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CONSIDERAÇÕES SOBRE TEATRO DIALÉTICO EM AS … · Em Senhora na Boca do lixo é retomado o tema...
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CONSIDERAÇÕES SOBRE TEATRO DIALÉTICO EM AS CONFRARIAS E EM
SENHORA NA BOCA DO LIXO, DE JORGE ANDRADE
ANELLI, André Luiz da Silva*
FLORY, Alexandre Villibor**
RESUMO: Este presente artigo se propõe a fazer uma análise das obras As Confrarias e Senhora na Boca do Lixo do autor brasileiro Jorge Andrade, as quais se encontram no ciclo de dez peças do mesmo autor, intitulada Marta, a Árvore e o Relógio. A partir destas análises o estudo buscará compreender qual foi a contribuição do autor para a recepção dialética do teatro brasileiro no século XX e com isso a contribuição para a modernização do teatro brasileiro. Neste sentido esta pesquisa, de cunho bibliográfico, revisitará alguns autores que seguem a linho histórico-dialética para melhor compreensão desta análise. Palavras-chave: Jorge Andrade; Teatro Dialético; Teatro Brasileiro
INTRODUÇÃO
O homem está em constante transformação e junto com ele, a história.
Fatores históricos, sociais, econômicos, políticos, religiosos são historicamente
transformados pelo homem diante de suas novas necessidades e, consciente ou não,
a estrutura das obras de arte também sofrem esta transformação, neste sentido
Antônio Cândido (1973), afirma que“o fator social é invocado para explicar a estrutura
da obra e de seu teor de ideias, fornecendo elementos para determinar a sua validade
e seu efeito sobre nós” (CANDIDO, 1973, p. 14). Pensar na arte da pré-história é
encontrar uma Arte ritualística que buscava, dentre outras coisas, aumentar o poder
do homem para atingir suas necessidades, pensar na Arte Grega, Romana, é
tambémver uma arte ritualística, mas que buscava politizar seus contemporâneos.
Neste sentido, ao longo da história da humanidade vemos grandes transformações na
arte que, em nível de forma e conteúdo, sempre se modifica pelas mãos do próprio
homem, buscando responder de maneira viva aos acontecimentos do momento.Sobre
esta forma de relacionar arte e história, Marvin Carlson (1997),contribui afirmando que
“a teoria do teatro raramente, ou nunca existe em forma pura”. (CARLSON,1997,p.9).
Dentro desta perspectiva, iremos neste artigo analisar parte da teoria do teatro
* **
brasileiro tendo como embasamento a linha de pensamento histórico-dialética que
remonta a Karl Marx, que nos mostra que o mundo é transformado pelo homem, e
nada que que este faz é natural, mas sim social. Podemos ver isso no campo teatral
em autores como Bertolt Brecht, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado entre
outros. Desta maneira, a história do teatro também é criada pelo homem, reforçando
a teoria de Marvin Carlson, já referendada neste artigo.
A partir desta perspectiva, este presente estudo irá se propor a fazer uma
análise teórica acerca do teatro moderno brasileiro da década de 1960, tendo como
objeto de estudo as obras As Confrarias(1969), e Senhora na Boca do Lixo(1963), do
autor Jorge Andrade, que se encontram no ciclo de peças do mesmo autor, intitulada,
Marta, a árvore e o relógio, buscando compreender como que ambas as obras
contribuíram para a tradição dialética no Brasil por volta da segunda metade do século
XX.
TEATRO MODERNO BRASILEIRO
Analisar uma obra de arte feita no Brasil, seguindo uma linha de pensamento
histórico-dialética, se faz necessário compreender o percurso dela, tendo como
entendido que fomos durante muitos anos colônia de Portugal e por isso mesmo,
recebemos muitas influencias da cultura lusa. A partir desta perspectiva, vemos um
Brasil que durante muitos anos, no campo da arte, trouxe fortes influencias europeias
que de maneira direta influenciava na forma e muitas vezes no conteúdo das obras
de arte. Neste sentido, a literatura também sofreu estas influencias.
Durante a primeira metade do século XIX pensar em peças teatrais no Brasil
era pensar em uma dramaturgia melodramática com ideias importadas da Europa,
difícil e quase raro eram ter obras com assuntos brasileiros e se tinham, as formas
ainda refletiam a citada referência, isso pode ser vista na seguinte citação de Alcântara
Machado, mencionada por Diógenes André Vieira Maciel (2004),“O teatro nacional,
como muita história nossa, não é nacional.” (MACIEL, 2004, p.35). A dramaturgia
brasileira não tinha uma identidade, algo que podíamos dizer brasileiro. Este cenário
foi aos poucos mudado com a presença de obras de Martins Pena por volta de fins do
século XIX, no entanto suas obras, mesmo com o caráter épico nos tribunais, ainda
não refletiam uma superação formal, sendo apenas no início do século XX que as
mudanças, em nível formal e temático, começaram realmente estruturar as obras com
traços próprios do Brasil.
