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  • Mrio de Andrade e a Msica Brasileira

    Amaldo Daraya Contier

    1. Pio"Arrasta a sia no choOh!; pio!Rodeia, pio!Rodeia, pio!"

    Paraba

    2. Lundu"Ha treis coisa nesse mundoRim para quem o fiz: home que joga e bebe,Mul que erra uma veiz,Cachorro que pega bode:Coitadinho deles.treis!"

    Rio Grande do Norte

    Mrio de Andrade defendia a pesquisa do folclore como a principalfonte temtica e tcnica do compositor erudito preocupado com acriao de uma msica nacionalista e brasileira, durante as dcadas de1920 e 30.

    O projeto de. Mrio de Andrade explicitou-se na sua poesia"Paulicia Desvairada", no "Prefcio Interessantssimo" (sons e pa-lavras). e n'A Escrava que no era Isaura (traos futuristas enacionalistas). O programa doutrinrio e programtico sobre aconstruo do discurso a respeito da nacionalizao da msica noBrasilfoi defendido pelo autor deMacunama nos seguintes textos: O ensaiosobreamsica brasileira;CompndiodeHistriadaMsica;/ntroduoEstticaMusical;Evoluo social damsica brasileira (1939);o textode coloraes polticas para a pera Caf;OBanquete 1_ dilogostensosvivenciados pelaspersonagens SarahLight (mecenas);Janjo (compositor

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    nacionalista); Pastor Fido (jornalista); Siomara Ponga (cantora eruditapresa a um repertriocIssico e tradicional). e Flix de Cima (burocrata"fascista", figura t pica do intelectual "incompetente" cooptado . peloEstado Novo); artigos editados no Msica, doce msica; criticaspublicadas no rodap semanal da Folha da Manh, sob o ttulo de "Omundo musical" (incios dos anos 40). '.

    O enaltecimento da cultura popular pelos modernistas, como pontonodal do programa nacionalista no campo da Arte Culta, apresenta ummatiz de natureza neo-romntica.

    A partir dos fins do sculo XVIII e durante o sculo XIX, a cultura.popular tomou-se uma temtica signficativapara os intelectuais alemes,ingleses, finlandeses, hngaros, srvios, russos, entre outros. De 1774 a1798, 1.G. Herder compilou uma srie de caries populares entoadaspelos camponeses, em sua obra Volkslieder.Gs italianos identificavamessas canes atravs da expresso cantipopolari; os russos, de narodyepesni; e Mrio de Andrade, Renato Almeida, Luciano Gallet, LorenzoFernandez, de "canes populares".

    A pesquisa da cultura popular como o inconsciente coletivo daNao aflorou nas obras dos irmos Grimrn. Num ensaio sobre oNtbelungenlied, Jakob Grimm observou que o autor desses poemas eraannimo ou desconhecido, ... como usual em todos os poemasnacionais e assim deve ser, porque eles pertencem a todo o povo ..?

    Os pressupostos metodolgicos e tericos da produomusicolgica, na rea da pesquisa folclrica no Brasil, baseavam-se nostrabalhos dos intelectuais alemes: Curt Sachs e Hornsbostel. Emespecial, nas coletas realizadas por Mrio de Andrade, Renato Almeidae Oneyda Alvarenga. Os estudos destes intelectuais brasileiros sobre obumba-meu-boi, cheganas demarujos, cantigas infantis, fundamentavam-se nos "mtodos" difusionistas e evolucionistas da chamada "Escola deBerlim".

    Mrio de Andrade, na qualidade de diretor do DepartamentoMunicipal de Cultura de So Paulo, iniciou a pesquisa "cientfica" dofolclore no Brasil, conforme declaraes de Renato Almeida'. Patrocinoua ida de uma misso de pesquisadores ao Nordeste e Norte do Pas em1938,encarregadaderegistaremdiscos(12rotaes)ofolcloremusical:foram coletados689 objetos; tiradas 751 fotografias e 1.295 fonogramas,

