te desenvolvida e pronta para ser aplicada quando eles comearam sua

    experincia com o constitucionalismo republicano em 1788.14

    O reconhecimento de uma oposio legtima no se resume e, portanto,

    no deve ser confundido como o reconhecimento da liberdade da opi-

    nio pblica identificada no modelo de Manin. Como observa Hofstadter

    (1969), a liberdade para a crtica poltica se encontrava firmemente esta-

    belecida na experincia poltica inglesa e norte-americana, mas o que

    era chamado pelos ingleses de

    uma oposio formada isto , um grupo de oposio organizado e per-

    manente, distinto de um indivduo expressando a sua opinio dentro ou

    fora do parlamento ainda ficava aqum da respeitabilidade, e na opi-

    nio de muitos recebia a mcula da deslealdade, subverso ou traio

    (HOFSTADTER, 1969, p. ix, traduo nossa).

    No a liberdade individual que est em jogo. algo mais complexo,

    como nota Hofstadter, mais sofisticado, que est em jogo. Vale observar

    que o autor est se referindo a uma oposio legtima, constitucional e

    responsvel que pretende chegar ao poder por meios eleitorais. Por isto

    mesmo, a soluo para esta dificuldade no se d no campo dos valores

    ou ideais. No se trata simplesmente de a oposio aderir Constituio,

    aceitar as regras do jogo e visar chegar ao poder por meios eleitorais. No

    fcil assimilar uma oposio deste tipo.

    A histria norte-americana, analisada por Hofstadter, prova-se crucial

    para o argumento, uma vez que a dificuldade desta aceitao se ma-

    nifesta no interior da elite responsvel pela elaborao e aprovao da

    Constituio. Ao longo do governo de John Adams (1796-1800), James

    Madison e Alexander Hamilton, que anos antes haviam colaborado na

    elaborao dos Federalists Papers, acabam em partidos opostos, o Repu-

    blicano e o Federalista respectivamente. Enquanto Madison est entre

    os que acusam os federalistas de traidores da causa republicana, de de-

    fensores de um governo aristocrtico alinhado com os interesses monar-

  • 114

    Governo representativo e democratizao: revendo o debate

    Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    quistas da Inglaterra, Hamilton est entre os que acreditam que os repu-

    blicanos no passariam de democratas extremados, verdadeiros jacobi-

    nos que, por isto mesmo, defendiam a Frana e a Revoluo Francesa. Ou

    seja, cada um dos partidos nega legitimidade a outro, caracterizando-os

    como inimigos da ordem poltica vigente, verdadeiros traidores da ptria,

    representantes dos interesses estrangeiros.

    Tanto Madison quanto Hamilton, como deixaram claro nas pginas em

    que defenderam conjuntamente a ratificao da Constituio que ha-

    viam ajudado a elaborar, execravam os partidos polticos, mas isto no os

    impediu de participarem ativamente na criao de partidos polticos. O

    mais interessante no caso dos dois que tenham liderado partidos dife-

    rentes. Jefferson, mesmo tendo afirmado em carta a Thomas Hopinkson

    que no iria aos cus se o preo a pagar fosse entrar em um partido,15

    no hesitou em fundar um partido para entrar na Casa Branca. Como

    mostra Hofstadter (1969), a adaptao das ideias realidade no foi fcil

    e tomou tempo. Como indica o mesmo autor, na realidade, esta aceitao

    nunca foi completa, justamente porque ela envolve um conflito com o

    princpio segundo o qual o critrio para o exerccio do poder a quali-

    ficao do candidato e no sua fidelidade e pertencimento a um grupo

    poltico qualquer. H, portanto, um conflito entre o princpio da distino

    e o partidrio.

    A aceitao da oposio responsvel passa por uma questo prtica e

    imediata, a saber, o tratamento dispensado pelo governo oposio. Se

    os detentores do governo foram legitimamente eleitos, ento como jus-

    tificar a contestao de seus atos? Uma vez mais, cabe citar Hofstadter

    (1969, p. 87, traduo nossa):

    Aqueles que esto no poder tendem a pensar em si prprios no como

    membros de um partido que tomou o controle do governo, mas sim como

    o governo em si mesmo. Assim, a oposio identificada como uma fac-

    o inteiramente destrutiva, como o antigoverno. Suas crticas das poli-

    ticas adotadas so tomadas como crticas ao governo. Sua crtica a um

    governo particular tomada como a crtica a todo e qualquer governo.

    assim identificada a anarquia, subverso e deslealdade.

