Concepções da Criança Sobre Escrita

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3 UNIDADE 3 Psicolingüística e alfabetização Objetivos de aprendizagem Após estudar esta unidade, você terá subsídios para: Compreender o processamento lingüístico realizado pela criança que se alfabetiza. Analisar as primeiras produções escritas de sujeitos em processo de alfabetização. Descrever o processo de interiorização da fala social pela criança. Redimensionar o olhar sobre os “erros” de escrita do sujeito que se alfabetiza. Seções de estudo Seção 1 Concepções infantis sobre a escrita Seção 2 Pensamento e linguagem na perspectiva histórico-social Seção 3 Discurso interior e a escrita

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Conteúdo da formação aborda os diversos aspectos que envolvem o processo de alfabetizaçãoA formação A Linguagem das Crianças aborda os diversos aspectos que envolvem o aprendizado de uma criança. Os professores que atuam na Educação Infantil vão poder entender mais sobre as questões que envolvem esse processo como, por exemplo, a criança se apropria da escrita, a concepção da linguagem, oralidade, leitura, entre outros.

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3UNIDADE 3

Psicolingüística e alfabetização

Objetivos de aprendizagem

Após estudar esta unidade, você terá subsídios para:

Compreender o processamento lingüístico realizado pela criança que se alfabetiza.

Analisar as primeiras produções escritas de sujeitos em processo de alfabetização.

Descrever o processo de interiorização da fala social pela criança.

Redimensionar o olhar sobre os “erros” de escrita do sujeito que se alfabetiza.

Seções de estudo

Seção 1 Concepções infantis sobre a escrita

Seção 2 Pensamento e linguagem na perspectiva histórico-social

Seção 3 Discurso interior e a escrita

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Para início de estudo

“Descobrir como as crianças pensam: eis a questão”.(Emilia Ferreiro)

A psicolingüística se interessa pelos processos mentais relacionados ao aprendizado da linguagem e pelo comportamento humano envolvido no uso da linguagem. Nesta unidade, vamos estudar algumas contribuições da psicologia para entendermos o processamento lingüístico da criança que se encontra em processo de alfabetização e a relação entre pensamento e linguagem.

Na primeira seção, vamos verifi car as concepções que as crianças constroem sobre a escrita, o que nos possibilitará compreender a escrita espontânea de crianças em processo de alfabetização.

Também vamos ver a relação pensamento e linguagem no desenvolvimento da criança. É comum a consideração de que a linguagem expressa o pensamento, mas será mesmo que o pensamento precede a linguagem? Se a linguagem não é inata, como é aprendida?

Aquilo que expressamos é elaboração de nossa individualidade ou resulta do meio em que vivemos? A relação entre pensamento e linguagem é tema vasto da psicologia, vamos nos deter na contribuição de Lev Semenovich Vygotsky e Alexander Luria por entender que são os trabalhos destes autores que melhor explicam a questão.

A partir do estudo destes temas, vamos poder redimensionar nossa olhar sobre a escrita inicial daqueles que estão em processo de alfabetização.

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SEÇÃO 1 – Concepções da criança sobre a escrita

Há algum tempo, para ser alfabetizador o professor se preocupava em seguir um método de ensino, a ênfase estava no “como se faz”, pois como a escrita era vista como habilidade motora, como código a ser memorizado e depois reproduzido, havia caminhos determinados para se desenvolver certas habilidades e, depois, passos para a criança chegar a codifi car e decodifi car a escrita.

O conhecimento que se tem hoje sobre a escrita - como elaboração conceitual e atividade interdiscursiva - coloca aos professores necessidade de considerar, entre outras questões, a atividade mental da criança que está aprendendo. Neste sentido, conhecer a forma como a criança concebe a linguagem, isto é, as idéias que ela tem sobre leitura e escrita torna-se fundamental para qualifi car a relação com a criança que se alfabetiza. De posse deste conhecimento, o professor terá subsídios para pensar como ensinar a criança a escrever.