No século XX grandes mudanças sociais surgem. O capitalismo torna-se o
modo de produção dominante, com ele aumentam as indústrias, os operários e a
realidade brasileira muda-se. No cenário mundial temos duas grandes Guerras
Mundiais, governos nazistas e fascistas e o mundo dividido entre comunistas e
capitalistas. Dentro desta nova realidade o teatro busca uma nova forma que ia além
da peça “bem feita” do modelo francês, necessita-se dentro desta perspectiva uma
nova forma diante de um novo conteúdo social, pensar o teatro a partir da consciência
de classe. Grande referência deste pensamento pode ser vista em Piscator e Bertold
Brecht, que buscaram, a partir desta consciência de classe, reestruturar a forma e o
conteúdo teatral. O mundo não é o mesmo, consequentemente, a arte também não
deve ser, porém, no Brasil, como afirma Cândido (1973), somente quando
Fomos tomando consciência de nossa diversidade, a eles nos opusemos, num esforço de auto - afirmação, enquanto, de seu lado, eles nos opunham certos excessos de autoridade ou desprezo, como quem sofre ressentimento ao ver afirmar-se com autonomia um fruto seu. A fase culminante da nossa afirmação – se processou por meio de verdadeira negação dos valores portugueses, até que a autoconfiança do amadurecimento nos levasse a superar, no velho diálogo esta fase rebeldia. (CÂNDIDO, 1973, p. 117)
Esta breve contextualização histórica nos prepara para compreender a nova
estrutura teatral que veio a configurar-se no Brasil na primeira metade do século XX.
Diante deste contexto brasileiro surgiram novos modelos de dramaturgia
teatral, como Oswald de Andrade (1933), com O Rei da Vela, Mário de Andrade (1933-
1942), com Café e Nelson Rodrigues (1943), com Vestido de Noiva. Cada um com
suas respectivas diferenças contribuíram para a mudança do cenário teatral brasileiro
do século XX. Partindo deste panorama teatral, iremos aqui ressaltar o trabalho de
Jorge Andrade que, na segunda metade do século XX, contribuiu para o
enriquecimento da identidade brasileira no teatro, propondo uma nova estética, em
nível formal e temático, no qual coloca em suas obras um olhar individual do passado
que discute, mas não de forma nostálgica, mas sim com distanciamento épico que o
permite dialetizar fatos apresentados e consequentemente problematizar os eventos
históricos. Diante deste pressuposto, a partir das obras As Confrarias e Senhora na
Boca do lixo, iremos analisar com o viés dialético-histórico como ambas as obras
contribuíram para essa nova proposta teatral.
AS CONFRARIAS, DESCONTRUÇÃO DA FIGURA MATERNA COMO RECURSO
DIALÉTICO
Mais do que dez peças organizadas em um volume, as peças do ciclo
remontam a momentos de rupturas políticas e econômicas do Brasil, pois é
exatamente em momentos de crises dessa natureza que o discurso dominante se vê
contrariado, podendo ser questionado. Jorge Andrade faz isso sobre várias rupturas
da sociedade brasileira, como em A moratória, em que discute, a partir do ponto de
vista de um fazendeiro falido, a crise cafeeira da década de 1930. Vê-se também a
crise urbana, sobretudo paulista, na peça O sumidouro, questões vinculadas à própria
função do intelectual, como na peça Rasto atrás. Em Senhora na Boca do lixo é
retomado o tema da decadência da aristocracia, e em As confrarias sobre a crise do
ouro do século XVIII. Seja em qual peça for, Andrade não se restringe a rediscutir
crises do passado, ele passa a problematizar o passado junto ao presente, fazendo
de sua dramaturgia um marco no teatro brasileiro do século XX.
É única, esta obra, pela grandeza da concepção e pela unidade e
coerência com que as peças se subordinam ao proposito central,
mantido durante longos anos com perseverança apaixonada, de
devassar e escavar as próprias origens e as da sua gente, de procurar
a própria verdade individual através do conhecimento do grupo social
de que faz parte e de que, contudo, tende a apertar-se, precisamente
mercê da própria procura de um conhecimento cada vez mais aguçado
e crítico, que situa este grupo na realidade maior da nação.
