CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

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Universidade Federal do Rio de Janeiro CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO SOLIMÕES-AMAZONAS: UM ESTUDO SOBRE A VARIEDADE DE PORTUGUÊS FALADA POR PROFESSORES TIKUNA Ligiane Pessoa dos Santos Bonifácio Rio de Janeiro 2019

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO SOLIMÕES-AMAZONAS:

UM ESTUDO SOBRE A VARIEDADE DE PORTUGUÊS FALADA POR PROFESSORES

TIKUNA

Ligiane Pessoa dos Santos Bonifácio

Rio de Janeiro

2019

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA-PORTUGUÊS NO ALTO SOLIMÕES-AMAZONAS:

UM ESTUDO SOBRE A VARIEDADE DE PORTUGUÊS FALADA POR PROFESSORES

TIKUNA

Ligiane Pessoa dos Santos Bonifácio

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-

graduação em Linguística da Universidade Federal

do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de

Doutora em Linguística.

Orientadora: Profª. Dra. Marília Lopes da Costa Facó Soares

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2019

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidospelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

B715cBonifácio, Ligiane Pessoa dos Santos Contato linguístico Tikuna -Português no AltoSolimões-Amazonas: um estudo sobre a variedade deportuguês falada por professores Tikuna / LigianePessoa dos Santos Bonifácio. -- Rio de Janeiro,2019. 268 f.

Orientadora: Marília Lopes da Costa Facó Soares . Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Linguística, 2019.

1. Contato Linguístico. 2. Sociolinguística. 3.Aquisição de Segunda Língua. 4. Português Tikuna . 5.Variação. I. Soares , Marília Lopes da Costa Facó ,orient. II. Título.

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, por serem exatamente como eu

preciso que sejam para me ajudarem a trilhar

meu caminho evolutivo;

Ao meu marido, por ser meu melhor amigo e

por ser o primeiro a torcer por mim e a ficar

feliz com as minhas conquistas;

Ao povo Magüta (Tikuna), especialmente, aos

professores Tikuna, por serem incansáveis na

busca pela formação e pela construção de uma

escola que atenda aos seus anseios, dentre os

quais está o de preservação de seus costumes e

de sua língua nativa.

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Não sou muito... muito bem aceito na fala,

porque tem essa língua que ainda não é cem

por cento, né? Então, eu sei que a

discriminação existe. (L.J.F., professor Tikuna)

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AGRADECIMENTOS

Considero a gratidão um dos atos mais nobres que o ser humano pode demonstrar ao

outro, como forma de reconhecer que sem a ajuda recebida, o caminho na jornada terrena seria

mais árduo; por isso, com sentimento de profunda gratidão, agradeço às pessoas que me

ajudaram a trilhar essa parte da minha jornada e às instituições que tornaram possível esse

caminhar.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM, por ter me

concedido apoio financeiro para a realização do estudo durante o curso de doutorado.

À Universidade Federal do Amazonas - UFAM, por ter autorizado o meu afastamento

das atividades que eu exercia no âmbito da instituição para que eu pudesse cursar o doutorado.

À minha orientadora, Marília Facó Soares, por ter me ensinado que fazer pesquisa

junto aos indígenas é, antes de tudo, estar junto deles, ouvi-los, conhecer suas histórias, partilhar

suas dores e alegrias e, a partir disso, registrar, analisar e dar voz àquilo que dizem. Agradeço,

ainda, pela amizade construída nessa empreitada, pelas nossas viagens no Rio Solimões rumo

a São Paulo de Olivença e as nossas idas à aldeia Filadélfia. Agradeço, enfim, por tudo que

compartilhamos e ao seu empenho no estudo da língua Tikuna, que me possibilitou fazer as

análises necessárias nesta pesquisa.

Às professoras Beatriz Christino e Christina Gomes, pelas questões, sugestões e

comentários suscitados por ocasião do exame de qualificação. Agradeço, em especial, à

professora Beatriz Chirstino, por ter me apresentado, durante as aulas da disciplina Interface II,

textos sobre a variedade de português falada e escrita por indígenas, fato que me fez, na metade

do curso, querer investigar a variedade de português Tikuna. E à professora Christina Gomes,

por ter se disposto a me atender após o exame de qualificação e ter me feito outras questões que

me possibilitaram direcionar algumas de minhas análises.

Às professoras Maria Cecília de Magalhães Mollica, Jaqueline dos Santos Peixoto e

aos professores Carlos Alexandre Victorio Gonçalves e Gean Nunes Damulakis, pela leitura

atenta e cuidadosa do texto da tese que foi submetido à defesa, pelas sugestões valorosas que

fizeram e espero ter contemplado nesta versão do texto.

A Lourdes Cristina Araújo Coimbra, bibliotecária que atua junto ao Centro de

Documentação de Línguas Indígenas (CELIN)/Setor de Linguística/Museu Nacional/UFRJ,

por toda ajuda com o acervo de textos relacionados à língua e ao povo Tikuna.

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Aos professores do Programa de Pós-graduação em Linguística da UFRJ, pelo tanto

que ensinaram e me desafiaram a superar a mim mesma. Estendo os agradecimentos aos colegas

e amigos do curso. De uma forma especial, agradeço às amigas Alzira Davel, Caroline Soares,

Celeste Ribeiro, Monique Santos, Poliana Calazans, Wirla Rodrigues e ao amigo Shelton de

Souza, por terem sido os melhores companheiros que eu poderia ter nesse percurso, pela

amizade que construímos, pela parceria, pelas palavras de incentivo e pelo bem querer mútuo.

Aos professores Tikuna que participaram da pesquisa, por terem compartilhado suas

histórias; a alguns deles, por terem aberto as portas de suas casas e permitido que eu fosse além

de uma professora e pesquisadora, mas que compartilhasse um pouco de suas vivências.

Ao meu marido, Luciano Bonifácio, por ter trazido leveza à minha vida há dez anos e,

ao longo desse doutorado, não ter poupado esforços para que eu ficasse bem, mesmo estando

ausente. Por nunca querer cortar minhas asas, mas impulsionar os meus voos; por todo amor,

que se manifesta na forma de zelo, presença mesmo na ausência, companheirismo,

cumplicidade e compreensão. Eu nunca conseguirei agradecê-lo o suficiente pelo tanto que faz

por mim.

À minha mãe, Juraci Pessoa, pelas orações em meu favor, por dedicar a mim tanto

amor, atenção e cuidado sempre. Pelo exemplo de mulher forte e aguerrida, que me estimulou

a sempre lutar para tornar realidade os meus sonhos.

Ao meu pai, Cileno Alves do Santos, por se preocupar com o meu bem-estar, por ter

me proporcionado todas as condições para o deslocamento e suprimentos em São Paulo de

Olivença e nas aldeias de Bom Jardim do Passé e Vendaval. Estendo também o agradecimento

à minha tia Zoraneide dos Santos, por sempre me receber de coração e braços abertos em São

Paulo de Olivença.

À minha irmã, Nígia Pessoa, pelo incentivo constante e ao meu sobrinho, Filipe

Pessoa, por ser luz e alegria na minha vida.

Aos meus amigos mais recentes e aos de longa data, por se preocuparem com meu

equilíbrio emocional, pelas orações e pelas palavras de estímulo. Em especial, ao Matthews

Cirne, que me acompanhou durante todo o percurso.

A Deus, por ter me concedido a oportunidade de reencarnar e, aqui na Terra, buscar

evoluir; por estar comigo em todos os momentos e por me sustentar naqueles em que minhas

forças estavam se esvaindo. À espiritualidade amiga, pelo cuidado e proteção.

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RESUMO

Esta tese apresenta resultados de uma pesquisa, por meio da qual objetivou-se registrar, analisar

e caracterizar a variedade de português de contato falada por professores da educação básica,

pertencentes à etnia Tikuna, moradores de comunidades do município de São Paulo de

Olivença, na mesorregião do Alto Rio Solimões, no Amazonas. Por meio do registro, da análise

e da caracterização do Português Tikuna, buscou-se, também, identificar o estágio aquisitivo e

os graus de fluência desses professores no que diz respeito ao português falado por eles como

segunda língua. Para alcançar os objetivos, foram analisados dados de fala de vinte e três (23)

professores da educação básica. Dezenove (19) deles estão em processo de formação

universitária, cursando Pedagogia Intercultural Indígena na Universidade do Estado do

Amazonas, três (3) são professores da educação básica que se tornaram estudantes de pós-

graduação e um (01) é professor da educação básica da comunidade de Vendaval, graduado

pelo programa do Terceiro Grau Indígena da Organização Geral dos Professores Tikuna

Bilíngues – OGPTB. Na análise, partimos da seleção de fenômenos linguísticos que englobam

aspectos fonético-fonológicos e morfossintáticos dessa variedade, investigando possíveis

condicionamentos das variações em jogo, tais como: a) presença de traços particulares

relacionados a mecanismos de transferência da L1 para L2 nesse processo de aquisição da

segunda língua, b) replicação de condicionamentos conforme os falantes nativos do Português

Brasileiro, c) apresentação de alguma semelhança com outras variedades de português indígena

do Brasil. Adotamos, como basilares para a fundamentação teórica de nossa pesquisa, os

pressupostos do Contato Linguístico e da Sociolinguística, a partir de trabalhos como o de

Weinreich (1953), Thomason e Kaufman (1988), Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]),

Winford (2003), Thomason (2001), Matras (1998, 2009), dentre outros, por nos possibilitarem

analisar efeitos do contato linguístico na variedade de português falada pelos professores

Tikuna que elencam nosso estudo, principalmente no que se refere à aquisição de segunda

língua, ao bilinguismo e à variação. De forma mais específica, em nossa análise, com relação à

investigação sobre identidade e usos linguísticos relacionados ao contato, lançamos mão de

autores cujos trabalhos contêm discussões que, podendo ser levadas a cenários com encontros

de culturas e/ou de línguas, são proveitosos para a nossa investigação, como, por exemplo, além

dos já citados anteriormente, Fishman (1967,1975), Labov (2008 [1972b]), Tabouret-Keller

(1998), Appel & Muysken (2005), entre outros. Naquilo que envolve especificamente a língua

Tikuna no quadro do presente estudo, recorremos a trabalhos voltados para a análise dessa

língua tal como é falada no Brasil: Soares (1984, 1986, 1991, 1992a, 1992b, 1994, 1995, 1997,

2000a, 2000b, 2005a, 2005b, 2017). Já no que diz respeito aos temas da identidade e do uso

linguístico, acrescidos das questões relativas à variação existente no português brasileiro,

especificamente nas variedades faladas por indígenas, valemo-nos de estudos como os de:

Emmerich (1984), Mollica (1997), Paiva (1997), Christino & Lima e Silva (2012), Amado

(2015), Braggio (2015), entre outros. Assim sendo, ao lado do método etnográfico, seguimos

procedimentos adotados em pesquisas sociolinguísticas, com especial atenção à

representatividade da amostra, à identificação e ao agrupamento de fatores sociais que

caracterizam os participantes e se relacionam a fenômenos linguísticos por eles manifestos. Os

resultados apontam que o contato com falantes nativos de PB tem culminado em uma variedade

do Português Tikuna que, dentre outros fatores, apresenta: 1. transferência da L1 nos níveis

estudados; 2. replicação de condicionamentos conforme falantes nativos do PB ; 3. semelhança

com outras variedades indígenas de PB. Os dados que evidenciam a presença de elementos

particulares da língua Tikuna na variedade de português usada por esses professores constituem

um elemento significativo na caracterização do Português Tikuna. Cabe, ainda, dizer que os

fatores socioculturais, relacionados à dinâmica do contato linguístico, à identidade e aos usos

linguísticos repercutem na variedade do português falado pelo grupo investigado e determinam

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o continuum linguístico que se estabeleceu a partir dos diferentes estágios e fluências dos

professores participantes de nosso estudo.

Palavras-chave: Contato Linguístico; Sociolinguística; Aquisição de Segunda Língua;

Português Tikuna; Variação.

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ABSTRACT

This doctoral thesis presents the results of a research, that aimed to record, analyze and

differentiate the Portuguese variety of contact spoken by teachers from elementary education,

belonging to Tikuna ethnicity, residents of certain areas in the city of São Paulo de Olivença,

in the mesoregion of Alto Rio Solimões, in Amazonas state. Through the registration, analysis

and characterization of Tikuna Portuguese, it was also searched to identify the acquisition stage

and the degrees of fluency of Portuguese spoken language as a second language by these

teachers. To reach the objectives, it was analyzed speech data from of twenty-three (23) teachers

from elementary education. Nineteen (19) of them are in process of university undergraduation,

attending Indigenous Intercultural Pedagogy at the State University of Amazonas; three (3) are

teachers from elementary education who have become Phd students; and one (1) is a teacher of

elementary education of the community of Vendaval who has a degree from the Third

Indigenous Degree of the General Organization of Professors Tikuna Bilinguals – OGPTB. In

the analysis, we start with the selection of linguistic phenomena that encompass phonological-

phonological and morphosyntactic aspects of this variety, investigating whether these speakers:

a) present specific features related to the transfer mechanisms of L1 to L2 in this process of

acquisition of the second language, b) replicate conditioning according to the native speakers

of Brazilian Portuguese, c) present some similarity with other varieties of indigenous

Portuguese in Brazil. We adopted, as basis for the theoretical assumption of our research, the

assumptions of Language contact and Sociolinguistic, based on works such as as Weinreich

(1953), Thomason and Kaufman (1988), Weinreich, Labov and Herzog (2006 [1968]), Winford

(2003), Thomason (2001), Matras (1998, 2009), among others, for enabling us to analyze the

effects of the language contact in the variety of Portuguese spoken by the Tikuna teachers that

list our study, mainly regarding the acquisition of second language, bilingualism and variation.

More specifically, in our analysis, in relation to research on identity and linguistic uses related

to contact, we use authors, whose works contain discussions, that can be taken to scenarios with

cultural and / or language encounters that are useful for our investigation, as, for example, in

addition to those already mentioned above, Fishman (1967,1975), Labov (2008 [1972b]),

Tabouret-Keller (1998),Appel & Muysken (2005), among others. In what specifically involves

the Tikuna language in the present study, we turn to studies aimed at the analysis of this

language as it is spoken in Brazil: Soares (1984, 1986, 1991, 1992a, 1992b, 1994, 1995, 1997,

2000a, 2000b, 2005a, 2005b, 2017). Regarding the themes of identity and linguistic use, plus

questions related to the variation in Brazilian Portuguese, specifically in the varieties spoken

by indigenous people, we use studies such as Emmerich (1984), Mollica (1997), Paiva (1997),

Christino & Lima e Silva (2012), Amado (2015), Braggio (2015), among others. Thus, along

with the ethnographic method, we follow procedures adopted in sociolinguistic research, with

special attention to the representativeness of the sample, to the identification and grouping of

social factors that characterize the participants and are related to linguistic phenomena that they

manifest. The results indicate that the contact with native speakers of PB has culminated in a

variety of indigenous Portuguese Tikuna that, among other factors, presents: 1. L1 transfer in

the studied levels; 2. replication of PB native speaker conditioning; 3. similarity with other

indigenous PB varieties. The data that evidence the presence of specific elements of the Tikuna

language in the variety of Portuguese used by these teachers constitute a significant element in

the characterization of Tikuna Portuguese. It should also be said that sociocultural factors,

related to the dynamics of language contact, identity and linguistic uses, have repercussions on

the variety of spoken Portuguese by the investigated group and determine the linguistic

continuum that was established from the different stages and fluences of the teachers

participating in our study.

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Keywords: Language Contact; Sociolinguistic; Second Language Acquisition; Indigenous

Portuguese Tikuna; Variation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 20

CAPÍTULO 1 - O POVO TIKUNA ................................................................................ 28

1.1 ASPECTOS HISTÓRICO-SOCIAIS ...................................................................................... 29

1.2 IDENTIFICAÇÃO CLÂNICA DOS PARTICIPANTES ....................................................... 34

1.3 CONTATO PORTUGUÊS-TIKUNA NO ALTO SOLIMÕES - BRASIL ............................ 40

CAPÍTULO 2 - CONTATO LINGUÍSTICO, AQUISIÇÃO E VARIAÇÃO ............ 44

2.1. O CONTATO LINGUÍSTICO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS........................................... 44

2.2 O CONTATO LINGUÍSTICO E A AQUISIÇÃO DE SEGUNDA LÍNGUA EM

DIFERENTES PERSPECTIVAS ................................................................................................. 48

2.2.1 O processo de aquisição de segunda língua e suas implicações nas ações realizadas pelo

aprendiz ..................................................................................................................................... 49

2.2.2 O papel da idade no processo de aquisição de segunda língua ........................................ 52

2.2.3 Bilinguismo ...................................................................................................................... 54

2.2.4 Pidgins e línguas crioulas: efeitos do contato linguístico ................................................ 58

2.3 A VARIAÇÃO E MUDANÇA COMO EFEITO DO CONTATO LINGUÍSTICO .............. 61

CAPÍTULO 3 - O CONTATO LINGUÍSTICO E VARIEDADES DO PORTUGUÊS

INDÍGENA DO BRASIL ................................................................................................. 65

CAPÍTULO 4 - METODOLOGIA ................................................................................. 72

4.1 A PESQUISA DE CAMPO: DA LOCALIDADE SELECIONADA À GERAÇÃO DE

DADOS ......................................................................................................................................... 72

4.2 TRATAMENTO E ANÁLISE DOS DADOS ........................................................................ 76

4.3 O PERFIL DOS PARTICIPANTES E VARIÁVEIS SELECIONADAS .............................. 78

CAPÍTULO 5 - IDENTIDADE E USOS LINGUÍSTICOS .......................................... 85

5.1 SITUAÇÃO SOCIOLINGUÍSTICA DOS PARTICIPANTES .............................................. 85

5.1.1 A situação sociolinguística das aldeias Vendaval e Bom Jardim do Passé: um olhar

etnográfico ................................................................................................................................. 93

5.2 ATITUDES E USOS LINGUÍSTICOS .................................................................................. 99

5.2.1 Atitudes linguísticas ......................................................................................................... 99

5.2.2 Usos linguísticos e domínios sociais .............................................................................. 102

5.2.3 Usos linguísticos em atividades e em localidade ........................................................... 106

5.3 REDES DE INTERAÇÕES LINGUÍSTICAS ...................................................................... 109

5.4 DESLOCAMENTOS, ESCOLARIDADE E USOS LINGUÍSTICOS ................................ 112

CAPÍTULO 6 - SOBRE A LÍNGUA TIKUNA ........................................................... 122

6.1 CARACTERIZAÇÃO FONÉTICO- FONOLÓGICA DA LÍNGUA TIKUNA .................. 125

6.1.1 A sílaba em Tikuna ........................................................................................................ 130

6.1.1.1. As margens da sílaba .............................................................................................. 131

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6.1.1.2 O centro da sílaba .................................................................................................... 133

6.1.1.3 A oclusão glotal e seu papel na sílaba ..................................................................... 145

6.1.1.4 Os Tons em Tikuna ................................................................................................. 154

6.2 ASPECTOS DA MORFOLOGIA E DA SINTAXE DA LÍNGUA TIKUNA ..................... 162

6.2.1 Ordem de palavras .......................................................................................................... 166

6.2.1.1 A ordem SOV .......................................................................................................... 166

6.2.1.2 A ordem SVO .......................................................................................................... 169

6.2.1.3 A ordem OVS .......................................................................................................... 170

6.2.2 Sobre as noções de aspecto e tempo ............................................................................... 171

6.2.2.1 As noções de Aspecto e Tempo na Sintaxe da língua Tikuna ............................... 172

6.2.2.2 A categoria funcional pequeno verbo (ou v-zinho) e a projeção Aspecto .............. 173

6.2.2.4 Sobre a projeção Aspecto ........................................................................................ 177

6.2.2.5 Nota sobre o Tempo em Tikuna .............................................................................. 179

6. 3 A ESTRUTURA DA LÍNGUA TIKUNA E A VARIDADE DO PORTUGUÊS TIKUNA186

CAPÍTULO 7 - ASPECTOS DA VARIABILIDADE LINGUÍSTICA DO

PORTUGUÊS TIKUNA ................................................................................................ 188

7.1 VARIAÇÃO NO ÂMBITO FONÉTICO-FONOLÓGICO .................................................. 189

7.1.1 Tendência à inexistência de contraste fonológico no âmbito das consoantes contínuas

coronais ................................................................................................................................... 191

7.1.2 Palatalização Fonemas Africados .................................................................................. 194

7.1.3 Supressão de Segmento (Travamento de Sílaba) ........................................................... 195

7.1.4 Aférese ........................................................................................................................... 197

7.1.5 Rotacismo ....................................................................................................................... 198

7.1.6 Lambdacismo ................................................................................................................. 199

7.1.7 Epêntese ......................................................................................................................... 199

7.1.8 Africação ........................................................................................................................ 200

7.1.9 Flutuação quanto à altura das vogais .............................................................................. 201

7.1.10 Fricativização de oclusivas (Bilabial e Velar) .............................................................. 205

7.1.11 Redução de Ditongo (Monotongação) ......................................................................... 206

7.1.12 Ditongação (ou Iotização) .......................................................................................... 207

7.1.13 Nasalização de Vogal ................................................................................................... 208

7.2 VARIAÇÃO NO ÂMBITO MORFOSSINTÁTICO ............................................................ 210

7.2.1 Variação na marcação da flexão de número nos sintagmas nominais ............................ 211

7.2.2 Flutuação com ausência da marcação da flexão de gênero no sintagma nominal ......... 213

7.2.3 Variação na concordância verbal ................................................................................... 215

7.2.4 Não marcação/distinção de tempo na forma verbal ...................................................... 217

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7.2.5 Omissão ou uso inadequado de preposições ................................................................. 219

7.2.6 Ordem Sintática – SVO e Variações .............................................................................. 220

7.2.7 Criação de flexão com acréscimo de – s ........................................................................ 221

7.2.8 Não uso do verbo ........................................................................................................... 221

7.3 O CONTINUUM................................................................................................................... 222

7.4 ANÁLISE DE FATORES LINGUÍSTICOS E SOCIAIS QUE CONDICIONAM

FENÔMENOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS E MORFOSSINTÁTICOS NO PORTUGUÊS

TIKUNA ..................................................................................................................................... 228

7.4.1 A variação de /s/ em posição de onset ............................................................................ 228

7.4.2 A variação na concordância de primeira pessoa verbal .................................................. 234

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 242

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 249

ANEXO A- FICHA PARA CONTROLE DE DADOS ............................................... 261

ANEXO B - QUESTIONÁRIO SOCIOLINGUÍSTICO ............................................ 265

ANEXO C- TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ........... 268

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Mapa das cidades do Alto Solimões e principais aldeias Tikuna…………................28

Figura 2: Localização das Terras Indígenas Tikuna no Alto Solimões……………………….29

Figura 3: Mapa lugar de origem (e de deslocamento) dos participantes Tikuna……………….82

Figura 4: Mapa com a localização da aldeia de Vendaval……………………………………..95

Figura 5: Em Vendaval………………………………………………………………………..97

Figura 6: Em Bom Jardim do Passé……………………………………………………………99

Figura 7: Redes de Interações dos professores Tikuna usando a língua Tikuna……………...110

Figura 8: Redes de Interações dos professores Tikuna usando a língua portuguesa………….111

Figura 9: Principais deslocamentos dos professores Tikuna …………...……………………120

Figura 10: Movimentos vocálicos……………………………………………………....……137

Figura 11: Movimentos que expressam processos segmentalmente condicionados…........…139

Figura 12: Movimentos resultantes de processos de silabificação/ressilabificação…….........140

Figura 13: Áreas vocálicas do Tikuna e do português…………………………………..……204

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Clãs do grupo A........................................................................................................35

Quadro 2: Clãs do grupo B.........................................................................................................36

Quadro 3: Trechos que evidenciam a situação sociolinguística dos participantes da pesquisa...91

Quadro 4: O uso do Espanhol....................................................................................................92

Quadro 5: Fonemas consonantais em Tikuna…………….......................................................125

Quadro 6: Consoantes que ocupam início de sílaba em Tikuna................................................131

Quadro 7: Sequência de segmentos vocálicos que se realizam como orais ou com nasalidade

em igual medida………………………….………………………...………………..……….143

Quadro 8: Sequência de segmentos vocálicos em que um dos segmentos manifesta nasalidade

e o outro não………..…………………………………………………..…………………....143

Quadro 9: Materialização de noções aspectuais em Tikuna……………………….........……178

Quadro 10: Sistema vocálico da língua Tikuna x sistema vocálico da língua portuguesa……203

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Clãs dos participantes ..................................................................................38

Tabela 2: Perfil dos participantes (professores que se autodeclaram Tikuna) ............79

Tabela 3: Variáveis gênero e idade .............................................................................80

Tabela 4: Variável escolaridade ..................................................................................81

Tabela 5: Atuação da variável linguística contexto seguinte para a pronúncia de /s/ em

onset..........................................................................................................................229

Tabela 6: Índices gerais referentes à variável social gênero para a pronúncia do /s/ em

posição de onset ........................................................................................................230

Tabela 7: Índices relativos à variável social faixa etária para a pronúncia do /s/ em

posição de onset ........................................................................................................231

Tabela 8: Índices relativos à variável social escolaridade para a pronúncia do /s/ em

posição de onset ........................................................................................................231

Tabela 9: Índices relativos à variável social localidade para a pronúncia do /s/ em

posição de onset ........................................................................................................232

Tabela 10: Índices relativos à variável social grau de contato para a pronúncia do /s/

em posição de onset ..................................................................................................233

Tabela 11: Índices relativos à variável social fluência para a pronúncia do /s/ em

posição de onset ........................................................................................................233

Tabela 12: Atuação da variável linguística forma de interação para a marcação ou não-

marcação de concordância verbal..............................................................................235

Tabela 13: Índices gerais referentes à variável social gênero para a marcação ou não-

marcação de concordância verbal .............................................................................236

Tabela 14: Índices gerais referentes à variável social faixa etária para a marcação ou

não-marcação de concordância verbal ......................................................................237

Tabela 15: Índices gerais referentes à variável social escolaridade para a marcação ou

não-marcação de concordância verbal ......................................................................237

Tabela 16: Índices gerais referentes à variável social localidade para a marcação ou

não-marcação de concordância verbal ......................................................................238

Tabela 17: Índices gerais referentes à variável social grau de contato para a marcação

ou não-marcação de concordância verbal .................................................................239

Tabela 18: Índices gerais referentes à variável social fluência para a marcação ou não-

marcação de concordância verbal..............................................................................241

Page 19: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

19

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Clã/Nação dos participantes .......................................................................40

Gráfico 2: Dispersão Participante x Idade ...................................................................81

Gráfico 3: Consciência linguística dos participantes ..................................................86

Gráfico 4: Atitudes linguísticas ................................................................................100

Gráfico 5: Usos linguísticos e domínios sociais ........................................................102

Gráfico 6: Usos linguísticos em atividades ...............................................................107

Gráfico 7: Usos linguísticos em localidades .............................................................107

Gráfico 8: Quantidade de ocorrência de fenômenos fonético-fonológicos por pessoa

...................................................................................................................................190

Gráfico 9: Quantidade de ocorrência de fenômenos fonético-fonológico por gênero

...................................................................................................................................190

Gráfico 10: Fenômenos morfossintáticos identificados nas falas dos professores

Tikuna ......................................................................................................................210

Gráfico 11: Quantidade de ocorrência de fenômenos morfossintáticos por pessoa

...................................................................................................................................211

Gráfico 12: Base linguística para a segmentação do continuum ................................223

Gráfico 13: Faixas de fluência ..................................................................................224

Gráfico 14: Continuum linguístico por faixa etária e sexo ........................................227

Page 20: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

20

INTRODUÇÃO

Os deslocamentos geográficos que os grupos humanos efetivam e a interação com

outros grupos, em ambientes diferentes, são processos que culminam na diversidade linguística

e cultural, ou ainda, conforme os dizeres de Rodrigues (2001), na diversidade etnolinguística.

Diante desse contato, cada grupo passa a desenvolver o seu próprio sistema linguístico, o qual

guarda íntima relação com os traços culturais. Esse desenvolvimento pode criar conflitos entre

esses grupos, inclusive, quando um quer se manter em posição de privilégio, exercendo poder

sobre o outro.

A história de formação do povo brasileiro é permeada por exemplos de contato intenso

entre grupos, sejam eles indígenas, europeus, africanos, e outros, fato que culmina, dentre

outros resultados, na diversidade linguística que constitui o país.

Diferentemente do que muitos possam acreditar, o Brasil não é um país monolíngue.

A esse respeito, não podemos deixar de considerar que à época da colonização, já se falavam,

segundo Rodrigues (1993), aproximadamente 1, 2 mil línguas indígenas em terras que viriam a

constituir o que é hoje o Brasil. Além disso, a origem dos colonizadores europeus e as

consequências linguísticas desse contato heterogêneo, e, posteriormente, também do contato

com os africanos escravizados, de um lado, e com imigrantes, de outro, no decorrer da história

brasileira, são aspectos que devem ser considerados.

