Concepções filosóficas e representações do feminino · 2012. 6. 13. · 4 Fernanda Henriques...

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www.lusosofia.net Concepções filosóficas e representações do feminino: Subsídios para uma hermenêutica crítica da tradição filosófica Fernanda Henriques 2010

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    da tradição filosófica

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    Artigo originalmente publicado em Revista Crítica deCiências Sociais, no89, Junho 2010, e republicado pelaon-line LUSOSOFIA.NET com autorização da autora.

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    Covilhã, 2012

    FICHA TÉCNICA

    Título: Concepções filosóficas e representações do femininoAutor: Fernanda HenriquesColecção: Artigos LUSOSOFIADesign da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2012

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    Subsídios para uma hermenêutica crítica da

    tradição filosófica

    Fernanda Henriques

    Índice

    Sentido e legitimidade da busca de uma conceptualização dofeminino e das mulheres 6Re-significando saberes velhos 10Universal neutro/falso neutro 13A não aceitação da proposta platónica sobre a Cidade Justa 17Minimizar, denegrir e ridicularizar as mulheres notáveis doMundo Antigo 19Alguns insólitos da cultura grega 23Concluindo 27Referências bibliográficas 28

    Resumo

    A partir da interpretação de uma já vasta bibliografia que temdesocultado o papel das mulheres ao longo da nossa cultura, estetrabalho pretende desconstruir a ideia comum de que o domínio

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    masculino foi sempre pacífica e universalmente aceite. Nesse sen-tido, pretende chamar a atenção para que na Grécia, uma origemconceptual da nossa tradição, paralelamente ao pensamento canó-nico, dominante, houve ruídos significativos que manifestam ou-tros modos de pensar e representar o feminino, mostrando a neces-sidade de re-significar a nossa recepção da tradição clássica.

    Palavras-chave: feminismo; filosofia; mulheres; tradicao clas-sica.

    O que é desejável tem de se tornar possível.Adela Cortina

    A nossa herança é o nosso poder.Judy Chicago

    Este texto releva da conviccao radicada em Aristóteles nao soque o ser se diz de muitas maneiras, como ele afirmou explicita-mente, mas tambem e, porventura, principalmente, que o ser sediz em conjunto, numa polifonia de vozes, umas mais harmoni-cas e próximas, outras mais dissonantes e afastadas, mas todas,igualmente, imprescindiveis. Esta ultima conviccao – a da impre-scindibilidade de todas as vozes para explicitar o sentido da reali-dade – alimentará sempre a minha critica e devo.a a Paul Ricoeure a sua lapidar ideia de que o campo hermeneutico e constitutiva-mente fragmentado, sem possibilidade de nenhuma mediacão per-feita, estando, por isso, a racionalidade humana condenada ao con-flito das interpretacões que representa a última fronteira de umaracionalidade finita, simplesmente humana.

    Por isso, é sob a custódia de Paul Ricoeur que empreendo a es-crita de qualquer texto no horizonte de uma dialectique à synthèseajournée, ou seja, sabendo que ele vai ser devedor de muitos ou-tros textos, que escrever é, na sua essência, intertextualizar, que a

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    urdidura textual que produzir é constitutivamente inacabada e quehaverá outros textos que se oporão ao meu e irão originar novostextos permitindo o conjunto de todos eles uma visão mais esclare-cedora, mais profunda e mais verdadeira da realidade.

    O objectivo do trabalho é articular o pensar filosófico com aconceptualização do feminino, destacando alguns aspectos dessaarticulação na cultura grega, no momento do aparecimento da filo-sofia, não por qualquer vício historicista de começar no princípio,mas apenas por reconhecer que, no chamado Mundo Ocidental, aGrécia é um momento instaurador e, no âmbito filosófico, repre-senta a própria fundação de um modo de pensar diferente, abrindoum espaço teórico completamente novo, seja como for que se in-terprete a passagem do mito ao logos.

    No caso vertente, das concepcões filosoficas e das representa-coes do feminino, parece ser pacifico afirmar que recebemos daGrecia uma discriminacao antropologica fundadora, uma especiede estereótipo arquetípico, que levou a pensar o feminino comoderivado e, consequentemente, as mulheres como o segundo sexo,ao longo de toda a tradicão ocidental. Mas parece ser igualmentepacifico reconhecer que tambem veio da Grécia a conceptualizacaodo feminino e das mulheres no respeitante, por exemplo, a con-figuracao da forca, da coragem e da conviccao, como e o casode Antigona, ou da possibilidade das filosofas-rainhas, como eproposto em a Republica, de Platao. Neste contexto, nao pareceracionalmente legitimo considerar-se apenas que na Grecia as mu-lheres estavam confinadas ao gineceu, nao podiam entrar na vidapublica a nao ser para algumas festas religiosas e eram conceptual-mente aproximadas dos escravos e das criancas, porque, emboracada uma destas coisas tenha ocorrido, parece ter havido tambemoutras ocorrencias que contrariam a universalidade do desrespeitopelo feminino e pelas mulheres. Nessa medida, a finalidade ultimadeste texto e desnaturalizar a ideia de que a dominacao masculinafoi sempre pacificamente aceite.

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    Não sendo eu helenista, nem especialista de Filosofia Antiga,este trabalho vai explorar as linhas de investigação desenvolvidassobre a problemática em causa e, com base no estado da arte, pro-por algumas interpretações.

    Sentido e legitimidade da busca de umaconceptualização do feminino e das mulheres

    No quadro do estabelecimento do sentido e da legitimidade destetrabalho, do ponto de vista feminista, cabe perguntar:

    • Vale a pena um mergulhar na história da filosofia ou na dasideias culturais em busca de raízes?

    • Sera possivel e útil fazê-lo, ou o androcentrismo da lingua-gem vai ter um efeito perverso nesta pesquisa?

