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PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 1 CONDIÇÃO HUMANA, NATUREZA E ENERGIA PROPOSTA PEDAGÓGICA Para conseguirmos avançar nestes assuntos, e nestes campos de pesquisa, debate e atuação profissional, temos que começar tornando mais precisos, rigorosos, e mais consistentes os conceitos empregados, as expressões conceituais, nossas “ferramentas” de trabalho. Temos que esclarecer as conotações e as delimitações das palavras e dos conjuntos de palavras. Mais que isto, temos que estudar e questionar as estruturas explicativas, as argumentações e não apenas aceitá-las – ou recusa-las - baseando-se apenas na intuição, ou pior, mimetizando e repetindo o que não conhece direito, aquilo que outros dizem...ou repetem... Afinal, o “jargão” é atraente, são expressões técnicas e formas discursivas que ouvimos e lemos tão freqüentemente, e temos “naturalmente” a tentação de também utilizar em nossos textos e conversas. Por outro lado, o assunto tem de fato importantes aspectos técnicos e comerciais, e tudo isso necessita de jargões e de “gramáticas” próprias. Nesse sentido, estou propondo uma alteração ainda não oficial, na denominação da própria disciplina, e que foi iniciada no segundo semestre de 2004, com a disciplina de Tópicos Especiais oferecida nesta área de pós-graduação e que prosseguiu com o módulo que ofereci no curso de extensão “Jornalismo cientifico e energia”, no Labjor, Unicamp. As mudanças em relação aos temas originais são: * ao invés de a Energia no início da expressão, colocá-la ao final ; *ao invés de Sociedade e Ambiente, nesta “edição 2005” da PE 107 priorizaremos Condição Humana e Natureza. Na transição do foco Sociedade para o foco Condição Humana, alteram-se escalas de valor, juízos de valor, sem no entanto perder a perspectiva do coletivo, e do viver em sociedade. Não são abandonados os estudos sobre a sociedade nem são desprezados conceitos fundamentais para explicar e interpretar as sociedades, ou abstratamente a Sociedade. Pensando na sociedade e também, ao mesmo tempo, na condição humana, sabemos que nossas trajetórias são individuais sim, mas, sempre os indivíduos estiveram e estarão imersos em grupos familiares, em grupos e em classes sociais, muitos cuidando de suas atividades cotidianas, de reposição, outros trabalhando nas atividades reprodutivas da coletividade, nos serviços públicos e nos serviços privados. Outros trabalham nas atividades empresariais, subordinando-se como assalariados ou como prestadores de tarefas às organizações do tipo empresa capitalista, uns poucos gerenciando e menos ainda, dirigindo tais organizações.

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PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 1

CONDIÇÃO HUMANA, NATUREZA E ENERGIA PROPOSTA PEDAGÓGICA

Para conseguirmos avançar nestes assuntos, e nestes campos de pesquisa, debate e atuação

profissional, temos que começar tornando mais precisos, rigorosos, e mais consistentes os

conceitos empregados, as expressões conceituais, nossas “ferramentas” de trabalho.

Temos que esclarecer as conotações e as delimitações das palavras e dos conjuntos de

palavras. Mais que isto, temos que estudar e questionar as estruturas explicativas, as

argumentações e não apenas aceitá-las – ou recusa-las - baseando-se apenas na intuição, ou pior,

mimetizando e repetindo o que não conhece direito, aquilo que outros dizem...ou repetem...

Afinal, o “jargão” é atraente, são expressões técnicas e formas discursivas que ouvimos e lemos

tão freqüentemente, e temos “naturalmente” a tentação de também utilizar em nossos textos e

conversas. Por outro lado, o assunto tem de fato importantes aspectos técnicos e comerciais, e

tudo isso necessita de jargões e de “gramáticas” próprias.

Nesse sentido, estou propondo uma alteração ainda não oficial, na denominação da própria

disciplina, e que foi iniciada no segundo semestre de 2004, com a disciplina de Tópicos Especiais

oferecida nesta área de pós-graduação e que prosseguiu com o módulo que ofereci no curso de

extensão “Jornalismo cientifico e energia”, no Labjor, Unicamp.

As mudanças em relação aos temas originais são:

* ao invés de a Energia no início da expressão, colocá-la ao final;

*ao invés de Sociedade e Ambiente, nesta “edição 2005” da

PE 107 priorizaremos Condição Humana e Natureza.

Na transição do foco Sociedade para o foco Condição Humana, alteram-se escalas de valor,

juízos de valor, sem no entanto perder a perspectiva do coletivo, e do viver em sociedade. Não são

abandonados os estudos sobre a sociedade nem são desprezados conceitos fundamentais para

explicar e interpretar as sociedades, ou abstratamente a Sociedade.

Pensando na sociedade e também, ao mesmo tempo, na condição humana, sabemos que

nossas trajetórias são individuais sim, mas, sempre os indivíduos estiveram e estarão imersos em

grupos familiares, em grupos e em classes sociais, muitos cuidando de suas atividades cotidianas,

de reposição, outros trabalhando nas atividades reprodutivas da coletividade, nos serviços públicos

e nos serviços privados. Outros trabalham nas atividades empresariais, subordinando-se como

assalariados ou como prestadores de tarefas às organizações do tipo empresa capitalista, uns

poucos gerenciando e menos ainda, dirigindo tais organizações.

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O “gancho” principal não mudou porém: a sociedade e a condição humana estão articuladas

com o conceito de Energia. Por isto, dentre todos vão nos interessar aqueles que trabalharam, no

passado, os que trabalham hoje e os que, no futuro, trabalharão - na obtenção e na fabricação de

materiais e na fabricação de máquinas e sistemas que integram as cadeias econômicas dos

combustíveis e da eletricidade.

E não somente todos os trabalhadores das empresas e serviços organizados com tais fins, mas

também todos aqueles que foram e que serão direta e indiretamente afetados por tais atividades: a

começar pelos vizinhos de todas as instalações específicas destas atividades, e das suas rotas no

território.

Com isto, temos que pensar em todos e em tudo que ali estava antes que viessem se instalar

estas atividades específicas (combustíveis e eletricidade):

os moradores antigos, fossem ou não proprietários, os posseiros, os quilombeiros

(remanescentes de quilombos, redutos de negros fugidos da escravidão),

os povos nativos, em geral grupos e nações indígenas, pensar nos donos de verdade e nos

donos de papel falso (grileiros).

E como ficaram esses lugares e essas pessoas “depois” que ali se instalou e começou a

funcionar uma atividade relacionada aos combustíveis e à eletricidade?

Enfatizando a sociedade e a condição humana, é bom reconhecermos que sempre fomos, e

somos cada vez mais dependentes de energias naturais – extraídas da radiação solar, colhidas da

matéria viva e fossilizada, da matéria inorgânica e - da energia interna do Planeta - para conseguir

manter a própria vida, e para todas as demais realizações.

Nesse ponto, demarcar que essa colheita ou obtenção da energia do modo que nos é útil

demanda também o nosso trabalho. Por isso, temos que pensar naqueles indivíduos, famílias e

outros coletivos humanos que se relacionam comercialmente com os combustíveis e com, a

eletricidade, ou seja, quase todos nós usuários, compradores, ou como quer o discurso dominante

– consumidores.

E obrigatoriamente, vamos pensar no consumo de materiais e de energia em todas as demais

atividades econômicas e não econômicas, civis e militares, portanto, nas atividades de guerra, e

mais, nas atividades construtivas e destrutivas, legais e ilegais, morais e imorais, desumanas, e até

as atividades anti-humanas. Pois... afinal estamos refletindo

- sobre a condição humana, a nossa própria e a de toda a humanidade.

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Pontos de vista. Como outros debates persistentes na sociedade, o debate sobre energia, a

questão energética, a crise energética, a escassez de combustíveis ou a auto-suficiência, o

“apagão” da rede elétrica, as fontes ditas renováveis,... é bastante ideologizado.

Entenda-se que: os argumentos e os discursos que hoje lemos e escutamos comportam

grandes e variadas doses de ideologia, por exemplo, da ideologia do progresso, da ideologia do

desenvolvimento, da ideologia empresarial, e várias outras.

Aí reside justamente uma grande dificuldade pedagógica no ensino e também se trata de uma

verdadeira armadilha metodológica nas pesquisas sobre energia.

Não vamos tentar contornar fugindo desta dificuldade, nem podemos cair cegamente na

armadilha. Ao contrário, essa ideologização do debate energético será como um “prato básico” de

todas as aulas, porque é alimentado pela “mídia”, por uma boa parte da "academia".

A ideologização está presente nos modos de escutar, de ler, e por conseguinte, está também

nos modos de perguntar e de argumentar (dos próprios estudantes). E nas apostilas, teses e nos

“papers”.

