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1 COMUNICAÇÃO E INDÚSTRIA AUDIOVISUAL Coordenação: Prof. Dr. João Guilherme Barone ([email protected]) SESSÃO I - OLHARES SOBRE O MERCADO 20 anos da Retomada: um olhar sobre o cinema contemporâneo brasileiro Vanessa Kalindra Labre de Oliveira Miriam de Souza Rossini Resumo Há vinte anos o cinema nacional superava sua pior crise. Como resultado de uma reestruturação em todos os setores da indústria cinematográfica, a Retomada marca um período de transição importante na história da sétima arte brasileira. Assim, partindo da Embrafilme e seu desmonte, objetiva-se com este trabalho mapear algumas das principais mudanças ocorridas no cinema nacional desde os anos 1990, de modo a problematizar o posicionamento e a organização de nossa indústria audiovisual na contemporaneidade. Palavras-Chaves: Cinema Nacional; Retomada; Pós-Retomada; Indústria Cinematográfica; Mercado. O cinema brasileiro já passou por diversos ciclos produtivos, fases estéticas e crises, e por isso mesmo tem aprendido historicamente a se recriar, a se reinventar. Um de seus principais ciclos ocorreu durante a atuação da Empresa Brasileira de Filme EMBRAFILME, órgão estatal que, após a extinção do Instituto Nacional do Cinema INC, em 1975, passou a centralizar as determinações em torno dos principais eixos do mercado. Fundada em 1969, durante o contexto de ditatura militar, representou uma mudança importante de postura do Estado em relação ao cinema nacional que até então se limitava a determinadas medidas no setor de exibição, através de políticas de cotas de tela. Entre 1969 e 1973, foram 80 produções brasileiras lançadas pela EMBRAFILME (AMANCIO, 2011) e embora seja uma época de censura, a indústria consegue se alimentar e ganhar espaço no mercado nacional. Como afirma Silva (2008), o market share alcançado durante seus anos de atuação chegou ao patamar dos 30%, ainda que estudos mais profundos sobre o período sejam dificultados em função da perda de materiais e dados sobre a empresa. Como sua base de fomento era o empréstimo, inicialmente tratou-se de investir em filmes de caráter mais comercial, capazes de cobrir seus custos alguns, inclusive, de teor erótico, como: O Doce esporte do sexo (Zelito Viana, 1971), Eu transo, ela transa (Pedro Camargo, 1972) e Cassy Jones, o magnífico sedutor (Luís Sergio Person, 1972). A partir de 1973, em outra fase da empresa, ela passou a atuar como um pilar de sustentação do projeto ideológico desenvolvido pelo governo militar para o Brasil e, em função disso, ampliou seu interesse e fomento para filmes com conteúdos históricos e baseados na literatura nacional, revelando uma ambição de integração político-cultural.

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COMUNICAÇÃO E INDÚSTRIA AUDIOVISUAL

Coordenação: Prof. Dr. João Guilherme Barone ([email protected])

SESSÃO I - OLHARES SOBRE O MERCADO

20 anos da Retomada: um olhar sobre o cinema contemporâneo brasileiro

Vanessa Kalindra Labre de Oliveira

Miriam de Souza Rossini

Resumo

Há vinte anos o cinema nacional superava sua pior crise. Como resultado de uma

reestruturação em todos os setores da indústria cinematográfica, a Retomada marca um

período de transição importante na história da sétima arte brasileira. Assim, partindo da

Embrafilme e seu desmonte, objetiva-se com este trabalho mapear algumas das principais

mudanças ocorridas no cinema nacional desde os anos 1990, de modo a problematizar o

posicionamento e a organização de nossa indústria audiovisual na contemporaneidade.

Palavras-Chaves: Cinema Nacional; Retomada; Pós-Retomada; Indústria Cinematográfica;

Mercado.

O cinema brasileiro já passou por diversos ciclos produtivos, fases estéticas e crises, e por

isso mesmo tem aprendido historicamente a se recriar, a se reinventar. Um de seus

principais ciclos ocorreu durante a atuação da Empresa Brasileira de Filme –

EMBRAFILME, órgão estatal que, após a extinção do Instituto Nacional do Cinema – INC,

em 1975, passou a centralizar as determinações em torno dos principais eixos do mercado.

Fundada em 1969, durante o contexto de ditatura militar, representou uma mudança

importante de postura do Estado em relação ao cinema nacional – que até então se limitava

a determinadas medidas no setor de exibição, através de políticas de cotas de tela.

Entre 1969 e 1973, foram 80 produções brasileiras lançadas pela EMBRAFILME

(AMANCIO, 2011) e embora seja uma época de censura, a indústria consegue se alimentar

e ganhar espaço no mercado nacional. Como afirma Silva (2008), o market share alcançado

durante seus anos de atuação chegou ao patamar dos 30%, ainda que estudos mais

profundos sobre o período sejam dificultados em função da perda de materiais e dados

sobre a empresa.

Como sua base de fomento era o empréstimo, inicialmente tratou-se de investir em filmes

de caráter mais comercial, capazes de cobrir seus custos – alguns, inclusive, de teor erótico,

como: O Doce esporte do sexo (Zelito Viana, 1971), Eu transo, ela transa (Pedro Camargo,

1972) e Cassy Jones, o magnífico sedutor (Luís Sergio Person, 1972). A partir de 1973, em

outra fase da empresa, ela passou a atuar como um pilar de sustentação do projeto

ideológico desenvolvido pelo governo militar para o Brasil e, em função disso, ampliou seu

interesse e fomento para filmes com conteúdos históricos e baseados na literatura nacional,

revelando uma ambição de integração político-cultural.

2

Esse modelo entrou em crise na década de 1980, muito em função da transição política pela

qual passava o país, que, articulada à uma economia inflacionada e a uma tensão social em

relação ao futuro, entrava no período de democracia fazendo inúmeros ajustes. Em 1990

assume Fernando Collor de Mello, o primeiro presidente eleito com voto direto após o

regime de exceção. Sua curta trajetória política no cargo foi marcada por uma postura

neoliberal que, no campo cinematográfico, contribuiu ainda mais para a desestabilização do

mercado.

Nesse período, o governo rebaixou o Ministério da Cultura ao status de secretaria e

extinguiu importantes órgãos estatais que fomentavam e regulavam o cinema nacional,

como o Conselho Nacional de Cinema (Concine), a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB),

bem como a própria EMBRAFILME que, segundo Butcher (2005), já sofria com a

descapitalização e a descentralização do cinema na sociedade brasileira, em função da

popularização da televisão.

Após destituir o mercado de sua regulação e fiscalização, o campo audiovisual no Brasil

passou a ser estruturado pelo jogo de força política de seus agentes, cenário que privilegiou

a hegemonia dos produtos norte-americanos e fez desaparecer os filmes nacionais das

grandes telas. Entre os anos de 1990 e 1994, por exemplo, foram lançados apenas 29 filmes1

(GATTI, 2007), fazendo com que o cinema brasileiro saísse do imaginário popular da nação

(ORICCHIO, 2003)2. Essa prerrogativa só começa a ser alterada em 1995, quando 14 filmes

nacionais conseguiram ser lançados3, marcando com números de produção e de público o

período conhecido como a Retomada do cinema nacional.

Retomada

Os danos causados pelas ações de 1990 repercutiram em toda a década, fazendo com que o

cinema nacional precisasse se reinventar enquanto produto e processo de produção. Foi

necessário, também, forjar novas bases de apoio e financiamento para os realizadores.

Assim, diante das pressões políticas e da abertura do processo de impeachment, Collor

aprovou, em 1991, uma medida para remediar a situação da cultura brasileira: a Lei nº

8.313/91, chamada de Lei Rouanet – que agia a partir de diferentes políticas públicas, como

a instituição do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), formado pelo Fundo

Nacional de Cultura, o Incentivo Fiscal e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico

(BORGES, 2007).

Em 1992, Collor é destituído do cargo, assumindo o vice-presidente da república Itamar

Franco. Nesta época, a Lei Rouanet se somou à outra importante intervenção do Estado: a

Lei nº 8.685/93, chamada de Lei do Audiovisual, criada em 1993 e com enfoque

direcionado ao setor cinematográfico. Essas medidas legislativas foram as principais

responsáveis pela estruturação e recuperação do mercado cinematográfico nacional neste

1 Foram sete filmes nacionais lançados em 1990; oito em 1991; apenas três em 1992; quatro em 1993 e

sete em 1994.

2 Ressalta-se que a crise atingiu de maneira direta apenas a produção ficcional de longa-metragem, tendo

pouco ou quase nenhum resquício na produção de documentários, curtas-metragens, filmes publicitários e

programas de TV (BUTCHER, 2005)

3 Informação disponível em: http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/DadosMercado/2102-22052015.pdf,

acessado em novembro de 2015.

3

período pós-crise – enfatizando a dependência do cinema nacional para com o Estado

(BERNARDET, 2009).

Estimulando principalmente o setor de produção, instaura-se, pois, uma das principais

mudanças na política pública para o campo: um novo modo de financiamento promovido

pelo Estado. Enquanto que na época da EMBRAFILME os recursos eram destinados aos

cineastas de maneira direta, agora isso é feito, majoritariamente, de modo indireto através

destas leis de incentivo fiscal que permitem abatimentos ou isenção de tributos às empresas

que investirem em projetos audiovisuais.

A Retomada, portanto, teve suas bases fixadas a partir de 1991, mas se consolidou em

termos de produção e alcance de público em 1995, ano de lançamento do filme Carlota

Joaquina: princesa do Brazil, dirigido por Carla Camuratti considerado o marco inaugural

dessa fase. O filme ultrapassou a marca de um milhão de espectadores, recolocando, de

maneira atualizada, a necessidade de discutir sobre o mercado audiovisual brasileiro, bem

como sobre a nossa própria identidade nacional num panorama de globalização econômica

e de mundialização cultural.

Entre 1995 e 2000, a produção cresceu em volume e diversificou-se em gêneros e

narrativas, mas, basicamente, buscou-se um diálogo maior com o público e uma renovação

na estética audiovisual, processo que resultou em dois filmes indicados ao Oscar: O

quatrilho (Fábio Barreto, 1995), que concorreu à categoria de melhor filme estrangeiro, e

Central do Brasil (Walter Salles, 1998), indicado ao de Melhor Atriz, para Fernanda

Montenegro. A busca pelas raízes do país e do próprio cinema nacional, fez com que aquele

final de década explorasse, ainda, filmes com personagens em trânsito. Brasileiros partindo,

como em Terra estrangeira (Walter Salles, 1995) e estrangeiros chegando, como em For

All – O Trampolim da vitória (Buza Ferraz e Luiz Carlos Lacerda, 1998) foi uma forma de

buscar o diálogo, também, com públicos estrangeiros, o que impulsionou as coproduções na

década seguinte.

A mudança no setor é evidente, e aliada aos fomentos e às regulações estatais do período

teve como efeito a expansão do mercado, resultando, inclusive, na criação e fortalecimento

de inúmeras produtoras que alimentam desde então o audiovisual nacional. Segundo Borges

(2007), entre 1995 e 2005, por exemplo, a Ancine registrou um total de 162 empresas no

ramo, dentre elas, as mais relevantes – em termos de ritmo de produção e relação renda-

captação – são: Diler & Associados, Conspiração Filmes, Videofilmes Produções, LC

Barreto Produções, Casa de Cinema de Porto Alegre, Copacabana Filmes, O2 Filmes,

Renato Aragão Produções e a Globo Filmes – cuja criação só é possível entender dentro

desse contexto de mudanças em relação àquilo que se esperava do cinema nacional: além de

ser um bem cultural, passou-se a valorizar também sua função de bem de consumo.

É por isso que a década encerra com um filme que inicialmente foi produzido como

minissérie para a grade da emissora de televisão Rede Globo: O Auto da Compadecida,

dirigido por Guel Arraes. Tornando-se uma das maiores bilheterias da fase final da

Retomada, consagrou a entrada da maior emissora de televisão do país no campo

cinematográfico brasileiro, e a partir daí as bases do nosso cinema foram lentamente sendo

transformadas.

Embora grande parte da atuação da Globo Filmes no mercado seja realizando coproduções

em diferentes gêneros, sua marca tem sido relacionada de maneira muito forte às comédias,

por serem muitas vezes desdobramentos de programas da Rede Globo de Televisão e

utilizarem alguns de seus padrões linguísticos mais evidentes, como narrativa linear de

4

pouca ambiguidade e raccord, isto é, continuidade de tempo e espaço – trazendo, assim,

umas das particularidades para o campo audiovisual no período: a aproximação entre

televisão e cinema.

Ao longo dos anos, embora parcerias entre cinema e televisão tenham sido desenvolvidas,

foram sempre projetos isolados ou esporádicos. Por isso, em grande medida, os

profissionais da área reunidos no III Congresso Brasileiro de Cinema (CBC) – realizado em

julho de 2000 em Porto Alegre – solicitaram uma legislação para o setor articulando os dois

meios. Embora as iniciativas nesta direção tenham sido arquivadas 4 – em grande medida

pela pressão imposta pelo Grupo Globo –, os debates do III CBC deram aval para a criação,

em 2001, da Agência Nacional do Cinema – Ancine. Como órgão regulador do setor

cinematográfico brasileiro ela é responsável, dentre outras coisas, por promover a produção

nacional dentro e fora do país, contribuir com a distribuição e fiscalizar as normativas

concernentes à exibição.

Reestabelecido, pois, o mercado e o setor institucional, a fase da Retomada é finalmente

concluída em 2002, com o sucesso de público e de crítica de Cidade de Deus, filme de

Fernando Meirelles. A partir de então, o momento passa a ser marcado não mais por uma

lógica de estruturação, mas de consolidação e expansão de mercado – iniciando um novo

ciclo que, embora questionado conceitualmente, foi denominado de pós-Retomada

(ORICCHIO, 2003).

Pós-Retomada

A pós-Retomada se inicia em 2003, ano em que, de maneira atípica, conseguimos o melhor

índice de market share da história recente do cinema brasileiro: 21% da fatia de mercado.

Embora esse número nunca mais tenha sido alcançado – chegamos perto em 2010, com

19% –, tratou-se de um ano de efervescência e entusiasmo para o campo cinematográfico

nacional (FILME B, 2015). Assim, a produção nacional mostrou ser capaz de competir no

campo se forem dados os instrumentos de que necessita e, surpreendendo com blockbusters,

redefiniu um novo modelo de expectativa cultural para a sétima arte no Brasil.

Neste período, como reavalia Ismail Xavier5, o cinema nacional passa a centrar-se em três

principais eixos: (1) filmes que exploram a violência e a favela como espaço urbano de

aproximação com o real e seus efeitos de verdade; (2) filmes que dialogam com as questões

da migração, onde os personagens são, por diferentes motivos, levados a sair de sua cidade

ou país para encontrar aquilo de que necessitam – às vezes a si mesmos; e (3) filmes que

abordam o gênero da comédia, claramente dialogando com os códigos e as convenções

historicamente consolidados na cultura brasileira pela televisão.

O modo de financiamento foi alterado também. Enquanto a retomada se operacionalizou

majoritariamente através da Lei Rouanet, a Pós-Retomada é marcada pela Lei do

Audiovisual e pelo Fundo Setorial do Audiovisual – sendo este uma importante medida para

4 Foi o caso do projeto da Ancinav, que propunha a regulação de todo o campo audiovisual nacional, em

meados dos anos 2000.

5 Considerações extraídas de uma palestra dada pelo autor em um congresso da USP, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=gdv808PDeC0. Acessado em junho de 2015.

5

a ampliação e melhoria dos eixos de distribuição, comercialização e infraestrutura de

serviços do campo audiovisual brasileiro.6

Outra medida relevante foi a Lei nº 12.485, mais conhecida como Lei da TV Paga, aprovada

em 2011. Segundo o próprio site da Ancine objetiva-se com ela incentivar a produção e a

circulação de conteúdo audiovisual brasileiro, gerando emprego e renda ao setor. Para isso,

considera-se os canais de espaço qualificado, aqueles que “no horário nobre, veiculam

obras audiovisuais de espaço qualificado em mais da metade da grade de programação”,

gerando receita após a primeira exibição dos produtos7. Os canais, a depender da natureza

do espaço, têm a obrigatoriedade de veiculação de até três horas e meia semanais de

produtos nacionais independentes.