Vygotsky e Luria foram buscar a pré-história da escrita na criança, isto é, a gênese da escrita infantil, e suas investigações evidenciaram que:

a) para a criança que se alfabetiza, há um processo de elaboração de todo um sistema de representação simbólica da realidade, algo parecido com o que a humanidade passou até chegar à forma de escrita que utilizamos hoje. (LURIA 1998, p.161)

Lembra do que vimos na história da escrita? De como a humanidade iniciou seus registros de idéias? Num primeiro momento desenhou o que queria expressar (pictogramas), depois registrou suas idéias por símbolos que aos poucos se tornaram convenções (ideogramas). Só mais tarde registrou os sons da fala (escrita alfabética).

Daí você pode concluir que ao alfabetizar crianças, a escola deva considerar e vivenciar outras possibilidades de linguagem gráfi ca e não fi car restrita a escrita alfabética.

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b) as crianças, num primeiro momento de seu desenvolvimento, não têm a noção de que a escrita pode “guardar” idéias ou conceitos. Elas não reconhecem um dos usos sociais mais freqüentes da escrita, de preservar a linguagem oral, para servir à memória.

Se muitas crianças entram na escola sem saber o uso social da escrita e nela defrontam-se com uma escrita fragmentada e sem sentido (letras e sílabas para decorar), vão acabar se distanciando ainda mais da possibilidade de letramento. É fundamental então, antes de tudo, transformar a sala de aula num ambiente alfabetizador, um espaço em que ler e escrever sejam atos signifi cativos.

c) o desenho é uma das primeiras formas de registro na infância e a escrita é aprendida pelo deslocamento do desenho das coisas para o desenho da fala.

Aí reside a complexidade de se aprender a escrever. Observe que com dois ou três anos de vida uma criança aprende a linguagem falada, mas, para chegar à linguagem escrita quantos anos se passam? Aprende-se a falar “naturalmente” no convívio com pessoas que falam, no entanto, para aprender a escrever há que se passar por um trabalho sistemático oferecido pela escola.

Já não é mais novidade para você que para chegar a apreender este simbolismo complexo que é a escrita, antes a criança se apropria do conceito de representação, de simbolização. Vamos retomar este conteúdo: Vygotsky evidenciou os gestos, o desenho e o brinquedo como atividades de desenvolvimento, de representação simbólica na criança. Observou, no entanto, que enquanto a fala e o desenho são simbolismos de 1a ordem - pois representam algo diretamente - a escrita se constitui num símbolo de 2a ordem ou indireto, já que representa a linguagem verbal que, por sua vez, já é uma representação.

escada → /iscada/ → (desenho de uma escada).

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Observe que a escrita escada representa a fala que é a representação primeira do objeto.

Perceba, então, que a complexidade da escrita inicial está em ela ser a representação de uma representação, um símbolo indireto.

O segredo da alfabetização está em se trabalhar com a representação/simbolização (pelo “faz-de-conta”, pelo desenho, pela linguagem oral...) oportunizando à criança a vivência de diversas linguagens e ir, aos poucos, criando situações em que ela necessite também representar a fala, isto é, que necessite dizer algo a alguém por escrito, que necessite “guardar” uma história vivida ou ouvida ou qualquer outro motivo que se tenha para escrever.

Na perspectiva teórica piagetiana, Emilia Ferreiro pesquisou as concepções de escrita que as crianças revelam na passagem do desenho para a escrita.

Acompanhe alguns momentos desse processo.

1o momento:

A criança aprende que desenho é uma coisa e escrita é outra.

Neste momento, se for solicitada a escrever, ela fará uma seqüência de letras ou números e até poderá inventar símbolos por não conhecer as letras convencionais. Esta seria a fase pré-silábica da escrita.

Figura 3.1: Escrita pré-silábica

Fonte: Maruny Curto et al, 2000 p. 29

Para uma análise

das proximidades e

divergências entre os

trabalhos de Vygotsky e

Ferreiro, consultar M. T. F.

Rocco (1990).

