CONCEPÇÕES SOBRE RISCOS NA PERSPECTIVA DE … · da ABNT e pelo mapa conceitual (trabalho...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE ENFERMAGEM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM CONCEPÇÕES SOBRE RISCOS NA PERSPECTIVA DE PROFISSIONAIS DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA ANA VALESCA FERNANDES GILSON SILVA Belo Horizonte 2014

Transcript of CONCEPÇÕES SOBRE RISCOS NA PERSPECTIVA DE … · da ABNT e pelo mapa conceitual (trabalho...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    ESCOLA DE ENFERMAGEM

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ENFERMAGEM

    CONCEPES SOBRE RISCOS NA PERSPECTIVA DE

    PROFISSIONAIS DE VIGILNCIA SANITRIA

    ANA VALESCA FERNANDES GILSON SILVA

    Belo Horizonte

    2014

  • ANA VALESCA FERNANDES GILSON SILVA

    CONCEPES SOBRE RISCOS NA PERSPECTIVA DE

    PROFISSIONAIS DE VIGILNCIA SANITRIA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade

    Federal de Minas Gerais, como um dos requisitos

    obteno do ttulo de Doutor em Enfermagem.

    Linha de Pesquisa: Preveno e controle de agravos

    sade.

    rea de Concentrao: Sade e Enfermagem.

    Orientador: Prof. Dr. Francisco Carlos Flix Lana,

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Belo Horizonte

    Escola de Enfermagem da UFMG

    2014

  • Dedicatria

    Dedico o resultado de quatro anos de estudos queles que me acompanharam neste processo.

    Para as minhas filhas Sarah, Clara e Isadora que participaram ativamente da construo do

    trabalho com dedicao, carinho e responsabilidade, suportando as ausncias dos perodos de

    estudo e a alterao do estado de conscincia. Sarah, responsvel pela aplicao das normas

    da ABNT e pelo mapa conceitual (trabalho hercleo!); Clara, pelas tradues e troca de meu

    computador e Isadora que organizou, coordenou e avaliou a equipe de transcritores. Com

    certeza, sem a ajuda delas o caminho at aqui teria sido muito difcil.

    Para minha me, que me deu o exemplo do esforo e da dedicao para se chegar aonde se

    quer ir.

    Para meu companheiro Ricardo, que me deu paz e serenidade e que manteve minha sanidade

    mental me levando para passear, divertir e viver a vida.

    Para minhas colegas do SUS Betim, que esto na luta diria acreditando no trabalho que

    constroem, especialmente, a equipe da Vigilncia Sanitria de Betim, que foi capaz de

    mostrar o quo longe se pode ir com estudo, vontade e ideias.

  • Agradecimentos

    So tantos agradecimentos...

    Chico, pela ousadia, acolhida e por acreditar e confiar que chegaramos aqui. Deixou-me voar,

    mas me manteve por perto.

    Ldice, que me convidou para a gesto da VISA Betim. Juntas fomos a congressos, cursos,

    seminrios e reunies. Rimos e sofremos por diversos motivos. Quantas histrias temos para

    contar!!!

    Os profissionais da VISA Betim que me instigavam diariamente com suas demandas,

    questionamentos e reflexes e no me deram outra alternativa seno estudar, estudar e

    estudar...

    Pedro Ivo e Andr Vaz da ANVISA. Quanta disponibilidade, boa vontade e interesse em me

    auxiliar!

    Alexandre Humberto da Superintendncia Estadual de VISA que me acompanhou na gesto e

    se entusiasmou com este estudo.

    Maria Goretti da Superintendncia Estadual de VISA pela disponibilidade, dedicao e

    disposio em participar.

    Todos os entrevistados da VISA do municpio de Contagem, da Superintendncia de VISA

    Estadual e ANVISA que se dispuseram, prontamente e com interesse, a participar desta

    pesquisa.

    Os professores de Filosofia da Ps Graduao da FAFICH/UFMG Ivan Domingues, de Razo

    e Racionalidades e Ernesto Perinni, de Filosofia Analtica. Eles no devem se lembrar de

    mim, mas suas aulas foram muito importantes: eles me ensinaram a pensar diferente.

    As professoras Peninha e Claudia Penna que, ainda na banca de seleo, me indicaram qual o

    rumo metodolgico tomar e acreditaram no projeto.

    Dina Czeresnia que contribuiu para que esta tese tomasse os rumos das significaes e no

    apenas de conceitos. Sua contribuio foi muito valiosa.

    Edin Costa que detalhou todas as mudanas necessrias me indicando os caminhos da VISA.

    The Doctors: Fernanda, Martinha, Simone e Erika por tantas gargalhadas, borbulhas e

    conversas!

    Luis Arajo, meu eterno amigo e salvador nos momento de desesperos com as tecnologias

    computacionais. Sem sua ajuda, eu teria perdido vrios textos, em vrios momentos.

    Imaginem!

  • Resumo

    A Vigilncia Sanitria (VISA) definida como um conjunto de aes capaz de eliminar,

    diminuir ou prevenir riscos sade e de intervir nos problemas sanitrios decorrentes do meio

    ambiente, da produo e circulao de bens e da prestao de servios de interesse da sade.

    Tal definio introduziu o conceito de risco, destacando a funo da VISA: controlar o risco

    no consumo de produtos e tecnologias, na utilizao de servios de sade e na exposio a

    condies ambientais. Operando sobre o risco sanitrio, alm da interao social, o

    profissional de VISA necessita integrar conhecimento tcnico e o arcabouo legal para

    controlar um objeto que possui mltiplas dimenses e propriedades e que requer diferentes

    formas de investigao. Porm, existe uma lacuna precariamente explorada no mbito da

    VISA no que se refere ao entendimento do risco, sobretudo quando se considera a magnitude

    deste objeto para suas aes e, os significados atribudos por seus profissionais no foram

    estudados. Para compreender os significados atribudos ao risco nas aes de VISA, foi

    realizada uma pesquisa qualitativa utilizando o Interacionismo Simblico como referencial

    terico e a Teoria Fundamentada nos Dados como mtodo. Atravs de entrevistas com

    gestores e profissionais das vigilncias sanitrias municipal, estadual e ANVISA foi

    construda uma estrutura terica que contm os significados do risco e suas categorias

    relacionadas. A compreenso dos significados no se restringiu expresso sendo abordados

    os contextos, as condies, aes e consequncias para compreender como os profissionais

    interpretam o risco e assumem suas significaes nos locais em que atuam. O risco passa pela

    descrio tcnica, no sentido objetivo, e remete tanto aos aspectos formais relativos s

    questes administrativas, polticas e jurdicas, quanto aos aspectos subjetivos, ligados s

    representaes e sistemas de valores, ultrapassando seu sentido meramente quantitativo. Estes

    significados apresentam duas categorias indissociveis e interdependentes: o dano e o perigo.

    Conclui-se que o profissional realiza sua ao com base nos significados que o risco tem para

    ele e que emergem da interao que ele estabelece com o seu servio, o setor regulado, com a

    populao e consigo mesmo. Os significados expressos so permeados por crenas, normas,

    valores e pelas formas de pensar socialmente produzidas, que marcam identidades e

    particularidades dos grupos entrevistados. Reflete a diversificao dos sentidos do risco na

    delimitao do objeto, nos modos de atuar e no estabelecimento das formas de controle.

    Palavras-chaves: Risco Sanitrio, Vigilncia Sanitria, Pesquisa Qualitativa

  • Abstract

    Health surveillance (HS) is defined as a group of actions capable of eliminating, reducing or

    preventing health risks and of intervening in sanitary problems resulting from the

    environment, the production and circulations of goods and the provision of health-care related

    services. This definition introduced the concept of risk, highlighting the role of HS: to control

    the risk in the consumption of products and technologies, in the use of health services, and in

    the exposition to environmental conditions. When intervening in sanitary risk, the HS

    professional needs to not only interact with others, but also integrate technical knowledge and

    legal framework in order to control an object which has multiple dimensions and properties

    and requires various forms of investigation.. However, there is a gap that is precariously

    explored within the HS regarding the comprehension of risk, especially when the magnitude

    of this objection to its actions is considered and the meanings of risk assigned by its

    professionals have not been studied. To understand the meanings attributed to risk in HS

    actions, a qualitative study was conducted using Symbolic Interactionism as a theoretical

    background and Grounded Theory as a method. Based on interviews with managers and

    professionals from local, state and national health surveillance agencies, a theoretical structure

    that contains the meanings of risk and its related categories was created.Understanding the

    meanings of risk was not restricted to its expression approaching the contexts, conditions,

    actions and consequences for understanding how professionals interpret the risk and assume

    its meanings in places in which they operate. The risk passes through the technical

    description, in the objective sense that refers to both formal aspects related to administrative,

    political and legal issues, as to the subjective aspects, linked to representations and value

    systems, surpassing the merely quantitative sense. These meanings present two inseparable

    and interdependent categories: the damage and the danger. In conclusion, the professional

    performs its action based on the meanings that the risk has to them and that emerge from the

    interaction that they establish with their service, the regulated sector, with the population and

    with themselves. The expressed meanings of risk are pervaded by beliefs, rules, values and

    socially produced ways of thinking, marking identities and particularities of the groups

    interviewed. It reflects the diversification of meanings of risk in the delimitation of the object,

    in the ways of acting and in the establishment of forms of control.

    Key words: Health surveillance; sanitary risk; qualitative research

  • Lista de ilustraes

    Quadro 1. Formao e tempo de trabalho dos entrevistados que 80

    trabalham na VISA municipal, estadual e ANVISA

    Quadro 2. Os fenmenos, suas categorias e subcategorias da Visa municipal 92

    Quadro 3. Os fenmenos, suas categorias e subcategorias da Visa estadual 124

    Quadro 4. Os fenmenos, suas categorias e subcategorias da ANVISA 156

    Quadro 5. Significados atribudos ao risco pelos profissionais que trabalham 184

    na VISA municipal, estadual e ANVISA

    Quadro 6. Tipos de relaes estabelecidas com os sistemas que interagem 195

    nas aes de VISA

    Quadro 7. Componentes estruturais para identificao, avaliao e controle do risco 196

    Quadro 8. Modos de atuao sobre o risco sanitrio 205

    Quadro 9. Agrupamento dos sentidos atribudos regulamentao como 210

    instrumento de controle dos riscos

    Figura 1. Categoria central significando o risco na vigilncia sanitria e 86

    suas categorias relacionadas

    Figura 2. Matriz condicional com a representao macro e micro dos nveis 90

    a qual pertencem os grupos dos entrevistados onde os significados so gerados

    Figura 3. Os fenmenos e suas categorias que compem os significados 92

    de risco que emergem da VISA municipal

    Figura 4. Componentes estruturais para identificao e controle do risco 115

    Figura 5. Processo de interveno sobre o risco identificado 118

    Figura 6. Os fenmenos e suas categorias que compem os significados 123

    de risco que emergem da VISA estadual

    Figura 7. Os fenmenos e suas categorias que compem os significados 156

    de risco que emergem da ANVISA

    Figura 8. Relao entre estrutura (por que), processo (como), aes, 180

    interaes e condies do fenmeno estudado

    Figura 9. Categorias que compem o fenmeno Significando o risco nas 181

  • aes locais de vigilncia sanitria.