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    alm de alguns filmes. Esse material foi gravado em 115 discos,acompanhados de livros sobre as temticas sonoras coletadas - Xang,Tambor-de-Minae Tambor-de-Crioulo, Catimb, Babassu, Cheganade Marujos e Bumba-meu-boi. Foram editados dois volumes especiaisdasrieArquivoFolclrico: lO( ... )MelodiasRegistadasporMeiosNo-Mecnicos (570 melodias); 2(...)Catlogollustradodobduseufolclonco(275 fotos, notas explicativas, ndices do material). '". Trata-se de umlabor que completa a obra de Mrio de Andrade e honra o Folclorebrasileiro, atravs do esforo pertinaz de Oneyda Alvarenga que dirigea Discoteca Musical de So Paulo, com clara inteligncia e seguraorientao. Enquanto no se criar um rgo capaz, tcnica efinanceiramente, de efetivar o levantamento do nosso folclore, a pesquisacontinuar precria, dependendo apenas de boa vontade e sofrendo ainvaso constante do apressado amadorismo" 4. Esse enaltecimento dotrabalho de Mrio de Andrade e de sua equipe, realizado em 1938, foiescrito por Renato Almeida em 1957, na sua obra Inteligncia dofolclore ...

    No campo musical, as divergncias entre Mrio de Andrade,Renato Almeida, Cmara Cascudo, Rossini Tavares de Lima, BarrozoNeto, Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, LucianoGallet, entre outros intelectuais de tendncias integralistas, eram muitopontuais, sem nenhum confronto terico-metodolgico ou poltico, deuma natureza polmica ou contundente. Por essa razo, os "erros"apontados por Mrio de Andrade na marginlia da primeira edio daHistria da msica brasileira, de Renato Alrneida (1926), restringiam-se a "informaes" incompletas ou anlises muito "fechadas" em tornoda "riqueza" singular da musicalidade do "povo brasileiro".

    Para Mrio de Andrade, o 7 de setembro de 1822 representou umgolpe instaurado pelas elites contra o "povo". E, por esse motivo, oromantismo musical internalizado nas "falas" desse povo foi cercadopel. elite intelectual, presa imitao de "modelos europeus". Mrioacreditava que o romantismo, preso a um "inconsciente coletivo",representava, nas dcadas de 1820 e 30, uma revolta contra o artificialismodas concepes estticas das elites do Imprio. E, paradoxalmente,devido criao de um Estado como urna figura de fico, manteve-seo silncio desse povo at o momento daimploso do projeto republicano

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    e darwinista, defendido pelos intelectuais da Belle poque carioca(1889-1914): " ... o samba a msica do carnaval por excelncia e noseu movimento voluptuoso e febril h toda a nossa alegria, vindo osmotivos de melancolia encobertos sempre em sarcasmos que evitam atristeza. Um cabedal enorme de folk-lore existe nos seus versosdesordenados, onde muito verteu a sabedoria popular, deixandointacta a sensibilidade nativa. Agora que o esprito moderno, libertandoa arte brasileira da imitao e do passadismo, procura integr-Ia naterra, onde esto as fontes inspiradoras que a cultura universalizar,todos esse motivos ardentes do canto popular serviro para a grandeconstruo de nossa arte" 5.

    Essa "revolta popular" no campo cultural, mantida no anonimatodurante um sculo (1822-1922), conforme periodizao e concepoteleolgica da Histria defendida por Mrio e Renato, deveria serdescoberta pelos msicos modemistas atravs de uma cruzada em proldo "resgate" dos mais diversos tipos de saberes populares. Por essarazo, o "novo" a ser incorporado pela vanguarda artstica e nacionalistadeveria partir de uma retomada das "lies do passado", internalizadasno inconsciente coletivo do "povo brasileiro".

    A busca utpica do "som nacional" baseava-se numa concepoevolucionista da Histria, ou seja, o inicio ou o "marco zero" daconstruo do projeto modernista na msica deveria iniciar-se nos anos20. O compositor interessado nesse projeto era obrigado a "vencer" ou"galgar" uma srie de etapas ou fases, at alcanar um "momento"histrico, caracterizado pelo surgimento de uma Arte Pura, desinteressadae esteticamente livre, tendo como paradigma uma lio do "passado":o sculo XVIII europeu: " ... assim, pois, o sculo XVIII o perodoclssico da msica. O que caracteriza o classicismo dele ter atingido,como nenhum outro perodo antes dele, a Msica Pura, isto : a msicaque no tem outra significao mais do que ser msica; que comove emalegria ou tristeza pela boniteza das formas, pela boniteza dos elementossonoros, pela fora dinamognica, pela perfeio da tcnica e equilbriodo todo. Nos resta uma verificao importante afazer. O perodo clssico o perodo mais fecundo em compositores admirveis. Mesmo quandoa gente se limita a estudar os compositores menores, espanta a riquezaexcepcional de qualidades musicais desses autores. O sculoXVIII um

