CONFLITOS E CULTURA DE PAZ: ASSUNTOS PRESENTES...
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CONFLITOS E CULTURA DE PAZ: ASSUNTOS PRESENTES NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES
Vivian Maria Senne de Assis, Universidade de Taubaté – UNITAUSuzana Lopes Salgado Ribeiro, Universidade
de Taubaté - UNITAUFormação continuada e desenvolvimento profissional de Professores da
Educação [email protected]
1. Introdução
Este trabalho é derivado de uma pesquisa de mestrado que teve como objetivo
analisar dados sobre a percepção dos professores a respeito do programa de formação
continuada Práticas restaurativas – Cultura de Paz, e assim identificar as possíveis
contribuições dele para a prática docente. Este programa de formação continuada faz
parte de uma política pública educacional adotada pela Secretaria Municipal de Educação
da cidade de São José dos Campos, desde o ano de 2009.
O objetivo principal desta ação do governo municipal é reduzir e prevenir ações
violentas no âmbito escolar, e uma das atividades desenvolvidas para alcançar esta meta
é o programa de formação denominado Práticas restaurativas – cultura de paz. Este
programa de formação é destinado a gestores, professores, funcionários e alunos das
escolas desta Rede Municipal. Os conteúdos trabalhados durante os encontros
formativos são os princípios da Justiça Restaurativa, da cultura de paz e dos processos
circulares, sendo que no decorrer da formação os participantes vivenciam diferentes tipos
de Círculos de construção da paz.
Participaram da nossa pesquisa 11 professores que frequentaram a formação no
período de 2010 a 2014. Neste artigo iremos discorrer sobre as motivações deles para
participar do programa e sobre os impactos desta formação na prática docente.
1.2 Justiça Restaurativa, processos circulares e comunicação não violenta:
um caminho para cultivar a cultura de paz
A Justiça Restaurativa consiste em resolver os conflitos buscando meios para
restaurar as relações de modo que ambas as partes, ou seja, o ofensor e a vítima
encontrem por meio do diálogo uma maneira de reparar o dano causado. Esta
abordagem entende que é por meio da compreensão dos motivos que estimularam a
ação danosa é que poderão surgir ações reparadoras e ações que contribuirão para que
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o ofensor se responsabilize pelos seus atos e tenha a possibilidade de repensar sua
forma de agir e modificá-la em situações posteriores.
Esta forma de fazer e pensar a justiça, segundo Melo (2008) passou a ser
discutida a partir da segunda metade do século XX. A Nova Zelândia é um dos países
pioneiros nesta forma de conduzir a resolução de conflitos, sendo que desde 1989, adota
a Justiça Restaurativa nos tribunais e também nas escolas.
O foco da Justiça Restaurativa está em reparar o dano causado à vítima e não em
punir o autor da ação danosa. Reparar implica assumir a responsabilidade pela ação
praticada, compreender o quanto esta ação prejudicou a vida de outra pessoa ou
comunidade, e assim corrigir o mal causado.
Os princípios da Justiça Restaurativa estão intimamente ligados aos princípios da
cultura de paz, que segundo Noleto (UNESCO, 2010) é uma cultura de convivência
baseada na tolerância, na solidariedade, no respeito às diferenças, que procura resolver
os conflitos por meio do diálogo, da negociação garantindo que eles não se desdobrem
em violência.
De acordo com Mume (CECIP, 2012) os processos circulares são formas de reunir
pessoas para que juntas estabeleçam formas criativas de relacionar-se respeitosamente
e solidariamente.
Pranis (2010) pontua que as reuniões em círculos podem ter diferentes objetivos e desta
forma recebem nomes e procedimentos diferentes, como círculos da celebração, círculos
de apoio, círculos do diálogo, círculos de aprendizado, círculos restaurativos entre outros.
Para esta autora todos estes são Círculos de Construção de Paz. Segundo esta autora
(p.19): “Os Círculos de Construção de Paz descendem diretamente dos tradicionais
círculos de diálogo comuns aos povos indígenas da América do Norte.” Ela ainda aponta
que os Círculos de Construção de Paz estão se propagando desde a década de 1990 em
diferentes países. Eles estão sendo desenvolvidos em variados contextos como na
justiça criminal, nos locais de trabalho e nas escolas.