    Figura 10. Relao de causa e efeito atribuda ao significado de risco 187

    Figura 11. Mapa conceitual dos significados de risco 194

    Figura 12. Representao das circunstncias que refletem os 214

    significados de risco em cada cenrio estudado

    Diagrama 1. Sentidos atribudos s mudanas ocorridas com a descentralizao 102

    Diagrama 2. Interao entre objetividade e subjetividade e seus componentes 116

    estruturais para o controle do risco

    Diagrama 3. A objetividade e subjetividade com seus componentes de mediao 199

    utilizados nas aes locais de avaliao e gerenciamento do risco

    Diagrama 4. Interao entre estrutura e processo para a identificao e 200

    avaliao do risco nas aes locais.

    Diagrama 5. Representao das aes que constituem um sistema organizado 202

    de interveno

  • Lista de siglas

    ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria

    BPF Boas Prticas de Fabricao

    BPM Boas Prticas de Manipulao

    CDC Centers for Disease Control and Prevention

    CEASA/MG Central de Abastecimento de Minas Gerais

    CIB Comisso Intergestora Bipartite

    CIT Comisso Intergestora Tripartite

    CNAE Cadastro Nacional de Atividades Econmicas

    DIMON Diretoria de Controle e Monitoramento Sanitrio

    GPABA Gesto Plena da Ateno Bsica Ampliada

    GPSM Gesto Plena do Sistema Municipal

    GRS Gerncias Regionais de Sade

    GTVISA Grupo de Trabalho da ANVISA

    INCQS Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Sade

    LACEN Laboratrio Central

    NOAS Norma Operacional de Assistncia Sade

    NOB Norma Operacional Bsica

    NUPEQS Ncleo de Pesquisa em Quotidiano em Sade

    OMS Organizao Mundial da Sade

    PAB Piso de Ateno Bsica

    PDVISA Plano Diretor de Vigilncia Sanitria

    PPI-VS Programao Pactuada Integrada em Vigilncia Sanitria

    TAM Termo de Ajustes e Metas

    TFD Teoria Fundamentada nos Dados

    TFVISA Teto Financeiro de Vigilncia Sanitria

    RDC Resoluo da Diretoria Colegiada

    SNVS Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria

    SUS Sistema nico de Sade

    VISA Vigilncia Sanitria

  • Sumrio

    APRESENTAO

    1. INTRODUO 16

    CAPTULO 2. BASES TERICAS 26

    2.1.Risco e Sade Uma Breve Reviso 26

    2.1.1. Risco Perspectiva Histrica e Social 32

    2.1.2.Risco Perspectiva da Sade 38

    2.2. Vigilncia Sanitria: Definio e caractersticas 50

    CAPTULO 3. ABORDAGEM METODOLGICA DA PESQUISA 69

    3.1. Interacionismo simblico 69

    3.2. Teoria Fundamentada nos Dados 71

    3.3. Contextos 75

    3.4. Sujeitos da pesquisa 78

    3.5.Tcnicas de Coleta de Dados 81

    3.6. Tratamento, Anlise e Interpretao dos Dados 84

    3.7. Consideraes ticas 85

    CAPTULO 4. RESULTADOS E DISCUSSO 89

    4.1. Os significados atribudos ao risco pelos entrevistados da Vigilncia 91

    Sanitria Municipal

    4.1.1. Municipalizando as aes locais de vigilncia sanitria 93

    Desenvolvendo aes bsicas 93

    Mudando drasticamente 97

    4.1.2.Resignificando as aes atravs do risco 102

    Usando a legislao e o conhecimento tcnico 103

    4.1.3. Significando o risco 107

    Identificando e avaliando o risco 107

    Significando o risco nas aes locais de vigilncia sanitria 119

    4.2. Os significados atribudos ao risco pelos entrevistados da Vigilncia 122

    Sanitria Estadual

    4.2.1. Coordenando as aes de Vigilncia Sanitria 124

    Descentralizando as aes 124

    Fortalecendo as aes 132

    4.2.2.Siginificando o risco 137

    Identificando e avaliando o risco 137

    Regulando o risco 142

    Significando o risco nas aes de vigilncia sanitria 152

    4.3. Os significados atribudos ao risco pelos entrevistados da ANVISA 155

    4.3.1. Gerenciando o risco 156

  • Contextualizando a ANVISA 157

    Regulando o risco 160

    Significando o risco nas aes de vigilncia 170

    4.4. Significando o risco na Vigilncia Sanitria 177

    4.4.1. Propriedades e dimenses do risco sanitrio na Vigilncia Sanitria 183

    4.4.2. Modos de atuar sobre o risco nas aes de Vigilncia Sanitria 195

    4.4.3. Regulando o risco 208

    5.CONSIDERAES FINAIS 215

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 222

    APNDICE 1 232

    APNDICE 2 233

    APNDICE 3 234

    ANEXO 235

  • Apresentao

    Na dcada de 1980, quando eu ainda cursava a graduao em Histria, meu professor

    de Histria Antiga disse uma frase que me marcou profundamente: enquanto estamos aqui

    estudando a histria factual, na Europa h muito se estuda a histria das mentalidades. Era a

    poca em que se divulgava o Nome da Rosa de Humberto Eco, estudioso da semitica, o

    Queijo e os Vermes de Carlo Ginzburg que conta o cotidiano e os pensamentos de um moleiro

    na poca da Inquisio e da famosa coleo Histria da Vida Privada, todas as obras que li e

    que me fascinam. Compreender o qu e como pensavam os homens e o seu cotidiano nos

    diversos contextos e em diferentes perodos histricos ultrapassava o positivismo na Histria.

    J na graduao em enfermagem na dcada de 1990, como bolsista de iniciao

    cientfica do Ncleo de Pesquisa em Quotidiano em Sade (antigo NUPEQS), participei de

    duas pesquisas que tambm invadiram o cotidiano e os pensamentos: uma sobre a sade

    feminina no sculo XVIII, coordenada pela professora Estelina onde, ainda em microfilmes,

    eu lia e relia os livros antigos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que tratavam da sade

    feminina. A outra, a histria oral da Escola Carlos Chagas, com as professoras Geralda e

    Valda, que mostrava os diversos aspectos da criao e consolidao da Escola de

    Enfermagem da UFMG. Transcrevi inmeras fitas cassetes das entrevistas realizadas,

    mergulhando no processo histrico da criao e nos sentidos atribudos ao ensino de

    enfermagem da poca.

    Estas experincias influenciaram em muito a minha escolha no meu campo de atuao.

    Ao escolher a Ateno Primria, decidi exercer o cuidado considerando as mentalidades,

    pensamentos, sentidos e significaes de quem busca a porta de entrada do sistema de sade.

    E justamente, por considerar contextos e pensamentos que desenvolvi, em 2008, a minha

    dissertao de mestrado sobre a insero da sade pblica de Betim na gesto dos riscos de

    acidentes industriais. Compreender porque o municpio no possua plano de emergncia para

    o risco de acidentes industriais, tendo a nica refinaria de petrleo do Estado, me fez estudar o

    risco e me aproximar das maneiras de como as pessoas o percebem. Foi neste estudo que me

    aproximei da Vigilncia Sanitria (VISA), dona de tantos programas para vigiar e tanto

    Vigi que dissemos Virgem Maria!!!, expresses cunhadas em uma das entrevistas da

    pesquisa. Um ano depois eu estaria coordenando a VISA de Betim.

    Num processo de reorganizao de servio e, portanto, de muitos estudos qualquer

    ao de vigilncia que a mim era reportada ou da qual eu participava, eu sempre perguntava:

  • qual o risco? Poucos o definiam e muitos gaguejavam para definir os motivos das aes. Foi

    assim que, num esforo para compreenso do risco, os termos e autos passaram ser

    preenchidos comeando ou encerrando com a frase por representar risco sade da

    populao. Os anos de 2009 e 2010 foram de intensa participao em congressos, seminrios

    e cursos que sempre me faziam reportar compreenso do risco na VISA. As leituras das

    publicaes de Geraldo Lucchese e Edin Costa foram muito importantes. Vrios artigos

    cientficos me mostraram que ainda havia se penetrado pouco nos pensamentos e nas

    mentalidades de quem trabalha na Vigilncia Sanitria, principalmente no que se refere ao

    risco. Foi ento, que numa ousadia que o Chico acolheu, decidi inicialmente, abordar o

    conceito de risco na Vigilncia Sanitria. Assim, fui pesquisar os significados do risco

    escolhendo, num recorte de servios, o municpio, o Estado e a ANVISA.

    Se no mestrado estudei os riscos industriais no contexto do processamento e

    distribuio de derivados de petrleo, da vulnerabilidade da populao e das instituies de

    sade, no doutorado estudo os riscos no contexto da vigilncia sanitria.

  • Poder-se-ia aclarar esta discusso atravs da utilizao da metfora do fotgrafo. Para tirar uma fotografia posso ajustar minha mquina de

    acordo com a distncia do objeto a ser fotografado: a perspectiva (se de

    mais perto ou de mais longe) vai me obrigar a um foco diferente. Assim,

    tanto poderei proceder anlise dos conceitos a partir de um mtodo que

    privilegiar textos comparveis, quanto poderei proceder

    metodologicamente expandindo minha anlise ao conjunto da lngua.

    Entre esses dois procedimentos haveria ainda formas intermedirias. O

    objeto se mantm o mesmo, e o que se altera apenas a perspectiva em

    relao a ele. Reinhart Koselleck, 1992.

  • 16

    Introduo

    Esta tese apresenta um olhar diferenciado sobre o que foi o objeto do meu trabalho

    profissional durante certo perodo: o risco na Vigilncia Sanitria (VISA). A elaborao de

    um trabalho emprico para explorar as interpretaes e significados do risco est relacionada a

    duas situaes.