(ROSENFELD, 1986, p.600)
Em As Confrarias e Senhora na Boca do lixo, poderemos nos aprofundar
melhor para compreender a partir delas a tradição do teatro dialético no Brasil. Em
ambas as peças as personagens principais são mães, ambas diante de contextos
diferentes, realidades sociais e históricas divergentes que contribuem para compor o
cenário crítico de uma revisitação histórica.
Para uma primeira aproximação ao ciclo Marta, a árvore e o relógio, deve-se
saber que a ordem do tempo ficcional não corresponde à ordem em que as peças
foram escritas. A peça em análise, As Confrarias, foi a penúltima peça a ser escrita,
mas é a primeira no tempo ficcional. Assim, ela tem os traços de um dramaturgo
maduro, experimentado e vivido, escrevendo já em meio à ditadura e sua extrema
expressão com o AI-5, e ao mesmo tempo tem um papel privilegiado no tempo
ficcional, da narrativa, pois está próximo da origem do ciclo. As confrarias inicia o ciclo
das dez peças remetendo à história em fins do século XVIII, com o início do “ciclo do
ouro” no Brasil.
Essa história, porém, é revisitada pela perspectiva de uma mãe, Marta. Esta
aparentemente faz de tudo para sepultar o filho em quatro diferentes confrarias, que
detém o monopólio dessa atividade na cidade. Ao tentar fazê-lo, narra o seu passado,
com o que podemos recriar passo a passo suas vidas e lutas, cada vez mais
compreendendo os efetivos objetivos da mãe – fazer o filho importante e fomentador
da consciência crítica mesmo depois de morto, mesmo que para isso postergue seu
enterro. Esse filho, José, é um jovem sonhador que realizou o sonho de ser ator e sair
pelo mundo, escapando dos limites estreitos de uma vida sulcada no campo, como os
pais. No início da fábula (mas não da trama, que já se inicia com José morto), Marta
deseja manter o filho em casa, acreditando estar no sítio da família a única razão de
viver.
MARTA: Todo mundo tinha morrido. Cidade pra mim é isto: sons de
passos e de vozes que passam e se distanciam, de sinos tocando
sempre às mesmas horas ...! (Com expressão finória) Ainda devem
estar lá, as marcas de minhas orelhas e unhas ... em uma das paredes.
JOSÉ: E aqui? Estamos eu, a senhora e papai. Trancados também.
MARTA: Com todo este espaço?!
JOSÉ: (...) Mãe! O mundo não é somente nós.
MARTA: O meu é!(ANDRADE, 1969, p.31)
No entanto, após a morte do marido em luta com as forças dominantes que
querem suas terras por possuírem ouro, ela percebe que nunca teve de fato
estabilidade, que era tudo falso, que o filho talvez estivesse certo, e vai atrás dele – já
sem marido e terras. Aos poucos, toma consciência da importância da arte para a
transformação social dos cidadãos, e então começa a incentivar o filho a utilizar o
teatro como uma ferramenta para a mudança da vida coletiva, como mostra a seguinte
fala de Marta à José:
MARTA: Foi com o rendimento de açoites em escravos, que os
senhores mandavam dar, que a fazenda real pagou as obras. Não
sabia? (Amarga) Busquei você por toda parte, ouvindo, olhando à
minha volta. As cidades, os campos que percorri, foram plantado
indignação e revolta em mim. Vi coisas que não pensei existir entre os
homens... e compreendi que vivera trancada no sítio, mais do que no
convento. E você? Veio para conquistar a cidade, abrir as portas e ver
como as pessoas vivem, e não saiu do palco, ou de você mesmo. Sua
indignação termina com os papeis que representa. Que importa saber
de quem descende, se não enxerga nem os que vivem à sua volta?
(ANDRADE, 1969, p. 51)
Marta procura mostrar didaticamente para o filho que ele não deve apenas fazer
teatro como uma maneira de encontrar respostas para suas angústias individuais, mas
compreender o teatro como parte ativa da vida social.
JOSÉ: O que quer de mim, mãe?
MARTA: Que não fique se amesquinhando por causa deste ou
daquele sangue. Que olhe à sua volta ... e veja que o povo só conhece
impostos que imaginam o clero, a magistratura e o fisco. Têm cem
braços arrecadando, cem olhos vigiando, atormentado com denúncias
e urdindo vinganças. Um dia, suas garras chegaram em nossa casa e
penduraram seu pai em uma árvore.
JOSÉ: (atormentado) Esquece isto, mãe! Por favor!
MARTA: Esquecer, como?
JOSÉ: A senhora tem me censurado como se eu fosse o culpado!