Exatamente por isso o tema será trabalhado com profundidade, por meio da leitura e do estudo

de autores que vão alargar os pontos de vista e que vão tratar de questões consistentes,

relevantes, não apenas discursivas e ideológicas.

É preciso reconhecer por isto também, a existência de diferentes – e as vezes divergentes –

posições de classe sócio-econômica, e se entrecruzando com elas, os posicionamentos e doutrinas

tipicamente profissionais. Por exemplo, em nosso caso, somos estudantes e professores de nível

superior, estando implícito um tempo maior de escolaridade e algum aprofundamento em algum ou

alguns campo(s) do conhecimento.

Pois é disto que se trata, as nossas atividades – fim são o aperfeiçoamento e a transmissão do

conhecimento, e alguns pretendem até que estejamos no campo científico. O que nos permite

acrescentar vários comentários apimentados:

Se assim for, lembremos que a Ciência historicamente foi feita a partir da curiosidade e da

dúvida, e não da certeza.

Feita numa rota humana e social da premência e da oportunidade e não da rota forçada do

lucro e da inexorabilidade.

Cientistas e estudiosos diferenciados estiveram mais no campo da crítica, e até do desafio

(como Galileu e Einstein), embora vários também se destaquem no elogio dos poderosos, das

autoridades e das empresas.

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É mais provável que o conhecimento avance movido pelo conflito reconhecido, e pela

independência das partes, do que - por meio da colaboração cega ou remunerada ...com aqueles

que justamente trabalham contra este modo de fazer Ciência.

Em termos de posição profissional, todo o debate sobre energia, e recentemente, sobre energia

e meio ambiente, é dominado por engenheiros, físicos e economistas arraigados, que tratam os

demais campos do conhecimento como “o resto” . Estes cidadãos restantes são vistos pela

ideologia dominante como necessariamente “leigo”, e como tal, teriam que aceitar a inexorabilidade

dos projetos que eles (os conhecedores da viabilidade) consideram viáveis e oportunos.

Do outro lado, para esta mesma ideologia dominante, aos humanistas e cientistas sociais

caberia, para serem permitidos, que eles tratassem com os assuntos da sociedade, da vida coletiva

e da presença de um Estado, de uma Lei.

Blindagem diante da sociedade conflituosa. Ao mesmo tempo, a evidência e a demonstração

que tantos cientistas sociais e humanistas trazem à luz, - de que no rumo da sociedade e da

humanidade também pesam os aspectos culturais, as crenças, as etnias... - vão sendo negadas e

ou menosprezadas por essa mesma ideologia dominante, que assume a viabilidade técnica e

econômica como prioridade indiscutível.

São os tecnocratas que se tornam “blindados” diante das pressões políticas e culturais mais

amplas e mais profundas, - aquelas que são consideradas normais, cabíveis e até instigantes por

um estudioso que seja verdadeiramente científico, qualquer que seja o seu diploma de graduação...

Para nos auxiliar na reflexão, transcrevo frases recentes de intelectuais que presentes em um

evento diversificado e polêmico, o Fórum Social Mundial em Porto Alegre, fazem avançar o

conhecimento justamente pela capacidade de crítica ao lançar pontes entre fatos complexos.

Conforme as palavras da psicóloga Maria Rita Kehl, em entrevista a agência eletrônica Carta

maior, em 28 de janeiro de 2005, tratando do problema da identidade dos grupos profissionais, dos

grupos ideológicos e culturais, enfim, das “tribos”:

“A adesão a um grupo identitário dificilmente deixa de produzir intolerância; fechamo-nos junto aos que elegemos como nossos idênticos, e não admitimos – a não ser, no melhor dos casos, com benevolente indiferença – nenhuma relação com o outro, nosso semelhante na diferença. As políticas identitárias são uma conseqüência lógica da sociedade do narcisismo.

Acima das identidades grupais está nosso pertencimento coletivo à espécie humana; acima dos interesses dos pequenos grupos estão a solidariedade e o reconhecimento de todos os diferentes como nossos semelhantes”.

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Conforme a análise do economista Ricardo Carneiro, em artigo na agência eletrônica Carta

Maior no mesmo dia 28 janeiro 05, ao discorrer sobre uma conquista peculiar do conhecimento

humano, que é a análise acurada do sistema monetário e capitalista moderno, feita pelos

expoentes do campo científico chamado de Economia política, - e que a doutrina hoje dominante

tenta desqualificar e neutralizar:

“A oposição entre sociedade e mercados financeiros pode parecer uma criação da esquerda radical, mas, não é. Ela foi um tema crucial da reflexão do maior economista do século XX, o britânico J. M. Keynes. Tanto ele quanto um século antes, Karl Marx, perceberam com acuidade o caráter contraditório da moeda nas sociedades humanas.

De um lado, um instrumento de facilitação das trocas e de denominação dos contratos e, portanto, uma alavanca do desenvolvimento. De outro, veículo de acumulação da riqueza e provocador de distúrbios”.

E, para voltar quase trinta anos no tempo, registrar a propriedade, a justeza e a atualidade que

persistem nas formulações da doutora Laura Conti, médica sanitarista e parlamentar italiana.

Publicou nos anos 1970, os seus pequenos tratados médico-sociais e geográfico-ambientais, dos

quais foi traduzido no Brasil apenas o “Ecologia, Capital, trabalho e Meio Ambiente”. Naquela época

em que se despertava mundialmente para os “males do progresso”, o “terceiro mundismo”, para os

acidentes de grandes proporções, incluindo as nuvens tóxicas e contaminações de grandes rios e

mares, ela re-introduz o mesmo debate falando dos mecanismos que existem e atuam

independentemente de nossa percepção,cujo conhecimento cientifico e popular podem se

potencializar, e relembrando da vontade de transformar mesmo havendo um passivo tão pesado a

resolver.

Referência para leitura obrigatória e resenha escrita - R 1 CONTI, Laura “Ecologia, Capital, Trabalho e Meio Ambiente” 1977,Hucitec, S. P.1986. [capítulos selecionados: cap I – O objeto deste livro : os mecanismos e a vontade pp 11-14; cap. II As águas pp. 15-23 cap III. O ciclo da matéria e o fluxo da energia, pp.53-101] Aproveitamos a seguir um texto mais conceitual, com uma análise recente dos fatos, abordando

justamente esses distintos pontos de vista, só que tomando com exemplo delimitado o âmbito da

energia elétrica no Brasil. O texto foi elaborado por mim para ser depois utilizado na formação de

técnicos e militantes de entidade de tipo sócio-ambiental. Não sei se foi...

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Processo de eletrificação: guerra econômica e interesses sociais1

1. A eletricidade nos permite usufruir um conjunto relevante de benefícios técnicos:

- o eletromagnetismo e por meio dele, a força-motriz e também a emissão e transmissão

de ondas como no telefone, no rádio, no radar,

- mais a gravação, amplificação e reprodução dessas ondas, da imagem, do som...

- mais o calor, a luz, a separação e até a fundição de materiais obtidos pela passagem da

corrente elétrica.

Os negócios da eletricidade devem ser compreendidos dentro de uma perspectiva realista:

- está sendo vendido e comprado um tipo de serviço valioso, que somente pode ser

obtido deste ou daquele modo, dentro de um leque limitado de possibilidades.

Energia que será obtida, fisicamente, por meio de um ou outro tipo de conversor de energia, e

também são poucos tipos, que permitem colher, aproveitar uma pequeníssima parte da energia

natural do planeta e de alguns materiais, os combustíveis. Esta é a parte que os estudiosos e

estatísticas tratam como fonte primária de energia.

A energia elétrica assim obtida será conduzida, bombeada, despachada, [com os seus valores

numéricos de freqüência, de voltagem ou diferença de tensão, de corrente elétrica dentro de

limites especificados, estreitos], até os numerosos pontos onde ficam os consumidores.

Ali então...a eletricidade será finalmente gasta por meio de um ou outro tipo de conversor, para

que se possa atingir este ou aquele tipo de uso, chamado pelos técnicos de uso final.

2. Conversores para eletricidade, os sistemas de suprimento de eletricidade e os

conversores de eletricidade sempre custam caro para fabricar, instalar e para manter operando.

Dentro de certas condições e gastando-se com sua manutenção, os geradores, transformadores,

capacitores, cabos de transmissão, fios de distribuição, chaves disjuntoras, motores, etc podem

manter seu desempenho durante muitos anos, até décadas. Fora desses casos, a depreciação e o

desgaste dessas instalações e equipamentos aumentam, aí eles tendem a funcionar mal, cair em

pane, interromper o serviço, e podem empenar, enferrujar, quebrar, explodir, se acabar.