    A primeira, o meu trabalho de gesto desenvolvido na VISA do municpio de Betim,

    MG, que me permitiu observar a importncia econmica e social das aes de vigilncia

    desenvolvidas, mas, tambm as falhas de desempenho devido aos problemas de estrutura e

    organizao, a sua fragilidade diante de interesses polticos e econmicos, a existncia de

    inmeras e diferentes abordagens na investigao e avaliao das condies de risco e,

    principalmente, a precria base terico-conceitual. A outra est vinculada minha condio

    de enfermeira, trabalhando h dezoito anos na sade pblica, com uma formao com

    referncias histricas e sociais oriundas da graduao em Histria, que se relacionou a

    primeira a partir dos estudos sobre a histria das mentalidades do homem. Estas duas

    situaes me conduziram escolha do objetivo principal desta pesquisa, compreender o

    significado do risco dentro do campo da VISA, e tentarei justificar as razes desta escolha.

    Com a intensa produo, distribuio, circulao e o consumo de bens expandiram-se

    os riscos sade e, consequentemente, a necessidade do controle sanitrio sobre eles. Como

    explica Freitas (2008),

    atravs do desenvolvimento cientfico e tecnolgico e das consequentes

    transformaes na sociedade, na natureza e na prpria caracterstica e dinmica

    das situaes e eventos perigosos, o homem passa a ser responsvel pela

    gerao e remediao de seus prprios males. O conceito de risco tal como

    predominantemente compreendido na atualidade resulta desse processo,

    cabendo ao prprio homem a atribuio de desenvolver, atravs de

    metodologias baseadas na cincia e tecnologia, a capacidade de o interpretar e

    analisar para melhor os controlar e remediar (FREITAS, 2008, p.109).

    Neste contexto, a concepo de Vigilncia Sanitria (VISA) foi ampliada a fim de

    abranger a multiplicidade e complexidade de suas atividades desenvolvendo aes

    normativas, educacionais, informativas, de pesquisa e de fiscalizao, exercendo o controle

    sanitrio sobre produtos, tecnologias e servios de interesse sanitrio (PIOVESAN, 2002).

    A VISA, que integra o Sistema nico de Sade (SUS) por determinao

    constitucional, est legalmente definida como um conjunto de aes capaz de eliminar,

    diminuir ou prevenir riscos sade e de intervir nos problemas sanitrios decorrentes do meio

  • 17

    ambiente, da produo e circulao de bens e da prestao de servios de interesse da sade

    (...) (BRASIL, Lei 8080/90, artigo 6).

    Estas aes so de competncia exclusiva do Estado, que detm o poder de interferir

    nas liberdades dos particulares a fim de intervir nos problemas sanitrios, garantindo os

    interesses da coletividade. esta funo que lhe confere o poder de autoridade, o chamado

    poder de polcia (COSTA, 2008, p.77).

    Compete a Agencia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA), agncia reguladora

    criada em 1999 e definida como uma autarquia especial, o controle sanitrio da produo e da

    comercializao de produtos e servios, incluindo os ambientes, processos, insumos e

    tecnologias a eles relacionados, alm do controle de portos, aeroportos e fronteiras. Cabe a

    ANVISA, ainda, coordenar o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria (SNVS) composto

    pelos nveis federal, estadual e municipal (PIOVESAN, 2002).

    O processo de regulao abrange a aprovao de regras por meio de regulamentos,

    normas e resolues, a implementao destas regulamentaes atravs das autorizaes,

    licenas e registros e, por conseguinte, a fiscalizao de seu cumprimento com a imposio de

    sanes ou penalidades s infraes. Assim, a VISA opera com a regulao do risco sanitrio

    por meio de regulamentao, controle e fiscalizao das relaes de produo e consumo de

    bens e servios relacionados sade (COSTA, 2004).

    Risco uma palavra de vrios significados, com variadas abordagens. Segundo Freitas

    (2008), a palavra risco tem sua origem na palavra italiana riscare (navegar entre os rochedos

    perigosos) e foi incorporada ao vocabulrio francs originando o conceito atual de risco,

    proveniente da teoria das probabilidades, sistema axiomtico oriundo da teoria dos jogos na

    Frana do sculo XVII que

    considera a previsibilidade de determinadas situaes ou eventos por meio do

    conhecimento - ou, pelo menos, possibilidade de conhecimento dos

    parmetros de uma distribuio de probabilidades de acontecimentos futuros

    por meio da computao das expectativas matemticas (FREITAS, 2008,

    p.108).

    Para Marandola Jr. e Hogan (2004), embora a viso objetiva, quantitativa do risco

    como passvel de mensurao ainda seja predominante, diferentes enfoques so utilizados

    para se estudar o risco: percepo do risco, risco e cultura, anlise de risco, fatores de risco,

    comportamento de risco. Diversas cincias utilizam o conceito de risco de diferentes formas o

    que representa um enriquecimento conceitual.

    Enquanto a geografia aborda o risco, que carrega uma carga negativa, em sua

    dimenso ambiental tentando enfocar simultaneamente as questes sociais e naturais, na

  • 18

    demografia o risco um elemento probabilstico estritamente neutro, estando associado s

    probabilidades de ocorrerem certos eventos da dinmica demogrfica (MARANDOLA JR. e

    HOGAN, 2004).

    As cincias econmicas quantificam os riscos para avaliar lucros, custos e perdas, por

    outro lado, a engenharia quantifica o risco para analisar os impactos das tecnologias na

    sociedade, atravs de metodologias quantitativas e de gerenciamento, pressupondo que os

    riscos podem ser conhecidos, quantificados e, portanto, minimizados (GUILAN, 1996;

    FREITAS e GOMEZ, 1997).

    As cincias sociais abordam a perspectiva dos fatores subjetivos, como o indivduo

    percebe as situaes de risco e direciona suas escolhas enquanto a epidemiologia estuda os

    fatores de riscos, a probabilidade de um indivduo de uma determinada populao desenvolver

    uma doena em um perodo de tempo, sendo o risco epidemiolgico um conceito nuclear das

    prticas de sade e das estratgias de promoo e preveno (GUILAN, 1996, CZERESNIA,

    2008).

    A VISA, cujo campo de atuao se insere na sade coletiva, integra um conjunto de

    aes que tm por objeto a preveno de doenas e agravos, a proteo, promoo e

    recuperao da sade da populao, centrando-se predominantemente no controle de riscos

    (COSTA, 2008, p.79). A proteo fundamenta-se no conceito de risco como possibilidade e a

    preveno baseia-se no conceito epidemiolgico de risco como probabilidade (ALMEIDA

    FILHO 2008).

    A interveno da VISA tem o objetivo de prevenir, eliminar ou minimizar os riscos

    sade da populao e suas aes orientam-se pela sua identificao e avaliao e, tambm,

    pela busca de mecanismos que garantam a segurana sanitria e a proteo da sade

    (BRASIL, 2007). Cabe VISA, portanto, avaliar, gerenciar e comunicar os riscos

    relacionados a produtos, servios e tecnologias relacionadas com a sade humana e

    ambiental (COSTA, 2008, p.79).

    O gerenciamento do risco um processo que inclui a seleo e implementao da ao

    regulatria mais apropriada, baseada nos resultados da avaliao de risco que compreende a

    identificao do perigo e suas causas e estimativas dos danos. A anlise de risco compreende

    a avaliao quantitativa das consequncias de decises tomadas (BRILHANTE, 1999).

    O risco e seu gerenciamento tornaram-se um tpico importante na investigao

    cientfica e, principalmente, de polticas pblicas (FISCHHOFF, WATSON E HOPE, 1984).

    O desenvolvimento de metodologias de anlise e avaliao refletiu a tendncia para prever,

    planejar e alertar quanto aos riscos e explicitaram que decises regulamentadoras sobre eles se

  • 19

    fossem tecnicamente mais rigorosas, seriam politicamente menos controversas. O

    gerenciamento de riscos representaria desse modo, uma alternativa aos processos decisrios,

    como meio de formao de consenso (FREITAS e GOMEZ, 1997).

    Como destaca Spink (2010, sp), avaliar riscos depende intrinsecamente da definio

    do que vem a ser risco. Porm, a escolha desta definio pode afetar o resultado de debates

    polticos, alocao de recursos para medidas de segurana e a distribuio de poder poltico na

    sociedade (FISCHHOFF, WATSON E HOPE, 1984).

    Os conceitos de risco tm como elementos em comum a estimativa de probabilidade

    para a ocorrncia de um evento negativo, a magnitude de suas consequncias e a incerteza

    associada ao risco. As estimativas do risco e as probabilidades da ocorrncia de um evento

    danoso so formas objetivas de gerenciamento. Este enfoque nas questes quantitativas se

    intensificou com as analises de riscos e os cientistas sociais comearam a analisar as formas

    como os riscos so compreendidos e percebidos (SJBERG et all, 2004).

    Estudos de percepo de risco so realizados h mais de 25 anos e duas teorias

    distintas dominam este campo de estudo: o paradigma psicomtrico, dentro da psicologia e a

    teoria cultural, desenvolvida por socilogos e antroplogos.

    No modelo psicomtrico, segundo Fischhoff et al. (1978), o risco pode ser

    subjetivamente definido, pois a percepo do risco impulsionada por reaes emocionais e

    os indivduos podem ser influenciados por fatores psicolgicos, sociais, institucionais e

    culturais. Nesse modelo a abordagem da percepo de risco individual.

    Segundo a teoria cultural do risco de Douglas e Wildavsky (1982), o risco percebido

    est ligado adeso cultural e aspectos sociais. A percepo de risco um fenomeno

    construdo socialmente ou culturalmente, portanto, devem-se considerar as variaes na

    percepo entre diferentes culturas ou entre diferentes grupos numa mesma cultura. Para

    Douglas (1982, 1992), diferentes grupos de pessoas dentro de uma mesma cultura podem

    compreender o risco de acordo com os pressupostos simblicos e compartilhados pelos

    grupos sociais. Para Lupton (1999) so importantes as "culturas de risco" que tenham em

    conta os entendimentos locais do risco.

    Nesta temtica, existe uma lacuna precariamente explorada no mbito da VISA no que

    se refere ao entendimento do risco sanitrio. Na reviso bibliogrfica constatei a existncia de

    ncleos de estudos sobre a VISA envolvendo diversas universidades e o estmulo produo

    acadmica. Entretanto, verifiquei que a maioria dos estudos sobre riscos esto dirigidos a

    reas de atuao especficas da VISA como servio de sade, alimentos e produo de

    medicamentos. A literatura pertinente ainda escassa, sobretudo quando se leva em conta a

  • 20

    magnitude deste objeto para a VISA. E os significados do risco, atribudos por seus

    profissionais, no foram estudados.

    Ao se trabalhar com os significados e toda a riqueza que incorporam, abarcam-se os

    processos socioculturais, referindo-se no apenas ao contexto histrico, mas tambm ao

    ambiente o que representa, portanto, um espao e tempo prprios.