    Obviamente, a existencia deste texto representa uma respostaafirmativa a qualquer das duas interrogacoes; todavia, nao seradespiciendo mostrar que ele e filosoficamente consistente e mi-litantemente util. Para isso, vou tentar explicitar o que me se-para de posicoes que defendem a alteridade absoluta do feminino,como e o caso de Luce Irigaray para quem um projecto como estede tentar re-significar alguns passos da tradicao nao so pode serirrelevante como pode ser mesmo prejudicial, “[porque] a tarefanao e elaborar uma nova teoria de que a mulher seria o sujeitoou o objecto, mas travar a propria maquinaria teorica, suspendera sua pretensao a producao de uma verdade e de um sentido de-masiado unívocos” (Irigaray, 2003: 51). Trata.se, então, de en-contrar na maquinaria teórica recursos operacionalizaveis. Fa-lo-ei através da hermenêutica de Gadamer, segundo o que Ricoeur

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    traduz como eficacia do trabalho da história, como forma de ca-racterizar a perspectiva gadameriana sobre o tema da consciênciahistórica, que faz dela, simultaneamente, condicao de possibilidadee de constrangimento do modo como interpretamos a realidade.Para Gadamer, ter sentido histórico e medir o nosso pensamentocom o nosso horizonte histórico, assumindo a nossa consciênciahistórica, ou seja, é darmos conta de nós dentro do desenrolarde um processo que nos contextualiza e, de alguma maneira, nosforma. Por isso, é nosso destino trabalharmos a história que nostrabalha.

    Gadamer chama preconceito ao resultado do trabalho da histó-ria sobre nós, pretendendo designar aquilo que se poderia caracteri-zar como esquemas de significação trans-subjectivos, e que fun-cionam como princípios de leitura da realidade. Tais esquemas designificação representam o que, em linguagem de Kant, se podedesignar como os óculos constitutivos da humanidade que a con-finam a um irredutível Standpunkt, que, contudo, não e um re-lativismo e sim uma consequência inevitável da finitude humana.Conhecemos a realidade e intervimos nela através de condiciona-mentos inerentes a sermos humanos: a nossa inserção histórica,social, e cultural e o facto de termos um corpo fazem do discursohumano, qualquer que ele seja, uma interpretação mais ou menosvalidada pelas premissas e axiomas em que se inscreve. Esta pers-pectiva opoe-se ao padrão epistemológico ocidental que instau-rou as ideias de neutralidade, universalidade e objectividade comoapanágios da verdade e do valor do saber, assentes na ideia de umarazão pura, transparente e asséptica que produzisse e fornecesseum conhecimento sem mácula ou impressão digital, querendo de-nunciar que tal posição escamoteia quase sempre a ideologia dohomem branco e louro e que só parece ser universalmente aceiteporque e ainda esse homem branco e louro quem detém a do-minância da emissão discursiva.

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    Entre muitas perspectivas críticas, também a racionalidade her-menêutica põe em causa esta espécie de positivismo epistemoló-gico, ao mostrar que se fala sempre de um lugar humano e culturale que estamos irremediavelmente ligados ao ser ou à realidade queprocuramos entender, pelo que “não podemos saber o todo, porqueestamos no todo” (Ricoeur, 1950: 443). E, embora não se desistade procurar o universal, já não se pretende uma universalidade abs-tracta e sim, uma “universalidade assimptótica, que marca uma di-recção, um horizonte regulador” (Amorós, 2000: 99). A posiçãohermenêutica, ao inviabilizar a legitimidade de uma racionalidadetotal, faz entrar no campo do saber o valor da argumentação, con-tribuindo para a criação de uma “cultura de razões”1 e para a defesada necessidade de se procurarem diferentes lugares de explicaçãoe de compreensão da realidade. Se o ser se pode dizer de muitasmaneiras é importante que todas elas interajam entre si de modoa possibilitarem um falar em conjunto que ponha fim a um mono-litismo discursivo com fachada de neutralidade universal.2 É nocontexto da possibilidade e da necessidade das narrativas pluraisque entronca a razão específica do sentido deste trabalho e a suapossibilidade de poder reforçar a consciência de si do feminismo.

    Judy Chicago criou o Dinner Party para dar figura a nossa he-rança e ao nosso poder. Na mesma linha, todos os movimentosfilosóficos procuraram na história da filosofia lugares onde pudes-sem mergulhar raízes e encontrar solo legitimador. A filosofiafeminista nao pode fugir a essa regra, sendo dentro desse esforçoque pretendo operacionalizar a ideia gadameriana de consciênciahistórica no sentido de propôr outras e diferentes leituras do pas-sado, procurando re-significar a ideia de que a dominação mas-

    1Expressão usada também por Célia Amorós.2Esta racionalidade hermenêutica situa-se entre uma racionalidade moderna

    e uma racionalidade pós-moderna, aceitando, da primeira, o seu poder discrimi-nador e analítico e o valor da formalização, mas recusando o seu sentido tota-lizador e excludente, e da segunda, o reconhecimento da finitude e o valor dasdiferencas.

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    culina foi universal e pacificamente aceite, pondo a hipótese deque essa dominação tenha apenas tido a aparência de ter sido total-mente aceite. Esse percurso de re-significação pode mais uma vezapoiar-se nas seguintes palavras de Gadamer:

    A consciencia histórica nao escuta de forma beatíficaa voz que lhe chega do passado mas, reflectindo sobreela, recoloca.a no contexto em que ela se enraíza paraavaliar a significação e o valor relativo que lhe per-tence. Este comportamento reflexivo perante a tradi-ção chama-se interpretação. (1996: 24.25, sublinhadomeu)

    Assim sendo, pertencer a um tempo e a uma cultura significapossuir uma heranca, constituída por um conjunto de recursos deinterpretação, com a qual nos orientamos como humanos, como seviu. Contudo, tal interpretação deve configurar-se como um com-portamento reflexivo perante a herança cultural e nao representaruma aceitação passiva dela. Ou seja, “ter sentido histórico” obrigaa reconhecer o legado cultural que recebemos, mas, obriga, igual-mente, a re-avaliá-lo e a re-interpretá-lo, de tal forma que pos-samos re-configurar, com maior equidade, a herança cultural quevamos deixar.