MARTA: Ainda não é. Mas poderá ser. Um homem não morre
inutilmente. São os outros que tornam a morte inútil, não a usando
para nada. Filho, são belos os papeis que representa. Mas há outros
que vivem à sua volta. Nenhum dos personagens que cria tem a
mesma grandeza de seu pai! ... matando para defender o trabalho
dele, cortando algumas mãos do monstro que continua nos sufocando.
JOSÉ: Vai acabar vencendo, mãe! (ANDRADE, 1969, p. 51-52)
O filho segue os conselhos da mãe, de modo cada vez mais incisivo, o que o
leva a protestar contra a atual situação do país, culminando em sua morte. A partir
daí, Marta quebra de vez com a tradicional imagem materna e usa do corpo do filho
para ir de confraria em confraria exigir o enterro do filho. O que ocorre, pelo decorrer
das ações, deixa evidente o caráter didático e dialético da peça: Marta acaba
propondo um jogo com as organizações fechadas, fazendo com que, por meio de
flashbacks narrativos - que neste contexto não remonta a ideia de nostalgia de um
passado, mas sim cenas do passado assistidas pelo presente gerando uma quebra
de possíveis envolvimentos com o passado- os membros das Confrarias viessem a
negar o sepultamento de José, pois o verdadeiro desejo da mãe é manter o corpo do
filho insepulto como uma maneira de protesto à sociedade hipócrita em que eles
viviam, sobre isto podemos recorrer à Rosenfeld,
Quatro vezes Marta bate debalde às portas das Confrarias e em cada disputa a enigmática personagem cresce em mistério e grandeza. Enquanto se desenvolve um jogo intensamente dramático em torno do acolhimento do morto e da recusa dos dignitários, jogo cheio de malicia, paixão, ironia e cólera, que resulta em devassa chocante de uma esplendorosa mascarada encobrindo interesses e vaidades subalternos, configura-se com nitidez cada vez maior a situação geral da colônia humilhada pela opressão e se insinua o aflorar de novas ideias libertárias vindas da Europa. (ROSENFELD, 1986, p. 608.)
Neste sentido, ao descontruir a figura da mãe por meio dos flashback, Jorge
Andrade em caráter didático, lhe confere quase a figura de um narrador no termo
épico, pois a mesma em muitos momentos mostra estar consciente de tudo que ainda
está por vir e por isso mesmo pode problematizar os fatos, como aponta Rosenfeld
(2002), sobre a importância do narrador no teatro épico.
É sobretudo fundamental na narração o desdobramento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro dos personagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menos, e o do narrador, maior. (ROSENFELD, 2002, p.25)
Toda mãe, figura tipificada, seja no mundo dos humanos como na dos animais,
tende a ser uma referência protetora, acolhedora, aquela que lutaria até o fim para
não expor o filho ao mundo real. No entanto, vimos aqui uma mãe que quebrou com
esse aspecto individualista, saltando dessa dimensão para a coletiva, provocando
estranhamento por parte do público, que gera questionamento.
Jorge Andrade, embora não se considere um autor politicamente engajado,
como bem menciona Rosenfeld (1986), torna-se um dramaturgo que, a partir da
desconstrução da personagem materna tradicional, acaba nos distanciando de uma
relação catártica, utilizando recursos épicos.
Durante toda a obra, Andrade propõe momentos de flashback que servem não
como recursos nostálgicos sobre o passado, ao contrário, são momentos que,
assistidos pelo presente, leva uma relação de quebra com o realismo, podendo o
homem do presente, ao assistir o passado, questionar situações do seu momento.
Outro recurso utilizado em As confrarias é a ideia da mãe, toda vez que começa a
surgir a possibilidade de sepultar o filho, iniciar um Jogo, termo este cunhado pelo
próprio Jorge Andrade, iniciando desta maneira uma alusão ao meta teatro, pois o
leitor tem a consciência de que Marta está jogando para alcançar um objetivo maior,
ou melhor, para desestruturar as confrarias em que está lidando.
Neste contexto de jogo, Marta destaca a importância da figura do ator na
sociedade, ator este que não deve se ater apenas à problemas pessoais para compor
sua arte, ao contrário, deve estruturar sua arte a partir das relações da sociedade que
são passíveis de mudança. Nesta perspectiva podemos ver que a relação do passado
e presente dentro de As Confrarias tem a função de perspectivação da segunda pela
primeira, como se vê na relação da obra de 1969 com o seu passado, ano da fábula,
1789. É a partir das relações da crise do ouro que Andrade propõe uma discussão da
realidade social que o cerca e que ainda hoje, no século XXI, também pode ser objeto
de reflexão.
