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CONCEITUAO DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Conceituao do direito de propriedade

Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 2 | p. 813 | Ago / 2011 | DTR\2012\681

Luiz Edson Fachin

Professor de Direito Civil da Pontifcia Universidade Catlica do Paran e da Faculdade de Direito de Curitiba; Mestre em Direito das Relaes Sociais pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

rea do Direito:

Geral

Sumrio:

- I Introduo - II Do conceito histrico-sociolgico - III Do conceito dogmtico-doutrinrio - IV Do conceito jurdico-positivo - V Concluso

Revista de Direito Civil RDCiv 42/48 out.-dez./1987

I Introduo

O fito do presente estudo, condicionado por limitaes de diversas ordens, muito mais evidenciar (no sentido de revelar aspectos considerados fundamentais e que se encontram de certo modo internalizados) do que reduzir o problema a uma soluo ou demonstrao teortica. A conceituao do direito de propriedade no demasiado frisar constitui tema que trespassa o universo estrito do direito positivado, no conseguindo, pela sua natureza, minimizar-se diante de situaes meta jurdicas substanciais. Isso se revela na apreciao do elemento histrico e na constatao de que o conceito no existe isolado de um sistema.

Muito oportuna, alis, a advertncia de Roger Garaudy de que nem sempre o mais difcil resolver os problemas. s vezes, coloc-los.1 provvel que seja o caso em tela, ao menos do ponto de vista terico.

Indubitavelmente, a propriedade como instituto jurdico e poltico, uma das questes cruciais nos diversos momentos histricos, ainda que de modo diferenciado. O seu estudo tem motivado teorias e praxis; a especulao cientfica que por tal carter no pode ser parcial ou excludente estimula filsofos, juristas e interessados dos mais diversos ramos da cincia. O Direito, apesar de no albergar todas as questes fundamentais acerca da matria, no se curva ao silncio dogmtico que quer confin-la a uma mera conformidade legal. Aqui, comparecem as luzes de Jos de Oliveira Ascenso, ao afirmar acertadamente que a ordem jurdica no uma estrutura esttica e acabada, mas uma ordem evolutiva, uma resposta diferente a cada nova situao social. O jurista tem de ser o agente desta incessante atuao da ordem jurdica.2 Entre ns, ensina o prof. Orlando Gomes que o jurista no pode desconhecer que determinou, e est a determinar, de par com outros fatores, sensveis transformaes nas instituies jurdicas que, tradicionalmente, compem o quadro do Direito Privado: a famlia, a propriedade e o contrato.3 A amplitude do problema lhe defere a complexidade peculiar. No h, porm, como desconhec-la. Nessa direo assevera Limongi Frana que suma a importncia da propriedade, no apenas na disciplina do Direito das Coisas, no campo do Direito Privado, como ainda em meio ao Direito em geral.4

Da decorre o dever de abordar, num primeiro passo, a idia de propriedade sob as mais diversas formas, encontradas nos perodos primitivos, anteriores ao direito clssico, no prprio direito clssico, no direito ocidental e no direito contemporneo comparado. Cabe, ainda, verificar o direito positivo interno, em suas diversas manifestaes, inclusive na evoluo constitucional acerca da matria. No ficam de fora da anlise a concepo da funo social da propriedade, a doutrina social da Igreja e a concepo socialista. Num segundo passo, cabe a incurso na doutrina acerca do direito real de propriedade, seu contedo e extenso, a observao de algumas de suas variaes interessantes, como a dita propriedade imaterial e especialmente a propriedade superficiria, bem como outros aspectos das limitaes propriedade. Arrematando, observar-se- o universo que se apresenta diante do que se pretende conceituar como direito de propriedade, buscando vislumbrar em pronunciamentos legislativos ptrios e estrangeiros e de Tribunais brasileiros o entendimento acerca do instituto.

II Do conceito histrico-sociolgico

1. A questo terminolgica na matria

Uma palavra preliminar necessria para apreender o significado do que seja conceituao aplicada ao direito de propriedade. No rigor lgico, conceituar corresponde a proceder por juzos, as mais das vezes intuitivos. Mas no esse sentido formal que pode ter alguma relevncia. Via de regra, conceituar e definir so termos apresentados em sinonmia.

A terminologia, nesse caso, pode no apresentar maior relevncia, especialmente levando em conta uma decodificao do discurso de Ferdinand de Saussure (Cours de Linguistique Gnrale) de que uma grande iluso considerar um termo simplesmente como uma palavra isolada do sistema que ela faz parte. Com isso, se antev todas as dificuldades que se apresentam, do ponto de vista terminolgico, para efetivamente apreender o conceituar. Ocorre, todavia, que o caminho da elucidao, in casu, no por a, inclusive porque como afirma o Prof. Caio Mrio no existe um conceito inflexvel do direito de propriedade.5

Inobstante essas consideraes, interessante verificar que, num outro plano, na doutrina se encontram indagaes sobre o sentido etimolgico do termo propriedade. E.g., a professora Maria Helena Diniz apresenta duas origens: para uns, o vocbulo vem do latim proprietas, derivado de proprius, designando o que pretende uma pessoa. Assim, a propriedade indicaria, numa acepo ampla, toda relao jurdica de apropriao de um certo bem corpreo ou incorpreo. Outros entendem que o termo propriedade oriundo de domare, significando sujeitar ou dominar, correspondendo idias de domus, casa, em que o senhor da casa se denomina dominus. Logo, domnio seria o poder que se exerce sobre as coisas que lhe estiverem sujeitas.6 Esta segunda acepo, como se nota, originariamente, mais restrita, muito embora, atualmente, o emprego das palavras propriedade e domnio se faz sem muito discrimen.

Em sntese, o sentido dos termos, tanto do conceito em si quanto do termo propriedade, passa a ter relevncia na medida que se desvenda os elementos histricos que lhes do substrato.

2. Breve retrospecto histrico

irrefutvel a relevncia do elemento histrico na anlise jurdica, inclusive porque diz respeito ao prprio direito. Consoante Castanheira Neves o direito essencialmente histrico. E isto porque ele mesmo historicidade e faz histria, ressalvando: Ele histrico, no porque o seu tempo o passado, mas porque o seu tempo o futuro a precipitar-se e a moldar o presente.7

Na sntese da evoluo histrica do instituto, emerge a constatao de que as condies econmicas e polticas determinaram a origem e o desenvolvimento da propriedade, sob uma forma ou outra. Perodo que tem fugido ao estudo dos juristas aquele que antecede o direito clssico. Em verdade, as informaes dessa fase so parcas, contraditrias, e, por isso, discutveis. certo, todavia, que a propriedade tem, portanto, evoluo histrica estreitamente relacionada com a chamada luta de classes. Nesse estgio primitivo, consoante as pesquisas de Morgan e as concluses de Engels, possvel admitir que a propriedade comum constituiu a primeira forma de propriedade, diretamente ligada a concepo ento vigente acerca da famlia.8 Contra esse entendimento, autores afirmam que nesse estgio a vida consistia numa situao de promiscuidade, o que levaria a impossibilidade em visualizar qualquer forma de organizao ou desorganizao social.

concepo comunal seguiram-se transformaes histricas que desembocaram na estatuio da propriedade pelo Direito romano. Lembra o sempre presente Tristo de Athayde que os romanos foram propriamente os criadores do direito da propriedade privada, do direito abstrato, do direito privado.9 Reconhece Arnoldo Wald que o direito romano elaborou a teoria da propriedade que se mantm, mutatis mutandis, na poca contempornea entre ns.10 O Prof. Caio Mrio estabelece ligeira conexo terica dessa evoluo, afirmando que a princpio foi o fato, que nasceu com a espontaneidade de todas as manifestaes fticas, e mais tarde foi a norma que o disciplinou, afeioando-o s exigncias e harmonia da coexistncia.11 Difcil concordar com esse jurista de nomeada quando fala em necessidade de dominao. Nessa linha, entende Washington de Barros Monteiro que parece que a propriedade, nos primrdios da civilizao, comeou por ser coletiva, transformando-se, porm, paulatinamente, em propriedade individual; mas: trata-se, contudo, de ponto obscuro da histria do direito e sobre a qual ainda no foi dita a ltima palavra.12 Mais lcido, entende Orlando Gomes que o estudo jurdico da propriedade pressupe o conhecimento de sua evoluo histrica.13

O direito romano, ao que consta, se ocupou mais dos elementos da propriedade do que em lhe dar um conceito, muito embora numa frmula conhecida tenha lhe traado o contedo: dominium est ius utendi et abutendi, quatemus iuris ratio patitur. Verifica-se que a propriedade quiritria foi primitivamente no direito romano o nico modo de propriedade reconhecido. Tinha como pressupostos a qualidade de cidado romano, a res mancipi e o modo de aquisio. Desenvolveu-se, posteriormente, a propriedade bonitria ou do jus gentium. Antes, somente ao cidado romano era dado o privilgio de adquirir a propriedade, pela mancipatio. Mais tarde, aduz Caio Mrio na obra citada, estendeu-se o ius commercii aos estrangeiros, ampliando-se a aquisio do solo itlico, e depois alm deste; e a par daquela modalidade aquisitiva hermtica, surgiram novos usos e os jurisconsultos elaboraram novas tcnicas: traditio, in iure cessio.

Ressalta Arnoldo Wald que a propriedade, em Roma, constituiu direito absoluto e perptuo, excluindo-se a possibilidade em exercit-la vrios titulares. A Idade Mdia, por seu turno, consagrou a superposio de propriedades diversas incidindo sobre um nico bem, e a Revoluo Francesa restaurou com novos e amplos matizes o individualismo.