    O risco um conceito-chave para o desenvolvimento das aes e especialmente

    importante para as especificidades da VISA, tornando necessria a identificao dos

    elementos integrantes da construo desse risco, bem como o escopo e o alcance das decises

    tomadas para o seu gerenciamento. Desse modo, fundamental o avano e aprofundamento

    do debate em torno do risco como objeto da VISA e sua articulao no campo de prticas da

    sade.

    Como alerta Piovesan (2002)

    No somente o controle dos riscos existentes no mbito sanitrio delegado

    ao sistema perito da Vigilncia Sanitria, mas tambm os aspectos da

    incerteza e da ignorncia referentes a produtos, processos e prticas. Ao

    delegar Vigilncia o controle tanto das consequncias provveis (risco),

    das consequncias ainda no conhecidas (incerteza), como a falta total de

    conscincia do desconhecimento acerca delas (ignorncia), a dimenso de

    sua responsabilidade sobre a qualidade de vida das pessoas

    incomensurvel (PIOVESAN, 2002, p.24).

    Como as aes da VISA so norteadas pela existncia do risco, o conhecimento

    sobre este objeto se torna essencial (BRASIL, 2007a, p.35).

    O conceito de risco tem sido objeto de muitas reflexes, pois, mais uma

    vez, sua transposio para a Vigilncia Sanitria no pode se dar de forma

    direta e linear. O termo risco no deve ser tomado apenas na sua concepo

    estatstica no sentido de probabilidade de ocorrncia de eventos danosos.

    Muitas vezes o risco se coloca como possibilidade, sem que haja, de fato,

    dados quantitativos, mas sim indcios, baseados na racionalidade e nos

    conhecimentos cientficos disponveis [...] (BRASIL, 2007b, p.34).

    Nesse sentido, existe a demanda de um conhecimento, alm dos princpios e regras

    fixadas no ordenamento jurdico, do entendimento sobre este objeto. A VISA trabalha com

    uma diversidade de riscos, no apenas com fatores de risco e, portanto, com diferentes

    disciplinas e seus modelos. Como ressaltam Costa et al (2009), o conceito de risco

    epidemiolgico, como probabilidade de ocorrncia,

    fundamental, mas insuficiente para a rea de vigilncia sanitria que tambm

    lida com o risco como possibilidade de ocorrncia de eventos que podero

    provocar danos sade, sem que se possa muitas vezes precisar qual o evento, e

    at mesmo se algum ocorrer (COSTA et al., 2009, p.14).

  • 21

    O termo risco sanitrio pode ser classificado ao que Sabroza (2001) se refere como

    conceitos tidos como imprecisos:

    Ao contrrio de conceitos bem estabelecidos, demarcados pelos limites que

    explicitam as suas condies, os conceitos imprecisos so definidos a partir de

    questes centrais ou atratores, e de suas interaes com outros conceitos com os

    quais se relacionam, sempre a partir de perspectivas definidas em determinado

    perodo histrico (SABROZA, 2001, p. 4).

    Desta forma, me pareceu relevante compreender o significado do risco, como os

    profissionais orientam suas aes e como desenvolvem as estratgias de interveno para o

    seu controle. Algumas questes, ento, surgiram:

    Quais os significados so atribudos ao risco pelos profissionais que realizam

    as aes locais de vigilncia sanitria e por aqueles coordenam e propem as

    aes regulatrias?

    Quais so as propriedades e dimenses atribudas a este objeto?

    Os significados atribudos ao risco variam dimensionalmente (quando, onde e

    como)? Sob quais condies?

    Com base em quais informaes e experincias os profissionais definem o

    risco?

    Como construdo o conhecimento sobre o risco e quais os modos de atuao

    nas prticas cotidianas?

    Autores como Beck (1998) e Fischhoff, Watson e Hope (1984) afirmam que a

    definio do que ou no risco se converteu em um posicionamento scio-poltico, que

    expressa valores e pontos de vista em relao importncia das consequncias adversas de

    uma deciso sobre o risco e o que um risco aceitvel. Para Fischhoff, Watson e Hope (1984)

    o primeiro passo para se definir um risco determinar quais as consequncias que lhe esto

    subjacentes.

    Habermas (1973, p.212) nos mostra que o pano da realidade pode ser descerrado pela

    anlise emprica sob o ponto de vista da disponibilidade tcnica possvel sobre processos

    objetivados da natureza, enquanto a hermenutica assegura a intersubjetividade de uma

    compreenso entre indivduos, capaz de orientar a ao.

    Assim, considerando a atuao do profissional como um componente poltico

    importante para o reconhecimento da funo protetora da VISA, pareceu-me fundamental

    entender os aspectos intersubjetivos de se trabalhar com o risco, seus sentidos, significados e

    interpretaes, o modo como se estruturam as aes de controle e a apropriao da

  • 22

    informao e do conhecimento. Para isto, escolhi o Interacionismo Simblico como

    referencial terico e a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) como mtodo.

    O conceito central do Interacionismo Simblico o significado das aes individuais e

    coletivas, com base na interao, que d sentido ao objeto, permitindo a compreenso do

    modo como as pessoas interpretam os objetos e as outras pessoas com as quais interagem e

    como tal interpretao conduz o comportamento individual em situaes especficas

    (BLUMER, 1969).

    A TFD conduz a transformao dos dados em estruturas tericas explicativas, trazendo

    a tona o entendimento conceitual do objeto a partir de categorias que organizam e interpretam

    os eventos, explicam propriedades e as condies sobre as quais as aes emergem e variam

    nos fenmenos que so evidenciados. Todos os seus procedimentos buscam identificar,

    desenvolver e relacionar teorias e conceitos que explicam uma ao no contexto social. Seu

    objetivo compreender uma determinada situao, como e porque seus participantes agem de

    determinada maneira, como e porque determinado fenmeno se desdobra (STRAUSS e

    CORBIN, 2008).

    Os cenrios selecionados foram a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria

    (ANVISA), que alm da funo regulatria, coordena o Sistema Nacional de Vigilncia

    Sanitria, a Superintendncia de Vigilncia Sanitria do Estado de Minas Gerais escolhida por

    desenvolver um projeto de fortalecimento de aes em VISA e por ser membro do Grupo de

    Trabalho (GTVISA) da ANVISA; a Diretoria de Vigilncia Sanitria do municpio de

    Contagem/MG que possui um parque industrial, uma extensa rede de servios pblicos e

    privados de interesse sade, incluindo um entreposto de alimentos das Centrais de

    Abastecimento de Minas Gerais.

    Nestes locais entrevistei fiscais, diretores, gerentes, coordenadores e assessores;

    mdicos, farmacuticos, dentistas, qumico, bioqumico, advogado, administrador, engenheiro

    sanitarista e outros de nvel mdio que compuseram trs grupos de entrevistados.

    Analisei as interpretaes e sentidos atribudos ao risco em cada cenrio para

    apreender os significados dos distintos grupos em estudo. Organizei as anlises, realizei as

    comparaes e o refinamento a fim de relacionar os vrios significados do risco, como os

    profissionais entrevistados atuam, situam e o diferenciam, para verificar se esses significados

    so partilhados pelos grupos. Constitu, assim, uma estrutura terica que contm os

    significados do risco como categoria central e os modos de atuar, as propriedades e dimenses

    do risco sanitrio e a regulao do risco como categorias relacionadas.

  • 23

    As diferentes falas articulam as referncias de como cada informante interpreta e

    significa o risco associado ao seu contexto e a implicao destes sentidos em suas aes. A

    compreenso dos significados do risco no se restringiu sua expresso. Abordei os

    contextos, as condies, aes e consequncias para compreender como os profissionais do

    sentido, interpretam o risco e assumem suas significaes nos locais em que atuam.

    Considerei os modos de atuar baseados nesses significados, um agir que tem um

    movimento em direo ao risco e que se distingue em enfoques que se destacaram e que

    envolvem decises e escolhas sobre o que risco, como identificado, avaliado e as

    intervenes de controle, sempre em um contexto carregado de regras e valores.

    Os enfoques discutidos no esgotam, no entanto, os modos de atuar. So formas de

    ao, dos grupos pesquisados, mediante os quais certos meios so utilizados para alterar os

    comportamentos sociais, construir e alterar capacidades e regras de produo. A ao ,

    tambm, o instrumento do profissional para modificar uma situao e produzir condies de

    segurana sanitria.

    Desse modo, o objeto que caracteriza este estudo o risco sanitrio, sob a abordagem

    da Vigilncia Sanitria. A singularidade desta pesquisa est em abordar o risco na VISA,

    denotando a riqueza na sua significao e buscando compreender como ele problematizado,

    as suas conotaes e sentidos, suas implicaes socioculturais e polticas, as intervenes e

    aes de controle.

    Relacionando pensamento e ao, ao privilegiar a compreenso dos significados

    busquei a dimenso vivida do trabalho com o risco: as interpretaes, o simblico, as regras,

    os modos de atuar, os processos interativos que se desenrolam nas aes de alguns servios da

    VISA para o controle do risco.

    A tese que defendo neste estudo, com base no referencial terico escolhido, que o

    profissional realiza sua ao com base nos significados que o risco tem para ele e que

    emergem da interao que ele estabelece com o seu servio, o setor regulado, com os outros

    integrantes do SNVS, com a populao e, consigo mesmo. Estes significados so manipulados

    ou modificados atravs do processo interpretativo e conforme a dinmica do contexto da ao.

    na prpria experincia e no exerccio cotidiano da relao dos profissionais e sua rea de

    atuao que a vigilncia se desenvolve. atravs do conhecimento destes significados que

    podemos restituir os valores e os sentidos das aes nos locais de trabalho.

    Minha argumentao se desenvolve nas pginas que conformam este estudo e est

    aqui apresentada da seguinte forma. No captulo 2, apresento algumas bases tericas sobre o

    risco e a VISA, considerando ser necessria a compreenso do objeto risco na perspectiva de

  • 24

    um contexto, a VISA. Dentre as inmeras abordagens do risco, escolhi algumas por serem

    mais adequadas realidade da VISA dadas s suas especificidades. Assim, na reviso da

    literatura busquei explorar o risco atravs dos estudos de autores mais expressivos, abordando

    os aspectos histricos, sociais e, tambm, a perspectiva da sade, pois atravs desta reviso

    que vou confrontando e comparando os sentidos atribudos ao risco. Em seguida, apresento o

    contexto onde o objeto de estudo est inserido, a VISA, sua definio e suas caractersticas.

    No captulo 3 apresento a metodologia do estudo: o Interacionismo Simblico como

    referencial terico e a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) como estratgia de pesquisa.

