Contato - Cezanne e a Tradicao Da Pintura

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Relações entre a arte clássica e a arte moderna através da análise da obra de Cezanne

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  • Universidade do Estado do Rio de JaneiroUniversidade do Estado do Rio de JaneiroUniversidade do Estado do Rio de JaneiroUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

    Instituto de ArtesInstituto de ArtesInstituto de ArtesInstituto de Artes

    Seminrio de Seminrio de Seminrio de Seminrio de Crtica, Crtica, Crtica, Crtica, Histria e Teoria da Arte Histria e Teoria da Arte Histria e Teoria da Arte Histria e Teoria da Arte VIVIVIVI

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    Leidiane CarvalhoLeidiane CarvalhoLeidiane CarvalhoLeidiane Carvalho

    Rio de Janeiro, 24 de Julho de 2009.

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    Contato Contato Contato Contato Czanne e a tradio da pintura. Czanne e a tradio da pintura. Czanne e a tradio da pintura. Czanne e a tradio da pintura.

    Todo artista, a seu modo, desde mais ou menos o chamado Renascimento

    Italiano, tinha perfeita conscincia do quo abstrato era seu trabalho. Ele, antes de

    qualquer coisa, lidava com uma harmonizao de imagens que representavam uma

    natureza ideal, de modo que se apresentassem nesse campo espacial da perspectiva

    linear, que era inextricavelmente matemtico. Portanto, desde Leonardo, o artista

    passa a se ver como tal, a entender a arte como coisa mental1 e quer representar

    esta natureza de acordo com este ideal. Czanne tambm tem seu ideal. Ele quer que

    sua arte seja to inovadora quanto a dos impressionistas, mas to densa quanto a dos

    antigos. Czanne queria ser to grande quanto fora Poussin, fazer uma arte to slida

    quanto a dele, mas no usar a perspectiva renascentista para delimitar seu espao.

    Para Czanne, a arte no pode ser apenas construda por artifcios do crebro, mas

    que se entenda pelo funcionamento do olhar. A melhor pintura, tambm, aquela

    que executada fora do estdio. Ele, ento, no aprova a pintura feita como

    literatura, que narra uma cena que no existiu. Fazer isso admitir que pintou um

    estado psicolgico que no se expressou pelo desenho ou pela cor. A matria do

    artista a tela e a tinta - a literatura no faz parte desta matria. Czanne quer

    apenas trabalhar com o que acha ser prprio da pintura.

    Isto posto, ento, no demonstra que Czanne negasse os grandes temas da

    arte. Pelo contrrio, ele buscava sua solidez em contrapartida aos impressionistas,

    para quem no importava o que se pintasse, contanto que fosse um estudo de cor e

    luz instantneo. Alm disso, h a velha anedota que dizia que o impressionista nem

    sequer poderia passar na porta do Louvre sem correr o risco de ser contaminado pela

    1 Leonardo diz em seus escritos que arte coisa mental, numa atitude que busca para o artista o mesmo prestgio que tinha o poeta ou o msico. At ento, a pintura e a escultura eram vistas somente como trabalhos mecnicos. A partir dos escritos de Leonardo, o pintor e o escultor so reconhecidos como profissionais pensantes, pois, j que a perspectiva linear baseia-se inteiramente em clculos espaciais, conclua-se que o pintor e o escultor precisavam ser versados nas artes do pensamento (a matemtica, a fsica) para realizar tal tarefa.