Afirmando que nenhuma descrio do sistema feudal pode ser rigorosamente precisa, porque as condies variavam muito, de lugar para lugar, Leo Huberman esclarece sobre os dois caracteres importantes do sistema feudal: Primeiro, a terra arvel era dividida em duas partes, uma pertencente ao senhor e cultivada apenas para ele, enquanto a outra era dividida entre muitos arrendatrios; segundo, a terra era cultivada no em campos contnuos, tal como hoje, mas pelo sistema de faixas espalhadas. Havia uma terceira caracterstica marcante o fato de que os arrendatrios trabalhavam no s as terras que arrendavam, mas tambm a propriedade do senhor.14

Sobre essa fase histrica, Jos de Oliveira Ascenso faz interessante ligao entre um dos caracteres fundamentais dos direitos reais com o fim do regime feudalista. O numerus clausus inscreve-se, ou pelo menos pode-se inscrever, neste movimento. Abolidos os vnculos feudais e instaurada uma nova ordem dos direitos sobre as coisas, um sistema fechado serve maravilha para perpetuar as conquistas obtidas; tudo o que se no adaptar ao esquema legislativo rejeitado.15

A afirmao mxima do direito de propriedade, nos moldes prximos ao hoje contemplado entre ns, se d com o Code Napolen, o Cdigo da Propriedade, em seu art. 544: La propriet est le droit de jouir et disposer des choses de la manire plus absolue.

Uma obra que se depara o pesquisador a de Dcio Ferraz Alvim.

Esta obra tem o mrito de colocar-se numa posio indiscutivelmente clara: que a propriedade privada conforme lei natural e natureza racional do homem, e o elemento assegurador da famlia. Que essa posio se choca frontalmente com o entendimento de outros pensadores que investigaram a origem histrica tanto da propriedade quanto da famlia, isto no h menor dvida. Mas aquele mrito referido colocao ntida que tem a tese concepo institucional da propriedade do ponto de vista ideolgico.

Diz Dcio Ferraz Alvim (p. 10) que a propriedade permite ao homem desenvolver amplamente o seu ser. A propriedade, em ltima anlise, o poder de apropriao e no somente de titulariedade. Toda manifestao de poder em uma sociedade onde a contrapartida no pode ser feita em mesmo nvel de expresso, uma forma de opresso. Portanto, afirmar que a propriedade propicia ao homem a sua realizao pessoal , em certo sentido, diverso de entender que o homem, individualmente, somente se realiza com o bem dos homens, coletivamente.

Afirma ainda aquele autor (p. 11) que a idia de propriedade decorre do natural domnio do homem sobre os bens materiais, e se apresenta como um poder moral e jurdico. Registra-se que o homem passou a utilizar-se da propriedade transformando-a de comum em privada. Se assim for, no possvel conceber que a idia de propriedade decorra de natural domnio do homem sobre os bens materiais, porque este domnio somente se processou com as alteraes verificadas nas condies econmicas, o que vale dizer que naturalmente o homem no efetivava esta apropriao e somente se realiza com aquelas alteraes econmicas. Tem razo, entretanto, quando diz que a propriedade apresenta-se como poder moral e jurdico. Mais do que isso: a propriedade um poder econmico.

Adiante (p. 15), explica que a propriedade na forma privada aquela decorrente de princpio de direito natural. A propriedade privada, num sentido lato, no um direito natural. O instituto se desenvolveu ao longo da histria consoante as de terminantes econmicas, dentro de contnua luta de classe. Alis, nesse senso largo, a propriedade uma criao das necessidades econmicas manifestas por determinado grupo de indivduos. Adiante veremos a opinio de Jaime Augusto Cardoso de Gouveia que refuta tal entendimento de Dcio Ferraz Alvim.

Entender que a propriedade privada funda-se num princpio de lei natural, conceber, numa certa angulao do problema, o instituto como anterior ao homem. Assim concebido, concluir-se-ia que esta origem metafsica da propriedade decorre do necessrio equilbrio para a realizao do bem comum. Porm, a propriedade tambm um. instituto de direito, e o direito um fato cultural, e os fatos culturais so produtos pelo homem ao longo de sua histria.

Sendo a concepo da propriedade uma concepo cultural, vale dizer posterior ao homem, o seu desenvolvimento tambm no obedece princpio de ordem natural, porque se assim fosse o entendimento da propriedade permaneceria sempre inalterado, porque o bem comum, ao menos no que se depreende do pensamento daquele autor, inaltervel. Tal idia de inalterabilidade seria uma conseqncia da identificao entre o bem comum e a propriedade (na forma privada), identificao esta que os tempos modernos no tm recebido com muito entusiasmo.

A propriedade enquanto titularidade genrica de apropriao engloba parcelas preponderantes do sistema de vida material.16 Saliente-se que a doutrina clssica define propriedade como a possibilidade de exercer um poder sobre uma coisa, de acordo com a vontade do titular, respeitadas as leis e os direitos de terceiros,17 conforme consenso que se observa em Pothier, Windscheid e inclusive Scialoja. Entre ns, Teixeira de Freitas focalizou o direito de propriedade como direito sobre a substncia e utilidade, sendo direito real, quer perptuo quer temporrio, de um s dono sobre um bem. Observa-se, ento, dois aspectos distintos: o jurdico ou relao externa, ligada ao direito exclusivo do proprietrio sobre a coisa, e o econmico ou relao interna, existente entre o proprietrio e o bem, isto , o jus utendi, fruendi et abutendi.

Lembra Arnoldo Wald que a propriedade, para a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, consistiu em direito inviolvel e sagrado. Ressalta, ainda, que tanto o art. 544 do Cdigo Civil (LGL\2002\400) francs quanto o art. 436 do Cdigo italiano de 1865, estatuem que a propriedade o direito de gozar e dispor do bem de modo absoluto. Salienta que a partir da Constituio de Weimar, h progressivo reconhecimento de efetivar uma ordem econmica e social com implicaes para a questo da propriedade, de forma a construir uma nova etapa frente ao j superado laisser faire, laisser passer. Em verdade, h todo um desencadeamento de fatos e idias entre o feudalismo e a Revoluo Francesa, bem como no procedimento liberalista dos fisiocratas, fundamentando as mudanas de ngulo para formular a equao deste problema. A Revoluo Francesa procurou dar um carter democrtico propriedade, abolindo privilgios, cancelando direitos perptuos, consoante menciona Caio Mrio da Silva Pereira, porm, este fito da burguesia ficou diretamente condicionado aos seus interesses econmicos e polticos, de forma que a propriedade alterava suas concepes tradicionais para servir a uma nova classe social em busca de poder: a burguesia. A nova frmula de dominao econmica e poltica do feudalismo, que sucedeu ao Estado universal dos romanos, foi substituda pela Revoluo Francesa com o imprio dos princpios de igualdade, soberania e justia. Da a concepo encontrada de que o meio de dominao de uma classe sobre outra a explorao das classes dominantes que surge com o regime da propriedade privada. Logo, para que no haja a sujeio de classes necessrio, segundo a teoria do materialismo histrico, a abolio da propriedade privada.

Em sntese, na poca atual nota-se de um lado a propriedade coletiva dos bens de produo, de um lado, e de outro a noo de propriedade como direito individual de acordo com os regimes capitalistas. Tanto Caio Mrio da Silva Pereira quanto Orlando Gomes admitem a forte tendncia contempornea de crescente socializao da propriedade.

Em dissertao de doutoramento, Jaime Augusto Cardoso de Gouveia, trazendo a noo de que a propriedade no um direito mas funo social baseada em um critrio de utilidade, e desenvolvendo estudo a propsito da natureza da propriedade funo social, considera o direito natural uma velha fantasia da humanidade, que a cincia moderna tem desfeito, sem inteiramente a haver destrudo, como disse Windscheid. Por isto, acrescenta, ao direito natural no se pode ir, pois, buscar o fundamento jurdico da propriedade.18

Para Proudhon a palavra propriedade apresenta dois significados: em primeiro lugar, designa a qualidade pela qual uma coisa vale por si e pela virtude que lhe prpria e a distingue especialmente (propriedades do tringulo ou dos nmeros, propriedade do man); em segundo lugar, exprime o direito de um ser inteligente e livre sobre uma coisa: nesse sentido que a tomam os jurisconsultos.19 No livro O que a propriedade?, Proudhon refere-se definio da propriedade dada pelo direito romano (jus utendi et abutendi re sua, quatemus juris ratio), isto , o direito de usar e abusar dos bens contanto que a razo de direito o permita, estabelecendo vinculao com o art. 544 do Cdigo de Napoleo. A origem e o desenvolvimento da propriedade, de maneira diversa com a apresentada precedentemente, so tratados por Proudhon nas seguintes teorias sobre a instituio da propriedade: considerada como direito natural, estudo sobre a ocupao, e a lei civil, o trabalho e a necessidade como causas eficientes da propriedade. Na mesma obra, faz suas dez proposies: 1.) A propriedade impossvel porque do nada exige qualquer coisa; 2.) A propriedade impossvel porque, onde admitida, a produo custa mais do que vale; 3.) A propriedade impossvel porque, para um dado capital, a produo est na razo do trabalho, no na propriedade; 4.) A propriedade impossvel porque, com ela a sociedade se devora; 5.) A propriedade impossvel porque me da tirania; 7.) A propriedade impossvel porque a consumir o que recebe o perde, ao amealhar anula-o, ao capitalizar volta-o contra a produo; 8.) A propriedade impossvel porque o seu poder de acumulao infinito e s se exerce sobre quantidades finitas; 9.) A propriedade impotente contra a propriedade, e 10.) A propriedade impossvel porque a negao da igualdade.