Nesta obra, a desconstrução da figura materna que Jorge Andrade propõe leva
uma quebra formal com o teatro burguês da época bem como contribui para uma
recepção do teatro dialético no Brasil, pois nesta obra podemos ver uma quebra formal
e estética que tem como discussão a sociedade brasileira pelo viés do oprimido com
um olhar crítico. Neste sentido, cabe ao presente artigo, como parte de seu objetivo,
analisar a obra Senhora na Boca do lixo, escrita em 1963, para poder compreender a
função do Ciclo de peças como contribuinte para o resgate da história nacional com
um viés crítico do teatro que contribuiu para a modernização do mesmo.
SENHORA NA BOCA DO LIXO: UM OLHAR AO PASSADO PARA
PROBLEMATIZAR O PRESENTE
Assim como em As Confrarias, na peça Senhora na Boca do lixo, a personagem
principal recai sobre a figura de uma mãe, Noêmia. Mulher da elite quatrocentona que,
assim como a maioria da classe aristocrática de São Paulo, faliu, e, diante de uma
nova realidade social, a da classe assalariada, se vê perdida entre o passado e
presente, tanto espacialmente quanto ideologicamente. Jorge Andrade recorre mais
uma vez na dialética entre passado e presente utilizando eventos históricos em que o
discurso dominante está em crise. Nesta peça, diferente da Marta de As Confrarias, a
personagem Noêmia tem um olhar nostálgico para o passado mas perspectivada pela
situação atual, fazendo com que sua relação com o presente seja dificultosa, num
tempo dramático diferente, trazendo para nós um aspecto dialético, em que a
sociedade capitalista do século XX apresenta dois pesos e duas medidas, diante da
classe social que está lidando.
Na cidade de São Paulo, a fábula conta a história de uma mulher chamada
Noêmia, viúva, mãe de Camila, que vinda de um passado glorioso, da chamada elite
quatrocentona, perde tudo e diante das crises que acomete a primeira metade do
século XX, se vê obrigada a ajustar-se à realidade da classe média baixa, os
assalariados. Diante desta situação, Noêmia, que recusa a todo custo sua nova
condição, prefere a França do que o Brasil, e de suas viagens, como forma de custear
seus desejos, volta com produtos para revender às “amigas” da alta sociedade por um
preço mais justo, caracterizando contrabando. Nestas circunstâncias Noêmia é
denunciada para as autoridades que vão detê-la. O responsável por esta operação é
o delegado adjunto Hélio, noivo de Camila, que ainda acredita na justiça brasileira,
ponto este em que podemos analisar uma das críticas que Jorge Andrade apresenta
e que posteriormente será aqui aprofundando.
A construção dramatúrgica de Noêmia pode ser assemelhada, guardadas as
devidas proporções, com o que Anton Tchekhov faz em As Três Irmãs, na qual
apresenta personagens que embora estejam em uma situação de crise econômica
vivem em função de um passado distante, não agindo de maneira prática no presente.
Nesta perspectiva, Jorge Andrade ressalta essa recusa ao presente de Noêmia ao
colocar a personagem principal em uma delegacia nos Campos Elísios, lugar hoje
dominado pelos segregados da sociedade, conhecido como a boca do lixo mas que
antes serviu de cenário para a aristocracia paulistana, neste sentido Noêmia ignora
toda a realidade que a cerca, vivendo apenas em referência aos bons tempos do
passado. Esse tom nostálgico que Andrade confere à personagem citada não pode
ser vista como reflexo pessoal da visão do autor sobre o passado, pelo contrário, ele
procura perspectivar essa visão da personagem por meio de outros personagens
como Camila, sua filha, e Marta - quase uma transcendência da mãe de As
Confrarias. Iremos agora nos aprofundar nestas perspectivas que Jorge Andrade
propõe afim de oferecer ao leitor uma dialetização dos fatos, proposta esta que
contribuiu para o caráter social da peça na modernização do teatro brasileiro.
Como vimos, a personagem Noêmia representa nesta peça a figura da classe
aristocrática diante de uma nova organização social, a partir disto a personagem se
apresenta com total negação ao presente que se evidencia quando a mesma tem uma
relação nostálgica com o passado. Se Jorge Andrade tivesse focado apenas na
relação de Noêmia com seu passado a peça poderia tomar um rumo saudosista, no
entanto o autor perspectiva esta nostalgia com a realidade que a cerca, como a casa
em que a personagem mora com sua filha e a delegacia para qual vai presa que fica
no Campos Elísios e também na relação com as personagens Camila e Marta.