Esta prerrogativa, no entanto, apenas ratifica o fato de que a cinematografia brasileira tem,

desde a década 1930, criado reserva de mercado para o produto nacional, quando na

verdade isso deveria ter sido feito para o filme estrangeiro. Como resultado da

burocratização dos processos que envolvem as leis de incentivos fiscais, e também para

escapar à concentração de projetos aprovados no eixo sul-sudeste e viabilizar a realização

audiovisual para além dessas reservas de marcado, uma nova modalidade de fomento tem se

destacado na contemporaneidade: o crowdfunding, tipo de financiamento coletivo realizado

on-line e com o foco voltado a produções de baixo orçamento.

Outro importante diferencial deste período é a consolidação da tecnologia digital, o que nos

leva a crer que, enquanto experiência e fruição, o cinema não se limita à técnica.

Promovendo o barateamento das produções, a maior facilidade de circulação do produto

nacional e exigindo a reformatação das salas de exibição – permitindo, inclusive, a

expansão do parque exibidor para além dos grandes centros e dos shopping centers –, “o

cinema digital viabiliza que os filmes produzidos sem o guarda-chuva da ‘grande indústria’

cheguem às telas dos cinemas em seus nichos de mercado. Propicia, também, que existam

salas de exibição construídas com um menor investimento” (DE LUCA, 2009, p.338)

Assim, o cinema digital pode ser um caminho possível para solucionar uma série de

problema no mercado cinematográfico brasileiro, dentre eles o da distribuição, evitando a

necessidade recorrente do apelo ao discurso patriótico para minimizar o baixo consumo e a

pouca identificação do público com o produto nacional – estratégia empregada desde a

década de 1920 (AUTRAN, 2008) e que, efetivamente, tem sido insuficiente para a

formação de público e, principalmente, para a alteração da estrutura do mercado.

Considerações Finais

Entre 1995 e 2014 foram lançados no mercado brasileiro 1123 filmes. Como vimos, isso só

foi possível através de uma reestruturação de todos os eixos que compõem o campo da

indústria cinematográfica. Velhos esquemas foram substituídos por novos modos de

organização que, aliados a uma economia mais estável, fortaleceram aos poucos a indústria

brasileira de filmes. Isso não quer dizer, no entanto, que problemas antigos tenham sido

resolvidos, pois, em termos de mercado ainda persistem deficiências que evitam progressos

significativos.

6 8 A Ancine promove ainda fomento direto via editais e seleções públicas, abarcando instâncias como o

Prêmio Adicional de Renda e o PAQ – Programa ANCINE de Incentivo à Qualidade do Cinema

Brasileiro.

7 9 Informações disponíveis em http://www.ancine.gov.br/sala-imprensa/noticias/nova-lei-da-tv-paga-

estimula-concorr-ncia-e-liberdade-de-escolha. Acessado em outubro de 2015.

6

A distribuição de filmes nacionais ainda é precária e o setor de exibição continua sendo o

grande funil da nossa indústria – segundo a Ancine, por exemplo, de 2002 a 2014 nossa

fatia de mercado teve uma média de apenas 13,5%, revelando que o filme brasileiro

continua marginal dentro do seu próprio país. Além disso, também há uma distribuição

desparelha de gêneros narrativos. Horror, animação, fantasia e ficção científica, por

exemplo, têm menor espaço do que comédias e dramas.

Embora algumas medidas tenham começado a ser implantadas nos últimos anos, como o

projeto Cine Mais Cultura, as políticas públicas no setor de distribuição e exibição

continuam precárias, incapazes de alcançar o ritmo acelerado das produções. Isso é

resultado de um posicionamento histórico já observados no início do século XX (GOMES,

1996), qual seja, o de priorizar o setor de produção em detrimento dos demais,

incapacitando o escoamento e exibição dos filmes – desconsiderando, assim, que o campo é

resultado de um conjunto de determinantes que precisam ser trabalhados de maneira

integrada (SILVA, 2009).

Partindo do pressuposto de que, “no caso brasileiro, a pouca frequência dos filmes no

circuito comercial compromete aspectos simbólicos da formação do imaginário social”

(SILVA, 2008, p.06), apenas uma articulação dialógica e imperativa no mercado pode

superar o estigmatigma do cinema brasileiro, uma vez que, como afirma Bernardet (2009),

o caráter abstrato da qualidade de um filme tem relação direta com as relações de forças do

mercado. Assim, uma indústria só é forte quando os eixos do campo atuam em equilíbrio,

independência e prosperidade – o que ainda falta ao cinema nacional.

Referências

AMANCIO, Tunico. Artes e manhas da Embrafilme: cinema estatal brasileiro em sua

época de ouro (1977-1981). Niterói: EdUFF, 2011.

AUTRAN, Arthur. As concepções de público no pensamento industrial

cinematográfico. Porto Alegre: Revista FAMECOS, nº 36, agosto de 2008.

BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: Propostas para uma história. São Paulo:

Companhia das letras, 2009.

BORGES, Danielle dos Santos. A retomada do cinema brasileiro: uma análise da

indústria cinematográfica nacional de 1995 a 2005. Dissertação de mestrado. Barcelona,

2007.

BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005

DE LUCA, Luiz Gonzaga Assis. A hora do cinema digital: democratização e globalização

do audiovisual. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

GATTI, André. O mercado cinematográfico brasileiro: uma situação global?. IN:

MELEIRO, Alessandra (Org). Cinema no Mundo: indústria, política e mercado: América

Latina. São Paulo: Escrituras Editora, 2007.

7

GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e

Terra, 1996.

ORICCHIO, Luiz Zenin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo:

Estação Liberdade, 2003. Revista Filme B. Retomada: 20 anos depois. Festival do Rio:

Outubro, 2015. Disponível

em:http://www.filmeb.com.br/sites/default/files/revista/revista/revistafestivaldorio2015_ver

saoweb.pdf, acessado em outubro de 2015.

SILVA, João Guilherme Barone Reis. Comunicação e indústria audiovisual: cenários

tecnológicos e institucionais do cinema brasileiro na década de 90. Porto Alegre: Sulina,

2009.

______________________________. Exibição, Crise de Público e Outras Questões do

Cinema Brasileiro. Porto Alegre: Sessões do Imaginário, 2008.

8

Trânsitos audiovisuais: a produção ficcional para a internet

Miriam de Souza Rossini8

Aline Gabrielle Renner9

Bibiana Nilsson10

Guilherme Fumeo Almeida11

Vanessa Kalindra Labre de Oliveira12

Resumo:

A proposta deste trabalho é discutir os primeiros resultados obtidos na pesquisa Cinema

dos novos tempos: experimentação de formatos audiovisuais narrativos e sua

circulação em múltiplas telas. Nesta primeira fase, o grupo de pesquisa mapeou as

produtoras de audiovisual ficcional para a Internet, nas diferentes regiões do país.

Baseado neste levantamento, constatou-se o predomínio das narrativas seriadas e dos

esquetes, ao estilo Porta dos Fundos. As experimentações estéticas e narrativas

mostraram-se pontuais.

Palavras-chaves: audiovisual; internet; produção ficcional

Considerando o audiovisual como “um campo contemporâneo de convergência

de formatos, suportes e tecnologias” (SILVA & ROSSINI, 2009, p.08) – resguardadas

as devidas particularidades dos meios e suas materialidades –, é inevitável a constatação

de que o audiovisual é um elemento constituinte da sociedade contemporânea e que,

como tal, encontra-se também em movimento. Este processo de trânsito tem permitido,

assim, sua aproximação com a Internet, demonstrando que o audiovisual se tornou

maior do que os meios que o circunscrevem e tem potencializado, com isso, novos

modos de produção e apreciação estética.

O campo do audiovisual nunca foi estático e passou por diferentes ajustes ao

longo do tempo. Dubois (2004), em sua obra Vídeo, Cinema, Godard, estabeleceu três

8 Doutora em História (UFRGS). Professora do Programa de Pós-Graduação (PPGCOM) e do

Departamento de Comunicação (DECOM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Bolsista de Produtividade do CNPq. E-mail: [email protected] 9 Graduanda do curso de Publicidade e Propaganda do Departamento de Comunicação (DECOM) da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de IC Capes. E-mail:

[email protected] 10 Mestranda do Programa de Pós-Graduação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS). E-mail: [email protected] 11 Mestrando do Programa de Pós-Graduação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS). Bolsista Capes. E-mail: [email protected] 12 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul (UFRGS). Bolsista Capes. E-mail: [email protected]

9

momentos de rupturas nos modos de se fazer e de se pensar o audiovisual, que deixaram

marcas também em sua estética: o primeiro abrange o cinema mudo, quando a tevê

ainda não fazia parte do espaço diegético do cinema; o segundo é em meados do século

XX, com o surgimento da tevê, e o terceiro é a partir dos anos 80, quando as técnicas do

vídeo passam a ser incorporadas ao fazer cinematográfico.

Hoje observamos mais um momento dessa transformação, e podemos dizer que:

a) a conjunção dada pelo surgimento das câmeras digitais e do seu acoplamento a

diversos dispositivos móveis, b) os sites de compartilhamento de conteúdo através da

internet e c) a proliferação de múltiplas telas de visualização desse conteúdo alteraram

radicalmente o campo do audiovisual, levando-nos a uma nova etapa que refaz a

periodização proposta por Dubois (2004) do desenvolvimento da linguagem

cinematográfica (ROSSINI, 2015). Assim, o capo audiovisual tem sido alargado para

acolher outros modelos de representações e maiores possibilidades de criação e

veiculação de imaginários sociais a partir da produção e circulação de audiovisualidades

na internet – que claramente suscita um diálogo com o processo de trânsito das

audiências (OROZCO, 2011), na medida em que o barateamento dos custos e a

facilidade de acesso à tecnologia digital permite que receptores tornem-se também,

dentro do que hoje denomina-se Web 2.0, produtores e emissores de conteúdos.

Conforme Wolton (2003), a Internet é uma ambiência por onde transitam tanto

as mídias tradicionais (o rádio, a TV, o cinema, os jornais, impressos) quando as novas

formas de circulação de informação (os blogs, os sites institucionais, os sites de

compartilhamento de imagens, sons, vídeos, etc.). Não é um meio de comunicação, mas

um espaço de trânsito da comunicação. E de uma comunicação que é feita tanto por

agentes profissionais, imbuídos de ideias e valores de negócios, quanto do público em

geral que agora possui uma forma de compartilhar, difundir as suas produções caseiras,

amadoras, artísticas, ou mesmo as suas ideais e afetos.

A ambiência da Internet com certeza mudou a sensibilidade dos públicos que a

utilizam, propiciando um novo nível de partilha do sensível. Rancière (2005, p. 15)

define a partilha do sensível como sendo “o sistema de evidências sensíveis que revela,

ao mesmo tempo, a existência de comum e dos recortes que nele definem lugares e

partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um

comum partilhado e partes exclusivas.”

10

É partindo destas premissas que tem sido desenvolvido, pelos participantes do

Grupo de Pesquisa Processos Audiovisuais (PROAv-UFRGS),13 desde março de 2015,

o projeto de pesquisa Cinema dos novos tempos: experimentação de formatos

audiovisuais narrativos e sua circulação em múltiplas telas. Buscando mapear, analisar

e problematizar a produção audiovisual realizada para a Internet, o projeto visa a

entender como o campo profissional do audiovisual está operando com as

potencialidades desse cenário e como essas transformações, que não são apenas do

âmbito tecnológico, mas também sociocultural, têm possibilitado a inserção de outros

olhares e fazeres artísticos.

O mapeamento

Na primeira fase de desenvolvimento deste projeto foi realizado um

mapeamento, em todas as regiões brasileiras, das produtoras audiovisuais que

afirmavam possuir em seu portfólio narrativas ficcionais produzidas exclusivamente

para a web. Utilizando-se as seguintes palavras-chaves: “produção audiovisual”;

“produção audiovisual” + internet”; “produção webvídeos”; “produção webséries” e

“produtoras de webvídeos”, chegou-se a um resultado inicial de 65 empresas.

No entanto, feito tal filtragem, seguida de uma análise mais densa sobre estas

empresas e seus produtos, constatou-se que a grande maioria das produtoras não

possuíam realmente narrativas ficcionais, trabalhando preponderantemente com

conteúdos publicitários e videoclipes – muitos sob o título de “produção ficcional” ou

“websérie”. Assim, das 65 produtoras inicialmente mapeadas, apenas 22 de fato

possuíam produtos ficcionais para internet, a maioria delas presente na região sudeste,

conforme o gráfico abaixo:

13 O grupo de pesquisa também é composto pelos doutorandos: Pablo Alberto Lanzoni e Juliano Pimentel

Rodrigues.

11

Das produtoras que possuíam narrativas ficcionais, constatou-se que 13 utilizam

apenas o YouTube para publicar suas produções; 8 faziam uso do YouTube e do Vimeo

simultaneamente, e apenas uma empresa utilizava somente o Vimeo. Isto é, das 22

produtoras, apenas uma não utilizava o YouTube, demonstrando a importância

estratégica do site para o sistema de compartilhamento e visualização dessas produções.

Definida esta etapa, realizou-se também um levantamento dos sites de

compartilhamento de conteúdo audiovisual a fim de verificar a existência de narrativas

ficcionais brasileiras em outras plataformas digitais. Foram listadas, através das mesmas

palavras–chaves utilizadas no mapeamento das produtoras, 45 sites de

compartilhamento, sendo estes de origem nacional e internacional. Além do YouTube e

do Vimeo, encontrou-se apenas mais um endereço que continha narrativas ficcionais

brasileiras, e em número pouco expressivo: o site francês Dailymotion, confirmando a

prerrogativa de que, quantitativamente, o YouTube é o principal site de

compartilhamento detectado.

Os produtos

Embora o universo de produção ficcional para Web esteja aos poucos se

institucionalizando, tendo em vista os festivais que começam a abarcar esse tipo de

audiovisual – no Brasil, por exemplo, o primeiro festival internacional de webséries

ocorreu em novembro deste ano –, as etapas galgadas na pesquisa até agora desenharam

um panorama ainda impreciso e movediço sobre essas produções. De qualquer forma, a

Palavras-chave: “produção audiovisual”; “produção audiovisual” + internet; “produção

webvídeos”; “produção webséries”; “produtoras de webvídeos”. Fonte: autores.

12

partir das palavras-chaves e dos procedimentos até então adotados, destacou-se o

predomínio dos esquetes, em geral de caráter cômico e paródico, e das webséries,

narrativas seriadas próprias do ambiente virtual, que ainda guardam, porém,

semelhanças com as séries da televisão (ZANETTI, 2013). Já as experimentações

estéticas e narrativas mostraram-se pontuais.

O esquete é o formato coletado mais popular, evidência disso é sua

predominância nos três canais mais populares do Brasil no YouTube: o Porta dos

Fundos, o Parafernalha e o Galo Frito. O Porta dos Fundos14 é exemplo paradigmático

do potencial de criação e distribuição do conteúdo audiovisual na web. Criado em

março de 2012, o canal já possui mais de 10,5 milhões de inscritos e quase 2 bilhões de

visualizações em seus 443 vídeos. O sucesso conquistado na plataforma virtual rendeu

ao Porta dos Fundos a possibilidade de migrar para meios tradicionais, como a televisão

e o cinema, processo que foi acompanhado por uma gradual profissionalização e

institucionalização da produtora enquanto empresa.

Por outro lado, as webséries destacaram-se também como um formato recorrente

e relevante para a pesquisa. Com temas muito variados – questões sobre a adolescência,

sagas de vampiros e monstros; sexo e relacionamentos, e até remakes de animações,

musicais e narrativas interativas –, elas têm se transformado em um espaço de relativas

experimentações audiovisuais, ainda que de modo pontual.

Integrando os recursos próprios das plataformas e redes sociais – ou a

interatividade que caracterizaria os modelos de negócio da web no contexto da

contemporaneidade, dentre os quais o YouTube seria um exemplo expoente –, a

produtora Cia Mãos do Vento, do Rio de Janeiro, por exemplo, produziu uma websérie

interativa, “Quebra-cabeça”15. A história da série é construída a partir da contribuição

do público via rede social, que propõe as “peças” do próximo episódio, sendo estas

adaptadas e montadas pelos roteiristas, passando a incorporar o enredo. Ainda desta

mesma produtora, a websérie “Mute”16 cria narrativas experimentais a partir de ruídos e

imagens de caráter alegóricas com o objetivo de propor sensações e efeitos de sentido

sem a utilização da linguagem verbal.