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    tempo em que todo o msico escrevia bem! 6. Porm no que tivessemais msicos bons nessa poca que entre os polifonistas do quinhentismoou os monistas do sculo XIX romntico. O que faz essa gente do sculoXVllI parecer mais numerosa e excepcional, ter o classicismoequilibrado enfim o conceito esttico da msica com a realidade doselementos sonoros e o efeito deles no organismo humano. No so oshomens do sculo mais geniais que os dos outros sculos. A msica quese tornara mais perfeita e obrigava os compositores a uma maiorperfeio. Ao passo que os preconceitos e falsificaes estticas damsica romntica diminuem o valor, irregularizam muito a produomusical do sculo XIX; os compositores menores do Romantismo nosparecem, quando no insuportveis, no geral destitudos de interesse" 7.

    Era imprescind vel, portanto, criar uma Arte Pura brasileira, tendocomo fonte de inspirao o folclore. Paradoxalmente, consoante RenatoAlmeida eMrio de Andrade, o romantismo musical era uma "inveno"do povo brasileiro, antes de sua chegada oficial na literatura, em 1830.Os cantos folclricos j denotavam um "irracionalismo impetuoso",opondo-se aos sistemas "fechados" e "racionais" do iluminismofrancs. Os matizes romnticos da cultura popular revelavam o cartermelanclico e "rebelde" do povo brasileiro. A tristeza, a melancolia,internalizadas no "povo", de acordo com Renato Almeida,harmonizavam-se com a natureza "exuberante" e "dominadora".Assim, "... a obra romntica, portanto, no era uma imitao domovimento europeu, mas um impulso do nosso esprito, o destinohistrico que cumpramos" 8.

    Para os modernistas, era fundamental retomar essas "falas"populares, "sufocadas" pela elite intelectual e poltica do Imprio e dosprimeiros anos da Repblica. Por que? O "fato" folclrico representavaum documento histrico verdadeiro e inquestionvel, sob o ponto devista da interpretao artstica. Competia ao intelectual modernistaresgatar essa verdade: " ...uma das manifestaes mais caractersticas damsica popular brasileira so as nossas danas dramticas. Nisso o povobrasileiro evolucionou bem sobre as raas que nos originaram e as outrasformaes nacionais da Amrica. Possumos um grupo numeroso debailados, todos eles providos de maior ou menor entrecho dramtico,textos, msicas e danas prprias ..." 9.De acordo com essa "interpretao"

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    da Histria do Brasil, o romantismo, sob a ptica das camadas populares,no incidia num mimetismo dos "modelos" europeus (G. Verdi ouWagner).

    A transfigurao dessa ampla documentao folclrica a serconcretizada pelos compositores presos a uma Escola (sistematizaode princ pios tcnico-estticos), dar -se-ia somente com o surgimento deum rapsodo que reproduzisse o ritmo brasileiro como smbolo daconquista da terra. A partir dessa interpretao da Histria, CarlosGomes (compositor do sculo XIX), devido ao "divrcio" entre elitee povo, acabou sendo "prejudicado" sob o ponto de vista esttico, poisfoi "obrigado" a " ... desprezar as vozes da terra" 10. De um lado, n'OGuarani de Jos de Alencar, era possvel, conforme Renato Almeida,distinguir com nitidez a diferena entre linguagens utilizadas pelos ndiose pelos brancos; de outro, n'O Guarani, pera de Carlos Gomes, oscantos dos ndios fundamentavam-se nas mesmas modulaes dosistema tonal e das rias italianas, negando, assim, a prpria Histria, ouseja, as msicas dos indgenas brasileiros que refletiam uma "liberdadeaudaciosa", smbolo das "nossas selvas".