O fato de hoje ser falado um número expressivamente menor de línguas indígenas

(cerca de 180) que à época em que os colonizadores aportaram no Brasil atesta o fato de que o

contato entre os povos indígenas e os colonizadores não se deu de forma harmônica, mas

carregada por conflitos. Quanto às consequências, no universo indígena, da relação que foi

estabelecida pelos colonizadores, Rodrigues (1986) afirma que o número de línguas indígenas

provavelmente teria sido reduzido à metade por conta do desaparecimento dos povos que as

falavam, em decorrência do extermínio praticado contra os índios, seja forçando-os a trabalhar

como escravos, caçando-os e matando-os quando fugiam ou quando não queriam se submeter

ao regime de servidão imposto, pelos europeus, por seus descendentes e prepostos; seja pela

tomada de suas terras e, consequentemente, dos seus meios de se manterem; sem desconsiderar

a nefasta imposição ou indução dos usos, dentre eles os linguísticos, e dos costumes dos

colonizadores.

Page 21: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

21

As ações de imposição praticadas pelos colonizadores, dentre elas a linguística, teve

resultados lesivos, no sentido de reduzir drasticamente o número de línguas indígenas; no

entanto, as famílias linguísticas, mesmo que em situação de línguas discriminadas e

minoritárias, continuam representadas no Brasil por meio da sobrevivência dos grupos que

conseguiram resistir à imposição colonialista. Essas famílias fazem parte do que constitui a

diversidade linguística do país.

Apesar de toda a diversidade, ainda é persistente a idealização de um país monolíngue,

que conta com uma gramática imutável e que mais se aproxime do português falado em

Portugal. O preconceito linguístico, reforçado algumas vezes pela escola e, muitas vezes, pelos

meios de comunicação de massa é um fator que necessita ser combatido. E, uma das formas de

combater esse preconceito é o estudo científico acerca da diversidade linguística do Brasil, com

a descrição e análise dessa diversidade.

De acordo com Winford (2003), a mistura de línguas sempre ocasionou reação

emocional forte e, frequentemente, é considerada ridícula ou rejeitada. Ainda conforme o autor,

há pessoas que tomam para si o papel de puristas da língua e concebem essa mistura como uma

aberração da língua que consideram “correta”. Linguistas e outros profissionais rejeitam esse

posicionamento; por outro lado, há muitas pessoas que provavelmente aceitariam a ideia de que

línguas resultantes de contato linguístico são o resultado de aprendizagem ineficaz.

A mistura de línguas não é um processo resultante de um desvio, não é um fato isolado,

tampouco caótico. Ao contrário, é regido por regras que atingem todas as línguas de um modo

ou de outro, em diferentes e variados graus. Quando falantes de línguas diferentes entram em

contato, há uma tendência natural de eles procurarem meios de transpor as barreiras

comunicativas com que se deparam, procurando algum ajuste entre as diferentes formas de

expressão.

O contato linguístico pode ter uma ampla variedade de resultados. Em alguns casos,

pode resultar apenas em um ligeiro empréstimo de vocabulário, enquanto outras situações de

contato podem conduzir à criação de línguas inteiramente novas. Entre esses dois extremos, há

uma grande variedade de possíveis resultados envolvendo variados graus de influência de uma

língua na outra. Nesse cenário, surge a presente investigação, que parte das seguintes questões:

Que traços fonético-fonológicos e morfossintáticos caracterizam a variedade do português de

contato falada pelos professores Tikuna participantes da pesquisa? Quais seriam motivados por

mecanismos internos à língua nativa e quais estariam relacionados à replicação de

condicionamentos conforme os falantes de outras variedades do PB? Há traços que tornam essa

variedade particular em relação a outras variedades do PB, inclusive do entorno com o qual o

Page 22: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

22

qual os professores Tikuna e a pesquisadora convivem? Se sim, estariam no âmbito fonético-

fonológico e/ou morfossintático? Em que estágios ou graus de fluência se encontra o processo

aquisitivo dos professores participantes de nosso estudo? Em que medida fatores socioculturais

motivados pelo contato interferem nos usos linguísticos, na identidade e na variedade de

português falada pelos professores Tikuna?

Considerando o Português Tikuna como resultado do contato entre os Tikuna e falantes

de Português e, convivendo com essa realidade linguística, buscamos analisar essa situação de

contato linguístico e, a partir das questões apresentadas acima, foram delineadas as hipóteses

da pesquisa, conforme evidenciamos a seguir: 1. ao falarem português, os participantes Tikuna

manifestam traços de sua própria língua materna, o que deixa indícios de que, ao adquirirem

uma segunda língua, eles usam a estratégia de valer-se de material e regras/restrições de sua

língua materna; 2. o português de contato falado pelos Tikuna apresenta traços particulares não

identificados no Português Brasileiro falado por indivíduos que o adquiriram como L1; 3. o

português de contato falado pelos Tikuna também apresenta condicionamentos identificados no

Português Brasileiro falado por indivíduos que o adquiriram como L1; 4. a variedade de

português falada pelos professores Tikuna apresenta realizações parecidas com algumas já

identificadas em outras variedades de português faladas por indígenas no Brasil; 5. os

professores Tikuna apresentam diferentes graus de fluência, em que pesa o contato nos

seguintes termos: quanto maior o grau de contato com o PB, mais os professores se afastam dos

padrões da língua nativa e, proporcionalmente, quanto menor for esse contato, mais próximos

os professores se encontram dos padrões de sua língua nativa, manifestando acentuada

interferência da L1 na variedade de português em aquisição e, como consequência, mais

distantes dos padrões da língua-alvo; 6. quanto à análise variacionista, nossa defesa é de que os

fatores linguísticos e socioculturais, relacionados à dinâmica do contato linguístico, à

identidade e aos usos linguísticos repercutem na variedade de português falada pelo grupo

investigado.

Diante disso, nossa pesquisa tem como objetivo geral registrar, analisar e caracterizar

a variedade do português de contato falada por professores da educação básica, pertencentes à

etnia Tikuna, que moram em comunidades do município de São Paulo de Olivença, na

mesorregião do Alto Rio Solimões, no Amazonas. Para tanto, elegemos como objetivos

específicos identificar, na variedade do português Tikuna, fenômenos não (ou pouco) previstos

na variedade de prestígio do PB (considerada padrão), tanto no nível fonético-fonológico

quanto no morfossintático; verificar se fenômenos dessa variedade do português apresentam

traços particulares relacionados a mecanismos de transferência da L1; investigar se o português

Page 23: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

23

de contato falado pelos Tikuna apresenta traços identificados no português brasileiro falado por

indivíduos que o adquiriram como L1 ou por outras variedades de português indígena;

investigar fatores socioculturais relacionados com o processo de contato linguístico, de

aquisição e de usos dessa variedade do português falada pelos Tikuna, levando em consideração

a identidade do grupo investigado, para determinar a repercussão desses elementos no grau de

fluência bilíngue e na variação do português de contato.

Adotamos, como basilares para a fundamentação teórica de nossa pesquisa, os

pressupostos do Contato Linguístico e da Sociolinguística, a partir de trabalhos como o de

Weinreich (1953), Thomason e Kaufman (1988), Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]),

Winford (2003), Thomason (2001), Matras (1998, 2009), dentre outros, por nos possibilitarem

analisar efeitos do contato linguístico na variedade de português falada pelos professores

Tikuna que elencam nosso estudo, principalmente no que se refere à aquisição de segunda

língua, ao bilinguismo e à variação.

De forma mais específica, em nossa análise, com relação à investigação sobre

identidade e usos linguísticos relacionados ao contato, lançamos mão de autores cujos trabalhos

contêm discussões que, podendo ser levadas a cenários com encontros de culturas e/ou de

línguas, são proveitosos para a nossa investigação, como, por exemplo, além dos já citados

anteriormente, Fishman (1967,1975), Labov (2008 [1972b]), Tabouret-Keller (1998), Appel &

Muysken (2005), entre outros.

Naquilo que envolve especificamente a língua Tikuna no quadro do presente estudo,

recorremos a trabalhos voltados para a análise dessa língua tal como essa é falada no Brasil:

Soares (1984, 1986, 1991, 1992a, 1992b, 1994, 1995, 1997, 2000a, 2000b, 2005a, 2005b,

2017). Já no que diz respeito aos temas da identidade e do uso linguístico, acrescidos das

questões relativas à variação existente no português brasileiro, especificamente nas variedades

faladas por indígenas, valemo-nos de estudos como os de: Emmerich (1984), Mollica (1997),

Paiva (1997), Christino & Lima e Silva (2012), Amado (2015), Braggio (2015), entre outros.

Ao lado do método etnográfico, seguimos procedimentos adotados em pesquisas

sociolinguísticas, com especial atenção à representatividade da amostra e à identificação de

fatores sociais que caracterizam os participantes e se relacionam a traços linguísticos por eles

manifestos. Para tanto, analisamos dados de fala de 23 professores da educação básica, todos

da etnia Tikuna. Esses dados foram gerados a partir de entrevistas, relatos de vida e

questionários realizados entre agosto de 2016; fevereiro de 2017, junho e julho do mesmo ano

e fevereiro de 2018.

Page 24: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

24

As pesquisas voltadas aos registros do falar do Amazonas ainda se encontram em

estado incipiente, e, em se tratando de variedades do português falada por indígenas na região

do Alto Solimões, não se tem, até o momento, nenhum estudo. Tal fato justifica a investigação

e o registro de fenômenos linguísticos que ocorrem na região, em especial da variedade falada

pelos povos indígenas, que se encontram bastante representados no estado.

Ainda não há, no Amazonas, uma tradição em pesquisas linguísticas, mas já existem

alguns estudos que trazem contribuições importantes à área de investigação relacionada à

variação. Por exemplo, pesquisas que envolvem a variedade do português (L1) no Amazonas

tiveram seu início recentemente. Cruz (2004) elaborou o Atlas Linguístico do Amazonas -

ALAM e, com isso, promoveu uma grande contribuição para o conhecimento do falar da região

investigada, uma vez que esse Atlas realizou um registro sistemático do modo de falar de

determinadas áreas do Amazonas, fato desconhecido até então.

Para a confecção do ALAM, foram investigados 09 municípios, a partir do critério de

maior representatividade para o Estado, quais sejam, Barcelos (localidade 01), Tefé (localidade

02), Benjamim Constant (localidade 03), Eirunepé (localidade 04), Lábrea (localidade 05),

Humaitá (localidade 06), Manacapuru (localidade 07), Itacoatiara (localidade 08) e Parintins

(localidade 09). Cabe ressaltar que os municípios ficam localizados em regiões próximas aos

rios Negro/Amazonas e Solimões e que a localização diferenciada também apresenta aspectos

linguísticos diferenciados entre os falares dos moradores dessas regiões.

No total, 54 informantes fizeram parte do corpus da pesquisa, sendo 06 em cada

município, divididos em 03 homens e 03 mulheres, em três faixas etárias: 18 a 35 anos, 36 a 55

anos e 56 ou mais. Dentre os fenômenos controlados para a confecção do ALAM está a

realização do /s/ pós-vocálico.

Nos municípios investigados por Cruz (2004), a pesquisadora verificou que, na fala,

predominam as variantes fricativas alveolares [s, z]. Também se verificou que há áreas

linguísticas que apresentam realização diferenciada do /s/ pós-vocálico, pois há a ocorrência

categórica do /s/ como variante pós-alveolar nas localidades de Barcelos (01), Itacoatiara (08)

e Parintins (09) e uma maior frequência da variante alveolar nos demais municípios.

Quanto à variável idade, a pesquisa de Cruz (2004) evidencia que os mais jovens

empregam com maior frequência a variante pós-alveolar, com um índice de 54%. As faixas 02

e 03 também apresentam índices elevados de realização pós-alveolar, 45% e 46%,

respectivamente.

Page 25: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

25

No que diz respeito à variável gênero, Cruz (2004) mostra que as mulheres (54%)

utilizam mais as variantes pós-alveolares que os homens (46%). Ainda que essa diferença não

seja muito significativa, a autora considerou importante fazer o registro.

Quanto ao comportamento fonético-fonológico do /s/ pós-vocálico, em uma pesquisa

mais recente, Martins e Margotti (2012) utilizaram o corpus do ALIB para investigar o

comportamento fonético-fonológico do /s/ pós-vocálico em posição de coda medial (mesmo) e

em posição de coda final (mas) na cidade de Manaus (AM), considerando, também casos de

ressilabação (casas amarelas).

É preciso que se envidem esforços para maior elucidação do painel linguístico

existente no estado do Amazonas, levando-se em consideração as relações que se estabelecem

por meio das situações de contato e as variedades existentes entre, por exemplo, os ribeirinhos

e os indígenas, moradores de zonas rurais, para citar algumas.

Nesse sentido, surge a presente pesquisa, que investiga a variedade de português falada

por alguns professores Tikuna, em sua maioria moradores de comunidades que fazem parte do

município de São Paulo de Olivença, na região do Alto Solimões, no estado do Amazonas, por

entendermos que estudar as variedades do português falado por indígenas é, também, dar voz a

eles, estudando suas manifestações e explicitando-as, reconhecendo-as como legítimas, não as

ignorando, mas investigando-as, analisando-as. Nesse sentido, o leitor verá, nesse texto, a

tentativa da pesquisadora de associar usos linguísticos e identidade à variedade do português

falada pelo grupo investigado, considerado o contexto indígena em que se inserem as línguas

aí em jogo. Para além do preenchimento de lacunas, esse trabalho é o pioneiro ao estudar a

variedade de português falada por pessoas que pertencem à maior etnia indígena do Brasil: a

Tikuna.

As formas de comunicação verbal resultantes do contato entre falantes de língua

Tikuna com falantes de português ainda não foram objeto de estudos linguísticos. Já foram

realizados estudos atestando a vitalidade da língua Tikuna frente ao contato com não-

indígenas1, apresentando resultados de investigações acerca das atitudes linguísticas de falantes

Tikuna2, um outro ainda, que analisou o domínio da ortografia de alunos Tikuna de uma escola

1 DA SILVA JÚNIOR, E. S. Identidade e representação linguística na educação bilíngue: um estudo

sociolinguítico na situação de contato português-ticuna. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) –

Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2011. 2 CARVALHO, A. L. F. Atitudes linguísticas de universitários tikuna: uma análise da situação do contato

português/Tikuna. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade Federal Fluminense,

Instituto de Letras, 2017.

Page 26: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

26

em Filadélfia, buscando-se relacionar os condicionadores dos desvios ortográficos3, bem como

já foram realizados estudos antropológicos4 envolvendo as diversas situações de contato entre

os Tikuna e não-indígenas, além de outros trabalhos de cunho pedagógico5, que investigaram a

educação escolar entre os Tikuna, tanto em áreas urbanas, quando nas aldeias. No entanto, o

contato entre os Tikuna e falantes de português e o resultado, em termos linguísticos, desse

contato ainda não foram investigados.

Hoje, na maioria das escolas situadas em comunidades indígenas Tikuna, a

alfabetização é realizada em Tikuna e, a partir do quinto ano, há a inserção do ensino de

português, o qual perdura até a último nível que for ofertado na escola da comunidade.

Considerando que é nesse segundo código que os indígenas se comunicam com falantes nativos

de português brasileiro, e que, por meio desse código, defendem e exigem seus direitos,

estabelecem relações comerciais, entre outras atividades, parece-nos importante que as formas

que assumem essa realidade linguística indígena sejam conhecidas para que sejam utilizadas

em proveito das respectivas comunidades Tikuna, por exemplo, no que se refere a políticas

linguísticas e a projetos de ensino de português como segunda língua, tanto em comunidades

indígenas quanto nas áreas urbanas, para onde ocorre o deslocamento dos indígenas, por

diversos motivos, dentre os quais podemos citar: dar prosseguimento aos estudos, seja no ensino

médio ou superior, acompanhamento médico, tratar de assuntos nas agências bancárias,

lotéricas, prefeitura, cartórios, correios, além de outras instituições localizadas apenas nas áreas

urbanas. Além disso, se levarmos em consideração o preconceito local que sofrem os indígenas

Tikuna por conta de o seu falar português ser acompanhado por influências melódicas, fonéticas

e estruturais nativas e, considerando que esse preconceito é ratificado nacionalmente e

estereotipado como traço da identidade étnica indígena, é que esse objeto de estudo se justifica.

Um dos primeiros registros do contato entre os Tikuna e não-indígenas na região do

Alto Solimões foi feito por Christóval Acunã, já no século XVI. No entanto, dentre os fatores

que contribuíram para a imposição do português na região do Alto Solimões, podemos citar,

tentando estabelecer a uma ordem cronológica:1. a catequese em português, realizada pelos

missionários, mas esta ocorreu de forma muito restrita; 2. a vinda de imigrantes nordestinos,

falantes monolíngues de português, para trabalharem na extração do látex, no período áureo da

3 OLIVEIRA, C. A. Domínio ortográfico da língua portuguesa no contexto bilíngue Ticuna/Português na aldeia

Filadélfia em Benjamin Constant – Alto Solimões- AM. Dissertação (Mestrado em Letras e Artes) - Universidade

do Estado do Amazonas, 2017 4 Por exemplo, OLIVEIRA, J. P. de. “O Nosso Governo”: os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo, Marco

Zero/MCT-CNPq, Brasília, 1988. 5 Por exemplo, BENDAZZOLI, S. Políticas públicas de educação escolar indígena e a formação de professores

ticunas no Alto Solimões. Tese de doutorado em Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2011.

Page 27: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

27

borracha na região e 3. a escolarização em português. A partir dessa imposição, a origem do

português Tikuna pode ser considerada recente, datada de, aproximadamente, sessenta anos,

quando as relações entre indígenas e não-indígenas se intensificaram.

Este trabalho encontra-se estruturado da seguinte forma: além desta introdução,

destinada à apresentação do tema estudado, das questões norteadores, dos objetivos, hipóteses

e da motivação da pesquisa, tem-se, no capítulo 1, um breve panorama da história do povo

Tikuna a partir do contato com o não-indígena. Em seguida, no capítulo 2, apresentamos, em

linhas gerais, pressupostos teóricos do Contato Linguístico e da Sociolinguística, os quais

embasam nosso estudo. O capítulo 3 destina-se a uma exposição sobre estudos realizados no

âmbito das variedades indígenas do Português do Brasil (PB). No capítulo 4, explicitamos os

procedimentos metodológicos adotados para a geração e análise dos dados de nossa

investigação. No capítulo 5, apresentamos a descrição dos usos linguísticos e da identidade

social mais ampla do grupo investigado, levando em consideração a relação entre suas

características linguísticas. No capítulo 6, fazemos uma apresentação das características da

língua Tikuna relevantes para a identificação de traços particulares relacionados a possíveis

mecanismos de transferência da L1 no uso do português como segunda língua por falantes

nativos de Tikuna. No capítulo 7, fazemos o registro, a análise e a caracterização do Português

Tikuna, apresentando, inicialmente: (i) a variação fonético-fonológica no âmbito dos dados

produzidos pelos professores Tikuna ao falarem português; (ii) a variação morfossintática nesse

mesmo âmbito; em seguida, (iii) apresentamos a segmentação do continuum que estabelecemos

em nosso estudo, o qual se caracteriza por diferentes faixas de fluência que evidenciam o estágio

aquisitivo dos professores na segunda língua (português); (iv) por fim, apresentamos a análise

de fatores linguísticos e sociais que condicionam a variação de fenômenos fonético-fonológicos

e morfossintáticos no Português Tikuna.

Por lidarmos com dados de fala, há, nesta tese, uma abordagem mais ampla em relação

aos fenômenos fonético-fonológicos que os morfossintáticos da variedade de português

investigada.

Todos os procedimentos adotados em nosso estudo abriram caminho para a

caracterização do Português Tikuna e nos permitiram, de um lado, descrever, analisar e verificar

a relevância de alguns fenômenos variáveis no português falado pelos Tikuna e, de outro lado,

testar hipóteses de trabalho e atingir os objetivos da pesquisa.

Ao final da presente tese, tecemos considerações sobre os resultados alcançados e sobre

as perspectivas de continuidade do estudo, além de apresentarmos as referências utilizadas na

elaboração da tese.

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28

CAPÍTULO 1 - O POVO TIKUNA

Na mitologia Tikuna, os índios dessa etnia foram pescados por Yo’i (herói mítico) no

igarapé Eware, situado nas nascentes do igarapé São Jerônimo (Tonatü), afluente da margem

esquerda do Rio Solimões, entre os municípios de São Paulo de Olivença e Tabatinga. Até o

presente momento, essa é a área que conta com uma intensa concentração dos Tikuna e onde

se situam 71% das aldeias existentes dessa etnia na região do Alto Solimões (cf. Oliveira, 1988).

Um dos primeiros registros quanto à estimativa demográfica dos Tikuna pode ser

encontrado em Nimuendajú (1952), que faz referência a 2.000 Tikuna no lado brasileiro. Já

Oliveira (1972), tendo em vista tanto o movimento migratório quanto o aumento vegetativo,

estima, àquela época, a quantidade de 3.500 a 4.000. Hoje, segundo dados do IBGE, a

população Tikuna é estimada em mais de 50.000 no Brasil.

No que diz respeito a volume demográfico, os Tikuna formam a maior etnia indígena

da Amazônia Brasileira. O povo Tikuna vem ocupando a região do Alto Solimões há mais de

dois mil anos, na fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia (cf. Garcés, 2005). No solo

brasileiro, eles vivem em localidades pertencentes às terras indígenas situadas nos municípios

da mesorregião do Alto Solimões, quais sejam: Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de

Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins, Jutaí e Fonte Boa.

Figura 1: Mapa das cidades do Alto Solimões e principais aldeias Tikuna

Fonte: Disponível em Bendazzoli (2011, p. 28).

Page 29: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

29

Fonte: Organizado por REIS, Rodrigo, sob a supervisão de Ligiane Bonifácio (2017).

Até a década de 70 existiam, aproximadamente, mais de cem aldeias e estas eram

organizadas segundo a tradicional distribuição espacial em malocas clânicas. Hoje, essa

distribuição espacial de suas aldeias sofreu uma modificação vultosa.

Neste capítulo, traçaremos uma sucinta abordagem histórica quanto às incursões

estrangeiras nas terras anteriormente ocupadas pelos Tikuna, em seguida, como um dos

elementos que fazem parte de suas identidades e de sua organização social, apresentamos a

separação clânica dos participantes da pesquisa e, por fim, traçamos um breve painel quanto ao

contato Tikuna-português na região amazônica, com foco no Alto Solimões.

1.1 ASPECTOS HISTÓRICO-SOCIAIS

Datam de meados do século XVII os primeiros registros sobre os Tikuna, os quais

foram feitos pelo padre jesuíta Christóval de Acuña, escrivão e observador da expedição de

Pedro Teixeira (1637). Os dados registrados por Acuña se encontram presentes no livro Novo

Descobrimento do Rio Amazonas (1994). Há, ainda, outros registros que apontam a presença

dos Tikuna na região do Alto Solimões, como os de Bates (1979 [1857]), Nimuendajú (1952;

1982), La Condamine (1992) e Marcoy (2006).

Figura 2: Localização das Terras Indígenas Tikuna no Alto Solimões1

Page 30: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

30

Bates (1979 [1857]) afirma que os Tikuna são muito semelhantes aos índios de outras

tribos, como as do Xumanas, Passés, Juris e Maués, tanto no que diz respeito à aparência quanto

aos costumes. De acordo com o naturalista, essas semelhanças ocorrem do seguinte modo

[...] eles são um povo agrícola e de vida sedentária, cada horda obedecendo a um chefe

de maior ou menor influência, segundo sua energia e ambição, e possuindo um pajé

ou curandeiro, que incentiva suas superstições. São, porém muito mais indolentes e

depravados que outros índios pertencentes a tribos mais adiantadas. Não se mostram

tão aguerridos, nem tão leais como os Mundurucus, embora se assemelhem a eles em

muitos aspectos, não possuem o físico esbelto, o ar digno e o temperamento afável

dos Passés (1979 [1857], p. 292).

Não podemos deixar de mencionar a visão etnocêntrica e preconceituosa manifesta nas

palavras do naturalista. Essa visão caricatural do índio como um ser bruto e selvagem, tomando

como base as suas práticas cotidianas, também foi registrada por Orellana, Pinzón, Vázquez,

Alexandre Ferreira, Antônio Vieira e os demais viajantes que por aqui passaram. Eles

desconheciam totalmente os hábitos dos indígenas, e chegavam a classificá-los como

“demasiado primitivos”.

Ainda que Acuña tenha feito muitos registros sobre o povo Tikuna, as anotações e

descrições mais detalhadas relacionadas a esse povo foram elaboradas pelo etnólogo alemão

Curt Nimuendajú (1952), que viveu junto aos Tikuna por um certo período, o que lhe

possibilitou uma melhor descrição dos modos de vida desse povo quanto aos aspectos culturais,

linguísticos e sociais.

Curt Nimuendajú (1952) registrou que, no princípio, os Tikuna habitavam as regiões

afastadas das margens dos rios para fugirem dos seus temidos rivais, os Omágua, com quem

mantinham relações de luta. De acordo com o autor, por se localizarem em “terra firme”,

afastados das margens dos rios, evitando o confronto direto com os Omágua, os Tikuna não

foram vítimas diretas das primeiras incursões de portugueses e espanhóis na região, no século

XVII.

Quem primeiro sofreu as consequências dessas incursões lusa e castelhana foram os

Omágua e outros povos vizinhos que habitavam as inúmeras ilhas e as margens do Alto

Solimões. Essas incursões eram caracterizadas por duas frentes: a conquista de novas terras,

por meio de atuação militar e a conquista das almas, por meio das missões religiosas.

A dizimação do povo Omágua, ocasionada por conta do embate com as forças

coloniais e/ou pelas epidemias, possibilitou aos Tikuna a migração para as margens do rio

Solimões e o contato direto com os colonizadores instalados na região.

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31

Ainda que pudessem se movimentar para as margens do rio Solimões, não houve um

deslocamento em massa dos Tikuna dos altos igarapés para o grande rio. O que houve foi a

ampliação do seu território de referência, muitos deles permaneceram nas áreas de terra firme

do interior e outros tantos locomoveram-se para as regiões de várzea do rio Solimões.

Durante os primeiros dois séculos e meio de contato, as relações entre os Tikuna e os

não-indígenas mantiveram-se sem maiores conflitos. No entanto, essas relações foram

profundamente alteradas no final do século XIX, com a expansão da empresa seringalista pela

região do Alto Solimões.

Com a implantação da atividade extrativa intensiva nos seringais, os Tikuna tiveram

suas vidas profundamente afetadas, pois tiveram que se sujeitar aos interesses comerciais dos

patrões, que usaram mão de ferro para fazer valer seus interesses.

A exploração de seringais ocasionou a invasão do território Tikuna e a desestruturação

das malocas clânicas. Sob pressão e para atender a estrutura de seringal, o povo Tikuna foi, em

grande parte, reorganizando-se. O modo de produção tradicional foi substituído por novas

formas vinculadas ao mercado da borracha, fato que culminou na dependência e submissão aos

patrões.

Quando os Tikuna não atendiam às ordens dos patrões, eram-lhe impostas penalidades

geralmente violentas. A esse respeito, Oliveira Filho (1988, p. 131) menciona que

[...] diversos castigos corporais eram aplicados: uso de palmatória; surras com chicote

de tripa de boi e depois salgar as suas feridas; colocar o índio recalcitrante no tronco;

prendê-lo em um cubículo escuro, etc. As ameaças de morte, prisão em São Paulo de

Olivença, expulsão da propriedade, confisco ou destruição dos bens do acusado,

extensão aos seus familiares dos castigos previstos - todas essas eram técnicas comuns

para promover a obediência dos índios. Em casos considerados pelos patrões como

mais leves, o castigo consistia em submeter o acusado ao opróbrio público, raspando-

lhe a cabeça e cobrindo-a de piche, fazendo-o desfilar algemado por diversos lugares;

deixando-o acorrentado ou no pelourinho nas proximidades do barracão para ser visto

por todos os fregueses.

Mesmo em seus períodos áureos, o Alto Solimões era uma região com uma produção

de borracha considerada irrelevante, o que lhe conferia uma importância secundária no conjunto

do mercado seringalista amazônico. Com poucas condições de importar grande massa de

trabalhadores nordestinos, a empresa seringalista era mantida na região com a mão-de-obra

indígena e com alguns poucos trabalhadores não-indígenas.

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32

Quanto ao domínio dos patrões seringalistas, Oliveira Filho (1988, p.150-151) nos

esclarece que tal fato ocasionou muitas interferências no universo Tikuna. Nas palavras do

autor,

Entre os próprios índios as interferências dos brancos criaram diversas infrações

graves às regras de matrimônio, algumas vezes impondo uniões que correspondiam a

incestos clânicos ou de metades, outras vezes proibindo como "incestuosos" até

mesmo casamentos preferenciais... A realização dos rituais também era diretamente

controlada pelos brancos. A sua proibição durante certos períodos por alguns patrões

... dificultava não só a delimitação das faixas de idade (interferindo aí também com o

casamento), mas ainda com a transmissão de valores culturais e religiosos, bem como

com a expressão de uma solidariedade mais ampla que extravasasse o âmbito do grupo

local.