O que apresenta o Prof. Orlando Gomes a respeito das transformaes da propriedade, fornece desde a propriedade privada at a propriedade coletiva um quadro da posio contempornea da questo, ressaltando, desde logo, a insistente tendncia da socializao (no sentido marxista) da propriedade. Nos regimes de economia capitalista, a produo coletiva enquanto a apropriao individual. A abolio da propriedade privada extinguiria esta contradio, instaurando a propriedade coletiva dos bens de produo. Segundo A. Menger (in El estado socialista), citado por Orlando Gomes, os bens devem ser distribudos em trs grupos, aos quais correspondem trs formas jurdicas. Tendo por critrio a funo econmica, aquele jurista os classificou em bens de consumo para os quais a forma jurdica apropriada a propriedade privada, bens de uso cuja forma no pode ser nica, alguns comportando a propriedade individual e outros necessitando de limitaes de direito e os bens de produo, que devem ser socializados. Por isto, fala-se em propriedade coletiva dos bens de produo. Todavia, como adverte Orlando Gomes, certa tendncia para a substituio dos proprietrios particulares pelo Estado no pode ser considerada socializadora.20 Esta interveno do Estado na economia traduz os contornos do que se denomina nacionalizao. Porm, os bens de produo continuam submetidos ao regime da propriedade privada. Como se pode depreender, a nacionalizao de certos bens para o domnio do direito pblico no afeta o regime capitalista. Da mesma forma, a democratizao ou popularizao da propriedade no se inserem na concepo marxista, porque substancialmente uma alterao conceitual. As restries ao exerccio de direito de propriedade, inclusive pelo estabelecimento de deveres aos proprietrios (como pode ser verificado na Constituio da Repblica (LGL\1988\3) Federal Alem de 1949, art. 14: A propriedade obriga), tambm no se enfeixam na tendncia socializante. o que denomina de humanizao da propriedade, destacando-se a teoria da funo social da propriedade. Lembra o Prof. Orlando Gomes que a tendncia de humanizao teve origem na reao contra a concepo individualista da propriedade, porm fundamentalmente no diferem: ambas mantm o princpio da propriedade privada. O que a distingue fundamentalmente, aduz, das outras tendncias assinaladas para a socializao, a nacionalizao e a democratizao, o sentido de suas repercusses. As outras visam ao direito de propriedade na sua extenso por assim dizer social. Restringem ou alargam sua rbita. O movimento para a humanizao o alcana apenas na intensidade. humanizao esto ligadas as teorias de abuso de direito e de direito-dever. Atualmente, a teoria do abuso do direito, procurando justificar a crescente imposio das restries ao exerccio do direito de propriedade, no explica nem justifica o fenmeno da humanizao da propriedade.

A observao destas transformaes no entendimento da propriedade leva a concluir da estreita vinculao entre a concepo da propriedade e as condies econmicas encontradas no desenvolvimento da Histria, como entre os romanos, na Idade Mdia, no individualismo da Revoluo Francesa e nos regimes econmicos contemporneos.

3. A doutrina social da Igreja

A doutrina social da Igreja Catlica, baseada no cristianismo, considera, via de regra, a propriedade como sendo um direito natural do homem. Mas no a propriedade comum dos homens, e sim a propriedade cuja posse e uso est nas mos de um homem. o que se depreende da encclica Rerum Novarum do Papa Leo XIII: Assim, esta converso da propriedade particular em coletiva, to preconizada pelo socialismo, no teria outro efeito seno tornar a situao dos operrios mais precrias. Logo, a propriedade privada que a Igreja Catlica entende como decorrncia do direito natural, pois, para ela, o direito natural propriedade consagrado pelo consenso unnime dos homens e pela lei, tanto humana como divina.

A encclica Mater et Magistra, assinada pelo Papa Joo XXIII em 1961, reafirma que a economia deve ser obra da iniciativa particular. Foram promulgadas outras encclicas que mantiveram basicamente os mesmos princpios: Pacem in Terris, do Papa Joo XXIII; Populorum Progressio, do Papa Paulo VI, em 1979; Redemptor Hominis, do Papa Joo Paulo II. A esta doutrina social da Igreja Catlica, segue-se, portanto, todo um conjunto de pensamento catlico sobre a propriedade, a terra, o capital e o trabalho, cujas idias autores denominam de cristianizao, orientao mantida pelas novas cartas papais recentes.

Em verdade, a resposta da Igreja Catlica s questes sociais foi provocada pelo impacto das idias marxistas no meio do operariado, afastando-os dos mitos e ritos da religio. Com a encclica Rerum Novarum, diz Henry George, ao comentar o documento do Papa Leo XIII, o Vaticano elaborou sua primeira in-vestida contra este impacto provocado na massa de assalariado.21 O autor de A condio de trabalho afirma que o direito de propriedade privada est, incontestavelmente ligado s coisas produzidas pela razo e providncia humana. Mas no pode estar ligado s coisas criadas pela razo e providncia divina. Henry George contesta o argumento do Papa Leo XIII que a propriedade privada da terra tem o apoio da opinio dos homens, deu ao mundo a paz e a tranqilidade, e, assim tem a sano divina. Diz ainda o Papa Leo XIII que o direito de propriedade privada da terra decorre da Natureza e no foi inventado pelos homens. Igualmente aqui observa-se a inexistncia de fundamentao histrica. Obviamente, esta viso da Igreja Catlica sobre a questo da propriedade decorre do prprio contexto divino em que ela est inserida ou se fez inserir, ao inverso da concepo do materialismo histrico.

4. Breves consideraes preliminares acerca da teoria marxista da propriedade

A propriedade para a teoria marxista tem contexto diverso do entendimento tradicional, pois os matizes da orientao econmico-poltico so diversos daqueles que o sistema da propriedade privada gera. Por conseguinte, a propriedade, como titulariedade de qualquer meio de produo, deve ser compreendida como parcela fundamental de todo componente marxista, tanto que pode ser sintetizado na abolio da propriedade privada.

necessrio discernir preliminarmente esboos fundamentais dessa teoria. O conceito materialista da histria e o postulado da luta de classes so das linhas mais importantes na teoria. Diz Harold Laski que a essncia da escola marxista se baseia na aceitao de dois princpios fundamentais: O primeiro que as formas de produo na vida material condicionam o carter geral dos processos sociais, polticos e espirituais da vida. O segundo princpio que, enquanto os meios de produo so possudos privadamente, a classe que os possui utiliza-se do poder estatal como uma arma coercitiva de manuteno da propriedade. Para verificar o pensamento marxista, importante conhecer conceitos encontrados no Manifesto Comunista, de fevereiro de 1848, segundo o qual a histria das sociedades a histria da luta de classes. A burguesia moderna, portanto, decorre de um processo de transformaes na produo e na troca. O intento de abolio da propriedade privada a ameaa existncia dessa sociedade, embora no seja exclusiva do comunismo a abolio das relaes de propriedade da histria. O comunismo propugna a abolio da propriedade burguesa que nasceu da extino da propriedade feudal. A revoluo comunista, todavia, propugna a ruptura mais radical com as relaes de propriedade tradicionais: o trabalho, a riqueza e a terra so bens comuns. Diz ainda o Manifesto: Os comunistas apoiam todo e qualquer movimento revolucionrio contra o estado de coisas social e poltico existente. Em todos estes movimentos, colocam em primeiro plano a questo da propriedade.

Ainda segundo Lask,22 o Manifesto provocou quatro perspectivas bsicas: vinculou a necessidade duma transformao inevitvel com as causas que a geraram; relacionou tal mudana s classes sociais; explicou porque era lgico supor que o conflito entre o capitalismo e o socialismo seria o ltimo conflito, a derradeira fase dos confrontos decorrentes das contradies econmicas e sociais; e tambm demonstrou que os homens podem tomar conscincia de seu posicionamento histrico, para a liberdade econmica e social.23

A expresso positiva da propriedade privada superada corresponde a aniquilar tudo o que no suscetvel de ser possudo por todos como propriedade privada. Logo, a superao da propriedade privada por isso a emancipao total de todos os sentidos e qualidade humanas24 Tal a dimenso real da propriedade nessa concepo. A abrangncia desse entendimento desagua na estrutura econmica, dado que o modo capitalista de apropriar-se dos bens decorrente do modo capitalista de produo, ou seja a propriedade privada capitalista.25

Trs fatos fundamentais marcam, segundo tal concepo, a produo capitalista: 1. concentrao dos meios de produo em poucas mos; 2. organizao do trabalho como trabalho social; 3. constituio do mercado mundial.26

O que nos impe a questo reconhecer, acima desta polmica, que a propriedade uma das questes mais relevantes. Pela anlise das obras dos pensadores marxistas, chega-se a esta concluso.27 At a reflexo inserida em outro contexto que no o marxista aponta este aspecto, ressaltando que a supresso da propriedade privada a reconciliao do homem com a natureza. a posio de Chambre, representando uma tomada de posio da reflexo crist frente ao marxismo. E Chambre se refere ao marxismo-leninismo como reexame total do mundo homem, das estruturas do mundo capitalista: religio, filosofia, direito, Estado; explicao total do mundo do homem e do homem, e uma esperana, na medida em que prope a libertao das alienaes.28

5. A funo social da propriedade

O absolutismo no exerccio da propriedade sofreu a interveno de idias que progressivamente construram a doutrina da denominada funo social da propriedade. Ressalta Eduardo Espnola: desde que, na Constituio de Weimar (1919), se proclamou que a propriedade obriga, em todas as legislaes mereceu o pronunciamento acolhida.29V.g., vrias Constituies hispano-americanas contemplam o conceito de propriedade como funo social: no Mxico (1948), art. 27; da Colmbia (1936), art. 30; do Equador (1945); da Venezuela (1945), art. 65, e de Cuba (1940), arts. 87 e 90.

A funo social relaciona-se com o uso da propriedade, alterando, por conseguinte, alguns aspectos pertinentes a essa relao externa que o seu exerccio. E por uso da propriedade possvel apreender o modo com que so exercitadas as faculdades ou os poderes inerentes ao direito de propriedade. Destaca, ainda, Eduardo Espnola que o pressuposto de confiana recproca e boa f, que se integra no moderno conceito de obrigao, encontra correspondncia na funo social, implcita no direito de propriedade, no sentido de considerao solidariedade social, compreendendo os direitos do proprietrio e os deveres que lhe so impostos pela poltica legislativa.30

Larenz se refere ao art. 14 da atual Constituio da Repblica (LGL\1988\3) federal alem, segundo o qual a propriedade obriga. Seu uso deve servir ao bem da coletividade, frisando Larenz que somente a Constituio de Weimar elevou a idia da funo social da propriedade a categoria de princpio jurdico.31

Ao se referir funo social da propriedade, aduz Trabucchi que laffermazione costituzionale, che essenzialmente tende a dare una giustificacione del diritto esclusivo, vuole anche inserire nella rigida concezzione individualistica di tale diritto soggetivo il momento del dovere. Il ius excludendi omnes alios cos temperato da un imperativo richiamo alla collaborazione sociale.32

O BGB traz o cunho social desse direito visando evitar o abuso em seu exerccio. Seguem seu condicionamento o Cdigo Civil (LGL\2002\400) suo e o italiano. Dispe, por seu turno, a Constituio italiana de 1947 que a lei fixar il modo di acquisto, di godimento e limite allo scopo di assicurarne la funzione sociale e di renderla accessible a tutti (art. 42). Ao comentar esse mesmo artigo, em matria de desapropriao, Domenico Sorace discute o sentido que deve ser tomada a expresso funo social, concluindo que, pelo menos, deve corresponder a considerao do indivduo no somente uti singulus ou uti civis, mas sim uti socius.33 A propsito, muito acertada a advertncia de Eduardo Espnola de que a funo social no desnatura esse instituto de direito privado.