Os Círculos de Construção de Paz possuem elementos estruturantes, sendo os
principais, a organização das pessoas em círculo, a presença de um guardião ou , a
utilização do bastão da fala e o momento da contação de história. Segundo Pranis
(2010), a organização do grupo em formato circular é importante porque promove que
todos estejam em igual posição, não há alguém que se destaca, assim, dentro do círculo
todos têm os mesmos direitos e força. O bastão da fala é um objeto que passa de mão
em mão, servindo como um regulador da fala, ou seja, cada membro do grupo só pode
falar em posse deste objeto, porém aqueles que preferem o silêncio têm sua vontade
respeitada.
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O guardião ou facilitador é a pessoa responsável por organizar o espaço que
receberá as pessoas para a realização do círculo. É ele que irá apresentar a proposta
aos participantes e conduzirá o círculo para que os objetivos do mesmo sejam
alcançados, ou seja, durante a dinâmica, ele estimula por meio de perguntas as
reflexões, porém, não é função deste guardião dar as soluções ou impor suas opiniões.
Segundo Pranis (2010, p.27): “O guardião não controla as questões a serem levantadas
pelo grupo, nem tenta conduzi-lo na direção de determinada conclusão, mas pode intervir
para zelar pela qualidade da interação grupal”. Desta forma, observa-se que o facilitador
é uma figura importante no processo circular e que sua postura influencia na qualidade
do desenvolvimento deste processo.
O momento da contação de história é a parte principal do processo circular, pois é
neste momento que cada participante partilha com o grupo seus sentimentos,
necessidades, e experiências diante de um fato ou tema. Para Pranis (2010) contar
histórias pessoais ajuda o sujeito a refletir sobre si próprio e como cada situação relatada
afetou ou afeta a sua vida. Ouvir as histórias de vida das outras pessoas contribui para a
compreensão das ações delas e isso é capaz de desmanchar os preconceitos existentes
nas relações.
Para Rosenberg (2006) a linguagem e a forma como os indivíduos utilizam as
palavras podem contribuir para relacionamentos compassivos ou destrutivos, e por isso
defende que qualquer pessoa pode aprender a se comunicar falando e ouvindo de
maneira a estabelecer um vínculo de respeito e compaixão. Para tanto, ele indica quatro
elementos importantes num processo de Comunicação Não-Violenta, sendo eles:
observação sem julgamento, identificação dos sentimentos, reconhecimento das
necessidades, e formulação de pedidos que contribuirão para enriquecer os
relacionamentos.
O programa de formação trabalha com os participantes, além dos pressupostos
da Justiça Restaurativa e dos processos circulares, os quatro elementos da Comunicação
Não-Violenta, visando assim, oferecer suporte para que eles tenham mais recursos para
estabelecer uma comunicação pacífica, focando principalmente no conceito de empatia e
no desenvolvimento de posturas empáticas.
2. Metodologia
A fim de identificar e analisar a visão dos professores sobre o impacto do
processo formativo na prática docente, optamos por realizar uma pesquisa de abordagem
qualitativa, pois segundo Silva (2005) esta é uma abordagem adequada a pesquisas que
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se propõem a considerar como objeto de análise a visão do sujeito sobre um determinado
fenômeno vivenciado por ele. Utilizamos a entrevista semiestruturada para coletar os
dados, porque conforme Duarte (2004) ela é um instrumento de suma importância
quando o objetivo da pesquisa é identificar práticas, valores e crenças.
Desta maneira, foi elaborado um roteiro semiestruturado com questões abertas e
questões fechadas. Foram realizadas e transcritas 11 entrevistas sendo que todas
aconteceram na Unidade Escolar em que o professor lecionava e no horário de trabalho
dele. Embora alguns professores do sexo masculino também tenham participado da
formação, por questões de adequação de dia e horário para realização da entrevista não
foi possível a participação deles nesta pesquisa. Desta forma, as colaboradoras da
pesquisa são mulheres. Cada uma delas foi identificada por um nome escolhido de forma
subjetiva pelas pesquisadoras, com exceção da entrevistada Ana Lúcia, que solicitou que
seu nome fosse divulgado, e o desejo dela foi respeitado.