O quadro de ampla dominação dos patrões seringalistas sobre os Tikuna começou a

sofrer alteração com a instalação do Posto Indígena do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), no

município de Tabatinga, em 1942. Em seus primeiros anos de atuação, o SPI adotou uma

política indigenista que abalou o sistema seringalista, o qual se ancorava na submissão e

exploração da mão-de-obra Tikuna. Embora integracionista, o SPI buscou pautar sua atuação,

junto aos seringalistas, com base no respeito aos Tikuna como trabalhadores e na remuneração

de sua mão-de-obra em condições de igualdade com os não-indígenas.

Em 1945, o SPI adquiriu um lote de terra denominado Bom Destino, localizado às

margens do igarapé Umariaçu, afluente do rio Solimões, próximo a Tabatinga. Essa aquisição

firmou a atuação do SPI na região, tendo em vista que a terra era destinada aos Tikuna, e muitos

deles migraram para lá como forma de fugir do domínio seringalista. Em 1946, essa terra se

estabeleceu como a primeira reserva indígena do Alto Solimões.

Ainda que tenha continuado sua atuação em várias localidades da área Tikuna, o

regime seringalista diminuiu o seu poderio. Àquela época, a empresa seringalista já sofria,

também, com a grave crise que a atingiu por conta da perda da importância da borracha

brasileira no mercado internacional.

Uma outra alternativa de refúgio à dominação seringalista foram as terras destinadas

aos Tikuna, compradas pela Association of Baptists for World Evangelism, na década de 50 e

início dos anos 60. Essa instituição religiosa americana, com sede regional em Benjamin

Constant, adquiriu duas fazendas próximas às localidades de Santa Rita do Weil e Santo

Antônio do Içá, denominadas Campo Alegre e Vila Betânia, para onde os Tikuna poderiam se

locomover e estabelecer moradia, além de se converterem à religião batista.

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33

Na segunda metade da década de 60, a centralização do poder pelo aparelho militar

ocasionou algumas perdas para a empresa seringalista, no que se relaciona à posse de terras,

uma vez que havia a necessidade de um controle do governo nas áreas de fronteira do país.

Já no início da década de 70, um movimento messiânico, liderado pelo Irmão

Francisco José da Cruz visava à conversão dos Tikuna, e a atuação desse religioso teve como

consequência profundas mudanças no modo de vida desse povo. O Movimento da Cruz

provocou o deslocamento e concentração de grande número de famílias em localidades

determinadas pelo líder religioso. O Irmão Francisco José também restabeleceu o papel central

dos patrões seringalistas, que viraram diretores religiosos das Irmandades criadas por ele. Sua

atuação foi bastante influente entre os Tikuna e propagava uma ideologia religiosa assentada

na obediência às diretrizes institucionais, rituais e morais.

Após 10 anos de sua chegada à região do Alto Solimões, o Irmão José faleceu,

deixando como consequência, por meio de sua atuação, a agregação dos Tikuna em grandes

aldeias e o estabelecimento de escolas na maioria delas, as quais contavam com o ensino de

língua portuguesa. Nesse ponto, cabe ressaltar que, apesar do contato dos Tikuna com não-

indígenas ter iniciado em meados do século XVII e intensificado no século XIX e início do XX,

como já mencionamos nesta seção, a aproximação deles com a educação escolar só ocorreu na

segunda metade do século XX.

A atuação de vários atores sociais ao longo do século XX, tais como, empresários

seringalistas, madeireiros e comerciantes, o Estado e missionários de diferentes confissões

religiosas gerou diversas representações, propostas e ações direcionadas para os índios. De um

lado, foram-lhe impostas novas relações com o território que tradicionalmente ocupavam e de

outro lado, novas condutas, costumes e aprendizados.

A partir disso, os Tikuna iniciaram uma busca ativa por aquilo que acreditavam

representar uma melhoria nas suas vidas, o que resultou em adesão a religiões e a ideologias de

integração à sociedade regional, à formação de grandes aldeamentos e à procura pelo acesso e

pelo conhecimento do mundo dos não-indígenas, em que se pode situar o interesse pela

escolarização.

No processo de relação com o colonizador e com outros agentes sociais, tais como

alguns dos mencionados acima, houve a tentativa de subjugar as tradições culturais e

linguísticas do povo Tikuna, impondo-lhes, também, a língua portuguesa, mas os Tikuna têm

buscado, ao longo de sua história, manter vivas sua cultura e língua.

Esse breve panorama histórico que traçamos teve a intenção de evidenciar o contato

do povo Tikuna, falante de sua língua ancestral, com agentes sociais não-indígenas, falantes de

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português, em sua maioria6. A partir da compreensão desse contato, e tendo em vista que há

uma estreita relação entre a dimensão social e a dimensão linguística nas comunidades em

contato, buscaremos embasar nossa análise sobre os aspectos da variedade de português usada

por esse povo, a qual nomearemos Português Tikuna.7

1.2 IDENTIFICAÇÃO CLÂNICA DOS PARTICIPANTES

A descendência clânica dos Tikuna é patrilinear e, conforme Nimuendajú (1952), os

Tikuna podem ser agrupados em metades, as quais chamou de grupo A e grupo B. Conforme

o etnólogo, a base que fundamenta o dualismo Tikuna tem origem mítica. Segundo o mito da

criação clânica, Yo´i atua como criador dessa organização. Nimuendajú nos apresenta o relato

de que Yo´i e Ipi capturaram um grande número de pessoas novas no rio (que seriam os Tikuna

recém-criados), as quais foram misturadas por não possuírem distinção. Para resolver o

impasse, “Yo´i as separou, colocando as pessoas que lhes pertenciam a leste e as que pertenciam

a Ipi, a oeste. Então, ele ordenou que cozinhassem um jacuraru e obrigou todos a provarem o

caldo. Assim procedendo, cada um ficou ciente do clã a que pertencia, e Yo´i ordenou aos

membros dos dois grupos que se casassem entre si”8. Como podemos notar, o mito evidencia o

reconhecimento clânico e a exogamia de metades.

No Brasil, segundo o etnólogo, o lado A tinha 15 clãs e o lado B, 21. O grupo A é

composto por doze clãs com nomes de árvores, dois com nomes de insetos e um com nome de

mamífero, conforme ilustramos no quadro a seguir.

6 Aqui, cabe ressaltar que há comunidades Tikuna também na Colômbia e no Peru e, como o grande povo Tikuna

vive em uma situação de fronteira, há também agentes sociais externos que falam espanhol, sendo que vários

Tikuna falam e/ou entendem espanhol. Bem como, vários mudam de aldeia entre países, por exemplo. 7 Apesar do ato de nomear, isso não faz supor uma unidade. O português indígena em questão deve comportar

extensa variação interna, dadas as dimensões da área Tikuna, que é imensa, e os diferentes graus de contato de

suas comunidades com a sociedade envolvente. 8 (...) dyɔi' separated them, putting his to the east and e´pi’s to the west. Then he ordered that a jacurarú be cooked,

and compelled everyone to taste the broth. Thus each one became aware of the clan to which he belonged.

Afterward dyɔi' ordered the members of the two groups to marry between themselves. (NIMUENDAJÚ, 1952, p.

129-130)

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35

Quadro 19: Clãs do grupo A

Clãs Relação com árvores ou

animais

Correlações adicionais

1. a:´ru auahy grande (avaí) dyɔį´ (acutipuru, um esquilo)

2. čë´vëru

auahy pequeno (avaí; um

pássaro)

3. na´inyęę Saúva

4. tęku saúva (quanto a este tipo, o

autor se questiona se seria

uma outra espécie do

inseto)

5. čiva´ seringarana (uma árvore) a´i (onça pintada)

6. në´/nįn pau mulato (uma árvore) në/ma (suçuarana)

7. čëë´ acapu (uma árvore) a´iru (cachorro)

8. ë jenipapo dyɔį´ (acutipuru, um esquilo,

quanto a este tipo, o autor se

questiona se seria uma outra

espécie)

9. pu´kįrë muirapiranga

10. čun´a Caraná

11. të´ma burity grosso (buriti)

12. va´ira açahy

13. a´ičanari jenipapo do igapó (árvore)

14. kë´turë maracajá grande

15. nyë´ninči burity fino (buriti)

Fonte: Adaptado de Nimuendajú (1952, p. 56).

9 Os quadros 1 e 2 empregam a grafia utilizada por Nimuendajú (1952).

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Nimuendajú (1952) nos informa a explicação para o fato de que, entre os clãs de

árvore, cinco são identificados com animais. A identificação de árvores com mamíferos deve-

se à concepção mítica Tikuna, segundo a qual certas árvores possuem alma. Conforme o mito

Tikuna, a alma da árvore a deixa durante a noite na forma do animal com o qual a árvore é

identificada, retornando ao amanhecer.

Como se pode ver pode meio da tabela, há dois clãs com nomes de insetos no grupo

de clãs que têm nomes de árvores. O motivo desse agrupamento foi explicado a Nimuendajú

por dois informantes que lhe disseram que a relação entre árvores e saúva era que as formigas

tinham o hábito de rastejar nas árvores. No que diz respeito aos clãs da metade B, todos têm

nomes de pássaro, conforme ilustramos no quadro abaixo.

Quadro 2: Clãs do grupo B10

Clãs Relação com pássaros Correlações adicionais

1. ta´u tucano

2. tuyuyu´ tuiuiú

3. aivë´ru urumutum

4. kaurë´ japiim

5. barį´ japu

6. ṅɔį´ arara vermelho

7. čara´ arara canindé

8. vɔɔ´ maracanã grande

9. a´/ta maracanã; (outras

espécies?)

10. vëu´ papagaio

11. ṅU/nęn mutum cavalo Tessmann’s “noenoka”

10 No quadro elaborado pelo etnólogo, ele lista apenas 19 clãs da metade B, apesar de ter mencionado anteriormente

que seriam 21.

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37

12. mɔru maracanã; (outras

espécies?)

13. ë´/ča urubu rei

14. da:´vį gavião real

15. puna´ka arapaço

16. ɔta´ galinha

17. ë´/n ë parakeet

18. dyavįru´ jaburú

19. ṅa´una socó ou maguary

Fonte: Adaptado de Nimuendajú (1952, p.57).

Conforme Oliveira (1972), entre os Tikuna, a importância de pertencer a um clã se dá

pelo fato de que tal pertencimento faz com que eles se reconheçam Tikuna, ou seja, pertencer a

um clã faz parte da identidade étnica deles. O não pertencimento a um clã, ou a uma nação,

como eles próprios chamam, significa não fazer parte da sociedade indígena.

Como a descendência clânica é patrilinear, filhos de mães Tikuna e de pais não-

Tikuna, segundo a estrutura clânica, não seriam considerados Tikuna. No entanto, Oliveira

(1972) relata um caso de um indígena que, por ser filho de um “civilizado” com uma Tikuna

adotou o clã materno e o transmitiu aos filhos. Na época, Oliveira relatou que esse foi o único

caso de rearranjo clânico de que ele teve notícia. Para reiterar suas percepções, o antropólogo

ainda relata que o principal informante de Nimuendajú com quem ele contactou não se

reconhecia Tikuna pelo fato de o pai ter sido um alemão que residia em Santa Rita do Weil.

Hoje, o rearranjo clânico não parece ser tão raro assim, tanto que uma das participantes

da pesquisa relatou que fez, juntamente com sua mãe, um reajuste a fim de se incorporar à

sociedade indígena Tikuna. Tal fato confirma uma hipótese levantada por Oliveira (1972, p.

25), de que “sistemas sociais indígenas, estruturados sobre grupos de descendência

demonstrável (linhagens) ou supostos (clãs, sibs, metades) tendem a reajustar seus mecanismos

de filiação a fim de incorporar à sociedade indígena seus descendentes espúrios”.

A seguir, apresentamos a tabela que evidencia a qual clã/nação cada participante

pertence.

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Tabela 1: Clãs dos participantes

No nome próprio de uma pessoa Tikuna, está em jogo o significado da raiz ou de uma

composição entre raízes; em alguns casos, há uma coordenação entre dois nomes, por meio do

qual pode ser identificado o clã ao qual a pessoa pertence. Além disso, outras informações

podem ser aí identificadas. Para reiterar as afirmações de Nimuendajú (1952), de que os nomes

dos indígenas mais antigos são carregados de significado, abaixo apresentamos alguns

exemplos de nomeação dos participantes de nossa pesquisa. Cabe ressaltar que, diferentemente

da época em que Nimuendajú (1952) observou o fenômeno da nominalização entre os Tikuna

e notou que todos tinham e sabiam seus nomes étnicos, verificamos alguns casos de

participantes indígenas que não tinham ou não lembravam seu nome próprio na língua Tikuna.

Dentre os participantes da faixa 2, todos falaram seus nomes próprios na língua

Tikuna, já em relação aos participantes da faixa 1, 1 disse não lembrar e 1 disse ainda não

possuir um nome indígena. Como forma de exemplificarmos o que afirmamos, apresentamos

abaixo o caso de um homem e uma mulher da faixa 2 com seus respectivos nomes próprios na

11 Os participantes estão apresentados nesta tabela com as iniciais de seus nomes em língua portuguesa,

separadas por barras, seguidas da idade e gênero. Adotaremos essa forma de identificação ao longo do texto.

PARTICIPANTE11

CLÃ/NAÇÃO

A.C.A./43. MASC. ARARA (NGO'Ü)

B.C.C./35. FEM. MUTUM (NGUNÜ)

B.S.G./56. FEM. ARARA (NGO'Ü)

C.L.S./34. FEM. TABACO

E.A.L./29. FEM. AVAÍ (NGA'CÜ)

E.D.I./33. MASC. AVAÍ (NGA'CÜ)

F.A.D./56. MASC. ONÇA (WAECÜ)

H.A.R./38. MASC. ONÇA (WAECÜ)

H.Z.M./34. MASC. AVAÍ (NGA'CÜ)

J.O.C./29. MASC. ONÇA (WAECÜ)

J.M.G./40. MASC. AVAÍ (ARU)

J.G.M./29. FEM. MUTUM (NGUNÜ))

J.M.T./30. MASC. JABURU

L.J.F./37. MASC. AVAÍ (ARU)

L.F.D./27. MASC. MUTUM (NGUNÜ)

M.F.C./41. MASC. AVAÍ

N.C.F./42. FEM. ARARA (NGO'Ü)

N.C.FR./28. FEM. AVAÍ (ARU)

O.B.A./54. MASC. SAÚVA

O.A.A./50. MASC. AVAÍ (NGA'REECÜ)

P. B.M./33. MASC. MUTUM (NGUNÜ)

W.A.S./51. MASC. MUTUM (NGUNÜ)

Z.L.S./48. FEM. SAÚVA

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39

língua Tikuna seguidos dos nomes dos pais; um homem e uma mulher da faixa 1 que não

lembram ou não possuem os nomes na língua Tikuna. Apresentamos, também, um caso de

rearranjo clânico.

O nome próprio, na língua Tikuna, de A.C.A./43. MASC. é Tchopaweecü rü

Inhamarecü. Segundo o participante, o nome dele significa ‘Arara de bico vermelho’. O nome

do pai de A.C.A./43. MASC., na língua materna, é To’gücü, que segundo o participante,

significa ‘Arara vermelha’: “quando ele voar aí pra fica do galho do do (hesitação) pau né?”.

Tanto o pai quanto A.C.A./43. MASC. pertencem ao clã de Arara Vermelha. O nome da mãe

de A.C.A./43. MASC. é Yuueena, e indica descendência clânica de Onça.

B.S.G./56. FEM. se chama, na língua Tikuna, Nu’cürana rü buemüüna, que significa

‘Arara com rabo curto’. O nome do pai dela é Bumücü e significa ‘Aquele que voa’. Os dois

pertencem, portanto, ao clã de Arara. O nome da mãe é Wairena, que significa ‘Aquela que

pendura na parede’. O clã a que pertence a mãe é Avaí.

C.L.S./34. FEM., quando questionada se possui um nome próprio na língua respondeu:

“ainda não professora”. Quando questionada se o pai ou a mãe pertencem a alguma etnia, a

participante respondeu que eles são indígenas Tikuna, mas que não sabe os nomes indígenas

deles. Soube responder apenas a nação do pai, que é Tabaco e da mãe, Jaburu.

L.F.D./27. MASC., ao ser indagado sobre o seu nome próprio na língua Tikuna, bem

como os de seus pais, afirmou não se lembrar.

Ainda cabe o registro de um participante da faixa 1, H.A.R./38. MASC., que sabe o

nome próprio na língua Tikuna, mas não lembra os nomes indígenas dos pais.

Quando perguntamos a B.C.C./35. FEM. a qual clã ela pertence, ela respondeu que

pertence ao clã de Mutum. Indagamos de quem ela herdou esse clã e a resposta transcrevemos

abaixo:

(...) vamos dizer que como como meu pai ele é não indígena vamos dizer assim meu pai

que eu digo é meu padrasto né aí já digo meu pai pra ele mas minha mãe diz que meu pai é não

indígena era um colombiano e aí pra poder casar com meu esposo que ele é Tikuna né ele é da

etnia é vamo Tikuna nação de Onça e a minha mãe ela é nação de Avaí e aí como o Avaí e a

Onça são vamo dizer primos na nossa etnia aí eu tive que adotar um clã pra mim que não fosse

igual né por exemplo o de pena ele pode casar com quem não tem pena e aí eu aderi esse quer

dizer eu eu e minha mãe a gente quando foi pra tirar o nosso rezistro a minha mamãe colocou

eu como se fosse uma pessoa de pena pra poder casar com meu... senão não podia casar com

ele porque ele é nação de Onça e mamãe de Avaí eles são primo e aí ele seria meu parente e

aí o jeito foi eu criar uma uma nação pra mim por quê? Porque na etnia Tikuna é assim se é

os filhos geralmente eles herdam o clã do pai e não da mãe então como a mamãe ela é feminina

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né e aí tinha que ser do sexo masculino e aí eu coloquei essa minha nação nação de Mutum

pra poder ter um relacionamento bom.

A resposta de B.C.C./35. FEM. é exemplo de um rearranjo clânico no intuito de se

inserir na sociedade indígena Tikuna e poder casar com um homem da nação de Onça. A

resposta da participante deixa claro o conhecimento que ela tem do sistema patrilinear que faz

parte da estrutura clânica da sociedade Tikuna. Ela atribuiu a si o clã Mutum e o nome

Mecürana, que quer dizer, segundo ela, ‘cauda bonita’, nação de Mutum.

Abaixo, para finalizar esta seção, apresentamos o gráfico que ilustra a quantidade de

participantes masculinos e femininos e os respectivos clãs/nações.

Gráfico 1: Clã/Nação dos participantes

1.3 CONTATO PORTUGUÊS-TIKUNA NO ALTO SOLIMÕES - BRASIL

No que diz respeito ao contato dos Tikuna com não-indígenas, datam de meados do

século XVII os primeiros registros, os quais foram feitos pelo padre jesuíta Christóval de

Acuña, escrivão e observador da expedição de Pedro Teixeira (1637). Os dados registrados por

Acuña se encontram presentes no livro Novo Descobrimento do Rio Amazonas (1994). Há,

ainda, outros registros que apontam a presença dos Tikuna na região do Alto Solimões e o

contato deles com não-indígenas, como os de Bates (1979 [1857]), Nimuendajú (1952; 1982),

La Condamine (1992) e Marcoy (2006).

Conforme Freire (2004), a língua portuguesa entrou na região amazônica já no século

XVII, tendo sido trazida por missionários, soldados e funcionários da Coroa Portuguesa. Por

0

1

2

3

4

5

6

7

MUTUM TABACO AVAÍ (NGA'CÜ) ONÇA

(WAECÜ)

SAÚVA ARARA

(NGO'Ü)

Gênero

Clã/Nação dos participantes

Masculino Feminino

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41

volta de 1697, por exemplo, segundo Hüttner (2007), a ordem dos Carmelitas se deslocou para

o Alto Solimões, a fim de efetivar um trabalho sob o comando do governo português. Esse

trabalho consistia em ensinar a catequese e, além disso, a língua portuguesa e música aos

indígenas.

De acordo com Freire (1983), a introdução da língua portuguesa no Amazonas ocorreu

de forma muito mais lenta que em outras regiões do norte do país, devido, principalmente, aos

seguintes fatores: crises na Coroa do Império Português, distância geográfica em relação às

outras regiões nas quais os colonizadores aportaram anteriormente, muitos fracassos na

tentativa de domesticação de povos indígenas, que buscaram resistir às imposições de várias

ordens, seja quanto ao regime de trabalho escravo quanto à tomada de terras, à proibição da

língua e dos costumes.

A imposição da língua portuguesa não ocorreu de forma pacífica, pelo contrário, foi

permeada por grandes conflitos entre indígenas e não-indígenas. Para reverter essa situação,

muitas ações foram realizadas no intuito de que o português fosse falado pelos povos indígenas,

dentre elas a proibição da língua indígena, a imposição de uma língua geral, acompanhada de

uma substituição pela língua portuguesa.

Freire (2004) evidencia que durante todo o período colonial, “a língua portuguesa –

cujas categorias não davam inteligibilidade à realidade cultural e ecológica da região –

permaneceu minoritária, como língua exclusiva da administração, mas não da população”

(FREIRE, 2004, p. 16). Ainda segundo o autor, o monolinguismo em português passou a

predominar na região amazônica a partir da segunda metade do século XIX. Muitos povos

indígenas foram mortos, sofreram uma imposição bastante severa e, nesse processo, cada novo

falante indígena do português resultava em vários falantes a menos em língua indígena, que era

deixada de ser usada, em uma ou duas gerações, por seus usuários potenciais. Diante desse

quadro, muitas línguas indígenas foram suplantadas pelo português. Este, no entanto, não é o

caso da língua Tikuna, que continuou sendo intensamente falada na região do Alto Solimões,

consequência de ações de luta e resistência do povo que a fala.

Efetivamente, pode-se afirmar que o desenvolvimento da língua portuguesa entre os

indígenas só se consolidou a partir do momento em que a Amazônia passou a ser inserida nas

atividades comercias internacionais, por conta da extração de látex para produção da borracha

no exterior. Tal fato trouxe para a região muitos nordestinos, falantes exclusivos de língua

portuguesa, em busca de uma reorganização de suas vidas (cf. ANGULO E BONIFÁCIO,

2017).

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42

Além disso, de acordo Rodrigues (2003), dentre os fatores sociais que mais

contribuíram para a penetração e generalização da língua portuguesa na Amazônia, tal como

ocorre na atualidade, podem ser considerados: o genocídio da população de falantes de língua

indígena e, posteriormente, como já mencionado acima, a importação intensa para os seringais

amazônicos de trabalhadores nordestinos, falantes exclusivos da língua portuguesa e, mais

recentemente, sobretudo no século XX, um outro fator foi a crescente escolarização unicamente

em Português.

Nesse ponto, cabe ressaltar que, apesar de o contato dos Tikuna com não-indígenas ter

iniciado em meados do século XVII, a aproximação deles com a educação escolar só ocorreu

na segunda metade do século XX. Conforme Bendazzoli (2011), é provável que o início da

criação das escolas em comunidades indígenas tenha sido impulsionado pelo aumento do

número de religiosos nessas localidades.

O contato e a intensificação das relações com os não-indígenas foram responsáveis por

desencadear, nas comunidades indígenas, a necessidade de conhecer os códigos e os símbolos

dos não-indígenas, uma vez que estes e suas ações passaram a fazer parte do entorno indígena.

É nesse contexto histórico que surge a Educação Escolar Indígena.

Diante desse cenário, os Tikuna iniciaram um movimento de luta para que tivessem

uma educação específica, diferenciada e bilíngue, que atendesse às suas próprias necessidades.

Uma das ações diretamente relacionada ao movimento Tikuna para manter vivas sua

língua e cultura está no campo da educação, por meio da criação da ONG intitulada Organização

Geral dos Professores Tikuna Bilíngues – OGPTB. Esta ONG foi criada em 1986 e constituída

juridicamente em 1994. Uma das finalidades dela é desenvolver ações no campo da educação

escolar indígena, sobretudo dos Tikuna, atuando de forma prioritária na formação dos

professores.

Como exemplo, ainda podemos mencionar o fato de que professores Tikuna

participaram do I e II Encontro dos Professores Indígenas do Amazonas e Roraima, realizados,

respectivamente, em 1988 e 1989, em Manaus, e, na ocasião, manifestaram o anseio e a

disposição de lutar por uma formação que pudesse atender aos desafios para chegar à escola

almejada.

Mais recentemente, como resposta a uma demanda e frente de luta do povo Tikuna,

podemos citar a criação e oferta de cursos de graduação voltados especificamente à formação

de professores indígenas, dedicando, em suas grades, atenção/ênfase à língua Tikuna.

Por fim, cabe dizer que a atuação de vários atores sociais ao longo da história de

contato com os Tikuna, tais como, empresários seringalistas, madeireiros e comerciantes, o

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43

Estado e missionários de diferentes confissões religiosas gerou diversas representações,

propostas e ações direcionadas para os índios. De um lado, foram-lhe impostas novas relações

com o território que tradicionalmente ocupavam e, de outro lado, novas condutas, costumes e

aprendizados.

No processo de relação com o colonizador e com outros agentes sociais, tais como

alguns dos mencionados acima, houve a tentativa de subjugar as tradições culturais e

linguísticas do povo Tikuna, impondo-lhes, também, a língua portuguesa, mas os Tikuna têm

buscado (e conseguido), ao longo de sua história, manter vivas sua cultura e língua.

Page 44: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

44

CAPÍTULO 2 - CONTATO LINGUÍSTICO, AQUISIÇÃO E

VARIAÇÃO

Movimentos migratórios, invasões territoriais, relações exogâmicas e práticas

comerciais se configuram como algumas circunstâncias históricas, políticas, culturais e sociais

que podem propiciar contatos linguísticos, concebidos como um dos fatores externos de

extrema relevância para os estudos sobre a realidade das línguas. Desse modo, estudos que

envolvem o contato linguístico constituem um suporte para análises linguísticas que levam em

consideração, também, as relações sociais, políticas e culturais que envolvem a dinamicidade

das línguas, como é o caso do presente estudo. Adotamos, como basilares para a fundamentação

de nossa pesquisa, trabalhos como o de Weinreich (1953), Thomason e Kaufman (1988),

Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]), Winford (2003), Thomason (2001), Matras (1998,

2009), dentre outros, por nos possibilitarem analisar efeitos do contato linguístico na variedade

de português falada pelos professores Tikuna que elencam nosso estudo, principalmente no que

se refere à aquisição de segunda língua, ao bilinguismo e à variação, conforme ilustraremos no

capítulo que segue.

2.1. O CONTATO LINGUÍSTICO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Conforme Weinreich (1953), o contato entre línguas ocorre quando estas são usadas

de maneira alternada em uma situação comunicativa entre falantes de uma comunidade. Esses

falantes são concebidos pelo autor como peças fundamentais no que diz respeito ao próprio

processo de contato. Dessa forma, conforme o autor, surge o bilinguismo, visto como a prática

de usar alternadamente duas línguas, e a pessoa envolvida nessa prática é chamada de bilíngue.

Segundo Weinreich (1953), é interesse da Linguística investigar o fenômeno da

interferência como um resultado de contato linguístico. O termo interferência, para o autor,

implica o rearranjo de padrões que resultam da introdução de elementos estrangeiros nos

domínios mais fortemente estruturados de uma língua, como o sistema fonêmico, a morfologia,

a sintaxe, e algumas áreas do vocabulário, como parentesco, cor, tempo etc.

Ainda conforme o autor, as diferenças e semelhanças entre as línguas em contato,

sejam elas grandes ou pequenas, devem ser declaradas de forma exaustiva para cada domínio,

a saber: o fônico, o gramatical e o lexical. Essa declaração para cada domínio é tida por

Weinreich (1953, p. 2) como um pré-requisito para uma análise da interferência.

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45

Em relação à questão da interferência, Weinreich (1953) defende que este fenômeno

ocasiona mudanças de normas ou desvios que possam vir a ocorrer na fala de pessoas usuárias

de mais de uma língua em uma situação de interação em comunidades. Essas mudanças ou

desvios são resultantes do processo que atinge as línguas em situação de contato. Ainda

conforme o autor, a questão da interferência está relacionada ao prestígio que uma língua

assume sobre a outra.

A abordagem de Matras (2009) para o contato linguístico baseia-se no entendimento

pós-moderno de língua como um continuum de usos e não como um sistema. Baseado na

observação de que contato linguístico, como tal, não existe, Matras re-centraliza a mudança

induzida por contato na produção da fala, isto é, tanto no processamento de linguagem quanto

nos objetivos de comunicação.

Nessa abordagem, o falante multilíngue é o locus dos repertórios, quais sejam:

repertórios inteiros ou partes específicas deles estão associados a atividades sociais específicas

e são regulados por atitudes prescritivas da comunidade de fala.