    A oposio ao governo em exerccio naturalmente confundida com

    a oposio ao governo em si mesmo. A tendncia a negar legitimidade

    aos partidos tem duas mos. O governo tende a ver a oposio como

  • 115Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Fernando Limongi

    subversiva tanto quanto a oposio questiona a integridade dos gover-

    nantes. Os governantes, contudo, contam com uma vantagem evidente,

    uma vez que justamente por ser governo, controlam o aparato de re-

    presso e podem definir os limites da ao da oposio. Os federalistas,

    por exemplo, aprovam em 1798, o Alien and Sediction Act, com base

    no qual restringem a ao legal da oposio. O seu objetivo era claro:

    perseguir e eliminar a oposio. Falharam, mas os seus sucessores, os

    republicanos, no. A ascenso de Jefferson ao poder em 1800 leva ao

    desaparecimento dos federalistas da cena poltica e a um longo perodo

    de governo unipartidrio.

    Os princpios do governo representativo no preveem a emergncia de

    eleies competitivas. No deveriam ser e, em geral, no eram. Eleitores

    deveriam reconhecer os seus superiores. Campanhas e, mesmo, candi-

    daturas prvias eram vistas como ilegtimas, quando no proibidas por

    medidas legais. Pedir votos seria dar prova de que o pretendente ao car-

    go no teria suas qualidades naturalmente reconhecidas pelos eleitores.

    Alm disto, se candidatar, aspirar a um cargo pblico era dar mostras de

    ambio, de desejo de governar. Exercer um cargo pblico era visto como

    um encargo, um nus que comportava colocar o interesse pblico acima

    do privado. Virtude era a caracterstica exigida para o exerccio do poder.

    Como afirma Hofstadter (1969, p. 47), referindo-se especificamente a

    Virgnia no perodo anterior independncia, a sociedade colonial era

    uma sociedade estruturada com base na deferncia (a deferential society)

    e assim tambm era com sua vida poltica. A implicao para as elei-

    es que no sculo XVIII, virginianos no eram eleitos em razo do

    grupo ao qual eram associados ou pelo que se propunham a fazer a res-

    peito desta ou daquela questo, mas sim porque eles eram quem eram

    (HOFSTADTER, 1969, p. 64).

    A deferncia dos subordinados para com os socialmente superiores era

    a relao crucial sobre a qual se assentavam as expectativas sobre como

    as eleies deveriam funcionar. Nestes termos, impossvel dissociar o

    voto da submisso socialmente construda. Era justamente isto que se

    esperava do eleitor, que consentisse ser governado pelos seus superiores,

    que reconhecesse que o papel de governar cabia aos que se destacavam

    socialmente. O critrio que eleitores deveriam usar ao votar no deveria

    ser poltico, mas sim social.

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    Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.9 n. 27 | p. 93-123 | jan.-abr. 2015

    Competio eleitoral e partidos polticos no eram partes do modelo ori-

    ginal. Mas, como todo cientista politico sabe, tenha ou no lido Schatts-

    chneider, a democracia foi criada pelos partidos e impensvel sem eles.

    A referncia aos dois eixos da democratizao identificados por Dahl

    imediata. A presena de partidos que competem pelo poder, que bus-

    cam votos para chegar ao poder, est diretamente associada ao eixo da

    contestao. O fato que a movimentao neste eixo tende a ser menos

    estudada e analisada do que a ampliao da participao. O processo de

    democratizao acaba por ser identificado ampliao da participao.

    Ainda assim, competio eleitoral o elemento crucial em qualquer de-

    finio de democracia contempornea.

    Democratizao, portanto, no se resume a extenso do sufrgio. A difi-

    culdade maior decorre da necessidade de encontrar uma frmula insti-

    tucional que regule a competio entre os partidos por votos. Trata-se de

    um desdobramento no previsto pela teoria. Uma dificuldade que se ma-

    nifestou com a mesma fora e intensidade nos Estados Unidos, Inglaterra,

    Frana, Brasil, Mxico e assim por diante.