1 As organizações não governamentais atuando no Brasil, têm analisado os problemas ambientais e sociais da eletricidade, e, desde o tempo do Global Fórum, no RJ, junho de 1992, fazem campanhas, divulgam declarações, cartas abertas, prospectos, cartilhas e livros sobre esses temas. A ênfase mais freqüente é pelo lado da oferta (por isso falam tanto em fontes de energia), e a presunção é de ser portador de uma nova racionalidade, de novos conversores, sistemas e até engenhocas; como se estivessem tentando convencer cidadãos, governos, a sociedade e o mercado para que adotassem tais novidades. Este roteiro é mais uma tentativa do autor (após tantos anos interagindo com pessoas das ongs) de romper o equívoco de interlocutor que podem incorrem as ongs, de superar o descolamento do real, o real da sociedade conflitiva, da economia em guerra. Foi proposto pelo prof Oswaldo Sevá no painel Energia para uma Amazônia sustentável – FASE, em agosto de 2004

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A cadeia produtiva envolve materiais tradicionais e contemporâneos, tecnologias especializadas

e de ponta, com alta intensidade de capital; é um negócio internacionalizado desde sua origem, na

2a. metade do século XIX.

Ao enfatizarmos a seqüência de todas as conversões até passarmos pelo último uso

aproveitável da energia e chegarmos, é bom levar em conta que:

- em cada uma destas conversões, sempre haverá fluxos de energia necessariamente

perdidos, dissipados, -do ponto de vista do sistema que estamos analisando – ou seja, fluxos

descarregados além da fronteira, do perímetro do sistema, em outros corpos, em outros sistemas.

3. Nesta cadeia produtiva, fazemos parte de um mercado nacional importante, formado por

numerosos grandes centros de carga elétrica (regiões metropolitanas e consumidores industriais de

grande calibre), que expressam mercados regionais e locais significativos. Em todos os níveis, as

decisões se tomam e se tentam implantar sob um clima de verdadeira guerra econômica, cujos

objetivos podem ser sintetizados pelo avanço/ ampliação do processo de eletrificação da sociedade

e da economia. Aí se encaixam os mecanismos da inclusão mercantil (inclusão de usuários ou de

empresas que ainda estão fora do mercado convencional de eletricidade, o mercado dominado

pelas grandes empresas), e da centralização dos fluxos de dinheiro - o quê permite jogar com a

renda hidráulica (das usinas hidrelétricas com aproveitamento bem acima da média, e em geral,

das usinas já amortizadas, que geram a chamada “energia velha”); e também os mecanismos de

transferências de receitas e de despesas entre classes de consumidores, e entre empresas.

É a dimensão do mercado total de energia elétrica que torna tão cobiçada essa “jóia da coroa”:

o consumo total está agora no patamar de 320 bilhões de kilowatts X hora a cada ano; se

todos pagassem os 335,50 reais que pagamos em casa por cada 1.000 kWh ou 1 MWh, aí a fatura

atingiria quase 110 bilhões de reais, algo da ordem de 35 a 36 bilhões de dólares por ano.2. Há

muita eletricidade que é paga na base de tarifas bem menores, alguns contratos industriais são

feitos na faixa de 60 a 70 reais o MWh, por isto, o tamanho real do mercado talvez esteja perto da

casa dos 28 a 30 bilhões de dólares.

Ora, empresas de eletricidade existem para vender, transmitir ou re vender eletricidade com o

máximo possível de lucros, e estão todas disputando fatias de qualquer largura deste bolo3.

2 [minha base de cálculo tem o dólar valendo em torno de 3 reais, e as tarifas são as que estavam em vigor pela resolução Aneel 085, de 07 de abril de 2004, para consumo residencial monofásico, onde eu resido, Campinas, SP, na área da concessionária CPFL: 327,01 reais por mil kWh consumidos + 8, 50 reais de encargo de capacidade emergencial ] 3p.ex., uma fatia de 0,01 % deste bolo representa em um ano 2,8 milhões de dólares, ou 8,4 milhões de reais anuais; cada fatia de 1% de tal mercado pode significar um faturamento anual de 840 milhões de reais, 2,3 milhões de reais ao dia!

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Numa disputa deste peso, as estratégias são bem variadas. Vejamos alguns exemplos:

* se a eletricidade necessária pode ser obtida por alguém ou por algum empreendimento que

tem acesso a uma fonte primária de energia e que tem meios para investir, torna-se desnecessário

ou opcional, para tal pessoa ou empresa, comprar de uma empresa elétrica;

* se uma empresa já atende tal localidade, cidade, ou região, por menor que seja, digamos os

mercados de eletricidade dos Estados do Acre, ou do Tocantins, é possível que uma segunda ou

uma terceira empresas tentem obter posições naquele mercado já formado;

* se, numa dada região, houver LTs suficientes para o intercâmbio de blocos de energia, pode

ser trazida eletricidade de fora da região; em conseqüência, os geradores das usinas locais podem

ser - ou não – desligados;

* após uma região ser interligada a um sistema maior, inter-regional, o suprimento pode ou

não ser mais firme do que antes; o custo e a tarifa podem ou não ser mais baixos.

À primeira vista, parece complicado, mas para esclarecer, basta tratarmos este processo

histórico e geográfico de eletrificação como um campo de guerras econômicas entre grupos

humanos e instituições, representando ou articulando frações do capital. Esse processo de

eletrificação, iniciado entre nós na década de 1880 e ainda não completado, demonstra um enredo

denso de lutas entre classes, incluindo as lutas pelos recursos do planeta.

O que é lógico, pois não se obtém eletricidade comercial se não estiverem assegurados ou

obtidos de algum modo, o acesso aos rios e terras ribeirinhas, e o acesso aos estoques de

combustíveis, sejam os plantados e os coletados, sejam os minerados.

4. O resultado dessa guerra econômica poderia ser avaliado pelos indicadores de

concentração de poder econômico, observando-se a atuação dominante dos oligopólios e dos

monopólios, e também a variação das cotações das ações de empresas elétricas. De todo modo,

são indicadores daquilo quê realmente interessa para os grupos capitalistas: o ritmo e o montante

de acumulação de capital oriundo dos lucros e das rendas desta atividade – gerar, transmitir e

vender eletricidade.

O capital assim acumulado pode ou não ser posteriormente aplicado nessas mesmas atividades.

São marcas próprias desse sistema a diversificação das aplicações de cada grupo capitalista

(carteiras, portfolios) e a livre circulação dos capitais entre setores e entre locais.

No Brasil, o campo econômico dos negócios elétricos, desde a fase pioneira do final do século

XIX até uma terça parte do século XX, estava sob o firme controle estrangeiro (na prática, os

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mercados maiores estavam sob o duopólio Amforp – Light). No decorrer de cinqüenta anos, até a

década de 1980, passou a ser dominado quase exclusivamente por empresas federais (as mais

conhecidas são Furnas, Chesf, Eletrosul, Eletronorte, Itaipu) e empresas estaduais (as mais fortes

eram a Cesp, a Cemig, a Copel, no PR, a Ceee no RS).

O quê se passa hoje é bem distinto, resulta da investida neoliberal internacional iniciada nos

anos 1980 e que ainda prossegue: houve uma retração sensível dessas empresas estatais

federais na expansão do sistema, junto com o esquartejamento sistemático das empresas

estaduais, incluindo a maior delas (Cesp) e a perda parcial de controle estatal da segunda maior

(a Cemig).

Foram privatizados praticamente todas as empresas de distribuição de eletricidade e vários

segmentos específicos de transmissão, p.ex., os que resultaram da cisão da Eletrosul e da Cesp

(Cptee). Ocorreu a privatização de uma empresa federal importante na área de geração (Eletrosul,

segmento Gerasul), mas não se concretizou a privatização prevista da Eletronorte, nem a da Chesf

e nem a da empresa Furnas.

O capital estrangeiro teve uma presença crescente desde quando o governo FHC contratou a

consultoria do escritório inglês Coopers & Lybrand, e , dez anos depois, chega dominar um bom

pedaço do mercado. O delineamento de re-estruturação do setor elétrico delineado por este

escritório internacional começou de modo avassalador no Governo Cardoso-Maciel, que teve de

fazer algumas adaptações e foi deixando vários problemas pendentes pelo caminho, que eclodiram

na crise de oferta de eletricidade em 2001, apenas em parte explicável pelo déficit de água na

bacia de alguns grandes rios.

Por esta via, as duas maiores empresas, a Light Rio e a antiga Light SP (chamada então de

Eletropaulo) passaram para o controle da maior empresa francesa do setor, a EDF, e de duas

grandes americanas, a Houston HIE e a AES. No caso paulista, o segmento Bandeirante foi em

parte adquirido pela portuguesa EDP e isto apenas comprova ainda mais a chegada dos maiores

grupos europeus na área de eletricidade: os espanhóis Iberdrola e Endesa, que já vinham

adquirindo empresas argentinas e chilenas na mesma época, o belga Tractebel.