14 Disponível em: https://www.youtube.com/user/portadosfundos. Acesso em 06 de novembro de 2015. 15 Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=gm8Qd4dasPc&list=PLUvW9wkck1zXXm5KwEeTVKpJOe7fojjPP.

Acesso em 06 de novembro de 2015. 16 Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=x9pcUiQCH4U&list=PLUvW9wkck1zVPjSDrQTGwL5N0xRV38dv

h&index=8. Acesso em 06 de novembro de 2015.

13

Outros modelos também foram localizados, como o caso de curtas e longas

metragens. A Platô Produções, produtora de Belém/PA, por exemplo, produziu um

curta-metragem denominado Encantada do Brega17, onde explora o universo da música

tecnobrega, gênero musical surgido no estado – o que pode explicar o fato de que, em

menos de um ano, já alcançou aproximadamente meio milhão de visualizações no

YouTube18. Destacam-se, ainda, dois longas-metragens produzidos exclusivamente para

a web: Teste de Elenco (Osiris Larkin & Ian Sbf, 2011) e Calango Ball Evolution

(Frank Silva, 2011), ambos experimentais e de baixo custo de produção. Enquanto o

primeiro tensiona referências do cinema de ficção e do documentário, o segundo se

ancora no processo paródico, resgatando a falta de requinte técnico como uma marca

estética de sua narrativa, como fez o cinema nacional ao longo de sua histórica, através

das chanchadas e do próprio cinema marginal.

Considerações iniciais sobre o trabalho

De uma maneira geral, observou-se que que as produtoras de audiovisual no

Brasil ainda não consideram as potencialidades proporcionadas pela Internet durante

seus processos de produção. A grande maioria das empresas mapeadas, por exemplo, ou

concentra suas atividades nas áreas da publicidade e do videoclipe, ou pensa a Web

apenas como uma janela de exibição de seus produtos ficcionais, depois de exibidos em

outros lugares. Acredita-se que isso se deva, fundamentalmente, pela dificuldade de

gerar renda e agregar capital simbólico ao produto na web, tendo em vista que esta

ambiência (WOLTON, 2003) encontra-se, ainda, fundando suas bases.

Outro desafio particularmente complexo para a pesquisa é o pouco material

bibliográfico e de discussões sobre a produção ficcional para a Web, talvez dada sua

fluidez e efemeridade. Nesse sentido, a classificação dos tipos de conteúdos, formatos e

modalidades de difusão e consumo online tornou-se insuficiente a partir de categorias

fixas, tendo em vista a impossibilidade de definição de um território tão dinâmico.

Nessa perspectiva, percebeu-se que os nomes pelos quais nos referíamos aos produtos

específicos de nossa busca não necessariamente correspondiam aos nomes pelos quais

as produtoras entendiam suas produções – isso é, nos casos em que havia essa

classificação. Deparou-se, então, com a dificuldade não apenas de encontrar essas

17 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jkASByzPWcw. Acesso em 06 de novembro de

2015. 18 Dados de 05 de novembro de 2015.

14

produções quanto de conceituá-las, o que demonstra a necessidade de tensionar

teoricamente essas produções e seus espaços de circulação e consumo.

Outra questão que merece ser evidenciada é o fato de que os canais e os vídeos

possuem ciclos de popularidade: ainda que um canal tenha obtido (e ainda obtenha) um

grande número de visualizações, ele pode não ser mais atualizado. Nesse sentido, é

muito comum encontrarmos canais abandonados, como cidades-fantasma: as estruturas

permanecem de pé, passíveis de serem manipuladas por eventuais viajantes (usuários

que comentam, curtem ou compartilham), porém estes não encontram mais seus

“fundadores” ou “habitantes”, isto é, os autores e produtores dos canais.

Quanto ao modelo de produção, percebeu-se que é uma prática comum a união

de produtoras profissionais com produtores independentes e coletivos, configurando o

campo como uma área de complexa rede de associações formais e informais. Disto

também decorre a dificuldade de determinar a “origem” de algumas produções, pois são

fruto de associações que restam muitas vezes implícitas. Já em relação aos formatos, o

levantamento revelou a predominância de produtos de caráter caseiro, paródicos e de

apresentação pouco elaborada esteticamente. Além disso, constatou-se que a duração

média deles encontra-se entre 2 a 5 minutos para os esquetes, e cerca de 15 minutos

para cada episódio das webséries, seguindo uma tendência cada vez mais intensa na

sociedade contemporânea, qual seja: a de se trabalhar tendo em mente uma produção de

consumo rápido, voltado para o entretenimento das massas, centrados em edições

dinâmicas e canais de constante atualização (ao menos para os casos mais bem-

sucedidos).

Assim, essa fase inicial já foi capaz de revelar questões relevantes para as

pesquisas sobre o audiovisual, apontando a internet como um espaço capaz de facilitar o

acesso e potencializar as possibilidades de criação e exploração de outros modelos de

produção e imaginários sociais, como ocorre com as produções localizadas no eixo

norte-nordeste. Além disso, ressalta-se que as realizações audiovisuais destinadas à

internet, em função de suas forças de moldagem e das particularidades estéticas que

suscita, têm gerado o interesse da mídia tradicional: caso revelado com as produções do

Porta dos Fundos, comentado anteriormente, e da websérie 3%, dirigida por Daina

Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema, em 2001, que teve seu projeto comprado

recentemente pela Netflix. Isso revela que o campo tende a crescer nos próximos anos, o

que demonstra que as pesquisas na área precisam acompanhar essas novas demandas e

questões, tais como nos propusemos a fazer.

15

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de novembro de 2015.

WOLTON, D. Internet, e depois? Porto Alegre: Sulina, 2003.

16

SESSÃO II - MEMÓRIA, FORMATOS, PROCESSOS e CONVERGÊNCIAS

Frankenweenie: do live-action a animação stop motion

Fabiane Führ

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens

Universidade Tuiuti do Paraná (UTP)

[email protected]

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo desenvolver uma análise a respeito dos

processos de criação e produção entre os filmes Frankenweenie de 1984 e 2012,

produzidos em live-action e a animação em 3D stop motion, respectivamente, bem

como a utilização dos recursos de animação e dos recursos tecnológicos utilizando os

conceitos teóricos de Linda Hutcheon, Denise Guimarães, Lev Manovich, entre outros.

Palavras-chave: Frankenweenie. Adaptação. Animação. Stop motion.

Introdução

Frankenweenie é um curta-metragem produzido em live-action19 no ano de 1984

e relançado em 2012, porém como animação em 3D stop motion, ambos são dirigidos

por Tim Burton e baseiam-se em uma ideia original do diretor que procura prestar uma

homenagem ao filme Frankenstein de James Whale, produzido em 1931, porém com

uma diferença, nestas obras quem volta à vida é o cachorro Sparky que morre

atropelado e é ressuscitado por Victor Frankenstein.

Frankenweenie (1984) foi dirigido por Tim Burton. Lenny Ripps adaptou o

roteiro cinematográfico para história e Julie Hickson, da Disney, produziu o curta-

metragem (STRANIERI, 20--, p. 12). O filme foi lançado em 1984, em preto e branco

com duração de 29 minutos e era estrelado por Barret Oliver, como Victor Frankenstein.

Shelley Duvall e Daniel Stern representaram os pais de Victor. No entanto, a The Walt

Disney Studios decidiu que a história era imprópria para seu público e arquivou o filme.

(STRANIERI, 20--, p. 08). Por fim, Tim Burton saiu da empresa e trabalhou em

diversos projetos de seu interesse.

Entre os anos de 1980 e os anos 2000, muitas coisas mudaram, os monstros

deixaram de ser aterrorizantes e passaram a povoar o cinema, as lojas de brinquedos e

outros segmentos de mercado. Os interesses das crianças e dos adultos se modificaram

de tal maneira que, em novembro de 2007, Tim Burton assinou um contrato com a

Disney para refazer o filme Frankenweenie como um longa-metragem em 3D stop

motion. Acredito que Frankenweenie (2012) seja fruto de uma mudança de paradigmas,

pois como afirma Linda Hutcheon (2013, p. 17) “nem o produto nem o processo de

adaptação existem num vácuo: eles pertencem a um contexto – um tempo e um lugar,

uma sociedade e uma cultura”. A alteração desses padrões é que nos tornou capazes de

compreender a beleza de um filme que possui sua história baseada no amor e na

amizade existente entre um menino excêntrico e seu cachorro “monstro”.

19 Live-action – termo utilizado para definir trabalhos realizados por atores reais.

17

A adaptação do filme Frankenweenie (1984), curta metragem produzido em live-

action para a animação produzida em 3D stop motion (2012), necessita de uma série de

ajustes para que seja bem-sucedida, é essa adaptação, a utilização dos recursos de

animação e dos novos recursos tecnológicos que pretendo analisar neste artigo.

Adaptando Frankenweenie

Frankenweenie é uma homenagem ao filme de terror Frankenstein (1931) de

James Whale, mas também verifica-se uma homenagem à obra literária Frankenstein de

Mary Shelley escrita no século XIX e que é um clássico do terror que tem inspirado

diversos autores, sejam eles da literatura, do cinema ou de outras mídias.

A arte de adaptar pode ser interpretada como a arte de contar e recontar histórias

e é exatamente isso que acontece com Frankenweenie (1984, 2012). Tim Burton

“reconta” sua história. Ele era um garoto excêntrico que perdeu seu amigo canino e teve

a ideia de transformar em filme a sua perda, além disso, Burton homenageia os clássicos

do Expressionismo Alemão e do Terror, como é o caso da obra de James Whale.

Todas essas adaptações são apenas uma forma que recontar os grandes clássicos,

afinal:

Todos esses adaptadores contam histórias a seu próprio modo. Eles utilizam

as mesmas ferramentas que os contadores de histórias sempre utilizaram, ou

seja, eles tornam as ideias concretas ou reais, fazem seleções que não apenas

simplificam, como também ampliam, vão além, fazem analogias, criticam ou

mostram seu respeito, e assim por diante. (HUTCHEON, 2013, p. 24)

Em Frankenweenie, Sparky é atropelado logo no início do filme e é ressuscitado

por meio de eletricidade, técnica aprendida por Victor durante as aulas de Ciências. Nas

figuras 1 e 2 é possível observar o momento em que Victor tem o insight de como fazer

para trazer Sparky de volta.

Figuras 1e 2 – Desenho feito por Victor Frankenstein durante a aula de Ciências

Fonte: Frames capturados dos filmes Frankenweenie (1984, 2012, respectivamente).

18

Dessa forma, é possível observar que adaptar um curta-metragem de 29 minutos

para uma animação de 87 minutos, exige, como diz Hutcheon (2013), a “seleção” do

que deve permanecer do filme em live-action de 1984 para a animação de 2012, bem

como exige um estudo para que a “ampliação” não se perca da proposta original.

De acordo com Erick Felinto (2006, p. 414) “a introdução das tecnologias

digitais facilitou imensamente os processos do cinema industrial e massivo, ao mesmo

tempo em que ampliou possibilidades estéticas e abriu novos caminhos aos realizadores

independentes”.

Tais processos podem ser visualizados em Frankenweenie (2012). Além disso,

cabe observar que as tecnologias digitais possibilitaram a criação de efeitos visuais que

não eram possíveis de ser desenvolvidos em 1984 devido a escassez de recursos

tecnológicos do período.

Animando Frankenweenie

Apesar de já existirem recursos para a produção de animações totalmente

digitais, ainda há inúmeros animadores que resistem e utilizam técnicas de animação

como desenho sobre papel, sobre película, além de recortes ou mesmo a confecção de

bonecos de argila ou de papel para a elaboração de seus filmes. Segundo a pesquisadora

Denise Guimarães (2012):

Animação refere-se ao processo segundo o qual o fotograma de um filme é

produzido individualmente, podendo ser gerado quer por computação gráfica

quer fotografando uma imagem desenhada, quer repetidamente fazendo-se

pequenas mudanças em um modelo e fotografando o resultado (claymation e

stop motion). O desenvolvimento da animação digital aumentou muito a

velocidade do processo, eliminando tarefas mecânicas e repetitivas. Quando

os fotogramas são ligados entre si o filme resultante é visto a uma velocidade

de 16 ou mais imagens por segundo, há uma ilusão de movimento contínuo

(GUIMARÃES, 2012, p. 08).

Frankenweenie (2012) foi produzido em 3D stop motion e para isso utilizou

diversos bonecos com armação mecânica de aço por dentro, compreende-se que “a

animação em 3D pode ser tanto com fotos (stop motion) como ser 100% digital, feito

somente no computador ou, mistura os dois” (ANIMABLOG, 2008). Para Carolina

Lanner Fossatti (2009, [p.13]) “as técnicas tradicionais combinam-se com aquelas

advindas da tecnologia digital”, e podem ser observadas claramente em Frankenweenie

(2012) que é a mistura das duas técnicas, tradicional e tecnologia digital.

Assim, “o filme viabiliza uma experiência estética inovadora ao promover a

hibridação entre as linguagens tradicionais do cinema e da animação” (FELINTO, 2006,

p. 417), tendo em vista que Frankenweenie (2012) apresenta inúmeros elementos que se

assemelham ao filme em live-action de 1984.

De acordo com Lucia Santaella (2003, p. 140):

[...] os novos processos e tecnologias digitais são uma parte essencial de suas

práticas de pós-produção o que borra os limites entre as tradicionais

especialidades como fotografia, design tipográfico e gráfico, trabalho

editorial e produção de imagem fixa e animada, gerando um processo de

hibridização dificilmente realizável por meios artesanais.

Berry Purves (2008, xvi, citado por TRALDI, ZUANON, 2013, p. 04) apresenta

o seguinte ponto de vista em relação ao stop motion e a computação gráfica:

19

Para um realismo puro e convincente, performances cinematográficas, o stop

motion não é mais capaz de competir com criações deslumbrantes em CGI,

como Gollum ou Kong, mas esse é o ponto. Não precisa mais competir. O

stop motion está fazendo algo totalmente diferente, e talvez agora que nós

podemos ver que cada um tem valores diferentes, o stop motion irá florescer.

[...] tudo consiste em encontrar a técnica certa para a história certa.

Figura 3 e 4 – Victor em seu laboratório minutos antes de dar vida à Sparky

Fonte: Frames capturados dos filmes Frankenweenie (1984, 2012, respectivamente).

Lev Manovich (2006, p. 01, tradução nossa) afirma que “hoje as técnicas da

animação tradicional, cinematografia e computação gráfica são usadas em combinação

para criar novas formas híbridas de imagens em movimento.” Já não é mais possível

distinguir o limite entre o que é live-action e o que é animação, como nas figuras 3 e 4,

onde as imagens apesar de ser produzidas de maneira distinta se assemelham

imensamente.

Em relação a produção dos bonecos o artigo produzido por Kim Jessop (2012)

esclarece que:

A animação stop motion foi produzida em escala muito maior do que a

maioria dos projetos semelhantes. Burton usou cerca de 200 bonecos para

seus personagens, e eles eram geralmente maiores do que os bonecos usados

em outros filmes. (JESSOP, 2012, [posição 31], tradução nossa).

No artigo produzido por Barbara Robertson (2012), Tim Ledbury, supervisor de

efeitos visuais, afirma que a diferença entre Frankenweenie e os demais filmes está na

escala dos bonecos, que tiveram que ser maiores devido a mecânica de Sparky (o

cachorro). Sparky possui três e meia polegadas de altura e cinco polegadas de

comprimento, o que representa 8,89 cm por 12,7 cm na escala utilizada no Brasil.

Assim, o boneco de Victor ficou com aproximadamente 30 centímetros de altura (01

feet), e seus pais com 16 e 18 polegadas, na escala brasileira a mãe teria 40,64 cm e o

pai, 45,62 cm, respectivamente. Na figura 5 é possível observar a proporcionalidade

existente entre Victor e Sparky e na figura 6, a proporcionalidade entre os bonecos de

Victor e seus pais.

Figuras 5 e 6 – Victor e Sparky e Victor com seus pais

20

Fonte: Frames capturados do filme Frankenweenie (2012).

Além disso, o set de filmagem teve que seguir as mesmas proporções dos

bonecos, assim tudo ficou muito grande. O set incluiu a casa dos personagens

principais, Família Frankenstein, a casa do vizinho, o Sr. Burgemeister (figuras 7 e 8,

respectivamente), bem como a escola (figuras 9 e 10), o restante da cidade é

computação gráfica (figura 11) (ROBERTSON, 2012).