Em Matras (2009), o contato linguístico é visto como operando em diferentes níveis:

começando com o multilinguismo infantil, participando em alguns casos num multilinguismo

social mais amplo que ou bloqueia ou permite que os efeitos do contato linguístico se

estabeleçam e, em última análise, levem à mudança linguística. Segundo o autor, dois

mecanismos principais estão em jogo em todos os níveis: o primeiro mecanismo diz respeito

aos operadores do discurso, que são formas linguísticas mais facilmente transmitidas do

repertório de uma língua para outra. O segundo mecanismo diz respeito às estruturas

linguísticas que mostram uma tendência constante através do paralelismo de suas semelhanças

funcionais.

Na visão de Winford (2003), os resultados possíveis de contato linguístico diferem

segundo duas amplas categorias de fatores: os internos (ou linguísticos) e os externos (ou social

e psicológico). Dentre os fatores linguísticos relevantes, o autor cita a natureza da relação entre

as línguas em contato, especialmente o grau de similaridade tipológica entre elas. No entanto,

cabe ressaltar que o grau de similaridade não é decisivo nesse processo. Além disso, há uma

variedade de outras restrições linguísticas que operam nessas situações de contato, algumas

delas específicas a áreas particulares da estrutura linguística, por exemplo, o léxico, a fonologia,

a morfologia; outras restrições, de um modo geral, não são específicas, mas de natureza

universal.

Já no que diz respeito aos fatores sociais relevantes estão a duração e intensidade do

contato entre os grupos, o tamanho destes grupos, o poder ou relações de prestígio e padrões de

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46

interação entre eles, bem como as funções que são estabelecidas para a comunicação

intergrupal. Há, ainda, os fatores sociopolíticos, que atuam em ambos os níveis, individual e

intergrupal. Tais fatores estariam relacionados às atitudes em relação às línguas e às motivações

para usar uma ou outra.

Conforme Winford (2003), a maioria das línguas, se não todas, foram/têm sido

influenciadas em um ou outro tempo por contato com outras línguas. Como resultado disso,

Thomason e Kaufman (1988) defendem que a situação de contato linguístico suscita a

possibilidade de mudanças, tanto na língua considerada dominante quanto na dominada, fato

que caracteriza uma heterogeneidade linguística ocasionada por uma influência mútua entre os

diferentes falantes, o que, consequentemente, pode levar a uma perda linguística para alguns

falantes de uma determinada língua - geralmente os mais jovens-, bem como pode causar,

também, alterações, em parte, na identidade destes indivíduos. De acordo com estes últimos

autores, a interferência linguística tem início no âmbito da fonética e da sintaxe e também pode

abranger, em alguns casos, a morfologia.

Thomason e Kaufman (1988), ao abordarem a questão da mudança linguística

motivada pelo contato, defendem que o ponto de partida para a teoria da interferência linguística

é a de que a história sociolinguística dos falantes, e não a estrutura da língua falada é que se

configura como o determinante primário do resultado linguístico do contato. De acordo com

esses teóricos, considerações puramente linguísticas têm sua relevância, mas, em geral, são

estritamente secundárias, tendo em vista que a interferência linguística é condicionada, em

primeiro lugar, por fatores sociais, e não linguísticos. Tanto a direção da interferência como a

extensão desta são socialmente determinadas.

Thomason (2001, p. 129) assume que qualquer tipo de mudança linguística pode

ocorrer como resultado indireto de contato linguístico e apresenta um estudo dos tipos de

contato que resultam em alteração. Em relação à mudança linguística induzida por contato

linguístico, a autora evidencia sete mecanismos e os analisa de maneira profunda. Tais

mecanismos são: 1) code-switching (troca de código, que consiste no uso de material de duas

ou mais línguas pelo mesmo locutor na mesma conversa); 2) alternância de código (o uso de

duas ou mais línguas pelo mesmo locutor em diferentes ambientes); 3) familiaridade passiva;

4) 'negociação' (falantes aproximam sua própria língua à forma que eles acreditam ser a

estrutura da língua-alvo); 5) estratégias de aquisição de segunda língua (o falante usa material

da sua língua materna para compensar uma forma que ainda não reconhce na língua-alvo); 6)

aquisição bilíngue em primeira língua e 7) mudança por deliberação deliberada. A seguir, com

base em Thomason (2001), discriminamos os mecanismos que interessam ao presente trabalho.

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47

“Negociação” - conforme Thomason (2001, p. 142), as aspas que envolvem o nome

deste mecanismo significam uma advertência de que o termo não deve ser tomado literalmente,

no sentido de negociação consciente entre falantes de línguas em contato, com discursos,

discussões e decisões mútuas sobre mudanças. Isso porque os falantes provavelmente não têm

consciência da maioria das mudanças induzidas por contato relacionados a esse mecanismo. O

mecanismo de "negociação" funciona quando os falantes mudam sua língua (A) para se

aproximarem do que eles acreditam ser os padrões de outra língua ou dialeto (B). Este

mecanismo envolve situações em que falantes de A não são fluentes em B, bem como situações

em que eles o são. E, em caso de serem bilíngues, as mudanças que fazem através deste

mecanismo tornarão A mais semelhante a B, isto é, as estruturas de A e B convergem. Por outro

lado, se não forem fluentes em B, as mudanças podem ou não tornar A mais semelhante a B.

No caso de os falantes A e B participarem do processo de "negociação", o resultado será ou

duas línguas mudadas (A e B) ou uma língua completamente nova (embora o segundo resultado

seja muito mais provável se mais de duas línguas estiverem em contato). Ainda de acordo com

a autora, situações prototípicas da gênese de um pidgin são exemplos clássicos do mecanismo

de negociação.

Estratégias de aquisição de segunda língua – há diferentes estratégias de aquisição de

segunda língua. A negociação é uma das principais estratégias utilizadas pelos aprendizes que

adquirem uma segunda língua, para ajudar a conferir sentido a um input (às vezes, confuso)

nessa segunda língua (L2) em processo de aquisição. Outra estratégia pode ser entendida como

uma abordagem por preenchimento de lacuna (gap-filling approach), em que o falante utiliza

elementos estruturais da língua nativa ao falar na língua-alvo, para preencher lacunas no

conhecimento, que surgem no momento da comunicação, como ocorre, por exemplo, no caso

das inserções lexicais, que se configuram, talvez como o mais óbvio dos casos, ou no uso de

traços estruturais, que ocorrem de modo proeminente. Um exemplo dessa estratégia citado por

Thomason (2001, p. 147) é o caso de falantes de inglês que, no processo de aquisição de francês,

muitas vezes, pronunciam um /r/ do francês como se fosse um /r / do inglês, som este inexistente

em francês.

Uma outra estratégia de que se valem os que adquirem uma segunda língua é manter

distinções e outros padrões de sua língua nativa (sua L1) ao construírem sua versão da gramática

da língua-alvo (a L2).

Uma última estratégia usada por aprendizes de segunda língua é ignorar distinções,

especialmente as distinções marcadas, que estão presentes de forma clara na língua-alvo, mas

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opacas aos aprendizes que se encontram nos estágios iniciais ou intermediários do processo de

aquisição de uma língua (cf. Thomason, 2001).

Thomason (2001) apresenta estudos de caso e as consequências do contato linguístico.

Ao se debruçar sobre esse tema, a autora apresenta e sustenta a teoria de que os atores sociais

são importantes e explanatórios para um estudo do contato linguístico. De acordo com ela, ao

apresentar os mecanismos que dizem respeito à mudança linguística induzida por contato

linguístico, exemplificando com casos e consequências do contato, tem-se a intenção de fazer

entender tipos de fatores gerais que devem ser considerados em qualquer análise de processos

de mudança induzida por contato.

Um outro fator importante tratado por vários pesquisadores que se debruçam sobre os

efeitos do contato linguístico está relacionado à morte de línguas. Conforme Thomason (2001),

a morte de uma língua é quase sempre resultado de contato intensivo com uma outra. Ao tentar

definir a morte de línguas, a autora usa os exemplos do latim e hebraico, que colocam problemas

para qualquer definição simplista. A autora evidencia que a maioria dos processos que

contribuem para a morte de uma língua, como perda lexical, empréstimo, etc são típicos de

situações de contato em geral. Outros processos menos típicos de morte de uma língua são a

substituição gramatical e a morte abrupta, por exemplo, devido à morte de uma comunidade

linguística, como é o caso de muitas línguas indígenas no Brasil.

A seguir, apresentamos um outro efeito ocasionado pelo contato de linguístico, que é

a aquisição de segunda língua.

2.2 O CONTATO LINGUÍSTICO E A AQUISIÇÃO DE SEGUNDA LÍNGUA EM

DIFERENTES PERSPECTIVAS

Em relação aos perfis dos grupos que entram em contato, Thomason (2001) apresenta

alguns casos distintos: a) dois grupos de línguas movendo-se simultaneamente em um território

anteriormente desocupado; b) o comum de acontecer é de um grupo linguístico ocupar o

terrritório de outro grupo, impondo à população preexistente o seu domínio; c) imigração de

pequenos grupos, no caso de força de trabalho importada; d) diferentes grupos reunindo-se em

terras para fins de comércio ou colheita; e) pessoas reunindo-se para estabelecer contatos

sociais, por exemplo casamento; f) línguas que foram aprendidas por conta de uma expansão

de domínio da língua, caso do latim na Idade Média ou do inglês na atualidade.

Conforme a autora, as situações de contato linguístico se diferem ainda mais no que

diz respeito a sua estabilidade, ou seja, algumas são de curta duração, enquanto outras se tornam

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49

quase permanentes e, na visão da autora, parece que a estabilidade é influenciada puramente

por fatores sociais, em vez de linguísticos.

Nesta seção, limitamo-nos a abordar algumas concepções gerais acerca de estudos

relacionados à aquisição de segunda língua motivada por situações que envolvem o contato

linguístico entre diferentes grupos.

2.2.1 O processo de aquisição de segunda língua e suas implicações nas ações realizadas pelo

aprendiz

No que diz respeito à aquisição de uma segunda língua e às estratégias usadas pelos

falantes nesse processo, desde cerca de 1950, os termos interferência ou transferência negativa

têm se revelado questões importantes em pesquisas sobre essa temática. Muitos estudos foram

realizados para verificar se a primeira língua dos aprendizes exerceria alguma influência na

aquisição de uma segunda língua.

Um dos pioneiros a levantar essa questão foi Weinreich, no livro de sua autoria

Línguas em Contato (1953). Nesse livro, o autor afirma que quanto maiores forem as diferenças

entre os sistemas, ou seja, quanto mais numerosas e mutuamente exclusivas forem as formas e

os padrões em cada língua, maior será o problema de aprendizado e da área potencial de

interferência. Uma sugestão feita por Weinreich (1953) é a de que a primeira língua influencia

a aquisição da segunda. Conforme Matras (2009), já é um senso comum a noção de que

aprendizes de segunda língua usam elementos ou estruturas de sua língua nativa ao falarem

uma segunda língua

A influência de uma língua sobre a outra é extremamente importante em situações de

contato linguístico prolongado e sistemático. Quanto à aquisição de segunda língua motivada

por contato, Weinreich (1953) implicitamente distinguiu dois tipos de influência: dificuldades

causadas pelas diferenças entre a língua fonte e a língua-alvo e interferência. Esta última

definida como sendo o uso de elementos, estruturas e regras da língua fonte na produção da

língua-alvo, um fenômeno que também é frequentemente chamado de “transferência

negativa”. Dito de outro modo, essa transferência se manifesta por meio da introdução de

elementos estrangeiros nos domínios altamente estruturados da língua, como a maior parte do

sistema fonêmico, grande parte da morfologia e sintaxe e algumas áreas do vocabulário

Seguindo essa mesma linha, Lado (1957) afirma que o aprendiz que entra em contato

com uma outra língua achará algumas características dessa língua muito fáceis e outras

extremamente difíceis. Para o autor, características consideradas mais fáceis são aquelas

Page 50: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

50

semelhantes à língua nativa, o que redundará em uma transferência positiva, já aquelas

características que apresentam elementos diferentes da língua nativa são consideradas difíceis.

Muitos pesquisadores têm tentado invalidar a suposição comum de que os aprendizes

de uma segunda língua sentem dificuldades nesse aprendizado, principalmente por causa das

diferenças entre os sistemas da primeira e da segunda língua; refutam, assim, a hipótese de que

o processo de aprendizagem é determinado pelo grau de similaridade ou de diferença entre a

primeira e a segunda língua. Essa suposição, que foi desenvolvida em salas de aula de língua

estrangeira, também passou a ser generalizada para contextos de aprendizagem natural de

línguas, e foi denominada hipótese da análise contrastiva. Conforme Appel e Muysken (2005),

há muitos mal-entendidos e confusões sobre a natureza da interferência na literatura que aborda

a questão da hipótese da análise contrastiva.

Essa hipótese foi duramente contestada e refutada porque teria sido foi desenvolvida

em consonância com a teoria da aprendizagem behaviorista, na qual a ‘transferência’ é uma

noção central (cf. Ellis, 1965). Segundo essa concepção, erros no desempenho de segunda

língua eram entendidos, principalmente, como o resultado da transferência de habilidades ou

de hábitos da primeira língua.

Weinreich (1953) e Lado (1957) não foram muito claros nas distinções quanto à

transferência e interferência e estes termos passaram a ser considerados como erros, desvios,

portanto, vistos de forma negativa.

Diante dessa falta de clareza quanto aos termos interferência e transferência, Sankoff

(2003) substitui o primeiro termo pelo segundo e atribui destaque, no processo de aquisição de

uma segunda língua, ao uso linguístico de um falante bilíngue dentro de uma comunidade de

fala, tendo em vista a necessidade de os interlocutores da língua fonte interagirem com os da

língua-alvo. Isso porque quanto maior acesso o aprendiz tiver aos dados da língua-alvo, maiores

possibilidades ele terá de perceber e produzir as formas e os padrões linguísticos da língua-

alvo.

Matras (2009) atribui uma nova interpretação ao processo conhecido como

interferência ou transferência. Segundo o autor, esses termos constituem um processo pelo qual

o falante faz, ou pelo menos tenta fazer, uso comunicativo criativo de elementos do repertório

completo e combinado de estruturas linguísticas em um contexto que requer seleção de apenas

um subconjunto desse repertório. Ainda conforme Matras (2009), transferência e interferência

têm sido tradicionalmente consideradas como eventos negativos no processo de aprendizagem

e como manifestações de fracasso do aprendiz em adquirir as estruturas corretas da língua-

alvo. Mas enquanto eles não resultam em incompreensibilidade e em uma quebra de

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51

comunicação, o autor defende que transferência e interferência devem ser vistas como “pontes

para sustentar a comunicação”.

Mais recentemente, os termos interferência e transferência têm sido entendidos não

como uma transferência negativa, mas como um processo natural e inerente à aquisição de uma

segunda língua. Conforme Appel e Muysken (2005), a distância entre as duas línguas

envolvidas parece afetar o processo de aquisição da segunda língua, como Weinreich (1953) já

havia sinalizado, mas não nos termos em que o autor utilizou.

Segundo Appel e Muysken (2005), no final da década de 1970 e no início dos anos 80,

os termos “interferência” ou “transferência negativa” foram concebidos novamente como um

componente importante da aquisição de segunda língua. A reavaliação foi motivada,

principalmente, pelas melhorias metodológicas no estudo de sistemas de línguas em contato.

Conforme os autores, o termo transferência passou a tomar lugar na visão mentalista de

aquisição de linguagem, segundo a qual o indivíduo organiza mentalmente estruturas ouvidas

da língua-alvo e desenvolve hipóteses sobre elas. Ainda de acordo com os autores, estudos

detalhados sobre a aquisição de segunda língua mostraram que a interferência certamente

ocorre, mas, principalmente, em certos estágios de desenvolvimento.

Um outro termo bastante recorrente nos estudos sobre contato linguístico e que tem

relação com a aquisição de segunda língua é “interlíngua”. O conceito desse termo foi

introduzido por Selinker (1972) e diz respeito à versão ou à variedade da língua-alvo que faz

parte do conhecimento linguístico implícito ou da competência do aprendiz de segunda língua.

Conforme o autor, o aprendiz passa por uma série de interlínguas no caminho para completar o

domínio da língua-alvo, mas, geralmente, esse domínio não é completamente alcançado pelos

aprendizes, que ficam estabilizados em uma das etapas da interlíngua. É preciso esclarecer que,

para o autor, interlíngua deve ser entendida como um sistema intermediário caracterizado por

recursos resultantes de estratégias de aprendizagem de línguas.

Conforme Matras (2009), embora a abordagem tradicional tenha concebido a

interlíngua como uma versão incompleta ou deficiente da língua-alvo, uma abordagem

alternativa define interlíngua como uma “linguagem matriz composta”, que se configura como

uma combinação de três sistemas: as línguas adquiridas previamente pelos alunos, uma

variedade da língua-alvo e a variedade de alunos em desenvolvimento.

Quando se fala em aquisição de segunda língua pelo viés do contato linguístico, além

dos termos que apresentamos acima, há outras questões que são alvo de estudos, tais como as

diferenças de idade, como veremos a seguir.

Page 52: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

52

2.2.2 O papel da idade no processo de aquisição de segunda língua

É comumente aceita a ideia de que os aprendizes mais velhos mostram mais

ocorrências de transferência em sua interlíngua do que os aprendizes mais jovens. As crianças

parecem assumir a tarefa de aprender uma segunda língua mais espontaneamente do que os

adultos, o que resulta em similaridades mais estruturais com os falantes de primeira língua.

Appel e Muysken (2005) evidenciam que aprendizes mais velhos geralmente mostram

uma extensa transferência em sua pronúncia. A transferência fonética provavelmente ocorre

mais regularmente do que a transferência em outros níveis, e uma das possíveis causas parece

estar relacionada, para os autores, a causas fisiológicas, pois parece difícil aprender novos

hábitos de pronúncia de forma adicional aos já existentes.

Em relação às diferenças de idade no processo de aquisição de segunda língua, não há

evidências conclusivas de um período crítico para essa aquisição, ou seja, um período que

duraria até, por exemplo, a puberdade em que a aprendizagem pudesse ocorrer completamente,

e após esse período uma segunda língua nunca poderia ser aprendida completamente. Esse

período crítico foi proposto por Lenneberg (1967) para os aprendizes de primeira língua e

aprendizes em processo de aquisição de segunda língua.

Para muitos aprendizes de segunda língua, o ideal a se atingir é uma proficiência

parecida com a de um falante nativo da língua-alvo. No entanto, por meio dos estudos

efetivados por Appel e Muysken (2005), percebemos que muitos aprendizes, especialmente os

mais velhos ou aqueles que permanecem isolados da comunidade da língua-alvo nunca atingem

esse objetivo, ou talvez nem queiram atingir, ficando esse desejo mais latente entre aqueles que

têm um contato intenso fora da comunidade. Esses aprendizes que permanecem isolados ficam

estacionados nos estágios intermediários de aquisição, como a fossilização.

Ainda em relação às diferenças entre adultos e crianças no processo de aquisição de

segunda língua, em publicações mais recentes (cf. Winford, 2003; Appel e Muysken, 2005;

Matras, 2009), percebe-se a defesa de que muitos fatores medeiam a influência da idade na

aquisição da segunda língua, e o que se deve ser enfatizado são efeitos de fatores cognitivos,

afetivos e sociais. Por exemplo, por conta de diferenças em seus níveis de desenvolvimento

cognitivo, os aprendizes de diferentes faixas etárias também podem empregar diferentes

estratégias de aprendizagem, que podem ter consequências nas respectivas habilidades de

segunda língua. Outro fator que medeia o processo de aquisição de segunda língua entre

crianças e adultos diz respeito à possibilidade de haver diferenças na relação entre o aprendiz e

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53

a comunidade da língua-alvo, isto é, a distância social e psicológica entre o aprendiz e a

comunidade-alvo pode ser menor para os aprendizes mais jovens.

Conforme Matras (2009), existe um consenso geral de que a aquisição de uma segunda

língua depois de uma determinada idade segue um processo de desenvolvimento que é

fundamentalmente diferente daquele realizado por aprendizes mais jovens. A esse respeito,

Klein (1986) apresenta três processos distintos: a) a aquisição linguística, seja monolíngue ou

multilíngue, ocorre já durante a primeira semana da criança; b) a aquisição de segunda língua

ocorre no período compreendido entre 3–4 anos até a puberdade e c) a aquisição segunda língua

por adultos é o processo que tem início depois da puberdade.

Em trabalhos recentes no campo de estudos do contato linguístico como os de Appel

& Muysken (2005) e Matras (2009), podemos perceber o interesse em identificar estratégias e

investigar sequências naturais de formas e funções no processo de aquisição do aprendiz. Tais

investigações contribuem para que seja dada ênfase aos aspectos criativos de interação

comunicativa em uma segunda língua, não se fixando em um ponto específico de início e fim

desse processo, mas concebendo-o como algo contínuo e criativo.

Para Montrul (2013), tal como uma criança que aprende uma L1, o adulto deve

construir um sistema linguístico mental a partir do input que ele recebe em L2. O adulto, assim

como a criança, também passa por um processo de evolução e por etapas de desenvolvimento

delineadas. No entanto, nesse processo, há diferenças significativas, como por exemplo, o

contexto da aprendizagem, o papel desempenhado pelos fatores socioeconômicos, entre outros,

que marcaram cada situação de aprendizagem de forma significativa.

De acordo com Myers-Scotton (2006), os falantes nativos de uma língua, detentores

de, pelo menos, uma inteligência mediana, possuem competência na fonologia, na morfologia

e na sintaxe de sua L1. Já em relação a um falante de L2, a autora defende que este tem grande

possibilidade de apresentar mais habilidade em um ou dois desses sistemas. No que se relaciona

à fonologia de L2, a autora enfatiza que esta é responsável por manifestar a diferença entre os

falantes de uma língua como L1 e os falantes dessa mesma língua, mas como L2. Baseando-se

em suas pesquisas, a autora evidencia que poucas pessoas que aprendem uma segunda língua

mais tardiamente, isto é, após a infância, dominam de forma plena o sistema sonoro de sua L2,

ainda assim elas podem falar com muita fluência, além de possuírem um extenso vocabulário.

Tendo em vista que o processo de aquisição de uma segunda língua por aprendizes não

ocorre de forma linear, pelo contrário, apresenta uma enorme gama de variação, pesquisadores

passaram a se interessar pela investigação de fatores que facilitam ou limitam a aquisição de

uma segunda língua. Entre os resultados, há aqueles que reconhecem a validade de recursos

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54

como idade, memória, atitude, aptidão e atenção, oportunidade, por exemplo. (cf. Matras,

2009).

Trabalhos que levam em consideração o lado social e psicológico atestam que os

adultos são mais inibidos do que as crianças, e sua identidade é mais firmemente estabelecida

em relação à sua primeira língua,

Há ainda trabalhos que atribuem a responsabilidade das dificuldades articulatórias

associadas à aprendizagem de segunda língua após a puberdade aos aspectos da fonologia e da

fonética, sendo a prosódia o aspecto mais afetado.

Pienemann (1998) enfatiza como questão central na pesquisa de aquisição de segunda

língua a existência de uma sequência natural de aquisição de categorias. Essa ênfase se baseia

em modelos gerativos de gramática, na tentativa de prever quais estruturas serão adquiridas

pelos aprendizes e em qual estágio de desenvolvimento de sua língua elas são adquiridas.

Quanto ao processamento de uma segunda língua, Weinreich (1953) foi pioneiro na

apresentação de uma análise sistemática do fenômeno. Para o autor, os aprendizes adultos, pelo

menos inicialmente, processam sua segunda língua através de seus conhecimentos da sua

primeira língua, isso porque a familiaridade dos aprendizes com os princípios de sua primeira

língua serve, frequentemente, como base a partir da qual eles podem começar a construir ideias

complexas sobre a estrutura da L2.

Por fim, cabe dizer que as pessoas podem diferir consideravelmente em relação ao

progresso de aquisição da segunda língua, isto é, alguns aprendizes são muito bem-sucedidos.

Por outro lado, outros parecem adquirir a segunda língua de forma mais lenta ou apenas

alcançam um baixo nível de proficiência. Além da idade, muitos outros fatores influenciam a

taxa de desenvolvimento de segunda língua, por exemplo, inteligência, motivação, aptidão

linguística, relação com o entorno etc.

Após tecermos essa breve abordagem sobre o processo de aquisição de segunda língua

e sua relação com a idade e outros fatores, voltaremos nossa atenção para um efeito desse

processo, que é o bilinguismo.

2.2.3 Bilinguismo

Nesta seção, apresentamos algumas concepções acerca de como o bilinguismo é

entendido na visão de alguns autores, bem como de algumas tentativas apresentadas por alguns

pesquisadores ao tentarem de mensurar o bilinguismo de grupos específicos.

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55

Uma definição sociológica de bilinguismo e de bilíngue é apresentada por Weinreich

(1953). Para o autor, o bilinguismo consiste na prática de usar duas línguas alternativamente e

as pessoas envolvidas nessa prática são as bilíngues. Dessa forma, o bilíngue é visto como

aquele que pode usar regularmente duas línguas em alternância. Essa definição pode cobrir as

diferentes habilidades linguísticas de um bilíngue. Para Matras (2009), devemos ter cuidado

para não impor aos bilíngues padrões que vão muito além daqueles adotados para

monolíngues. O próprio fato de os bilíngues usarem diferentes línguas em determinadas

circunstâncias sugere que é a sua competência linguística global que deve ser comparada com a

dos monolíngues. Ainda conforme o autor, muitos pesquisadores se equivocam ao estabelecer

critérios bilíngues bastante rígidos que levam à estigmatização das capacidades de uso

linguístico do bilíngue, sendo essas capacidades consideradas deficientes de alguma forma.

Uma tendência que tem emergido gradualmente é a de olhar o bilinguismo além da

abordagem que o concebe como sendo o domínio de dois sistemas linguísticos para adotar uma

compreensão mais dinâmica e pragmática, que conta com um repertório complexo de esquemas

linguísticos, formas de palavras e construções, acompanhadas por convenções sociais

complexas, sensíveis ao contexto. Nesse aspecto, o repertório de um bilíngue não é nem

fundamentalmente igual nem diferente do repertório do monolíngue; ambos consistem em um

continuum de modos de fala. (cf. Galvés, 2001). A principal diferença é a presença,

potencialmente, nas respectivas extremidades do continuum multilíngue de modos de fala.

Nesse sentido, o modelo de Grosjean (1998, 2001) pode ser considerado um novo avanço,

especialmente por reconhecer que a separação de língua não é necessariamente a opção padrão,

e que, para os bilíngues, a mistura de línguas não é nem patológica nem excepcional.

Grosjean (2001) defende que os bilíngues podem escolher entre vários modos de

linguagem. De acordo com o autor, esses modos são organizados em um continuum entre

monolíngue e bilíngue. Bilíngues entram no modo de língua bilíngue quando eles se

comunicam ou estão ouvindo outros bilíngues. Eles estão tipicamente em um modo monolíngue

quando conversam com outros monolíngues ou os escutam. Ainda conforme o autor, no modo

bilíngue, ambas as línguas são ativadas, mas uma é a língua principal do processamento, aquela

sobre a qual o falante tem um maior domínio. Assim, todo modo terá uma língua de base, mas

o grau de ativação da outra língua varia de acordo com o contexto, que depende do interlocutor,

do objetivo ou da configuração da conversação.

Ainda em relação ao continuum, de acordo com Valdés (2001), indivíduos bilíngues e

biculturais estão situados em um continuum linguístico em que a escolha quanto ao uso de uma

das línguas em alguma situação de interação em que ambas as línguas podem ser faladas

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56

depende de contextos socioculturais, bem como da força de identificação e de conexão com a

cultura e a língua de herança.

Para Matras (2009), o desenvolvimento do bilíngue é marcado pela aquisição gradual

da habilidade para identificar a adequação de palavras e construções em contextos particulares

e em conjuntos de contextos de interação.

Fishman (1975) defende que a descrição e a medida do bilinguismo de um indivíduo,

feita a partir de uma faixa de repertório individual em relação às variedades de língua que

existem em comunidades bilíngues de qualquer complexidade, devem refletir e divulgar as

normas sociolinguísticas das redes de fala e da comunidade de fala de que o bilinguismo faz

parte, precisamente porque essas normas sociolinguísticas estão subjacentes ao bilinguismo do

indivíduo. Para ao autor, indivíduos ou pequenas redes podem ser descritas pela semelhança ou

dissimilaridade de seus perfis de uso com o perfil que cada um obtém para interagir na

comunidade de fala ou em redes maiores.