Cabe, tambm salientar que a doutrina da funo social da propriedade corresponde a uma alterao conceitual do regime da propriedade privada, no sentido de que sobre o regime tradicional aplicado o da funo social, de indisfarvel utilidade contempornea; no , todavia, questo de essncia, mas sim pertinente a uma parcela da propriedade que a sua utilizao, em que pese todo o esforo de eminentes autores agraristas para demonstrar o inverso.

O processo histrico de apropriao do homem sobre a terra desenvolveu-se de modo artificial, e em cada poca, a propriedade constituiu-se de contornos diversos, conforme as relaes sociais e econmicas de cada momento. O grau de complexidade hoje alcanado pelo instituto da propriedade deriva indisfaravelmente do grau de complexidade das relaes sociais. Portanto, especialmente em matria da propriedade, no h, a rigor, nenhum raciocnio puro ou abstrato, pois devem ser levadas em conta todas as determinantes sociais.

A propriedade rural (que nada mais do que a propriedade aplicada a um uso especfico), por exemplo, recebe um tratamento legislativo especial medida que se destaca da propriedade como um todo, para receber reconhecimentos poltico e jurdico de que se constitui suporte para continuao do status quo vigente. Em outras palavras, qualquer alterao substancial neste sentido h de ser precedida de alteraes essenciais do sistema no qual a propriedade encontra-se inserida.

A discusso sobre a funo social da propriedade ponto presente na temtica do direito agrrio, especializao do direito civil. Uma das maiores autoridades no assunto, o Prof. Fernando Pereira Sodero, ressalta a necessidade de compatibilizar reivindicaes sociais a um conceito de propriedade de cunho social, no mais absoluto, limitando o uso da terra para os interesses da comunidade, sobrepondo, portanto, os deveres do proprietrio aos seus direitos.

O princpio repercute na utilizao racional e econmica da terra, porm, seus efeitos a no se esvaem: estabelece ainda restries utilizao da propriedade, impondo tambm deveres.

bem verdade que tal princpio no chega a afirmar que o trabalho constitui-se no nico modo para ter a propriedade: afirma que somente o trabalho do homem sobre a terra que legitima a sua propriedade. Como se v, so duas posies no excludentes, contudo, basicamente distintas. A primeira consiste numa inverso entre domnio e trabalho; a segunda to-somente inclui no bojo do domnio e elemento trabalho, como fator de legitimao, mas no como condio sine qua non para adquirir o direito de propriedade.

Outros pases j apresentam concepes no direito agrrio que se posicionam de modo mais avanado ou pelo menos diversos sobre o problema. A Venezuela, por exemplo: em conferncia proferida pelo Prof. Roman J. Duque Corredor sobre La posesin civil y la posesin agraria, no 1. Encontro Internacional de Jus-Agraristas, realizado em maio de 1981, em Belm, tais concepes distintas so observadas. Diz aquele professor que todo homem tem direito a ser proprietrio da terra, mais em razo de seu trabalho do que em considerao de um ttulo. Logo, a terra deve ser de quem a trabalhe. Evidente que medida que tais concepes forem aprofundadas o regime tradicional da propriedade privada h de ser superado.

Da a questo da funo social da propriedade comportar observaes de ordem geral e de ordem especfica, tendo em vista, nestas ltimas, o Estatuto da Terra, principalmente.

Lato sensu, a doutrina clssica define propriedade como a possibilidade de exercer um poder sobre uma coisa. Conforme lembra Arnoldo Wald. Em se tratando de propriedade privada, hoje, constata-se algumas alteraes conceituais intrnsecas: a nacionalizao, a democratizao, a humanizao e a cristianizao da propriedade. Todos estes movimentos no alteram o instituto da propriedade privada. Alguns atribuem propriedade privada uma funo social. Esta funo social mantm o sistema privado mas o disciplina em favor da coletividade, readaptando a definio dada pelo Cdigo Civil (LGL\2002\400) pelo conceito dos antigos romanos.

Stricto sensu, a funo social da propriedade um dos princpios basilares do direito agrrio. Afirma Raymundo Laranjeira, em sua Propedutica do Direito Agrrio, que partindo-se da anlise respeitante ao funcionamento da propriedade privada da terra, com a ilao de que o seu simples uso personalssimo e gozo destacado dos seus frutos no trazia contribuio efetiva para o desenvolver de um pas, ou benefcios para o proletariado dos campos, se chegou fcil idia da funo social da terra.

Assim que a Constituio Federal (LGL\1988\3) e o Estatuto da Terra atribuem propriedade privada uma funo social, condicionando o uso da terra ao bem-estar coletivo.

Da a considerar que a propriedade uma funo social toma-se um passo, ao que parece, insustentvel. Pugliatti coloca a questo nos seus exatos termos: A completare lanalisi de la definizione legale della propriet e necessario esaminare la pi comune questione che oggi vien posta in relazione al concetto della propriet: se essa, cio, debba intendersi come funzione sociale, o se essa abbia una funzione sociale.34 A propriedade tem uma funo social, princpio jurdico aplicado ao exerccio das faculdades e poderes que lhe so inerentes. Aduz Pugliatti: Funzione e diritto soggettivo sono entit che divergono e non si possono conciliare.35 Aquele princpio, portanto, no transmuda realmente a propriedade para o direito pblico atravs da noo de funo. A expresso funo social corresponde a limitaes, em sentido largo, impostas ao contedo do direito de propriedade. Tais restries do nova feio ao direito e na poca contempornea constituem matria de vasto estudo, especialmente na seara do direito administrativo. Ao direito privado, o princpio comparece como relevante dado a compor o quadro histrico do instituto.

6. Escoro da evoluo constitucional brasileira na disciplina do Direito de Propriedade

consenso doutrinrio que as Constituies brasileiras, desde 1824 at 1969, consagram a propriedade como direito individual inviolvel, na linha do art. 17 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789: Como a propriedade um direito inviolvel e sagrado, ningum dela pode ser privado, a no ser quando a necessidade pblica legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condio de justa e prvia indenizao.

A Lex Maxima imperial garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Rezava o art. 179, inc. XXII, da Constituio de 1824: garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem pblico legalmente verificado exigir o uso e emprego da propriedade do cidado, ser ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcar os casos em que ter lugar esta nica exceo, e dar as regras para se determinar a indenizao. Sem maiores alteraes formais, a primeira Constituio Republicana (LGL\1988\3), tratou da matria no art. 72, 17: O direito de propriedade mantm-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriao por necessidade ou utilidade pblica, mediante indenizao prvia.

O princpio da funo social da propriedade ingressa na Constituio de 1934: garantido o direito de propriedade, que no poder ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriao por necessidade ou utilidade far-se- nos termos da lei, mediante prvia e justa indenizao (art. 113, XVII). Em linha formal similar encontra-se o art. 141, 16, da Carta de 1937, esta inspirada, como se sabe, em fontes notadamente diversas daquela.

a expresso da Constituinte de 1946 que estatui o efetivo condicionamento da utilizao da propriedade ao bem-estar coletivo. Tal limitao decorreu de novo substrato aplicado ao direito de propriedade, derivado do repdio ao individualismo econmico. Incorpora-se, aqui, a consagrao da superioridade do interesse pblico sobre a individual, resguardando-se, no entanto, os pressupostos bsicos do direito individual.36

Aps 1964 foram impostas diversas alteraes na Constituio Federal (LGL\1988\3) vigente, sendo discutvel se em 1967 e em 1969 a Carta outorgada pode efetivamente tomar o conceito de Constituio. A preocupao formal com o aspecto social foi mantido, discrepando, todavia, da praxis que se procedeu. a propriedade, na atual Constituio Federal (LGL\1988\3), enquadrada como direito individual garantido pela lei, sob os limites da funo social a ela aplicada.

Depreende-se desse breve itinerrio que as alteraes havidas nos diversos textos constitucionais refletem as transformaes sociais e polticas, as quais impingiram, nos vrios momentos histricos, diferentes contornos a uma mesma moldura.

A garantia do direito de propriedade invocada pelos nossos Tribunais, com fundamento na Lex Maxima, sob diversos ngulos. Exemplo disso o que consta do julgamento do RE 80.340-RJ pela 1. Turma do Supremo Tribunal Federal, em 10.5.77, especialmente voto do Min. Bilac Pinto, ento Relator, verbis: Vejo assim como afrontada, em nome de consideraes extrajurdicas, a garantia constitucional do direito de propriedade, no contexto das decises que ignoram o clamor da embargante, legtima titular do domnio do imvel, e pretenderam dar por resolvida a questo no singelo esquema da reintegratria de posse movida pela Diocese contra o proco rebelde (RTJ 81/473). Esclarece a smula do julgado: Embargos de terceiro. Bens da Igreja Ortodoxa no Brasil, reivindicados, em decorrncia de cisma, pela Diocese do proco rebelde. Embargos, em execuo, da Parquia, dados por improcedentes. Ofensa ao princpio constitucional que garantia o direito de propriedade, pois, sendo a Parquia pessoa jurdica regularmente constituda, tem o direito de reger seu patrimnio conforme seus prprios estatutos. Recurso extraordinrio conhecido e provido, dando-se pela procedncia dos embargos de terceiro.

Outro modo de socorrer-se da proteo constitucional o recurso s garantias jurdicas que dela decorrem, do que so exemplos as argies de vcios nas transmisses imobilirias. o que se depreende, v.g., de julgamento do TJSP constante da RT 412/187.