    Descrevo os cenrios do estudo e explico cada processo, da escolha dos participantes do

    estudo coleta e anlise dos dados.

    No capitulo 4, esto os resultados e discusso da pesquisa, onde introduzo os

    significados do risco oriundos de cada grupo pesquisado e dialogo com alguns autores para,

    por fim, teorizar fundamentada nos dados, apresentando as categorias estruturadas em termos

    tericos e simblicos que compem o fenmeno significando o risco nas aes de vigilncia

    sanitria.

    Demonstro que os significados expressos do risco so permeados pela cultura

    (crenas, normas, valores) e pelas formas de pensar socialmente produzidas, que marcam

    identidades e particularidades dos grupos entrevistados. Reflete, de um lado, a diversificao

    dos sentidos do risco em diferentes aes, a delimitao do objeto, os modos de atuar, as

    razes e formas de controle.

    O risco passa pela descrio tcnica, objetiva, no sentido cientifico e remete tanto aos

    aspectos formais relativos s questes administrativas, polticas e jurdicas quanto aos

    aspectos subjetivos, ligados s representaes e sistemas de valores, ultrapassando seu sentido

    meramente quantitativo. Estes significados apresentam duas categorias indissociveis e

    interdependentes: o dano e o perigo.

    Para atuar, o profissional utiliza um conjunto de referncias tcnicas, empricas,

    instrumentais e culturais que lhe permite interpretar os componentes de uma situao, que se

    constitui a partir de reas especficas. So considerados os meios, ou seja, as possibilidades de

    aes e as condies situacionais incluindo os aspectos restritivos, como influncia poltica e

    impactos sociais.

    Utilizando a legislao, o conhecimento e a experincia, o profissional identifica e

    avalia o risco. , portanto, um processo objetivado racionalmente que utiliza, como

    componentes estruturais, o conhecimento tcnico e interpretaes crticas, mas envolve

  • 25

    decises subjetivas baseadas na experincia, na percepo do risco e nas interpretaes

    atribudas a cada componente.

    Os locais onde se realizam as aes se constituem tambm uma arena poltica.

    Selecionar analiticamente as intervenes mais convenientes para os problemas observados

    envolve decises estratgicas sobre como enfrent-los. Um modo particular de dispor dos

    recursos para as intervenes inclui os recursos polticos que se manifestam nas aes nas

    quais se buscam estabelecer alianas ou em que ocorrem confrontos, por interao ou

    oposio, e que expressam as relaes e mecanismos de poder, lanando mo da legislao e

    da autoridade.

    A interveno a representao da existncia do risco e da ao protetora, que reflete,

    expressa e concretiza as respostas aos riscos identificados em cada circunstncia e contexto,

    se constituindo em um sistema organizado composto de um conjunto de normas e condutas

    que definem o controle do risco, de articulaes para intervir e da prescrio da interveno.

    Assim sendo, como as concepes envolvem os significados, as propriedades e

    dimenses atribudas ao risco e ao estabelecer a relao entre estrutura (por que), processo

    (como), aes, interaes e condies contextuais, uma perspectiva nova do risco se apresenta

    nesta tese, permitindo-me teorizar.

    Portanto, o objetivo desta pesquisa desenvolver uma teoria sobre o risco sanitrio a

    partir das interpretaes e concepes dos profissionais dos servios de vigilncia sanitria

    municipal, estadual e ANVISA.

  • 26

    2.Bases tericas

    Na metodologia escolhida para a realizao deste estudo, a TFD, os textos publicados

    na literatura so considerados com o objetivo comparativo. A literatura importante para

    sustentar tanto a formulao do problema de pesquisa quanto o encaminhamento do trabalho

    de campo e o processo de anlise.

    Considerando que as aes da VISA se inserem na sade coletiva e so norteadas para

    o controle do risco, o conhecimento acerca deste objeto se torna essencial, pois a efetivao

    deste conhecimento realiza-se a partir da sua estruturao e organizao dentro de um

    determinado contexto.

    2.1. Risco e sade: uma breve reviso

    Por sua prpria semntica, o entendimento conceitual de risco algo que est aberto a

    uma infinidade de possibilidades de interpretaes. A variabilidade no uso da palavra risco

    perceptvel atravs do tempo, da sociedade e regio. A histria mostra que o risco no

    apenas descrito como um fenmeno em si mesmo, mas tambm usado como um quadro no

    qual outros eventos e problemas podem ser descritos e analisados (ALTHAUS, 2005).

    Risco visto como a probabilidade que um indivduo tem de experimentar o efeito de

    um perigo. Parece haver um consenso sobre a essncia do risco como sendo composta da

    probabilidade de um evento adverso e a magnitude de suas consequncias. Entretanto, para

    alguns autores esta definio pode ser adequada para definir o risco na engenharia e cincias

    de clculos, mas inadequada na gesto de risco social (SJBERG et all, 2004).

    Como o risco est freqentemente associado ao perigo, Serpa (2000, p.259) faz a

    distino esclarecendo que o perigo representa uma situao que ameaa a existncia de uma

    pessoa,ser ou coisa. Assim, o perigo uma propriedade intrnseca de uma atividade,

    instalao ou substncia; j o risco est sempre associado chance de acontecer um evento

    indesejado.

    A Organizao Mundial de Sade (OMS, 2002, p.11) distingue uma ameaa sade

    de um risco sade. Uma ameaa pode ser um objeto ou um conjunto de situaes que

    podem potencialmente trazer dano sade de uma pessoa. Um risco uma probabilidade de

    que uma pessoa sofrer um dano devido a uma ameaa em particular.

  • 27

    Desde antiguidade filsofos, fsicos e matemticos buscam compreender a

    probabilidade, o clculo de probabilidades com a possibilidade de dar um sentido matemtico

    preciso do conceito e como esse clculo pode ser aplicado na previso de eventos, sendo

    estabelecidas diferentes correntes de pensamento sobre seu conceito.

    Na literatura especializada estas diferentes correntes (frequentismo, subjetivismo e

    lgica) so distinguidas por seu carter objetivista, onde a probabilidade de um evento

    expressa o grau de possibilidade de sua ocorrncia ou epistmico que expressa um

    julgamento individual de valor sobre a possibilidade de o evento ocorrer (BORGES, 2011).

    O frequentismo compreende a probabilidade como a intensidade de ocorrncia; o

    subjetivismo como um grau individual de convencimento em uma ocorrncia e o logicismo

    entende a probabilidade como noo lgica relacional (BORGES, 2011).

    A frequncia relativa uma interpretao do modelo abstrato que, em si, um sistema

    de relaes entre nmeros, que so chamados probabilidades, e regras para realizar clculos

    com estes nmeros. A interpretao da probabilidade como frequncia se associa descrio

    de certos jogos de azar onde as jogadas so repetidas (girar uma roleta, lanar dados) vrias

    vezes e, desta forma, os elementos de interesses so igualmente provveis. Assim, um

    bioestatstico pode observar milhares de pessoas com certa doena, registrando para cada

    pessoa os medicamentos utilizados e se ela curada ou no da doena.

    Assim como no uso cotidiano, o conceito de probabilidade no usado como

    frequncia relativa, pois no se diz tenho uma chance em dez de realizar uma boa prova,

    no se pode representar, variadas vezes, situaes exatamente idnticas, pois nem sempre

    possvel observar ensaios repetidos de situao de incerteza (BORGES, 2011, sp).

    Portanto, existem muitos eventos que no tem um sentido de probabilidade em termos

    de uma interpretao frequentista. A interpretao subjetivista, em que a probabilidade de um

    evento expressa um julgamento individual de valor, permite que uma pessoa considere

    situaes individuais em vez de sries de repeties ou de regularidade estatstica, sendo

    uma interpretao conceitual e operacional. Indivduos diferentes podem atribuir valores

    distintos probabilidade de um evento, mesmo diante de um corpo de evidncia comum.

    A interpretao lgica descrita como uma medida do grau de crena racional de um

    indivduo na ocorrncia de um evento, em face de evidncias. Admite uma variante no

    objetiva quando se vincula o grau de crena desse indivduo diretamente sua disposio de

    agir em algum sentido especfico (BORGES, 2011).

    Em contextos no tcnicos, a palavra risco refere-se a situaes em que possvel,

    mas no com a certeza, de que algum evento indesejvel ir ocorrer. Apesar do uso

  • 28

    indiscriminado do termo, em contextos tcnicos, diferentes reas do conhecimento tm

    discutido o conceito de risco apresentando diferentes significados, usos mais especializados e

    com sentidos qualitativos e quantitativos. Porm, todos os conceitos de risco tm um elemento

    em comum, uma distino entre realidade e possibilidade, aquilo que possvel acontecer

    pode ou no transformar-se em realidade (RENN, 1992).

    Segundo Hansson (2012), a palavra risco apresenta cinco significados particularmente

    importantes que so amplamente utilizados em todas as disciplinas. O primeiro deles se refere

    ao risco como um evento no desejado que pode ou no ocorrer, como por exemplo, o cncer

    de pulmo como um dos riscos que afetam os fumantes.

    O segundo se refere ao risco como a causa de um evento no desejado que tambm

    pode ou no ocorrer. Neste caso, fumar o risco para a sade mais importante nos pases

    industrializados e o evento indesejado implicitamente referido aqui uma doena causada

    pelo tabagismo. O terceiro se refere ao risco como a probabilidade de um evento no

    desejado ocorrer ou no. Este uso pode ser exemplificado com a afirmao "o risco de que a

    vida de um fumante encurtada por uma doena relacionada ao tabagismo de cerca de

    50%."

    O quarto significado est associado estatstica, ao risco como um valor esperado para

    um evento no desejado ocorrer ou no. O valor esperado de um evento negativo referido

    pela probabilidade e pela gravidade. Um exemplo o nmero de bitos esperado de um

    acidente potencial. Neste sentido, o risco associado a um acidente potencial igual ao nmero

    esperado de bitos. O quinto e ltimo se refere ao risco associado tomada de decises, o fato

    de que uma deciso tomada sob condies de probabilidades conhecidas, uma deciso sob o

    risco.

    Flynn et al.(2006) apresentam trs tipos de significados para o risco. O tipo um

    associado avaliao de risco. Um risco avaliado como o efeito de um perigo, multiplicado

    pela probabilidade de sua ocorrncia. Existindo uma margem de incerteza para um risco

    avaliado, essa margem estatstica e reflete o tamanho da amostra e a varincia nas duas

    variveis principais. A avaliao baseada em evidncias e h uma expectativa racional, pois,

    a exposio a perigos nunca uma probabilidade zero.