Empresas norte-americanas aqui chegaram pela 1a vez para adquirir sociedade nas

distribuidoras estaduais de eletricidade e de gás, algumas delas se aventurando pelos projetos de

investimento em termelétricas a gás, foi o caso da mal afamada Enron, presente em SP

(distribuidora Elektro), em usinas no MT e no RJ, e também da Duke Energy (Cesp Paranapanema),

da Florida Power &Light (usina em Três Lagoas), da El Paso, que está com usinas em Porto Velho

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no RJ, que dominou nos últimos seis anos o mercado em Manaus, e cuja usina a gás em Araucária,

PR, é o pivô de um grande litígio jurídico movido pelo governador Requião).

Registramos ainda várias outras empresas menores como a “chilena” (de fato, de capital

espanhol) Endesa, que comprou a única central elétrica de maior porte (Cachoeira Dourada, no rio

Paranaíba) da empresa estadual goiana , a CELG; a espanhola Guascor que abocanhou os

mercados dispersos do interior de Rondônia e Acre, como terceirizada das empresas Ceron e

Eletroacre, beneficiando-se de um subsídio excepcional na compra do seu principal insumo, o óleo

diesel para os motores das suas centrais. (a chamada CCC – Conta de Consumo de Combustível do

setor elétrico, por meio da qual os custos maiores das termelétricas são repassados a todos os

consumidores de eletricidade vinda das hidrelétricas).

É verdade que o capital brasileiro não foi completamente anulado, pois algumas empresas

privadas e importantes grupos, que ainda resistiam no setor elétrico mesmo durante a fase estatal,

se transformaram, em agentes econômicos de 1a. grandeza, atuando em geral como sócios das

estrangeiras e por meio de grande alavancagem do financiamento público4

Algumas bem conhecidas são:

a empresa mineira Cataguases-Leopoldina, que detém as distribuidoras de Brasília e da Paraíba;

as empresas paulistas Bragantina, Jaguari, “Paulistinha” que formaram o grupo Rede, sócio

majoritário ou importante na Cemat, na Celpa, na Celtins;

o grupo industrial Votorantim que já operava suas próprias usinas no vale do Juquiá, SP e

detinha o controle da Cherp, em Santa Cruz do Rio Pardo, no meio oeste paulista, se juntou com os

grupos Bradesco e Camargo Correa (que construiu muitas usinas e era sócio de empresas eletro-

intensivas no Pará e no Maranhão) formando o grupo VBC;

esse grupo VBC durante o processo de privatização se tornou sócio majoritário ou importante

da CPFL no interior paulista, de Campinas a Rio Preto, e participou da partilha das antigas

Eletropaulo (ficou com o segmento Bandeirantes) e CEEE, no RS (ficou com o segmento RGE, no

Norte do estado); depois se associou com Furnas para operar a usina Serra da Mesa, GO, e

expandiu sua geração com novas usinas na bacia do rio Uruguai, SC, RS;

o grupo Vicunha-CSN, que se associou aos franceses e norte-americanos na Light RJ e na

Eletropaulo Metropolitana.

Compilando-se os leilões de 19 empresas de distribuição elétrica de âmbito estadual entre 1995

e 2000, cujo atendimento passava de 60 % de todo o mercado nacional, o pesquisador Célio

4.

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Bermann apontou uma transação total de 22,2 bilhões de reais, dos quais o BNDES tinha entrado

financiando quase 34%, e as fundos de pensão das estatais, o mais conhecido é o Previ(Banco do

Brasil) entraram com quase 14%.5

Alguns grupos empresariais se destacaram por se tornarem donos de usinas hidrelétricas ou

termelétricas, na condição de autoprodutores de energia (p.ex. as metalúrgicas Alcan, Ebesa, CBA,

do grupo Votorantim, várias fundições de ferro-ligas) e em alguns casos, até como Produtores

independentes, em forma de consórcio (p.ex. a Usiminas, a Fiat, a CVRD, a Alcoa).

Menos conhecidas, mas merecem registro, são empresas novas ou subsidiárias específicas

criadas para disputar as licitações de usinas feitas pela agência reguladora ANEEL, como a Maggi,

do governador de MT, a Cassol, do governador de RO, e a tradicional Coteminas, do vice-

presidente da República, José Alencar, e tantas outras - que têm se apresentado como candidatas

a construir as dezenas de possíveis hidrelétricas licitadas pela ANEEL. Na maioria das vezes, trata-

se de projetos classificados como de pequena potência elétrica (PCHs, abaixo de 30 MW), mas que

vêm disseminando numerosos problemas fundiários, sociais e ambientais em muitos todos os

Estados brasileiros.

5. Do ponto de vista estratégico, que vai além do econômico, interessa mesmo para tais grupos

empresariais é o seu domínio político, que pode ser analisado em duas partes:

1) o domínio territorial, exercido através dos networks, das redes e malhas físicas, de

interligações, - o que permite cobrar tarifas como se fossem pedágios; tais grupos devem evoluir

para formar empresas tipo multi-utilities (p.ex. instalar cabos óticos nas LTs; abrir conexão internet

tipo banda larga, acoplada aos serviços residenciais; fazer sociedade específica com empresas de

água e esgoto, que são grandes consumidoras de eletricidade e de processamento de dados, ou,

com as empresas de transporte eletrificado, os metrôs e os trens).

2) o investimento cultural –ideológico, cada vez mais dispendioso e prioritário, que se

comprova freqüentemente no patrocínio de eventos e de produções culturais, de atividades e

eventos acadêmicos, nas publicidades institucionais, e até mesmo no uso da entrega de contas

mensais como veículo de propaganda; essa estratégia inclui ainda o aparelhamento de posições e

de contatos-chave nos governos, nos parlamentos, na Justiça, e, por meio de variados escritórios,

consultorias, clubes, seitas, vai se ramificando também pelo campo político-partidário.

5 (cf. BERMANN, 2002, “Energia para quê?para quem” p.46).

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 12

6. As conseqüências do processo de eletrificação progressiva nas regiões e no país,

para a sua população e para o seu território, são amplas, duradouras e diversificadas:

* as conseqüências ambientais [no caso das usinas térmicas e do moto-geradores, aumenta a queima de combustíveis nas caldeiras, nos

motores e nas turbinas; no caso das hidrelétricas, aumenta o desmatamento das barrancas e terras ribeirinhas, dissemina-se o represamento dos rios e o desvio de suas vazões, formando-se desse modo novos sistemas naturais que em parte passam a ser gerenciados pelas empresas, e em outra parte, ficam sujeitos às degradações de outras origens ocorridas nas suas respectivas bacias de captação, a montante de cada barragem];

* as conseqüências fundiárias [propriedades são esburacadas atrás de pedra e terra, glebas agrícolas e matas se tornam canteiros de

obras, são atravessadas por estradas e linhas de transmissão, ficam alagadas sob as represas; proprietários, meeiros, moradores são expropriados, enquanto algumas poucas glebas de terra se valorizam; de todo modo, quando há atingidos reconhecidos como tal, novas glebas rurais e urbanas têm que ser destinadas às populações deslocadas];

* as conseqüências sociais [a maior delas é a própria aceleração do uso da eletricidade, com repercussões em todos os setores da

vida e da atividade econômica, a síntese pode ser vista pela ampliação das jornadas (iluminação) e pelo avanço da mecanização nas indústrias e na reprodução doméstica e coletiva; mas é também marcante e vem junto com a eletrificação, o assalariamento de grandes contingentes humanos nos canteiros de obras, no suprimento de insumos para as obras, e na fabricação dos equipamentos das futuras centrais e LTs].

Devemos estar muito atentos a tais conseqüências, mesmo que para alguns tudo isto possa ser

aceitável, em função do valor simbólico do progresso. De fato, usar eletricidade parece algo já

adquirido pela sociedade em quase todo o mundo.

No nosso horizonte atual, o suprimento de eletricidade terá que ser providenciado e

administrado por muitas gerações, no longo prazo.

7. Neste panorama, é compreensível que muita gente se interesse pela situação atual e pelo

futuro da energia elétrica, não somente os diretores e os donos das empresas que lucram com os

negócios da eletricidade, não somente os estudiosos da energia e os engenheiros eletricistas.

Mas, é bom também discernir os distintos interesses dos vários grupos de cidadãos:

*Para quem tem o seu próprio sistema de suprimento, por meio de uma bateria, de um moto-

gerador portátil, de uma placa voltaica, de um mini-gerador hidráulico ou uma mini-hidrelétrica, ou

até de uma turbina a vento, - trata-se de fazê-lo funcionar de modo mais adequado à sua própria

demanda, trata-se de conseguir fazer a manutenção técnica correta para que o sistema continue

operando, de ter algum tipo de back-up para os períodos de paralisação técnica ou da energia

natural captada, trata-se de não ter custos muito elevados, nem muito imprevisíveis, e sempre que

possível, trata-se de recuperar o investimento feito num prazo não muito longo.