De acordo com Moraes (1999), realizar uma análise de conteúdo exige do
pesquisador procedimentos específicos, sendo que em um primeiro momento é
importante realizar uma leitura exploratória do material, e a partir dela identificar as
mensagens mais relevantes para serem posteriormente categorizadas, descritas e
interpretadas a partir de um referencial teórico, a fim de atingir o objetivo da pesquisa.
Para a realização deste artigo, selecionamos duas categorias: Motivações para participar
desta formação; Elementos agregados à prática e o envolvimento dos alunos.
3.Resultados e discussões
3.1. As motivações para participar da formação
A Rede Municipal de Ensino citada neste trabalho oferece diferentes
oportunidades de formação continuada aos docentes, sendo que algumas propostas de
formação exigem a participação obrigatória dos professores e outras são de caráter
voluntário. O programa aqui mencionado conta com a participação voluntária dos
docentes, e ainda possibilita aos profissionais que durante o processo formativo não se
identificam com a proposta, a desistência sem nenhum prejuízo de ordem funcional.
Desta forma, consideramos relevante traçar um perfil dos docentes, e identificar
os motivos que os impulsionaram a ingressar nesta formação. As participantes da
pesquisa são professoras na faixa etária entre 33 e 52 anos, com longa experiência,
sendo que o menor tempo de magistério é de 15 anos e o maior tempo é de 25 anos.
Todas as entrevistadas têm formação acadêmica na área de Educação, e durante seu
percurso profissional atuaram em diferentes segmentos, inclusive sete delas já atuaram
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na área de gestão educacional. Atualmente seis das entrevistadas atuam com crianças
do Ciclo I do Ensino Fundamental, e três atuam com adolescentes do Ciclo II do Ensino
Fundamental, uma atua com alunos dos Ciclos I e II do Ensino Fundamental, e uma está
lecionando na Educação Infantil.
As narrativas sobre as motivações para participar do programa mostraram que
oito das entrevistadas se identificaram com o tema da formação, e apontaram aspectos
diferentes para justificar seus interesses. Destacamos a seguir alguns relatos, iniciando
pelas professoras Olívia e Bruna que apontaram que discutir sobre cultura de paz,
despertou-lhes curiosidade e vontade de aprender algo novo:
A formação foi oferecida para todos os professores, e quem queria se habilitava. Eu meprontifiquei pela curiosidade, queria saber, porque me chamou atenção. “O que era?”Aqui ninguém mais quis se não me engano, e aí eu já fui. ( Olívia)
Eu recebi um convite para participar, e interesse mesmo, eu gosto disso. Quando fala:“cultura de paz”, eu já gostei. Esse convite veio da direção. (Bruna)
As professoras Gabriele e Bia que atuam como polivalentes no Ciclo I do Ensino
Fundamental relataram que participação no programa foi uma escolha motivada pela
vontade de adquirir mais conhecimentos para lidar com os conflitos existentes em sala de
aula. A fala de Gabriele sintetiza esta procura: “Em busca de novos conhecimentos.
Como saber resolver os conflitos de uma nova maneira, de uma nova forma, foi mais
isso.” E é complementada pela narrativa de Bia:
Bom, eu tive um convite. Todo programa, todo projeto, ele vem para escola e sempre temum convite para os professores. Então como se tratava de uma coisa para gente tentarresolver o problema de disciplina, que é o que pega mais eu acho, na aprendizagem dosalunos, eu me interessei por causa disso mesmo, para poder saber lidar com situaçõesque eu não estava sabendo lidar, foi por isso. Primeiro o convite, e depois para resolverum problema que eu estava enfrentando também, que é o cotidiano da escola. Acho queo fator disciplina é o que está pegando mais para todos os professores.