    O tipo dois est associado com a tomada de decises, quando as consequncias se

    encontram no futuro e pode vir a ser diferente do que o esperado. A incerteza no est no

    conhecimento estatstico atual e , portanto, desconhecida sendo necessria a gesto de riscos

    e planos de contingncia para lidar com o inesperado que pode sempre acontecer.

  • 29

    O tipo trs corresponde ao que as pessoas consideram ser ameaas asseguradas.

    Muitos governos hoje alegam que o "terrorismo global" uma ameaa assegurada, isto ,

    independentemente da probabilidade de um ato perigoso de terrorismo e da existncia de

    planos de contingncia para lidar com o inesperado, o terrorismo, inevitavelmente poder

    ocorrer em algum momento e em algum lugar que pode ser desconhecido.

    Em um artigo publicado em 1984, Fischhoff, Watson e Hope apontaram que o risco e

    seu gerenciamento tornou-se um tpico importante na investigao cientfica, industrial e de

    polticas pblicas, porm, a escolha da sua definio poderia afetar o resultado de debates

    polticos, alocao de recursos para medidas de segurana e a distribuio de poder poltico na

    sociedade. Para estes autores, a escolha da definio do risco seria poltica, expressando

    pontos de vista de algum sobre a importncia dos diferentes efeitos adversos em uma

    situao particular.

    A gesto de risco, tradicionalmente, se baseia em clculos de danos fsicos que

    refletem a probabilidade e magnitude das conseqncias de um evento para a sade humana.

    Entretanto os pesquisadores comearam a analisar as formas como o pblico entende

    intuitivamente os riscos e faz julgamentos sobre os perigos oriundos de diferentes tecnologias.

    Desta forma, os riscos podem ser objetivos ao se referirem ao produto da pesquisa

    cientfica, principalmente de estudos estatsticos, experimentais, epidemiolgicos e anlise

    probabilstica. Os riscos subjetivos referem-se a percepo publica, no-especialista, e sofre

    influencia de um grande nmero de determinantes individuais de percepo de risco

    (FISCHHOFF, WATSON e HOPE,1984).

    O especialista visto como responsavel pelas avaliaes, caracterizando-se como

    objetivo, analtico, sbio, racional, com anlises baseadas sobre os riscos reais. Em contraste,

    o pblico visto a partir de suas percepes, que so subjetivas, muitas vezes, hipottica,

    emocional, insensata e irracional (SLOVIC, 2010).

    Uma importante concluso dos estudos de percepo que especialistas e leigos

    muitas vezes discordam sobre o significado de risco: a qualidade de um perigo pode importar

    tanto quanto a quantidade de risco enfrentado pelo pblico. A percepo de leigos sensvel a

    caractersticas tais como a voluntariedade da exposio, o potencial para catstrofe e a

    novidade de uma tecnologia (SLOVIC, 2010).

    Os resultados dos estudos de percepo tambm demonstram que algumas fontes de

    risco podem criar impactos econmicos que so muito maiores do que seria previsto na

    estimativa direta do dano. Os impactos negativos das tecnologias podem ser amplificados

    superando qualquer clculo de seus danos, podendo, em alguns casos, tornarem-se

  • 30

    estigmatizados. Os riscos estigmatizados so evitados ou excludos pelo pblico, criando

    custos econmicos e sociais muito maiores que o esperado em estudos tcnicos de riscos

    (GREGORY, SLOVIC e FLYNN, 1996).

    Para Gregory, Slovic e Flynn (1996) o risco estigmatizado vai alm das concepes de

    perigo. O estigma se refere a algo que deve ser evitado ou excludo no apenas porque

    perigoso, mas porque subverte ou destri uma condio positiva, sinalizando que o que foi ou

    deveria ser algo bom e aceitvel agora marcado como danoso. A estigmatizao um

    poderoso componente de oposio pblica proposta de novas tecnologias, produtos e

    instalaes, representando um fator cada vez mais significativo que influencia o

    desenvolvimento de aes especficas de proteo sade.

    A estigmatizao comeou a aparecer com freqncia no contexto de respostas

    negativas do pblico a uma variedade de produtos agrcolas, farmacuticos e novas

    tecnologias sendo resultado da preocupao crescente do mundo moderno com os riscos que

    envolvem o homem, o ambiente e a sade.

    Gregory, Slovic e Flynn (1996) discutem cinco caractersticas para a estigmatizao de

    lugares, produtos e tecnologias. Primeira, a fonte do estigma um perigo com caractersticas

    identificadas pela percepo pblica como de alto risco. Segunda, um padro do que certo e

    natural violado ou anulado, ou uma ao e precipitao so altamente anormais (por

    exemplo, petrleo nas praias), ou as conseqncias de um evento so muito graves (como

    pessoas inocentes feridas ou mortas). Terceira, os impactos so percebidos como

    desigualmente distribudos entre os grupos (por exemplo, crianas e grvidas), reas

    geogrficas (custos de armazenamento de resduos perigosos para toda uma regio), ou o

    tempo (bem-estar de futuros moradores ou de geraes futuras). Quarta, os resultados

    possveis so ilimitados, pois, h incerteza cientfica sobre o risco potencial sade e ao

    ambiente. Quinta, a gesto do risco envolve preocupaes sobre a competncia, os conflitos

    de interesse ou falta de aplicao adequada de valores e precaues.

    A ocorrncia do estigma a expresso social do medo e preocupao com o processo

    de gesto risco. um sinal que a gesto de riscos falhou resultando em uma oposio ao

    produto ou tecnologia. Lidar com a estigmatizao, portanto, requer uma ateno efetiva para

    os processos sociais e as informaes que do origem s percepes pblica do risco, com o

    fundamento da confiana nos gestores e seu potencial de melhorar a sade pblica e

    segurana.

    Para Slovic (2010) as tentativas de gerir o risco enfrentam a questo: "o que risco?"

    A concepo dominante do risco como a chance de leso, dano ou perda e as probabilidades

  • 31

    e conseqncias de eventos adversos serem produzidos por processos fsicos e naturais que

    podem ser objetivamente quantificadas pela avaliao de risco. Entretanto, a anlise das

    cincias sociais rejeita essa noo, argumentando que o risco inerentemente subjetivo. Os

    seres humanos inventaram o conceito risco para ajud-los a compreender e lidar com os

    perigos e as incertezas da vida. Embora estes perigos sejam reais, no h tal coisa como "risco

    real"ou" risco objetivo.

    Cientistas sociais e psiclogos tm realizado estudos de percepo de risco h mais de

    25 anos. Atualmente, duas teorias distintas dominam este campo de estudo: o paradigma

    psicomtrico, dentro da psicologia e a teoria cultural, desenvolvida por socilogos e

    antroplogos.

    Slovic, Fischoff e Lichtenstein (1978) foram os principais responsveis pelo

    paradigma psicomtrico e pela introduo de estudos da percepo de risco. A pesquisa sobre

    percepo de risco foi estimulada por um artigo seminal de Fischoff et all, em 1978, que

    estabeleceu uma abordagem paradigmtica para o tema, o chamado modelo psicomtrico.

    Neste modelo, o risco pode ser subjetivamente definido. A percepo do risco impulsionada

    por reaes emocionais e os indivduos podem ser influenciados por fatores psicolgicos,

    sociais, institucionais e culturais. Risco parece significar coisas diferentes para pessoas

    diferentes. Pelo paradigma psicomtrico, com o design adequado de pesquisa, esses fatores

    podem ser identificados e as semelhanas e diferenas nas percepes de risco e atitudes

    podem ser quantificadas.

    Segundo a teoria cultural do risco, Douglas e Wildavsky (1982) enfatizam que o

    motivo que levam as pessoas e as organizaes a selecionarem determinados riscos est no

    fato do risco ser carregado de significados e fortemente influenciado por valores e crenas

    sociais, ou seja, o risco culturalmente construdo. O risco percebido est ligado adeso

    cultural e aspectos sociais. A percepo de risco no regida por traos de personalidade,

    necessidades, preferncias ou propriedades dos objetos de risco. um fenomeno construdo

    socialmente ou culturalmente. Aes e entendimentos sobre os riscos so apreendidas e o

    modo de vida que determina o que ser selecionado para se preocupar. A teoria cultural

    considera as variaes na percepo de riscos entre diferentes culturas ou entre diferentes

    grupos numa mesma cultura, devido a preferncias por diferentes modos de vida.

    Desta forma, para propor um debate til e significativo sobre o risco sanitrio como

    objeto da vigilncia sanitria importante compreender os aspectos histricos e sociais do

    risco e examinar as abordagens do termo risco na sade.

  • 32

    2.1.1. Risco - perspectiva histrica e social

    O termo risco tem ocupado posio central em debates pblicos e acadmicos,

    principalmente, nos contextos das cincias sociais e dos estudos sobre sade.

    Spink (2001), com o objetivo de entender os repertrios sobre risco nos contextos

    histricos de uso, realizou uma extensa pesquisa bibliogrfica sobre a emergncia, circulao

    e uso da linguagem do risco em diferentes domnios do saber.

    Segundo a autora, a humanidade sempre enfrentou perigos decorrentes de riscos

    involuntrios como catstrofes naturais ou aqueles associados s guerras e vida cotidiana ou,

    de riscos voluntrios associados ao estilo de vida. Entretanto, esses eventos no eram

    denominados riscos sendo referidos como perigos, fatalidades, hazards porque a palavra risco

    no estava disponvel nos lxicos das lnguas indo-europias. Somente nos sculos XVI e

    XVII que a palavra risco emergiu nos lxicos das lnguas latinas e anglo-saxnicas

    respectivamente, com o significado moderno de representar a possibilidade de ocorrncia de

    eventos vindouros, em um momento histrico onde o futuro passava a ser pensado como

    passvel de controle (SPINK, 2001, p. 1279).

    Segundo Freitas (2002), a palavra risco tem sua origem na palavra italiana riscare

    (navegar entre os rochedos perigosos) e o seu conceito atual, advindo da teoria das

    probabilidades, pressupe a possibilidade de prever determinadas situaes ou eventos por

    meio do conhecimento dos parmetros de uma distribuio de probabilidades de

    acontecimentos futuros por meio da computao das expectativas matemticas (FREITAS,

    2002, p.229).

    Esta associao inicial do conceito de risco ao possvel e ao provvel favoreceu a

    introduo de outros significados. A partir do sculo XVII termos como sorte, chance e

    fortuna, que traziam subjacente o sentido de incerteza em seus resultados foram incorporados

    ao vocabulrio do risco.