    Eo "povo" brasileiro eraformado, basicamente, pelos portugueses,afiicanos e amerndios. somente a partir dessas "trs bases tnicas"que o "povo" vinha celebrando " ... secularmente em suas danasdramticas" ii.Os chamados "fatos histricos oficiais" denossaHistria,conforme uma viso positivista de Mrio de Andrade, nunca foramutilizados como "temas" nas mais diversas manifestaes folclricas noBrasil; " ...nem as tragdias da colonizao que durou quase dois sculos,nem os dramas da catequese, nem a prpria volpia aventureira dobandeirismo ( ...) nem mesmo a Guerra do Paraguai que vincou fundo amemria coletiva e at agora freqenta o nosso verso cantado: nenhumadana dramtica celebra esses feitos" iz

    De acordo com essa concepo de memria e deHistria13, Mriode Andrade, Renato Almeida, Lorenzo Fernandez, Luciano Galletdefiniram a vanguarda modernista e nacionalista na msica como umresgate dos temas da cultura popular. Esses intelectuais almejavam, emsntese, criar uma Escola Nacionalista de composio, de naturezahegemnica, e propiciar uma ruptura da cultura brasileira erudita em faceda " ... subservincia da Europa" 14 ou da " ... perturbao das escolas

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    estrangeiras" 15. A nfase atribuda cano folclrica" induziu-os aprivilegiar a concepo do Brasil como uma "Nao" essencialmenteruralista. Paradoxalmente, esse imaginrio envolveu intelectuais dosgrandes centros urbanos - So Paulo e Rio de Janeiro - nas dcadas de30, 40, 50 e 60, que participaram de cruzadas em prol da busca das"falas" do "homem bom e rstico" nos Estados de Gois, Mato Grosso,Amazonas, Rio Grande do Norte, Paraba, Pemambuco, Bahia, interiorde So Paulo, Minas Gerais, entre outros.

    Entretanto, sob o ponto de vista da memria histrica, na dcadade 1920, consoante Mrio de Andrade, entre outros modernistas, nohavia aflorado um grupo de compositores interessados pelo "nacional"e pelo "popular" na criao de uma Arte Culta: " ... a nossa msica notem filiaes no Brasil, no temos mestres, nem discpulos" 17.Utopicamente, os modernistas admitiam que somente no momento dosurgimento de uma Escola, os " ... nossos msicos" tomar-se-iam mais"livres" e "desabusados", "... donos de sua arte, dominando asconvenes e exaltando o som na prodigiosa sinfonia da terra" 18.

    Para Mrio de Andrade e Renato Almeida, somente Heitor Villa-Lobos, durante os anos 20, j havia iniciado, em algumas obras, essa"independncia cultural" do Brasil em face dos plos musicais europeus:" ... a riqueza dos seus ritmos, as dissonncias, o colorido violento ecaprichoso, a imagtica fecunda, a ironia amarga e sardnica, um acentoelegaco que aparece sempre sob rnilformas, acentuam os caracteristicosda alma brasileira, que freme nessa msica, de uma idealidade inquieta... [Alm disso], Villa-Lobos procura universalizar o elemento bsico damsica, que o canto popular, sem tra-lo, mas despertando o que neleh de humano C..). A sua msica se pode chamar de brasileira, porquenela tudo marca o ambiente em que se cria, embora sob uma forteinfluncia cultural. Quando julgamos que se deve fazer arte brasileira,isso na msica, na pintura, na literatura, na escultura e na arquitetura,nopretendemos que o seu caracteristico estej a somente no motivo brasileiro,mas em sentir como brasileiro" 19.

    Conforme a "periodizao" da msica brasileira proposta porMrio de Andrade (de 1500 a 1920), as obras dos compositores eramfundamentalmente "europias", mesmo entre os nacionalistas" ... quese interessaram pela representao musical da coisa brasileira" 20.