A segurana das relaes jurdicas pode ser combinada, a nvel de argumentao, para individualizar a proteo jurdica ao direito de propriedade. Isso se verifica, por exemplo, nas discusses de venda de reas de terras ad corpus ou ad mensuram, seguindo-se, ulteriormente, litgio desaguado no Poder Judicirio acerca do verdadeiro objeto da transmisso. determinao do objeto e sua plena aderncia ao direito de propriedade deferem-se mecanismos jurdicos de proteo. O que se resguarda, in casu, no o proprietrio-alienante ou o adquirente, mas sim o princpio do direito de propriedade sobre objeto a ele inerente de modo incindvel. A propsito, cabvel meno ao acrdo da 2. Cmara Cvel do TJSP, lanado nos autos de ap. cvel 251.262 em 1.6.76 (RT 489/99), que discute a matria nos termos supra. Estes reflexos, ora mais intensos e estreitos, ora mais tnues e mediatos, ilustram a reproduo hierrquica da norma constitucional de proteo ao direito de propriedade.

III Do conceito dogmtico-doutrinrio

1. O conceito do direito real de propriedade

O direito de propriedade questo bsica de direito das coisas.37 o centro de irradiao que congrega as demais categorias dos direitos reais, afirma Serpa Lopes.38

indagao de seu conceito so geralmente contrapostos os elementos que compem o seu contedo, a exemplo de como procedem as legislaes. Busca-se, assim, conceituar tendo em vista a amplitude do direito real de propriedade.39 As teorias tradicionais formuladas a propsito do fundamento jurdico da propriedade no fornecem maiores luzes conceituao.40

Remontando a Clvis Bevilaqua, o conceito encontrado no minimiza os problemas para a definio, pois define a propriedade como o poder assegurado pelo grupo social utilizao dos bens da vida fsica e moral.41 Lafayette Rodrigues Pereira se manifesta a propsito, afirmando que o direito de propriedade, em sentido genrico, abrange todos os direitos que formam o nosso patrimnio, isto , todos os direitos que podem ser reduzidos a valor pecunirio. Mas, ordinariamente, o direito de propriedade tomado em sentido mais restrito, como compreende to-somente o direito que tem por objeto direto ou imediato as coisas corpreas. Nesta acepo se lhe d mais geralmente o nome de domnio.42 A sinonmia entre propriedade e domnio j foi referida retro, como sendo realmente verificvel stricto sensu; a submisso das coisas corpreas rbrica de objeto imediato do direito real de propriedade , contudo, discutvel por dois aspectos: o primeiro, que vislumbra como objeto imediato do direito real o feixe de poderes ou faculdades inerentes propriedade, sendo a coisa objeto mediato, como ensina o Prof. Arruda Alvim; o segundo, no exclui do universo dos objetos do direito real de propriedade as ditas coisas incorpreas. Pontes de Miranda, entende que em sentido amplssimo, propriedade o domnio ou qualquer direito patrimonial, posicionando-se na linha do Cons. Lafayette. Resta, entretanto, caso seja aceito esse entendimento, indagar quais os direitos que compem o patrimnio. A redargio pode tornar, em tese, invlido o raciocnio acima face a complexidade do discrimen entre direitos de cunho patrimonial e aqueles que no possuem essa chancela. O conceito largo de Pontes de Miranda,43 alm disso, como ele mesmo adverte, trespassa o direito das coisas.

A Profa. Maria Helena Diniz destaca que rdua a tarefa de conceituar a propriedade, sugerindo que o critrio mais acertado o de reduzir a propriedade aos seus elementos essenciais positivos direitos de usar, gozar, dispor e reivindicar (conforme Scialoja, Teoria della propriet nel diritto romano, vol. 1). A base da conceituao, como se v, o contedo. Assim procedendo, acrescenta, na sua obra j citada, que a propriedade se apresenta como unidade de poderes que podem ser exercidos sobre uma coisa e no como uma soma ou um feixe de faculdades distintas, cada uma das quais suscetvel de desmembrar-se do todo para surgir como direito fracionado. A propriedade a plenitude do direito sobre as coisas; as diversas faculdades, que nela se distinguem, so apenas manifestaes daquela plenitude.44 Tais afirmaes no ignoram o princpio do desmembramento que d ao direito de propriedade peculiar elasticidade, apenas est a mostrar a correta idia de unidade e consolidao.

As mesmas dificuldades na conceituao so referidas por Caio Mrio, optando, tambm, por aquele critrio supramencionado ao definir a propriedade como o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindic-la de quem injustamente a detenha.45 o que se apreende do texto codificado brasileiro. Apresenta Caio Mrio o ius utendi como a faculdade de colocar a coisa a servio do titular, sem modificao na sua substncia; o ius fruendi como a percepo de frutos, naturais ou civis; o ius abutendi como a disponibilidade, atributo que tem o sentido do ius disponendi e no o de abusar ou destruir a coisa; e, finalmente, a rei vindicatio, pela qual o proprietrio vai buscar a coisa daquele que a possui injustamente. consagrada na jurisprudncia brasileira a ao do proprietrio no possuidor contra o possuidor no proprietrio. A qualidade de posse injusta no se apura to-somente pela interpretao a contrario sensu do art. 489 do CC, pois, a jurisprudncia, a exemplo do acrdo do TJPR, 2. Cmara, julgado em 21.9.77,46 entende diante de casos concretos que a significao de posse injusta, na reivindicatria, tomada em sentido amplo, no tendo, necessariamente, que ser viciosa, bastando que seja sem direito de possuir. Evidente que a isso possvel contradizer com o argumento de que se trata de uma exacerbao do abrigo legal ao proprietrio, numa demonstrao que foge mera legalidade e dogmaticamente insustentvel no juzo petitrio.

Vale referir que acerca do contedo da propriedade, interessante o que apresenta a parte geral do estudo de Srgio de Andra Ferreira, tratando o exerccio e limitaes da propriedade. discutvel, porm, em certo sentido, sua afirmao de que o direito de propriedade, embora bsico em nosso sistema de direitos individuais e econmico-sociais, no um direito fundamental, no sentido em que o a liberdade pessoal.47 Em tese, isso correto. Realmente, no sistema jurdico-positivo brasileiro, no qual se insere a propriedade na categoria dos direitos individuais, seria erro grosseiro compar-la, quanto essncia, ao direito liberdade. Todavia, isso abstrado, incompleto o entendimento extrado de anlise que se faa da propriedade sem considerar que, em sentido largo, a apropriao tem muito de estreito com o universo da liberdade individual. Afirmar o contrrio corresponde a defender aquela posio cristalizada pelo liberalismo econmico e pela exacerbao do individualismo.

Por outra parte, o direito real de propriedade plena in re potesta, pode ser conceituado, consoante o Prof. Orlando Gomes luz de trs critrios: o sinttico, para o qual a submisso de uma coisa, em todas as suas relaes, a uma pessoa; o analtico, para o qual o direito de usar, fruir, e dispor de um bem, de reav-lo de quem injustamente o possua; o descritivo, para o qual o direito complexo, absoluto, perptuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida vontade de uma pessoa, com as limitaes da lei.48 Come se v, a caracterizao do definido identifica da com o seu conceito. De qualquer modo, vlido o esforo e como reconhece Orlando Gomes, a definio, mesmo deficiente isoladamente, d uma noo suficientemente clara do direito de propriedade. Explicita Orlando Gomes que direito complexo face ao feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto; absoluto porque, de um lado, confere ao titular o poder de decidir se deve usar a coisa, abandon-la, destru-la, ou limit-la, pelo desmembramento, e de outro, porque oponvel erga omnes; perptuo porque tem durao ilimitada e no se extingue (somente) pelo no-uso; e exclusivo dado ao ius prohibendi, que consiste no poder de proibir que terceiros exeram sobre a coisa qualquer interveno. Para tanto, a nvel instrumental, o direito fornece ao proprietrio os meios de defesa ou recuperao da coisa. Na hiptese de que tem o proprietrio a posse, farta a jurisprudncia que se amolda concretizao do ius prohibendi. o caso da reintegrao de posse; a propsito, depara-se com acrdo da 2. Cmara Cvel do TJRS, nos autos de Ap. 5.536, julgado em 29.5.73, onde consta que se o domnio do imvel foi transferido, e se era preexistente o comodato denunciado, evidentemente tambm operou-se a transferncia da posse indireta, detida pelo anterior proprietrio. Em conseqncia, as aes (no caso a reintegratria) que competiam ao antigo senhor, tambm passaram ao novel titular do domnio. Assim, a transferncia do domnio importa, em tese, na transferncia da posse, com o mesmo colorido que a detinha o anterior proprietrio (RT 458/231).

Na doutrina estrangeira os obstculos conceituao no so menores e os rumos tomados para suplant-los no so diversos. Reconhece Martin Wolff que o conceito de propriedade de natureza equvoca, ministrando ensinamento j esposado por parte da doutrina brasileira retrocitada: En el lenguaje corriente, perto tambin en la terminologa cientfica, se usa a veces en un sentido amplio, asociado a la idea poltico-sociolgica de patrimonio, y otras veces en una acepcin ms estrecha pero contenida en la primera, que permite distinguirla como un derecho especfico frente a otros derechos patrimoniales. La primera acepcin, la ms amplia, es tambin la adoptada por el derecho constitucional; el desarrollo de la segunda, ms estricta, corresponde a la dogmtica del derecho privado.49 Aduz Martn Wolff que a propriedade somente pode ser definida relativamente, isto , em relao a um ordenamento jurdico e social historicamente dado. Do ponto de vista dogmtico, o direito de propriedade um direito subjetivo de ndole especial, que no se confunde com as faculdades particulares contidas na propriedade. Fora a abstrao conceitual, o contedo da propriedade que finda por defini-la, inclusive a distinguindo dos direitos reais limitados.

Pugliatti procede a um longo estudo sobre a definio da propriedade no novo Cdigo Civil (LGL\2002\400) italiano, iniciando por reconhecer que sono a tutti note le interminabili polemiche suscitate dai tentativi di dare una definizione della propriet.50 Para ele, a definio da propriedade, com base no novo texto legislativo, pode ser expressa nos seguintes termos: la propriet il diritto reale fondamentale avente per contenuto la facolt di godimento pieno ed esclusivo della cosa da parte del proprietario con i limite, gli oneri e gli obblighi specifici stabiliti dallordinamento giuridico.