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É interessante observar que crianças que convivem com pessoas letradas e, portanto, observam atos de escritura, respondem à proposta de escrever colocando as letras da esquerda para a direita e no sentido horizontal.

O que pode parecer algo sem importância na verdade é indício do quanto elas são observadoras e de como um ambiente permeado pela cultura escrita ensina, pois o sentido e a direção da escrita são convenções sociais.

Ocorre que muitas outras crianças entram na escola sem conhecer esta convenção da nossa cultura, sendo assim, precisam ser ensinadas, orientadas neste sentido.

Desta primeira concepção de escrita ainda pode-se destacar que:

a) como ela ainda não percebe o vínculo entre a escrita e a fala, isto é, como não consegue entender que se escreve a fala, poderá utilizar muitas letras para representar algo que seja grande e, por outro lado, usará poucas letras para escrever algo que seja pequeno.

A escrita, nesse momento, tem relação com o tamanho do objeto que representa. Por isso, diante de cartões onde se lêem as palavras ARANHA e BOI, se ela for questionada sobre onde está escrito o nome de um e de outro animal (desde que estes animais sejam conhecidos pela criança), vai apontar o cartão com a palavra maior para boi e vice-versa.

Assim também, diante de fi chas com o nome de colegas da classe na qual o nome de uma criança mais baixa seja maior (ex: Reinaldo) que de uma criança mais alta (ex: Rui), ela entrará em confl ito, pois segundo sua lógica uma pessoa mais alta ou mais gorda deve ter um nome maior que outra que tenha menor estatura.

b) nesses primeiros momentos de processamento da escrita, as crianças podem se colocar a questão de que para escrever algo não se pode repetir letras. Assim poderão não aceitar a seqüência AAAA como uma escrita, entendem que para ser algo legível as letras devem ser variadas. Por outro lado, poucas letras também lhes parecerão uma escrita estranha. Assim, muitas delas não

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aceitarão escritas com menos de três letras, isto é, não considerarão uma escrita admissível se não tiver três ou mais letras.

2o momento:

Em contato com material escrito e, principalmente, com situações que a façam pensar sobre a escrita, a criança chega à compreensão de que há um vínculo entre escrever e falar, consegue perceber que a escrita é uma representação da fala. Nesse estágio de entendimento sobre a escrita, ela começa a marcar seu registro com a pauta sonora da palavra falada, apresentando uma escrita silábica.

Assim, a escrita silábica consiste em colocar uma letra para cada sílaba da palavra. Por exemplo:

CADERNO → poderá escrever K E O ou C D O DINOSSAURO → poderá escrever D N A O ou I O A O

Gabriela (cinco anos) estava brincando com o alfabeto móvel e foi solicitada a montar com as letras que estavam sobre a mesa a palavra jacaré. Em princípio, ela resistiu dizendo que não sabia, mas, depois de encorajada (lhe foi dito que não teria problema algum se errasse) ela se arriscou e colocou em seqüência as seguintes letras J K E e leu, JACARÉ, apontando uma letra para cada sílaba.

Figura 3.2: Brincando com letras

Fonte: Foto de acervo da profª. Rosicler Schafaschek

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Esta mesma criança, animada com a “brincadeira,” quis escrever algo sobre o brinquedo que tinha em mãos, era um Bob Esponja de plástico surfando numa onda. Então pegou uma caneta e registrou:

Figura 3.3: Escrita de Gabriela.

Fonte: Acervo didático particular: profª. Rosicler Schafaschek

3o momento:

Na relação com material escrito e, principalmente, em situação de uso signifi cativo da escrita, a criança passa a comparar sua escrita silábica com a convencional e percebe que sempre faltam letras em sua produção. A partir daí, e aos poucos, vai incorporando letras nas palavras que escreve. Assim, se anteriormente se contentava com K E O para escrever CADERNO, agora passa a incorporar outras letras à sua escrita, e poderá escrever algo como K A D N O.