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 13

* Para quem já está ligado à rede elétrica da região, o problema é bem outro: trata-se de

pagar, de poder pagar e obter o serviço da melhor qualidade possível, sem interrupções, sem

oscilações que possam prejudicar ou queimar aparelhos e instalações, trata-se de poder pagar

tarifas menores, de poder usar aparelhos mais econômicos, mais duráveis

* Para quem não está ligado na rede, nem tem qualquer sistema próprio, e que estaria no

escuro total se não fosse o lampião, a vela ou a lanterna de pilha... as opções de melhoria são

duas:

**ou conseguir um sistema próprio – ou - ** conseguir se ligar à rede,

e depois, ...o problema passa a ser como bancar a continuidade desta ou daquela opção.

O desafio para a sociedade está em permitir que as opções continuem existindo, cuidando

muito bem das represas e usinas existentes, e ampliando o uso da eletricidade sem sacrificar

ainda mais os rios e os ribeirinhos; se possível, evitando-se o aumento da fossilização dos

combustíveis, preparando-se a transição para a nova era do combustível vegetal e dos resíduos.

A partir deste ponto, as entidades do movimento social, os ambientalistas têm uma

responsabilidade inédita de impulsionar, trabalhando contra a correnteza.

E mesmo assim, avançar!

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Pensamento, Doutrina, Poder no Passado e Hoje

Os estudos sérios sobre as relações entre a Natureza e a Sociedade não podem ser

despolitizados, sob pena de se tornarem ingênuos e crédulos - ou então, despolitizam-se de caso

pensado, e aí se tornam discursos fantasiosos, ilusionistas.

A Historia faz parte integrante do nosso campo visual e de pensamento ao estudar a Natureza,

a Condição Humana e a Energia , não há como ser a-histórico nem anti-histórico, seria um sinal

claro de incultura, além de desrespeito ao mundo dos que vieram antes de nós.

Nas demais edições deste curso, foi exigida a leitura de dois capítulos do historiador Eric

Hobsbawn, cujo período destacado foi no século XIX, a fase de 1848 a meados de 1870, no que

ele denomina “Era do Capital”. O historiador usando fontes primárias e secundárias da

historiografia oficial e também dos acervos culturais e populares, com base no método materialista

, demonstra a formação da sociedade de classes sob o capitalismo na Europa, comprova como

esses Estados e seus novos poderosos ampliavam a dominação sobre o “resto do mundo” e ilustra

como vão combinadas a industrialização, os transportes e a urbanização, e nisto como aumenta

exponencialmente a extração e o uso de combustíveis, lenha e carvão, e o início do petróleo.

Recomenda-se a sua leitura para os interessados; desta vez o livro foi retirado da lista de

referências da disciplina PE –107. 6

Da mesma forma, uma de nossas fontes para o estudo da história mais recente, no século XX,

o cientista político brasileiro Emir Sader, em cuja obra de referência tem como fio condutor a

trajetória ascendente da dominação imperialista e do poderio dos capitais multi-nacionais, e a

multiplicação dos focos e modos de resistência a esta pressão, nas chamadas “guerras do fim do

mundo”; além de destacar o surgimento da noção de subdesenvolvimento, e da manifestação dos

interesses comuns às várias populações da atual América Latina.

E, para a leitura obrigatória, manteremos a indicação do ultimo texto escrito pelo professor

Milton Santos, da Geografia da USP e visitante e homenageado em várias outras universidades.

Referência para leitura obrigatória e resenha escrita - R 2 SANTOS, Milton “Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal”,

Ed.Record , RJ, 2000. [selecionados I. introdução geral, pp 17-22 II- A produção da globalização pp 23 – 36 III – Uma globalização perversa pp. 37- 78]

6 HOBSBAWN, Eric “A era do Capital” Ed.Paz e Terra, SP, 5ª ed., 1997; e SADER , Emir “SÉCULO XX Uma

biografia não autorizada. O século do imperialismo” Ed. Fundação Perseu Abramo, 2000. SP.

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Deslocamento. De Meio Ambiente... para ... Natureza.

O foco das leituras e ênfases nesta disciplina PE 107 veio se deslocando: primeiro, há mais de

dez anos, respeitamos a expressão oficial do titulo da disciplina como Meio Ambiente, e ainda

repassávamos um pouco da chamada Questão Ambiental definida na pauta dominante: os

processos de licenciamento, os controles ambientais, padrões de emissões, políticas de recursos

naturais e de áreas protegidas.

Em pouco tempo, foi adotada a palavra Ambiente. Por vários anos, foi mantida a palavra e cada

vez mais outros temas foram pesando: a Poluição de origem industrial e da mineração, o Risco

técnico e os acidentes havidos, a contaminação aguda e a desconhecida, a adulteração do relevo, e

da crosta da terra, a situação comprometida e agonizante de rios e represas.

Durante anos fui também ver in loco alguns sintomas de tais “obras” das modernas cadeias

produtivas, visitar as catedrais e os arrasos destrutivos dos investimentos em eletricidade e em

combustíveis, em algumas indústrias grandes consumidoras de eletricidade e de combustíveis,

grandes produtoras de rejeitos, sucatas, e poluentes de todos os meios.

Não vi e pesquisei todos os casos mais importantes, mas sim um ou alguns de cada tipo; não

foi no país todo mas foi um pouco em vários Estados e bastante em poucas regiões problemáticas,

e que vêm sendo investigadas com maior continuidade, mais vezes ao longo dos anos. É o caso do

sul catarinense com os problemas do carvão mineral, da região em torno de Belo Horizonte e dali

pelo chamado “Quadrilátero ferrífero”, e é também o caso de instalações petrolíferas em algumas

regiões brasileiras. Cujas imagens serão vistas em sala de aula.

A experiência com os lugares ao contrário destes – com a Natureza ainda pouco adulterada,

gratificante e reveladora, nos levou a adotar alguns desses lugares, que se transformam também

em campos de pesquisa como por exemplo “as caixas d’água da chuva brasileira”.

A fusão dos estudos sobre as caixas d água artificiais que são as represas de hidrelétricas -

com os estudos sobre as caixas naturais que são os chapadões e serronas das regiões mais

chuvosas, indicava que a balança iria pender para o interesse atual sobre –

- como era e como veio se alterando a Natureza.

Melhor dizendo:

- como eram e como se alteraram alguns trechos do planeta que pude conhecer e estudar um

pouco melhor.

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Para os estudantes de Energia Sociedade Ambiente, em transição para Natureza, Condição

Humana e Energia...ficará a prescrição de ler capítulos de um longo livro do historiador Warren

Dean, [v adiante referência R 3], onde ele reconta a história brasileira e a Mata Atlântica, a história

dos homens ricos e pobres, nativos e transplantados nas muitas zonas da Mata que se estendem

do litoral do RGN à Serra do RGS. Resume este Brasil litorâneo e perto do litoral ao dilema

conservação e devastação, à necessidade de obter materiais de construção, para os barcos e as

casas, as pontes e os móveis, de se obter lenha e carvão, e à especulação das plantas e pedras

valiosas, mostra como a urbanização, a ferrovia e a hidrelétrica foram fatores de aceleração da

devastação, e não apenas o ciclo do café ou o ciclo da cana...

Referência para leitura obrigatória e resenha escrita - R 3 DEAN, Warren “A FERRO E FOGO. A História e a devastação da mata atlântica brasileira” Companhia das Letras, São Paulo, 1995. [ selecionados : “Nomadismo industrial, industrialismo predatório”, cap.11.

pp. 254 –279 ; e “O imperativo do desenvolvimento”, cap.12 pp. 280-306 ]

E também, a de ler textos de três antropólogos destacados: um texto em co-autoria, de

Eduardo Viveiros de Castro e Lucia Andrade, que é o capitulo de abertura do importante livro

publicados em 1988 sobre “As hidrelétricas do Xingu e os povos indígenas”, e outro conjunto de

pequenos textos, de introdução e de fechamento de um notável esforço coletivo de conhecimento,

coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Almeida. [ver as referências R 4 A e B]. Em

ambos os casos, cujas datas de edição são relativamente próximas(1988 e 1994), a Natureza é a

Amazônia, e a Sociedade é a brasileira do final do século XX, as empresas são as mesmas de hoje,

e o seu poderio já era tremendo...enquanto resistem, e apesar de tudo, se multiplicam indígenas,

caboclos, beiradeiros e posseiros, assentados e colonos.