    A noo matemtica de risco, de acordo com os estudos realizados por Bernstein

    (1997), relativamente recente na histria da humanidade. Este conceito foi introduzido por

    Blaise Pascal em 1654, a partir de suas correspondncias com o grande matemtico Pierre de

    Fermat, que tinham por objetivo responder a uma questo colocada por Paccioli, cerca de

    duzentos anos antes, sobre como se distribuiriam as fichas de um jogo interrompido entre

    duas pessoas. Esta discusso foi proposta a Pascal pelo Cavaleiro de Mre, um nobre que

    gostava de jogar e apostar, mas queria ter mais certeza sobre as suas possibilidades de ganhar

    e perder.

  • 33

    Bernstein (1997) alinha os conceitos de possibilidade e probabilidade com risco e

    argumenta que o risco foi introduzido ao longo do tempo como um meio de transformar o

    destino. Assim a noo de destino, que atribuiu a existncia e a incerteza ao controle divino,

    foi substitudo com a crena na capacidade da humanidade para dominar a incerteza com o

    uso de probabilidade (ALTHAUS, 2005).

    Segundo Douglas (1993), esta noo de risco que emergiu no sculo XVII com o

    desenvolvimento da matemtica dos jogos de azar associou o risco chance. O risco

    significava a probabilidade de ocorrer um evento combinando a magnitude da perda ou do

    ganho. Desse modo, desde o sculo XVII, a anlise da probabilidade a base do

    conhecimento cientfico, transformando a natureza da evidncia, do conhecimento, da

    autoridade e da lgica. Para Douglas (1993), a teoria da probabilidade possibilitou uma

    moderna forma de pensar.

    No sculo XVIII, a anlise de risco tinha uso importante para a segurana na marinha.

    As chances de um navio voltar seguro para casa e fazer fortuna para seu dono eram postas

    contra as chances de se perder no mar. Assim, a ideia do risco era neutra, pois, era relacionada

    probabilidade de perdas e ganhos (DOUGLAS, 1993).

    Se no sculo XIX o risco tornou-se importante para a economia, no sculo XX

    passamos a viver na sociedade do risco (Beck, 1998). O conceito de sociedade do risco foi

    introduzido por Beck em 1986, no seu livro (traduzido para o ingls em 1992 e para o

    espanhol em 1998) intitulado La Sociedade Del Riesgo: hacia uma nueva modernidad, onde

    desenvolveu sua teoria a partir das reflexes sobre os riscos globais.

    Beck (1998) aponta uma transformao dos riscos que, atualmente, tem sua origem na

    produo industrial e sua diferena est na globalizao das ameaas. Os riscos na sociedade

    do risco so globais e no individuais.

    No sentido de uma teoria social e de um diagnstico de cultura, o conceito de

    sociedade de risco designa um estgio da modernidade em que comeam a

    tomar corpo as ameaas produzidas at ento no caminho da sociedade

    industrial (BECK, 1998, p.17).

    O termo risco, para Beck (1998), aplica-se a um mundo governado pelas leis da

    probabilidade, onde tudo mensurvel e calculvel. Por outro lado, tambm usado como

    referncia para as incertezas no quantificveis, ou seja, os riscos no mensurveis, todos

    decorrentes da modernidade e suas consequncias no afetam apenas a sade humana, mas

    tm efeitos polticos, sociais e econmicos secundrios.

    Assim sendo, a sociedade de risco significa que vivemos em um mundo fora do

    controle. No h nada certo alm da incerteza. As incertezas decorrem da expanso das

  • 34

    inovaes tecnolgicas, essas novas tecnologias incertas de risco, so ainda desconhecidas.

    Por isso, a sociedade de risco possui o sentido de incertezas fabricadas. Na velocidade de seu

    desenvolvimento tecnolgico, o mundo moderno aumenta a diferena global entre a

    linguagem de riscos quantificveis, no qual pensamos e agimos, e o mundo de insegurana

    quantificvel que igualmente criamos (BECK, 2006, p.5).

    Para Beck (1998), a sociedade moderna teve grandes avanos tecnolgicos, porm, a

    produo social da riqueza foi acompanhada por uma produo social do risco incapaz de ser

    gerido e que escapa proteo.

    Beck (1998) utilizou uma periodizao da modernidade fazendo uma distino entre a

    modernidade clssica e a modernidade reflexiva. A caracterstica da modernidade , portanto,

    a ruptura com a 'tradio', consagrada na pr-modernidade.

    A sociedade industrial ou modernidade clssica, na acepo de Beck, dissolveu a

    estrutura feudal. Hoje, porm, a modernidade reflexiva ou a sociedade do risco comea

    dissolver as estruturas da sociedade industrial. Na sociedade do risco, o conceito de risco est

    diretamente relacionado ao conceito de modernidade reflexiva.

    Se a sociedade industrial teve como caracterstica os conflitos na produo e

    distribuio de bens, na sociedade de risco, o conflito encontra-se na produo e distribuio

    dos riscos. Se para a sociedade industrial a questo era como proporcionar igualdade de

    condies de vida para todos, para a sociedade do risco a questo fundamental a segurana.

    Na sociedade de classes, a fora motriz era fome; na sociedade do risco, a fora motriz

    o medo e a sociedade do medo substitui a sociedade da fome. Na modernidade clssica, os

    riscos eram riscos pessoais compreendidos como fixos e restritos a determinados contextos.

    Na modernidade reflexiva, o risco torna-se indeterminado em relao intensidade, ao

    alcance de seus efeitos, pois ultrapassam o limite temporal e espacial.

    Uma das caractersticas mais importantes da sociedade do risco a reflexividade, a

    reviso contnua com base em novas informaes ou conhecimentos. Devido aos problemas

    decorrentes do processo de desenvolvimento tcnico e econmico, a modernizao se torna

    reflexiva e toma a si mesmo como tema e problema. As questes acerca do desenvolvimento e

    da aplicao das tecnologias so, ento, substitudas por questes de gerenciamento de risco.

    Entretanto, Beck (1998) ressalta que o risco moderno, diretamente ligado ao processo

    de industrializao e ao avano tecnolgico, tem sua invisibilidade e sua dimenso

    imperceptvel que desafia a capacidade de compreenso e, portanto, de preveno. As

    consequncias desse risco so desconhecidas a longo prazo e no podem ser avaliadas com

    preciso.

  • 35

    A confiana nos especialistas, que podem calcular os riscos, pode ser abalada pelas

    limitaes em compreender os riscos emergentes e as novas ameaas, pois, alm de ter

    potencialidade de destruio em longo prazo, eles tm uma tendncia de se universalizar: o

    risco existe para todos, independente da classe social. O que diferencia a exposio ao risco

    so as condies materiais dos indivduos de criarem estratgias contra as ameaas, mas o

    risco invisvel e as ameaas de destruio afetam a todos sem distino (Beck, 1998).

    Com a divulgao na mdia internacional de acidentes como Seveso (1976), Bhopal

    (1984) e Chernobyl (1986), instituies polticas e organizaes sociais reivindicaram a

    normatizao de aes de enfrentamento dos riscos tecnolgicos e maior transparncia no

    gerenciamento dos riscos decorrentes das atividades industriais. Esse processo teve

    implicaes nos custos financeiros do Estado e das indstrias, sendo fundamentais para que a

    anlise de risco emergisse como disciplina e profisso na dcada de 1980. Esses

    investimentos destinaram-se aos estudos de desenvolvimento de mtodos cientficos para os

    clculos estatsticos e probabilsticos dos riscos institucionalizando, assim, as anlises de risco

    (FREITAS e GOMEZ, 1997).

    O campo das anlises de risco, cuja fonte original est na Engenharia, foi consolidado

    ao longo da dcada de 1980 e envolveu trs reas: o clculo dos riscos que consiste na

    identificao dos eventos adversos decorrentes da atividade analisada, a sua probabilidade de

    ocorrncia e magnitude de seus efeitos; a percepo dos riscos que diz respeito relao entre

    o pblico e os riscos tecnolgicos; e a gesto dos riscos que envolve os processos decisrios.

    Os processos decisrios, por sua vez, consistem na seleo e implementao de medidas

    apropriadas para o controle e a preveno de riscos como formulao de legislao, a anlise

    de custo e benefcio, a aceitao dos riscos e a anlise de seus impactos nas polticas pblicas

    (FREITAS e GOMEZ, 1997).

    As anlises de riscos, utilizando o clculo de probabilidades e a estatstica, geraram

    diversos modelos para uma avaliao objetiva do risco com a sua quantificao, sua

    determinao de nveis de tolerncia e aceitabilidade, pressupondo que os riscos podem ser

    conhecidos, quantificados e, consequentemente, minimizados atravs da tomada de decises

    baseadas nesses estudos (FREITAS e GOMEZ, 1997).

    Freitas e Gomez (1997) apresentam a perspectiva utilitarista racional e a concepo

    elitista de democracia como os pressupostos tericos para o desenvolvimento destas anlises

    de risco.

    Na perspectiva utilitarista, a nfase dada s aes racionais dos indivduos que agem

    motivados apenas por seus interesses, com o objetivo de alcanar os melhores resultados,

  • 36

    utilizando as previses das consequncias para avaliar os riscos e os benefcios dessas aes.

    Os riscos podem ser medidos e quantificados para fornecer resultados precisos das

    probabilidades de perdas e ganhos. So as anlises tcnicas de riscos como da engenharia,

    epidemiologia e economia, que reduzem o risco dimenso fsica, qumica e biolgica e que

    buscam explicar o caos e as incertezas atravs da sua previsibilidade. Os aspectos sociais

    como crenas e grupos sociais no so considerados, pois nessa perspectiva, no influenciam

    o individuo na sua avaliao de riscos e benefcios.

    Na concepo elitista de democracia, a preocupao est em manter a estabilidade de

    um determinado sistema tico, moral, social, cultural e poltico, em que so qualificados

    como racionais aqueles cujas aes se encontram em consonncia com o sistema, no caso,

    baseado no utilitarismo (FREITAS e GOMEZ, 1996, p.496).

    Desse modo, na perspectiva utilitarista e na concepo elitista de democracia, a

    validao dos modelos tcnicos baseada em dados quantitativos e probabilsticos para

    estabelecer critrios e padres da aceitabilidade de riscos. A objetividade alcanada atravs

    das avaliaes quantitativas.

    O desenvolvimento dos mtodos cientficos de anlise e gerenciamento de riscos

    refletiu assim uma tendncia para prever, planejar e alertar sobre os riscos, em vez de dar

    respostas ad hoc s crises geradas pelos mesmos, pois as decises regulamentadoras sobre os

    riscos seriam politicamente menos controversas se pudessem ser tecnicamente mais

    rigorosas e baseadas em firme base factual (FREITAS e GOMEZ, 1997, p.92).