Outros exemplos:

DINOSSAURO → DIOARO

JACARÉ → JAKE

Veja que, ora a criança coloca uma letra para cada sílaba, ora escreve a sílaba completa, com uma letra para cada som, isto é, de forma alfabética. Por isto, esta fase foi denominada silábico-alfabética.

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Miguel em outubro de 2006 participava de uma gincana escolar, estava com seis anos e teve a iniciativa de fazer uma bandeirinha para torcer por sua equipe:

Interpretando a escrita silábico-alfabética de Miguel:

OLE OLE, OLÁ A EQUIPE IRADA VEIO PRÁ BRINCAR.

Figura 3.4: Escrita silábica-alfabética

Fonte: Acervo didático particular: profª. Rosicler Schafaschek

4o momento:

Por este caminho de tentativas de escrever, de pensar sobre a escrita, de comparar sua escrita com a convencional, de se perguntar o que lhe falta, a criança chega ao princípio alfabético. E, deste modo, passa a utilizar todas as letras necessárias para escrever CADERNO, por exemplo. Chegando à concepção alfabética de escrita, a criança percebe que para cada som que fala precisará colocar uma letra. Isto criará novos desafi os pois, poderá escrever, por exemplo: DINOSAURO, CA XORO, etc.

Neste estágio a criança aprendeu o princípio alfabético de nossa escrita, já é capaz de se comunicar por escrito, mas tem ainda um longo caminho pela frente e, neste caminho, está o aprendizado da ortografi a.

É importante ressaltar que essas “formas estranhas” que as crianças apresentam quando se arriscam a mostrar como concebem a escrita fazem parte do processo. Ao se deparar com

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essas escritas, em vez de desqualifi cá-las, o professor terá subsídio importante para compreender o pensamento do aluno e auxiliá-lo na aprendizagem. Há um tempo, quando não tínhamos uma teoria que explicasse esses momentos de escrita infantil, se o professor ditava, por exemplo, a palavra mala, e a criança escrevia mla (escrita silábica –alfabética), logo se levantava a hipótese de que o aluno tinha problemas de discriminação auditiva ou qualquer outro “problema de aprendizagem”.

Hoje, sabemos que para chegar a este momento a criança já superou vários outros e que, num processo sistemático de relação com escritas signifi cativas, vai continuar elaborando e re-elaborando seu conhecimento sobre a escrita, aperfeiçoando sua produção. Ao professor cabe ser um interlocutor presente, um mediador constante entre o que ela sabe e o que precisa aprender, sem esquecer da “paciência pedagógica” que a alfabetização exige.

No texto que segue, Hernán, com seis anos, escrevia com ajuda de um adulto que lhe apontava as letras solicitadas. Enquanto tinha ajuda, sua escrita era alfabética, porém, quando se arriscou a escrever sozinho, o nível silábico de escrita se apresentou:

Interpretando: Simbad está passeando em uma ilha e encontrou um ovo gigante.

Figura 3.5: Escrita alfabética com auxílio

Fonte: Acervo didático da profª. Rosicler Schafaschek

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O outro é fundamental para haver troca, interlocução, mas é importante a criança não fi que dependendo desse outro para escrever, ela precisa tentar, isto a fará pensar sobre como se escreve, o que contribui para sua aprendizagem.

Aí reside um momento especial da relação de ensino. Ao professor cabe ensinar, mas precisa considerar que entre o ensinar e o aprender a linguagem escrita existe um “espaço de elaboração” (SMOLKA, 2003, p. 58), momento este que caracteriza a dimensão pedagógica na relação professor/conteúdo a ser aprendido/aluno.

SEÇÃO 2 – Pensamento e linguagem na perspectiva histórico- social

“O pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir.”

Vygotsky

Os estudos de Vygotsky e Luria demonstram que a linguagem exerce um papel fundamental no desenvolvimento e na constituição do psiquismo humano. Assim como os instrumentos potencializam a ação humana sobre a realidade exterior, também os signos agem sobre os processos internos de pensamento constituindo-se como ferramentas psicológicas no desenvolvimento humano.