O relato de Bia enfatiza o quanto a indisciplina prejudica a gestão da sala de
aula, a aprendizagem dos alunos e o quanto ela se interessa em conseguir meios para
resolver este problema presente no cotidiano escolar. Já Janine afirma que se interessou
pela proposta do curso porque identificou nela elementos da sua própria prática:
Porque eu acredito neste trabalho, que é um ponto assim que tem que acreditar e quererfazer diferença na sala de aula, então mesmo quando eu não conhecia o programa daJustiça Restaurativa, eu sempre acreditei e trabalhava nesta linha de trabalho, no sentidoque você precisa restaurar mesmo os corações das crianças...
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As narrativas apresentadas apontaram um perfil de docentes que mesmo com
tantos anos de trabalho sentem-se motivadas a aprender algo novo, e reconhecem a
formação continuada como algo lhes possibilita encontrar um caminho para resolver uma
dificuldade existente em seu cotidiano profissional. A postura delas converge com a visão
de Marcelo (2009), que diz que as pesquisas recentes sobre o desenvolvimento
profissional docente apontam que os professores aprendem no decorrer de sua trajetória
profissional, e que o interesse pelo conteúdo de uma formação se dá à medida que este
traz respostas para as questões do cotidiano em sala de aula.
Observamos que três das entrevistadas a princípio não se interessaram pela
formação, sendo que duas partilharam que a participação no programa foi devido a
insistência da equipe gestora da Unidade Escolar da qual trabalhavam:
Na realidade, eu não tive muita escolha. A diretora me disse: “ Você vai”, e eu fui... Eladisse: “A gente precisa Camila, você vai gostar, vai, vai...” E eu fui... A diretora daqui émuito bacana. É a L. “Ah, então eu vou lá ver...” Eu fui meio assim, eu não queria, masvaleu a experiência. (Camila)
Então, quando eu fui convidada, a diretora me convidou, ela até já aposentou tem 3 anos.Ela disse: “Olha, eu preciso de um professor, então eu coloquei você.” Ela nem convidou,ela colocou meu nome. “Coloquei você porque às vezes sala de leitura, é mais fácilporque não precisa chamar eventual e às vezes, o professor de sala é tão complicado”.Na época não tinha mais ninguém mesmo para ir, aí eu fui, e quando deparei lá, eu acheiassim uma coisa fantástica, sabe? Gostei muito mesmo, eu falei: “Nossa, isso aqui achoque vai amenizar um pouco os conflitos que existe dentro de uma escola.” ( Yasmin)
Já a professora Mirele, na ocasião estava na função de Orientadora
Pedagógica, e foi convocada a frequentar a formação. Apesar da participação destas três
professoras ( Camila, Yasmin e Mirele) não ter sido voluntária verificamos que com
exceção da Mirele, as outras duas continuaram porque se interessaram pelo conteúdo
da formação, assim como as outras oito professoras que também se mantiveram no
processo formativo por considerá-lo útil à própria prática. Neste sentido, durante as
entrevistas verificamos que as professoras agregaram à sua prática técnicas
disponibilizadas durante o processo formativo porque viram nelas potencial para
enriquecer seu trabalho com os alunos. Conforme Marcelo (2009) as mudanças nas
ações dos professores, ocorrem por meio da mediação dos processos de ação e
reflexão, no qual o professor consegue observar na sua prática a utilidade da nova
prática sugerida nas formações. Abaixo pontuamos algumas das reflexões e escolhas
das professoras quanto aos elementos discutidos na formação que elas incluíram na
própria prática docente.