Referências para leitura obrigatória e resenhas escritas - R 4 CASTRO, ANDRADE - e – ALMEIDA CASTRO, Eduardo V., ANDRADE, L. R 4 A “Hidrelétricas do Xingu, o Estado contra as sociedades indígenas” , cap. I do livro “As hidrelétricas do Xingu e os povos indígenas” SANTOS, L. e

ANDRADE, L. (orgs.) Comissão Pró - Índio de SP, São Paulo, 1988. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de R 4 B “Carajás: A Guerra dos mapas” Editora Falangola, Belém, 1994 selecionado : capa, orelhas, pgs iniciais até pg 64: Apresentação, Introdução, Unidades de Conservação ambiental e

Reservas Extrativistas” , e Considerações Finais ,pgs. 325 a 329

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 17

Armadilhas, hipocrisias. Justamente lendo os escritos dos antropólogos conhecedores da

condição humana e imersos no mundo social e político de sua época, é que passamos a tomar a

devida distância e passamos a olhar com a saudável dúvida todo esse moderno aparato ambiental

criado pela máquina federal e em parte incorporado às Constituições federal e estaduais.

Aparato ideológico refinado em que o ambiente inclui o social, em que a obra projetada vira

sujeito e todo o restante, que apresenta interferências com a obra majestoso e onipresente, vira

área ou população impactada. Vai daí que qualquer obra pode ser autorizada obter sua licença

ambiental desde tais impactos negativos sejam superados pelos assim chamados positivos, ou

então que possam ser mitigados.

A obrigatoriedade de requerer licença ambiental com base no Estudo de Impacto Ambiental,

que foi incorporada às Constituições de dezesseis, dezessete anos atrás, veio sendo adaptada,

adulterada, desfigurada pela prática brasileira, entenda-se pratica das empresas e das agencias

governamentais no Brasil.

A agência maior, o federal IBAMA, o conselho Conama, e seus equivalentes nos estados se vêm

a cada dia diante e dentro de armadilhas, uma delas é justamente a impossibilidade das agências

ambientais se responsabilizarem e cuidarem do enorme passivo social. Passivo construído como

conseqüência de muitos projetos já licenciados e em operação, ameaça ainda maior pelo aumento

desse passivo, com a concessão de novas licenças para projetos que têm esta capacidade nefasta

de provocar prejuízos à população em geral por serem “sumidouros” de dinheiro público, e na

prática mecanismos concentradores de renda.

Passivo medido pelo acúmulo de prejuízos e de constrangimentos a outras atividades

econômicas, chegando a inviabilizar várias delas, medido pela dura realidade em que os projetos

incomodam pelo barulho e pelo mau cheiro, desvalorizam suas casas e terrenos, infernizam

moradores atuais e futuros de determinados locais, de certas rotas.

Passivo formado pela violência de expulsar e de transferir pessoas, de destruir, alagar, soterrar

seus patrimônios compulsoriamente, de comprar por preço “bom” que, para o vendedor, é aviltante

e pode jogá-lo na miséria.

Por isso, as agências ambientais têm tão pouco a dizer sobre tais problemas, e chegam a fugir

deles... e por isso mesmo, cada vez mais advogados, Promotores Públicos, Procuradores federais e

Juízes têm atuado nas situações conflitivas criadas pelos empreendimentos.

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 18

Na linha das armadilhas, outras vieram sendo construídas tijolo a tijolo, de modo estudado,

estratégico, ao longo dos anos 1980, 1990 e agora neste início de século: o ambientalismo

empresarial – concebido e praticado dentro das empresas e nas suas relações com a opinião

pública - e o ambientalismo pró-empresas dominantes – que se espraia por quase todas as

instâncias inclusive nas agências que deveriam ficsalizar e controlar a poluição e o uso dosolo, dos

rios, das águas, inclusive no seio do movimento social (p.ex. ONGs fantasmas, laranjas, e outras

que são legítimas e representativas mas que são pró-empresariais por opção, ou que se tornaram

porque foram compradas com objetos, dinheiro e prestigio oferecidos por empresas).

Tudo isso é encoberto insistentemente, como uma verdadeira cortina de artilharia, com a

propaganda enganosa, auto - elogiativa, aquela dos prêmios auto-atribuídos, aquela do logro

sofisticado dirigido justamente às vítimas, além da maquiagem especial para os visitantes que

devem sempre sair maravilhados com o que viram e ouviram.

E muitas vezes, a lubrificação deste enredo potencialmente cheio de atritos e arestas é ainda

assegurada pelo assistencialismo das empresas com os nativos, exatamente com aqueles que

foram e serão prejudicados com a “chegada” da empresa ou do projeto em suas terras, suas

praias, seus rios.

Neste campo, surgiu e vai se consolidando o Direito Ambiental, que pode muito bem ser

estudado em português no compêndio tantas vezes re-editado e ampliado, do professor Paulo

Afonso Leme Machado7 , da Unimep e da Unesp, antes Promotor Público. Especificamente os

mecanismos e formalidades do licenciamento ambiental podem ser compilados no livro organizado

pelos geógrafos, professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Roberto Verdun e

Rosa Medeiros 8, já na 4a. edição.

Enquanto que as deformações desse processos de licenciamento, já comentadas,

particularmente as que ocorreram com os projetos de grande porte (projetos de centrais

hidrelétricas e termelétricas, de grandes instalações industriais, de mineração, de obras hidráulicas)

serão comentadas no meu texto 8 A, apresentado em 2004 no encontro nacional da Anppas-

Associação de Pesquisa em Ambiente e Sociedade.

Por aí vemos como é promissor este caminho de volta, deixando para trás os problemas hoje

considerados como do Ambiente e revalorizando os verdadeiros problemas da Natureza.

7 LEME MACHADO, Paulo Affonso “Direito Ambiental Brasileiro” Ed. Malheiros, São Paulo, 8ª ed., 2000 [selecionado titulo I “Princípios gerais do Direito Ambiental”, pp 41-72 ] 8 VERDUM, Roberto, e MEDEIROS, Rosa M. V. “RIMA – Relatório de Impacto Ambiental . Legislação, elaboração, resultados” Editora da UFRGS, Porto Alegre, 4a. edição, 2002

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Priorizando inclusive e expressamente, as dificuldades da Natureza Humana para a

compreensão dos problemas da Natureza em si: problemas além daqueles que sabemos existir,

problemas de um outro tipo, que existem independentemente da nossa percepção e da nossa

certeza que eles existam.

A natureza se compõe de regiões e zonas com características conhecidas, cujo funcionamento o

homem e os animais aprenderam a decodificar, a pressentir, mas também se compõe de locais

únicos, e situações únicas, combinações de espaço, tempo, Luiz, relevo, temperatura que jamais se

repetem.

Dentre eles, os monumentos naturais, as grandes matas, os litorais recortados de costões e

praias, os arquipélagos nos mares e nos rios, as cachoeiras e saltos deslumbrantes pela altura, pela

vazão, e em alguns casos, pelas duas medidas.

Daí pode se entender melhor o turismo do tipo que visita ou explora locais naturais, mas muito

antes disto, deveríamos reconhecer e respeitar a sagração da Natureza, tudo que a humanidade já

fez no sentido de entronizar, adorar, temer, deixar se encantar pelos elementos e pelos

monumentos da natureza.

Deveríamos nessa trilha estudar – para apenas depois aderir ou não, se distanciar ou

ultrapassar – os mitos e as lendas ancestrais, até chegar no Mito moderno da Natureza intocada,

como fez o cientista social Antonio Carlos Diegues em uma de suas últimas publicações; e

confrontar essa mitologia, esta coleção de imagens fortes arraigadas e produzidas sem cessar até

se constituir num mito fundador do país, como fez a filósofa Marilena Chauí, a propósito da

“Sagração da Natureza” (autores que estudaremos em um dos seminários teóricos previstos)

Cada vez mais distante dos temas ambientais de hoje, cada vez mais próximos dos temas

científicos de sempre, nesta árdua e variada rota de busca insistente e cumulativa da compreensão

humana a respeito do funcionamento do planeta e das demais formas de vida: estudar a Natureza

requer o interesse pela Biologia, pela História Natural, pelas Ciências da Terra em geral.

Se depois os autores vão se considerar ecólogos como Phillip Feanside ou geógrafos como o

mestre Aziz Ab’Saber, talvez não importe muito agora, mas certamente estão juntos, e com eles

raros outros, que sabem que estão estudando a Natureza e as nossas relações com ela.

Com tais ensinamentos, fica mais fácil: o quê sucede com a Natureza depende de como ela é,

de como ela funciona, mas também depende de como são as nossas inter- relações humanas, de

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 20

como as sociedades vão se movimentando no território, como elas vão aproveitando ou não, de

como vão mexendo mais ou menos com esta e com aquela partes da natureza.