Figuras 7 e 8 – Casa da Família Frankenstein e Casa do Sr. Burgemeister

Fonte: Frames capturados do filme Frankenweenie (2012).

Figuras 9 e 10 – Escola e Sala de aula

21

Fonte: Frames capturados do filme Frankenweenie (2012).

Segundo Robertson (2012) uma equipe com mais de 40 (quarenta) artistas

trabalhou por mais de 02 (dois) anos na criação dos ambientes em computação gráfica

(casas, ruas, postes, carros, entre outros) (figura 11).

O conhecimento das técnicas de animação é imprescindível para a elaboração de

um trabalho de animação de qualidade, porém com a evolução das tecnologias foi

possível observar o salto que a animação deu em relação ao uso dos recursos digitais.

Figuras 11 – Cidade de New Holland com o moinho ao fundo

Fonte: Frames capturados do filme Frankenweenie (2012).

Filipe Costa Luz (200-) observa que as novas tecnologias trouxeram uma maior

conectividade entre as mídias, pois atualmente em um projeto de cinema, não se pode

planejar processos por etapas onde as tecnologias ou as técnicas sejam utilizadas apenas

em um determinado momento e depois evoluir para outras etapas do projeto. Dessa

forma, percebe-se que as técnicas de pós-produção passam para o início da produção de

22

um filme para que no final a integração de conteúdos de diferentes naturezas seja o mais

realista possível. Destarte, observa-se que com o storyboard bem elaborado é possível

planejar o que e como gravar, bem como o que deve ser criado por meio das

ferramentas digitais.

Os recursos digitais permitem a criação de praticamente tudo, desde um peixe

invisível que nada através de água digital e pode ser iluminado e projetado em uma

parede com o auxílio de uma lâmpada (figuras 12 e 13).

Figuras 12 e 13 – Peixe invisível dentro do vidro e Peixe invisível sendo iluminado

Fonte: Frames capturados do filme Frankenweenie (2012).

Para a produção de Frankenweenie (2012) foram produzidas mais de 1.200 (mil

e duzentas) tomadas de efeitos visuais, assim

[...] a construção manual de imagens no cinema digital representa um retorno

às práticas pró-cinemáticas do século dezenove, quando imagens eram

pintadas à mão e animadas à mão. Na virada do século o cinema delegou

essas técnicas manuais para a animação e define a si mesmo como um meio

de gravação. Quando o cinema entra na era digital, essas técnicas retornam

novamente ao lugar comum no processo de filmagem. Consequentemente, o

cinema não pode ser mais diferenciado da animação. Essa não é mais uma

mídia indexical, mas sim, um subgênero da pintura. (MANOVICH, 2001, p.

259, tradução nossa).

Cabe observar que as cenas foram gravadas e posteriormente receberam a

manipulação a fim de trazer mais realismo à cena em stop motion, como acontece na

chuva de fagulhas que caem sobre Victor após Sparky receber a descarga elétrica

(figuras 14 e 15).

Figuras 14 e 15 – Descarga elétrica e Chuva de fagulhas

23

Fonte: Frames capturados do filme Frankenweenie (2012).

O mesmo acontece com as cenas que envolvem o incêndio do moinho de vento

(figura 16), monumento da pequena cidade de New Holland, que é completamente

destruído pelas chamas. Os efeitos visuais são tão bem elaborados que é difícil acreditar

que foram necessárias a construção de várias réplicas internas e externas do moinho,

com alturas variadas, bem como a utilização do software Maya Fluids para desenvolver

as cenas do fogo. Além disso, Tim Ledbury explica que depois que o fogo estava no

lugar, foram utilizados outros elementos de computação gráfica para as cenas nas quais

caiam detritos, pedaços de madeira, pranchas que atingiam as paredes e fumaça (figura

17) Ele também esclarece que para a gravação da fumaça, foram realizadas gravações

ao vivo mescladas com a computação gráfica, pois a fumaça é algo muito difícil de se

reproduzir apenas com recursos gráficos (ROBERTSON, 2012).

Figuras 16 e 17 – Incêndio no Moinho de vento e Chamas no interior do Moinho

Fonte: Frames capturados do filme Frankenweenie (2012).

24

Pode-se observar que animar Frankenweenie (2012) envolve diversos processos,

não apenas de animação, mas até a utilização de recursos em live-action como no caso

da criação da fumaça e de outros artifícios difíceis de obter apenas com os recursos

digitais. Como diria Manovich, não nos cabe questionar sobre se esse ou aquele estilo

visual ou método para criar movimento é animação ou não, segundo ele “é mais

produtivo dizer que a maioria desses métodos nasceram da animação e possuem seu

DNA – misturado com o DNA de outras mídias” (MANOVICH, 2006, p. 25, tradução

nossa).

Reflexões finais

Adaptar é uma arte, adaptar um curta-metragem de 29 minutos para uma

animação em stop motion é uma arte que requer cuidado aos detalhes durante todos os

processos de produção, mas principalmente na pré-produção, momento em que se

elabora o script, mantendo os elementos que são importantes para a história, bem como

expandindo as ideias a fim de trazer originalidade à proposta. Além disso, é nesse

momento que se dá a confecção dos bonecos e dos cenários, bem como a elaboração do

storyboard que possibilita à equipe saber o se espera em cada cena e planejar o que deve

ser feito para atingir seus objetivos.

As etapas de produção e pós-produção também são importantes, pois é na

produção que é realizada a captura das imagens e neste momento já há a utilização dos

recursos tecnológicos, pois já existem câmeras específicas para trabalhos com

computação gráfica. Também há todo o trabalho de pós-produção, produzindo com

tecnologia digital o que não pode ser filmado em stop motion e finalização das cenas,

buscando a qualidade estética da obra final.

As possibilidades provenientes do uso da computação gráfica são

inquestionáveis para o cinema, seja ele em live-action ou de animação, e isso independe

do modelo de animação proposto (desenho sobre papel, sobre película, animação com

recortes ou com bonecos, etc.), pois com os atuais recursos toda e qualquer animação

pode beneficiar-se das tecnologias.

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O "método" no cinema de Leon Hirszman: estética, cultura e política

AUTOR

Pedro Vaz Perez: Mestre em Comunicação e Interações Midiáticas pelo PPGCOM da

PUC Minas; professor dos cursos de Publicidade e Propaganda da PUC Minas Poços de

Caldas e da UNIFAE. Integrante do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa, filiado ao

CNPq. [email protected]

RESUMO

O trabalho visa compreender a montagem como centro de irradiação estética no

cinema de Leon Hirszman, visando demonstrar de que forma o diretor inscreve, em suas

imagens e sons, um método de investigação materialista da realidade, cristalizando uma

visão de mundo. Propomos um pensamento sobre a imagem como fenômeno mediador

do tripé estética, cultura e política. Recorremos ao pensamento sobre montagem na

interseção entre Eisenstein e Pudovkin, e ao método marxista do materialismo histórico.

Introdução

Em dado momento da entrevista concedida a Alex Viany (1999, p. 296), ao

abordar os anos em que viveu no Chile, após o golpe militar de 1964, o cineasta

brasileiro Leon Hirszman fala sobre a necessidade, à época, de “compreender melhor o

método” de um cinema que se localiza entre o marxismo e a “realidade do povo

oprimido”. Anos antes, em debate sobre Deus e o diabo na terra do sol, transcrito no

mesmo O processo do cinema novo (VIANY, 1999, p. 79), Leon já afirmava: “Eu tenho

uma ideia central, quero transmiti-la; eu tenho uma visão de mundo e vou utilizar um

método, um personagem ou aquilo que, em meu entender, devo utilizar. Foi conseguida

uma utilização coerente? Assim é que se deve colocar a questão”.

Nessas passagens, o diretor deixa entrever uma proposta de cinema e uma

preocupação quase epistemológica: a compreensão sobre o fazer filmes como ação de

27

investigação acerca da realidade social, das desigualdades, das formas de vida e de

produção de um povo. É nesse sentido, portanto, que o presente trabalho se propõe

delinear as características complexas e de alguma forma dinâmicas, que compõem o

método de investigação da realidade social, cultural e política do povo brasileiro. A

hipótese é de que, no cinema do Leon, essas investigações se dão a partir de um método

cinematográfico encorpado pelo materialismo histórico, pela compreensão alargada de

montagem e por um desvio, cada vez mais intenso ao longo de sua carreira, pelo

antropológico. Para tanto, o objetivo é compreender o “processo” do cinema de Leon,

numa investigação que terá como base as imagens e os sons, mais do que a biografia ou

a relação das obras com os contextos históricos.

Dessa forma, o foco desse trabalho se dará a partir do seguinte objetivo:

compreender a noção de montagem como centro de irradiação estética no cinema,

propondo um pensamento sobre a imagem cinematográfica, seja ela de caráter tido

como documental ou ficcional, como fenômeno mediador da relação entre cultura,

estética e política. Assim, visamos caracterizar o cinema de Leon Hirszman como sendo

composto por um método dialético de investigação materialista da história e da

realidade social. Como principais aportes teóricos, serão acionadas as teorias da

montagem soviéticas, sobretudo em Pudovkin (1983) e Eisenstein (2002), somadas à

formulação do método marxista do materialismo histórico.

A verve marxista presente nas declarações de Leon – que repercutem em sua

forma de filmar – parece evidente: é exatamente a partir das formas de vida, nos

aspectos materiais, nos modos de produção de determinado grupo de pessoas que é

possível construir a história. E o cinema, como afirma Merleau-Ponty (1983), parece ser

veículo certo para esse exercício: uma fenomenologia que, a partir de sua característica

de superfície sensível permeada por signos, dá a ver não as internalidades, mas sim as

formas, corporeidades, superfícies: a dimensão material dos fenômenos e da

experiência, o mundo físico.

Assim, propomos que Leon Hirszman tenha feito uso da câmera de cinema como

instrumento de investigação da realidade social e política a partir das aparências e das

formas: filma externalidades e com elas constrói seus comentários sobre o mundo. Se

posiciona em um tipo de cinema que, como propõe Walter Benjamin (2012, p. 298),

“pode ser um instrumento extraordinário de representação materialista”. Aqui,

compreendemos o materialismo histórico dialético de Marx como um método de

interpretação da realidade que projeta uma visão de mundo e uma práxis: prática

28

articulada à teoria, desenvolvida pela reflexão sobre a realidade partindo de seus dados

empíricos (o real aparente), lavando-os do ponto de vista da teoria e de elaborações

abstratas do pensamento. Dessa dialética resultaria o concreto pensado: “compreensão

mais elaborada do que há de essencial no objeto, objeto síntese de múltiplas

determinações” (PIRES, 1997, p. 87).

Montagem e método

O que caracterizava, de maneira geral, os estudos soviéticos era a

problematização de questões da estética em termos sociais. Pudovkin (1983) entendia a

montagem e o roteiro como as bases estéticas do filme. Ele propõe a construção de uma

teoria da narração baseada em critérios como continuidade, ritmo, equilíbrio de

composição, sucessão lógica e respeito à imagem como duplo. Por isso, dá grande valor

à elaboração rígida e minuciosa do tema, do roteiro e da decupagem. Tal método

deveria garantir que o conjunto do filme fosse a expressão visual de um ponto de vista,

o “tema”, que se desdobraria de maneira singular através de cada detalhe da obra.

Assim, como propõe Xavier (2008) em comentário ao autor, o cinema seria a expressão

de visões de mundo de um cineasta pelo exercício de seu estilo: discursos da

consciência expressos por movimentos e posições de câmera, disposição dos

enquadramentos, tempos de corte e ritmo, associações de imagens que adquirem

relações significantes, desde que se obedeça à organicidade das partes em relação ao

todo.

Já em Eisenstein, a noção de montagem ia muito além do previsto no senso

comum como procedimento de corte e colagem de um plano ao outro, de uma

compreensão da montagem como construtora apenas da linearidade do filme. Cito Leon:

[a montagem] era vista como a totalidade das coisas. Não era só o problema

da edição do filme, era a montagem de todo o espetáculo. A composição era

montagem, entende? A direção do olhar era montagem. Uma série de outros

valores que davam à arquitetura que estava sendo proposta os desenhos e as

sombras (VIANY, 1999, p. 288).

Leon compreendia bem que, para Eisenstein (2002), antes mesmo de haver corte

havia montagem. Pois há proposição de conflitos em vários elementos do filme. A

noção de montagem preside a construção da cena no contexto de produção. Mais do que

linha, emprestando a dialética de Flusser (2007), montagem é também superfície.

Filmar é montar, já que o ponto de partida do cineasta é a concepção de uma

determinada organização dos acontecimentos postos frente à câmera. Sua crítica e visão

29

de mundo aparecem explicitamente no trabalho de montagem, que já estaria contida em

potência na composição do plano: são conflitos de linhas, massas, luzes, sombras,

movimento, tempo, e entre a ótica e a acústica, que, a partir do distanciamento crítico do

espectador, funcionariam como antídoto contra a alienação da ilusão da imagem

transparente do cinema realista, proporcionando um papel intelectual, ou teórico, à

montagem: o raciocínio e o pensamento por imagens. A interrupção de acontecimentos

contínuos, através da repetição ou da aproximação dos objetos (com planos mais

próximos) são vistos como estratégias para tecer comentários sobre o que se está

representando.

Como expõe Xavier (2008), a aplicação de um ou outro método por cineastas

posteriores, sobretudo pós-1960, nem sempre se deu de maneira pura ou exata. Houve

contaminações de ambas as correntes, com propostas de cinema orientadas a cumprir,

em alguma medida, os dispositivos básicos dos dois polos. Interessante notar que o

exemplo utilizado por Xavier para ilustrar tal “contaminação” é o filme São Bernardo,

de Leon.

Dessa forma, busquei demonstrar que é a partir do conceito amplo de montagem

no cinema, encorpado pela compreensão do materialismo histórico, que Leon Hirszman

pode construir seu “método” de investigação materialista da história. Em seus primeiros

filmes, sobretudo no curta-metragem Pedreira de São Diogo (1962), é notável uma

visão romantizada do popular, na qual suas representações pelo cinema buscam realizar

aquilo a que Benjamin (2012) compreendeu como grande triunfo advindo do fim da

aura da obra de arte com o advento da reprodutibilidade técnica: o filme como espelho

transportável para a frente das massas, poderoso instrumento de desalienação e

consciência de classes.

O curta em questão narra a história de trabalhadores de uma pedreira que se

veem em um paradoxo: cumprir as ordens do patrão e explodir uma forte carga de

dinamite, e com isso derrubar os barracos sobre a pedreira; ou negar-se a executar o

serviço a fim de preservar a comunidade, correndo o risco de perder o emprego. Entre

as duas vias, há a elaboração de um plano sagaz, acompanhado da tomada de

consciência: em segredo, um dos trabalhadores sobe até os barracos e reúne os

moradores, em protesto. Por fim, a pedagogia se completa: o povo, consciente de sua

opressão, se une e consegue se impor ao opressor. Nessa narrativa, o que também

chama atenção, para além do enredo, é a maneira como Leon trabalha suas rígidas

composições de plano e direção de atores junto à alternância “pensativa” de planos.

30

Bem como a nova valoração de elementos corriqueiros como a tocha de fogo, o pavio, a

resistência das pedras ou a força mecânica de uma máquina trituradora.

Do materialismo ao antropológico

Assim, vemos a construção de uma tese central que é plasmada em cada detalhe

do filme, como quer Pudovkin, associado ao uso dialético da montagem, em uma clara e

confessa homenagem a Eisenstein. O filme, apesar de exageradamente esperançoso,

retrato de um momento histórico bastante específico, já deixa entrever, em germe, os

instrumentos que irão compor, ao longo da filmografia do diretor, seu método de

investigação. Contudo, em seu processo de cinema, Leon passa a incorporar, ao

materialismo histórico, uma outra dimensão, a do viés antropológico, tanto na maneira

de pensar os filmes de forma geral, como na metodologia específica de filmagem: a

observação participante – que produz certo efeito de improviso em seu cinema que

contrasta de maneira interessante com o rigor estético exposto acima.