Como se v, a definio tambm se d tendo em mira o contedo do direito de propriedade, a partir do fato, ressaltado por Trabucchi, que o Codice no definiu o direito de propriedade mas indicou o seu contedo.

Pacchioni, ao tratar do conceito de propriedade no antigo e no novo Cdigo Civil (LGL\2002\400) italiano, afirma que o novo. Cdigo mantm a propriedade individual, condicionada a uma funo eminentemente social: La propriet dunque, secondo il nostro codice, individuale, ma tale entro i limite posto dallordinamento giuridico dello stato, che assegna ad essa una funzione sociale. Fra i dui estremi opposti di una propriet individuale ilimitata e incontrollata, e dellabolizione della propriet privata, il nostro nuovo Cdice Civile ha saggiamente preferito conciliare, nel modo che si detto, la tutela dellindividuo e quella della intera societ, dando alla propriet individuale conservata como base del nostro ordinamento economico giuridico, una funzione piu spiccatamente sociale.51 Essa sntese, ao que parece, aplicvel no somente ao direito italiano, mas tambm em grande parte do direito contemporneo ocidental.

2. O objeto jurdico do direito de propriedade

Em preliminar, cabe referir que a abordagem em tela no compreende a propriedade pblica relativa a certos bens. As peculiaridades e extenso do tema no permitem trat-los nesse pequeno estudo. A propriedade pblica ou do Estado matria dos tratados de direito administrativo, mesmo quanto aos bens dominais, e em nossa abordagem tem maior ou menor interesse medida que se intensifica ou atenua a interveno do Estado no domnio econmico. Em nosso sistema, fundamental a propriedade particular ou privada, ainda que histrica e originariamente todos os bens pertenceram ao domnio pblico.52

Feita essa ressalva introdutria, de bom alvitre frisar que a matria relativa ao objeto jurdico tem relevncia a partir da verificao da importncia que tem o contedo do direito real de propriedade para caracteriz-lo. Outra advertncia necessria a de que as realidades jurdicas referidas adiante servem apenas para exemplo e argumentao, como ocorre com a meno do direito autoral e da propriedade superficiria.

Na problemtica conceitual da propriedade no se pode omitir uma palavra sobre o seu objeto, diz Caio Mrio, adiantando que, em tese, todos os bens so apropriveis, isto : o homem como sujeito da relao jurdica tem a faculdade de dominao sobre todas as coisas dentro dos limites e restries legais. Em diferentes contextos sociais, portanto, em diferentes ordenamentos jurdicos, essa tese sofre a correspondente graduao. Em nosso sistema jurdico, a noo de propriedade pode abranger os bens corpreos e os incorpreos. certo, reconhece ainda Caio Mrio, que, em puro rigor, a condio de sujeito de direito sobre bens incorpreos se designa por outros apelidos. certo, tambm, que os direitos de autor na atualizada reviso terminolgica e conceitual desbordam da relao dominial. Mas amplitude semntica do vocabulrio jurdico no repugna designar a titularidade dos direitos sobre bens incorpreos de propriedade.53

Desse ponto emerge o problema da extenso do direito de propriedade, especialmente a da propriedade imvel em relao ao solo, subsolo e ao espao areo. A preferncia do art. 526 do CC brasileiro pelos critrios da utilidade em toda a extenso til ao exerccio e do interesse no pode opor-se o proprietrio a trabalhos at onde no tenha interesse em impedi-los. Essa questo acaba revelando que, em algumas realidades jurdicas, as distines entre o direito pblico e o privado so relativamente tnues. A propriedade superficiria, mencionada adiante, , nesse contexto, exemplo disso.

Arnoldo Medeiros da Fonseca, ao discorrer sobre os direitos reais, refere-se noo de coisa, dando notcia da bipartio dos direitos reais em materiais e intelectuais propugnada inclusive pela tese de doutorado de Rigaud (Le droit rel. Histoire et Thorie. Son origine institutionnelle, 1912). Refere-se, tambm, a diviso proposta por Proudhon em direitos reais jurdicos e os direitos reais gerais.54 No fundo dessa questo terminolgica, est o problema de inserir-se no bojo do conceito de propriedade a chamada propriedade imaterial.

A controvrsia patente. Orlando Gomes entende que a propriedade incorprea no pode ser assimilada propriedade, sendo uma quase propriedade. Subsiste, segundo Orlando Gomes, a doutrina de que o objeto do direito de propriedade no pode ser seno bens corpreos.55 Fundamenta essa posio pelos seguintes argumentos: 1. o objeto do direito de propriedade h de ser coisa especificamente determinada; 2. o objeto h de ser materializado ou corporificado, havendo tantos direitos de propriedade quanto os bens. Est com a razo o professor, na esteira de Wolff, ao afirmar que propriedade imaterial no se aplica o regime jurdico da propriedade corprea, o que no corresponde a negar naquele caso a existncia da propriedade, mas to-somente o fato de que (com acerto) o caso em exame no se submete ao clssico regime do direito real.

Nessa linha, ao tratar do objeto do direito, afirma Enneccerus que se denominam objeto a quase todos os objetos dos direitos, incluindo os objetos materiais (coisas) e os imateriais. Essa aparente restrio ao conceito de coisas no retira do universo do objeto do direito bens imateriais, muito embora a referncia direta sempre leva a pensar nesse sentido limitado de que nos fala Enneccerus: Slo son cosas en sentido legal los objetos corporales.56

Mesmo com esse esforo, a tendncia doutrinria observada a de reduzir o conceito de coisa a objeto material, que seria o nico suporte do direito real.

Gatti faz distino entre o objeto do direito real do ponto de vista interno que a coisa mesma, e do ponto de vista externo que a conduta de absteno do sujeito passivo do direito real. O que nos interessa o primeiro aspecto, sobre o qual se pronuncia o Cdigo Civil (LGL\2002\400) argentino definindo: Coisas so os objetos materiais sucetveis de ter um valor; Bens so objetos suscetveis de valor; e o conjunto de bens de uma pessoa constitui seu patrimnio. Assim, os bens compreendem os objetos imateriais e as coisas, objetos materiais ou corporais. Esclarece Gatti: Entre los conceptos de bien y de cosa existe una relacin de gnero y especie. Los bienes pueden ser de dos clases: corporales o incorporales, o, lo que es lo mismo, materiales o inmateriales. Cuando los bienes son corporales e inmateriales, no existe trmino que los designe, por lo cual, o bien se emplean aquellas expresiones (bienes que no son cosas).57 A questo surge exatamente a: em relao aos bens que no so coisas. Conclui taxativamente Gatti, aps longo estudo, que sem coisa, isto , sem objeto material ou corpreo que lhe sirva de suporte, impossvel a existncia de direito real. Os direitos constitudos sobre bens que no so coisas, para utilizar sua expresso, constituem categoria especial de direitos, cujo regime no se confunde com o do direito real. Veremos isso, adiante, ao ferirmos sucintamente a problemtica do direito autoral.

2.1 A propriedade superficiria. Mesmo em sntese, cabe referir de algumas variaes do tema face a diferentes ngulos que podem enfocar o contedo do direito de propriedade. Um novo enfoque aos jus aedificandi traz em relevo o direito de superfcie, advertncia, de certo modo, j feita por Gastone Martini.58

Alm disso, o Projeto 634/75 do novo Cdigo Civil (LGL\2002\400), no art. 1.263, inclui entre os direitos reais, logo aps a propriedade, o de superfcie, a qual o Projeto dedica oito artigos no Ttulo IV do Livro III que trata do Direito das Coisas. O Prof. Miguel Reale, supervisor da Comisso Elaboradora e Revisara do Cdigo Civil (LGL\2002\400), em exposio ao Ministro da Justia publicada pelo Dirio do Congresso Nacional de 13.6.75, destacou a substancial alterao feita na enumerao taxativa dos direitos reais, entre eles se incluindo a superfcie.

Elogiando a atitude, Jackson Rocha Guimares afirma que a incluso da superfcie na enumerao dos direitos reais foi uma orientao sbia do projetista de 1972.59

Parcas so as abordagens do direito de superfcie pelos autores nacionais contemporneos, realidade compatvel com a excluso que fez o Cdigo Civil (LGL\2002\400) desse direito real ao elencar taxativamente os tipos reais no art. 647 do diploma vigente. Clvis Bevilaqua justificou a excluso pelo fato de que o princpio consagrado pelo atual Cdigo Civil (LGL\2002\400) no art. 43 considera a superfcie como parte componente do solo, que no se desprenderia dele para constituir um jus in re aliena. Outros Cdigos contemporneos, como o recente Cdigo Civil (LGL\2002\400) Portugus, capitula o direito de superfcie (Ttulo V, do Livro III), com sentido ligeiramente oposto ao entendimento acima de Clvis Bevilaqua: O direito de superfcie consiste na faculdade de construir ou manter, perptua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantaes (art. 1.524 do Cdigo Portugus). Na Itlia, Trabucchi, em suas Instituies, d os caracteres bsicos do instituto, abordando as hipteses de direito de superfcie do Cdigo Civil (LGL\2002\400) Italiano (p. 471). Pacchioni, ao estudar o Codice em vigor, tambm trata da matria, com breve retrospecto histrico (p. 227 e seguintes, dos Elementi di Diritto Civile).

A matria realada com novas consideraes acerca do direito de superfcie, destacando-o da propriedade como tal.

O relevo tem ainda maior razo de ser face ao ordenamento urbanstico das cidades contemporneas.

A propriedade superficiria, patamar ainda a ser explicitado, entre ns, do direito de propriedade, fica a merecer, especialmente frente a tipologia real do direito expectativo, um tratamento doutrinrio compatvel, cujo solo frtil tema de per se merece dissertao longa e acurada.

2.2 A propriedade na ordenao urbanstica. Muito embora residam dogmaticamente no mbito do Direito Pblico, as limitaes edilcias, constituindo-se em restries ao exerccio do direito de propriedade, correspondem ao progressivo entendimento contemporneo acerca da sobreposio dos interesses coletivos aos privados. J se disse que o ordenamento esttico urbano consiste em exemplo manifesto desta tendncia indisfarvel em relao propriedade.