Camila é filha única que diante da realidade social em que se encontra
compreende a necessidade de trabalhar dia após dia para poder sobreviver,
personagem que tem consciência de classe e por isso busca, em vão, conscientizar a
mãe da realidade que as cercam, como podemos ver no seguinte diálogo:
CAMILA: Basta... que se esqueça deste meio que não podemos
frequentar mais. Pôr de lado esta gente endinheirada. Eles podem
fazer o que fazem. Nós, não. A vida está passando e continuamos
presas a um mundo que não tem mais sentido, nem pertencemos ao
de hoje.
NOÊMIA: (Irritada) Você está querendo o que? Que esqueçamos o
que fomos? O que somos ainda? Mas, é isto que não tem sentido.
CAMILA: Se trabalhasse, se convivesse com pessoas diferentes, não
se sentiria só, mamãe.
NOÊMIA: Não se trata disto. Se tivesse vivido um pouco mais, saberia
que ninguém muda suas relações depois dos ... enfim, depois de certa
idade. Não trocamos de verdades, como se troca de roupa.
(ANDRADE, 1963, p. 289)
Noêmia no entanto segue conservando seus ideais de vida. Jorge Andrade ao
perspectivar as personagens propõe uma dialética, pois o leitor estará diante de duas
concepções de mundo, na qual a primeira se vê enrijecida diante dos fatos sociais e
a segunda, que compreende a transformação do homem diante das relações
socioeconômicas. Neste sentido, a relação das duas personagens citadas não
aparece apenas como um conflito entre mãe e filha no sentido tradicional, antes, com
uma extensão coletiva, a relação de ambas dá à obra um caráter social, na qual a
primeira é perspectivada pela segunda, desnaturalizando as ações de Noêmia.
Mais um momento que Jorge Andrade apresenta a relação nostálgica da
protagonista pode ser vista quando a mesma vai presa, na boca do lixo.Noêmia é
denunciada e levada para a delegacia que funciona em um velho palacete art-nouveau
que se localiza no bairro Campos Elísios, região nobre no passado mas que hoje serve
de cenário para a decadência na capital paulistana. Diante deste novo cenário que, a
partir do segundo ato em diante passa a ser dominante, a protagonista mostra mais
uma vez sua alienação diante da realidade, pois a delegacia é um antigo casarão
frequentado pela alta sociedade da qual fazia parte, neste sentido, Noêmia se agrada
pelo fato de estar lá.
HÉLIO: (voltando-se subitamente) Sente-se
NOÊMIA: Obrigada. (Examina a sala) Sabe? O senhor acabou me
prestando um grande favor. Revi uma casa muito querida. Deve ser
agradável trabalhar em um ambiente assim.
HÉLIO: Assim, como?
NOÊMIA: (Com gesto delicado) Assim... numa construção fim de
século que é das poucas joias que restaram nesta cidade. Foi o
senador Jaguaribe quem construiu. Sabia? Foi homem encantador.
Inaugurou este palacete com baile memorável. Catarina, a mulher
dele, pertencia, como eu, a velhos troncos da família paulista (...)
(ANDRADE, 1963, p. 308)
A antiga aristocrata mais uma vez mostra sua negação do presente em função
do glorioso passado. É importante destacar que Jorge Andrade ao construir esta
personagem não à estruturou como uma personagem realista, que tem sua nostalgia
pautada em questões psicológicas, é sim, pautada por questões individuais, porém
questões estas advindas de um classe que ajuda a compor uma divisão social que
está representada na figura de Noêmia, desta forma, a personagem embora seja
individualista representa toda uma classe social. Neste parâmetro, Andrade se
destaca por sua construção de personagens humanos que representam a sociedade,
pois é a partir da realidade vivida e estudada de Jorge Andrade que ele estrutura sua
obra artística, dando à ela uma vasta extensão social, neste sentido, Cândido afirma
que:
O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia
do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros.
Neste nível de análise, em que a estrutura constituiu o ponto de
referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para
o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa
do todo (CÂNDIDO, 1973, p.16)
A intenção de Jorge Andrade mostrar as desigualdades sociais ao longo da
história pode ser caracterizada pelo formato do ciclo de peças, logo, como todo ciclo,
os acontecimentos nunca param. Neste sentido, Andrade perpetua a personagem
Marta ao longo das dez peças que, em diferentes momentos aparece, muitas vezes
apenas mencionada ou com nome diferente, no entanto com a mesma consciência de
classe que perspectivaas relações dramáticas, como melhor esclarece Rosenfeld
(1986):
Ela aparece em várias peças, quer cenicamente, quer apenas
mencionada ou evocada, às vezes mesmo transparece de outro nome.