    No caso das representações do feminino, o trabalho de interpre-tação do legado cultural e particularmente delicado porque tem deser feito ao arrepio daquilo que mais profundamente nos constitui,tendo de começar por uma desconstrução e por uma hermenêu-tica da suspeita, uma vez que as representações do feminino maisenraizadas advêm de uma concepção antropológica assimétrica,que toma o masculino como padrão e o feminino como derivado.3

    Nesse contexto desconstrutor e de suspeição, um olhar reflexivosobre a tradição ocidental deve deixar-se orientar pela ideia de que

    3Cf. a este respeito a recolha de Benoîte Groult (1993).

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    a dominação masculina não foi universal e pacificamente aceite,mas apenas assumiu o aspecto de parecer ter sido absolutamenteaceite. Ou seja, re-significar a nossa História comum, de homense de mulheres, obriga a procurar os ruídos a aceitação universalda dominação masculina que ocorreram e trazer a luz os sinaisda ambiguidade e da complexidade nas relações de poder entreos sexos, que todas as épocas testemunham. Sem a desocultaçãodesses acontecimentos nao será possível fazer um novo caminhode entendimento do nosso modo de ser e de estar e, nas, mu-lheres, estaremos desmunidas de figuras femininas que materia-lizem a possibilidade de nos olharmos como seres humanos inte-grais. Além disso, se aceitarmos passivamente a ideia de que adominação masculina foi sempre completamente aceite, estamos afazer uma nova discriminação em relação a nossa herança cultural,porque não fazemos justiça a quem se insurgiu contra a dominaçãodo masculino, e estamos, por nossa vez, a invisibilizar o seu es-forço, reiterando o legado cultural que o conseguiu escamotear.

    Tal interpretacao reflexiva da tradição ocidental vai mostrar-nos um modo de pensar as mulheres e o feminino, a que se poderachamar pensar canónico – que dá das mulheres e do feminino umavisão negativa e subalterna –, mas tambem uma contracorrente depensamento ou ruídos marginais ao pensar dominante que eviden-ciam o facto de a aceitação da dominancia do masculino nem sem-pre ter sido pacífica.

    Re-significando saberes velhos

    Na sua origem, a filosofia fala grego, e essa origem pautou-se poruma recusa e por uma ruptura. Recusa de um certo tipo de sabermítico ou poético e ruptura com o modo de pensar que aquele saberenvolvia, situação que Maria Zambrano interpreta designando o

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    discurso filosófico como um discurso ético por corresponder a von-tade humana de construir o seu próprio saber, de nao o aceitar dequalquer fonte exterior.

    Esta dupla situação de recusa e ruptura originou um modo depensar novo que fundou e determinou a maneira como o ocidente sedesenvolveu do ponto de vista epistemológico. Com essa herançaveio também o que chamei acima estereótipos arquetípicos, ou dis-criminações fundadoras acerca do feminino e das mulheres, mar-cando indelevelmente toda a antropologia posterior, que se desen-volverá em concepções diferentes mas sempre configurando umaassimetria entre as mulheres e os homens. A eficácia historicadessa herança e de tal modo marcante que Freud, que se contrapôsa quase todos os modos de pensar instituídos, em relação ao femi-nino e as mulheres limitou-se a reiterar aquilo que Aristóteles tinhadefinido, porque o complexo de castração e a inveja do pénis maisnão são do que a reiteração da perspectiva aristotélica, agora e-levada a saber científico. Noutro campo de significações, a ideialacaniana de que só o falo tem capacidade para evocar um camposimbólico próprio apenas faz ressonancia daquilo que, na Grécia,ficou instituído como universal neutro, mas que, de facto, foi as-similado ao masculino.

    A filosofia grega e, pois, a nossa herança e o nosso destino.Acolhê-la, na órbita do que ficou dito antes sobre a consciênciahistórica, obriga, necessariamente a re-significá-la ou, pelo menos,a tentar fazê-lo. Para realizar essa tentativa, proponho uma sériede questões orientadoras e respectivas respostas, no horizonte dasquais organizarei a segunda parte do meu texto.

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    Questões RespostasO que e que herdamos da Grécia,sem reflectirmos no seu processo deconstituição, tomando-o como na-tural?

    A ideia do universal neutro, comtudo o que lhe vem associado

    O que é que recusámos liminar-mente?

    A proposta platónica

    O que é que denegrimos ou mini-mizámos?

    A existência atestada da importân-cia de algumas figuras femininas,como é o caso de Safo e de Aspásia

    O que é que ignorámos ou não a-ceitámos como herança?