Diz J. M. de Carvalho Santos, na obra j mencionada, que a propriedade, no seu conceito moderno, est sujeita a restries no s impostas pela utilidade pblica e interesses da coletividade, mas a outras motivadas por interesses particulares oriundos da solidariedade social.60 As restries ao uso da propriedade, especialmente no que concerne s edificaes em concentraes populacionais, revelam que seu aspecto crucial se assenta no direito de propriedade, como reconhece Santiago Dantas ao tratar dos direitos de vizinhana.61

A propsito, ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto que as limitaes administrativas edilcias, objeto e estudo do Direito Administrativo, so imposies pblicas, universais, gratuitas, unilaterais, definidas em leis ou regulamentos, que reduzem o uso da propriedade fundiria no interesse pblico da segurana, salubridade e esttica das comunidades.62 A defesa esttica das cidades, consoante o Prof. Dalmo Dallari, efetivamente uma preocupao antiga, a qual nos ltimos tempos tem sido imprimido maior zelo.63 Nota Bielsa, ao tratar das restries e servides administrativas, que a preocupao do Poder Pblico, com relao a arquitetura e a ornamentao das cidades, teve a sua origem no direito romano, no seu perodo imperial, quando foram traadas numerosas disposies sobre o assunto. Numerosas eram as restries impostas pelas leis romanas por motivos estticos como, por exemplo, a proibio da retirada de colunas que embelezavam a casa.64 A legislao reincola de Portugal, especialmente as Ordenaes Filipinas, evidenciaram uma preocupao acentuada pela esttica das cidades, sem chegar, porm, s mincias do estabelecimento de normas para determinao de estilos. O direito brasileiro, na esteira das tradies angariadas daqueles diplomas legais, permitiu s municipalidades a fixao de posturas. Com o advento do Cdigo Civil (LGL\2002\400), o vicinato recebe restries legais, inclusive de ordem esttica. Hoje, com a relevncia auferida pelo direito aplicvel propriedade urbana, tomaram ainda maior flego as formas de interveno do Poder Pblico na propriedade privada, promovendo a efetivao do poder de polcia, ou mesmo disciplinando as relaes entre particulares, como revelam as normas administrativas, a exemplo dos cdigos de posturas, e a prpria jurisprudncia inclinada a dar guarida proteo esttica da urbe.

Julgado interessante o contido no Ac. 16.191 de 11.10.78, da 4. Cmara Cvel do TJPR, na Ap. Cvel 1.071/76: As construes urbanas esto sujeitas a uma srie de limitaes, quer de origem da nossa lei substantiva, o Cdigo Civil (LGL\2002\400), ou administrativa, das quais se origina o poder de polcia das municipalidades. No caso em pauta, em que o Municpio promoveu em juzo o cumprimento de norma edilcia, disse mais o Tribunal: inquestionvel, no caso, o direito do autor de, exercendo seu poder de polcia, estabelecer o controle tcnico-funcional das edificaes urbanas do mbito de sua competncia, pois, no sentido de assegurar a higiene, a esttica, a comodidade e a segurana, pode ele, validamente, expedir prescries reguladoras dessas construes, exigindo, para sua melhor fiscalizao, que os proprietrios antes que construam ou reformam, obtenham, para tanto, a necessria licena.

As decises do Supremo Tribunal Federal encontram-se direcionadas para esse entendimento. A exemplo, acrdo unnime da 2. Turma do STF, em 16.6.46, dando como lcitas as restries impostas em posturas municipais ao direito de construir, no interesse coletivo; outra deciso, acrdo da 1. Turma do STF, no RE 67.298, concernente s restries em condomnios de apartamentos: A fachada de um edifcio de apartamentos compe um conjunto arquitetnico, projetado por artista especializado. Os condminos adquirem seus apartamentos no s porque o interior das unidades imobilirias satisfazem suas necessidades de moradia, como tambm porque o exterior do edifcio agrada seu gosto artstico (RTJ 51/333).

O fundamento constitucional que condiciona a propriedade ao bem-estar coletivo, substrato ltimo das limitaes, encontrado na jurisprudncia. Assim julgou a 1. Turma do STF no RE 76.864: O direito de construir deve ser exercido em harmonia com os regulamentos administrativos, at porque a Constituio Federal (LGL\1988\3) garante a propriedade, mas a erige em funo social (RTJ 71/812).

2.3 A propriedade imaterial. Referindo-se que as diversas formas de propriedade intelectual incluem o direito do autor, a patente do inventor, entre outras, Clvis Bevilaqua j destacava num lance de clarividncia jurdica encontrada em sua defesa do projeto de Cdigo Civil (LGL\2002\400) que seria possvel que todos os direitos do autor, mais tarde, se reunissem para constiturem um corpo de leis parte, o cdigo dos direitos intelectuais.65 A matria tambm interessa ao contedo do direito de propriedade e de modo direto fixao de seu objeto. O Cons. Joaquim Ribas alertava que a diviso entre coisas corpreas e incorpreas no pode ser olvidada frente ao que chamou de estado atual da jurisprudncia ptria e estrangeira, dando conta de graves objees acerca de sua admisso nos cdigos modernos, referindo-se opinio contrria de Teixeira de Freitas.66

Ao que parece, Gatti enveredou firme pelo caminho apontado por Teixeira de Freitas, ao entender que sin un objeto material o corporal que le sirve de soporte, es imposible la existencia del derecho real.67 Para Gatti, nada mais errneo do que considerar a propriedade intelectual um direito real. Os direitos intelectuais constituiriam uma categoria independente de direitos, uma terceira espcie de direitos patrimoniais ao lado dos pessoais e dos reais.

O Prof. Luiz M. Correia menciona o duplo aspecto do direito autoral, que se insere nesse contexto, nos seguintes termos: pessoal, porque realmente, como disse Bluntschli, a obra tem um valor pecunirio, entra para o acervo de nossos bens, para a composio do nosso patrimnio e recai sobre uma coisa tangvel: o livro, o painel, o fuste de coluna, a esttua, qualquer obra darte.68

Em orao de abertura do III Ciclo de Estudos Autorais, proferida no Salo Nobre do Senado Federal, em Braslia, em 1976, o Prof. Antnio Chaves destacou que a relevncia do direito de autor est intimamente relacionada com a prpria importncia da criao intelectual: origem, base, desenvolvimento de tudo quanto existe de belo e de construtivo no mundo.69 Refere-se, ainda, a promulgao da Lei 5.988/73, e do Dec. 76.275/75, que organizou o Conselho Nacional de Direito Autoral, como marco importante da evoluo do direito do autor.

O tema aqui apenas tocado para ilustrar a complexidade na determinao do objeto do direito de propriedade. Vale dizer tambm que a jurisprudncia tem se ocupado com interessante matria sobre o direito do autor, cabendo mencionar acrdo de 12.12.78, da 1. Cmara do 1. Tribunal de Alada Civil de So Paulo, no qual consta da manifestao do ento relator Dr. Carlos Ortiz de que a criao intelectual a determinante da classificao de uma obra como literria, artstica ou cientfica, cobrindo o seu autor com a proteo constitucional que lhes assegura o direito exclusivo de utilizao. No caso concreto, decidiu-se, nessa linha com acerto, que compilar ou coletar textos de leis, arrumando-os com ndices e remisses em rodaps, ainda que constitua prestao que exige gabarito tcnico e trabalho exaustivo de pesquisa, no chega a constituir criao intelectual cientfica, e muito menos artstica ou literria. Os limites entre o que e o que no fruto da criao podem merecer, casuisticamente, discusso. O relevante evidenciar a movimentao da mquina judiciria para dirimir litgios oriundos da chamada propriedade imaterial.

2.4 A propriedade industrial. Breves palavras merece tambm a chamada propriedade industrial. Segundo Tavares Paes, a propriedade recai sobre bens materiais (res quae tangi possunt) e imateriais (res quae tangi non possunt, quase in juri consistunt). Nestes ltimos, o qual nos interessa neste passo, incluem-se a propriedade artstica, a propriedade industrial e a propriedade literria.70

A Lei 5.772/71 regula, entre ns, a propriedade industrial. o Cdigo da Propriedade Industrial, a regular o direito industrial, autnomo, com princpios prprios e institutos peculiares.

Consoante o art. 5. desse Cdigo, o autor de inveno, de modelo de utilidade, de modelo industrial e de desenho industrial tem o direito de obter patente que lhe garanta a propriedade e o uso exclusivo nas condies da lei. Estribado em Edoardo Bosio (Le privative industriali nel diritto italiano, Torino, Utet, 1891, n. 2), Tavares Paes afirma que nem no direito romano este direito viera regulamentado, podendo-se, quando muito, inclu-lo nas res incorporales, isto pela pouca valia que era tido o trabalho manual poca, privativo dos derrotados e dos escravos.71 A partir de 28.04.1809, o Brasil passou a proteger legalmente o direito s invenes. A Constituio imperial assegurou aos inventores direitos sobre suas produes. Em 1830, alguns anos aps, alterao legislativa permitiu maior eficcia a proteo daqueles direitos, sendo que, ulteriormente, passa a vigorar a Lei 3.129, de 14.10.1882. A primeira Constituio republicana no ficou alheia matria e a Constituio de 1934 assegurou aos inventores seus direitos, com a ressalva de serem qualificados de privilgios temporrios, norma incorporada Constituio de 1946. Na vigente Lex Maxima mantm-se a proteo constitucional. Consta da Universal Declaration of Human Rights, art. 27, n. 2, que todo indivduo tem direito proteo dos interesses morais e materiais que lhe correspondam por motivo das produes cientficas, literrias e artsticas de que seja autor.

Acerca da patente de inveno, Vicente Ro e Jos Frederico Marques, em parecer publicado, entendem que com a patente, concretiza-se o privilgio, uma vez que este no resulta do simples fato da criao intelectual A patente destina-se a premunir o inventor, contra os riscos a que ficaria exposta a divulgao do invento. Ela que assegura, como a Constituio imperativamente determina, a todo inventor, o privilgio temporrio de explorar e usufruir seu invento.72

Arremata Pontes de Miranda afirmando que em vez de definir inveno, a lei determina os pressupostos para a patenteabilidade. Assim, entende, que se tratando de novo modo de fabricar produtos industriais, de mquina, ou de aparelho mecnico ou manual para a fabricao de tais produtos, ou de novo produto industrial, ou processo para se conseguirem melhores resultados, h inveno industrial.73

IV Do conceito jurdico-positivo

1. Os conceitos legais, o Projeto 634/75 e o direito comparado

O art. 524 do nosso Cdigo Civil (LGL\2002\400) no d de modo direto um conceito do direito de propriedade, inclinando-se a elencar os poderes e faculdades inerentes ao seu contedo, que o mais extenso dos direitos reais. Essa a orientao predominante nas codificaes, propiciando, assim, que venha a lume uma conceituao implcita, derivada da caracterizao do direito de propriedade, como bem evidenciou a doutrina j examinada.