Veja que o instrumento (um arado que revolve o solo) tem um papel fundamental para o trabalho humano, da mesma forma, o signo torna-se um instrumento psicológico desencadeando os processos internos de pensamento, planejamento, raciocínio dedutivo, etc., o que se denomina funções psicológicas superiores.

Analisando a gênese do pensamento e da linguagem, Vygotsky ressalta que esta relação não é algo estático, e sim um processo contínuo em que uma coisa infl ui na outra. Pensamento e linguagem têm origens diferentes e passam por modifi cações durante a vida do indivíduo. Embora a origem seja distinta, em

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certo momento, o pensar e o falar convergem, se unem. Neste momento é que se desencadeia o complexo funcionamento psicológico, que caracteriza o ser humano.

É importante destacar que isto não ocorre naturalmente, é na relação interpessoal que caracteriza a vida do indivíduo em sociedade que se desencadeia esse processo.

Vejamos então como isto ocorre.

Numa primeira etapa de domínio da linguagem a mãe orienta a atenção do fi lho pequeno dizendo: “pega a bola”, “onde está o papai?”, “levanta a mão”, e a criança cumpre estas instruções verbais. Nessa ação, a mãe direciona a atenção do fi lho, nomeando objetos e pessoas do contexto infantil destacando-as de um fundo geral.

A ação da criança começa pela alocução verbal da mãe e termina pelas próprias ações da criança.

Acompanhe esta situação:

uma criança de até dois anos quer pegar um brinquedo que está numa prateleira lá no alto. Como não alcança, chora, estende as mãos em direção ao objeto, faz apelos verbais a um adulto. Nesse momento, sua linguagem expressa sua insatisfação, tem função comunicativa, mas ainda não é utilizada como instrumento de pensamento, por isso foi denominada linguagem pré-intelectual.

Numa etapa posterior do desenvolvimento, a criança domina a língua e passa a falar consigo mesma.

Observe crianças pequenas, com idade em torno de três ou quatro anos brincando: elas monologam enquanto agem, podem até estar reunidas em grupo, mas a fala que se ouve não tem função comunicativa, apenas falam para si: “vou pegar o carrinho...”, “ele foi por aqui, por aqui...”, “o nome dela é Susi...”, “come fi lhinha, come...”.

Falando consigo mesma a criança está processando o discurso social, está internalizando a linguagem do seu grupo social. NesSa fase do desenvolvimento infantil, pensamento e linguagem

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se conectaram, e então a fala torna-se pensamento verbal, e o pensamento passa a ser verbalizado, de forma que sem a palavra não é possível o pensamento e, sem este, a palavra não existiria.

Nesse estágio, a criança fala alto, mas não se dirige a um interlocutor, ela dialoga consigo mesma. Esta linguagem é chamada de fala egocêntrica e tem, então, uma função intelectual: funciona como reguladora da atividade infantil, é organizadora do seu fazer e do seu pensar.

Assim, a criança chega aos objetos sociais pelo outro que nomeia, designa, lhe apresenta o mundo por meio da palavra (signo lingüístico). Porém, mais do que instrumento do conhecimento, a linguagem vai se tornando um “meio de regulação dos processos psíquicos superiores.” (LURIA, 1986, p. 92).

A fala egocêntrica se manifesta dos três aos sete anos, período considerado por Vygotsky como etapa de transição do discurso social para o discurso interior.

Então, quando o sujeito se expressa, seu discurso não é produção da sua subjetividade, a língua não é um produto individual. A esta altura você pode se perguntar: se não surgiu do sujeito, como foi parar nele?

Na perspectiva de Vygotsky, a linguagem está primeiro no social, e na interação com o outro (relações interpessoais) ela é internalizada pelo sujeito (processo intrapsíquico). Assim, do contrário do que pode nos parecer, aquilo que está dentro do indivíduo, antes esteve fora, na sociedade. Não é o pensamento individual (a subjetividade) que se insere numa realidade objetiva, exterior ao sujeito, mas é a linguagem social que constitui o indivíduo confi gurando sua subjetividade.