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    arte do passado. Parece que o artista no tendo abandonado esta tradio pictrica ao

    desviar do carter pluralista da arte do seu tempo, e mantendo a fidelidade com a

    arte clssica, pde realizar estudos pictricos, perceptivos e visuais nicos. Assim,

    pinta naturezas mortas, retratos, pinturas de gnero, paisagens, no abandonando

    esta temtica, mesmo que no se relacione com ela do mesmo modo como fizeram os

    pintores mais antigos. Sua pintura no refratria aos temas que pinta, pelo

    contrrio, ele inverte a posio dos antigos e faz com que estes temas sejam

    refratrios para sua pintura. Porm, pensar seu trabalho de modo apenas formal, pelo

    seu uso da cor, massas que proporcionam equilbrio, tambm empobrecer sua obra

    de qualquer outro significado que possa ter, e acredito que eles estejam realmente

    presentes na obra do artista. Gostaria, ento, de propor uma investigao neste

    pequeno artigo: a relao de Czanne com a pintura tradicional e os significados que

    lhe podem ser atribudos, que no se atenham apenas s anlises formais e formalistas

    que seu trabalho carrega. Para isso, buscarei correlacionar os temas que opta pintar

    com temas de pinturas antigas, remetendo-me principalmente discusso das

    representaes da melancolia e do memento mori.

    Um Czanne Um Czanne Um Czanne Um Czanne mmmmelelelelancancancanclicolicolicolico. . . .

    No pretendo aqui desfilar detalhes sobre a tradio da representao da

    melancolia na histria da arte, mas, mesmo temendo ser muito sucinta, uma sntese

    deste tipo de representao relacionando-a ao nosso tema principal, a temtica

    pictrica de Czanne. Sabe-se que, atravs do tempo, esta tradio ganhou diversas

    roupagens e transformaes de acordo com a interpretao que recebia, permeada

    pelos conhecimentos da poca, principalmente com estudos de ordem iconogrfica e

    psicolgica, mas tambm de natureza especulativa. No passado, havia o

    entendimento do corpo como funcionando em virtude do equilbrio de quatro

    fluidos que equivaleriam a quatro humores. Todos receberam diferentes nomes e

    significaes de acordo com a poca que estudarmos, mas o que nos interessa que a

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    melancolia era, a princpio, entendida como um problema clnico que surgia em

    virtude da prevalescncia de um dos quatro fluidos ou humores no corpo

    humano: a bile negra. Este fluido, alm de ser visto como, quando em desequilbrio,

    causador de febres, de lepra, escorbuto, etc., tambm provocaria perturbaes no

    esprito do homem, que seriam associadas a psicoses, doenas da mente, mas tambm

    ao gnio criador, ao pensamento. Isto poderia variar de acordo com o modo como a

    bile se manifestava para cada pessoa: por vezes, ela se manifestava produzindo uma

    reflexo to profunda e enredante que tornava o indivduo totalmente letrgico. Mas,

    outras vezes, manifestava-se como o impulso criador, a potncia do vir a ser. Os

    estados descritos podiam variar, se intercalar num ritmo imprevisvel.

    Sobre Czanne tambm se dizia que era um psictico. Ele mesmo se descrevia

    em estados de perturbaes cerebrais to graves que poderiam lev-lo total perda

    da razo2. Era um misantropo, trabalhava sozinho, no tinha apoio da famlia, dos

    amigos ou da crtica. No podia ser tocado por ningum, tinha pavor do toque.

    Sempre manteve um histrico de humor colrico, depressivo, ansioso. Merleau-

    Ponty diz que Czanne tinha medo da morte, no queria ser fisgado, por isso

    evitava a aproximao de amigos, permanecia tmido e afastado. Lucrcio e Sneca

    teriam dado como causa melancolia o medo da morte. Mais do que isso: o medo de

    viver morto, de que aquilo que faziam poderia ser irrisrio, no ter utilidade alguma

    no mundo. No era este precisamente o temor de Czanne? No obstante passasse

    horas a fio pintando, que dedicasse toda sua existncia quela atividade, ainda se

    questionava sobre o que tinha escolhido fazer, escrevendo, pouco antes de morrer

    que apesar de seu esforo nos estudos da pintura, seus avanos eram lentos.