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    A criao de um plo musical no Brasil durante o aps-guerra(1918) prendia-se concepo spenceriana ou evolucionista da Histria.Para Mrio de Andrade, num texto divulgado em 193921, a msica noBrasil percorreu os seguintes "momentos":

    1)"Deus" (1500-1822.- peas musicais introduzi das no Brasilpelos jesutas e utilizadas na catequizao dos ndios; sem nenhumaimportncia tcnica ou esttica, apenas cumpriam um objetivo socialimposto pela Igreja;

    . 2)"Amor" (1822-1918): o "golpe da independncia" (7 desetembro de 1822), instaurado pela elite burguesa, contribuiu para oadvento detemas profanos nas peras, canes (modinhas, lundus). Esse"momento histrico" tambm foi caracterizado por Mrio de Andradecomo a fase do "internacionalisrno musical", ou seja, obras escritaspejos compositores que procuravam imitar os "modelos" europeus:Liszt; Verdi ou Wagner;

    3)"Nacionalidade" (a partir de 1918): fase iniciada por H. Villa-Lobos, no momento em que este compositor "abandonava conscientee sistematicamente o seu intemacionalismo afrancesado" (22). ConformeMrio, de 1918 a 1939 surgiram compositores que procuravam inspirar-se nos temas das culturas populares, como por exemplo: Luciano Gallet,Lorenzo Femandez, Francisco Braga, Barrozo Neto, Francisco Mignone,Camargo Guarnieri, Frutuoso Viana, Radams Gnatalli e H. Villa-Lobos. O programa em prol da nacionalizao da msica fundamentava-se, em sntese, no princpio do "progresso" e da "evoluo" daHistria: " ... de todas as fases por que tem passado a msica brasileiraem sua evoluo, a mais empolgante sem dvida esta contempornea.Todas as outras foram mais ou menos inconscientes, movidas pelasforas desumanas e fatais da vida, ao passo que a atual, embora tambmnecessria por ser um degrau evolutivo de cultura, tem a sua necessidadedirigida e torcida pela vontade, pelo raciocnio e pelas deciseshumanas ..." 23;

    4)"Fase cultural" ou utpica: " ... o movimento modernista,eminentemente critico por natureza, parecia implicar numa grandeevoluo ulterior de cultura, mas tal no se deu. Os novos noagentaram o tranco. E o "despoliciamento intelectual>' do pas, deeditores,jornais e revistas, especialmente, a camaradagem da critica to

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    madrinha como comodista, permitiu esse estado assombroso de coisas,cujo menor defeito ainda a superstio nacional do talento (...) Mas, afalta geral de tcnica do compositor brasileiro principalmente determinadapela nossa situao econmica" 25.

    Esse "momento" do surgimento de um possvel insight,verdadeiramente nacionalista, somente ocorreria numa "conjunturahistrica" muito especfica: a) o compositor deveria dominar todos osconhecimentos tcnico-estticos da linguagem musical neoclssica e deumprogramaneo-romntico, sob omatiztemtico; b) o artista abandonariaa pesquisa do folclore em prol da construo de um discurso sonorocomprometido com o "cultural" ou "nacional", conforme a utilizaode uma morfologia sui generis; c) o afloramento de um forte"policiamento" de criticos "competentes" (profundos conhecedoresda esttica modernista no campo da msica); de professores e intrpretescomprometidos com a Arte Pura e "nacionalmente desinteressada";d) o "desaparecimento" de burocratas "med ocres" e "incompetentes",que atravs da camaradagem, do clientelismo e fisiologismo vinhampromovendo uma srie de artistas, totalmente "alienados", em face dacriao de uma Escola Nacionalista de Composio.

    Por esses motivos, Mrio de Andrade, em algumas de suas crticaspublicadasnos jornais, procurava apontar os "descaminhos" de algunscompositores que vinham praticando "desvios", que poderiam colocarem xeque o projeto modernista. guisa de exemplificao, Mrio deAndrade, em sua critica a respeito da pea musical Toada de CamargoGuarnieri, .em 7 de setembro de 1930, afirmava: " e me pareceincontestvel que Camargo Guarnieri est se repetindo criou pra seuuso pessoal uma linha meldica mole, bem gostosa, sada das toadascaipiras do centro do Brasil; sistematizou certos ritmos sincopados dosmais artisticamente simplrios que o Brasil fornece (...). E os seusprocessos so tanto mais perigosos que no contribuem para lhe dar umafisionomia musical perfeitamente caracterstica ( ...). Porm cedo aindapra ele repousar em simesmo. Tanto mais que est repousando no vago,pois ainda no se achou. E si falo desta maneira que porque CamargoGuarnieri tendo todas as esperanas, e o considero o artista maisimportante da sua gerao, aparecido at agora" 26. Na realidade, acano folclrica deveria ser antropofagicamente deglutida pelo

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    compositor, evitando-se, assim, possveis pastichos do "material"folclrico.