Filmes como Nelson Cavaquinho (1969), Partido Alto (1976/82), Cantos de

trabalho (1975) e ABC da Greve (1979/90) trabalham elaborações de montagem

sofisticadas a uma outra dimensão, crescente, em seu cinema. Esse aparentemente

contraditório encontro entre o materialismo histórico e o antropológico em seu cinema

pode ser compreendido a partir de proposições de Darcy Ribeiro (2006), para quem o

desenvolvimento cultural do brasileiro, a partir do entrechoque étnico inicial, se deu sob

regência da matriz portuguesa, conformando todo um povo “novo”, recém forjado,

como um “velho” proletariado fruto da expansão ultramarina europeia, com o objetivo

maior, entre catequizações e construções, de gerar lucros. Para Darcy, as forças

mercantis, capitalistas e econômicas foram fundamentais para a gênese do povo

brasileiro, além dos cruzamentos étnicos e de forças ecológicas e imigratórias, por um

violento processo de supressão de identidades étnicas discrepantes e de repressão social

e classista.

Desse modo, é importante constatar que a problematização do sistema

institucional, notadamente a propriedade fundiária e o regime do trabalho, que, segundo

Darcy, está na base da gênese do povo brasileiro, constrangendo e deformando suas

expressões culturais e suas projeções como sujeitos capazes de reordenar o curso

histórico, coincide com o projeto cinematográfico de Leon Hirszman: dar à imagem

esse mesmo povo oprimido e expor, em toda sua complexidade, aquela cultura relegada

31

à margem, visando a conscientização acerca da situação de opressão e a tomada de

atitude rumo à reordenação dos signos da história.

A explicitação desse fator, por outro lado, no cinema de Hirszman, se dá a partir

da exposição, pela câmera, das formas de vida, relações de trabalho e produção,

questões de higiene e saúde, enfim, daquilo que é material. É o que se dá, por exemplo,

em um filme tardio de Leon, ABC da Greve: quando a turbulência inicial da paragem

das fábricas se esfria, e tomam lugar as negociações entre patrões e sindicatos, Leon sai

da praça e do estádio, palcos para os comícios, e busca registrar as casas e as vidas e as

condições inóspitas de trabalho daqueles sujeitos políticos. Sem abrir mão, em nenhum

momento, da estética para a emergência de imagens políticas em seu cinema. A

evolução entre o materialismo e o antropológico, entretanto, deverá ser aprofundada de

maneira adequada em oportunidade futura, aliada a uma densa análise fílmica que possa

demonstrar, nos filmes, a composição do método que acabamos de delinear.

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São Paulo: Paz e Terra, 2008.

32

NOVA COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL CONVERGÊNCIA,

MARKETING E MÍDIA SOCIAL

Aletéia Patrícia de Almeida Selonk, PUCRS

Anaurelino Negri da Costa Silva, Mestrando PPGCOM-PUCRS.

Este trabalho tem como objetivo reunir um conjunto de conceitos contemporâneos de

comunicação, que são utilizados de forma crescente no universo corporativo. Além de

definilos sob o enfoque teórico, a sua aplicação será ilustrada através da parceria entre a

Dell Brasil e a Pucrs entre

os anos de 2014 e de 2015 em um projeto de renovação comunicacional planejado para

a empresa.

1 CONVERGIR PARA EMERGIR

Uma série de conceitos capitais da comunicação, hoje, orbitam em torno de dois temas

centrais: a cultura da convergência e os sistemas emergentes .

Jenkins (2009) define o termo “convergência” ao constatar que a tecnologia está

caminhando para uma mesma direção: computadores, aparelhos de telefone, t ablets e,

até mesmo, relógios e óculos dão acesso aos principais endereços eletrônicos do mundo

através da internet. Ou seja, todos esses aparelhos possuem funções diferentes e são

utilizados ao longo do dia em circunstâncias distintas mas convergem levando o usuário

a lugares semelhantes, conexos à internet. Um exemplo prático disso é o indivíduo que

acessa diariamente o Facebook. Sabemos que ele vai acessar a rede social ativamente ao

longo de sua rotina, independente de fazêlo por meio do seu aplicativo no celular,

dentro de um ônibus; ou através do site no navegador do seu computador, quando

estiver em casa; ou mesmo por comando de voz em seu relógio, caminhando pela rua. A

tecnologia e seus usuários, por mais diversificados que sejam, estão convergindo para

aplicações e lugares comuns.

Por sua vez, grande parte dos sites mais acessados e utilizados como principal

fonte de informação e de comunicação hoje são aqueles que chamamos de “mídias

sociais”: Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, entre outros. Em setembro de 2014,

as mídias sociais ultrapassam os sites de busca no tráfego de redirecionamento de

conteúdo20 e é estimado que 74% de todos os usuários da internet utilizem sites de

mídia social 21, assim como 28% do tempo gasto online seria nessa mesma espécie de

plataforma22. Esses espaços virtuais cresceram de maneira exponencial nos últimos

anos, devido a uma característica principal em comum: o engajamento de seus usuários.

Ou seja, a

20 Pesquisa realizada pelo site Shareaholic, publicada em janeiro de 2015: https://blog.shareaholic.com/

socialmediatraffictrends012015/, acessos em junho de 2015.

21 Pesquisa realizada pelo Pew Research Center:http://www.pewinternet.org/factsheets/

socialnetworkingfactsheet/ , acessos em junho de 2015.

22 Pesquisa realizada pelo Global Web Index, publicada em janeiro de 2015:

https://www.globalwebindex. net/blog/dailytimespentonsocialnetworksrisesto172hours, acessos em junho

de 2015.

33

grande maioria do conteúdo gerado por essas mídias é oriunda de seus usuários através

de uma “publicação” no Facebook, de uma “postagem” no Twitter ou de um “upload”

no YouTube. Isso motiva as pessoas a compartilharem o conteúdo dentro do seu ciclo

de amigos.

Afinal, dessa forma elas se sentem engajadas a interagir e a manter o ciclo de

compartilhamento com seus afins. Esse tipo de ambiente virtual também é conhecido

como “sistema emergente”. Johnson (2003) explica que um sistema emergente funciona

quando os indivíduos que o compõe realizam ações simples entre si como o

compartilhamento de informações do seu interesse; contudo, esses indivíduos são tão

numerosos quando se observa o grupo inteiro (todos os usuários do Facebook, por

exemplo) que as suas interações simples, entre usuários individuais, ganham dimensão

complexa e profunda conforme o conteúdo se espalha pela cadeia de usuários. As suas

informações as postagens e compartilhamentos, por exemplo são discutidas, reescritas e

aprofundadas, conforme a informação se propaga, ao longo da cadeia. Uma série de

indivíduos mais distantes começa a acrescentar o seu conhecimento à

informação e isso se propaga em uma progressão geométrica. Sujeitos outrora leigos

começam a se tornar semiespecialistas em determinados assuntos conforme adentram

em discussões, absorvendo e difundindo o conteúdo agregado. É dessa forma que um

conjunto de indivíduos realizando ações simples acaba gerando uma ação final

complexa, ao observarse o grupo maior. Ou seja, em um sistema emergente, a soma da

inteligência individual dos seus componentes é menor do que a soma total da

inteligência produzida pela comunidade da qual eles participam tendo em vista o

conhecimento agregado e difundido através da comunidade.

Esse potencial coletivo, portanto, é uma das razões que impulsionam a presença das

mídias sociais no contemporâneo.

2 COLETIVIDADE PARTICIPATIVA

Os sistemas emergentes de comunicação utilizam outros dois elementos fundamentais: a

inteligência coletiva e a cultura participativa.

A inteligência coletiva nada mais é do que a construção de conhecimento através de um

grande coletivo de pessoas, que contribuem de forma voluntária por meio das suas

aptidões individuais com o intuito de cooperar para a construção de um bem maior, útil

a todos os usuários deste conhecimento. Jenkins (2006) enaltece o quão comum se

tornou o engajamento coletivo através da internet para soluções de problemas do

interesse comum dos indivíduos envolvidos no processo.

O conceito de cultura participativa é conexo à construção do conhecimento através da

inteligência coletiva. Representa o hábito social de colaborar de forma ativa em um

determinado ambiente seja ele um grupo de pessoas, uma rede social ou uma empresa.

Nada mais é do que a criação de um local propício para a construção coletiva. Ou seja,

que não só dê espaço para os seus indivíduos se manifestarem, mas também que aplique

suas contribuições em medidas construtivas, para que estes indivíduos vejam os efeitos

positivos com os quais contribuíram e se sintam motivados a continuar colaborando. Em

resumo, é a motivação seminal da próatividade, que Gillmor (2005) resume ao explicar

o ambiente cooperativo dos blogs .

É por meio da inteligência coletiva e da cultura participativa que surgem construções

cooperativas como a Wikipedia, por exemplo. A enciclopédia virtual utiliza a

34

inteligência coletiva de seus usuários, que colaboram através da cultura participativa. O

conteúdo final produzido pelo grupo maior é detalhado, especializado e extremamente

confiável, tendo em vista a vigilância constante de todos os seus usuários que se tornam

cada vez mais especialistas nos assuntos pelos quais se interessam. É graças a esse ciclo

virtuoso da tecnologia que Gillmor (2005) considera o conhecimento gerado pela

Wikipedia como o de maior relevância enciclopédica para a civilização contemporânea.

Ao passo que se tornou perceptível o benefício destas práticas para os modos de

produção contemporâneos, esse conjunto de técnicas não tardou a ser aplicado no

mercado corporativo. É através dos conceitos apresentados até aqui que métodos

inovadores em comunicação têm revolucionado o marketing empresarial, alterando os

conceitos preestabelecidos de empresa, consumidor e tecnologia.

3 A TRANSFORMAÇÃO DE MECANISMOS TRADICIONAIS

A Pucrs, em parceria com a Dell Brasil, possui um exemplo empírico de um

programa de renovação comunicacional que se apropia da teoria para construir

resultados práticos. Como caso de estudo objeto deste trabalho, será analisada uma

renovação de linguagem realizada no canal “Dell Suporte Brasil” na plataforma

YouTube.

Decidiu – se utilizar a plataforma do YouTube como um espaço de experiência para

novos conteúdos ofertados aos consumidores da empresa. Esse espaço se tornou uma

espécie de reinvenção do sistema de FAQ (F requently Asked Questions ) da Dell Brasil

em um canal mais orgânico e interativo que preserva toda a utilidade do mecanismo de

“perguntas frequentes” tradicional, acrescentando novas vantagens à disposição do

usuário, em benefício da empresa. O conceito tradicional de FAQ apresenta uma lista

escrita de perguntas e respostas sobre os temas mais recorrentes inquiridos ao setor de

suporte. Sua principal função é diminuir o número de questionamentos a este

departamento, informando o consumidor da maneira mais eficiente para ambas as partes

sendo necessário criar as melhores condições de visibilidade e funcionalidade para

potencializar a utilidade de um FAQ.

Para aumentar a eficiência desse mecanismo, decidiu-se reinventar seu modelo

tradicional através das novas diretrizes de comunicação supracitadas. A equipe de

suporte passou a gravar vídeos com tutoriais dos temas mais questionados pelos

usuários diminuindo a ênfase do FAQ redigido e pouco atrativo para o consumidor.

Esses vídeos ficam catalogados no canal da Dell Brasil, no YouTube, e o seu conteúdo é

amplamente divulgado a partir da página da empresa no Facebook e no Twitter. Ou seja,

além de tornar o conteúdo mais atrativo, os vídeos ganham visibilidade nos principais

canais de comunicação utilizados pela marca. Ainda, os usuários podem utilizar o

espaço de comentários do YouTube para acrescentar informações e opiniões relevantes

ao FAQ. Da mesma forma que podem compartilhar o conteúdo entre amigos e

interessados no assunto, diretamente através do YouTube, do Facebook ou do Twitter

criando uma colaboração de natureza emergente.

Dessa forma, escolheu – se um mecanismo fundamental para o setor de suporte no

âmbito empresarial e reinventouse essa ferramenta através de novas possibilidades de

35

interação com o cliente, conforme as atuais diretrizes teóricas da comunicação. Ou seja,

aproveita - se a inteligência coletiva dos usuários e as suas experiências individuais com

os produtos da Dell para aumentar a abrangência do conteúdo fornecido pelo FAQ, por

meio da contribuição do próprio consumidor em um ambiente interativo. Esse espaço de

diálogo aumenta o engajamento do cliente com a marca, propiciando um ambiente

favorável para a cultura participativa gerando o e mpowerment do consumidor. É dessa

maneira que essa plataforma orgânica se torna um ambiente de propagação de conteúdo

emergente, que será compartilhado através dos maiores sítios de comunicação

contemporâneos. Esses espaços virtuais são o ponto de chegada das tecnologias

convergentes utilizadas por todos, completando o círculo virtuoso que potencializa as

possibilidades dessa nova ferramenta.

O grau de engajamento dos usuários aumentou de forma considerável após a aplicação

destas medidas. Novas formas de interação foram criadas como vídeos amadores dos

consumidores em resposta ao conteúdo postado no YouTube aproveitando a

participação do usuário, utilizando ele próprio como protagonista de sua marca.

Portanto, o indivíduo torna – se colaborador ativo da empresa e de sua missão como

decorrência natural do empowerment recebido nos novos canais de comunicação com a

entidade.

4 AFETOS HORIZONTAIS

A transformação do FAQ é um exemplo de sucesso de como se pode utilizar a

convergência e os sistemas emergentes em benefício do fortalecimento de uma

corporação. Contudo, ainda existem outros elementos contemporâneos da comunicação

que podemos identificar nesse tipo de relação com o intuito de potencializar não só o

binômio empresaconsumidor, mas também de fortalecer a marca e de renovar sua

missão através do marketing afetivo. Dois conceitos se destacam nesse ínterim: a h

orizontalização do relacionamento com o usuário e a economia afetiva dos meios de

divulgação.

Resta claro como é importante ceder espaço para a manifestação do consumidor que

hoje é representado por indivíduos participativos, buscando voz ativa para interação

com uma marca que lhes agrada, na tentativa de customizar a sua relação com o produto

ofertado. Toda essa cautela em se escutar a esta opinião representa, na verdade, uma

maneira de cultivar uma relação equânime entre empresa e usuário. Como esclarece

Gillmor (2005), essa linha reta de hierarquia e diálogo é conhecida como relação de

horizontalidade, que surge em detrimento da antiga dinâmica de verticalidade

corporativa na qual o conglomerado impunha as suas políticas “de cima para baixo”, em

direção aos seus consumidores, que se submetiam as suas diretrizes. Como vimos, é

mais proveitoso para a própria empresa funcionar através do feedback simples dos seus

usuários que, em conjunto, produzem um conhecimento complexo, mais produtivo do

que o conhecimento especializado formulado por uma minoria hierárquica. Caso similar

ao do comparativo entre a Wikipedia e a enciclopédia tradicional, lançado por Gillmor

(2005), em que se mostra mais vantajoso fazer mão da inteligência coletiva. Ou seja, é

uma forma de compreender a organização corporativa em uma direção bottomup , e não

mais t opdown como outrora, ao passo que Jenkins (2009, p. 35) resume:

“talvez os líderes da indústria estivessem reconhecendo a importância do papel que os

consumidores podem assumir não apenas aceitando a convergência, mas na verdade

conduzindo o processo”. Trata - se, novamente, do sistema emergente de cooperação.

36

Gillmor (2005, p. 43), por sua vez, afirma: “no fundo, as tecnologias da informação do

futuro estão a estimular qualquer coisa emergente um diálogo em que os indivíduos são

absolutamente essenciais”, assim como relata Johnson23: A emergência dá – se quando o todo é mais inteligente do que a soma de suas

partes… E, mesmo quando não se sabe como, acaba por aparecer uma

estrutura de nível superior, habitualmente sem derivar de qualquer criador

que possa reivindicar a autoria do plano. Os sistemas deste tipo crescem da

base para o topo.

5 HUMANOS SOCIAIS

É importante frisar que quando o consumidor dispõe do seu tempo para interagir com

uma companhia seja através de um elogio ou de uma crítica essa

é uma demonstração legítima de que ele dá importância a essa entidade. As empresas

tendem a ignorar críticas ferrenhas ou jocosas em redes sociais, silenciando o diálogo

com um usuário que tenta buscar respostas mesmo que de forma rude a uma insatisfação

com o conglomerado. Na verdade, não é problema a corporação abrir espaço para

manifestações críticas, contanto que responda a estas reclamações de forma humanizada

no intuito de solucionar o problema ou de tratar a opinião do manifestante com respeito

e atenção, indicando que aquela contribuição individual será utilizada para melhorar o

comportamento do grupo com o seu público, visando melhor satisfazer a ele e a todos

os demais interessados.