    Alguns insolitos da Cultura Grega,se tivermos em conta a depreciaçãodo feminino, como por exemplo:– A importância do feminino natransmissão do saber . Hesíodo(Teogonia) e Parménides (Poema)– A importância da figura femininana configuração das questões-limiteque se põem ao ser humano, teste-munhada pelas tragediasO inesperado da proposta platónicade pensar a possibilidade de haverfilósofas-rainhas ou dos exemplosde Lisístrata, de Assembleia de mu-lheres e de Melanipa, a filósofa

    No âmbito deste texto não se poderão desenvolver todos os as-pectos acima identificados, pelo que me aterei, apenas, a quatro,por serem ou mais conhecidos, ou mais insólitos ou paradigmáti-cos ou mais determinantes, a saber:

    • A questão do universal neutro

    • A controvérsia sobre Platão

    • O caso de Safo e de Aspásia

    • O simbólico de três peças insólitas

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    Universal neutro/falso neutro

    Celia Amorós, na apresentação de uma colectânea de estudos sobrea conceptualização do feminino na filosofia grega, depois de afir-mar que desde muito cedo há uma conceptualização ideológica dofeminino que a contrapõe a um suposto universal neutro, diz duascoisas fundamentais:

    a. [...] aquilo que é pensado como o genérico humanoapresenta-se num plano de abstracão que neutraliza osopostos sexuais [...]. Contudo, nã de tal maneira queaquilo que e proposto ao nível da abstracção do neutropossa ser comunicável no masculino ou no feminino:constituir-se-á como o masculino, que assumirá, destemodo, o neutro, e assim não se porá a si mesmo comoo masculino, e sim como o próprio genérico humano.

    b. Ao ficar do lado do diferente, do outro-diferente-do-neutro, e sendo o neutro o pensado enquanto neu-tro – e vice-versa, na medida em que se tornará neu-tro enquanto pensado –, o feminino tornar-se-á o não-pensado. (Sedeno, 1994: vii)

    Vou explorar a sua dupla afirmação – a do escamoteamentodo processo de assimilação entre universal neutro e masculino ea da transformação do feminino de não pensado em impensavel– servindo-me da perspectiva de Zambrano sobre as origens dafilosofia grega, nomeadamente a ligação directa que a autora fazentre Filosofia e violência (Zambrano, 1991). Centrada em Platãoe em Aristóteles e no quadro da comparação entre filosofia e poe-sia, Zambrano chama a atitude filosófica um êxtase fracassado poruma cisão porque o filósofo, começando por se extasiar perante odeslumbramento da realidade, ao contrário do poeta que se perde

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    nela, abandona-a, abstrai dela para conquistar, nesse afastamentoascético, a compreensão da sua essência. A imagem que a autoranos da da origem da filosofia evidencia que o desejo filosófico e oda unidade ou da totalizacao do saber. Do seu ponto de vista, estequerer o todo unificado transforma-se em obsessão e perseguirá afilosofia como um fantasma. Dizer a palavra humana sobre a rea-lidade, em lugar da palavra divina da poesia mítica, vai significar,para o filósofo, dizer uma palavra última, absoluta e pura, compor-tando, assim, a filosofia uma dupla violência: a da separação dodeslumbramento primeiro sobre o real e a da imposição de uma or-dem compreensiva a esse mesmo real. Dentro desta interpretação,Zambrano afirma que no mundo grego houve duas possibilidadesde o pensamento filosófico se ter desenvolvido – uma ligada a umlogos temporal, a via pitagórica, do número e da música, e outraligada ao logos espacial, da palavra e do ser.4

    O logos temporal tanto privilegia a palavra como o silêncio,querendo relevar o ritmo e o tempo como modo de ser da reali-dade. Se tivesse triunfado esta forma de pensar, a razão filosóficateria tido de encontrar uma outra maneira de se expressar. Nãofoi o caso, porque triunfou o logos aristotélico fazendo prevale-cer a teoria da definição e do juízo, definindo e julgando todas ascoisas. Com a vitória desta forma logóica ganhou a perspectivada unidade, da clareza, da luminosidade e o universal abstractoe pretensamente neutro configurou-se como valor supremo. Con-vém, contudo, saber como é que, no plano antropológico e político,Aristóteles, o ganhador, definiu o Universal.

    Numa obra dedicada a este tema, Amparo Moreno separa “se-xismo” de “androcentrismo” para mostrar que a concepcao her-dada da Política de Aristoteles acerca do suposto universal homemnã só exclui todas as mulheres, como também muitos homens.Afirma ela que a conceptualização de homem que Aristóteles for-

    4Desenvolvi esta ideia em textos anteriores: Fernanda Henriques (1998a,2001).

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    jou, nomeadamente no livro I da Política, referia-se a aner-andros,ou seja, “ao homem feito, ao que assumiu os valores próprios davirilidade, crendo-se, por isso, com direito a impor-se sobre outrase outros” (Moreno, 1988: 18).

    Perspectivando a sua análise sobre obras académicas de refe-rência que comentam e difundem a perspectiva aristotélica, Am-paro Moreno mostra que a transmissão do pensamento aristotélicose faz ou ignorando completamente as remissões de Aristóteles asmulheres, aos escravos e aos estrangeiros, ou minimizando-as, ou,ainda, referindo apenas a posição aristotélica sobre a escravatura.Esta forma de transmitir o pensamento aristotélico serve a ideiade um universal neutro, mas, de facto, ignora a significacao dis-criminadora que o próprio referencial semântico do conceito tinhana origem, porque Aristóteles sabia a quem se aplicava o seu con-ceito, sabendo quais eram os homens que podiam ser cidadãos dasua polis, mas nos, todo o Ocidente, quando recebemos a ideiaaristotélica e usamos o vocábulo homem para nos referirmos a hu-manidade, estamos a escamotear a dimensão segregacionista queo termo tinha na origem, dando ao discurso académico e ao dis-curso público aquilo que Moreno chama uma opacidade androcên-trica. Por outras palavras, relegamos para o plano do impensado ascondições de constituição do conceito e, ao fazê-lo, naturalizamo-lo, retirando-lhe o seu carácter de construído, apresentando-o comosendo de si mesmo um universal neutro e contribuindo para a di-fusão de uma ideia de humanidade como devendo ser: viríl, com-bativa, dominadora e possuidora de propriedade.