    Em 1927, Mrio de Andrade j alertava para a inexistncia deestudos rigorosos (cientficos) do folclore no Brasil: " ... uma ausnciavergonhosa", de um lado, e, de outro, advertia que a simplesfundamentao nos temas folclricos nunca "transformaria" um artistanum "ser brasileiro": =: um msico brasileiro que fizesse msicaestilizando documentos puramente braslicos se tornaria extico mesmodentro do Brasil" 27.

    Os modernistas, em linhas gerais, consideravam o "povo" comoo nico everdadeiro guardio da nacionalidade. Competia ao compositorredescobrir, cultural e musicalmente, as "falas populares", que haviamsido cerceadas e censuradas pelas elitesa partir do 7 de setembro de 1822.Entretanto, as experincias "isoladas" empreendidas por AlexandreLevy, Alberto Nepomuceno ou Emesto Nazareth na buscade inspiraonas canes folclricas, inseri das esporadicamente em algumas de suasobras, no denotavam, conforme Mrio de Andrade, um nacionalismoesttico capaz de aglutinar todos os compositores em torno de umadoutrina hegemnica, calcada nas "falas" do "povo". Nos anos 20,apesar das tentativas de H. VilIa-Lobos, Mrio advertia sobre a ausnciade uma poss vel passagem da cano popular cultivada pelos "rapsodosandantes", para a "eternizao dum Homero que a genializasse".

    Essas oscilaes, vivenciadas pelos compositores brasileiros, entrea "descoberta" de uma arte intemalizada no "povo" e a imitao de"esquemas" europeus, foram exlicitadas com nitidez por RenatoAlmeida, em 1926: "". O sr. Villa-Lobos faz da msica, da sua msica,uma interpretao do fenmeno brasileiro, nas suas vozes de exaltaoe melancolia, de pavor e doura. No as quis imerpretar, traduziu-asapenas e criou, porque o artista um transfigurador ..." :8.

    Entretanto, os modernistas acreditavam na instaurao de umprojeto educacional, de natureza pragmtica, capaz de favorecer oafloramento deumaculturanacional emusical verdadeiramente brasileiras:"". no entretanto, ainda no ternos uma formao de cultura musicalperfeita e a educao do nosso gosto no est aprimorado. H aperturbao do estrangeirismo, que um elemento de corrupo dignode nota, e as preocupaes infecundas de escolas, que queremos

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    transportar para o nosso meio, alheio a tais quisilias. Mas, atravs detodos os entraves, a msica no Brasil se liberta, buscando harmonizar asvozes da terra, o ritmo criador e fecundo, com o influxo de cultura, paraa criao de uma arte autnoma, que traduza todas as nsias do espritomoderno brasileiro ( ....) que se dever criar ainda um esforo formidvel,mas qualquer que ele seja no desprezar o que fez o passado, e, muitomenos, a agitao moderna buscando re-integrar a msica nas origensda terra e lig-Ia pela cultura ao esprito universal"

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    permanentes" 30.N' O Ensaio sobre a msica brasileira, Mrio apresentava o seu

    manifesto programtico e doutrinrio sobre a construo do discursomusical a ser concretizado, futuramente, pelos compositores. Numaprimeira fase, o "nacional" restringia-se pesquisa do folclore, almejando-se recuperar a "Nao" inconscientemente intemalizada no "povo".Sob esse matiz, Mrio resgatava o folclore como uma sobrevivncia doprimitivo. Este, durante a primeira fase do modernismo musical,representava uma funo social e no esttica. Sob esse ngulo, Mrioexplicitava sua divergncia em face das idias de Oswald de Andrade,esboadas noManifesto do Pau-Brasil. O autor d' O Banquete criticavao lirismo oswaldiano como o smbolo deuma "brincadeira desabusada" ."(. ..) A deformao empregada pelo paulista no ritualiza nada, sdestri pelo ridculo. Nas idias que expe no tem idealismo nenhum.No tem magia. No se confunde com a prtica. arte desinteressada.Pois toda arte socialmente primitiva que nem a nossa, arte social, tribal,religiosa, comemorativa. arte de circunstncia. interessada. Todaarte exclusivamente artstica e desinteressante no tem cabimento numafase de construo. intrinsecamente individualista ( ...) O critrio atualda Msica Brasileira deve ser no filosfico mas social. Deve ser umcritrio de combate ..." 31.