3.2 Elementos agregados à prática e envolvimento dos alunos
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Conforme pontuado anteriormente, o programa de formação Práticas
Restaurativas – Cultura de paz utiliza os princípios da Justiça Restaurativa e dos
processos circulares como recursos para o desenvolvimento de práticas que cultivem a
cultura de paz na escola, ou seja, ações que tornem o ambiente mais aberto a
convivência democrática e de respeito às diferenças. Neste sentido, o bastão da fala foi
um elemento citado como útil à prática pedagógica por sete professoras. Conforme os
relatos este elemento é usado por elas em situações do dia a dia, isto é, nem sempre ele
é usado em um contexto formal de processo circular. Estas docentes pontuaram que
durante a formação refletiram sobre a importância de escutar com atenção as
necessidades uns dos outros, e o uso do bastão contribui para a criança a ter mais
tranquilidade nos momentos de conversas em grupo, conforme pontua a professora
Mirele:
Sim, eu sempre faço isso, discuto isso com as crianças, até eu treino: “Você só pode falarquando estiver com o objeto de fala na mão, é um treino para gente, é um treino paracriança também. É... você saber ouvir e esperar, se conter, autocontrole, isso aí é muitolegal para trabalhar, porque eles começam a saber, a ver que a vez dele está ali, né?Então, eu não preciso te atropelar na hora que a gente está conversando porque eu seique vai ter minha vez, eu sei que a minha fala vai ser validada, eu sei que eu faço partedeste grupo.
De acordo com as professoras é importante trabalhar com os alunos posturas
adequadas de ouvintes e falantes, sendo que durante uma conversa faz-se necessário
que o ouvinte seja atento a quem está discorrendo, busque compreender a mensagem do
falante, e só depois emita sua opinião. Escutar com atenção os sentimentos e
necessidades uns dos outros, segundo Rosenberg (2006) é condição para estabelecer
um diálogo, uma comunicação não violenta. Compartilhando da mesma visão de Mirele
quanto ao uso do bastão, a professora Janine destaca o quanto este recurso foi produtivo
com a sua turma de primeiro ano:
Não foi fácil no começo porque eles não sabem esperar a vez de falar, eu usava umobjeto de fala que era um bichinho de pelúcia, com o primeiro ano. Eles só ficavam com amão levantada, mas eles conseguiam entender que só poderia falar quem estava com oobjeto de fala. Até para eu dar aula, eu segurava o objeto de fala para eles entenderemque no momento a professora estava explicando, que eles tinham que prestar atenção,ouvir para aprender. Aí não era fácil no começo, porque eles ficavam com a mãolevantada e o corpo se mexendo porque criança pequenininha né?
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A professora Bruna apontou que antes de participar do programa de formação já
considerava importante escutar os alunos e que a formação lhe deu elementos para
qualificar a sua escuta:
A escuta, a escuta ativa, eu passei a ouvir mais. De certa forma eu comecei a me colocarno lugar do outro. Isso também foi um aprendizado importante. Isso eu já tinha comigo,mas eu consegui separar bem a ação da reação. A gente reage muitas vezes, e nãopensa. A gente começa a treinar, a gente fica um pouco treinado por nós mesmos, nãoque eles imponham isso, mas a gente começa a treinar o pensamento assim: em vez dereagir, pensar primeiro e agir depois, então algumas coisas que mudaram.
No trecho abaixo, a professora Olívia também aponta o quanto a formação
ajudou-a repensar a sua forma de ouvir os alunos:
Eu sempre fui de conversar muito com eles, e a formação fez com que eu ficasse maisatenta a eles, porque antes parecia que eu estava ouvindo, eu estava participando, masparecia que ficava meio solto, então eu acho que mudou isso, eu prestei mais atençãoneles. Essa história, o fato de eu conhecer mais a história deles e eles conhecerem asminhas histórias a gente ficou mais próximo. Então é o escutar, é o ouvir, né? Eu achoque eu ouço mais os meus alunos.
Esta professora diz que durante suas aulas investe tempo em escutar seus
alunos e a orientá-los a escutarem-se, porém não vê a necessidade de usar o bastão da
fala para atingir este objetivo:
No dia a dia, não uso bastão né? Não tenho o objeto em si, mas tem assim, eu peçomuito para eles: “Vamos ouvir o colega”. Então, isso é da Justiça Restaurativa. Estadinâmica... Presta atenção, seu colega está falando... Para se tornar algo natural, paravocê ter isso como algo normal na sua vida.
Os relatos das professoras mostraram que a postura de ouvir atentamente os
alunos, buscando compreendê-los, valorizá-los em suas necessidades foi agregada à
prática pedagógica, sendo que algumas delas enxergaram o bastão como um elemento
com potencial para regular o diálogo em sala de aula, e algumas não viram a
necessidade de inserir nos momentos de discussões dos temas da aula este recurso.