    A importância desta perspectiva liga-se a finalidade última daPolítica de Aristóteles: conceptualizar a naturalidade de um es-tado de coisas, nomeadamente evidenciar que a polis representavao modo de organização colectivo natural. Por isso, Aristóteles querlegitimar, com base na “natureza das coisas”, quem tem natural-mente o poder de mandar e quem tem, naturalmente, de ser man-dado. Por isso, diz, no inicio do livro I Política, que a natureza

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    criou uns seres para mandar e outros para obedecer, salientandoque, desse modo, tudo estaria bem para todos e que, no conjunto,todos ganhariam. A perspectiva aristotélica serviu o Ocidente du-rante muitos séculos, legitimando a escravatura. Resta perguntarse também continua a servir para a manutenção do afastamentodas mulheres da vida pública e de um conceito de cidadania plenoe inclusivo. Pelo menos foi a sua sombra que triunfou noutros pen-samentos ganhadores, como e o caso de Jean-Jacques Rousseaupara quem o lugar das mulheres segundo “a natureza das coisas”era claro:

    Na união dos sexos cada um concorre igualmente parao objecto comum, mas não da mesma maneira. [. . . ]Um deve ser forte, o outro passivo e fraco: é preciso,necessariamente, que um vigie e tenha poder, sendosuficiente que o outro ofereça pouca resistência.

    Estabelecido este principio, deduz-se que a mulher efeita especialmente para agradar ao homem. (apudHenriques, 1998b: 188.189)

    Estes e muitos outros exemplos evidenciam que quando se querinstaurar a superioridade de uma parte do conjunto humano sobreoutro, há sempre a tendência de “encontrar” uma “natureza dascoisas” que o fundamenta, pelo que é crucial estabelecer como ob-jectivo central do pensamento feminista – ou de qualquer outraforma de pensar a favor de um pensamento justo – desocultar oconstruído e o contexto de construção que se esconde por detrásdo que quer apresentar-se a si mesmo como natural. A haver umapalavra de ordem a favor da não discriminação de qualquer tipo eladeveria ser des-naturalizar e, especificamente, em relação à ideiade universal neutro, esta des-naturalização e absolutamente essen-cial.

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    A não aceitação da proposta platónica sobre aCidade Justa

    Nao parece ilegítimo considerar que foi a transformação em impen-sado do contexto da ideia aristotélica de homem-cidadão uma dasrazões responsáveis pela recepção que teve a proposta de Platão,na República, de que também as mulheres poderiam governar acidade e ser filósofas-rainhas.

    Platão fez duas propostas de organização social e política: a daRepública e a das Leis.5 Na primeira defende que, embora comogrupo, os homens sejam superiores às mulheres, há muitas mu-lheres melhores que muitos homens e, portanto, deveria dar-se àsmulheres a possibilidade de usufruirem de uma educação capazde as tornar possíveis governantes da cidade. Conhecendo a ideiaplatónica, de que só quem praticasse a filosofia poderia ser bomgovernante, a sua proposta para as mulheres, na República, sig-nifica que elas, pelo menos algumas, poderiam chegar ao cume dosaber, representado pela filosofia, podendo ser rainhas da cidadejusta. Mesmo em termos de utopia, não parece irrelevante que estaideia tenha surgido uma vez na Grécia e que seja alvo de argu-mentação numa das mais conhecidas obras da literatura filosóficaocidental.

    Acontece, porém, que essa cultura aceitou como importante aobra, mas excluiu como ridícula, descabida ou contra “a naturezadas coisas” a parte da obra onde se defendia a possibilidade duplado acesso das mulheres ao máximo do saber e do poder. NatalieBluestone faz a análise da recepção académica desta questão, apartir de 1870, encontrando entre 1870 e 1970, sete tipos de hosti-lidade em relação à proposta platónica, de que destaco as seguintesquatro:

    5Para esta questão ver, por exemplo: Julie K. Ward (1996); Sister PrudenceAllen, R.S.M. (1985); Claude Mossé (1983).

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    • A igualdade não é uma temática: desvalorização da proposta

    • As mulheres são diferentes: a proposta e não-natural

    • As mulheres têm coisas melhores para fazer: a proposta eindesejável

    • Platão não quis realmente dizer aquilo: a proposta nã é in-tencional, não é adequada ou e cómica (Bluestone, 1987:21.73).

    Não creio que, do ponto de vista académico, se possa ficar in-diferente perante tais argumentos para não aceitar uma propostateórica. Não creio também que ela não tenha tido uma decisivaeficácia histórica na formação da nossa consciência colectiva eque não seja ela que ainda hoje trabalha nas costas de cada uma ede cada um quando tem dúvidas sobre a paridade ou sobre o valordas quotas como processo de discriminação positiva, funcionandoactivamente como esquema pré-compreensivo.

    A quebra que Bluestone introduz na sua análise da recepção daproposta platónica nos anos 70 do seculo XX prende-se, como éóbvio, com a revolução cultural e epistemológica que os anos 60e 70 introduziram no imaginário colectivo e que, de uma ou outramaneira, teve alguns reflexos na Academia. Contudo, se bem quea autora reconheca diferenças na recepção do tema posteriormentea esse marco, não deixa de identificar a persistência do estereótipo,sendo de realçar a leitura de Allan Bloom que continua a man-ter uma interpretação eminentemente sexista da proposta platónica(Bluestone, 1987: 154 ss.). No quadro analítico feito por Blue-stone, fica claro que e a recepção de Platão que continua a apagaro sentido e a pertinência da proposta do velho filósofo grego que,embora considerasse que as mulheres eram “almas caídas”, foi ca-paz de conceptualizar o feminino sem o tomar como um colectivoe, assim, conceber como inteligível que pelo menos algumas mu-lheres poderiam ascender ao governo da cidade.