    Merleau-Ponty diz que os amigos de Czanne, mile Bernard e Zola, erraram

    por tomar a obra do artista como fracassada frente a sua avaliao psicolgica e que

    seria um erro tomar sua obra por sua vida. Decididamente, a obra de Czanne no foi

    um fracasso, mas, como este mesmo autor dir em outro momento, esta obra pediu a

    vida de Czanne. Ele teve a vida que a obra permitiu que ele tivesse. Penso,

    2 MERLEAU-PONTY, Maurice. A dvida de Czanne, 2004. Pg. 123.

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    entretanto, que a recproca tambm deveria ser verdadeira: ele produziu a obra que

    sua vida lhe permitiu. No penso ser correto afastar o carter do autor da obra um

    certamente gera uma marca no outro. Assim, chamam Van Gogh de expressionista

    com suas obras repletas de cores vibrantes, de temas que falam de sua estada num

    manicmio, etc., enxergam uma obra to atormentada como seu autor. Nem por isso

    alguma vez o pintor deixou de pensar formalmente sobre seu trabalho. Chega a dizer

    ao irmo numa carta que no para de fazer clculos para realizar suas pinturas. Do

    mesmo modo, penso que ocorre em Czanne. Seu temperamento no impede que ele

    faa da sua a pintura mais preocupada com inovaes pictricas. Porm, este mesmo

    temperamento talvez explique as opes dos temas que pinta.

    Da tradio da representao da melancolia na arte, o artista mais

    paradigmtico Drer com seu conjunto de gravuras muito estudado por seus

    atributos icono-simblicos: O cavaleiro, a Morte e o Diabo (fig. 1), So Jernimo

    em seu estdio (fig. 2) e Melencolia I (fig. 3).

    Fig. 1. Fig. 2

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    Segundo Marie Claude Lambotte em seu livro A esttica da Melancolia, o

    conjundo de imagens traduziria a tenaz presena da morte, o inexorvel escoamento

    do tempo, a enganao das vaidades. Para Panofsky, entretanto, a primeira

    representaria a vida do cristo no mundo material da ao e da deciso, a segunda, a

    do santo no mundo espiritual da contemplao sagrada e a terceira, aquela do gnio

    secular nos mundos racional e imaginativo das cincias e das artes. As que acredito

    interessarem mais neste ensaio so a segunda e a terceira gravuras, ambas por

    estarem presentes na obra de Czanne como atributos simblicos da melancolia.

    Fg. 3.

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    Atributos simbAtributos simbAtributos simbAtributos simblicos da melancolia licos da melancolia licos da melancolia licos da melancolia na obra de Cna obra de Cna obra de Cna obra de Czanne. zanne. zanne. zanne.

    A pintura Menino com Caveira de Czanne traz detalhes nos que remetem

    tradio da representao da melancolia: o estdio, ou local em que a personagem

    parece estar completamente s, a caveira que se apia em livros sobre a mesa, o

    semblante ensombrado do menino retratado e a cabea suportada pelo punho

    cerrado. Comparando-a com a figura 2, percebemos a semelhana formal entre elas.

    bvio que a pesquisa pictrica que faz Czanne remete s questes da pintura

    clssica, mesmo que no intuito de neg-las o artista no aprovava o uso da

    perspectiva linear como sada para representar a natureza mas, em lugar disso, joga

    com massas de cor que querem criar uma natureza to slida que no recorreria ao

    sfumatto para representar o que se afasta dos olhos do observador. Entretanto, o

    Fig. 4.

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    tema de que trata o pintor no pode ser ignorado em detrimento de suas pesquisas

    plsticas. Percebe-se uma tentativa de resignificar este tema, apropriar-se dele de

    algum modo. E o tema diz muito a respeito do prprio pintor: talvez este menino seja

    uma representao dele mesmo, em sua solido do estdio, em sua pesquisa pictrica,

    em suas preocupaes com a sua prpria morte e com a morte do seu trabalho, que

    queria to slido quanto a pintura que fazia.