Dentre as entrevistadas, nove professoras relataram que realizaram com suas
turmas Círculos de construção da paz com diferentes propósitos como: celebrar um
momento marcante como a chegada das férias, discussão de um problema que está
acontecendo na sala, para trabalhar algum tema com os alunos, por exemplo, a
professora Bia narrou que em um ano ao se deparar com uma sala que tinha alunos que
apresentavam dificuldades em respeitar o espaço coletivo, utilizou dos círculos para
discutir com o grupo como a convivência na sala poderia ser melhor:
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[...] ano passado eu tinha 8 casos indisciplinares gritantes na minha sala, então eucheguei a fazer alguns círculos. Só que aquele aluno que é retraído, que você faz ocírculo para ele poder falar, realmente ele não fala, nas primeiras reuniões, e os que sãoindisciplinados, eles querem aparecer mais ainda, entendeu? Mas acaba que algunsalunos que são meio termo reclamando dos alunos que atrapalham, então, eles falamabertamente quando eles pegam o objeto de fala: “Você, você, você, estão atrapalhando,a gente não está conseguindo aprender, vocês deixam a profª nervosa”. Eu deixo eles,entendeu? Aí aqueles que estão querendo aparecer muito, eles já melhoram um pouco,eles ficam mais contidos, não 100%, mas uns 15% mais contido, mas pô, 8, você põe15% de cada um, é um resultado muito bom né?
Neste trecho Bia mostra que propor círculos para discutir questões sobre o
comportamento do grupo, respeito ao colega e à diferença em sala de aula, exige dela
um posicionamento de escuta e crença na força das palavras dos próprios alunos. Por
meio desta ação, ela possibilita aos alunos e a ela, a vivência de buscar em conjunto
meios para tornar a convivência em sala de aula mais produtiva e harmoniosa. Conforme
os pressupostos da Justiça Restaurativa, as pessoas são capazes de dialogando
respeitosamente chegarem a resolver seus conflitos sem que haja alguma autoridade que
imponha as soluções.
Os Círculos de construção da paz, destinados a celebrações de momentos
importantes da escola, ou datas que se destacam na sociedade foram apontados como
estratégias que promovem momentos de emoção, reflexão e de estreitamento de laços
afetivos, conforme aponta o relato de Janine:
Na última quarta-feira, que é recente, nós todos da escola fizemos o círculo deCelebração da Páscoa. As experiências que as professoras contaram, quem nunca tinhafeito, foram experiências maravilhosas! Os professores no final da tarde foram fazer osseus depoimentos e ficaram emocionados porque é algo que dá certo e tem que sertrabalhado nas escolas.
Argumentando sobre o potencial dos Círculos de construção da paz de resolver e
prevenir os conflitos, a professora Ana Lúcia diz:
Não precisa ser só para restaurar alguma coisa. O interessante é fazer isso sempre,como se fosse uma prevenção do relacionamento, estar sempre nutrindo o bomrelacionamento, Então, eu sempre utilizo o círculo, sempre, sempre, sempre. As cadeiraslá na sala são dispostas para as crianças olharem um para o outro. E sempre tem umobjeto de fala para gente organizar, ou senão as regrinhas né? Levanta a mão para falartal...
Assim como Ana Lúcia citou que modificou sua forma de organizar o espaço da
sala, Olívia também relatou:
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No meu dia a dia eu tenho o costume de usar os círculos, tanto que já tenho deixado asala já no próprio círculo, e inclusive eu tenho feito o centro do círculo com meu materialde sala de leitura: os gibis, os livros, alguns livros que eu quero indicar, que eu querocolocar em destaque, deixo lá em cima do tapete, de livre acesso.
Outras professoras relataram também que reorganizaram a sua rotina propondo
mais atividades em círculos e pequenos grupos.