    Por outro lado, como destaca Spink (2010, sp), avaliar riscos depende

    intrinsecamente da definio do que vem a ser risco, o que abriu um campo de investigao

    sobre a percepo do risco envolvendo as Cincias Sociais e proporcionando um debate entre

    as vertentes da tcnica e da cultura. Morre, nesse debate, o sonho racionalista de riscos

    objetivamente avaliados, diante do golpe mortal da aceitao de que os riscos implicam

    valores: risco a possibilidade de perda de algo que tem valor para ns (SPINK,

    2012,sp. Grifo da autora).

    Para Luhmann (1993), o risco depende mais do modo de como observado e no

    tanto das suas caractersticas objetivas. O risco tornou-se uma variante que distingue entre

    aquilo que desejado e indesejado. Do ponto de vista terico e normativo, Luhmann (1993,

    p.55) concebe o risco enquanto um desvio norma.

    Na sua perspectiva, o risco no deve ser procurado fora do sistema social e no deve

    ser visto como um clculo matemtico, mas como a vulnerabilidade na exposio a qualquer

    coisa. Portanto, o risco depende de valores, de observaes e do contexto temporal onde

  • 37

    produzido. O clculo quantitativo do risco no a opo mais adequada, para a maioria das

    situaes, onde estejam envolvidos elevados graus de incerteza.

    Luhmann (1993) aborda o risco na perspectiva da teoria dos sistemas. A abordagem

    sistmica define o risco como uma ou mais condies de uma varivel que podem interromper

    um sistema, levando sua degradao completa ou desvio das metas pr-estabelecidas. A

    concretizao de um risco expressa atravs de uma disfuno do sistema estando associado,

    portanto s suas eventuais falhas. Na sua perspectiva, o risco encontra-se ligado aos processos

    de deciso, que s podem ser realizados no presente. Assim a dimenso temporal tambm

    relevante na abordagem sistmica. O termo risco permite determinar uma forma de

    problematizar o futuro projetando possibilidades no presente.

    Para Boholm (2003), o risco extremamente contextual e o que ou no

    considerado um risco depende, em grande medida, de outras coisas. As relaes sociais, as

    relaes de poder e hierarquias, crenas, conhecimento, experincia, discursos, prticas e

    memrias coletivas tudo isto conforma as noes sobre risco e segurana. Risco no uma

    propriedade intrnseca das coisas. um termo relacional que emerge de contextos

    dependendo de significados convencionalmente estabelecidos e partilhados.

    We all know, however intuitively, that risk is extremely contextual and fluent,

    what is or what is not considered a risk depends to a large extent on other

    things. Social relationships, power relations and hierarchies, cultural beliefs,

    trust in institutions and science, knowledge, experience, discourses, practices

    and collective memories all shape notions about risk or safety. Risk is not an

    intrinsic property of things. It is a relational term that emerges out of contexts

    depending on shared conventionally established meanings, that is to say,

    culture (Rappaport 1996). Social anthropology with its analytical capacity to

    bring into the open and problematize taken-for-granted assumptions and given

    meanings, in combination with its ethnographical methods can contribute by

    untangling the intrinsic situatedness of risk (Boholm, 2003 p.175).

    Burns e Machado (2010) abordam a teoria dos sistemas sociais para analisar os riscos

    decorrentes de novas tecnologias, complexos, que expem as limitaes cognitivas e de

    controle, sendo importante investigar e teorizar as maneiras particulares como grupos e

    instituies conceituam e tentam lidar com estas tecnologias, os riscos e suas conseqncias,

    enfatizando as estruturas e modelos normativos. Para estes autores, muitos riscos so

    discricionrios, pois so resultantes de julgamentos e decises humanas. Os tomadores de

    deciso e os profissionais podem influenciar o grau em que as pessoas esto sujeitas aos

    riscos, por exemplo, atravs da gesto e regulao de uma forma mais eficaz. Como as

    polticas e prticas de segurana so baseadas em decises atravs de escolhas que podem

    mudar ou controlar o risco, as dimenses e os nveis e controle de risco so, muitas vezes,

    discricionrios.

  • 38

    Para Spink (2001), as transformaes histricas dos repertrios de risco esto

    associadas aos contextos histricos de sua produo. Nesse sentido, Douglas (1993) observa

    que a palavra risco tem adquirido uma nova proeminncia. No mais uma palavra neutra ou

    inocente que denota a probabilidade de um acontecimento - a palavra risco agora significa

    perigo e, alto risco representa grande perigo.

    2.1.2. Risco perspectiva da sade

    Segundo Althaus (2005), que realizou uma extensa reviso multidisciplinar sobre o

    risco, a cincia e a medicina compreendem e definem o risco como uma realidade objetiva

    que pode ser medida, controlada e gerida, seja ele a objetividade considerada como

    confirmao emprica ou como uma imparcial representao de uma situao. O risco a

    epidemia iminente ou a doena, o desastre ambiental espreita, a catstrofe esperando para

    acontecer. Se aplicar o conhecimento, descobrir os fatos e definir uma ao corretiva ou

    medidas preventivas ser possvel controlar o risco. O foco nesta rea , geralmente, em

    segurana, nos aspectos fsicos de risco e tende a resultar em uma preocupao cientfica com

    suas conseqncias.

    Segundo Douglas (1993), a palavra risco mudou de significado quando entrou na

    poltica, fazendo enfraquecer a conexo antiga com os clculos tcnicos de probabilidade. Na

    poltica, a palavra risco est associada a resultados indesejveis e tem sido usada para

    legitimar polticas ou desacredit-las, para a proteo individual ou de instituies. O discurso

    do risco tornou-se uma estratgia poltica.

    Diante de tais mudanas, Burger (1993) afirma que a poltica est focada na sade,

    centrada na proteo porque isto um atrativo comum. Em funo disto, novas agncias

    reguladoras surgiram e ocorreu uma exploso de legislaes na tentativa de reduzir o risco. A

    interpretao de dados cientficos passou a ser a pea central para tais agncias e tudo est

    girando em torno da gnese: carcinognese, teratrognese, mutagnese...

    Risco um conceito amplamente utilizado na literatura medica e relacionada sade e

    nas ltimas dcadas tornou-se um dos conceitos-chave da investigao e promoo da sade.

    Skolbekken (1995), um psiclogo noruegus, realizou uma pesquisa bibliogrfica em

    bases de dados MEDLINE e mostrou um aumento rpido no nmero de artigos com o termo

    risco no ttulo ou no resumo, no perodo de 1967 a 1991. Na dcada de 1990 publicou-se mais

    artigos com o termo risco do que a soma dos artigos publicados nas dcadas de 1960,1970 e

    1980.

  • 39

    Esta tendncia, que ele chamou de epidemia de risco, foi encontrada em revistas

    mdicas de abordagem geral da medicina e revistas de obstetrcia e ginecologia nos EUA,

    Gr-Bretanha e na Escandinvia. O aumento mais rpido, no entanto, foi encontrado em

    revistas epidemiolgicas.

    A hiptese de Skolbekken para a epidemia do risco que esta tendncia um

    resultado da evoluo da cincia e tecnologia, que mudou as crenas sobre o locus de controle

    de fatores fora do controle humano para fatores dentro de nosso controle. As origens da

    epidemia podem, ento, ser atribudas ao desenvolvimento de disciplinas como a estatstica,

    maior ateno gesto de riscos e promoo da sade e ao desenvolvimento na tecnologia

    computacional, que permitiram a manipulao estatstica de uma vasta gama de dados.

    Para Skolbekken (1995), a epidemia de risco refletiria assim, as construes sociais de

    uma determinada cultura em um determinado momento da histria, porm, revelando uma

    lacuna conceitual diante da diversidade encontrada.

    Em sua pesquisa sobre os repertrios interpretativos associados ao conceito de risco,

    Spink, Medrado e Mello (2002) buscaram entender o papel da mdia na circulao e

    consolidao da linguagem dos riscos. Para tanto, os autores realizaram uma analise

    quantitativa e qualitativa do uso da linguagem do risco nos textos jornalsticos, publicados

    pelo jornal Folha de So Paulo entre 1994 e 1997 e o emprego da palavra risco nos ttulos, em

    uma amostra aleatria de matrias publicadas de 1921 (ano da fundao do jornal) a 1998.

    Tanto a anlise da amostra como a totalidade de matrias do jornal apontou que o uso

    intensivo da linguagem dos riscos um fenmeno dos anos noventa, corroborando os achados

    de Skolbekken (1995) nas publicaes cientificas.

    Spink, Medrado e Mello (2002) demonstraram que o uso intensivo da linguagem dos

    riscos iniciou-se pelas reas onde o conceito j estava mais consolidado, a economia e a

    sade, sendo que nas demais reas a linguagem dos riscos mostrou-se um fenmeno ainda

    mais recente, de uso variado, associado a linguagem dos fatores e probabilidades de risco ou

    como metfora para perigos diversos.

    Na mdia jornalstica a palavra risco foi utilizada como sinnimo de perigo para falar

    sobre o risco de algum evento indesejado e, para denotar a probabilidade de ganho ou perda,

    associado linguagem dos jogos (apostas, investimentos) ou no sentido mais formal de

    clculo de probabilidade.

    Segundo Spink, Medrado e Mello (2002), o uso pleno de risco-probabilidade

    sinalizado pelo emprego do termo no contexto dos fatores associados ao clculo do risco. Na

    economia so os fatores de riscos aos investimentos que esto em pauta. Na sade, o risco

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    est associado s possibilidades no se tratando da quantificao do risco, mas do jogo das

    possibilidades em cenrio probabilstico.

    Estes resultados encontrados na mdia, sobre a linguagem do risco, parecem refletir o

    uso do conceito de risco na sade. A proliferao de estudos sobre risco repercute na sua

    difuso pblica, atravs dos meios de comunicao.

    Segundo Castiel (1996, p. 239), em funo da divulgao de informaes consideradas

    importantes para a sobrevida das populaes, h o imediato interesse do pblico por tais

    questes propiciando uma demanda para a qual os meios de comunicao de massa

    procuram apresentar as ltimas descobertas da cincia sobre os riscos (grifo do autor).

    Para Ayres (1995), a utilizao do conceito de risco como um orientador da

    interveno foi incorporado ao conjunto das prticas de sade com uma falta de rigor

    metodolgico (grifo do autor).

    Embora aqui e ali, os mtodos de aferio e escores de risco possam ainda ser

    encontrados, o conceito de risco, por fora de sua prpria dinmica histrica,

    tornou-se menos uma metodologia para a ao que um conjunto de

    preocupaes e concepes tecno-normativas to assistemticas quanto

    inextrincavelmente ligadas s concepes de sade contemporneas. Ganhando,

    de um lado, o corao da investigao cientfica, e, de outro lado, expressivas

    representaes no senso comum, o risco hoje