Ela surge nas mais variadas posições sociais, mas sua substancia é
sempre a mesma. Aos poucos assume caráter quase mítico pela
intemporalidade e tipicidade de figura popular em que se fundem
traços agudamente observados, e qualidades virtuais, projetadas pela
imaginação do escritor que dá voz à fé e esperança do espírito
coletivo. (ROSENFELD, 1986, p. 607)
Tendo compreendido a posição da personagem Marta no ciclo, e já tendo
levantada suas características na peça As Confrarias, podemos melhor analisar sua
presença na obra Senhora na Boca do Lixo que, mesmo passando em tempos
históricos diferentes - a primeira se passa em 1789 e aquela em 1963 - temos a
personagem com a mesma substancia social.
Noêmia ainda na espera de seu destino na delegacia, pois o delegado adjunto
Hélio, o advogado Penteado, sua filha Camila e os demais integrantes buscam uma
solução para o caso. O primeiro deseja a todo custo fazer justiça, enquanto o
advogado buscam uma saída para seu problema, não por acreditar na inocência, mas
por interesse próprio. Neste contexto, Noêmia encontra Marta, mulher de classe baixa
que consciente de sua condição social, aguarda o filho mais novo, que está preso, ser
libertado. Ambas dialogam e mais que uma conversa, Andrade nos apresenta aqui
tempos dramáticos diferentes que estão estruturados pela condição social,
econômica, ideológica e histórica. Enquanto Noêmia pensa em“sonhos” fritos com
açúcar e canela, Marta questiona o preço do ovo.
NOÊMIA: (...) Deixe fritar e amasse com ovos, fritando em gordura bem quente. É simplesinho e ótimo para o café da manhã.
MARTA: Os ovos estão caros!
NOÊMIA: Vão quatro ou cinco apenas (...) (ANDRADE, 1963, p. 325)
Ainda mostrando seu descompasso com a realidade, Noêmia, deixa claro ao
dialogar com Marta, que não tem relação com o presente e que suas referências se
pautam no passado, como quando a mesma deseja que se acendam o lustre da
delegacia: “NOÊMIA: Por que será que não acendem o lustre? Está escuro. (Olha à
sua volta com expressão ansiosa) Quando acenderem o lustre, vai ver que beleza!”
(ROSENFELD, 1963, p. 329)
Nestes diálogos mencionados podemos ver a negação, consciente ou não, de
Noêmia para com o presente, mas sua alienação não condiz apenas com o estado
físico das coisas, está também no nível social, e isso se evidencia no momento em
que a mesma, ainda com Marta, ao descobrir que o marido da colega está preso por
piquete, se mostra contra as greves que acometem o mundo:
NÔEMIA: São horrorosas essas greves. Por que não se entendem
como pessoas civilizadas, não é mesmo? Descontrola tudo. Ainda
recentemente quando fui conhecer duas pequenas cidades da costa
francesa, tive de esperar cinco horas numa estação de estrada de
ferro. Era desolador todos aqueles trens parados. (ANDRADE, 1963,
p.327)
Diante das relações de Noêmia, seja com Marta, Camila ou Hélio, para citar
apenas três personagens, podemos ver que sua alienação resulta de uma consciência
de classe que, mesmo estando afundada, resiste em se adaptar às novas relações
sociais.
Jorge Andrade a partir deste contexto já apresentado, problematiza a dúbia
Justiça brasileira que, diante de diferentes relações sociais, apresenta diferentes
pesos e medidas, mostrando que, mesmo perdendo os poderes da classe aristocrática
ainda se mostra influente, mudando os rumos até mesmo da justiça.
Como foi mencionado, Hélio, delegado adjunto, insiste em fazer justiça,
prendendo Noêmia, no entanto, colegas de repartição falam para o mesmo deixar isso
para lá, por que estaria se envolvendo com pessoas poderosas, no entanto o mesmo
persiste em seus ideais de justiça. Diante disto, o advogado Penteado aparece
tentando reverter o caso à favor de Noêmia, fazendo uma proposta para Hélio:
“PENTEADO: Peça remoção por motivo de saúde – assim será mais discreto- e
receberá um cheque de vinte mil cruzeiros. Pode dizer também que não se adaptou à
cidade grande.” (ANDRADE, 1963, p. 317)
Vemos que Jorge Andrade revela o poder dos que possuem dinheiro dentro da
sociedade. A fábula se finda com a libertação de Noêmia e todos os possíveis
envolvidos no crime, filhos de fidalgo, Hélio, aquele que por procurar a justiça, se vê
obrigado a ir embora, e Marta, como bem mostrou em seu diálogo, teve o filho preso
por pequenos furtos e o marido por se envolver em piquetes de greve, caracterizando
filhos de ninguém de uma nação. Esta situação de desigualdade na justiça pode ser
identificada no diálogo entre Camila e o delegado Garcia.