Como a Natureza é muito mais do que o próprio Planeta, e como suas partes não são

seqüenciais ou justapostas, a dinâmica é outra, bem mais complexa, difícil até hoje de ser

adequadamente interpretada. Restam para os interessados e os pesquisadores muitas dúvidas, pois

os mecanismos locais, regionais e globais se interligam o tempo todo, mas às vezes se

potencializam e outras se contrapõem. Sempre respeitam a flecha do tempo, mas muitos processos

têm ciclos temporais, curtos e longos: elementos químicos que residem por segundos ou minutos

na atmosfera antes de reagir e de se transformar, e outros que demoram séculos a serem

reciclados, pequenas aves que migram e volta milhares de km, vírus invisíveis que trafegam por

todas as rotas, mas sempre preferem algumas do que outras...

A natureza teria então que ser re - estudada sempre aqui-e-lá, ontem-e-hoje.

No Brasil-e-no Planeta; e também, numa pequena bacia fluvial do interior da Ásia-e-no extenso

ciclo da evaporação e precipitação das águas por sobre todos os mares e oceanos, costas e os

interiores de todos os continentes. Sabendo que existe e existiu uma dinâmica própria do planeta, e

que existem há muito tempo, e se acumulam os resultados da sua ocupação, do seu uso e da sua

destruição, ainda pontual, em alguns focos, mas que um dia poderá ser total.

Não no sentido de uma explosão final, em que tudo vire poeira, mas basta que a totalidade da

parte habitável e utilizável do planeta que conhecemos seja arrasada, queimada ou contaminada de

modo irreversível, irreconstruível...

Os textos já mencionados da Laura Conti e do Warren Dean nos ajudam a ter esta dimensão

mais ajustada. Mas há quem veja ainda mais longe no tempo: o geólogo-engenheiro armeniano

Ter Stepanian 9, há mais de quinze anos já anunciava a emergência histórica de uma era

geológica nova, pós-quaternária, que ele chama de “era tecnogênica” ou “quinária”.

Pela simples e poderosa razão de o homem e suas ações constituírem hoje, e pela primeira vez

desde o seu surgimento, um agente geológico de primeira grandeza -- impondo transformações

que o planeta naturalmente jamais teria adquirido - como as grandes barragens e as imensas áreas

construídas e, pior, -- executando reações químicas e transformações atômicas que normalmente

só ocorrem fora do planeta, no Sol e em outras regiões do Universo.

A Energia, força natural travestida de mercadoria. Matéria e lixo, Física e poder

Visto este amplo panorama, a lógica nos indica que –

9 TER-STEPANIAN “Beginning of the technogene”, Bulletin of Internat. Assoc. of Engineering Geology, n.38, 1988

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 21

- a disponibilidade de energia natural para o aproveitamento pelos homens, pelo seu fogo, e

pelas suas máquinas conversoras de energia, depende muito da chamada “base de recursos”.

O estudo prático e teórico justamente dessas máquinas nos levou a contabilizar o rendimento

deste aproveitamento (quanto eu realmente obtenho e utilizo em relação ao quanto foi dispendido)

e depois, e hoje em dia, fala-se e calcula-se em termos de eficiência, sabendo-se de antemão que

nunca será de 100 por cento, e que sempre dependerá de por onde se passe o perímetro do nosso

objeto analisado, qual o volume de controle , qual a fronteira do sistema, como se estuda na

termodinâmica..

Ciência que revoluciona ainda o pensamento, por exemplo, a partir da noção sofisticada e

extremamente direta de que o planeta é uma máquina termodinâmica, com energia interna e

sendo bombardeada com energia vinda de fora, continuamente e de modo cíclico.

Somente por isto é que podemos colher, aproveitar algum fluxo de energia existente,

desencadear alguma energia potencial ao nosso alcance, tirar umas lascas de materiais que podem

ser queimados para obter calor...

Essa visão integradora científica e histórica da energia, que se tornou um conceito central em

nossa sociedade, e que sempre foi, na prática, um problema central para os humanos e suas

atividades – nos será aclarada por meio das leituras dos cientistas sociais franceses Edgar Morin e

Anne Brigite Kern, e pelos estudiosos italianos que são também dirigentes e assessores de

sindicatos e confederações e de entidades sociais: Tronconi, Valota, Agostinelli , Rampi.

Referências para leitura obrigatória e resenhas escritas - R 5 MORIN, KERN - e - TRONCONI e outros MORIN, Edgar e KERN, Anne Brigitte R 5 A “Terra-Pátria” 1993, Editora Sulina, 3a. edição, Porto Alegre, 2000. [selecionados: pgs iniciais, sumário, apresentação e prólogo, até p.20 e cap 2. A carta de identidade planetária pp 45 a 68] TRONCONI, P.A., VALOTA,R., AGOSTINELLI, M. e RAMPI, F. R 5 B “PIANETA IN PRESTITO - Energia, entropia, economia” editora Macroedizioni, Preggio, Itália, 1991. trecho selecionado, “Energia, entropia, e ...os termos do problema” 26 pgs; tradução de trecho da parte I pgs.36

a 63 do original em italiano, feita pelo prof. Oswaldo SEVÁ]

Além de elevarmos o patamar do debate sobre energia, re-introduzindo os conceitos de

entropia e de risco na análise dos modos atuais de obtenção e de utilização de energia, convém

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 22

também procedermos a uma operação de “limpeza dos falsos milagres”. A meta seria neutralizar

algo que pode ser visto como “pajelança” não no sentido mítico e terapêutico que os pajés

indígenas cultivam, mas no sentido da falsidade, de ser uma “pajelança de branco”.

Limpar o discurso e os argumentos das repetidas palavras, dos repetidos rituais, fórmulas e

senhas de acesso que divulgam as soluções ditas milagrosas. Limpar do logro daqueles que

anunciam - como a chegada do Messias - a forma de energia salvará a tribo da decadência.

A sociedade atual é também a sociedade do lixo, e nesse sentido, uma das maiores aberrações

da civilização do consumo se resume nas destinações predominantes do lixo produzido pelas

residências, coletividades e pelas industrias e serviços: gasta-se uma boa soma de energia para

produzir os materiais, os alimentos, e depois outra boa soma para coletar os resíduos e leva-los a

lugares como os bota-fora, lixões, aterros, onde se abandona até mesmo a energia contida nos

materiais já fabricados e abandonados.

Lixo é o atestado do progresso sem solução, é o panorama que apreendemos na tese publicada

em livro, do professor Paulo Jorge Figueiredo, ao correlacionar os resíduos com a questão

energética e com a crise ambiental contemporânea.

Referência para leitura obrigatória e resenha escrita - R 6 FIGUEIREDO, Paulo Jorge “A sociedade do lixo. Os resíduos, a questão energética e a crise ambiental” Editora Unimep, Piracicaba, 1995. [Recomendada a leitura do livro todo; para resenha, obrigatório o prefácio , a nota introdutória

e os capítulos 1, 2, e 3 até a pág. 157]

Com isto, começamos a retornar ao nosso ponto de partida nessa proposta pedagógica: para

poder avançar, é preciso delimitar bem “sobre o quê” se está falando, escrevendo, argumentando.

Agora fica mais fácil também abrir os leques corretos: Energia deve incluir pelo menos os usos da

energia, os conversores e as fontes de energia, destacadamente os combustíveis (e o calor, o

vapor a eles associados), e também a força - motriz e este tipo especial de energia que é a

eletricidade.

Se esse for o foco, e o assunto estiver bem focado, essas fases e situações conexas devem ser

bem identificadas, e com isto pode-se desviar com maior êxito da argumentação ilusória e da

construção de falsas expectativas.

Esta é outra manobra similar à “limpeza” das falsas pajelanças, e igualmente necessária:

PE 107 – ENERGIA SOCIEDADE AMBIENTE FEM / Unicamp, 2005 – I prof Oswaldo SEVÁ 23

- neutralizar o “pardalismo”, que é aquele espírito obsessivo dos admiradores do professor

Pardal das historias em quadrinhos Disney do século XX.

Os professores Pardal que andam por aí no mundo prestam às vezes ótimos serviços com suas

engenhocas, mas muitos deles também fazem o desserviço da nossa atividade-fim: nós nos

empenhamos em semear a dúvida enquanto método da busca e também a exigência da

demonstração, enquanto eles são os arautos da certeza dogmática, apesar de novidadeira, e da

afirmativa retumbante substituindo a lógica do raciocínio.

Pudera ! Estão sempre inventando maquinas geniais que, às vezes desrespeitam algum

principio da Física, às vezes querem negar alguma contingência de um determinado mercado.