Esquematizado:

SOCIEDADE → (várias pessoas)

relações interpessoais

INDIVÍDUO →(uma pessoa)

processo intra-psíquico

SOCIEDADE

várias pessoas mais aquela uma

Na mesma perspectiva, Luria destaca que o ato voluntário livre tem origem nas formas sociais de comportamento. “No início,

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a criança deve se subordinar à instrução verbal do adulto para, nas etapas seguintes, estar em condições de transformar esta atividade ‘interpsicológica’ em um processo interno ‘intrapsíquico’ de auto-regulação.” (1986, p. 96). Veja um exemplo disto:

Quando você era criança alguém lhe dizia “mastigue bem a comida, mas com a boca fechada”. Você internalizou esta fala, o que lhe permitiu um controle e regulação de seu próprio comportamento, ou seja, você mastiga com a boca fechada.

Retornemos ao discurso interior ou fala interior.

A linguagem social ou exterior vai sendo processada pela criança que expressa uma fala egocêntrica a qual, aos poucos, vai sendo internalizada tornando-se fala interior. Esta última não é vocalizada, é uma linguagem que se interiorizou em pensamento.

Continuemos, como exemplo, com a mesma situação anterior, agora com uma criança maior, e vejamos como a função da linguagem se modifi ca.

A criança tem agora seis anos e precisa alcançar um brinquedo que está numa prateleira lá no alto. Em vez de apelar a um adulto, ela recorre a si mesma buscando solucionar a questão. Estabelece um diálogo consigo mesma, sem vocalização, buscando atingir seu objetivo: “De qual maneira eu poderia chegar até aquele brinquedo? Posso subir na cadeira... poderia pegar a escada...”

Você pode perceber neste momento como a fala cumpre a função de organizar a ação da criança. Esta fala para si mesmo - antes verbalizada, a fala egocêntrica agora foi internalizada, não pode ser ouvida, tornou-se discurso interior.

Nesta etapa de desenvolvimento, a criança aprendeu a usar a linguagem para além do ato de comunicar ou expressar emoções. Agora a linguagem lhe permite operações complexas como prever, comparar, deduzir, planejar e, desta forma, ela pode ir além das experiências imediatas.

Assim, é a palavra que torna possível trazer à mente objetos, sentimentos ou ações que não estão presentes e com os quais se quer operar.

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Quando falamos a palavra “mar”, por exemplo, não precisamos estar diante dele para sabermos do que se trata. Também é a palavra que oferece as características do objeto (“mar” é uma imensidão e água salgada, etc.) permitindo generalização e categorização do objeto, de forma que uma pessoa que nunca viu o mar pode criar uma imagem mental sobre ele.

Veja a importância da linguagem, é por meio dela que temos acesso ao conhecimento, é ela que torna possível o pensamento abstrato, o raciocínio lógico, enfi m, o próprio funcionamento intelectual.

SEÇÃO 3 – Discurso interior e a escrita

Tendo verifi cado a importância da linguagem na constituição do ser humano, retornemos a questão da linguagem internalizada e sua possível relação com os momentos de escrita inicial da criança.

É interessante observar que a linguagem egocêntrica transforma-se em linguagem interior por volta dos sete anos, período que coincide com o de alfabetização da maioria das crianças.

Ana Luiza Smolka (2003, p. 70), observando esta questão, analisa o tema discurso interior pesquisado por Vygotsky e destaca:

o discurso interior parece desconexo e incompleto;

é quase completamente predicativo porque o assunto

pensado é sempre conhecido de quem pensa;

a sua sintaxe, portanto, é abreviada;

há a predominância do sentido sobre o signifi cado;

há aglutinação de palavras;

há integração de sentidos (infl uxo de sentidos).

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Smolka diz que o período de alfabetização é um momento de estruturação deliberada do discurso interior pelo ato de escrever e nos coloca a seguinte questão:

“(...) além de dizermos que o discurso interior traz as marcas do discurso social, não poderíamos dizer que o discurso escrito, sobretudo em sua gênese, traz as marcas do discurso interior?” (SMOLKA, 2003, p. 71).