O sentido clssico do direito de propriedade no evidentemente alterado pelo Projeto 634/75. Alis, da redao do art. 524 (Alei assegura ao proprietrio o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reav-los do poder de quem quer que injustamente os possua) no difere a redao do art. 1.266 do Projeto ( O proprietrio tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reav-la do poder de quem quer que injustamente a possua, ou a detenha). A troca do termo direito por faculdade em relao ao jus utendi, fruendi et abutendi atende ao sentido desses poderes do proprietrio, diferenciando tal faculdade do direito de reaver a coisa. A incluso da noo de deteno no texto do Projeto no altera o sentido do anterior, pois a precariedade um dos vcios que pode caracterizar a posse injusta.

O direito de propriedade se enquadra no exame dos direitos reais na legislao comparada. Consoante os autores ptrios, o Cdigo Civil (LGL\2002\400) brasileiro recebeu, nessa matria, influncia dos Cdigos de Portugal, da Alemanha e da Frana, muito embora nosso diploma civil no se sujeitou exclusivamente a qualquer desses sistemas. Em relao propriedade, manteve-se, nos termos do Prof. Orlando Gomes, fiel concepo individualista, sem acolher suas exageraes. Embora tenha seguido a orientao alem quanto necessidade da transcrio para a aquisio do direito de propriedade dos imveis, no adotou o sistema da publicidade material, nem o princpio da abstrao da causa.74

O BGB tambm no define diretamente o que se entende por Eigentum. O 903 do Cdigo Civil (LGL\2002\400) alemo dispe que o proprietrio de uma coisa pode, sempre que a lei ou o direito de um terceiro no se opuser, dispor da coisa sua vontade e excluir outros de qualquer intromisso.75

No difere dessa posio o Cdigo Civil (LGL\2002\400) suo, ao dispor no art. 641: Le propritaire dune chose a le droit den disposer librement, dans les limites de la loi, indicando indiretamente os elementos do direito de propriedade.76

O primeiro artigo do Cdigo Civil (LGL\2002\400) portugus que trata do direito de propriedade refere-se ao objeto desse direito, limitando-o s coisas corpreas. Adiante, o art. 1.305 tambm trata do contedo do direito de propriedade, em direo similar do nosso Cdigo: o proprietrio goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruio e disposio das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observao das restries por elas impostas.77

No mesmo sentido, a disciplina positiva pelo Cdigo civil italiano, consagrada pelo Ttulo II do Livro Terceiro, art. 832: Il proprietrio ha diritto di godere e dispore delle cose in modo pieno ed esclusivo, entre i ilimiti e con losservanza degli obblighi dallordinamento giuridico.78 A seguir, o art. 834 contm disposio semelhante quela estampada pela Constituio Federal (LGL\1988\3) brasileira ao garantir a propriedade, em sua plenitude, com exceo de regular procedimento expropriatrio: Nessuno pu essere privato in tutto o in parte dei beni di sua propriet, se non per causa di pubblico interesse, legalmente dichiarato, e contro il pagamento di una giusta indennit.

No Cdigo Civil (LGL\2002\400) mexicano digna de meno a transio propugnada, da tendncia individualista oriunda do direito e da legislao napolenica para a teoria progressista que considera o direito de propriedade como um meio de cumprir uma verdadeira funo social. No se considera a propriedade como um direito individual, mas sim como um direito mutvel que deve modelar-se s necessidades sociais. Ao tentar positivar tais intenes, o Cdigo Civil (LGL\2002\400) do Mxico agravou a interveno do Estado em matria de expropriao: La propiedad no puede ser ocupada contra la voluntad de su dueo, sino por causa de utilidad pblica y mediante indemnizacin (art. 831). No mais, a orientao no discrepa dos diplomas legais referidos, dispondo o art. 830 desse Cdigo que el propietario de una cosa puede gozar y disponer de ella con las limitaciones y modalidades que fijen las leyes.79

O direito sovitico difere dos sistemas jurdicos que tm como substrato o regime capitalista.

O Prof. Orlando Gomes, a respeito da aplicao (prtica) da doutrina marxista, se reporta ao sistema sovitico, no qual foi abolida a propriedade privada dos bens de produo e mantida a dos bens de usos e consumo.80 A propriedade socialista dos meios de produo se desdobra em estatal a terra, as guas, as minas, as florestas, as fbricas, as usinas, os bancos, as ferrovias, a navegao martima, fluvial e area, as instalaes telegrficas, telefnicas e radiofnicas, entre outras e em cooperativa. Sobre os bens de uso e de consumo, por exemplo, as residncias, mantm-se propriedade individual, que consiste exceo ao princpio da municipalizao dos prdios.81 A propsito, lembra Orlando M. Carvalho que a Constituio considera tal sistema econmico como preponderante, mas no exclusivo. tolerada a existncia da pequena economia privada de camponeses individuais e arteses, baseada em seu trabalho pessoal.82 A luta pela socializao da propriedade, na Unio Sovitica, verifica-se desde a Revoluo de Fevereiro. A partir de 1917, concretiza-se, paulatinamente, a estatizao das terras e dos bancos.

Dispe o art. 4. da Constituio sovitica de 1936 que a base econmica da URSS consiste no sistema econmico e na posse socialista dos utenslios e meios de produo com abolio da propriedade privada e com a eliminao da explorao do homem pelo homem.83 O preceito constitucional estabelece que a propriedade do Estado do prprio povo, ao lado de propriedade cooperativa coletiva (art. 5.). A Constituio da URSS garante o direito de propriedade particular dos cidados aos proventos do seu trabalho, de suas economias, de sua pequena cultura, de instrumentos de uso domstico e utenslios, de objetos de uso pessoal, assim como o direito de herana de bens pessoais (art. 10). A lei tambm permite empresas particulares em pequena escala, sejam de camponeses ou arteses (art. 9). Frisam E. K. Hunt e Howard J. Sherman84 que a economia planejada, portanto, centralmente, pois grande maioria das terras e das fbricas so propriedade pblica.

E o que caracteriza a propriedade exclusiva do Estado? Redargi R. Jalfina: En primer lugar, son cosas que pueden entregarse a empresas, organizaciones (entre ellas, organizaciones estatales) y a ciudadanos nicamente en usufructo.85 O Estado, alm disso, disciplina e controla a utilizao do bem dado em usufruto. Como a propriedade realmente a principal (ou pelo menos uma das principais) categoria econmica prpria de cada sociedade, esse regime diverso fruto de diversas relaes sociais e econmicas, como a pequena sntese retro evidencia.

V Concluso

No presente estudo, observamos em trs perspectivas a questo da conceituao do direito de propriedade: a histrica, a doutrinria (no seio da Cincia Jurdica) e a legal. A opo metodolgica no buscou evidentemente esgotar a matria ou apresentar um conceito uno e rgido, nem apresentar angulaes rgidas ou estanques.

No prisma histrico-sociolgico verificou-se que a cada momento histrico corresponde uma caracterizao da propriedade. A transformao das relaes sociais, quando profunda, sempre atingiu o instituto da propriedade, amoldando-o ao novo statutus quo.

Na viso dos juristas, inseridos exclusivamente no campo do direito, evidenciou-se um entendimento relativamente unssono, uma indisfarvel comunho acerca desse direito real, em cuja definio so utilizados os elementos que constituem seu contedo. Um dos problemas encontrados na conceituao a indefinio doutrinria acerca do objeto do direito real de propriedade, vale dizer, em relao a sua amplitude ou extenso. A acepo ampla de que propriedade o domnio ou qualquer direito patrimonial, comporta em seu bojo a propriedade imaterial, ao menos no que ela tem de patrimonialidade. Em sentido mais restrito, se reduz a propriedade s faculdades de usar, gozar e dispor da coisa corprea e ao direito de reav-la de quem a possua ou detenha injustamente. O direito real em si no caso pleno, complexo, absoluto, hipoteticamente perptuo e exclusivo.

Colocada a definio neste ngulo, exsurge a discusso acerca do objeto do direito de propriedade, centrada basicamente na chamada propriedade imaterial. Inobstante as vrias posies sobre o tema a titularidade dos direitos sobre bens incorpreos corresponde noo de propriedade, mesmo de modo peculiar ou especial, deixando de lado alguns caracteres da propriedade enquanto direito real. Outras variaes do contedo da propriedade, como o direito de superfcie, algumas manifestaes das restries de direito pblico ao exerccio da propriedade, o direito derivado da propriedade intelectual, a inveno na propriedade industrial, et coetera, pelo menos alargam a discusso pertinente ao objeto da propriedade.

No plano legislativo, denota-se a opo dos Cdigos pela no conceituao direta do direito real de propriedade, seguindo o caminho da caracterizao desse instituto pelo seu contedo. H uma conceituao implcita ou indireta emanada a fixao dos poderes, faculdades e direitos dos proprietrios. Assim no direito ptrio, bem como no direito estrangeiro estudado. luz do direito comparado destacou-se o direito sovitico com as suas peculiaridades.

Conclui-se, por conseguinte, que em perspectivas distintas so encontradas diferentes respostas conceituao do direito de propriedade, evidenciando-se que em sistemas cujas relaes sociais que formam o substrato do regime jurdico no apresentam de um contexto para outro alteraes ou discrepncias fundamentais, mantm-se similar a postura conceitual dogmtica do direito de propriedade, constituindo um ncleo comum. A reunio dos enfoques histrico, doutrinrio e jurdico-positivo permite, ao menos, vislumbrar o universo da conceituao desse instituto, sendo relativamente suficiente para um estudo breve e modesto fornecer um sucinto retrato escrito dessa realidade jurdica.

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