Essa constatação nos leva a um ponto fundamental no conceito de horizontalidade: a h

umanização da empresa. Quando o consumidor percebe a figura humana por trás da

corporação, nasce um vínculo de proximidade especialmente através da linguagem dos

conglomerados em redes sociais, quando utilizam uma narrativa menos formal, com o

uso de jargões, memes, emoticons e por meio de uma postura individualizada de

resposta (evitando comportamentos protocolares e textos mecânicos), que demonstra

atenção e respeito com o usuário. Dessa forma, sua postura inicialmente agressiva é

amortizada pelas sensações de reconhecimento e cumplicidade, construídas através de

um canal mais humano e atento para a solução de seus problemas. As redes sociais são

o meio ideal para construção desse vínculo, como esclarece Gillmor (2005, p. 82): “a

utilização da internet como ferramenta de aproximação com o leitor humaniza os

grandes veículos de comunicação”,

assim como os grandes conglomerados corporativos.

Por sua vez, o conceito de humanização está ligado a outro ponto fundamental da

comunicação contemporânea: a economia afetiva. Como mencionado anteriormente, o

consumidor só encaminha a sua manifestação crítica para uma empresa quando guarda

alguma consideração por ela, mesmo que esteja irritado no momento da manifestação

do contrário, não gastaria o seu tempo preocupandose em comunicar a companhia a

respeito de suas insatisfações. Essa “consideração” nada mais é do que um vínculo

afetivo que o usuário possui com a marca, que transpassa uma relação estritamente

comercial. Esse tipo de relacionamento entre público e empresa é o combustível que

alimenta a economia afetiva.

Divulgar uma marca hoje, de forma eficiente, não é uma missão simples. Existe

23 Em entrevista concedida para o site O ’Reilly , disponível em h ttp://www.oreilly.com, acessos em

junho de 2015.

37

uma barreira de rejeição do espectador com a publicidade tradicional afinal, os

comerciais clássicos de atuações encenadas e grande refinamento técnico já tem seu

modelo desgastado, causando pouquíssima sensação de verossimilhança (ou

identificação) no espectador. O princípio da economia afetiva reverte esse conceito

clássico de marketing, fazendo mão de uma propaganda subtextual através de outros

valores da empresa que cativam o espectador e não propriamente dos seus serviços, de

forma explícita. Peças comerciais como essas buscam os valores constituintes da missão

de uma companhia e transformam esses valores mais abstratos em conceitos

relacionados ao l ifestyle de seus usuários e aos valores comungados com o seu público

alvo. A construção desse tipo de peça geralmente se dá através de um st orytelling .

Dessa forma, a economia afetiva quebra a barreira de resistência ao anúncio e

transforma a marca e seus produtos em bens afetivos, que possuem mais valor para um

espectador nesse formato de metáfora do que propriamente como um bem físico

comercializado pelo conglomerado. Jenkins (2009, p. 48) entende que não existe forma

mais efetiva do que essa para cativar o consumidor, na comunicação contemporânea:

A nova “economia afetiva” incentiva as empresas a transformar as marcas

naquilo que uma pessoa do meio da indústria chama de ‘lovemarks’ e a

tornar imprecisa a fronteira entre conteúdos de entretenimento e mensagens

publicitárias. Segundo a lógica da economia afetiva, o consumidor ideal é

ativo, comprometido emocionalmente, e parte de uma rede social.

Por fim, após a menção descritiva do consumidor ideal, é importante ressaltar o

Papel chave das redes sociais no universo corporativo perante os seus usuários. A

utilização do Facebook, Twitter e YouTube como canais de comunicação empresarial é

uma escolha fulcrada na diversificação dos meios de comunicação, como explica

Jenkins (2009, p. 38): “Novas tecnologias midiáticas permitiram que o mesmo conteúdo

fluísse por vários canais diferentes e assumisse formas distintas no ponto de recepção”.

Assim sendo, essa difusão da informação por meio de diferentes canais prolifera a

oportunidade de interação e de construção conjunta por meio da cultura participativa.

Da mesma forma, aproveita - se em maior grau a inteligência coletiva do consumidor.

Jenkins (2009, p. 46) ilustra:

Consumidores estão aprendendo a usar as diferentes tecnologias para ter um

controle mais completo sobre o fluxo da mídia e para interagir com outros

consumidores. As promessas desse novo ambiente de mídia provocam

expectativa de um fluxo mais livre de ideias e conteúdos. Inspirados por

esses ideais, os consumidores estão lutando pelo direito de participar mais

plenamente de sua cultura.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui - se, portanto, que é possível elencar um conjunto de diretrizes concretas e

interdependentes da comunicação contemporânea para aplicação através de práticas de

produção corporativa gerando resultados positivos. Mais do que elementos hodiernos, a

convergência, os sistemas emergentes, a inteligência coletiva, a cultura participativa, a

horizontalidade, a economia afetiva, a humanização corporativa e a utilização das

mídias sociais são práticas que já demonstram sua eficácia quando aplicadas aos meios

de comunicação. É dessa forma que projetos de inovação comunicacional, como a

parceria entre a Dell Brasil e a Pucrs, geram frutos com resultados expressivos para o

38

setor empresarial em um curto espaço de tempo. Afinal, tendo em vista as céleres

transformações tecnológicas e culturais que vivenciamos, mais do que nunca é preciso

tomar ações progressistas com o devido respaldo teórico para não se recair em uma

obsolecência mascarada de tradição.

FONTES DE INFORMAÇÃO

ANDERSON, Chris. A cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho .

Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

GILLMOR, Dan. Nós, os media . Queluz de Baixo, Barcarena: Editorial Presença,

2005.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência . São Paulo: Aleph, 2009.

_________. Fans, bloggers, and gamers . Nova Iorque: New York University, 2006.

JOHNSON, Steven. C ultura da Interface: como o computador transforma nossa

maneira de criar e comunicar . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

_________. E mergência: a vida integrada das formigas, cérebros, cidades e softwares

. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SANTIAGO, André. O uso corporativo da web 2.0 e seus efeitos com o consumidor .

Disponível em: , acessos em junho de 2015.

39

SESSÃO III – NARRATIVAS, REPRESENTAÇÕES E NOVAS

FORMAS DE CIRCULAÇÃO

Dualidades Diluídas: desafios conceituais acerca da circulação do audiovisual

na Internet24

Dra. Angela Meili (UNESPAR/UV)

Resumo:

Na contemporaneidade, um período que pode ser pensado como

hipermodernidade (LIPOVETSKY e SERROY, 2009), quando o excesso de

velocidade e de conexão nas trocas econômicas e informacionais problematiza

categorias de pensamento da modernidade, notamos o impacto direto das redes

digitais na economia do audiovisual, que encontra diluídas uma série de

categorias que antes definiam e estruturavam esse mercado. No presente artigo,

apresentamos de que maneira as plataformas digitais de distribuição audiovisual

influenciam na diluição uma série de dualidades antes consideradas estáveis,

quais sejam: formalidade e informalidade, legalidade e ilegalidade, grátis e

pago, acesso e privilégio, cooperação e oportunismo, profissionalismo e

amadorismo.

Palavras-chave: economia audiovisual, plataformas digitais, distribuição,

pirataria, cinema.

Introdução

A cultura humana, que se manifesta nas mais variadas dimensões da percepção e

do trabalho, encontra, nos modos de registro simbólico dos suportes materiais, a

possibilidade de expandir espacialmente e temporalmente o alcance dos caracteres

racionais e estéticos das suas linguagens. O desenvolvimento de formas culturais

sempre também acompanha o desenvolvimento de técnicas ou tecnologias, seja de

registro, seja de difusão dos signos. Sabe-se que o nascimento de tecnologias como a

escrita, a imprensa ou a fotografia promoveu à humanidade o incremento de suas

manifestações culturais e formas de pensamento; veja, por exemplo, o fundamento da

racionalidade moderna, que é diretamente dependente de um pensamento linearizado e

que se constrói, sobretudo, na forma escrita; ou, ainda, veja a integração de identidades

e percepções nacionais que foi, ao longo da história, impulsionada pela consolidação da

imprensa como um meio de comunicação e difusão da informação (BHABHA, 1990).

24 Este trabalho apresenta reflexões desenvolvidas na tese de doutorado Cinema na Internet: Espaços

Informais de Circulação, Pirataria e Cinefilia, defendida, pelo autor, no Programa de Pós-Graduação em

Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 2015.

40

Entende-se que a constante criação e recriação de tecnologias comunicacionais

(considerando, portanto, o registro e a difusão de signos), é um movimento que coincide

com a própria conformação dos processos culturais e civilizatórios. A dinâmica das

relações humanas, formalizada nos inúmeros modos de representação e expressão

sígnica, está constantemente sofrendo impactos provenientes do avanço tecnológico.

Sobretudo, o próprio avanço tecnológico é também um componente cultural, que, a todo

momento, sofre releituras e obtém investimentos de atores que, com as mais variadas

intenções, normalmente associadas à dinâmica capitalista, promovem um ambiente de

constante instabilidade, onde a única certeza que se pode ter é a de que os meios nunca

param de se alterar.

Desde os brinquedos ópticos pré-cinematográficos, passando pela criação do

cinematógrafo, pela expansão e consolidação do cinema enquanto uma instituição

cultural, atravessando o grande impacto da televisão – que tão próxima do rádio,

também trouxe suas próprias dimensões imagéticas –, chegando ao videotape e, por fim,

à mídia digital, a produção e circulação da imagem em movimento foram uma história

(não tão longa, pode-se dizer) de constantes inovações e recriações, não só no que se

refere à cultura das formas imagéticas, mas também ao mercado, ou seja, à exploração

econômica dessas formas. A cultura da imagem encontrou alto valor no cerne da

formação das civilizações contemporâneas, que passaram a utilizar intensamente a sua

força simbólica. Uma força simbólica com potencial de atuar nos mais diversos campos

sociais e que passou a ocupar, a partir da expansão dos meios eletrônicos e, logo em

seguida, digitais, intensamente os espaços de interação proporcionados pelas mídias.

As tecnologias digitais de comunicação estabeleceram um novo paradigma sobre

como se lidar com a informação, especialmente porque a imaterialidade da cópia e do

registro somada à interconectividade e abrangência da emissão e recepção por polos

cada vez mais heterogêneos, resultaram em uma convergência das mídias no mesmo

espaço de trocas, em um mundo digital constituído de códigos, cujas possibilidades de

rearranjo e reconstrução infinitas resultaram no desenvolvimento de soluções de

distribuição de conteúdo informacional até então desconhecidas, o que alterou

sobremaneira os mercados midiáticos e culturais.

Em pesquisa de doutorado, desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em

Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em

2015, observamos os meandros da circulação do audiovisual dentro da internet,

chamando a atenção para a complexidade inerente ao fenômeno, onde os modos de

41

acesso à mídia audiovisual assumem formas diversas e produzem um âmbito muito

mais amplo e dinâmico de contato e experiência com tais bens culturais, cuja

abrangência insere novos atores e métodos de distribuição e recepção.

Se os meios tradicionais de comunicação trabalham, desde sempre, com uma série

de dualidades que os caracterizam, notamos que os meios digitais promovem uma

desconstrução ou diluição dessas dualidades, que acabam por se articular de diversas

maneiras, dependendo da plataforma ou do fenômeno específico que observamos.

Trabalharemos, no presente artigo, com a ideia de que não é mais plena a distinção entre

as seguintes dualidades: formalidade e informalidade, legalidade e ilegalidade, grátis e

pago, acesso e privilégio, cooperação e oportunismo, profissionalismo e amadorismo.

Essas dualidades diluem-se na malha tecnológica e simbólica do espaço digital.

Apresento tal diluição, a partir de uma pesquisa que explora a ecologia das janelas

de distribuição, a pluralidade dos discursos e práticas piratas e as plataformas

BitTorrent. Em um processo de hibridização de formas midiáticas e culturais, o

fenômeno da circulação informal digital desconstrói paradigmas da indústria. O

mercado formal influencia as redes informais, ao mesmo tempo em que estas se

formalizam em seu próprio espaço de legitimidade; os mesmos espaços são

reapropriados e explorados por agentes formais. A coexistência da circulação oficial e

da circulação desobediente faz notar, em ambas, tanto traços de formalidade, como de

informalidade.

O fenômeno participa da desestabilização do direito autoral, o que exige superar

abordagens criminalistas sobre a pirataria, cuja significação produz um espectro

semântico cada vez mais amplo. Legalidade e ilegalidade passam a ter percepções

morais relativizadas, o que se liga à extensão e abrangência do fenômeno. Abrangência

gerada pela possibilidade infinita de cópia, cuja superabundância de conteúdos gera

novas apreciações do preço (ou valor) do bem cultural. A fruição ocorre sem mediação

da compra e outros engajamentos são mobilizados pelo usuário. A cultura do grátis,

todavia, não exclui a exploração comercial das obras, produzindo novos modelos de

negócio. Mesmo sendo, os piratas, amadores e entusiastas, a qualidade do seu trabalho e

conhecimento, em muitos casos, é profissional; hackers, programadores, produtores

independentes, tradutores, colecionadores, ainda que não tenham vínculos formais de

trabalho com seus projetos, os levam a sério e agregam alto valor ao mercado

informacional.

42

Ainda que plataformas, canais, arquivos e ferramentas informais sejam

produzidos para viabilizar a circulação e, assim, o acesso aos bens culturais, há muitas

camadas protetivas que controlam o espalhamento. Grupos piratas privados produzem

espaços de acesso privilegiado, criando zonas de exclusividade. Assim, mesmo que

esses espaços tenham um caráter essencialmente colaborativo, não se trata de uma rede

de relações perfeitamente horizontal, pois a coletividade não suprime o indivíduo, que

está em relações de disputa e legitimação pessoal. Ele é movido por interesses pessoais,

de consumo, visibilidade e legitimação e encara o acesso livre como direito adquirido

no contexto da (quase) total disponibilidade de conteúdos. Seguimos agora para a

apreciação específica de cada uma dessas dualidades.

Formalidade e Informalidade

O cinema foi a origem da “tela mágica” e, ao longo do tempo, emprestou a sua

própria semiótica aos descendentes. Conforme Manovich (2001), telas de todos os tipos,

desde a televisão até a própria interface gráfica dos computadores, reapropriaram-se do

princípio comunicativo e estético do cinema, que é a imagem em movimento. Na

ecranosfera (LIPOVETSKY e SERROY, 2009), um sistema cultural complexo e

integrado, o cinema interage com tantas outras telas. Pode-se dizer que o

desenvolvimento tecnológico potencializa a força do cinema, principalmente quando ele

passa a circular com maior velocidade, menor controle e maior qualidade de recepção.

A circulação informal intensifica a experiência com o audiovisual, sendo uma

irradiação derivada de eixos centrais da indústria cinematográfica. Ainda que o

conteúdo amador esteja presente na internet, os âmbitos formais do cinema compõem

um eixo central e legitimado de produção de conteúdo. Mesmo assim, conforme lembra

Lobato (2012), a exibição nas salas deixa de ser o epicentro da cultura cinematográfica,

dividindo espaço com todas as outras fatias oficiais e, também, informais. De acordo

com Ponte (2008), o rápido espalhamento dos conteúdos cinematográficos nas redes

digitais vem forçando os distribuidores a criarem novas estratégias de lançamento, como

o lançamento simultâneo (street date), a reduzir a distância entre as suas janelas de

lançamento e, ainda, a desenvolver estratégias de exploração nas plataformas digitais.

Pode-se dizer que a disposição dos produtores em tolerar as práticas informais e

utilizá-las a seu favor já são peças chave na evolução do vídeo nas plataformas digitais.

Trata-se de um mercado em amplo desenvolvimento e que, além de coexistir com a

informalidade, também a utiliza como potencializadora, tanto no que se refere à

43

publicidade, quanto à compreensão e estudo das preferências e hábitos do público. Em

um ambiente complexo e inseguro para investidores, a distribuição formal pela internet

pertence a um contexto de desenvolvimento tecnológico que demanda por inovações

que satisfaçam tanto o consumidor como o produtor. De acordo com Cunningham e

Silver (2013), forma-se um tipo de circulação híbrida que poderia ser entendido como a

reinvenção da televisão, formada por características essenciais que conhecemos da

televisão (abrangência, programação, patrocínio, anúncios, branding, produção e

aquisição de conteúdo), adaptada aos múltiplos suportes tecnológicos, à

transnacionalidade das redes digitais, à interatividade e à variedade de público e

conteúdo.