Um outro ponto que julgamos importante em relação ao bilinguismo é o seu aspecto

político. Conforme Appel e Muysken (2005) e Montrul (2013), a relação sociopolítica entre as

duas línguas em contato em comunidades bilíngues implica no fato de que nessas comunidades

muitas pessoas têm que aprender duas línguas, particularmente aquelas que falam uma língua

minoritária. Isso quer dizer que, além de adquirirem a L1, essas pessoas adquirem uma segunda

língua, muitas vezes a majoritária, não em termos de quantidade de falantes, mas em termos de

maior poder, a língua de comunicação mais ampla, cujo poder é reiterado pelos meios de

comunicação de massa. Membros de grupos de minorias devem atingir um certo grau de

bilinguismo se eles querem participar efetivamente do fluxo da sociedade de entorno. Diante

dessa situação, os falantes de uma língua majoritária estão em uma posição muito mais

confortável e, se quiserem, podem permanecer monolíngues, como é o caso dos alemães, que

geralmente não veem necessidade de aprenderem turco, ou os americanos que não se sentem

obrigados a falarem espanhol etc.

Appel e Muysken (2005) salientam uma distinção importante entre dois tipos de

bilinguismo socialmente definidos: o bilinguismo aditivo e subtrativo. Nos casos em que

ocorre o bilinguismo aditivo, o bilíngue acrescenta ao seu repertório uma segunda língua

socialmente relevante. Nesse caso específico, a primeira língua não corre o perigo de ser

substituída, porque é uma língua de prestígio e seu desenvolvimento é reiterado de muitas

maneiras, por exemplo, nos meios de comunicação de massa. À guisa de exemplificação,

podemos dizer que os americanos de língua inglesa que acrescentam espanhol ao seu repertório

verbal tornam-se bilíngues aditivos.

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57

Quando a aprendizagem de segunda língua é parte de um processo de mudança de

língua, o resultado é o bilinguismo subtrativo, como por exemplo, o caso do turco na Alemanha

Ocidental. Em relação a esse tipo de bilinguismo no Brasil, Maher (2006) enfatiza que muitos

grupos étnicos minoritários são forçados a abandonar sua língua étnica pela língua portuguesa,

por conta de políticas educativas e várias outras pressões sociais. A língua minoritária é vista

como não possuidora de prestígio, e, não podendo ser mantida adequadamente, é subtraída da

proficiência bilíngue.

A língua de prestígio, dominante é aquela que se encaixa na maioria das configurações

de comunicação, geralmente aquelas pertencentes ao domínio público, bem como domínios

relacionados com o poder, como instituições, por exemplo. Por outro lado, línguas não

dominantes, devido à sua utilização num número limitado de interações, favorecem para que,

frequentemente, falantes multilíngues sejam mais afetados pelo contato de línguas e se

encontrem em comunidades que contam com línguas mais ameaçadas.

Quatro situações polares que analisam as formas do bilinguismo e diglossia são

apresentadas em Fishman (1967). São elas: 1) bilinguismo com diglossia, em que todos os

indivíduos da comunidade conhecem as variedades alta e baixa, como é o caso do Paraguai, em

que se fala espanhol e guarani; 2) bilinguismo sem diglossia, em que há numerosos bilíngues

em uma sociedade, sendo que esses não se utilizam das variedades linguísticas para usos

específicos; 4) diglossia sem bilinguismo – situação identificada quando, em uma comunidade

social, há divisão funcional de usos entre duas línguas, mas um grupo só fala a variedade alta,

enquanto o outro fala somente a variedade baixa.

Ainda em relação à distinção dos tipos de bilinguismo, Appel e Muysken (2005) citam

o bilinguismo social e individual. Segundo os autores, o bilinguismo social ocorre quando em

uma dada sociedade duas ou mais línguas são faladas. Nesse sentido, quase todas as sociedades

são bilíngues, mas podem diferir quanto à forma e ao grau de bilinguismo. Já o bilinguismo

individual diz respeito a um indivíduo ser bilíngue em uma comunidade predominantemente

monolíngue.

A esse respeito, Matras (2009) alerta para o fato de que o bilinguismo deve ser

analisado em seu contexto, e os efeitos dele só podem ser estudados de forma proveitosa e

correta se fatores sociais também forem levados em conta. Conforme o autor, os estudos sobre

os efeitos do contato linguístico e sobre o bilinguismo se desenvolveram no paradigma da

sociolinguística como um todo. Sociolinguística, como uma das áreas da Linguística, tem

enfatizado a diversidade no uso da língua.

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58

Para finalizar essa seção, gostaríamos, ainda, de tratar de dois conceitos também

relacionados ao bilinguismo: a identidade e a atitude. Tudo aquilo que contribui para que se

estabeleça diferença entre um grupo e outro constitui a identidade do grupo. Embora não haja

critérios fixos, um grupo é considerado um grupo étnico, com uma identidade étnica específica

quando é suficientemente distinto dos outros grupos.

Thomason (2001) apresenta duas maneiras de perceber a atitude em relação ao

multilinguismo, uma interna e oura externa à comunidade. Quanto à primeira, é surpreendente

que existam muitas atitudes negativas associadas ao bi/multilinguismo. Do ponto de vista

psicológico há, por exemplo, a alegação refutada de que o bilinguismo prejudica uma criança,

e, do ponto de vista sociológico, muitos estudiosos ligam o multilinguismo diretamente ao

conflito. Já a atitude interna da comunidade varia dependendo da importância da língua como

marcador de identidade étnica. A atitude interna se relaciona, portanto, a questões de política

de língua nacional e de planejamento de línguas. A esse respeito, as sugestões são feitas tendo

em vista a quais propósitos uma língua oficial deve atender, por exemplo.

Ligada a esse contexto, apresentamos na seção seguinte uma abordagem sobre dois

assuntos caros aos estudos associados ao contato linguístico: pidgin e línguas crioulas.

2.2.4 Pidgins e línguas crioulas: efeitos do contato linguístico

Uma característica que define as línguas de contato é sua função como um novo meio

de comunicação. Essa necessidade de comunicação surge em uma variedade de cenários em

que grupos populacionais precisam interagir, variando de contato social a encontros apenas

ocasionais, para fins comerciais, para comunicação interétnica num quadro socioeconômico

comum até intensos contatos sociais entre grupos que falam línguas diferentes dentro da mesma

comunidade e até dentro do mesmo domicílio (cf. Matras, 2009).

As situações de contato podem dar origem a novas línguas, mas nem todas as línguas

usadas em situações de contato também são línguas de contato. Por exemplo, o termo língua

franca refere-se a línguas que são usadas para comunicação interétnica, ou seja, em interações

nas quais os participantes possuem diferente línguas, mas que usam uma língua que é de

entendimento comum. Dessa forma, uma língua franca pode ou não ser uma língua de

contato. Por exemplo, o inglês é usado como língua franca em numerosas transações comerciais

internacionais, ou em congressos internacionais, reuniões diversas entre grupos que falam

línguas diferentes, já o russo é usado como língua franca nos encontros entre os membros de

várias nações da Ásia Central, e o português é usado como língua franca entre grupos indígenas

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na região do Alto Solimões que falam línguas indígenas diferentes, mas usam o português em

encontros nos quais precisam interagir. Mas nenhuma das línguas surgiu como resultado de

uma situação de contato linguístico. Por outro lado, há situações de contato que dão origem às

chamadas de línguas de contato, como por exemplo, os pidgins e os crioulos, como é o caso do

pidgin inglês nigeriano, as línguas crioulas de Cabo Verde e Guiné Bissau, que são o produto

de interações entre línguas e são amplamente utilizados entre membros de diversas origens

étnicas e linguísticas como meio de comunicação.

Mas o que seria um pidgin e um crioulo? Inicialmente, vale dizer que não há um senso

comum entre os pesquisadores acerca do alcance e definição desses termos; portanto, aqui,

limitamo-nos a apresentar algumas das concepções mais propagadas na literatura.

Conforme Matras (2009), pidgin é um termo de referência para línguas que se

originam a partir de situações em que há a necessidade de comunicação entre uma população

de potenciais interlocutores que não compartilham uma língua em comum. Nesse sentido,

pidgin pode ser visto como uma espécie de língua franca criada, improvisada, em que os

falantes criam os seus repertórios linguísticos, com o intuito de permitir a comunicação

interétnica em um conjunto de contextos de interação, geralmente para um conjunto restrito de

atividades. Por conta disso, os pidgins não têm falantes nativos.

As situações típicas em que surgem pidgins são contatos comerciais e relações de

trabalho. Quanto aos pidgins originados por contatos comerciais, Matras (2009) evidencia que

cada grupo linguístico parece participar de forma mais ou menos igualitária ao criar um

repertório linguístico comum, como é o caso de Russenorsk, bastante citado na literatura sobre

contato linguístico. Russenorsk se originou a partir de relações que foram estabelecidas via

comércio marítimo durante o século XIX entre russos e noruegueses. Esse pidgin contava com

itens de vocabulários de ambas as línguas. Por outro lado, os pidgins do trabalho são

tipicamente desequilibrados, e fazem refletir o poder que há nas relações entre empregadores e

empregados. Os empregadores, geralmente, pertencem a um grupo linguístico bastante

diferente dos trabalhadores, os quais apresentam, em muitos dos casos, origens étnicas e

linguísticas diferentes.

Há pidgins que surgiram a partir de relações de comércio, mas não igualitários e sim

coloniais. Nesse caso, os pidgins tendem a ser desequilibrados, e têm sua base na língua colonial

- por exemplo, árabe, português, inglês ou francês. Isso é reflexo do domínio do poder colonial

na importação de bens manufaturados e muitas vezes de abstrações sobre religião e ordem

social. Um pidgin desequilibrado é, portanto, aquele que emerge de uma situação em que o

componente referencial da língua franca improvisada, isto é, o léxico de conteúdo, é criado em

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60

grande parte por meio de acomodação unidirecional ao repertório linguístico do grupo

dominante.

Em situações de contato linguístico, não só uma língua pode captar elementos de outra,

mas uma língua inteiramente nova pode emergir. No campo de estudo sobre pidgins e crioulos,

a questão principal que se levanta é identificar como, exatamente, uma nova língua surge e

como as propriedades gramaticais específicas das recém-formadas línguas, pidgins e crioulas,

estão relacionadas com a maneira como surgiram. DeCamp (1971) concebe uma língua pidgin

como um sistema linguístico fortemente reduzido que é usado para contatos promovidos por

uma situação específica entre falantes de diferentes línguas. Já uma língua crioula é concebida

como uma língua que surgiu quando o pidgin adquiriu falantes nativos.

No Brasil, Naro (1978) apresenta uma síntese da evolução cíclica do pidgin e do

crioulo. De acordo com o autor, o começo de um pidgin consiste em um processo em que ocorre

a redução da forma interna e externa. Esse processo é a pidgnização e leva a um sistema

linguístico não padrão, isto é, o pidgin, que é diferente de qualquer fonte ou substrato pré-

existentes. Atinge-se o estágio intermediário por meio de um processo de re-expansão, isto é,

crioulização, a um sistema linguístico que se mostra menos limitado, o crioulo. A

decrioulização representa o fim do ciclo e consiste em um estágio no qual uma língua padrão

exerce grande influência sobre o crioulo, cujo resultado produzido pode se configurar como

uma variedade regional da língua padrão.

Nas comunidades indígenas Tikuna mais distantes dos centros urbanos, onde não há o

contato interétnico intenso, percebemos a ocorrência de estágios de pidgnização, com

ocorrências da fala fatorizada, ou seja, aquela que marca, conforme Naro (1978) a interação

verbal nos primórdios do pidgin, que conta com o auxílio amplo de gestos para manifestar

linguisticamente um conteúdo, bem como noções direcionais ou locativas. Esse comportamento

linguístico foi observado, por exemplo, na comunidade de Vendaval, na fala dos mais velhos,

que pouco têm contato interétnico.

Ainda conforme Naro (1978), nos primeiros tempos da colonização brasileira, não

surgiram pidgins e crioulo estáveis. Somente após o período de colonização, o que podem ter

surgido, segundo o autor o autor, foram muitas variantes pidgnizadas que não se estabilizaram

e sobre as quais não há registros extensos e que, com o passar do tempo, por conta da

aculturação linguística, assumiram de forma gradual a forma de um português regional, como

é, no nosso entender, o caso da variedade de português Tikuna que os professores participantes

de nossa pesquisa falam hoje.

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61

Segundo Naro (1978), só há notícias no Brasil de um crioulo de base francesa, o

Karipuna. Quanto a pidgin, há um caso que é diversamente diferente da grande maioria dos

pidgins e de outras línguas de contato, tendo em vista, dentre outros fatores, que a sua origem

pôde ser estudada. É o caso do pidgin que surgiu na região do Alto Xingu, por conta do contato

com membros da expedição Roncador-Xingu e os índios xinguanos. Nas palavras do

pesquisador, esse pidgin teve vida e trajetória próprias e não passou por todos os estágios de

pidgnização, crioulização e decrioulização, atuando como um pidgin transitório.

Contrariamente à visão de Naro, Lucchesi tem defendido a existência de um processo

de crioulização na formação do português brasileiro. Essa defesa é feita com base em pesquisas

realizadas em comunidades afro-rurais, localizadas, por exemplo, na Bahia.

Como dissemos anteriormente, o contato de línguas e suas consequências têm

suscitado inúmeras discussões e controvérsias entre os pesquisadores. Nesta seção sobre

pidgins e línguas crioulas, tivemos a intenção de abordar alguns estudos que tratam dessa

temática, pautando-nos na afirmação de Matras (2009) de que um dos aspectos mais fascinantes

do contato linguístico é a súbita criação de novos “contatos linguísticos”. Conforme o autor,

nas últimas décadas, grandes progressos foram feitos quanto à compreensão de línguas como

pidgins, crioulos e as chamadas línguas mistas. Para finalizar o capítulo, a seguir, faremos uma

sucinta referência aos preceitos gerias da teoria da variação e mudança, que também se associa

ao contato.

2.3 A VARIAÇÃO E MUDANÇA COMO EFEITO DO CONTATO LINGUÍSTICO

A Teoria da Variação e Mudança Linguística tem o seu surgimento ligado ao texto

seminal de Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]). Neste trabalho, a língua é concebida

como objeto heterogêneo e dinâmico, sendo que os fatores sociais são vistos como

determinantes da heterogeneidade linguística.

A concepção da heterogeneidade ordenada dos usos da língua pode ser levada a

situações em que se tem encontros de culturas e de línguas (caso do presente estudo), o mesmo

sendo possível no tocante ao estudo da língua em uso a partir de uma unidade específica, a

comunidade de fala. Essa última – sujeita a uma variação conceitual ao longo do tempo e

presente na obra de diferentes autores situados em distintos quadros teóricos - ganha, no

contexto do trabalho de Labov ([1972]), uma definição em que o papel de maior relevância

cabe à participação em um conjunto de normas compartilhadas (e não a um acordo marcado no

uso de elementos linguísticos). Assim, segundo as palavras do próprio autor, tem-se que:

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The speech community is not defined by any marked agreement in the use of language

elements, so much as by participation in a set of, and by the uniformity of abstract

patterns of variation shared norms. These norms may be observed in overt types of

evaluative behavior which are invariant in respect to particular levels of usage.

(LABOV [1972, p. 120-121])

Não obstante toda a discussão que se seguiu à definição de Labov para comunidade de

fala e o levantamento de questões quanto à sua natureza e à sua substituição ou articulação com

outro tipo de unidade, a definição de Labov aqui exposta coaduna-se com os objetivos do

estudo. Em primeiro lugar, porque nela o social tem precedência sobre o que é individual – o

que é importante para nossa investigação, que não lida propriamente com constantes rearranjos

de conjuntos de indivíduos em ligações de diferentes tipos e intensidade, mas sim com atores

sociais (professores), representativos de um grupo étnico específico (Tikuna) em situação de

encontro com parcelas de uma sociedade não indígena envolvente, falante de língua portuguesa.

E, em segundo lugar, porque a própria definição fornecida abre espaço para que se possa falar

em características linguísticas compartilhadas, em densidade de comunicação interna (o que dá

conta do fato de que, no interior de uma comunidade de fala, as pessoas se comunicam mais

entre si do que com quem está fora dessa comunidade).

Para o estudo sólido dos efeitos do contato, no que tange a mudanças, Weinreich,

Labov e Herzog (2006, [1968]) apresentam uma síntese dos fundamentos empíricos para uma

teoria da mudança linguística, baseados em descobertas empíricas relevantes à teoria e tecem

algumas conclusões/indicações relacionadas à complexidade de uma teoria da estrutura

linguística capaz de explicar esta mudança, conforme discriminamos abaixo:

O PROBLEMA DOS FATORES CONDICIONANTES.

Os autores sugerem que um possível objetivo para uma teoria da mudança é determinar o

conjunto das mudanças possíveis e das condições possíveis para mudanças que podem ter lugar

em uma estrutura de um determinado tipo.

O PROBLEMA DA TRANSIÇÃO

O problema da transição está relacionado com os diferentes estágios que ocorrem em um

processo de mudança em progresso. Por meio desses estágios, deve-se tentar descobrir o

interveniente, definidor do caminho pelo qual a estrutura de A transitou para a estrutura de B.

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O PROBLEMA DO ENCAIXE

Quanto a esse problema, uma teoria da mudança linguística deve verificar de que forma as

mudanças observadas são encaixadas nas matrizes social e estrutural do sistema linguístico

como um todo.

PROBLEMA DA AVALIAÇÃO

Para os autores, a avaliação ocorre por meio do estabelecimento empírico de correlatos

subjetivos dos diversos estratos e variáveis numa estrutura heterogênea.

PROBLEMA DA IMPLEMENTAÇÃO

Ainda que haja dificuldades no enigma da implementação do processo global da mudança

linguística, por este poder envolver estímulos e restrições tanto da sociedade quanto da estrutura

da língua, tal fato não deve impedir o pesquisador de investigar tantos casos quanto puder em

todo pormenor para tentar reunir resposta em uma visão mais abrangente possível do processo

de mudança.

Ao estabelecerem esses fundamentos, com a explicitação de problemas e questões que

envolvem uma teoria da mudança linguística, Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968])

pensam na constituição de uma teoria da variação e da mudança linguística como parte

integrante de uma pesquisa teórica que leve em consideração a estreita relação existente entre

fatores sociais e linguísticos.

De acordo com Matras (2009), as manifestações envolvendo o contato linguístico

abrangem uma ampla variedade de domínios, sendo essa área de estudos altamente dinâmica,

abrigando, por exemplo, a aquisição de línguas, a produção e o processamento linguístico, a

conversação e discurso, funções sociais da linguagem, política linguística, tipologia e mudança

linguística. Em relação ao presente trabalho, cujo escopo focaliza a aquisição e a variação, os

estudos do contato linguístico se configuraram como um campo que nos possibilitou entender

a situação de contato a partir da qual tem emergido a variedade (ou variedades) de português

falada por professores Tikuna na região do Alto Solimões, no Amazonas.

Por fim, esclarecemos que nesse capítulo, tivemos a intenção de apresentar um painel

geral acerca dos pressupostos sobre contato linguístico. Nossa intenção foi, por um lado, situar

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teoricamente tais postulados e, com isso, evidenciar o universo de referência que impulsionou

nossa pesquisa; e, por outro lado, a busca pelo conhecimento do movimento interno a essas

concepções nos revelou o avanço teórico desses movimentos.

Dessa forma, nesse capítulo, concomitantemente às situações de contato linguístico,

estiveram presentes discussões acerca de mecanismos, estratégias e tipologias de contato

linguístico. Além disso, apresentamos também discussões que envolvem a previsão de tipos e

graus de mudança induzida por contato e, por fim, evidenciamos os principais estudos que

culminaram na criação de uma teoria da mudança linguística.

Apesar de divergirem em muitos pontos e de suas abordagens serem diferenciadas, os

autores representativos de que tratamos nesse capítulo convergem em um posicionamento:

admitem que as mudanças na estrutura social se inter-relacionam intimamente aos fatores

linguísticos e cada autor apresenta um esforço no sentido de elaborar ou testar um arcabouço

teórico que possa abranger o contato entre línguas e os efeitos daí resultantes, como por

exemplo, diferentes variedades de línguas, bem como a mudança linguística.

No capítulo seguinte, traçamos um breve painel sobre alguns estudos envolvendo

variedades indígenas do português do Brasil.

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CAPÍTULO 3 - O CONTATO LINGUÍSTICO E VARIEDADES

DO PORTUGUÊS INDÍGENA DO BRASIL

A constituição de um campo da Linguística Indígena no âmbito dos estudos

linguísticos no Brasil é recente e ainda está em processo de consolidação. Diferentemente de

outras áreas no campo da Linguística no país, a Linguística Indígena demorou a se estabelecer,

devido, dentre outros fatores, à existência de poucos estudos voltados para as línguas indígenas

e para as variedades do português falado por indígenas e, ainda, à avaliação dos próprios

estudiosos da área, “focalizando ora suas necessidades e seus problemas, ora também suas

conquistas e problemas” (Seki, 1999, p. 258).

Nas últimas duas décadas, os estudos sobre aquisição, aprendizagem e ensino de

português como segunda língua têm crescido no Brasil. Conforme Amado (2012), o foco desses

estudos costuma ser o português língua de herança, bilinguismo motivado por contato em região

de fronteira, bilinguismo de escola e português para comunidades de trabalhadores vindos de

outros países, no entanto, ainda continuam sendo em número reduzido os estudos que

contemplam o português usado por falantes de línguas indígenas.

Neste capítulo, traçaremos um painel sobre alguns estudos voltados ao Português L2,

motivado por situações de contato no Brasil, e usado por falantes de línguas indígenas na

contemporaneidade. Antes disso, abordaremos, sucintamente, o contato da língua portuguesa e

de outras línguas de populações que se dirigiram ao Brasil (por ocasião da chegada dessas

populações ao país desde o período colonial) com as línguas dos povos nativos.

Segundo Mattos e Silva (2004, p.49), “a história do contato português-línguas

indígenas é a própria história do contato português-índio” e, desde o início do período da

colonização em território brasileiro, a coroa lusa tentou implementar a política de

homogeneização linguística, por meio da atuação dos jesuítas e do projeto deles de conversão

dos indígenas.

O contato que se estabeleceu, há mais de 500 anos, entre falantes da língua europeia e

falantes das línguas indígenas nem sempre ocorreu amigavelmente, no entanto, é a partir do

século XVIII que essas relações ganham maior embate.

Foi no século XVIII que o então ministro de Portugal, Marquês de Pombal, por meio

de Diretório emitido em 1757 torna obrigatório o ensino de Português em todo o território da

colônia, com o intuito de não permitir que continuassem sendo usadas as línguas gerais, que

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surgiram como resultado dos contatos linguísticos que haviam sido estabelecidos no país há

mais de 200 anos.

Conforme Amado (2012), essa política repressiva do Estado em relação ao uso de

línguas no país não se circunscreveu ao período colonial, tendo em vista que, além da coibição

do uso das línguas indígenas naquele período, “durante o Estado Novo (1937-1945), o governo

mandou fechar as escolas bilíngues de imigrantes onde se ensinavam alemão, japonês e italiano,

em nome da soberania nacional” (AMADO, 2012, p. 387).

Conforme se pode notar, a despeito de toda a diversidade linguística que marca o país,

o Estado tomou, ao longo de nossa história, medidas que desconsideraram essa diversidade em

favor de uma homogeneização linguística idealizada.

Estudos sobre os efeitos do contato linguístico no Brasil, mais especificamente, do

contato linguístico entre indígenas e não-indígenas ainda são em número reduzido, mas já há

constituem um conjunto bastante significativo e, a seguir, traçaremos um painel sobre alguns

destes.

Quanto aos estudos voltados ao português de contato falado por indígenas, o trabalho

de Charlotte Emmerich (1984) é um dos pioneiros a empreender tal tarefa no Brasil. Neste

trabalho, a pesquisadora analisou as origens do português Xinguano, bem como a forma e a

função que essa variedade assume como meio de comunicação interétnica. O estudo de

Emmerich defende que a língua de contato do Xingu é caracterizada por três processos: a

fatorização, a pidgnização e a depidgnização.

Quanto à forma, ao analisar o português de contato falado pelos indígenas do Alto

Xingu, a autora elegeu a variável concordância verbal de primeira pessoa do singular, com o

intuito de identificar os contextos condicionadores ou inibidores do emprego da marcação de

1ª pessoa do singular, bem como avaliar como ocorre a fixação da flexão de pessoa verbal no

português do Alto Xingu. Conforme a autora, a intensidade do contato figura como o fator que

mais favorece o aprendizado de português, acompanhado do contexto cultural nativo, tal como

idade e localidade, os quais são, conforme Emmerich, determinantes no processo aquisitivo e

na fluência dos indígenas do Alto Xingu. Os resultados evidenciam que, quanto maior for a

fluência do falante de português Xinguano, maior será aplicada a regra de concordância.

Cumpre registrar que a variedade do português de contato falada por indígenas do Alto

Xingu é, até o momento, a mais estudada, conforme se pode verificar nos trabalhos de

Emmerich (1984), Roncarati e Mollica (1997), Emmerich & Paiva (2009) e Gomes (1997,

2009), por exemplo.

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67

O livro “Variação e aquisição”, organizado por Roncarati e Mollica (1997) abarca um

conjunto de textos que apresentam análises acerca do português de contato falado por índios da

Reserva do Alto Xingu. Por meio dos artigos, podemos verificar o comportamento de regras

variáveis em processos de aquisição da linguagem, tanto no âmbito fonético-fonológico, quanto

no morfológico, sintático e discursivo.

O número 9 da revista Papia (1997) também trata especialmente do Português de

contato do Alto Xingu. Este número foi composto por oito artigos que versam sobre estudos

realizados nos campos da morfossintaxe, fonologia, sintaxe e discurso. Quanto aos trabalhos

relacionados aos processos morfossintáticos, estes tratam da variação na concordância de

gênero; do desenvolvimento do sistema verbal de tempo, modo e aspecto. Já quanto ao nível

fonológico, são descritas a queda de /r/ pós-vocálico em posição medial e final; a realização

variável do traço de sonoridade das oclusivas, fricativas e africadas. No que se relaciona aos

mecanismos sintáticos, há o exame da presença/ausência das preposições a, para, de, com e em

no Português do Alto Xingu. E, no domínio discursivo, há a análise da repetição de hesitação e

os “marcadores discursivos” no português de contato.

Na região norte do país, temos alguns trabalhos representativos, como o de Ferreira

(2005), que que analisa os efeitos do contato linguístico entre o português e a língua indígena

Parkatêjê (Timbira); o de Christino (2015), que apresenta aspectos relacionados à concordância

de gênero no interior do sintagma nominal no Português Huni-Kuin e o de Ribeiro (2018), que

analisa a variedade do português brasileiro falada em Oiapoque/AP pelos oiapoquenses,

falantes monolíngues de português; pelos franceses, bilíngues francês-português, bem como

pelos não-bilíngues, usuários de francês L1 e português L2; e pelos indígenas, bilíngues kheuól-

português, bem como pelos não-bilíngues, usuários de kheuól L1 e português L2. A análise de

Ribeiro (2018) focaliza o processo de concordância de número nos itens do sintagma nominal.

O trabalho de Ferreira (2005) apresenta a análise da variedade étnica do português

falado por indígenas que residem em aldeias Parkatêjê, localizadas em Marabá, no estado do

Pará. Na análise, a pesquisadora considera aspectos fonético-fonológicos, morfossintáticos,

lexicais e semânticos dessa variedade étnica do português. Os resultados apontam que a

ocorrência de processos de simplificação gera efeitos sobre a fonologia, a morfossintaxe e o

léxico da língua Parkatêjê, conforme sumarizamos a seguir. Ferreira (2005) identificou que, nas

ocorrências fonético-fonológicas, é recorrente a estratégia de substituição de fonemas do

português brasileiro por um som que mais se aproxime do Parkatêjê (Timbira). Já quanto aos

aspectos morfossintáticos, a pesquisadora defende que “alguns processos de simplificação

operam a fim de possibilitar que falantes bilíngues usem ambos os sistemas linguísticos”

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68

(FERREIRA, 2005, p. 18). Para ilustrar esse fato, a pesquisadora usa como exemplo a

concordância de número, em que os Parkatêjê usam a marcação que se aproxima daquela usada

na variedade regional, bem como no PB de modo geral, ou seja, marca-se apenas o primeiro

elemento do sintagma nominal, e os outros elementos permanecem no singular. No que se

relaciona ao léxico, os resultados apontam que há interferência mútua do léxico de uma língua

sobre o léxico da outra, com a ocorrência de, por exemplo, code-switching.

O texto de Christino (2015) apresenta a primeira descrição da concordância de gênero

no interior do sintagma nominal no Português Huni-Kuin. Para tanto, a autora observa

diferentes classes gramaticais e considera tanto núcleos do gênero masculino quanto do gênero

feminino, procurando reconhecer traços ligados a universais de segunda língua e diferenciá-los

daqueles relacionados a transferências da L1.

Os resultados alcançados pelo estudo de Ribeiro (2018) evidenciam que a CN de

número no português falado em Oiapoque/AP, pelos oiapoquenses, indígenas e franceses, de

uma forma geral, se assemelha ao comportamento já identificado para esse fenômeno em outras

variedades do PB, ou seja, nessas variedades a marcação de CN tende a ser superior à não-

marcação.