    O fato que os pais fundadores do governo tinham expectativas irrea-

    listas sobre o funcionamento das eleies. Mas este irrealismo no diz

    respeito s expectativas quanto s relaes entre superiores e subordina-

    dos. Como o caso norte-americano deixa claro, o problema se manifesta

    nas relaes internas elite. O conflito entre republicanos e federalistas

    se d no interior da elite e no tem implicaes diretas para a definio

    da cidadania poltica. Os lderes de ambos os grupos eram igualmente

    membros das elites. O que no estava previsto no era que os membros

    das elites no pudessem ter divergncias entre si. O que no estava no

    mapa era que levassem suas divergncias aos eleitores, que se organi-

    zassem para vencer eleies. Partidos eleitoralmente constitudos no

    poderiam existir.

    A informalidade que cercava o processo eleitoral garantia que a influn-

    cia e o controle social exercidos pelos mais favorecidos se fizessem pre-

    sentes na assembleia eleitoral. O processo eleitoral deveria funcionar

    como um momento em que os eleitores expressavam sua aquiescncia

    para com os representantes, momentos de reafirmao da hierarquia so-

    cial, momentos para expresso pblica do consentimento da diferena.

    Por isto mesmo, como argumenta John Stuart Mill em Consideraes sobre

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    Fernando Limongi

    o governo representativo, cuja primeira edio de 1861, no poderia ser

    secreto.

    Quando eleies funcionam de forma adequada, os mais capazes so elei-

    tos. Contudo, a quem cabe o papel de julgar se as escolhas feitas foram

    corretas, se de fato os mais qualificados para o exerccio do poder foram os

    escolhidos? Como vimos anteriormente, os republicanos, liderados por

    Tomas Jefferson e James Madison, acreditavam piamente que os federa-

    listas no deveriam merecer a confiana do povo. Foram eleitos, foram

    distinguidos com a aprovao popular, mas no deveriam ter sido. Mas

    como explicar que as eleies tenham levado a escolhas equivocadas?

    Se o poder conferido a homens destitudos da qualificao necessria,

    ento o processo eleitoral necessariamente deve ter sido corrompido em

    algum ponto. Ou bem houve fraude (alterao dos resultados) ou bem

    o povo que participou do processo eleitoral no tinha as qualificaes

    necessrias e, desta forma, pode ser corrompido por polticos inescru-

    pulosos. Assim, o conflito entre as elites acaba por desaguar no debate

    acerca dos critrios para atribuir o direito do voto. Eleitores passveis de

    ser objeto de corrupo devem ter seu direito de voto negado.

    As elites polticas, quando divididas, s tm uma forma de explicar o

    apoio eleitoral obtido por seus adversrios: a corrupo, a influncia ile-

    gtima exercida por seus oponentes para granjear a simpatia e confiana

    popular. O conflito intraelite, portanto, remete necessariamente ao deba-

    te sobre os critrios empregados para definir o direito ao sufrgio.

    O eleitorado verdadeiramente qualificado seria aquele dotado da capaci-

    dade de distinguir entre os membros da elite econmica aqueles que so

    os verdadeiramente virtuosos. O eleitor que falha ao fazer esta distino,

    que pauta suas escolhas por critrio diverso, deve ter negado o direito ao

    sufrgio. O equvoco da sua escolha prova da sua incapacidade.

    Neste modelo, vale insistir no ponto explorando suas consequncias so-

    bre outro ngulo, no h lugar para partidos que visem influir nas deci-

    ses dos eleitores. Fazer campanhas e procurar arregimentar eleitores

    contraria as normas que estruturam as relaes representados-repre-

    sentantes. A superioridade que destaca o governante potencial tem que

    ser percebida naturalmente pelo eleitor. A relao esperada e legtima

    a da deferncia. Aquele que pede votos, que organiza eleitores para

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    apoi-lo, implicitamente, reconhece a insuficincia das suas qualifica-

    es, recorrendo construo de um elo artificial entre representantes

    e representados. Fazer campanha, organizar um partido, dar prova da

    motivao facciosa da empreitada, com toda a carga pejorativa que o

    termo carrega consigo.

    Obviamente, republicanos e federalistas acreditavam que contavam com

    os votos do eleitor capacitado e seus adversrios, com o dos desprepa-

    rados. A corrupo dos eleitores sempre a arma a que recorrem os

    adversrios, os ambiciosos, os que se movem pelos interesses parciais.