Esta observação é muito pertinente, pois pode-se constatar na produção escrita em textos de crianças que se alfabetizam as características do discurso interior.

Em seu livro “A criança na fase inicial da escrita”, Ana Luiza Smolka apresenta e analisa o seguinte texto escrito por uma criança em seu segundo ano escolar:

O castelo. A princesa do Castelo Rainha... casou com príncipe... amaram....para a princesa...se casaram e viveram felizes para sempre. O princesa... fi zeram o casamento e depois do casamento viveram felizes e surgiu um rato e assustou a princesa.

Figura 3.6: O Castelo

Fonte: SMOLKA, 2003, p. 68 e 69

Smolka nos apresenta este texto ressaltando nele o fl uir do signifi cado em meio a repetições, omissões e aglutinações próprias de quem está aprendendo a expressar e registrar seu pensamento por escrito.

'E é na relação com o outro, na interdiscursividade, que dessa escrita inicial o aprendiz passará a uma escrita cada vez mais clara para seus interlocutores. Esta questão será tratada na unidade 4 deste livro.

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Em relação ao conteúdo deste texto, podemos nos perguntar também: de onde vem esse discurso de uma princesa e um príncipe que se casaram e viveram felizes?

Este discurso expresso pela criança antes está fora dela, é discurso social. Está nos livros infantis que são lidos para ela, nos textos e nas imagens a que ela tem acesso pelo teatro, desenhos e diversas outras formas de linguagem. Assim, um universo de linguagem é internalizado na relação com o outro e é daí que vêm as idéias que a criança expõe em sua escrita.

Vejamos este outro texto, agora de uma criança que estava em seu primeiro ano escolar.

O Yanif é muito bagunceiro... ele quebrou um vidro... ele foi na... você sabe...

ele foi para a escola e quando a tia apagou o quadro ele chorou. Você é meu amigo para sempre? Ele é meio malandro. Mas ele é legal. Ele é bom no futebol. Ele é bom. Agora acabou.

Figura 3.7: Escrita inicial

Fonte: Acervo particular: profª. Rosicler Schafaschek

Quem será esse malandro que quebra vidros, que chora quando não dá conta de copiar do quadro, mas que preza a amizade, que também é legal e bom no futebol?

O discurso escrito dessas crianças não vem do nada, não nasceu com elas, esteve antes na vida desses sujeitos, foram histórias ouvidas ou vividas que retornam em forma de texto escrito. Será que dá para ver a riqueza desse processo antes de apontar os

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erros? Será que a criança pode “aparecer” e tentar interagir com o outro enquanto aprende ou vai ter que fi car reprimida atrás de uma linguagem estereotipada, que não diz nada a ninguém, do tipo “A mamãe afi a a faca” ou “Vovô viu a uva”?

É função da escola ensinar as crianças a escrever de forma clara e estruturada, porém, isto não acontece de uma hora para outra, este é um longo processo no qual as primeiras tentativas devem ser consideradas como momentos importantes do processo.

Em relação ao discurso interior e à escrita, Vygotsky ressalta que enquanto o primeiro não tem uma forma estruturada, a escrita precisa ser explicativa para se tornar compreensível para o leitor. Porém, este mesmo autor ressalta que “um enunciado espontâneo, errado do ponto de vista gramatical, pode ter seu encanto e valor estético”. (1989, p. 110)

Considerando o texto literário, a poesia, podemos constatar que o texto pode assumir características diversas e a linguagem dependendo do contexto pode ser provocadora, alusiva e assumir formas diversas. Isto vai depender, conforme salienta Smolka, das condições e funções da escrita.

Quem escreve, para quê se escreve, para quem se escreve?