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    Sem querer fazer de Platão defensor das mulheres, é necessáriotomar consciência do que está em causa na proposta platónica: umaargumentação racional a favor do direito humano e da legitimi-dade filosófica de as mulheres poderem ascender ao saber maior e,em consequência, ao poder maior. Se tivermos em linha de contaque mesmo nos dias de hoje esses direitos ainda não são pacifi-camente aceites, poderemos ter consciência de quão longe foi aousadia platónica.

    Minimizar, denegrir e ridicularizar as mulheresnotáveis do Mundo Antigo

    Na mesma linha de pensamento que tenho vindo a desenvolver,parece igualmente possível considerar o androcentrismo, sob a ca-pa de universal neutro, como um factor importante do silencia-mento ou da minimização das mulheres que, apesar de toda a invi-sibilização, não foi possível fazer desaparecer da história das ideiase da cultura. Sobretudo os casos de Safo e Aspásia podem sertomados como paradigma da ocultação do feminino para fazer crer,deliberada ou inconscientemente, que as mulheres sempre se limi-taram ao gineceu e que a dominância do masculino foi universal,pacífica e “segundo a natureza das coisas”.

    A recepção de Safo e Aspásia tem em comum o facto de am-bas serem articuladas com a questão da sexualidade; contudo, temtambém diferenças que se prendem com o que pode ter sido a suahistória pessoal e os tópicos pelos quais adquiriram relevância.

    Safo tem duas associações imediatas no imaginário corrente:10a musa e lésbica. Em nenhum dos casos se atende à especifici-dade que a tornou impossível de apagar da história: ter sido umadas grandes poetas de todos os tempos. Safo seria de Mitilene,cidade de Lesbos, a sua vida terá decorrido entre a segunda metade

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    do século vii e as primeiras décadas do século vi a.C., sendo, porisso, ligeiramente posterior a Hesíodo e a Simónides, poetas quederam do feminino visões bastante pouco positivas.

    Segundo os estudos especializados, a informação sobre a vidade Safo é tão contraditória que é a própria obra da autora quefornece melhores indicações sobre ela, permitindo conceber queera responsável por si e pelo seu círculo familiar, estando muitolonge da ideia feita da mulher grega, confinada ao lar e com tutela(Iriarte, 1997). Um dos preconceitos que a recepção da poesia deSafo parece não ter conseguido superar foi o acantonamento da suapoesia a uma interioridade e a um sentimentalismo enclausuradonum Eros auto-contemplativo que é posto, habitualmente, em con-fronto com a consciência cidada de Alceo, com quem partilhou apátria e a época, mas que cantava a guerra e a vida activa. Comodizem alguns estudos, este preconceito tende a tornar simbólicaa própria figura de Safo, relegando-a para o plano do divino aoidentificá-la como “a musa mortal”.

    O outro preconceito diz respeito a própria vida de Safo, referin-do-se à sua assimilação com o lesbianismo, nome, aliás, recolhidoda sua ilha natal.

    Esta situação e significativa do quadro ideológico em que asmulheres são conceptualizadas, porque, assentando a sua reputaçãode lésbica nas relações que mantinha com o seu círculo de alu-nas, representa transformar a interpretação de uma situação educa-cional comum na Grécia, como se fosse uma especificidade e, poroutro lado, essa interpretação, transformando-se no seu avatar, nãocorresponde ao modo como essa ideia se liga com outras figurasnotáveis da Grécia, como e o caso de Sócrates, cuja apresentaçãonunca começa a partir da sua paixão por Alcibíades.6 Contudo, nocontexto da mundivisão e da moral comum ocidental, relacionar

    6E se o que está em causa é o facto de Sócrates ter sido casado, também aSafo é atribuído um marido e uma filha e, além de tudo, ela compôs epitalâmios,ou seja, cânticos de boda.

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    uma figura notável a homosexualidade era uma forma de a dene-grir e, portanto, de obscurecer o seu valor. Deste modo, a recepçãode Safo representa o protótipo da imagem dominante das represen-tações míticas do feminino: ou divina ou malvada.

    Quanto a Aspásia,7 a maior parte das pessoas para quem o seunome têm algum significado associam-na à sua relação amorosacom Péricles, de quem foi amante. Saberão, certamente, também,que ela tinha uma grande influência nele, nomeadamente, para ascoisas negativas, mas, de um modo geral, não se associará Aspásiaa um círculo de elite intelectual de Atenas, onde ela pontificavacomo os homens notáveis que também o integravam, evidenciandocom a sua existência que havia, em Atenas, outras maneiras de seser mulher sem ser a de esposa fiel e submissa de qualquer ate-niense, garantindo atraves dessa fidelidade e submissão a honra donome e a posse dos bens. Este olhar global e generalizado sobreAspásia testemunha do mesmo ideologismo interpretativo que seencontrou em Safo, mostrando que quando não é possível ignoraras mulheres divulga-se delas aquilo que eémais desprestigiador aosolhos de uma moral, também ela apenas, pretensamente, neutra.

    O estudo introdutório à edição bilingue de uma obra sobre As-pásia termina de uma forma lapidar para o meu propósito:

    [...] as informações platónicas sobre Aspásia respon-dem a realidade historica. Considero que esta e a me-lhor hipótese para explicar o que os críticos chamamreiteradamente o “misterio” ou o “enigma” de Mene-xeno. O motivo pelo qual a imensa maioria de au-tores modernos e alguns antigos não só não aceitamessa hipótese como nem sequer a consideram digna deestudo é já outra questão que nos levaria a temas fun-damentais da história ideológica do Ocidente. (Dueso,1994: XL.XLI)

    7Sobre Aspásia ver, por exemplo: Mary E. Waithe (1992); Amalia G. Suárez,(1997); José S. Dueso (1994).

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    É interessante que seja, de novo, a recepção de Platão que estejano cerne da controvérsia; no caso trata-se do diálogo Menexeno,onde Aspásia aparece referida como mestre de retórica e autora dediscursos.