A audiência, por sua vez, é uma distribuidora eficiente de mídia, a massa molda a

presença do vídeo na internet e sugere as formas de consumo que o cinema irá encontrar

nas próximas décadas. Por isso, é importante olhar mais atentamente para o panorama

informal de circulação e compreendê-lo como parte integrante da economia audiovisual

contemporânea. Uma circulação que é sintomática das demandas sociais, do modelo

centralizado de produção e distribuição do cinema, do papel da indústria do

entretenimento e da heterogeneidade cultural. De acordo com Lobato (2012), as redes

informais são componentes das indústrias midiáticas e não exceções. Ainda, vale

ressaltar que a informalidade esteve presente em todas as fases do desenvolvimento da

indústria cinematográfica, acentuando-se conforme o progresso das tecnologias

reprodutivas de vídeo.

Tendo em vista essas dinâmicas de circulação do audiovisual que caminha entre

âmbitos de formalidade e informalidade, podemos desenvolver uma reflexão que

considere o aspecto da formalidade a partir de um ponto de vista no qual essa oposição

se dilui; para isso, consideramos a noção de forma a partir de dois entendimentos.

O primeiro deles percebe que a circulação informal é propriamente informal no

sentido de que se situa fora dos processos burocráticos e estruturas do mercado de

circulação. Sabe-se, todavia, conforme já apresentamos, que esse tipo de informalidade

possui dependências inerentes à indústria do entretenimento, que é a principal

fornecedora de conteúdo, ao marketing, aos provedores de internet, aos fabricantes de

softwares, hardwares e à mídia em geral. Este é um tipo de dependência que, ao mesmo

tempo, convive com a livre apropriação de recursos e ferramentas, em um contexto

predominantemente institucionalizado.

44

O segundo entendimento que podemos ter da formalidade tem a ver com uma

propriedade conceitual da forma, relacionada à estruturação técnica das redes informais

e aos acordos sociossimbólicos interativos. Compostas em fluidez de difícil retenção, as

redes informais estabelecem temporariamente acordos simbólicos que resultam em

formas fundamentais, as quais permitem o surgimento desses sistemas comunicativos.

Observamos, na análise de grupos privados de compartilhamento BitTorrent, que uma

série de acordos simbólicos são formulados – formalidades cujo intuito é fixar diretrizes

para um projeto coletivo, estabelecendo limitações e recursos para a participação. Trata-

se da conformação de estruturas participativas que institucionalizam esses espaços

informais, produzindo regras de funcionamento.

As regras das comunidades fechadas de compartilhamento referem-se a como os

usuários deveriam se comportar, quanto e como deveriam contribuir, à padronização

dos conteúdos e técnica das plataformas, entre outros. Regras também estruturam sites

abertos, ainda que de maneira um pouco menos rigorosa, e permitem que essas

plataformas apresentem um alto grau de formalidade, conforme aponta Andersson

(2012), institucionalizando-se como entidades despersonalizadas provedoras de

conteúdo, que se apresentam de forma altamente eficaz para o público em geral. Tais

plataformas, tanto as fechadas, quanto as abertas, para Cardoso et al. (2012) podem ser

pensadas como protótipos para a distribuição do cinema na era digital e, conforme Bodó

e Lakatos (2012), originam uma lógica única de programação, que relaciona o

mainstream com as demandas fragmentadas de nicho, reservando espaços para os

gatekeepers tradicionais e, ainda assim, oferecendo possibilidades de escolha e

heterogeneidade sem precedentes.

Para Schäfer (2011), essa composição é feita por formas que dependem de fatores

diversos, como a relação entre discursos, as apropriações coletivas e o design

tecnológico, resultando em um fenômeno denominado pelo autor de material-digital, ou

seja, uma conjunção entre recursos materiais e dispositivos digitais. Essas formas são,

portanto, dispositivos comunicantes que integram funcionalidades e permitem os

processos de armazenamento, organização e troca informacional. A digitalização dos

suportes comunicacionais produziu perspectivas híbridas da relação entre informação e

forma. Essa hibridização manifesta-se tanto na interface quanto na base de dados dos

serviços.

Quando observamos a circulação dos bens informacionais na era digital a partir de

uma perspectiva rizomática (DELEUZE e GUATTARI, 1995), notamos que as

45

interações ponto a ponto assumem um número diversificado de formas. É justamente o

diálogo entre as formas que permite às redes informais e formais misturarem-se a ponto

de, progressivamente, terem difícil distinção. As redes de pirataria têm trabalhado a

serviço da divulgação de conteúdo da indústria do entretenimento, além de oferecerem

para ela muitas ideias quanto aos modos de exploração dos meios digitais; além disso, o

pirata continua sendo um grande consumidor de conteúdo pago. Conforme Mattelart

(2012), quando se pensa no grande volume do conteúdo pago encontrado no âmbito da

informalidade, pensa-se em redes subterrâneas e marginais, todavia as atividades

econômicas informais desenvolvem-se de modo altamente conectado às economias

oficiais. Por isso, não se pode pensar na informalidade como sendo algo menor, mas de

grande impacto econômico e que promove circulação significativa de bens e riquezas.

Legalidade e Ilegalidade

Tanto a organização social dada, quanto as apropriações transformadoras no seio

da criatividade formulam o contexto de discussão dos direitos do autor. Se a

Renascença foi uma era propícia para a consolidação da propriedade intelectual e da

noção de autoria, o tema entra em crise na contemporaneidade por razões contextuais,

pode-se dizer, da mesma natureza, pois também motivada por variáveis de ordem

tecnológica, econômica e cultural. Principalmente a tecnológica tem um peso

importante, tanto na Renascença, com as invenções mecânicas, quanto na atualidade,

com as invenções eletrônicas. Ao longo dos séculos, o direito do autor apresenta uma

genealogia que deriva de uma origem institucional positiva, onde se produzem as leis,

os mecanismos burocráticos de privilégios, que protegem a competição, e uma origem

ideológica que resulta de desenvolvimentos culturais em um contexto social que sofre

diversos impactos (NIMUS, 2006).

Hoje, a violação de algumas dimensões do direito autoral é comum, não sendo

moralmente condenada por grande parte da sociedade (BARRON, 2010; DENT, 2012),

ocorrendo um acordo moral resultante da força conquistada pela circulação informal,

quando esta atende às necessidades de consumo. O direito do autor é desafiado, pois o

critério de valoração dado ao conhecimento e seu registro nem sempre é estável. A

relação entre as estruturas normativas e a sociedade não é fixa ou homogênea (LEMOS,

2005), especialmente em termos de políticas da tecnologia; é comum haver disparidade

entre a norma, de caráter ideal, e a constante transformação social, ou seja, as normas

jurídicas enfraquecem diante da importância factual das comunidades de conhecimento

46

(ibid.). Apesar da aparente universalidade da lei positiva, entre as bases que pautam a

proibição e as práticas, vemos uma distância muito grande. Este é um campo aberto para

a exploração investigativa das dinâmicas culturais, que revelam as instabilidades da

relação entre as instituições de poder e o movimento das trocas informacionais, que são,

por sua vez, mediadas por tecnologias da inteligência cada vez mais complexas

(CASTELLS, 1996). CRISE DO DIREITO AUTORAL

Levando em conta o sentido histórico aplicado ao termo “pirataria” e a

transformação das bases tecnológicas e econômicas da sociedade, atribuir (i)moralidade

ao seu sentido passa a ser um tema polêmico e impreciso. A atribuição de agressão ao

direito da propriedade intelectual pode ser mais ou menos flexível, dependendo de

situações específicas.

Comentadores das leis anglo-americanas do século dezenove, e

por tal razão expositores correntes da lei positiva, chamam de

infração a violação dos direitos do autor. No século dezenove

parece que o termo foi usado indistintamente ao de pirataria (...).

Hoje, pirataria implica a reprodução comercial (como na

pirataria de discos) e, portanto, traz uma nódoa de vergonha

moral. Por isso, retoricamente carregada e, para muitos, tem um

caráter altamente contestável chamar o file-sharing de pirataria.

(GINSBURG, 2010, p. 83, tradução nosssa).

Sendo a aplicação do direito autoral dada a partir de propósitos estritamente

econômicos, sabe-se que a pirataria conecta-se fundamentalmente ao espírito capitalista,

conforme Adam Smith (1904[1776]) chamara atenção:

Nem muitas pessoas são escrupulosas quanto ao contrabando,

quando, sem perjúrio, podem encontrar uma oportunidade fácil e

segura para fazê-lo. Fingir ter escrúpulos quanto a bens

contrabandeados... seria na maioria dos países considerado

como uma hipocrisia pedante.

O que está implícito na afirmação é que o comércio ilegal sempre foi uma prática

recorrente, com objetivos utilitaristas de proveito próprio e que, consequentemente,

poderia beneficiar, com o enriquecimento, grupos ou nações. Dentro do clássico

impasse sobre quem veio antes, o ovo ou a galinha, pode-se dizer que a cópia de bens

culturais é tão antiga quanto a própria cultura (ALFRORD, 1995), justamente porque a

definição de propriedade intelectual é posterior ao surgimento dos instrumentos de

representação e produção de objetos culturais. A pirataria é tão antiga quanto o próprio

47

cinema e tem sido condutor fundamental de distribuição desde o início25 do século XX.

A distribuição não autorizada assumiu diferentes formas e abrangências, dependendo da

tecnologia emergente e foi epidêmica nas décadas iniciais do cinema. Isso nos sugere

uma nova perspectiva para pensar o conceito estabelecido de que a pirataria impede a

criatividade, já que o cinema, desde sempre, se desenvolveu em convivência com a

pirataria.

Há, ainda, que se considerar a multiplicidade discursiva que envolve a questão da

pirataria; tal multiplicidade negocia contradições socioculturais, estando em constante

movimento e participando de mudanças concretas nas sociedades. A noção de pirataria

transforma-se de acordo com os processos socioeconômicos e adapta-se historicamente,

havendo uma transformação fundamental na sua percepção moral, não sendo mais vista

pela maioria das pessoas como algo amoral ou antiético.

Por fim, o tema levanta questões importantes de natureza política, catalisando

debates democráticos sobre a internet e o uso das tecnologias informacionais; ele se

relaciona com outros fenômenos, como a dissolução da noção de autoria, a

desobediência civil, o movimento de inovações tecnológicas, os grupos anônimos, a

crise econômica, a cultura participativa, o empreendedorismo digital, o mercado

audiovisual, as economias informais, entre outros. A pirataria é, portanto, uma atividade

política e cultural que corresponde a uma gama de interesses coletivos de dimensão

global.

Grátis e Pago

Considerar que o consumo informal de bens midiáticos depende da “vontade de

pagar” é uma imprecisão que desconsidera uma série de fatores que interferem

diretamente nesse tipo de relação, pois além da vontade de pagar, há casos em que

faltam recursos para consumir, existem as limitações do mercado distribuidor, que não

oferece o produto de forma eficiente, além de uma maior ou menor desenvoltura com os

mecanismos tecnológicos que facilitam a pirataria, ou de um acesso mais facilitado ou

não às mídias piratas, dentro e fora da internet, tornando-a menos ou mais conveniente.

25 Logo no início, os filmes não eram protegidos, mas sim os equipamentos, que tinham patentes rígidas. Essa

restrição de uso do invento cinema (aplicada inicialmente por Thomas Edison) ainda não enxergava os filmes

enquanto obras intelectuais. A produção de direitos autorais os filmes foi se desenvolvendo com o tempo, na medida

da consolidação das obras como produto cultural e do cinema dentro de um modelo de indústria.

48

Por exemplo, Karaganis (2011) aponta que a ubiquidade da pirataria nos países em

desenvolvimento é consequência da inadequação entre os preços cobrados pelos

distribuidores e os recursos dos consumidores; as multinacionais precificam seus

produtos a partir da média dos países desenvolvidos para proteger seus próprios

mercados e manter uma posição de dominação, atrapalhando o crescimento de mercados

menores.

Ainda, a circulação informal não necessariamente deixa de se converter em

recursos para as indústrias midiáticas. Um exemplo é a pirataria promocional; conforme

lembra Croxon (2007), a internet com seus blogs, salas de bate-papo e outros ambientes,

viabiliza que a fofoca entre os consumidores se espalhe globalmente, gerando o buzz, o

hype, o marketing viral, o boca-a-boca. Segundo o autor, o boca-a-boca é um veiculador

importante do sucesso de vendas, especialmente da indústria do entretenimento.

Pode ser que a pirataria não prejudique diretamente a indústria, se ela encontrar

modos de satisfazer os consumidores em um cenário onde a cultura livre se instaura. A

free culture possui dois sentidos que se manifestam na tradução para o português da

palavra free: grátis (receber algo sem pagar) e livre (autonomia dos sujeitos na

apropriação das tecnologias e dos bens culturais, ideologia da desconstrução da

propriedade intelectual) (ANDERSON, 2009). A dualidade não é apenas uma

coincidência lexical, mas um fato observado na relação da sociedade com o

conhecimento, os bens simbólicos e as tecnologias. Por um lado, temos o espalhamento

de um comportamento de massa, que consiste em consumir e replicar conteúdos

culturais, apesar das restrições colocadas pelo direito autoral (a cultura do grátis). Por

outro lado, temos atitudes de apropriação tecnológicas motivadas pelo discurso da

liberdade de acesso ao conhecimento (cultura livre). Ambas têm implicações

econômicas e nem por isso destroem o sistema, mas o obrigam a se adaptar.

A circulação grátis de produtos é uma lição antiga do marketing promocional

(CROXON, 2007) e serve para influenciar psicologicamente o consumidor, mexendo

com a sua percepção e, consequentemente, produzindo demandas ao tornar os produtos

mais atraentes. Por exemplo, em 2008, vídeos do Monthy Python foram distribuídos

gratuitamente no YouTube, o que resultou na multiplicação de vedas dos DVDs na

Amazon.com. E, ainda, houve o emblemático caso do filme Tropa de Elite (José

Padilha, 2007) que revelou o poder promocional da pirataria: o lançamento previsto

para novembro de 2007, a cópia pirata começou a circular nas ruas em agosto, o que fez

com que a estreia fosse antecipada em um mês, acontecendo no dia 12 de outubro.

49

Estima-se que 12 milhões de pessoas tenham assistido às cópias piratas (LOBATO,

2012), tendo sido o filme mais pireteado da cinematografia nacional e, apesar do pouco

investimento em publicidade, o sétimo mais assistido no Brasil, naquele ano,

alcançando um público de quase 2,5 milhões de espectadores (CARDOSO et al, 2012),

quantidade que, supõe-se, não teria sido alcançada sem a publicidade pirata.

Pode-se dizer que o livre compartilhamento dá visibilidade a obras de fontes mais

heterogêneas, o que torna a pirataria um agente cultural “pedagógico” que interfere nas

sensibilidades do público. Hoje, o grátis encontra proporções amplas e diversas: ele está

relacionado à imaterialidade dos bens culturais e suas novas formas de circulação no

espaço digital. É parte integrante de um novo sistema econômico resultante da

sociedade da informação, dos bits ao invés de átomos (NEGROPONTE, 1999).

O aumento da oferta, sem aumento da demanda, a imaterialização do suporte, a

facilidade de acesso, o estímulo da indústria informática, que obtém vantagens com a

gratuidade, e o aparecimento de uma nova geração que se acostuma a compartilhar

livremente os conteúdos, sem restrições morais, são os principais fatores que deram

força ao conceito free. Os sistemas alternativos e descentralizados de distribuição da

informação contribuem para o surgimento de mercados inovadores, revelando públicos

e culturas. Quanto mais diversa a distribuição de uma arte ou produto, maior a

possibilidade de surgirem novos mercados. As rádios piratas dos anos 1960, na

Inglaterra, chamaram a atenção para o público do rock, o que, posteriormente, tornou-se

uma das maiores indústrias do entretenimento do século XX (MASON, 2009). Quanto

mais disseminadas as práticas descentralizadas de informação, maior a possibilidade de

inovação. No sistema capitalista, o lucro vem na inovação. Principal mote de “como

ganhar dinheiro”, inovar é o movimento constante das trocas.