    Implicitamente, a recuperao da cultura popular como fonte dereflexo do artista em dito na busca da criao de uma Arte Nacional,significava uma profunda critica s elites intelectuais da Belle poque(Olavo Bilac, Rui Barbosa, Oscar Guanabarino, Coelho Netto). Nasduas primeiras dcadas do sculo xx, atravs de uma reurbanizao dacidade do Rio de Janeiro e do ideal darwinista, uma faco da eliterepublicana e intelectual elegeu Paris como a capital da modernidade.E, paralelamente, procurava adaptar nossa realidade social, posturasde coloraes racistas, antidemocrticas e altamente preconceituosas emface das culturas populares, vistas como o smbolo da "barbrie", doatraso, da tradio. Por essa razo, os donos do poder reprimiram, comviolncia, atravs deforas policiais, as capoeiras, os batuques de negros,os participantes do bumba-meu-boi.

    A construo da Avenida Central, por exemplo, significava para ossimpatizantes de Pereira Passos, " ... a fantasia de Civilizao (...) Pois,

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    as reformas, caso indicassem que os cariocas estavam a caminho dacivilizao pelo atalho da europeizao, tambm significavamnecessariamente uma negao, ofinal de muito o que era efetivamentebrasileiro 32. Abraar a Civilizaosignificavadeixar para trs aquilo quemuitos na elite carioca viam como um passado colonial atrasado, econdenar os aspectos raciais e culturais da realidade carioca que a eliteassociava quele passado" 33.

    Entretanto, apesar dessa ideologia do "progresso", os bilontrasou agente sociais dominados da cidade do Rio de Janeiro, entregavam-sesmaisdiversasmanifestaesculturais:grupos dechores; danarinosdemaxixes;batuques praticados nos fundos da Casa da TiaCiata; festasreligiosas da Penha e da Glria; os entrudos; os ranchos carnavalescos.Subterraneamente, foram surgindo, com intensidade, manifestaesligadas msica popular, projetando os nomes dePixinguinha,Anacletode Medeiros; Donga; Ernesto Nazareth; Chiquinha Gonzaga ...

    Paradoxalmente, osmodernistas consideravam ascanesurbanascomo o smbolo do "popularesco", devido a um intenso dilogointernacional entre jazz/choro/ragtime, que negava a "pureza" dofolclore como paradigma de uma verdade histrica: "Brasil rural". Osucesso da tourne de Pixinguinha no cabar Scherazade em Paris(1922), durante seismeses (momento em que passou a tocar saxofone,sob a influncia do jazz); da gravao do seu chorinho "Urubu" emBuenos Aires (fins de 1922); o afloramento de centenas de msicasgravadas; o surgimento dos artistas do rdio, durante os anos 30,significaram para os modernistas a negao do "nacional" e do"popular" na msica brasileira.

    Os olhares eos ouvidos dosmodernistas resgataram algumaspeasde Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Noel Rosa,somente nos trechos (temticos e tcnicos) passveis de serem"aproveitados" pelo artista culto ou erudito.No entanto, esse novo tipode preconceito - Arte Culta versus msica popularesca (oriunda dosgrandes centros urbanos.- implica uma pesquisa a ser concretizadafuturamente.

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    Notas

    L Mrio de ANDRADE. O Ensaio sobre a msica brasileira. So Paulo, LMartins Editora, 1962.

    ________ . Compndio sobre a msica brasileira. So Paulo,Chiarato, 1929.

    ________ . Aspectos da msica brasileira. 2a. ed., So Paulo, LMartins Editora, 1975.

    ________ . O Banquete. So Paulo, Duas Cidades, 1977.________ . Pequena histria da msica. 5a. ed., So Paulo, L

    Martins Editora, 1'958.________ . Macunaima. So Paulo, L Martins Editora, 1962.