    As caveiras que pinta em meio s naturezas mortas tambm dizem muito a

    respeito do pintor. Caveiras, na histria da arte, tiveram sempre o atributo da morte.

    Mais precisamente a partir do dito Renascimento elas aparecem como um memento

    mori, expresso latina que quer dizer lembra de que morrers. Elas apareciam

    acompanhadas de personagens, como a que acompanha So Jernimo, um lembrete

    de que ele morrer, mas que a morte para ele no traz temores porque ele escolheu a

    vida de um santo. A caveira, na pintura, funciona como um enunciador que lhe

    convida a agir do mesmo modo que o santo. Posteriormente, no chamado perodo

    Barroco, as caveiras ainda aparecero, mas desta vez podem aparecer sozinhas ou

    acompanhadas de smbolos das vanitas, que so as vaidades, o terreno, a juventude

    que se esvai (fig. 5).

    Fig. 5. Vanitas. Toms Hiepes. Circa 1600.

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    Czanne tambm trabalha com estas vanitas pintando-as como os antigos na

    juventude (fig. 6), mas mesmo posteriormente no abandonar o tema (fig. 7 e 8).

    Fig. 6. Caveira e Candelabro.

    Fig. 7. Pirmide de Caveiras.

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    Caravaggio pintava flores, frutos e jovens como se pintasse caveiras para ele, todos

    juntos eram vanitas porque, dentre os frutos frescos, inclua uma fruta que apodrecia

    e uma folha que amarelava para nos lembrar de que a vida se esvai. Talvez Czanne

    pinte caveiras (e caveiras junto com mas) porque dizia pintar pessoas como pintava

    mas, ambas, pictoricamente, compartilhavam do mesmo material e da mesma

    solidez. Entretanto, talvez as pintasse por reconhecer que o mundo se faz e se desfaz,

    talvez reconhecesse a transitoriedade da vida. E bastante contraditrio que se

    queira pintar solidamente algo que sabe que j est por se esvair: as frutas estaro

    sempre frescas no quadro, quase vivas, mas na vida elas esto apodrecendo enquanto

    ainda jovens.

    Czanne, por seu entendimento da pintura e suas visitas ao Louvre, onde

    acreditava estar a soluo para qualquer questo da arte, somados sua religiosidade

    crescente, devia ter conscincia das questes com que estava lidando. As anlises

    formais da obra de Czanne, principalmente por parte de estudiosos da poca do

    modernismo, quando a arte queria se afirmar como tal (entre eles Clement

    Greenberg, dentre outros) sempre procuraram esvaziar a pintura deste artista de

    qualquer significado que se afastasse das pesquisas pictricas puras e simples.

    Czanne no queria representar a janela renascentista para o mundo, tampouco

    pensou em ocultar seu suporte a tela -, e no viveu num tempo em que a arte

    estava a servio da Igreja e da religiosidade. Sua arte est a servio de si mesma, mas

    Fig. 8. Natureza morta com caveira.

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    no se encerra em si mesma. Estabelece uma relao com seu mundo e seu tempo,

    mas tambm com a arte do passado e, como sabemos hoje, influenciou a arte

    posterior de tal modo que teria sido dito por Picasso e Matisse que Czanne pai de

    todos ns.

    BBBBiiiibbbblllliiiiooooggggrrrraaaaffffiiiiaaaa

    KLIBANSKY, Raymond, PANOFSKY, Erwin y SAXL, Fritz. Saturno y la Melancolia.

    Alianza Editorial. Madrid, 1991.

    LAMBOTTE, Marie Claude. Esttica da Melancolia. Rio de Janeiro, Companhia de

    Freud, 2000.

    MERLEAU-PONTY, Maurice. A dvida de Czanne. In: OOOO OOOOllllhhhhoooo eeee oooo eeeesssspppprrrriiiittttoooo.... So

    Paulo, Cosac & Naify, 2004.