No texto Concordância verbal e nominal na escrita em Português-Kaingang,

publicado na revista Papia, em 2012, Beatriz Christino e Moana de Lima e Silva analisam os

processos que envolvem a marcação ou não-marcação de concordância verbal e nominal em

Português-Kaingang escrito. Para tanto, utilizam, como fonte de investigação, textos

produzidos por professores indígenas Kaingang bilíngues em formação. De acordo com as

autoras, a análise feita revelou que muitos dos professores bilíngues empregam várias

estratégias de marcação (ou não) da concordância verbal e nominal. A hipótese levantada pelas

autoras, de que pode haver uma relação entre a forma de marcação utilizada pelos indígenas

Kaingang na variedade do português com a estrutura da marcação de concordância da língua

Kaingang, foi confirmada, tendo em vista que a análise dos dados demonstrou que, ao lado de

estruturas próprias do português padrão, tais como marca de gênero feminino e de plural em

todos os elementos do sintagma nominal; plural expresso no sujeito e no verbo, encontram-se

combinações presentes nas variedades populares do PB, tais como plural marcado

exclusivamente no primeiro elemento do sintagma e outras sem paralelo nas variedades de

português brasileiro empregadas por falantes nativos, que evidenciam a marcação de plural nos

elementos mais à direita do sintagma e a associação de verbos no plural a sujeitos no singular.

De acordo com as autoras, tal marcação é provavelmente produto do contato linguístico, uma

vez que podem ser relacionadas a características do Kaingang.

Page 69: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

69

O livro “Português Indígena: novas reflexões”, organizado por Ferreira, Amado e

Christino (2014) abriga um conjunto de artigos que apresentam análises acerca do português de

contato falado pelos Dâw, Kaiowá, Akwe-Xerente, Parkatêjê e Terena. Nos textos, os autores

apresentam a descrição e análise dessas variedades e evidenciam determinadas peculiaridades

ocasionadas em razão do contato entre a língua portuguesa falada pela sociedade majoritária e

os indígenas. Por razões de economia, aqui, discorreremos sobre um artigo presente no livro

que aborda a variedade falada na região do Alto Rio Negro, no Amazonas.

No texto A inserção do Português no discurso dos Dâw: um estudo sobre as

influências linguísticas das relações de contato entre Português e Dâw, Martins (2014) defende

que o crescimento do conhecimento de língua estrangeira é resultado do contato com os falantes

de português LE, bem como da diversificação de atividades que favorecem a prática do

português como L2. Dentre os aspectos analisados por Martins estão: a análise da inserção de

empréstimos antigos e recentes, com a reparação fonológica, na forma de adaptação de sons

ilícitos. De acordo com Martins (2014, p. 12),

as palavras emprestadas sofrem as adaptações para se ajustarem ao sistema fonológico

da língua, tais como: as palavras emprestadas têm somente sons existentes na

fonologia Dâw; as palavras passam a ter somente uma sílaba e com tons; palavras

terminam em consoante ou vogal longa. Desta forma, os empréstimos adquirem todas

as características das palavras nativas, de modo que os futuros aprendizes da língua

receptora não as identificarão como sendo de origem estrangeira.

A análise de Martins (2014) faz ver que, em situação de empréstimo, os falantes Dâw

utilizam estratégias que lhes possibilitam fazer rearranjos conforme regras/restrições lícitas na

sua L1.

Ainda em relação às línguas em contato na região norte, o trabalho de Freire (2009)

não apresenta a análise de uma variedade étnica específica, mas realiza uma abordagem

histórica acerca do contato que se estabeleceu na Amazônia entre as línguas indígenas da região,

o nheengatú e o português. Além disso, Freire (2009) observa as situações de bilinguismo

encontradas a partir da documentação consultada.

No texto de apresentação do número 25 da Revista Papia, publicada em 2015, Beatriz

Christino traça um panorama dos trabalhos publicados na revista Papia de número 9, no sentido

de apresentar resultados de estudos sobre variedades indígenas com os quais o número 25 da

mesma revista dialoga. De acordo com Christino (2015), as variedades indígenas do português

apresentam características específicas que contribuem para a compreensão dos fenômenos

envolvidos nos processos de contato linguístico, tendo em vista que, comumente, nesses

Page 70: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

70

processos, seus traços particulares encontram-se vinculados a mecanismos de transferência ou

a universais de aquisição de L2.

Ainda conforme a autora, deve-se levar em conta que, assim como qualquer outra

variedade linguística, as variedades étnicas do português apresentam um caráter não

homogêneo e monolítico e sofrem grande influência de questões geracionais no panorama

sociolinguístico multifacetado que as caracteriza. Além disso, essas variedades apresentam

diferentes graus de registro, dependendo da situação de formalidade e informalidade da situação

comunicativa da qual os falantes estejam participando.

A divulgação dos trabalhos relacionados às variedades linguísticas específicas de

comunidades indígenas contribui para que se atinja um conhecimento maior e mais profundo

sobre a diversidade linguística do Brasil e se combata o preconceito linguístico ainda tão

fortemente marcado em nossa sociedade, tal como aponta Amado (2015).

O texto de Amado (2015) inicia com um apanhado histórico sobre o contato dos

Timbira com o português, enfatizando que os Timbira, já desde o século XIX sabem da

necessidade de dominarem o português, seja para lutarem por seus direitos quanto para, mais

hodiernamente, ampliarem seus estudos quando precisam sair das aldeias. No que se refere a

estudos de português em situação formal pelos Timbira, a autora evidencia que foi a partir da

década de 1990 que o Português passou a ser ensinado formalmente no contexto escolar,

juntamente com a língua Timbira.

A pesquisadora faz também uma abordagem acerca do contato dos Timbira com o

português, - o qual ocorre informalmente com os falantes nativos ou via escola -, com o objetivo

de embasar a análise feita acerca de aspectos da variedade de português usada por esses povos.

Tal análise toma como base alguns traços nos níveis fonético-fonológico, gramatical e

discursivo dessa variedade.

Conforme a autora, é possível identificar traços particulares na variedade de português

falada pelos Timbira e, a essa variedade, a autora chama de português étnico Timbira. Dentre

os resultados pontuados pela autora, podemos citar: no nível fonético-fonológico, alçamento da

vogal pretônica; no nível gramatical, a marcação da flexão de número no primeiro elemento do

SN e, no nível discursivo, uso da paráfrase. Por fim Amado (2015), evidencia que as

características do português étnico analisadas por ela mostram uma presença acentuada de

traços da língua Timbira. Segundo a autora, nessa variedade, há alguns traços que se

manifestam tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita e que remetem à interlíngua,

um termo adotado pelas teorias de ensino-aprendizagem de segunda língua.

Page 71: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

71

Um outro trabalho que compõe o número 25 da revista Papia é o de Braggio (2015).

Nesse artigo, a autora apresenta uma versão da Variedade Étnica do Português Xerente Akwe

e utiliza argumentos em favor da defesa de que essa variedade é constituída não apenas pelo

Português como também pela língua Xerente. Tal fato, conforme a pesquisadora, torna essa

variedade específica do povo Xerente, que fala o Português como L2 e a língua Xerente como

L1. Diante disso, a L1 deixa, na variedade de Português L2, marcas, indícios, influências que

não podem ser ignoradas, principalmente no que diz respeito à educação escolar indígena. Para

provar que a língua Xerente exerce influência sobre a variedade de Português L2, a autora

utiliza exemplos que demonstram haver uma substituição do fonema que não ocorre na língua

Xerente pelo fonema fonologicamente mais próximo que existe nessa língua.

Os trabalhos de Maher (1996, 2006, 2007), dentre os de outros autores, assumem que

as variedades indígenas do português são elementos significativos de identidade étnica e se

configuram como meio de comunicação entre os povos que sofreram o processo de substituição

linguística e, consequentemente, tiveram cessada a transmissão de sua língua nativa para as

outras gerações de falantes; bem como entre as pessoas que precisam se comunicar com não-

indígenas nas mais diversas situações comunicativas; e, ainda, para aqueles que usam o

português para se comunicar com falantes de outras línguas indígenas, igualmente bilíngues em

português. Para esses últimos grupos, o português é a língua franca indígena interétnica.

Após tecermos considerações sobre alguns trabalhos envolvendo as variedades do

português indígena do Brasil, apresentamos, a seguir, os fundamentos metodológicos que

norteiam nossa pesquisa.

Page 72: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

72

CAPÍTULO 4 - METODOLOGIA

Em nosso estudo, elegemos investigar a variedade de português falada por professores

Tikuna que moram em comunidades (aldeias) que fazem parte do município de São Paulo de

Olivença, uma vez que o registro, a análise e a caracterização dessa variedade poderão

contribuir para a descrição do português indígena falado na região norte do Brasil.

Para tanto, com a finalidade de nortear a pesquisa, atingirmos os objetivos e testarmos

as hipóteses de nosso estudo, adotamos os procedimentos metodológicos que apresentamos

neste capítulo. Inicialmente, elucidamos como foi realizada a pesquisa de campo, o que inclui

a localidade selecionada, a constituição da amostra e os instrumentos utilizados para a geração

de dados. Em seguida, evidenciamos os procedimentos adotados para o tratamento e análise

dos dados, as variáveis selecionadas para o estudo e, por fim, o perfil dos participantes.

4.1 A PESQUISA DE CAMPO: DA LOCALIDADE SELECIONADA À GERAÇÃO DE

DADOS

A mesorregião do Alto Solimões é fortemente marcada pelo rio de mesmo nome, sendo

este o principal responsável pelo acesso das pessoas e de produtos aos municípios.

Comparando-se com outras localidades, a região não é considerada intensamente povoada, no

entanto, abriga, além, dos ribeirinhos, de brasileiros oriundos de diferentes lugares do país e de

alguns imigrantes peruanos e colombianos, um patrimônio humano incalculável: grande

contigente de populações indígenas.

Segundo dados do IBGE (2010), a população da região é de, aproximadamente,

224.094 habitantes; destes cerca de 62.000 são indígenas, ou seja, 27,6% da população local,

sendo a maioria pertencente à etnia Tikuna. Dentre as outras etnias que se encontram

representadas na região estão: Kokama, Kambeba, Kaixana, Witoto, Kanamari, Maku-Yuhup

e Katukina.

Os Tikuna podem ser encontrados em todos os municípios da mesorregião do Alto

Solimões, que são: Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo

Antônio do Içá, Tonantins Jutaí e Fonte Boa. Dentre estes, São Paulo de Olivença é o que

concentra o maior número de aldeias da etnia Tikuna na região. Além disso, é o município que

abarca o maior número de escolas indígenas. Essa particularidade, em relação a São Paulo de

Olivença, se associou a outros motivos para que essa localidade fosse selecionada para a

Page 73: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

73

realização de nosso estudo. Os outros motivos são os que seguem: conforme Bendazzoli (2011),

o maior número dos professores que participaram, como estudantes, dos cursos específicos,

voltados para os indígenas, oferecidos pela OGPTB, desde o início, eram oriundos,

principalmente das comunidades localizadas nos municípios de São Paulo de Olivença,

Benjamim Constant e Tabatinga. Hoje, esses professores atuam em turmas que vão das séries

iniciais às séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Alguns professores Tikuna

que não cursaram o Terceiro Grau Indígena pela OGPTB fizeram outros cursos não específicos

para atuarem com a educação escolar indígena e outros fizeram cursos um pouco mais

específicos, como o de Pedagogia Intercultural Indígena, ofertado tanto pela Universidade

Federal do Amazonas, quanto pela Universidade do Estado do Amazonas. Diante dessa

realidade, surgiu a o projeto de investigar a variedade de português falada por professores que

atuam em algumas aldeias de São Paulo de Olivença. Ainda como fatores motivadores para a

seleção da localidade, cumpre lembrar que esta guarda ítima relação com a mitologia Tikuna,

porque, confome evidenciamos no capítulo 1, na mitologia Tikuna, os índios dessa etnia foram

pescados por Yo’i (herói mítico) no igarapé Eware, situado nas nascentes do igarapé São

Jerônimo (Tonatü), afluente da margem esquerda do Rio Solimões, entre os municípios de São

Paulo de Olivença e Tabatinga. O último motivo é que nasci em São Paulo de Olivença e cresci

ouvindo pessoas dizendo que “Tikuna não sabe falar português”, que “Tikuna fala muito feio”

e, conforme explicitamos na introdução deste trabalho, é preciso que se registre e analise a

variedade de português falada por esses professores, para, a partir disso, dentre outras coisas,

combater o preconceito linguístico.

Selecionada a localidade, passou-se a planejar como ocorreria a geração dos dados, a

qual se deu conforme elucidamos abaixo.

Em agosto de 2016, Marília Facó Soares ministrou a disciplina Estudos Fonológicos

Aplicados ao Ensino de Línguas a alunos Tikuna que estavam no quinto período do Curso de

Pedagogia Intercultural Indígena, no município de São Paulo de Olivença. Esse curso faz parte

do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) e é realizado,

no caso do município de São Paulo de Olivença, em parceria com a Universidade do Estado do

Amazonas (UEA). Portanto, todos os alunos são ou já foram professores da educação básica,

atuando como efetivos ou contratados.

Naquela ocasião, acompanhei a professora Marília no curso, como sua assistente de

pesquisa, por dois motivos. Primeiro, conhecer um pouco sobre a estrutura da língua, a começar

por sua organização fonológica. Tal fato me possibilitaria conhecer aspectos da gramática

Tikuna que me auxiliariam na análise dos dados que pretendia coletar. Em segundo lugar,

Page 74: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

74

iniciar, de modo autorizado, a coleta dos dados, uma vez que a turma do curso contava com 56

alunos Tikuna, professores da educação básica e residentes em diferentes comunidades

(aldeias) pertencentes ao município de São Paulo de Olivença. Os alunos da turma

apresentavam algum grau de bilinguismo Tikuna-Português, com exceção de uma aluna, que

figura nesta tese. Planejou-se a realização de entrevistas12 com uma amostra desse conjunto.

Para a coleta dos dados, as entrevistas deveriam ser realizadas com uma amostra de falantes

que representassem algumas comunidades distintas, para começarmos a identificar traços do

português falado na região e, a partir dessa identificação, para que tivéssemos um painel e

pudéssemos levantar as hipóteses iniciais.

Em outro momento, em fevereiro de 2017, estive com essa turma como professora

colaboradora da disciplina Ensino de Língua Portuguesa para comunidades indígenas, ocasião

em que realizei algumas entrevistas, ouvi relatos durante as aulas e iniciei a aplicação de alguns

questionários. Em um terceiro momento, em junho e julho de 2017, estive novamente com a

turma, como assistente de pesquisa, com a professora Marília Facó, que atuou como professora

da disciplina Processos de Formação de Palavras em línguas indígenas. Na ocasião, também

dei prosseguimento à geração de dados.

Em fevereiro de 2018, estive novamente com essa turma atuando como professora

colaboradora da disciplina Ensino de Língua Portuguesa para comunidades indígenas II,

ocasião em que também realizei algumas entrevistas, ouvi relatos durante as aulas e apliquei

alguns questionários restantes.

A amostra utilizada em nossa análise é constituída por um conjunto de entrevistas ou

relatos de vida e questionários13. Compõem a amostra 19 professores da educação básica que

estão em processo de formação, graduandos da turma de Pedagogia Intercultural Indígena da

Universidade do Estado do Amazonas. Além destes, participaram da pesquisa 3 professores da

educação básica que são estudantes de pós-graduação e moradores de São Paulo de Olivença.

Entrevistamos, ainda, 1 professor da educação básica graduado pelo programa do Terceiro Grau

Indígena da OGPTB e morador na comunidade de Vendaval, localizada no município de São

Paulo de Olivença.

12 As perguntas das entrevistas foram adaptadas da ficha para coleta de dados do projeto: Línguas da Amazônia

Brasileira: Variação, Cognição e Estudos de Fonologia, Gramática e História – Fase II: Línguas indígenas

brasileiras, coordenado pela professora Dra. Marília Lopes da Costa Facó Soares. 13 As perguntas do questionário foram elaboradas tendo como base Fishman (1975).

Page 75: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

75

As gravações foram realizadas no período de disponibilidade dos professores, tendo

sido as entrevistas efetivadas, em sua maior parte, no município de São Paulo de Olivença,

outras na comunidade de Vendaval e na comunidade de Filadélfia.

Como alguns dados pertinentes a esta pesquisa não foram narrados nos relatos de vida

nem nas entrevistas, também aplicamos questionários sociolinguísticos aos participantes. As

entrevistas, os relatos de vida e os questionários foram gerados no período compreendido entre

agosto de 2016, fevereiro e julho de 2017 e fevereiro de 2018.

A coleta foi previamente autorizada pelos participantes da pesquisa, que assinaram um

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, possibilitando o trabalho junto a eles. Os

instrumentos utilizados para as gravações, em áudio e, quando possível, também em vídeo,

foram: gravador digital- Zoom-H1-, notebook Dell Vostro 3360, aplicativos de aparelho celular

e câmera digital Nikon Coolpix S9700.

Para a realização das entrevistas, seguiu-se um roteiro semiestruturado, com perguntas

abertas, de número variável, tendo em vista que algumas perguntas possibilitaram a formulação

de outras, conforme o participante entrevistado e a situação de fala estabelecida. As perguntas,

dentre outras coisas, abordavam a vida escolar, a atuação profissional, os deslocamentos nas

localidades do Amazonas, e a dinâmica da comunidade onde residem (e/ou residiram). Já o

questionário foi planejado com perguntas fechadas e aplicado para reiterar algumas

informações das entrevistas, bem como para elucidar algo que não fora abordado nas falas, mas

que era importante para nosso estudo, tais como alguns usos linguísticos de acordo com

domínios sociais e atitudes linguísticas.

Nosso estudo, também de cunho etnográfico, focaliza, com base em Geertz (2015), a

interação entre a pesquisadora e os participantes, fazendo uma densa pesquisa de campo e a

escuta etnográfica, que nos possibilitou fazer uma leitura interpretativa da realidade que

envolve os usos linguísticos do grupo investigado. Assim sendo, durante nossas vivências com

os professores em sala de aula, registramos em um diário de campo alguns fenômenos variáveis,

e também inquietações, medos, anseios, entre outros elementos manifestos nas falas desses

professores. A partir das entrevistas e dos resultados que elas nos apontaram em termos de

predominante monolinguismo em Tikuna, intenso bilinguismo Tikuna-Português e

monolinguismo em Português nas aldeais descritas pelos professores, selecionamos duas

localidades para investigarmos os usos linguísticos aí atuantes: Vendaval e Bom Jardim do

Passé. (cf. seção 5.1.1)

Page 76: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

76

4.2 TRATAMENTO E ANÁLISE DOS DADOS

Ao todo, como parte das gravações, foram computadas nove (09) horas, quinze (15)

minutos e trinta e seis (36) segundos de gravação, das quais foram extraídos os dados para o

registro, a descrição e a análise, presentes no capítulo 7.

Todas as entrevistas e os relatos de vida foram transcritos integralmente, de forma

ortográfica14 e, em um momento posterior, procedeu-se à transcrição fonética de passagens que

se mostraram relevantes para a pesquisa da variedade de português falada por professores

Tikuna no município de São Paulo de Olivença.

Extraímos das transcrições e dos relatos de vida fenômenos linguísticos passíveis de

variação e que englobam aspectos fonético-fonológicos e morfossintáticos da variedade do

Português Tikuna.

Além disso, os instrumentos de geração de dados nos permitiram identificar os usos

linguísticos dos professores Tikuna em diferentes atividades, localidades e domínios sociais,

assim como pudemos identificar os deslocamentos que os professores efetivaram, seja para

estudar e/ou trabalhar e o contato que esse deslocamento possibilitou com falantes nativos do

PB, conforme poderá ser visto no capítulo 5.

Ao analisar a fala em português dos professores Tikuna participantes da pesquisa, foi

possível a verificação de fenômenos variáveis no âmbito da fonologia e da fonética e no da

interface destas com a morfologia e a sintaxe. Para tanto, na análise, buscamos identificar, com

base em Soares (1984, 1986, 1991, 1992a, 1992b, 1994, 1995, 1997, 2000a, 2000b, 2005a,

2005b e 2017), possíveis mecanismos de interferência ou transferência da língua Tikuna na

variedade de português falada como segunda língua por quase todos esses professores,

comparando-se também, com elementos possivelmente relacionados à aprendizagem com

falantes nativos de PB ou a replicações conforme falantes de outras variedades indígenas do

PB, para tanto, valemo-nos de estudos como os de: Emmerich (1984), Mollica (1997), Paiva

(1997), Christino & Lima e Silva (2012), Amado (2015), Braggio (2015), entre outros (Vide

capítulo 7).

14 Nas transcrições, as únicas pontuações utilizadas foram ponto de interrogação (?), quando se tratava de uma

pergunta; ponto (.) para separar uma ideia nova que o falante expressava; reticências (...), para indicar uma pausa

longa e, no início ou fim de trecho de fala, para indicar que o trecho é um recorte de uma fala maior; três pontos

de interrogação dentro de parênteses ((???)) para indicar as passagens que não conseguimos ouvir.

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77

Baseando-nos na frequência das ocorrências de cada fenômeno variável, no peso15

atribuído a cada fenômeno, bem como nos aspectos socioculturais, na idade e no sexo dos

participantes, estabeleceu-se o continuum com diferentes faixas de fluência, indo desde aquela

em que o falante está mais distante da variedade do português considerado padrão, e,

proporcionalmente, mais próximo de sua língua nativa, até aquela em que o falante se aproxima

da língua-alvo. Aqueles estão na base do continuum e estes se encontram no ápice, conforme

será melhor detalhado na seção 7.3.

Além disso, em nossas análises, a partir de dados presentes nas entrevistas, relatos de

vida e nos questionários, ao investigarmos a correlação entre variáveis linguísticas e sociais,

pautamo-nos em Weinreich (1953), Thomason e Kaufman (1988), Thomason (2001), Matras

(2009), dentre outros para, com base nas pesquisas realizadas por eles acerca das variações

linguísticas provenientes do contato entre falantes de comunidades diversas, buscarmos

explicações de cunho linguístico e também de cunho social, para os fenômenos variáveis

identificados em nosso corpus. A partir disso, fizemos um agrupamento de fenômenos sociais

e linguísticos, analisando-os qualiquantitativamente, conforme poder-se-á ver no capítulo 7.

As entrevistas e os relatos de vida narrados por um conjunto expressivo de professores

indígenas Tikuna (23), falantes de língua portuguesa como L2, cujos perfis evidenciamos na

próxima seção, tornaram possível o registro dos usos linguísticos destes, que apontaram para

processos de transferência da L1 e para replicação de condicionamentos, conforme os falantes

nativos de PB e conforme falantes de outras variedades de PB faladas por indígenas. E,

somando-se a esses dois instrumentos de geração de dados, os questionários contribuíram para

buscarmos o vínculo entre as variações manifestas pelos participantes da pesquisa e os fatores

sociais. A seguir, evidenciaremos o perfil dos participantes e as variáveis selecionadas.

15 O peso atribuído a cada fenômeno levou em consideração o seguinte: aos fenômenos que apresentavam maior

possibilidade de transferência da L1 para a L2 foi atribuído o peso mais alto (4) e àqueles fenômenos que

representavam replicação de condicionamentos conforme o PB foi atribuído o peso mais baixo (1). À guisa de

exemplificação, atribuiu-se o peso 1 à variação na marcação da flexão de número nos sintagmas nominais e o peso

4 à fricativização das oclusivas bilabial e velar.

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78

4.3 O PERFIL DOS PARTICIPANTES E VARIÁVEIS SELECIONADAS

Dos 56 alunos Tikuna da turma de Pedagogia Intercultural Indígena, 39 são do gênero

masculino, perfazendo 70% da turma e 17 do sexo feminino, representando 30%. Destes alunos,

selecionou-se uma amostragem que deveria ser composta por, aproximadamente, 50% de cada

gênero, ficando entre 8 do gênero feminino e 14 do gênero masculino. Destes 22 previamente

selecionados, conseguimos entrevistar 19, sendo 12 alunos do gênero masculino e 7 do gênero

feminino. As entrevistas com os alunos dessa turma eram realizadas após as aulas, algumas no

turno matutino, outras no turno vespertino, seguindo-se um calendário previamente elaborado

e combinado com eles. Algumas alunas não ficaram após a aula porque precisavam ir às suas

casas resolver algum assunto familiar. Além disso, alguns alunos do sexo masculino e também

feminino não foram entrevistados porque foram dispensados por uma determinada professora,

em alguns horários de uma disciplina seguinte à que fora ministrada pela professora Marília,

para a realização de trabalhos acadêmicos em suas casas, impossibilitando a realização das

entrevistas.

Quanto aos estudantes pós-graduandos, entrevistamos 2 na aldeia Filadélfia, e 1 na sede

de São Paulo de Olivença.

Entrevistamos, ainda, um professor da comunidade de Vendaval, que fez o Terceiro

Grau Indígena pela OGPTB. Dessa forma, em nosso estudo, há 2 professores e 2 professoras

com ensino superior completo.

Conforme Paiva (2013), quando se trata da seleção de informantes, a pesquisa

Sociolinguística Variacionista preconiza que estes podem ser selecionados levando-se em

consideração dois métodos: o aleatório simples e o aleatório estratificado. Quanto ao primeiro,

os participantes que comporão a amostra são selecionados a partir de um sorteio, tendo em vista

a mesma probabilidade de escolha. Já no que tange ao segundo, os indivíduos também são

escolhidos aleatoriamente, mas divididos em células conforme as variáveis sociais eleitas pelo

pesquisador tais como idade, escolaridade, sexo, classe social, lugar de origem, etnia etc.

Levando-se em consideração o objetivo dessa pesquisa, decidimos entrevistar os

participantes conforme as variáveis sociais gênero, idade, escolaridade e localidade. O método

da amostra aleatória estratificada foi, portanto, o adotado nesta pesquisa.

Na variável gênero, temos as células correspondentes ao gênero masculino (MASC) e

feminino (FEM). A variável idade foi dividida em duas faixas: Faixa 1, de 25 a 40 anos e Faixa

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79

2, de 41 a 60 anos. A variável escolaridade foi dividida em dois níveis: ensino superior

incompleto e ensino superior completo.

Na Tabela 2 abaixo, são apresentadas as informações que evidenciam o perfil dos

participantes que compõem a amostra de nosso trabalho. A escolha da variável social localidade

teve como base os estudos realizados por Thomason e Kaufman (1988), Thomason (2001) e

Weinreich (1953), os quais encontraram, em suas pesquisas, explicações para as variações

linguísticas que resultavam do contato entre falantes de diferentes comunidades.

A partir dos critérios eleitos para a composição da Tabela abaixo, nosso propósito foi o

de identificar possíveis fatores que pudessem estar correlacionados às manifestações

linguísticas do português falado pelos participantes da pesquisa.

Tabela 2: PERFIL DOS PARTICIPANTES (PROFESSORES QUE SE AUTODECLARAM TIKUNA) 16

PARTICIPANTE17

GÊN.

IDADE LOCALIDADE DE

NASCIMENTO

LOCALIDADE DE

ATUAÇÃO

ESCOLARIDADE

B.S.G FEM 56 COMUNIDADE SANTA

CLARA (S.P.O.)

COMUNIDADE SANTA

CLARA (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

C.L.S. FEM 34 SEDE DO MUNICÍPIO DE

SÃO PAULO DE

OLIVENÇA

COMUNIDADE BOM

JARDIM DO PASSÉ

(S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

E.A.L. FEM 29 COMUNIDADE NOVA

CANAÃ (B.C.)

COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

E.D.I MASC 32 COMUNIDADE SÃO

DOMINGOS II (S.P.O.)

COMUNIDADE SÃO

DOMINGOS II (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

F.A.D MASC 56 COMUNIDADE DE

VENDAVAL (S.P.O.)

COMUNIDADE DE

VENDAVAL (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

H.A.R. MASC 38 COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

H.Z.M MASC 34 COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

J.O.C MASC 28 COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

J.G.M FEM 29 COMUNIDADE NOSSA

SENHORA NAZARÉ

(S.P.O.)

COMUNIDADE TORRE

DA MISSÃO (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

J.M.G MASC 40 COMUNIDADE SANTA

INÊS (S.P.O.)

COMUNIDADE SANTA

INÊS (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

L.F.D MASC 28 COMUNIDADE VILA

INDEPENDENTE (S.P.O.)

COMUNIDADE VILA

INDEPENDENTE (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

J.M.T. MASC 30 COMUNIDADE VILA

ALTEROSA JUÍ (S.A.I.)

COMUNIDADE NOVA

GALILÉIA (SPO)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

16 Comparando, brevemente, a situação que Carneiro (2014) apresenta e a que trazemos nesta tabela, no que diz

respeito às situações apresentadas, podemos dizer que o autor, por exemplo, não pôde lidar com localidade de

nascimento e localidade de atuação, ele lidou somente com localidade de nascimento, porque essa situação, que

se impõe para a realidade interna aos Ticuna (Tikuna), não se apresentava para a situação que ele encontrou em

Barra do Corda: ele estava lidando com indígenas Kanela e Guajajara e as diferenças notadas, entre os membros

das duas etnias, na relação de cada uma dessas etnias com a cidade. Já em nosso trabalho, lidamos com a relação

estabelecida entre professores da etnia Tikuna e o local onde atuam, verificando-se aí se existe relação entre a

variedade de português que esses professores usam com os locais onde atuam (geralmente, nas aldeias). 17 Os participantes estão apresentados nesta tabela com as iniciais de seus nomes em língua portuguesa.