    Cada uma das partes acredita estar do lado certo, que seu grupo rene os

    homens virtuosos, cujo apoio deriva da confiana e deferncia entre as

    camadas inferiores.

    Ainda que a comparao no seja usual, o fato que a natureza do con-

    flito entre federalistas e republicanos a mesma que se verifica entre

    conservadores e liberais nos primeiros anos do reinado de dom Pedro II

    aps a derrubada do Gabinete da Maioridade pela interveno do Poder

    Moderador. Os conservadores justificam a dissoluo da Cmara eleita

    em 1840 como uma medida necessria para deter o embate das fac-

    es, antes que estas tenham produzido irreparveis estragos ao sis-

    tema monrquico constitucional representativo, do qual seriam os de-

    fensores legtimos. A dissoluo se impe como uma defesa da ordem

    constitucional, porque

    A atual Cmara dos Deputados, Senhor, no tem a fora moral indispen-

    svel para acreditar e fortalecer entre ns, o sistema representativo. No

    pode representar a opinio do Pas porque a expresso da vontade nacio-

    nal e das necessidades pblicas somente a pode produzir a liberdade dos

    votos (JAVARI, 1989, p. 84).

    Os liberais, de sua parte, em Representao enviada ao imperador pela

    Cmara Provincial de So Paulo, acusam o Gabinete no poder de trai-

    dor, que seus atos estariam pondo em risco a paz do Imprio, a ordem

    e a tranquilidade da Provncia e at a segurana do Trono. Os liberais

    sustentam que a Lei da Reforma do Cdigo e a criao do Conselho de

    Estado seriam obras de uma Legislatura irregular, composta por uma

    maioria vendida e, por isto mesmo, em desacordo com a verdadeira

    vontade nacional (MARINHO, 1843, p. 307).

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    Como se v, cada um dos partidos acusava o outro de deslealdade e des-

    respeito Constituio. Conservadores e liberais acreditam que repre-

    sentam a vontade nacional, que seriam os vencedores em uma eleio

    livre. Segue desta premissa que se derrotados, tal fato s pode ser ex-

    plicado pelos expedientes escusos a que recorreram os vencedores. Os

    adversrios so facciosos e, por isto, prontos a recorrer corrupo para

    chegar ao poder.

    Ironicamente, no interior dos princpios do governo representativo, as

    influncias que emergem de relaes polticas, ditada pela disputa do

    poder, so vistas como ilegtimas. Os homens de partido se movem pela

    ambio, pelo desejo de exercer o poder e dele tirar vantagens para si e

    para seus seguidores. A influncia legtima aquela que construda no

    campo social, anterior portanto poltica. Como sustenta Bernard Manin

    (1997, p. 203):

    Eleies aparecem como reflexos e expresso de interaes no-polticas.

    [...] Estes [os vnculos e interaes] no so gerados pela competio pol-

    tica. Antes o contrrio, estes laos constituem recursos preexistentes que

    polticos mobilizam em sua luta pelo poder. Representantes, obtiveram

    proeminncia em suas comunidades em virtude de seu carter, riqueza,

    ou ocupao. Eleies selecionam um tipo particular de elite: os notveis.

    Governo representativo comeou como o governo dos notveis.

    A anlise da histria poltica brasileira tende a ser reconstituda a partir

    do contraste com a histria da Inglaterra, Frana e Estados Unidos. Em

    geral, o foco explicativo recai sobre as travas que impediram que o de-

    senvolvimento das instituies democrticas seguisse o rumo tomado

    naqueles pases. Trata-se de uma explicao calcada sobre o signo da

    ausncia, incompletude, divergncia ou anomalia. Em Nunes Leal, o con-

    traste toma a forma da contraposio entre a forma corrompida e a n-

    tegra do governo representativo. Nas explicaes calcadas no modelo da

    expanso da cidadania, a nfase recai sobre a resistncia das elites bra-

    sileiras em aceitar iderio da igualdade fundamental entre os homens.