    _______ . "Prefcio Interessantssimo". In: Paulicia Desvai-rada. 6a. ed., So Paulo, L Martins Editora, 1980, pp. 193-275.

    ________ . "A escrava que no Isaura". In: Obra imatura. 3a.ed., So Paulo, L Martins Editora/Itatiaia, 1980, pp. 52-64.

    2. Apud Peter BURKE, Cultura popular na Idade Moderna. So Paulo,Companhia das Letras, 1989, p. 32.

    3. Renato ALMEIDA, Inteligncia do folclore. Rio de Janeiro, Livros dePortugal, 1957, p. 233.

    4. Id., Loc. cit.5. Idem, Histria da msica brasileira. Riode Janeiro, Briguiet, 1926, pp. 54-

    55.6. Grifo nosso.7. Mrio de ANDRADE, Pequena histria da msica. Op. ct., p . .111.8. Renato ALMEIDA, Histria da msica brasileira. Op, ct., p. 82.9. Mrio de ANDRADE, Danas dramticas do Brasil. 2a. ed., Belo Hori-

    zonte, Itatiaia, 1982, (1):23.10. Renato ALMEIDA, Histria da msica brasileira. Op. cit., p. 87.11. Mrio de ANDRADE, Danas dramticas do Brasil. Op. cit., p. 23.12. Idem, Loc. ct,13. " ... A memria histrica filtra, acumula, capitaliza e transmite, a memria

    coletiva conserva por um momento a recordao de uma experinciaintransmissvel, apaga e recompe a seu gosto, em funo das necessidadesdo momento, das leis do imaginrio e do retomo dos recalcamentos." Narealidade, a concepo de Mrio de Andrade sobre a Histria incide numaconcepo de "memria coletiva", conforme anlises realizadas porPierre Nora em seu artigo "Memria coletiva". ln: A nova histria.Coimbra, L Almedina, 1990, pp. 451-4.

    14. Mrio de ANDRADE, Pequena histria da msica. Op. cit., p. 162.15. Renato ALMEIDA, Histria da msica brasileira. Op. CiL, p. 122.

  • Revista Msica, So Paulo, v.5, n. 1:33 - 47 maio 1994 47

    16. O conceito de "msica" defendido pelos modernistas e pelos folcloristasno perodo de 1920 a 60 (Mrio de Andrade, Luciano Gallet, CmaraCascudo, Renato Almeida, Rossini Tavares de Lima) restringiu-se a trsnveis: 10) msica popular ou folclrica: transmitida oralmente numadeterminada "evoluo histrica" e inserida no mbito de uma comunida-de social especfica; 20) msica popularesca: expresso sempre empre-gada conforme um sentido pejorativo, negativo. A cano urbana eraconsiderada "suspeita" pelos folcloristas, devido sua insero no binmiomercado / consumo; 30) msica erudita: smbolo da chamada arte cultaou "sria", praticada somente por artistas considerados profundos conhe-cedores da tcnica de composio.

    17. Renato ALMEIDA, Histria da msica brasileira. Op. cit., p. 123.18. Idem, ibidem, p. 160.19. Idem, ibidem, pp. 170-171.20. Mrio de ANDRADE, Pequena histria da msica. Op. cit., p. 162.21. Idem, "Evoluo social da msica brasileira". In: Aspectos da msica

    brasileira. Op. cito22. Idem, ibidem, p. 32.23. Idem, ibidem, p. 33.24. Grifo nosso.25. Mrio de ANDRADE, "Evoluo socia!...". Op. cit., p. 35.26. Idem, "Compositores paulistas". In: Dirio Nacional. So Paulo, 7/9/

    1930, p. 7.27. Idem, "Canes brasileiras". 10: Dirio Nacional. So Paulo, 22/12/1927.28. Renato ALMEIDA, Histria da msica brasileira. Op. cit., pp. 173-174.

    Grifo nosso.29. Idem, ibidem, pp. 220-221.30. Mrio de ANDRADE, O ensaio sobre a msica brasileira. Op. cit., pp. 17-

    19; 70-72. Grifo nosso.31. Idem, ibidem, pp. 18-19.32. Grifo nosso.33. Jeffrey NEEDEL, Belle poque Tropical. So Paulo, Companhia das

    Letras, 1993,p. 70.

    Arnaldo Contier, historiador e musiclogo, Professor associado -Departamento Histria da FFLCH-USP