Suas engenhocas e rotas anunciadas em geral desrespeitam os balanços de massas e de

energia, desrespeitam a lei de conservação dos fluxos de massa10, e por isto acabam vendendo

ilusões e falsos brilhantes como

# o moto perpétuo, que não consome nada para realizar trabalho,

# o combustível limpo, que nada produz ao queimar

# a fonte eternamente renovável,

# a máquina que acrescenta energia nova ao planeta,

# a engenhoca que não dissipa nem calor, nem ruído ou vibração, nada, que é cem por cento

eficiente por ser obra de um criador eficiente, quase por decreto.

Enfim, desviam-se energias e aptidões humanas valiosas para propor e propagandear soluções

energéticas que, como algumas invenções do professor Pardal, uma hora acabam não dando certo.

Ou explodem, ou alguém descobre a fraude! Um recado como esse é indigesto em todos os setores

que atualmente debatem energia, incluindo-se as ONGs brasileiras, cujos grupos temáticos de

energia, mudanças climáticas, florestas têm um belo acervo de realizações desde o início dos anos

1990. Só que várias delas não gostaram nada desse tipo de alerta, quando o coloquei em destaque

no seu encontro nacional de outubro de 2003, em Brasília. Estavam se preparando para sentar com

o governo brasileiro e para depois ir ao Congresso de Bonn sobre energias renováveis, e essa

expressão energia renovável, no singular ou no plural, é substancialmente errada do ponto de vista

da Física, e por isto permite uma ampla rota de falseamentos e de pardalismos.

Por outro lado, os panoramas mais realistas a respeito da situação social e ambiental da energia

no Brasil vêm exatamente dessas ONGs e de sua peculiar interface com alguns pesquisadores 10 SEVÁ Fo, A. O. “Para combater a poluição – pense globalmente dentro e fora da fábrica, equacione rigorosamente a matéria e a energia”. pp. IX a XXIII Apresentação do livro “Prevenção e Controle de Poluição nos setores energético, industrial e de transporte”, de LORA, Electo S. Editora Interciência, R. J. 2a. ed, 2002 disponível no sitio www.fem.unicamp.br/~seva

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acadêmicos, de várias áreas, como os professores Célio Bermann11, Carlos Vainer, Henri

Acselrad, e vários outros. Uma das entidades por eles assessoradas, a FASE – federação dos

órgãos assistenciais e educacionais, com sedes no RJ e em Belém, e com vários escritórios em

outras regiões brasileiras vem elaborando com bastante detalhe e ampla participação o programa

Brasil Sustentável e Democrático, dentro do qual se originou justamente o livro mencionado do prof

Bermann: Energia Para que? E Para quem?

Nele é analisada de modo didático mas sem perder o rigor técnico, a noção de sustentabilidade

energética, prevendo-se mudanças e reformas em vários setores, e apresentando a idéia de uma

cesta básica de energia para as famílias (gás de cozinha, eletricidade para aparelhos, iluminação e

água quente, e diesel ou gasolina para transporte).

Na análise do panorama energético brasileiro, pela primeira vez na área acadêmica é

comentada a discrepância já antiga na conversão de eletricidade em calor nas estatísticas do

balanço energético, e, feita outra conta das proporções entre fontes renováveis e não renováveis,

vemos que o petróleo, o gás, o carvão mineral pesam bem mais do que sempre se afirmou. Isto

reforça a conveniência de fazer e refazer as contas sempre, com a devida atenção para as

equivalências e comparabilidade dos vários itens das agregações feitas nas tabelas oficiais.

Basta fazer contas certas, que o panorama deixa de ser tão limpo, azul, renovável, nem

ambientalmente correto como pretendem os ufanistas.

O curso centrado nos temas Condição Humana, Natureza e Energia se completa também com

uma visão ampla e plural do Brasil, com um sentimento enraizado na terra e no povo que hoje aqui

mora, mas enxergando lá fora um mundo com muito mais gente, mais dinheiro, mais poderio, e em

vários casos, um mundo com gente mais preparada e mais alerta do que nós mesmos...com gente

que nos domina há séculos e os que nos dominam há poucos anos, vindos na mais recente onda

de liberalização pró-negócios e pró-finanças.

Nas nossas pesquisas em campo, e isto aparece nos arquivos de fotos e mapas que utilizamos

no curso, nós delimitamos regiões do Brasil, que é uma identidade geográfica claro, pois é um

terreno delimitado de um continente, e um litoral delimitado do oceano. Mas fazemos isso sabendo

que não temos ainda identidade, em termos de unidade e independência política e econômica, pois

hoje tecnologia e capital são internacionais, em muitos setores, em especial nos combustíveis, na

eletricidade, na atividade industrial, na mineração e na grande agricultura. Muitas vezes, as

empresas por nós mencionadas nos textos, estudadas ou cujas instalações foram cartografadas e

11 BERMANN, Célio “Energia para quê? E para quem?“ Editora Livraria da Física, SP, e FASE, RJ, 2002.

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fotografadas, são estrangeiras. Estes temas serão retomados nem um dos nossos seminários

quando pusermos em destaque autores como o economista Celso Furtado12, a filósofa Marilena

Chauí, e o antropólogo Darcy Ribeiro, cujo livro básico sobre o povo brasileiro será lido e

resenhado por todos os participantes.

Referência para leitura obrigatória e resenha escrita - R 7 RIBEIRO, Darcy “O POVO BRASILEIRO. A formação e o sentido do Brasil” Companhia das Letras, S.P., 1995 [selecionados : Introdução pp 19- 26 cap. III.2 “A urbanização caótica”, pp. 193-207 cap. III.3 “Classe, cor e preconceito” , pp 208 – 227]

Ao colocar um ponto nesta proposta pedagógica, quero reafirmar para os estudantes e demais

leitores do texto que as conexões e os simbolismos destes vários temas e conceitos aqui tratados

devem ser exercitados ainda com mais afinco quando se tratar da Condição Humana, e da

Sociedade no Brasil. E, mais ainda, quando se tratar do aumento do montante de energia-

mercadoria valorizado na macro-economia brasileira, ou valorizado por meio da nossa inserção em

uma divisão internacional dos conteúdos energéticos: a expansão intensa e por vezes violenta da

infra-estrutura de combustíveis e de eletricidade é um dos graves focos de problemas ambientais e

sociais brasileiros. Por isto vão ser exigidas as leituras e as resenhas dos dois textos referenciados

abaixo, de minha autoria, que resultam de um acompanhamento minucioso dos processos de

licenciamento de projetos energéticos e que resultam de uma necessidade vital de se demarcar, de

se diferenciar destas doutrinas tão em voga, o desenvolvimentismo e a sustentabilidade.

Referências para leitura obrigatória e resenhas escritas - R 8 SEVA, Oswaldo Desfiguração do licenciamento ambiental de grandes investimentos R 8 A (com comentário sobre as hidrelétricas projetadas no rio Xingu) Comunicação no GT História, Sociedade e Meio Ambiente no Brasil, do 2O Encontro nacional da ANPPAS - Associação

Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, Indaiatuba, SP, maio de 2004. “Tópicos de Energia e Ideologia. O desenvolvimentismo como panacéia? R 8 B A sustentabilidade como guia de corporações poluidoras?” Comunicação no GT “Energia e Meio Ambiente”, no I Encontro da Anppas- Associação nacional de Pesquisas e pós

graduação em Ambiente e Sociedade, Indaiatuba, SP, nov. 2002

12 FURTADO, Celso “Criatividade e dependência na civilização industrial” Ed. Circulo do Livro licença Ed. Paz e Terra,1978 [selecionado: cap. VI. Dependência num mundo unificado”. pp 83 – 113]

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O texto de abertura

O nosso texto de abertura do curso, assumindo esta transição para:

Condição Humana e Natureza, será uma forma de homenagear os grandes escritores,

- de fazer um elogio à liberdade do seu enredo e à pertinência dos seus temas,

usufruindo o prazer de ler em voz alta e de ouvir bem sonora a lapidação dos seus textos.

CALVINO, Ítalo “As cidades invisíveis”1972 trad Cia.das Letras, 1995, S.P. [ensaios selecionados: seção 1. pp 9-10 1.3 As cidades e a memória, pp 14-15; seção 4, pp 57-58; 4.5 As cidades e os símbolos, pp 59-60; seção 7 pp.95-96; 7.1. As cidades contínuas pp. 105-6; seção 9- pp. 123-6;9. 5. As cidades e o céu pp. 136-137; 9.5 As cidades contínuas pp 142-3; final pp. 149-150 ] Do qual retiramos a seguinte chave do enredo: o último diálogo entre o imperador tártaro

Kublai Khan e o mercador veneziano Marco Pólo:

“O Grande Khan já estava folheando em seu Atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World. Disse: - É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, - que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito. E Marco: - O inferno dos vivos não é algo que será; - se existe, é aquele que já está aqui, - o inferno no qual vivemos todos os dias, - que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste...até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. “

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