CAMILA: (Agitada) Deve haver algum meio. Precisamos fazer alguma coisa.
GARCIA: Aqui, qualquer erro é perigoso. E Hélio cometeu muitos.
CAMILA: Ele prendeu pessoas culpadas. Onde está o erro?
GARCIA: Entre muitos, em ter acreditado que a justiça só tem uma verdade, É o que digo sempre: não seja ladrão de galinha. Para estes é que não há apelação.
CAMILA: (Atônita) E o senhor admite?
GARCIA: Adianta investir contra moinhos de vento? (ANDRADE, 1963, p. 330)
Em A Senhora na Boca do Lixo vemos a discussão do Brasil do século XX
contada por personagens humanos mas por um viés crítico, pela perspectiva do
oprimido em que Jorge Andrade propõe uma discussão política e econômica de nosso
país, sente sentido para Rosenfeld (1986), a obra é “... lúcida na análise das situações,
das personagens e das ideias, aponta as injustiças sociais, os dois pesos com que os
representantes da lei tratam os filhos de ninguém e os fidalgos.” (ROSENFELD, 1896,
p. 604)
Nesta perspectiva, esta obra apresenta no conteúdo uma análise crítica da
situação social de nosso país, tendo como referência a dialética que é representada
pelo contraste entre as personagens analisadas neste artigo, bem como traz uma
nova forma estrutural, na qual o retorno ao passado deixa de ser saudosista, mas sim
se apresenta com uma função épica. A partir disto podemos melhor compreender a
contribuição de Jorge Andrade para a tradição dialética no teatro brasileiro do século
XX.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A modernização do teatro brasileiro no século XX caracterizou-se, dentre
outras coisas, por trazer para as peças assuntos brasileiros que, por sua característica
própria, necessitava de uma nova forma para ter sentido. Partindo deste pressuposto,
podemos concluir que Jorge Andrade, ao organizar o ciclo de peças intitulada Marta,
a Árvore e o Relógio,trouxe para o cenário teatral brasileiro eventos históricos que,
como vimos em As Confrarias que remonta à crise do ouro do século XVIII ou em
Senhora na boca do lixo com a crise aristocrática do século XX, leva ao leitor uma
visão crítica pela perspectiva do oprimido, buscando, por meio do passado, um mundo
passível de melhora no presente, como bem ressalta Sábato Magaldi (1997), “Jorge
Andrade define-se sobretudo como reformista. Em todas as suas peças, sente-se a
nostalgia de um mundo melhor, sepulto nas delícias do passado.” (MAGALDI, 1997,
p.231)
Dentro deste contexto, Jorge Andrade não apenas inovou no conteúdo das
peças, revirando o passado criticamente, como também propôs uma nova forma para
lidar com estes históricos acontecimentos, forma esta que, com uma tradição dialética,
contribuiu para a ruptura do teatro burguês, dando ao leitor e espectador um
distanciamento necessário dos fatos para poder analisá-los, e, paradoxalmente,
permitindo uma aproximação com personagens ricos em sua extensão humana,
riqueza esta que, pela própria forma adotada, não gerou necessariamente uma
identificação catártica, pelo contrário, Andrade conseguiu, ao longo de sua pesquisa
histórica e humana, acrescer para o teatro brasileiro personagens complexos e
histórias dramáticas que representam o coletivo passível de mudança pelo homem
conscientizado de sua função social. Neste sentido, temos em Jorge Andrade obras
de cunho artístico e,embora o autor não se considere, de engajamento político que
possibilita ao leitor brasileiro conhecer mais de sua própria história pelo olhar do
oprimido, segregado, por meio do teatro.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. In: BARBOSA, J. A. et al (Org.).
AsConfrarias. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986. p. 21-70.
ANDRADE, Jorge. Marta, a Árvore e o Relógio. In: BARBOSA, J. A. et al (Org.).
Senhora na Boca do Lixo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986. p.281-338.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Nacional, 1973. 193p.
MACIEL, Diógenes André Vieira. Ensaios do nacional-popular no teatro brasileiro moderno. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 2004.
___________.Panorama do Teatro Brasileiro, São Paulo: Global, 1996.
PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009.
ROSENFELD, A. Marta, a Árvore e o Relógio. In: BARBOSA, J. A. et al (Org.). Visão do ciclo. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 599-617.
____________. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2010.