Page 80: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

80

M.F.C MASC 41 COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

COMUNIDADE

OTAWARI

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

N.C.F FEM 28 COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE (S.P.O.)

COMUNIDADE VILA

INDEPENDENTE (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

O.B.A MASC 54 COMUNIDADE

PARANAPARA I (S.P.O.)

COMUNIDADE

PARANAPARA I (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

O.A.A MASC 50 COMUNIDADE

PARANAPARA I (S.P.O.)

COMUNIDADE

PARANAPARA I (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

P.B.M MASC 33 COMUNIDADE

SANTA TEREZINHA

(S.P.O.)

COMUNIDADE

SANTA TEREZINHA

(S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

W.A.S MASC 51 COMUNIDADE DE

VENDAVAL (S.P.O.)

COMUNIDADE DE

VENDAVAL (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

INCOMPLETO

B.C.C FEM 35 COMUNIDADE DE

CUCHILLO COCHA (NO

MUNICÍPIO DE

CABALLO COCHA, NO

PERU)

SEDE DO MUNICÍPIO DE

SÃO PAULO DE

OLIVENÇA

ENSINO SUPERIOR

COMPLETO

N.C.FR. FEM 42 COMUNIDADE DE

CAMPO ALEGRE

SEDE DO MUNICÍPIO DE

SÃO PAULO DE

OLIVENÇA

ENSINO SUPERIOR

COMPLETO

L.J.F MASC 37 COMUNIDADE VILA

INDEPENDENTE (S.P.O.)

COMUNIDADE VILA

INDEPENDENTE E SEDE

DO MUNICÍPIO DE SÃO

PAULO DE OLIVENÇA

ENSINO SUPERIOR

COMPLETO

A.C.A. MASC 43 COMUNIDADE DE

VENDAVAL (S.P.O.)

COMUNIDADE DE

VENDAVAL (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

COMPLETO

Z.L.S. FEM 48 COMUNIDADE RIBEIRO COMUNIDADE DE

VENDAVAL (S.P.O.)

ENSINO SUPERIOR

COMPLETO

Quanto à variável gênero, 15 participantes são do gênero masculino e 8, do feminino.

Já em relação à variável idade, os participantes têm entre 28 a 56 anos, sendo divididos nas

faixas 1 e 2, conforme ilustramos na tabela abaixo

Tabela 3: Variáveis gênero e idade

GÊNERO FAIXA 1: 25-40 ANOS FAIXA 2: 41-60 ANOS

MASCULINO 9 6

FEMININO 5 3

A fim de ilustrarmos a dispersão dos participantes em relação às variáveis gênero e

idade, apresentamos o gráfico a seguir.

Page 81: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

81

Gráfico 2: Dispersão Participante x Idade

No que concerne à variável escolaridade, 19 têm ensino superior incompleto e 4 têm

superior completo. Veja tabela abaixo:

Tabela 4: Variável escolaridade

GÊNERO Ensino superior incompleto Ensino superior completo

MASCULINO 13 2

FEMININO 6 2

Cabe reiterar que os participantes com o ensino superior incompleto foram

selecionados a partir de uma amostra de uma turma de graduação que contava com 56 alunos

Tikuna, dentre os quais 70% era composta por homens e 30% por mulheres. Os integrantes com

ensino superior foram selecionados a partir do atendimento dos mesmos critérios,

diferenciando-se apenas o nível de escolaridade e a quantidade, que ficou em dois homens e

duas mulheres.

Page 82: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

82

Quanto à variável localidade, os integrantes da turma nasceram e atuavam em

localidades que se configuravam como uma representatividade das aldeias/ comunidades de

uma cidade do Alto Solimões que conta com número significativo de agrupamentos de índios

Tikuna. Esse fato nos interessava para termos um painel inicial da variedade falada por esse

grupo. A maioria dos participantes nasceu em comunidades vinculadas aos municípios de

Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Santo Antônio do Içá, na mesorregião

do Alto Solimões, no Amazonas, à exceção de uma participante que nasceu em uma

comunidade indígena do Peru. Hoje, todos eles atuam em aldeias localizadas em São Paulo de

Olivença ou na própria sede do município. Abaixo, evidenciamos a área correspondente à

variável localidade dos participantes.

Figura 3: Mapa lugar de origem (e de deslocamento) dos participantes Tikuna

Fonte: Elaborado por Ligiane Bonifácio e Chandra Viegas, julho de 2017. Criado com a ferramenta My Maps do

google maps. Imagem tratada por Diego Souza (2019).

Após as entrevistas, foram postuladas mais duas outras variáveis sociais: o grau de

contato e fluência. O grau de contato foi dividido em três níveis: baixo, médio e alto. Esses

níveis foram estabelecidos a partir dos seguintes critérios: contato baixo - professores que

vivem e trabalham nas comunidades indígenas e têm um contato intenso com pessoas falantes

de Tikuna em suas aldeias. As redes de interações ocorrem, predominantemente, em língua

Tikuna, nas aldeias; e usam o português nos deslocamentos realizados de forma pouco frequente

aos centros urbanos; contato médio - professores que vivem e trabalham nas comunidades

indígenas, mas já viveram em centros urbanos por um período maior que três anos e menor que

Page 83: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

83

sete anos, para estudar e trabalhar. Tiveram contato mediano com falantes nativos de português,

mas, ao voltarem para as aldeias, continuaram tendo um contato intenso com pessoas falantes

de Tikuna e, no domínio doméstico, a língua Tikuna é usada de forma privilegiada; contato alto

- professores que têm intenso contato com pessoas falantes de português e deslocam-se com

uma certa frequência para outros centros urbanos, localizados fora do Alto Solimões; além

disso, vivem ou já viveram em centros urbanos, por um período maior que sete anos.

A variável fluência foi postulada após, nas entrevistas, termos identificado que os

participantes da pesquisa apresentavam uma proficiência bilíngue que variava, desde aqueles

falantes que apresentavam uma proficiência mais próxima de um falante nativo do PB até

aqueles que apresentavam, na variedade do português que falavam, bastantes traços da sua L1,

estando, portanto, mais distantes da língua-alvo. A partir disso, foram estabelecidas 5 faixas de

fluência, conforme será explicitado com maiores detalhes na seção 7.3.

Após registrarmos e analisarmos um quadro mais amplo de fenômenos em variação

no Português Tikuna, elegemos dois fenômenos, um fonético-fonológico e outro no âmbito

morfossintático, a fim de determinarmos fatores linguísticos e extralinguísticos aí atuantes.

Cabe ressaltar que, em nossas entrevistas, na tentativa de minimizarmos o efeito do

paradoxo do observador, não controlamos nenhuma variável específica por meio de

questionário fonético-fonológico ou morfossintático, que propiciam um maior controle por

parte do entrevistado. Fizemos perguntas relacionadas a aspectos pessoais, como estudo, local

de moradia e vida na comunidade.

A variável linguística selecionada para estudo em nosso trabalho, no âmbito fonético-

fonológico foi a variação de /s/ em posição de onset; já no morfossintático, elegeu-se a regra

variável de concordância da primeira pessoa verbal. Ambas as variáveis foram escolhidas por

ocorrerem com bastante frequência na primeira faixa do continuum, diminuindo paulatinamente

nas outras faixas. Além disso, essas variáveis não têm sido investigadas por outros estudos de

cunho variacionista no PB, tanto em fala urbana, quanto rural.

Com relação à regra variável de concordância da primeira pessoa verbal, cabe dizer

que, como alguns professores acabaram fazendo um relato da vida, e usando com certa

frequência referências a si mesmos, optou-se por analisar essa variável, com vistas a verificar

como se dá a marcação, ou não, da concordância verbal de primeira pessoa do singular no grupo

de professores participantes da pesquisa, partindo da descrição de uma amostra de fala gerada

por nós.

Page 84: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

84

A primeira pessoa verbal é aquela que fala, e, na oração, o sujeito obrigatório é o

pronome eu, que pode se encontrar implícito ou expressamente manifesto, tendo a flexão de

pessoa evidenciada por meio da desinência verbal. Conforme Emmerich (1984), Lucchesi e

Baxter (2009), no português brasileiro, essa regra de concordância com a primeira pessoa verbal

é tida como categórica. No entanto, tal como foi registrado por Emmerich, em nossos dados

também identificamos a presença da marca de primeira pessoa verbal em variação com a

terceira pessoa verbal e com formas nominais, como o infinitivo e gerúndio. Os fatores

linguísticos e socioculturais que condicionam a incorporação linguística da regra com

referência à primeira pessoa do singular serão apresentados na subseção 7.4.2.

Apresentado o perfil dos participantes, bem como as variáveis lingísicas e sociais

eleitas em nossa investigação, passamos a evidenciar, no próximo capítulo, os dados

relacionados aos domínios linguísticos, deslocamentos e outros fatores sociais que acreditamos

se relacionarem com a identidade e os usos linguísticos do grupo investigado.

Page 85: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

85

CAPÍTULO 5 - IDENTIDADE E USOS LINGUÍSTICOS

Os elementos constitutivos da identidade de um falante de uma língua são fatores que

exercem grande influência sobre os usos linguísticos dele. A esse respeito, Tabouret-Keller

(1998) afirma que a língua falada por alguém e a identidade desta pessoa como um falante desta

língua são inseparáveis. Nesse sentido, a língua, vinculada ao contexto social do qual um falante

faz parte, se configura como um aspecto que constitui a identidade dele.

Ao ampliarmos essa relação entre identidade e usos linguísticos a um grupo de

falantes, valemo-nos do que preconiza Ferguson (1994). Conforme o autor, um grupo que opera

regularmente em uma sociedade como um elemento funcional, por exemplo, em termos de

localização física, padrões econômicos, religiosos, padrões matrimoniais ou outro

comportamento interacional, tenderá a desenvolver marcadores de identificação de estrutura de

língua e de usos linguísticos diferentes daqueles usados por outros grupos sociais. Esses usos

revelam a identidade do grupo. Tendo isso em vista, neste capítulo, apresentamos aspectos

relacionados à identidade do grupo de participantes que compõem nossa pesquisa e aos usos

linguísticos efetivados por eles.

Sendo assim, a seguir, apresentamos resultados concernentes à autoavaliação quanto

aos domínios linguísticos, os deslocamentos e outros fatores sociais que acreditamos se

relacionarem com a identidade e os usos linguísticos do grupo investigado. Os dados foram

gerados por meio de relatos de vida, entrevistas e questionários realizados com os participantes.

Além disso, para análise, também levamos em consideração nossas observações em campo e

anotações em diário de campo.

Cabe, ainda, reiterar que os resultados serão apresentados levando em consideração

nossa interpretação dos dados, com base nos pressupostos teóricos adotados no estudo e na

nossa vivência junto ao grupo investigado. Quando houver a necessidade de elucidarmos alguns

pontos da análise com as próprias falas dos participantes, apresentaremos trechos das

entrevistas e dos relatos de vida.

5.1 SITUAÇÃO SOCIOLINGUÍSTICA DOS PARTICIPANTES

Os Tikuna foram contatados há mais de trezentos anos, no século XVII, por meio das

incursões de portugueses e espanhóis na região do Alto Solimões. Conforme Nimuendajú

(1952), o contato entre os Tikuna e os “civilizados” não foi tão intenso nos primeiros dois

séculos e meio e ocorreu sem grandes conflitos. No entanto, o contato entre indígenas e não

Page 86: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

86

indígenas foi intensamente acentuado e marcado por grandes conflitos no final do século XIX,

por ocasião do aumento da empresa seringalista na região do Alto Solimões. Tal fato repercutiu

profundamente sobre o universo indígena, conforme apresentamos no capítulo 1.

Apesar disso, a população Tikuna resistiu em muito ao que lhe fora imposto. O fato de

manterem até os dias de hoje a língua materna atesta essa resistência.

Nesta seção, apresentamos os resultados a que chegamos, a partir da autoavaliação dos

indígenas participantes da pesquisa, em relação às próprias habilidades de: fala, entendimento,

leitura e escrita nas línguas Tikuna e Portuguesa. Esse bloco de questões, presentes nos

questionários aplicados aos participantes, tinha o objetivo de verificar a consciência linguística

deles quanto ao próprio bilinguismo nas Línguas Tikuna e Portuguesa ou monolinguismo em

uma das línguas.

Gráfico 3: Consciência linguística dos participantes

15

20

12

13

20

21

22

22

8

3

11

10

3

2

1

1

0 5 10 15 20 25

Você consegue escrever em língua portuguesa?

Você consegue ler em língua portuguesa?

Você fala língua portuguesa?

Você consegue entender uma conversação em línguaportuguesa?

Você consegue escrever em língua Tikuna?

Você consegue ler em língua Tikuna?

Você fala língua Tikuna?

Você consegue entender uma conversação em língua Tikuna?

Não Um pouco Sim

Page 87: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

87

Ao analisarmos as respostas dos professores no questionário, bem como as respostas

nas entrevistas, podemos afirmar que a situação sociolinguística deles, levando em

consideração a consciência deles sobre a habilidade de fala e a desenvoltura durante as

entrevistas, é de bilinguismo nas línguas Tikuna e Portuguesa

Em relação às habilidades de fala e de entendimento de uma conversação em língua

Tikuna, 95,6% afirmaram que sabem falar e conseguem entender uma conversação em língua

Tikuna. Dos 23 participantes da pesquisa, apenas 1 respondeu que não sabe falar nem entender

uma conversação em Tikuna, o que representa 4,3% do grupo investigado. Essa quantidade de

falantes, associada às atitudes positivas deles frente à língua ancestral e aos usos linguísticos

em diferentes domínios sociais, conforme poderá ser visto na seção 5.2, aponta para a vitalidade

da língua Tikuna entre o grupo de falantes pesquisados.

Por outro lado, nas entrevistas, foram relatados casos de famílias inteiras residentes

em determinados lugares onde a língua Tikuna já não é falada, como é o caso da comunidade

Vila Alterosa Juí, no município de Santo Antônio do Içá e das comunidades Bom Jardim do

Passé e Bom Jesus II, ambas no município de São Paulo de Olivença18. Cabe, aqui, reiterar

que, ao selecionarmos o grupo de participantes representativos de onze comunidades (aldeias)

indígenas de São Paulo de Olivença, bem como com os da própria sede, nossa intenção, além

de compreender os fatores sociais que interferem nos usos linguísticos deles, era de termos

indícios da situação sociolinguística das aldeias onde eles moram (e/ou de onde moraram).

A seguir, apresentamos trechos das falas de C.L.S./34. FEM., os quais ilustram o que

afirmamos no início do parágrafo acima.

Pesquisadora: E tinha escola lá em Vila Alterosa?

C.L.S./34. FEM: Tinha tinha tinha e tem né agora tem até terceiro ano tem

Pesquisadora: Tinha Tikuna?

C.L.S./34. FEM: Não tinha língua Tikuna

Pesquisadora: E alguém na comunidade falava?

C.L.S./34. FEM: Não

Pesquisadora: Mas tem famílias Tikuna?

C.L.S./34. FEM: Tem

Pesquisadora: Da etnia Tikuna?

18 A comunidade indígena Bom Jardim do Passé é vizinha da comunidade indígena Bom Jesus II e estas se

localizam a aproximadamente 20 km da sede do município de São Paulo de Olivença.

Page 88: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

88

C.L.S./34. FEM: Ãhã tinha tinha e tem

Pesquisadora: E você conhece alguma outra comunidade que é indígena mas que as pessoas

também não falam a língua?

C.L.S./34. FEM: Sim Bom Jesus bem aí pertinho. É raro

Pesquisadora: Tem Tikuna Kokama Kambeba?

C.L.S./34. FEM: Ãhã tem

Pesquisadora: Tem não índio?

C.L.S./34. FEM: Lá são misturados

Pesquisadora: E a língua que é falada lá?

C.L.S.: É só o português só tem a família do (???) uma família aí que fala com os filho é a

língua materna eles hum hum só aquela uma família mesmo do (???) parece o resto tudo fala

só só o português mesmo

Em contrapartida a essa perda linguística, C.L.S./34. FEM nos relata tentativas de

reverter esse processo, motivadas via ensino formal na graduação, repercutindo na escola e nas

interações familiares.

Pesquisadora: E lá em Bom Jardim do Passé você é professora de que disciplina?

C.L.S./34. FEM: Português matemática ciências arte e agora eles querem que eu dou a língua

materna né aí eu tô só no início as palavras que eu já aprendi aí eu tô passando pra eles até

porque tem criança até de de onze anos só começa de quatro até onze anos (Grifos nossos)

Pesquisadora: E antes nessa escola não tinha língua Tikuna?

C.L.S./34. FEM: Não

Pesquisadora: Começou em que ano?

C.L.S./34. FEM: Esse ano passado quando a professora Marília veio dar aula ãhã (Grifos

nossos)

Pesquisadora: E você que propôs que começasse a falar a língua Tikuna na escola ou vocês

fizeram alguma reunião você conversou com alguém como é que passou a ser ensinado na

escola?

C.L.S./34. FEM: Lá na no Bom Jesus no Bom Jardim foi assim que nós fizemo o trabalho da

professora Ivanise né e aí ela tinha com pra nós fazer uma palestra sobre a importância da

língua aí eu eu fiz essa essa palestra aí aí eles gostaram da palestra eles disseram que eles

Page 89: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

89

nunca tinham ouvido falar assim eles nunca tinha assim uma como que se diz uma é uma

orientação que ia servir pra eles né eles nunca tinham ouvido falar que ia servir aí eles

começaram a falar assim pouco com os filhos já que eu mandei eles praticarem porque só tinha

uma família também que ele eles falam diariamente (Grifos nossos)

C.L.S./34. FEM: (...) até meu compadre ele agora anda falando com meu menino pequenininho

ele nunca falava agora não ele já ensina ele falar nome das das coisa agora em Bom Jesus é

eles voltaro né a querer aprender a língua por causa que tão exigindo porque a comunidade

tá registrada como indígena Tikuna mas eles não falam mais a língua

No trecho abaixo, C.L.S./34. FEM:, quando questionada se tenta falar algo com os filhos

sobre o que aprendeu em língua Tikuna, afirma o que segue:

C.L.S./34. FEM: algumas palavras que eu peço deles ou é a da língua agora que eu tô

aprendendo né devido aí ele e agora também eles tão tendo aula de língua também tem um

professor lá e eles estudam lá Nossa Senhora Aparecida que é lá em Bom Jesus Bom Jesus dois

aí eles também já tão aprendendo essas palavras aí às vezes eles perguntam de mim o que eu

sei eu vou respondendo pra eles (risos)

Apesar de a perda linguística ser uma realidade para C.L.S./34. FEM e para falantes

das comunidades indígenas que mencionamos acima, os trechos que acabamos de reproduzir

apontam indícios de uma possível minimização desse processo. A esse respeito, gostaríamos de

chamar a atenção para a importância que o processo de formação acadêmica teve (e tem) nessa

empreitada ao suscitar a reflexão sobre a importância da manutenção da língua Tikuna, que

pode se materializar em ações capazes de minimizar o processo de perda linguística. Se por

um lado, o processo de educação formal é visto como uma ameaça à manutenção das línguas

indígenas, ele também pode ser um meio de manutenção da língua e reversão de perda

linguística, a depender das políticas linguísticas aí manifestas.

Não podemos deixar de enfatizar o fato de que, a despeito de, em alguns lugares, já ter

iniciado um processo de perda da língua Tikuna entre os indígenas dessa etnia, 22 participantes

da pesquisa afirmaram falar a língua Tikuna e, durante as entrevistas, enfatizaram haver uso

intenso da língua ancestral nas comunidades indígenas onde moram, principalmente entre as

crianças e os mais velhos. A esse respeito, apresentamos trechos de dois participantes que

residem em aldeias distintas.

Page 90: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

90

J.O.C./29. MASC.: .... porque lá na minha comunidade mais maio[ʎ]ia que fala língua Tikuna

mesmo

W.A.S./51. MASC.: Na língua Tikuna... eu não fala com ele porque às ve[ʐ]e[ø] ele não... não

sabe porque na minha comunidade maioria que não... não fala (Grifos nossos)

Pesquisadora: Não fala o quê?

W.A.S.: Língua portuguesa... eles fala só a língua mesmo

Pesquisadora: A língua?

W.A.S.: Tikuna

Quanto à habilidade de fala em língua portuguesa, temos os seguintes resultados:

52,2% responderam que sabem falar em língua portuguesa e 47,8% afirmaram que sabem falar

um pouco. Esse último resultado, feito com base no questionário, foi também reiterado nas

entrevistas e uma das possíveis causas para que os professores Tikuna avaliem a forma como

falam como não sendo tão proficiente tem a ver com a crítica que recebem dos não-indígenas,

conforme se pode visualizar nos trechos abaixo:

E.D.I../33. MASC.: ... é só pra criticar... que eu era Tikuna eu acho que era isso... Tikuna e

que não sabia ler bem, não sabia falar bem, então eu... então eu tive essa... essa...esses coisa[ø]

aí que eu levei, mas nu... nu ligava, queria só aprender falar mais português bem, entender

melhor pra poder continuar estudando e... e alcançar meu... a minha objetivo, que é aprender

a português e ter mais informações sobre o estudo

L.F.D./27. MASC.: eu sempre falar com... com meu... meu avô assim... queria que queria que

vim aqui na são Paulo de Olivença pra estudar porque eu queria aprender a língua português.

Às veze[ø] sinto vergonha que eu nem sei falar a língua que eu sou branco às veze[ø] pessoa

confunde de mim que ele pensa que eu não fala a língua Tikuna então isso pra mim é uma um

uma vergonha assim que eu eu não sei falar a língua português.

Quanto às habilidades leitura e escrita na língua Tikuna, os resultados apontam que: a)

apesar de bastante elevada (90%), a proficiência na leitura em língua Tikuna é menor que na

fala (95,6%); b) a proficiência na escrita (86%) é menor que na leitura (90%). Tais ocorrências

podem ser explicadas pelo seguinte fato: geralmente, o ensino de leitura e escrita entre os

Page 91: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

91

indígenas ocorre via educação formal, no ambiente escolar. Tendo em vista que esses

participantes não estudaram em escolas bilíngues Tikuna/Português, é de se esperar que não

tenham desenvolvido, de forma proficiente, ainda, essas habilidades.

Já em relação às habilidades de entendimento de uma conversação, leitura e escrita na

língua portuguesa, os resultados apontam que os participantes dominam essas habilidades nesta

língua.

No que diz respeito ao fato de as habilidades de escrita e leitura em língua Tikuna

serem menores que a fala, podemos afirmar que: a) o ensino da leitura e da escrita na língua

portuguesa geralmente se dá via escola e quando os participantes não estudaram em escolas

bilíngues Tikuna/Português pode acontecer de não terem desenvolvido fluentemente essas

habilidades.

Os relatos dos participantes investigados apontam na direção da seguinte situação

linguística: A) bilinguismo acentuado, por exemplo, nas comunidades Campo Alegre e Santa

Terezinha, principalmente entre os mais novos, entre casais e entre pessoas da mesma idade

dos participantes entrevistados; B) monolinguismo predominantemente na língua portuguesa,

por exemplo, nas comunidades Bom Jardim do Passé, Bom Jesus II e na sede do município de

São Paulo de Olivença, entre membros da mesma família; C) monolinguismo na língua Tikuna,

por exemplo, na comunidade Vendaval, principalmente entre os mais velhos, entre casais e

entre crianças até o momento em que estas começam frequentar a escola. Para finalizar esta

seção, apresentamos mais alguns trechos de fala que exemplificam a discriminação acima.

Quadro 3: Trechos que evidenciam a situação sociolinguística dos participantes da pesquisa

TRECHOS DE FALA LETRA CORRESPONDENTE À

SITUAÇÃO SOCIOLINGUÍSTICA

Pesquisadora: O senhor conversa com ela em língua

Tikuna ou em língua portuguesa?

A.C.A./43. MASC.: Só língua só língua [tʂ]ikuna

me[ø]mo só aí meu esposa não sabe cu português só

[ã]ssim fa[ɾ]a de aprender só língua [tʂ]ikuna

me[ø]mo

C

B.C.C./35. FEM.: Tanto é que os meus sobrinho meus

filho não falam na língua Tikuna não ainda mais que a

B

Page 92: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

92

gente mora aqui na cidade e e a gente vamo[ø] dizer

deixamo[ø] de falar

Pesquisadora: Você tem filhos?

P. B.M../33. MASC.: Eu tem eu tem tem quatro filho

Pesquisadora: E você fala com eles ... você e sua esposa

falam com eles em que língua?

P. B.M../33. MASC.: É gente nó[ј] usamo[ø] usamos é

dois língua língua portuguesa e língua Tikuna

A

Antes de finalizarmos a seção, cabe registrarmos que oito (34,7%) dos participantes

investigados, quando questionados sobre que língua(s) sabiam falar mencionaram algum nível

de proficiência em Espanhol, conforme ilustramos abaixo.

Quadro 4: O uso do Espanhol

PARTICIPANTE USO DO ESPANHOL

B.C.C./35. FEM.

Eu falo mais espanhol né com papai agora

com minha mãe é língua Tikuna minhas irmã

é língua portuguesa assim em família é irmã

sobrinho tudo é português a gente fala mais

português

C.L.S./34. FEM.

Pesquisadora: Além da língua portuguesa

você fala alguma outra língua?

C.L.S.: Eu entendo um pouco assim o

espanhol devido as aulas que eu estudei né

no ensino médio

J.O.C./29. MASC.

Só um pouco de Espanhol, não é muito não

P. B.M../33. MASC.

Sempre eu fala eu [ø]tende quando peruano

fala né eu [ø]tende também eu fala língua

espanhol não é muito não só às veze

W.A.S./51. MASC.

Espanhol mas não eu eu sei mas só que não

fala

Page 93: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

93

L.J. F /37. MASC.

L. J. F: Eu só na verdade eu falo somente

pouquinho de espanhol fora de português e

da língua ticuna. Só um pouquinho de

espanhol

H.Z.M./34. MASC.

A outra língua? Língua espanhol ma[ј] não

não escreve só tô escutando ma[ј] n[u] fala

também não fala

O.B.A./54. MASC.

Pesquisadora: E o senhor dá aula de língua

portuguesa agora?

O.B.A.: Ãhã ãhã de de geografia de espanhol

já já outro professor tá dando au[ɾ]a de

nossa língua

Por meio das entrevistas, uma participante manifestou que o ensino escolar favoreceu

alguma proficiência quanto ao entendimento do espanhol, outra afirmou que fala espanhol, no

domínio familiar, com o padrasto, pelo fato de ele ser peruano, falante monolíngue de espanhol.

Já os seis outros participantes, do gênero masculino, informaram que têm alguma

proficiência em espanhol por conta de relações de compra em comércios onde há a presença de

peruanos, falantes de espanhol. Esses comércios se localizam na sede de São Paulo de Olivença

e, conforme alguns relatos, há, nas aldeias, mercadinhos cujos proprietários são peruanos. Além

das relações comerciais, também foram abordadas situações em que o uso do espanhol ocorre

por meio do ensino em contexto escolar e no âmbito familiar. No entanto, essas relações não

suscitaram, segundo a avaliação dos próprios participantes da pesquisa, o desenvolvimento de

um multilinguismo da parte deles. Estes, em sua maioria, consideram-se bilíngues apenas em

Português e Tikuna.

5.1.1 A situação sociolinguística das aldeias Vendaval e Bom Jardim do Passé: um olhar

etnográfico

A partir das duas realidades bastante distintas que identificamos através das conversas

em sala de aula e durantes as entrevistas, quanto ao monolinguismo acentuado em Tikuna e à

perda linguística do Tikuna em determinadas localidades que pertencem ao município de São

Paulo de Olivença, planejamos e fomos às comunidades Vendaval e Bom Jardim do Passé para

Page 94: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

94

verificarmos in loco a realidade linguística dessas comunidades e compreendermos a dinâmica

e motivação para que essa siuação linguística figurasse nessas localidades.

Em julho de 2017, estivemos em Vendaval e em Bom Jadim do Passé. Na aldeia

Vendaval, conversamos com o cacique, solicitamos e obtivemos autorização para realizarmos

a pesquisa na comunidade. A partir disso, conversamos com a família do cacique e com alguns

moradores, nos alimentamos na casa deles e ouvimos algumas das histórias dos poucos falantes

de português. Na ocasião, também entrevistamos um professor Tikuna e conversamos com dois

professores que não são Tikuna, na tentativa de identificar os posicionamentos deles em relação

à realidade linguística da comunidade onde eles trabalham. Durante essa nossa estada em

Vendaval, nos hospedamos na casa que a prefeitura aluga para os professores que residem em

São Paulo de Olivença e que vão a Vendaval trabalhar nas escolas municipais ou na escola

estadual por um determinado tempo.