As narrativas das participantes da pesquisa mostraram que a partir dos
investimentos delas de escutar as necessidades, sentimentos e histórias de vida dos
alunos, de desenvolver Círculos de construção da paz e de incentivar os alunos a
ouvirem uns aos outros, os alunos apresentaram mudanças em sua forma de reagir,
conforme partilhou Camila:
[...] você leva a refletir e quando você chama atenção por alguma coisa eles já não... Elesjá se desarmam mais. Já não respondem: “eh”( fez gesto de se impor com o corpo), agente fala: “Poxa, a gente já falou sobre isso”, e eles falam: “Desculpa aí professora, foimal”. Então em alguns alunos que você leva a reflexão...
Da mesma forma, Gabriele entende que a sua atitude de valorizar as vivências
dos alunos contribui para que eles convivam de forma mais harmoniosa:
Mesmo quando a gente não consegue fazer os círculos, no momento da entrada, eupermito que eles falem daquilo que está acontecendo com eles, então muitos trazemessa vivência, esta realidade. Então, acho que aí começou a ser uma fraternidade,nossos alunos sabem que conosco, ali naquele mundo do 4º ano, podem ter essafidelidade até mesmo com os assuntos da escola, podem se expor sem se prejudicar.Podem se expor de verdade. Isso eu consigo com eles. E assim, eu tento não perder a oportunidade, às vezes surge a oportunidade e você falaassim: “Eu não preparei tal coisa. Não, mas se tem a oportunidade, acho que é válidotem que por em ação.”
As professoras pontuaram que as mudanças nos alunos não são automáticas ou
seja, é preciso insistir no processo e compreender que os conflitos continuarão a existir.
Nesta perspectiva destacamos aqui a fala da professora Ana Lúcia:
Você tem que estar sempre com alguns retomando as coisas, mas com a maioria daturma, aconteceu isso, porque eles vão, eles próprios vão internalizando aquilo, mas umacoisa eu te digo, isso é uma coisa que não foi feita assim para fazer um dia e acabou.Você tem que estar nutrindo isso, sempre, sempre, sempre.
Lariane, uma professora que atualmente leciona na Educação Infantil, e busca
adequar os princípios da formação à esta faixa etária, relatou uma situação vivida com
seus alunos do Ensino Fundamental:
Os conflitos continuavam a existir, mas tinha uma busca, um compartilhar para pensarjunto, então era um movimento muito gostoso. Eu adorava esse movimento de: “Olha,você quer conversar, você que a gente chame?” “Podemos ver se a pessoa quer vir
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conversar?” “Você quer falar com a pessoa?” “Você quer que esteja mais alguémpresente?” É interessante porque você coloca o outro como participante, como agente.
Ao discorrer sobre a construção da cultura de paz, Noleto (UNESCO, 2010, p.12)
afirma que: “É um processo que, sem dúvida, tem um começo, mas nunca pode ter um
fim. A paz é um processo constante, cotidiano, mas não passivo. A humanidade deve
esforçar-se para promovê-la e administrá-la.” Sendo assim, podemos entender que as
participantes desta pesquisa estão se mobilizando para construir na escola a cultura de
paz.
4. Conclusões
Diante do cenário escolar brasileiro atual, no qual a violência se faz presente no
contexto escolar, um programa de formação como o “Práticas Restaurativas – cultura de
paz” traz um caminho para os professores lidarem com os conflitos de forma a impedir
que eles se desdobrem em ações violentas.
As professoras que participaram desta pesquisa mostraram-se muito disponíveis
para desenvolver práticas a favor de um ambiente escolar mais harmonioso, mais
colaborativo, e desta forma elas obtiveram mudanças positivas no comportamento dos
seus alunos. Estas docentes pontuaram que tais mudanças não acontecem de forma
repentina, é preciso investir, persistir em ações nas quais os alunos escutem, buscando
compreender os sentimentos e necessidades uns dos outros, e desta forma respeitem-se
mais.
As experiências em sala de aula destas professoras a partir da participação delas
no programa mostrou que o mesmo é relevante e traz impactos positivos para a prática
docente, assim como traz para os alunos. Desta forma, entendemos que formações como
estas que visam fundamentar a prática docente para lidar com os problemas que
emergem da convivência, dos relacionamentos interpessoais são muito importantes, pois
atendem uma necessidade atual do universo escolar.
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