    Segundo Mary E. Waithe (1992), os comentadores desta obrade Platão dividem-se em dois grandes grupos: o que considera queo Menexeno pertence ao corpo das obras platónicas, mas e a suaúnica obra não filosófica, desprestigiando-a, portanto; e o grupoque considera que o que se diz na obra em relação a Aspásia eda própria Aspásia, e que Platão o escreve porque reconhece areputação dela como filósofa/retórica, deixando, clara a sua de-saprovação em relação a influência que os filósofos como ela ti-nham na Grécia.

    Para Dueso – autor da citação acima referida –, que pertence aeste segundo grupo, as palavras de Platão sobre Aspásia demons-tram a importância que ela teria nos círculos respectivos. Na suaargumentação, Dueso põe a claro um aspecto decisivo, referindoque, a nao se tomar como fundado nos factos o que Platão diz so-bre Aspásia, estar-se-ía a usar um critério diferente daquele quese utiliza habitualmente na recepção da obra de Platão, nomeada-mente no caso de Lisias, no Fedro, de Górgias e de Protágoras emvários diálogos platónicos.

    Na sua obra sobre Aspásia, o autor reúne 34 testemunhos, 17dos quais referem a perícia retórica de Aspásia e outros a sua li-gação à filosofia, pelo que considera absolutamente legítimo pen-sar que Aspásia esteve ligada à filosofia e à arte de argumentar,salientando que o processo de impiedade que foi movido contraela só testemunha da sua importância e da sua relevância intelec-tual. Dueso põe mesmo a hipótese de que em redor de Péricles edo seu círculo se tenha desenvolvido um movimento de emanci-pação feminina que, segundo a sua leitura, ajudaria a explicar nãosó o processo de Aspásia, mas também comédias como Lisístratae Assembleia de mulheres.

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    Alguns insólitos da cultura grega

    As referências a Lisístrata e a Assembleia de mulheres conduzemao último ponto deste trabalho: analisar alguns insólitos da herançagrega, nomeadamente, a existência de três peças de teatro, duascomédias e uma tragédia, onde as mulheres são protagonistas emsituações totalmente inverosímeis no quadro da conceptualizaçãodominante do feminino.

    Contudo, para legitimar esta incursão pelo poético chamo emminha defesa as palavras que abrem a segunda parte da obra Amulher na Grécia clássica:

    Não se conhece uma sociedade apenas pelos factos ju-rídicos, sociais e económicos. Com muita frequên-cia, esta sociedade se mostra com muito mais nitidezatravés da imagem que faz e dá de si mesma, do queatravés das estatísticas ou das leis, por muito estáveisque sejam. [...] Por conseguinte, um estudo da mu-lher na Grécia implica pôr em dia as imagens que ospróprios gregos criaram e plasmaram na epopeia, napoesia lírica, no teatro trágico e cómico, sem pôr delado as opiniões dos filósofos e as narrativas dos histo-riadores. (Mosse, 1990: 105.106)

    Embora não esteja de acordo com as conclusões que a autoravai retirar da sua análise, partilho do seu ponto de partida acerca daimportância do que se poderia designar por imaginário social e quea literatura e o teatro tão bem protagonizam. Nessa medida, chamoa colação o papel das mulheres em todo o teatro grego e penso quehá qualquer coisa que quer ser dita através do protagonismo dasmulheres no imaginário teatral da antiguidade clássica, através dequem são elaborados e discutidos os problemas base da reflexãofilosófica. Numa obra fundamental na produção teológica femi-

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    nista – Em memoria d’Ela –, Elisabeth Fiorenza (1986) propõe-se, como especialista em exegese neotestamentária, reconstruir ahistória dos princípios do cristianismo através da configuração doseu Sitz im Leben, isto é, do contexto global da sua emergência,mostrando as condições sociais, culturais e ideológicas da pro-dução dos textos para os poder arrancar a um valor simbólico abso-luto e, assim, enquadrá-los temporalmente, separando o simbólicodo histórico.

    A meu ver, o teatro grego necessita de uma operação reflexivaoposta a esta para tornar visível que há um contradição entre o seuSitz im Leben e o papel das mulheres nos testemunhos textuais quechegaram até nós, sendo necessário explorar a função simbólicadessa contradição. Nesse sentido, ao contrário do que Fiorenzafez para o cristianismo primitivo, o teatro grego deve ser analisadono interior do seu Sitz im Lebem – fortemente patriarcal – para,pelo menos, pôr como hipótese que havia ruídos ao pensamentodominante, que nem toda a gente pensava da mesma maneira e que,portanto, a dominação masculina não era pacificamente aceite.

    Do complexo de questões que avultam, neste contexto, gostariade destacar duas situações que parecem mais facilmente exem-plares:

    • A ligação das mulheres a problemas sociais graves – a paz e avivência colectiva – como é o caso de Lisístrata e Assembleiade mulheres.8

    • O totalmente inusitado da existência de uma peça cujo títuloé Melanipa, a filósofa.

    8Lisístrata (411 a.C.) – recomeço da guerra entre Atenas e Esparta – a Ate-niense Lisístrata convoca as mulheres da Grécia para se mobilizarem e poremfim à guerra, fazendo uma greve de sexo. Assembleia de mulheres: as mulheresatenienses disfarçadas de homens, Praxágora como chefe, tomam conta do podere instauram um regime comunista.

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    O estudo acima referido de Claude Mossé retira a ambas ascomédias de Aristófanes qualquer significado político, consideran-do que quer Lisístrata quer Assembleia de Mulheres apenas põemem cena figuras femininas com todas as características tradicional-mente adscritas às mulheres, especialmente as negativas, fazendopropostas estritamente ligadas à mundivisão feminina.9 Como seviu antes, Dueso propõe outra leitura: a de que essas comédias es-tivessem a fazer ressonância de uma contestação de mulheres, noâmbito do círculo de Péricles.