    Em ambos os casos, o modelo explicativo se baseia no contraste entre o

    real e o idealizado. As referncias histricas aos casos de implantao

    Consideraes finais

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    Governo representativo e democratizao: revendo o debate

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    plena da democracia so escassas e esquemticas. Na realidade, o mo-

    delo das trajetrias divergentes se equivoca quanto ao ponto de partida

    da experincia poltica moderna. O ponto de partida o governo repre-

    sentativo e a desigualdade politica que eleies supem. Sua evoluo,

    portanto, no pode ser traada e apreendida pela extenso do sufrgio. A

    emergncia dos partidos e das eleies competitivas marca o advento da

    democracia. O caminho no estava traado de antemo e no foi simples

    e automtico em nenhum lugar.

    Notas

    1 Este trabalho foi parcialmente financiado com recursos da Fapesp e do CNPq.

    2 Para uma anlise dos debates com nfase no elitismo do liberalismo brasileiro, ver Kinzo (1980).

    3 Para uma reviso completa da evoluo da legislao eleitoral brasileira, consultar Nicolau (2012). Para um questionamento da interpretao tradicional sobre a Lei Saraiva, ver Buescu (1981).

    4 Ver Carvalho (2003), para uma generalizao do argumento.

    5 A falta de linearidade da expanso do direito ao voto nos Estados Unidos, marcada por movimentos cclicos de expanso e retrao, enfatizada por Keyssar (2000). O caso francs e suas inmeras idas e vindas o objeto de estudo de Rosanvallon (1999). Para uma reviso das interpretaes sobre a expanso do sufrgio na Inglaterra, consultar Conacher (1971).

    6 Os pases citados como pertencendo ao Noroeste so os mesmos que trilharam a rota clssica de Barrington Moore Jr.

    7 Manin apresenta uma caracterizao mais complexa. So quatro os traos distintivos do governo representativo: seleo dos governantes por eleies dentro de intervalos regulares; independncia relativa dos governantes diante dos eleitores; liberdade da opinio pblica e o carter pblico das decises.

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    8 Na Inglaterra, as normas e efeitos prticos contribuam decisivamente para assegurar a distino. Do ponto de vista prtico pesavam os custos eleitorais que ficavam a cargo dos candidatos.

    9 Wanderley Guilherme dos Santos (2013, p. 13) chama ateno para a ambiguidade que marca a anlise dos governos oligrquicos, vistos ora como antidemocrticos ora como protodemocrticos.

    10 Cabe observar: o termo democratizao implica a suposio de um processo evolutivo em que os sistemas polticos se tornam mais democrticos com o tempo.

    11 A distino pases desenvolvidos/subdesenvolvidos caiu em desuso em funo de suas conotaes evolucionistas. O tratamento em separado como duas realidades diversas persiste, dando lugar a verdadeiros malabarismos tipolgicos para distinguir as trajetrias dspares. A Amrica Latina pode ser mais facilmente delimitada, por critrios histricos e geogrficos, que o grupo contrastante. Para no incorrer neste tipo de erro, optei por elencar os casos. No fcil encontrar um critrio que coloque Inglaterra, Frana e Estados Unidos em um mesmo grupo.

    12 Ter o direito ao voto no implica ter as mesmas chances de exercer o poder. Esta a desigualdade fundamental implicada pela adoo do mtodo eleitoral. A indistino que caracterizaria a democracia, a igualdade entre sditos e soberanos no obtida. Por isto mesmo, o sorteio o mtodo de seleo de lderes associada democracia.

    13 Rivera (2000) nota que a reconstituio da histria poltico-institucional da regio, invariavelmente, atribui realidade social inspita todas as dificuldades e tropeos do governo representativo. O modelo institucional, assim, absolvido, como se seus criadores tivessem formulado as respostas para todas as vicissitudes que enfrentaria. O modelo estaria pronto para ser aplicado. Se falha, a culpa do usurio. O corolrio desta viso a ideia da transplantao. O modelo teria sido concebido tendo em vista uma realidade social diversa, mais igualitria, na qual, quando implantado, teria funcionado sem maiores problemas.

    14 A traduo de todas as citaes do trabalho de Hofstadter so minhas.

    15 A passagem a seguinte: I never submitted the whole system of my opinions to the creed of any party of men whatever, in religion, in philosophy, in politics, or in anything else, where I was capable of thinking for myself. Such an addiction is the last degradation of a free and moral agent. If I could not go to heaven but with a party, I would not go there at all. Thomas Jefferson to Francis Hopkinson, in Writings of Thomas Jefferson, Memorial Editon, Lipscomb and Bergh Editors, Washington DC, Vol. 7 pag 300.

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