Um outro aspecto sobre a gratuidade, importante de ser mencionado, é que,

principalmente em comunidades fechadas de torrent, notamos um alto engajamento dos

usuários, que, para obterem uma série de privilégios dentro desses grupos ou até mesmo

para terem o direito de participar deles, precisam investir em trabalho ativo,

acrescentando conteúdo, fazendo legendas, traduções, organizando o banco de dados,

moderando comentários e contribuindo com banda de internet, ao fazerem uploads;

ainda, como lembra Kosnik (2012), os usuários precisam também investir

financeiramente, ou seja, gastar dinheiro, ao contratarem serviços de internet com boa

conexão, comprarem hard disks, assinarem contas em redes privadas virtuais, entre

outros. Notamos, em nossa análise, o que vai de acordo com De Sá (2013), que há uma

50

quantidade significativa, no âmbito informal, de pessoas engajadas em produzir

traduções e legendas, o que exige bastante trabalho dos voluntários. Isso quer dizer que,

em muitos casos, o grátis pode não ser totalmente grátis, quando notamos todos esses

investimentos e engajamentos no âmbito do consumo informal, sem contar nos riscos de

punição, perante a lei, que os usuários podem estar correndo ao participarem dessas

redes.

Acesso e Privilégio

Quando observamos o universo torrent, nos damos conta de que ele tem como

mote principal o acesso à informação e aos bens culturais, tomando isso como uma

bandeira ideológica que se posiciona no enfrentamento às indústrias culturais e aos

mediadores oficiais, procurando se afirmar como representantes de uma legítima

apropriação dos recursos tecnológicos para a liberdade da informação. Em nossa

pesquisa, analisamos um site de convites para grupos de torrent privados, o Torrent-

invites.com, e observamos que, em sua chamada principal, existe a afirmação de que

seus membros seriam fiéis ao “verdadeiro sentido do compartilhamento”, tendo como

objetivo criar uma “comunidade de torrent verdadeiramente global”. O site promete

conter informações atualizadas sobre os trackers privados e guiar o usuário,

introduzindo-o a este “verdadeiramente secreto e iluminado público”. Perceba que há

um grande entusiasmo em relação a esse universo, onde o uso repetido da palavra

“verdade” refere-se a um espectro discursivo segundo o qual a comunidade coloca-se

como representante legítima de uma cultura da pirataria, cujos eixos ideológicos já estão

estabelecidos e são compartilhados por um grupo seleto de pessoas. Sites de convites,

como esse, apresentam-se como mediadores entre pessoas comuns e tal mundo secreto,

articuladores que promovem ritos de passagem, que exigem engajamento e

conhecimento dos usuários para que estes conquistem seu lugar em um mundo de

privilégios.

Também notamos uma perspectiva parecida ao analisarmos um grupo cinéfilo

privado de torrent26, dedicado exclusivamente ao cinema, cujo slogan é o “verdadeiro

cinema”, o que, por implicação, leva a pensar que o grupo trabalha com uma

cinematografia considerada legítima de ser chamada de cinema, ao contrário de outras

que seriam menos dignas ou falsas. Por isso mesmo, ainda que a perspectiva central do

26 Maiores detalhes sobre o estudo desse grupo podem ser encontrados na tese.

51

site seja disponibilizar e facilitar o acesso a cinematografias diversas, para além da

cultura de massa, o site coloca-se numa zona intelectual privilegiada, de um público

específico e selecionado, ao passo que também o conteúdo é rigorosamente selecionado

e está muito distante do que se pode pensar como sendo um gosto comum.

Por outro lado, as redes de compartilhamento de conteúdo cinematográfico na

internet são, claramente, constituídas para o acesso, ou seja, posicionam-se dentro de

um viés pós-colonialista, no sentido de que estão ativamente engajadas em diminuir o

déficit cultural que assola grande parte da população mundial, no sentido de que esta

não encontra meios para acessar uma série de conteúdos, seja pelo fato de não são

massivamente distribuídos ou, ainda, pelo simples fato de não possuírem

disponibilidade econômica para o consumo cultural. Muitas vezes, a pirataria é uma

atividade cotidiana praticada em contextos onde não existem alternativas legais;

conforme aponta Dent (2012), as práticas informais tornam-se antídotos contra o alto

preço de acesso aos produtos culturais, resultante de um regime de propriedade

intelectual que encoraja tendências monopolistas, cuja causa é a desigualdade de poder

econômico entre as partes interessadas.

Notamos um paradoxo, quando pensamos que o acesso aos bens culturais, hoje,

implica em um problema na relação entre tecnologia e a cidadania, pois, para estar

integrado, o indivíduo necessariamente precisa manipular os aparatos tecnológicos.

Dessa forma, em uma sociedade tecnológica, a possibilidade de engajamento cívico

requer conhecimento especializado, tratando-se de um caminho ativo dos indivíduos na

busca das suas cópias dos produtos culturais. Por isso, ainda que as tecnologias

propiciem a liberdade de acesso, fazer parte do mundo tecnológico e conhecer a sua

linguagem e os seus meandros, funcionalidades, especificidades, ainda é um privilégio

para poucos.

Cooperação e Oportunismo

Andersson (2012) chama a atenção para o caráter abrangente e massivo da

circulação informal dos sites de torrent, os quais funcionam como utilidades genéricas

de compartilhamento, repositórios de informação bastante vastos, altamente conectados

e ubíquos. Para além de uma perspectiva comunal, é possível perceber a circulação

informal como uma infraestrutura de larga escala, uma ferramenta massiva de

superabundância de dados. Esta produz uma impressão ou, até, a certeza de que a

obtenção dos conteúdos já é um direito adquirido, de que sua oferta é um dado

52

incontestável, ou seja, todos sabem que podem encontrar na rede tudo o que desejam,

ainda que nunca tenham, de fato, contribuído para ou participado em alguma

comunidade. A rede é vista, portanto, como um repositório livre de conteúdo, do qual se

pode desfrutar sem, necessariamente, haver a necessidade de qualquer contrapartida.

É por isso que a tecnologia BitTorrent já possui acoplada uma série de recursos

para controlar a cooperação, tornando-a mandatária e automática. Mesmo assim, nota-se

uma preocupação muito grande por parte dos mantenedores de comunidades

(especialmente as fechadas) em controlar e exigir a participação dos usuários. Daí o

aparecimento do que se pode chamar de uma ética pirata, no sentido de que a falta de

cooperação é moralmente condenada no âmbito torrent, especialmente em grupos

fechados. Ao observarmos o fenômeno, notamos um discurso de bom senso em relação

às regras pré-estabelecidas, trata-se da manutenção de acordos coletivos, apoiados no

corpo de regras dos grupos e na própria estrutura técnica da interação BitTorrent,

resultantes de um sistema hierárquico que cria uma codependência entre agentes.

A eficiência da tecnologia BitTorrent dá-se justamente pelo fato de que ela é

programada para otimizar o uso de banda e, consequentemente a colaboração. Se há a

necessidade tática de uma tecnologia para que se force o compartilhamento, então, nota-

se que, ainda que essas redes sejam essencialmente colaborativas, na prática a

colaboração não ocorre necessariamente, havendo a necessidade de proteção contra

agentes oportunistas. Para isso, conforme explica Cohen (2003), uma série de

estratégias é utilizada, como por exemplo, fazer com que a taxa de download seja

sempre proporcional à taxa de upload (ratio), o que serve de estímulo ao peer para

contribuir com a rede; quanto maior a velocidade de upload liberada pelo peer, mais

rápido ele também pode obter o conteúdo que deseja. Isso é denominado de esquema tit

for tat, que procura encorajar uma troca justa.

Além de a tecnologia BitTorrent já ter automaticamente um mecanismo que

regula a taxa de ratio, para dificultar a dominação de peers parasitas e desperdício de

banda, há algoritmos que permitem bloquear o envio de dados para usuários específicos

que não estejam cooperando. Além disso, há um sistema de recompensas, ou seja, um

usuário ativo pode acumular, ao longo do tempo, o que é denominado de crédito ratio.

Isso faz parte de um sistema econômico utilizado em uma série de trackers privados,

com o intuito de melhorar a qualidade das transmissões, estimulando os peers a

compartilharem mais. Assim, da mesma forma que um usuário pode acumular créditos,

também pode ficar em dívida com o grupo, correndo o risco de ser banido.

53

Grupos Privados de Torrent são essencialmente colaborativos, são comunidades

que se sustentam a partir de um trabalho e investimento humanos voluntários, que, em

geral, não almejam lucro. Desde a base de dados, até a configuração estrutural das

plataformas e organização dos processos interativos são tarefas que exigem grande

trabalho e dedicação por parte dos voluntários, são grupos que promovem a cultura da

participação. Ideia que, além de pertencer a um discurso que se popularizou como

promessa para a promoção de novas tecnologias, é também uma categoria utilizada nos

estudos acadêmicos para explicar um fenômeno cultural emergente e central nas

práticas de mídia contemporâneas (SCHÄFER, 2011). Observamos, em grupos privados

de torrent, três categorias de participação que foram apontadas por Schäfer (ibid.):

acumulação da informação, arquivamento (organização) da informação e construção da

interface e ferramentas. Estes são domínios que se sobrepõem, sendo que cada

participante contribui com o aspecto que desejar, resultando na composição do

artefato/site, que é o elemento agregador da comunidade e resultado do seu trabalho.

Ainda assim, o mesmo tempo em que esses grupos necessitam da colaboração

para se estruturar, nem sempre a motivação para a colaboração se dá por motivos

altruístas, pois há uma série de outras motivações que levam os usuários a se engajarem

ativamente nessas redes, desde, obviamente a possibilidade de aquisição de conteúdo e

uma série de vantagens nesse sentido, até o desejo de encontrar reconhecimento dentro

dos grupos e galgar posições hierárquicas que são, na maioria dos casos, estabelecidas

no seio dessas comunidades. Percebemos, em nossas análises, que grande parte desses

grupos possuem classificações hierárquicas de acordo com as quais os usuários atuam e

que causam um grande impacto simbólico dentro das redes e na formação das

identidades dos participantes.

Profissionalismo e Amadorismo

A prática da pirataria se dá a partir da apropriação tecnológica, que é um processo

resultante das relações entre os grupos humanos e as entidades/elementos técnicos e

envolve, para isso, o desenvolvimento de habilidades práticas de cooperação que se

desenvolve no uso das ferramentas técnicas e plataformas de mídia, envolvendo modos

particulares de usos, narrações únicas que envolvem espaços, objetos e corpos. Para

Certeau (1998), trata-se da possibilidade de recontextualização e transformação de

entidades dadas em formas expressivas, em uma performance, uma narração que detém

traços de liberdade individual para além do determinismo tecnológico.

54

De acordo com Mylonas (2012), as práticas de compartilhamento informal são a

superação de obstáculos dados pela tecnologia, política ou leis, a partir de um uso

particular da solução tecnológica, o que potencializa a participação dos indivíduos no

espaço público e, por isso mesmo, acaba por diminuir a distância entre instâncias

oficiais, legitimadas de produção ou distribuição e as pessoas comuns, em outras

palavras, entre profissionais e amadores.

Com o surgimento da Web 2.0, a internet tornou-se uma feira livre de soluções,

serviços, ferramentas, levando ao ápice um processo que remonta ao início da era

digital. Desde a popularização da computação pessoal, profissionais e hackers

apropriam-se de ferramentas especializadas para criar soluções lucrativas, prosumers

(TOFFLER, 1980) emergem como uma classe cultural que dá movimento a um fluxo de

informações cada vez mais volumoso. O software livre (e todo o movimento político

que o cerca) provou que, para produzir serviços, linguagens e soluções digitais de

grande valor não é necessário um vínculo formal a instituições e, nem mesmo, possuir

titulação profissional adquirida em bancos universitários; na era digital o autodidatismo

é o grande produtor de conhecimento especializado, pois, conectados à internet,

participando de fóruns de discussão e experimentando com as ferramentas, os usuários

amadores puderam se tornar os principais agentes das novas formas de conhecimento.

Leadbeater e Miller (2004), ao sugerir a categoria de pro-am (profissionais-

amadores) chama a atenção para o fato de que as barreiras entre profissionalismo e

amadorismo são muito difíceis de ser definidas, pois a flexibilidade dos processos

interativos e a convergência de ferramentas e recursos - qual seja, a integração de

tecnologias da inteligência (LEVY, 1993) cada vez mais complexas -, somados à

infinita possibilidade de publicização e monetização, permitiram com que as pessoas

descobrissem por conta própria muitas possibilidades de explorar esse novo mundo,

sem depender de qualquer vínculo empregatício ou instituição que legitimasse as suas

práticas. Trata-se de uma liberalização extrema do trabalho e do mercado, onde o

empreendedorismo pessoal ficou cada vez mais fácil e o que era apenas um hobby ou

curiosidade teve a possibilidade de vir a se tornar uma atividade lucrativa ou, senão, de

resultar em produtos, serviços ou plataformas bem feitos e de grande utilidade e valor.

Falando especificamente sobre o mercado audiovisual, é notável que plataformas

como o YouTube (BURGESS & GREEN, 2009) viabilizaram o surgimento de novas

audiências para novos enunciadores, indivíduos ou grupos que passaram a produzir seus

próprios vídeos e uma linguagem própria para esse novo tipo de experiência, que é

55

condicionada a limitações estruturais de produção características do amadorismo. Um

amadorismo que, todavia, tornou-se altamente lucrativo e conquistou visibilidade,

sendo, muitas vezes reapropriado pelos grandes meios, seja quando copiam formas e

modelos, quando contratam figuras com grande popularidade no mundo digital para

atuarem em suas produções, quando aproveitam o público dessas plataformas para

inserir anúncios ou, até mesmo, quando compram produções já prontas para retransmitir

em seus canais de televisão. Os amadores passaram a ter a possibilidade de se

profissionalizar, a partir dessas tantas ferramentas, sem depender de uma mediação ou

legitimação de agentes já consolidados e produziram seu próprio mercado, ao

encontrarem novas formas de diálogo com o público.

Quanto à produção de plataformas informais de distribuição de conteúdo, também

notamos que os seus modos de estruturação e organização apresentam-se em um grau de

profissionalismo elevado, dada a sua qualidade, funcionalidade e eficiência, o que

exige, como mencionamos anteriormente, um grande engajamento dos voluntários, que

dedicam bastante tempo de suas vidas nesse trabalho, ainda que, em muitos casos, não

seja um trabalho remunerado ou, talvez, ainda que não seja uma remuneração

regularizada dentro dos âmbitos da legalidade.

Considerações Finais

O estudo das redes digitais e seu impacto na sociedade e, mais especificamente, o

estudo da circulação do audiovisual nas redes digitais encontra grandes desafios

metodológicos quando uma série de categorias que costumavam definir essencialmente

as estruturas midiáticas tradicionais tornaram-se instáveis, diluindo dualidades que,

antes, pareciam suficientes para delimitar campos e espectros analíticos. Apesar de os

fenômenos aparentarem desenvolver características paradoxais, já que as categorias aqui

apresentadas seriam, normalmente, autoexcludentes, notamos que elas coexistem e

convivem, assumindo diversas combinações e arranjos dependendo do fenômeno

específico, dentro de toda a complexidade e hibridez encontrada nas plataformas digitais

de comunicação.

As tecnologias da informação e comunicação provocaram mudanças irreversíveis

no modo de se lidar com os bens culturais, uma transformação cujos agentes originam-

se das mais diversas bases culturais. A diluição dualidades aqui apresentadas não exclui

a existência de opostos, mas faz notar que eles podem coexistir em soluções e

ferramentas específicas e estão em constante diálogo e rearranjo. O espaço da circulação

56

digital tende à convergência crescente de meios e ferramentas, por isso as soluções de

entrega e consumo de audiovisual valem-se da hibridização tecnológica, combinando e

fazendo uso de incontáveis elementos técnicos. Demonstramos que o espaço

tecnológico, ao passo que se estabiliza em serviços e práticas, também se transforma e

adapta a interesses e condições particulares.

Cabe, aos estudos da comunicação, da linguagem e da cultura, encontrar

estratégias metodológicas que não estejam totalmente presas a essas dualidades, para

dar conta dos processos que emergem nesse tipo de fenômeno. O presente artigo

limitou-se a apenas apresentar a problematização dessas dualidades que, acredita-se,

serem apenas algumas dentre uma série de categorias que se encontram em processo de

dissolução na contemporaneidade e que ainda merecem estudo e discussão

aprofundados, para uma compreensão ainda mais enriquecedora da sociedade e da

cultura digital.

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