    Não quero, nem poderia, dirimir este confronto interpretativo;contudo, como leitora, nao posso deixar de dizer que e notável queAristófanes tenha escolhido desenvolver uma intriga com protago-nistas femininas a propor soluções políticas em situações de crise eque, em ambos os casos, tais figuras femininas tenham conseguidomobilizar-se, organizar-se e ocupar o espaço público que, teorica-mente, lhes estava vedado. Seja o que fôr que se queira pensar, eforçoso por uma de duas hipóteses: ou o próprio Aristófanes pen-sou por si mesmo a possibilidade que encenou – o que significareconhecer que as mulheres poderiam desempenhar tais papeis –ou, então, fez-se eco de outros ou outras que assim pensavam. Emqualquer dos casos, parece assinalável que a força, o poder e a ca-pacidade de mobilização e de acção pública das mulheres tenhasido posta em cena na Grécia do século V e tenha sido aplaudidapelos gregos. Por outro lado, o facto de as soluções propostas pelasmulheres serem originárias da experiência e da mundivisão femini-nas só lhes retira valor efectivo se essa solução fôr avaliada a partirda perspectiva de que apenas as soluções do mundo e da vivência

    9No caso de Lisístrata as mulheres propõem a substituição das armas pelaroca e pelo fuso. “Porém”, acrescenta ainda a autora, “o espectador ateniense doséculo v sabia muito bem que no final tudo voltaria à normalidade, que o mundoque estava ‘do avesso’ ficaria direito de novo e que as mulheres encontrariamoutra vez o caminho da casa” (132). Na Assembleia de mulheres, as protago-nistas concebem a vida da cidade em termos de um imenso Oikos, não saindo,portanto, do imaginário feminino.

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    masculina sao eficazes e adequadas. Ora, acontece que em qual-quer dos exemplos citados as ditas soluções masculinas tinham-seesgotado e gerado o caos, sendo legítimo que se procurassem alter-nativas.

    Melanipa, a filósofa é o título de uma tragédia de Eurípedes deque apenas nos chegaram alguns fragmentos. O título da peça cor-responde ao seu conteúdo porque põe em cena uma mulher filósofaou, pelo menos, uma mulher que filósofa. A história e a seguinte:seduzida por Poseidon, Melanipa teve dois gemeos. Com medode seu pai Éolo e por ordem do deus, pôs os filhos num estábulo.Descobertos os gémeos e levados a Éolo, este, considerando-osmonstros, condenou-os a serem queimados vivos. Melanipa inter-vém, demonstrando, através de argumentos racionais, que as cri-anças não poderiam ser monstros e teriam de ter uma mãe humanae, finalmente, acaba reconhecendo ser ela a mãe. O pai cega-a eenclausura-a, mas decorridos 16 anos sera libertada pelos filhos epelo próprio pai, recuperando a vista.

    Séverine Auffret (1988) dedica um estudo a esta obra, do qualretirarei algumas notas interpretativas:

    • Começando com a exploração do significado do nome daprotagonista, Melanipa, que remete para égua negra, a au-tora interpreta-o como sendo o aspecto feminino e trágicodo Centauro Quíron, antepassado dos filósofos, por prota-gonizar o domínio do espírito sobre a potência e a força ani-mal que controla e subsume. Neste contexto, para SeverineAuffret o trágico de Melanipa poria em cena não apenas asituação grega, mas o paradigma da relação entre as mu-lheres e a Filosofia: ficarem sempre a sua margem e nas suasmargens. A este respeito evoca a obra de Gilles Menage,Historia mullierum philosopharum, onde se identificam 65nomes de mulheres filósofas, o que prova também que e narecepção e na divulgação do pensamento ligado ao feminino

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    e as mulheres que se faz um ocultamento dessas herançasimpedindo-se, portanto, a sua eficácia histórica.

    • No âmbito desse ocultamento, ou ilegítimação, SeverineAuffret refere o comentário de Aristóteles na Poética a esterespeito, onde se diz que Melanipa e um exemplo de maugosto teatral porque a personagem não e conveniente, umavez que e inverosímil que uma jovem desenvolva um dis-curso filosófico.

    • Por fim, numa apreciação da figura de Eurípedes, a autora,salientando o facto de a tragédia acabar bem, embora Mela-nipa filosofasse, considera que Eurípedes quis pôr em cena,simultaneamente, a proibição de filosofar que pesa sobre asmulheres e os motivos que as devem levar a filosofar.

    Mesmo sem entrar na discussão, a meu ver extemporânea, dapossível veia pré-feminista de Eurípedes, não se pode ignorar queele escreveu esta peça e que essa situação tem de ter um significadono âmbito da representação das mulheres e das suas capacidades nomundo grego.

    Concluindo

    Sendo apenas uma pequena introdução a um vasto problema, oselementos acima mencionados representam demasiada agitação nopensar dominante para se poder considerar liminarmente a situaçãodas mulheres na Grécia apenas segundo o ângulo da dominação eda irrelevância cultural. Um levantamento mais sistemático e apro-fundado mostraria, certamente, um maior colorido de perspectivase uma nova lista de nomes para lá dos velhos conhecidos da lite-ratura canónica. Urge desenvolver entre nós incursões no terreno

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    da filosofia e da cultura grega para “desocultar algumas possibi-lidades não desenvolvidas do passado” e, assim, aprender a narrarde outra maneira as nossas raízes.

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    Sentido e legitimidade da busca de uma conceptualização do feminino e das mulheresRe-significando saberes velhosUniversal neutro/falso neutroA não aceitação da proposta platónica sobre a Cidade JustaMinimizar, denegrir e ridicularizar as mulheres notáveis do Mundo AntigoAlguns insólitos da cultura gregaConcluindoReferências bibliográficas