Quando a criança pode se colocar por escrito durante o processo de alfabetização, quando sua escrita não é reprimida porque ela ainda não sabe, se ela pode dizer o que quer e do modo que lhe é possível, ela expressa seus sentimentos, sua percepção da realidade, e se coloca no texto. Aquilo que seria desconsiderado ou tomado como um erro numa perspectiva estruturalista de linguagem e num método tradicional de alfabetização, agora evidencia um processo.

Processo no qual aprender signifi ca fazer, praticar a escrita enquanto aprende, e por isto, seu texto fragmentado, com omissões e aglutinações será lido e considerado.

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Unidade 3

- Analise a seguir a síntese da unidade, realize as atividades de auto-avaliação e consulte o Saiba mais para aprofundar conhecimentos sobre o conteúdo tratado nesta unidade.

Síntese

Você viu na unidade 3 que:

a linguagem é um simbolismo complexo, uma representação de outra representação (a fala) e, por isto, o aprendiz da escrita precisa de um trabalho sistemático com representação e um tempo para construir esse entendimento.

ao aprender como se escreve, a criança pensa sobre a escrita e apresenta hipóteses cada vez mais elaboradas que vão desde a colocação de letras de forma aleatória no papel (escrita pré-silábica) até chegar à percepção do princípio alfabético da escrita (para cada som falado uma letra).

em seu desenvolvimento, a criança vai internalizando a linguagem do seu grupo social e, neste processo, manifesta-se uma fala egocêntrica a qual tem uma função intelectual.

a linguagem inicialmente tem uma função comunicativa e, na medida em que a criança interage num meio social, pensamento e linguagem se conectam e a criança passa a utilizar a linguagem também para comparar, prever e planejar suas ações.

o discurso interior é o discurso social processado e internalizado e a fala egocêntrica se apresenta num período intermediário entre o discurso social e o discurso interior.

as primeiras escritas infantis revelam esse discurso interior e por isso se apresentam de forma fragmentada, desconexa e incompleta.

- Sugerimos realizar as atividades de auto-avaliação e conferir o caminho de resposta nas páginas iniciais.

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Atividades de auto-avaliação

1. Por que a escrita se apresenta como algo tão complexo para o aprendizado? O que caracteriza este objeto social (escrita) e este processo de aprendizagem (alfabetização)?

2. Explique o fenômeno da fala egocêntrica da criança e sua interiorização.

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Linguagem e Infância IV

Unidade 3

3. Por que as primeiras manifestações da criança em relação à linguagem escrita podem se apresentar de forma tão desconexa e fragmentada?

Saiba mais

Se você fi cou interessado em conhecer mais sobre psicolingüística e alfabetização, recomendamos que consulte:

Consciência fonológica e linguagem escrita em pré-escolares. Maria Regina Maluf e Sylvia Domingos Barrera. In: Psicologia e Refl exão Crítica, 1997, vol. 10, nº. 1, p. 125-145.Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721997000100009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: ?????. Pesquisa a relação entre consciência fonológica e aquisição da linguagem escrita numa perspectiva psicogenética.

Alfabetização e fracasso escolar: problematizando alguns pressupostos da concepção construtivista. Sandra Maria Sawaya. In: Revista Educação e Pesquisa, Jan 2000, vol. 26, nº. 1, p. 67-81.Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v26n1/a05v26n1.pdf>. Artigo que apresenta elementos para um debate sobre a alfabetização e o fracasso escolar das crianças de baixa renda.

A escrita como recurso mnemônico na fase inical de alfabetização escolar: uma análise histórico-cultural. Cláudia Maria Mendes Gontijo e Sérgio Antônio da Silva Leite Educação e Sociedade, abr. 2002, vol. 23, nº. 78, p. 143-167.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v23n78/a09v2378.pdf>.Traz os resultados de uma pesquisa cuja fi nalidade foi investigar os processos que se constituem nas crianças, na fase inicial de alfabetização escolar, ao serem incentivadas a usar a escrita como recurso mnemônico.

FERREIRO, Emilia. Refl exões sobre alfabetização. Tradução de Horácio Gonzalez. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1987.

KATO, Mary A. No Mundo da Escrita: uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática, 1995.

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