Dada a necessidade de aprofundarmos nossa compreensão sobre a realidade linguística

e social de Vendaval, retornamos à comunidade em fevereiro de 2018. Nessa estada, nos

hospedamos na casa de uma família Tikuna, motivados pelo anseio de participarmos das

interações na família, e observarmos, com eles e com as pessoas com quem eles se comunicam,

um pouco mais sobre a vida na aldeia.

Antes de tecermos nossas percepções sobre Vendaval, algumas informações se fazem

necessárias. Vendaval fica localizada a uma distância de 988 km da capital amazonense,

Manaus, e a 78, 92 km da sede do município de São Paulo de Olivença. Veja mapa a seguir:

Page 95: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

95

Figura 4: Mapa com a localização da aldeia de Vendaval

Fonte: Google Maps.

A história19 da fundação da aldeia de Vendaval está diretamente relacionada à

implantação da empresa seringalista na região, de propriedado do senhor Quirino Mafra. De

acordo com Oliveira (2015), as relações econômicas na região de Vendaval foram mantidas

pelas relações de trabalho na empresa seringalista por mais tempo que em outras regiões e,

mesmo depois que a seringa foi abandonada, ainda havia uma relação de trabalho e submissão

ao “patrão”, que proibia os índios de venderem ou comprarem em outro lugar que não fosse o

barracão do patrão. Aliás, essa era a condição para que os índios pudessem morar nas terras

dele. Eles compravam os produtos do “patrão” por um preço muito elevado e tinham que vender

seus produtos a um preço muito inferior. Diante da situação de extrema exploração da mão-de-

obra indígena sofrida pelos Tikuna, eles buscam apoio de instituições governamentais para

ajudá-los na sua própria luta, a exemplo da FUNAI, CF-SOL, dentre outras.

Em 1971, após a passagem do Irmão José pela localidade de Vendaval é que começou

a formação do aldeamento de Vendaval. Antes disso, havia, aproximadamente, uma meia dúzia

de casas em torno do barracão, habitadas por não indígenas parentes ou apadrinhados do

“patrão”. O Irmão José criou uma Irmandade da Santa Cruz em Vendaval e, em consequência

dessa criação e de uma notícia espalhada pelos seus seguidores de que estava se aproximando

19 Dados gerados a partir do conjunto de relatos dos moradores de Vendaval, dos professores Tikuna

entrevistados, também moradores de Vendaval, bem como de dados presentes em Oliveira (2015).

Page 96: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

96

o fim do mundo e de que apenas seriam salvos aqueles habitantes próximos a uma Santa Cruz,

muitos ticunas passaram a residir em Vendaval durante os anos de 1971 a 1973 (cf. Oliveria,

2015).

Em 1975, a população de Vendaval era composta por 701 pessoas, sendo já àquela

época, a maioria composta por indígenas e, incluindo a família do patrão, havia

aproximadamente 60 pessoas não indígenas. Nesse ano, o conflito entre os Tikuna e o “patrão”

foram se acentuando. Diante disso, iniciou-se a instalação de um posto indígena na localidade

de Vendaval, na tentativa de diminuir as situações de conflito.

Hoje, Vendaval faz parte da terra indígena (TI) Eware I e tem a sua situação fundiária

homologada. Segundo dados levantados pela Funai em 2010, a população de Vendaval, à

época, era de aproximadamente 1.480 pessoas. É um aldeamento numeroso, segundo maior em

população indígena Tikuna do município de São Paulo de Olivença, ficando atrás apenas do

aldeamento de Campo Alegre, também localizado na TI Eware I e que tem uma população

estimada em 4.765 Tikuna.

Em Vendaval, há duas escolas municipais (Taiwegüne e Ngaügüü I Ticuna) e uma

escola estadual (Pogüta), há um posto da Funai, sem funcionamento à época em que estivemos

na comunidade. Há um posto básico de saúde, uma igreja católica, uma igreja da Assembleia

de Deus e uma da Cruzada. Nas escolas, os alunos têm aulas em língua Tikuna desde as séries

iniciais até os anos finais do Ensino Fundamental e passam a ter aulas de línguas portuguesa no

quinto ano do Ensino Fundamental até o Ensino Médio. No posto de saúde, há funcionários

Tikuna, mas predominantemente, há servidores não indígenas e as interações com eles ocorre

em língua portuguesa. Nas igrejas, as pregações e os cânticos são, predominantemente em

Tikuna, mas há também a ocorrência de falas em língua portuguesa.

Nas dez casas onde estivemos conversando com as famílias, percebemos que,

predominantemente, as crianças que ainda não começaram a frequentar a escola e as mulheres

mais velhas não falam língua portuguesa, bem como alguns homens mais velhos. Geralmente,

quem fala um pouco língua portuguesa são os adolescentes que já frequentam a escola, uma

vez que seu contato mais intenso com essa língua na aldeia se dá via escola.

A fala dos dois professores com quem conversamos, que são monolíngues em

português e não são Tikuna, deixa ver suas impressões sobre o universo indígena na escola. Os

professores afirmaram que têm dificuldade para ensinar a disciplina aos alunos a partir do

quinto ano, porque estes não “dominam português”. Na fala de um dos professores, é importante

que os alunos dominem mais o português porque se um dia forem estudar fora da aldeia,

necessitarão “falar bem” e não vão precisar falar Tikuna na cidade. Há, nessa fala do professor,

Page 97: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

97

segundo nosso entendimento, uma imposição quanto ao aprendizado em português, com a

supervalorização dessa língua em detrimento do Tikuna.

Em nosso diário de campo, as anotações dizem respeito às seguintes observações: ao

lavarem roupas na beira do igarapé, as mulheres conversam e cantam em Tikuna; ao tomarem

banho no rio, as crianças falam em Tikuna; nos fins de tarde, ao brincarem de bola, as crianças

e os adolescentes falam, torcem e xingam em Tikuna; durante as refeições, as famílias dialogam

em Tikuna; ao realizarem trabalhos comunitários, como estar na roça ou tecer peneiro, as

pessoas falam em Tikuna; na “voz comunitária”, os informes e a programação local é toda em

Tikuna. Ao andarmos nas ruas de Vendaval, pudemos escutar músicas sendo reproduzidas em

Tikuna, algumas poucas em espanhol e outras tantas em português.

Nossa percepção geral foi a de que, na comunidade, é intenso o uso da língua Tikuna,

o que aponta para a direção da vitalidade e manutenção dessa língua nessa localidade. Veja, a

seguir, alguns registros que fizemos em Vendaval.

Figura 5: Em Vendaval

Page 98: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

98

A. Mulher tecendo paneiro; B. Crianças e adolescentes brincando de bola; C. Mulheres lavando roupa e crianças

se banhando na beira do igarapé; D. Dialogando com uma família em Vendaval.

Fonte: Arquivo pessoal da autora. Julho de 2017 e fevereiro de 2018.

Em Bom Jardim do Passé, identificamos uma situação bem oposta à de Vendaval. Essa

comunidade é habitada apenas por membros de uma família e conta com aproximadamente 64

pessoas distribuídas em sete casas. Há apenas uma escola municipal (Nossa Senhora de Fátima),

que funciona na antiga sala da casa de um dos moradores. A terra ocupada por essa família

ainda se encontra em processo de homologação.

Ao chegarmos à comunidade, também conversamos com o cacique, solicitamos e

obtivemos autorização para realizarmos a pesquisa. Além de conversarmos com o cacique, que

é o patriarca, também conversamos com um neto e três filhos dele. Por meio das conversas e

de nossa observação, pudemos identificar que houve uma decisão tomada pelo cacique no

passado de não transmitir a língua Tikuna aos seus filhos, os quais só entendem algumas

palavras nessa língua, mas não falam, a exemplo de C.L.S., conforme já evidenciamos neste

trabalho. Ouvimos que hoje os filhos se ressentem por não terem aprendido a língua Tikuna e

que, juntamente com C.L.S. tentarão aprender a falar um pouco em Tikuna. Na escola, vimos

dois cartazes com palavras em Tikuna, um que continha a letra de uma música em Tikuna, que

os alunos cantam com a professora e um outro cartaz com nomes de frutas, escritos em Tikuna.

Tal fato já sinaliza para uma tentativa de fazer com que o Tikuna seja conhecido e implantado,

paulatinamente, entre os membros da comunidade. Veja, adiante, alguns registros feitos em

Bom Jardim do Passé.

Page 99: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

99

Figura 6: Em Bom Jardim do Passé

A. Chegando a Bom Jardim do Passé; B. Cartazes com cântico e nome de algumas frutas em Tikuna; C. Moradias

em Bom Jardim do Passé; D. Dialogando com alguns membros da família em Bom Jardim do Passé.

Fonte: Arquivo pessoal da autora. Julho de 2017.

5.2 ATITUDES E USOS LINGUÍSTICOS

Tendo em vista que a compreensão dos fenômenos linguísticos pelo viés da

Sociolinguística busca uma inter-relação entre os fatores sociais e as realizações linguísticas,

os quais implicam atitudes e uso, é que nesta seção apresentamos o resultado dos dados acerca

de nossa investigação quanto a estes elementos.

5.2.1 Atitudes linguísticas

As atitudes linguísticas dos indivíduos em relação a sua própria língua materna podem

influenciar na manutenção, substituição ou extinção desta, mas também podem influenciar na

motivação para aprender outras línguas e na consequente competência linguística nessas

Page 100: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

100

línguas. (cf. Weinreich, 1953; Fishman, 1977; Appel & Muysken, 2005; Matras, 2009). Nesse

sentido, algumas perguntas foram feitas com o intuito de verificar as atitudes e crenças dos

participantes quanto ao uso das línguas Tikuna e Portuguesa. Veja gráfico abaixo.

Gráfico 4: Atitudes linguísticas

A seguir, elucidamos as perguntas e respostas: 65,2% dos participantes afirmaram que

se sentem mais à vontade para falar em língua Tikuna; 13,1%, em língua portuguesa e 21,7%,

nas duas línguas. Sentir-se mais à vontade para falar em língua Tikuna tem relação com a

autoavaliação dos professores Tikuna quanto à competência linguística deles nessa língua, bem

como à avaliação do entorno de que eles não sabem falar português, o que implica em se sentir

menos à vontade em falar em Português que em Tikuna, conforme mostam os percentuais. Veja

trechos de algumas falas que atestam essa realidade.

J.M.G./40. MASC.: quando estou aqui na cidade é pessoal daqui não indígena tá me falando

às vez mal de mim não sabe nem falar bem na língua português ma[ј] eu entende como que

tão falando né, mas eu penso assim... pior... pior que é vocês que não entende nosso... nosso

língua mas nós como... como povo indígena Tikuna entende língua dois língua quando você

falava entende qualquer língua pouco de língua mas vocês não entende é assim que tava

pensando.

O.B.A./54. MASC.: tem de p[u]quinho de dificuldade de fa[ɾ]ar de nós português de fa[ɾ]ar

ve[ø]gonha de fa[ɾ]ar é segundo módulo também p[u]quinho de vergonha de fa[ɾ]ar de

portuguê[ј] e terceiro módulo aí sim melhor fa[ɾ]ar de portuguê[ј] e qua[ø]to módu[ɾ]o aí

[ʂ]im tudo bom de fa[ɾ]ar de portuguê[ј] agora ne[ʂ]e de[ʂ]e quinto módu[ɾ]o aí não tem de

ve[ø]gonha de fa[ɾ]ar de portuguê[ј] a[ʂ]im que é.

15

9

32

10

34

31

2 2 24

35

12

18 18

11

16 16

01

01

0 0 002468

101214161820

Que língua vocêse sente mais àvontade para

falar?

Que língua vocêacha mais

bonita?

É melhor parauma pessoa falarlíngua indígena,

Português ouambas?

Que língua deveser ensinada na

escola?

Qual é a línguamais

importante?

Que língua vocêprefere para ler?

Que língua vocêprefere para

escrever?

Tikuna Português Ambas Não Respondeu

Page 101: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

101

Quando questionados sobre que língua acham mais bonita, 39% dos participantes

responderam língua Tikuna; 4%, língua portuguesa; 52% responderam que acham as duas mais

bonitas e 4% não respondeu.

Na questão ‘É melhor para uma pessoa falar língua indígena, Português ou ambas?’,

nossa intenção era saber o que os participantes achavam sobre o uso monolíngue ou bilíngue

no entorno deles. Cabe informar que, por algumas vezes, antes de aplicarmos os questionários,

ouvimos, durante algumas atividades com os alunos do curso de Licenciatura Intercultural

Indígena, o posicionamento deles de que não achavam certo o fato de apenas os indígenas

precisarem ser bilíngues e os não indígenas, monolíngues em Português. As respostas

evidenciam que 78% dos participantes atribuem uma visão positiva ao bilinguismo na língua

indígena e em Português; 9% responderam que é melhor para uma pessoa falar língua

portuguesa e 13% afirmaram ser melhor para uma pessoa falar língua indígena.

L.F.D./27.MASC.: é língua português porque [nu] tem c[u]mo ... c[u]mo falar na nossa língua

porque ele [nu] entende aquele pessoal que tão lá como que a gente fala assim ele não entende

então pra isso...pra isso que a gente quer aprender língua português porque pra facilitar a

nossa convivência comunicar com aquele que não... não fala a nossa língua... pra isso é muito

importante aprender os dois

A questão ‘Que língua deve ser ensinada na escola?’ apresentou os seguintes

resultados: 78% acreditam que devam ser ensinadas tanto a língua portuguesa quanto a língua

Tikuna; 9% acreditam que deva ser ensinada a língua Tikuna; 9%, a língua portuguesa e 4%

não respondeu.

L.F.D./27.MASC.: eu penso assim na escola estadual queria que se fosse atuar um professor

da língua Tikuna pra facilitar pra língua ti... indígena que tão estudando aqui na cidade...

Ao responderem à questão ‘Qual é a língua mais importante? ’, 43% afirmaram ser a

língua Tikuna; 9% a língua portuguesa; 48%, as duas línguas e 4% não repondeu. As respostas

apontam para uma atitude positiva em relação ao uso bilíngue de Português e Tikuna.

Quando questionados sobre a preferência de usos linguísticos para realizar as

atividades de ler e escrever, os resultados apresentam grande similaridade: 13% das pessoas

responderam que preferem ler em língua Tikuna, 17% responderam que preferem realizar tal

atividade em língua portuguesa e um número expressivo afirmou preferir ler nas duas línguas,

70%; 17% das pessoas responderam que preferem escrever em língua Tikuna; 13%

Page 102: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

102

responderam que preferem realizar tal atividade em língua portuguesa e um número expressivo

afirmou preferir escrever nas duas línguas, 70%.

As atitudes linguísticas manifestas pelos professores se revelaram importantes para

postularmos a direcionalidade da língua ancestral e da língua portuguesa. Os professores têm

atitudes positivas em relação ao Tikuna e ao Português, sendo que um percentual bem baixo

demonstra ter uma preferência pela língua portuguesa e um percentual maior assegura ter

preferência pelo Tikuna. Como já afirmamos anteriormente, o alto índice de atitudes positivas

em relação ao uso de língua Tikuna ou das duas línguas aponta para a direção da

manutenção/vitalidade da língua ancestral, o que, somado ao processo aquisitivo do Português,

configura o bilinguismo nessas línguas. Além disso, as atitudes manifestas pelos professores

evidenciam a necessidade de políticas linguísticas que fortaleçam o uso da língua Tikuna,

também nas escolas.

5.2.2 Usos linguísticos e domínios sociais

Com o objetivo de ampliarmos nossa investigação acerca dos usos linguísticos e dos

domínios sociais em que eles se manifestam, valemo-nos de algumas perguntas (e das respostas)

feitas por meio do questionário e também da entrevista, os quais apresentamos a seguir.

Gráfico 5: Usos linguísticos e domínios sociais

Page 103: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

103

A questão “Que língua(s) você aprendeu primeiro quando criança?” tinha a intenção

identificar a(s) primeira(s) língua(s) de aquisição dos participantes, buscando estabelecer uma

relação entre a aquisição e a transmissão linguística intergeracional. As respostas evidenciam

que 91,3% dos falantes adquiriram a língua Tikuna como materna e 8,7%, a língua portuguesa.

Os dados revelam, por meio do acentuado percentual de aquisição da língua Tikuna como

materna, em comparação com o português entre os participantes da pesquisa, a vitalidade da

língua Tikuna e apontam para a manutenção da língua nesta geração de participantes. Os 8,7%

que afirmaram ter adquirido a língua portuguesa como materna são da faixa etária 1 (de 25 a

40 anos), o que denota uma possível mudança na transmissão geracional dos mais novos. Ainda

que esse percentual seja baixo, representa uma pequena ameaça à manutenção da língua Tikuna

nas futuras gerações, pelo menos em determinados grupos de indígenas dessa etnia.

Abaixo, transcrevemos um exemplo de transmissão linguística dos pais a uma das

participantes que afirmou ter aprendido a língua portuguesa como materna e que até hoje ainda

não é, segundo sua autoavaliação, falante de Tikuna.

Pesquisadora: Mas aí eles não te ensinaram?

C.L.S.: Não

Pesquisadora: Eles falam por que que eles não ensinaram?

C.L.S.: Eles não falam porque eles ã antes uma vez eu lembro que meu irmão perguntou do

meu pai por que que o senhor não falou a língua indígena pra a que naquela época falava a

gira20 né quer dizer por que o senhor não ensinou a gira pra gente? Mas é a língua indígena a

nossa língua materna aí ele respondeu assim eu lembro benzinho pra quê eu por que pra que

que ia servir pra nós ele respondeu... pra que vai servir pra vocês? Não adianta... não

adiantava eu ensinar pra vocês por isso que eu eu não falo.

A atitude dos pais de não ensinarem a língua Tikuna aos filhos reflete negativamente

entre os próprios Tikuna, porque estes filhos não são legitimamente reconhecidos como Tikuna

entre o grupo, pois o fato de não falar a língua Tikuna gera um certo conflito identitário entre

os indígenas, tendo em vista que língua e identidade estão intimamente relacionadas. No

universo indígena Tikuna, se não fala a língua ancestral, recorre-se a outros elementos de

identificação, como filiação paterna, materna e clânica. Vejamos um exemplo:

20 Gíria ou gira é um termo ligado à realidade histórica dos povos indígenas. Na visão dos colonizadores e de

outros grupos não-indígenas, a língua falada por esses povos não tinha status de língua.

Page 104: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

104

C.L.S.: ... aconteceu aqui mesmo na sala de aula ... porque eles vieram perguntar logo quando

começou as aulas né? Perguntaram que... que etnia eu era... de indígena Tikuna aí não tu não

é indígena Tikuna não tu é Kokama diziam pra mim que eu era Kokama né? Aí eu disse mas eu

sou indígena Tikuna mas eu já perdi a língua porque meu pai e minha mãe não me ensinaram

como é que eu ia aprender? Eu vivia num... numa comunidade que eles só falavam português

também né? Então como é que eu ia aprender a minha língua indígena? Aí eles... eles sempre

implicavam comigo assim lá vem a Kokama aí eu disse mas eu não sou Kokama eu sou indígena

Tikuna mas eu não falo aí eles perguntavam pelo meu pai quem é aí eu falava meu pai, minha

mãe, a nação deles (risos)

O bloco de questões “Que língua você usa mais frequentemente em casa para falar

com adultos?” e “Que língua você usa mais frequentemente em casa para falar com crianças?”

continua seguindo a linha de investigação acerca dos usos linguísticos, levando em

consideração, agora, o domínio social doméstico e os interlocutores.

Quanto à interação adulto-adulto no domínio social doméstico, 78% dos participantes

informaram que usam apenas a língua Tikuna, 13%, apenas a língua portuguesa e 9%, as duas

línguas.

Quanto à interação adulto-crianças no domínio social doméstico, 70% dos

participantes informaram que usam apenas a língua Tikuna, 9%, apenas a língua portuguesa e

21%, as duas línguas.

Os dados revelam que os usos linguísticos em língua Tikuna, no domínio social

doméstico, sofrem um decréscimo de percentual (70%) quando as interações ocorrem no nível

adultos-crianças. Quando as interações ocorrem no nível adulto- adulto, esse percentual

aumenta para 78%. No que se relaciona ao uso da língua Tikuna, o nível de interação adulto-

adulto é maior que o nível de interação adulto-criança. Veja um trecho que ilustra a interação

adulto-criança no ambiente doméstico apenas em língua portuguesa.

B.C.C./35.FEM.: tanto é que os meus sobrinho[ø], meus filho[ø] não falam na língua Tikuna

não, ainda mais que a gente mora aqui na cidade e... e a gente vamo[ø] dizer deixamo[ø] de

falar... e... eu levei meu filho quando ele tinha seis ano[ø] pra Campo Alegre que eu morei dois

ano[ø] lá, mas o meninozinho não conseguiu falar... eu não sei o motivo, talvez é porque eu

mesmo também não incentivo né? É por isso que eu sempre digo [ã]ssim eu trabalho numa

repartição onde você incentiva a nossa língua mas aí em casa nós tamo[ø] perdendo a nossa

cultura, mas... mas nem por isso o meu filho ele entende né? Eu falo na língua Tikuna com ele...

ele entende tudinho, mas ele não fala... é... o pequeno de seis ano[ø] é o único que ainda fala

algumas palavras, mas o mais velho... ele não fala mas ele entende né?

Page 105: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

105

Quando o domínio social é a comunidade, 91% dos participantes afirmaram usar

apenas a língua Tikuna no nível de interação adultos-mais velhos da comunidade, ao passo que

4% afirmaram usar apenas a língua portuguesa e 4% afirmaram usar as duas, a depender da

situação comunicativa. Cumpre ressaltar que aqueles 4% são representados por uma

participante que afirmou não saber falar a língua Tikuna.

Quando comparamos o uso de língua Tikuna, nas interações adulto-crianças, adulto-

adulto e adulto-mais velhos da comunidade, notamos que esse uso é mais elevado neste último

nível geracional e menor no primeiro nível geracional, o que pode indicar um decréscimo de

uso da língua ancestral nas futuras gerações.

Quanto ao domínio social ‘vizinhança’, 65% dos participantes afirmaram usar apenas

a língua Tikuna, 13% falam língua portuguesa e 22% falam as duas línguas.

Quando questionados sobre “Que língua as crianças da comunidade falam mais

frequentemente?”, 91% dos participantes responderam língua Tikuna, e 9%, língua portuguesa.

Esse alto índice sugere que, na comunidade, a interação criança-criança privilegia o uso da

língua ancestral.

Em relação à língua usada com mais frequência em casa para escrever, temos os

seguintes resultados: o uso mencionado apenas da língua Tikuna (9%) é menor que o uso

mencionado apenas na língua portuguesa (22%), 4% não responderam. O uso frequente das

duas línguas foi mencionado por 65% dos participantes. Esse número pode ocorrer porque a

escrita é uma habilidade fortemente usada no ambiente escolar e em situações mais formais.

Como o lar é um ambiente mais íntimo, possivelmente não demande tanto o uso da escrita, o

que justificaria o baixo índice de uso da língua Tikuna mencionado para escrever.

Ao indagarmos os participantes sobre “Que língua você usa para escrever mensagens

de texto no celular, na internet ?” nossa intenção era saber quais línguas eram utilizadas pelos

participantes da pesquisa para escrever em ambientes eletrônicos, midiáticos, virtuais. Nesse

domínio, o uso exclusivo da língua portuguesa representa 61% das respostas; 26% dos

participantes afirmaram usar as duas línguas para escrever no ambiente digital e 13% não

responderam. Quando questionados sobre o porquê de preferirem o uso da língua portuguesa

em ambientes digitais para escrever, alguns participantes da pesquisa nos informaram que os

teclados do celular ou do computador não têm as teclas com os símbolos da língua Tikuna.

No que diz respeito à habilidade de escrita, tanto em ambiente doméstico, quanto no

ambiente de interação eletrônico, virtual, os participantes usam mais a língua portuguesa.

Page 106: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

106

Quando entra em cena a habilidade de falar em ambiente digital, esses resultados são

diferentes. Nesse ambiente, o uso exclusivo da língua Tikuna representa 17%, das respostas dos

participantes, 17%, o uso da língua portuguesa e o uso das duas línguas representa 57%; 9%

não responderam. Para maior elucidação da resposta, alguns informantes afirmaram que o uso

varia conforme o interlocutor. Se estiverem falando ao telefone com outro falante de língua

Tikuna, usam a língua Tikuna, se estiverem falando com um não indígena, falante exclusivo de

língua portuguesa, usam esta língua como meio de comunicação.

A questão “Que língua você usa caso reze/faça preces em casa?” foi respondida da

seguinte forma: 65% afirmaram usar a língua Tikuna, em oposição a 17%, que afirmaram usar

a língua portuguesa; 4% responderam que usam as duas línguas e 13% não responderam. Esses

índices sugerem que na situação íntima, como a de rezar, o uso da língua ancestral é

privilegiado. Essas respostas se coadunam quando questionados que língua os participantes

usam para rezar no templo religioso.

As questões “Que língua você usa quando está zangado(a)/ com raiva?” e “Que língua

você usa para contar uma piada?” tinham a intenção de diagnosticar a língua usada pelos

participantes em momentos emocionais opostos: de tensão e de descontração. Os dados indicam

o uso privilegiado da língua Tikuna nos dois momentos, com 78% nos momentos de raiva e

65% para contar piada.

Aqui também, o conjunto de respostas dos professores aponta para o uso efetivo das

línguas Tikuna e Portuguesa; a diferença é que, nessa seção, pudemos verificar que esse uso

depende do ambiente social no qual os participantes estiverem interagindo.

5.2.3 Usos linguísticos em atividades e em localidade

Esta subseção visa a apresentar algumas atividades mencionadas pelos participantes

durante as entrevistas quando questionados sobre o que costumam fazer na sede e o que

costumam fazer nas comunidades e que língua usam para realizar tais atividades. Além disso,

como forma de reiterar as informações, levando em consideração que muitos participantes não

haviam feito menção a nenhuma atividade durante as entrevistas, ao aplicarmos o questionário,

inserimos algumas atividades e as localidades anteriormente mencionadas por alguns

participantes, conforme elucidamos nas legendas dos gráficos abaixo.

Page 107: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

107

Gráfico 6: Usos linguísticos em atividades

Gráfico 7: Usos linguísticos em localidades

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108

Ao analisarmos os gráficos, verificamos que as atividades ‘conversas na família,

reuniões da comunidade, trabalho na roça, pescaria, caçada, celebração da comunidade, festa

ou ritual indígena, banho no rio, velório/ritos fúnebres, reunião na escola, missa ou culto, rezas

cristãs (terço, procissão, festa), reuniões da comunidade’ ocorrem com maior frequência nas

comunidades e, para realizá-las, os falantes privilegiam o uso da língua Tikuna. Como se pode

ver, o uso da língua Tikuna na área rural é predominante.

Essa situação, no entanto, se reverte quando as atividades são realizadas quase que de

forma exclusiva na sede do município, tais como ‘tratar de assuntos no banco, tratar de

assuntos nos Correios, tratar de assuntos no cartório e reunião com órgãos do governo’. Ao

realizarem essas atividades na área urbana, os participantes usam, predominantemente, a língua

portuguesa, o que sinaliza para uma situação de poderia exercido por essa língua no núcleo

urbano. A respeito de o bilinguismo ocorrer apenas no universo indígena, transcrevemos trechos

da fala de um participante:

A.C.A./43. MASC.: Branco não sabe cu nossa língua [tʂ]ikuna ele também não sabe pra

escrever nossa língua só saber português me[ø]mo só

A atividade de ir ao comércio/mercadinho é realizada tanto na sede quanto na

comunidade. No entanto, a maior ocorrência de uso ao realizarem essa atividade é em língua

portuguesa, tendo em vista que quando precisam fazer compras na sede do município, o uso é

exclusivamente em língua portuguesa e, na comunidade, alterna-se o uso da língua Tikuna e da

língua portuguesa, porque quando os donos do mercadinho na comunidade são peruanos, que

falam português, ou são não indígenas, falantes exclusivos de português, é preciso que se fale

nessa língua para se fazer uma compra. Abaixo transcrevemos trechos que ilustram o que

afirmamos nesse parágrafo. A fala de W.A.S./51. MASC. faz referência à necessidade de usar

a língua portuguesa na sede do município e a fala de E.D.I./33. MASC. faz alusão ao fato de

usar a língua portuguesa tanto na comunidade quanto na sede municipal.

W.A.S./51. MASC.: ...a gente compra...gente pergunta em português porque ele não sabe

também quando gente porque muitas das ve[ʐ]e[ø] eu já tem prova eu já perguntei até às

ve[ʐ]e[ø] aqui com teu pai também não sabe qualquer lo[z]a eu perguntei pra pedir alguma

coisa e n[u] sabe então é melhor a gente falar só em português pa poder entender

Pesquisadora: Tá quando você precisa resolver alguma coisa algum negócio quando você

precisa ir ao comércio você geralmente vai onde assim fazer suas compras ou resolver negócio

de contas?

Page 109: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

109

E.D.I../33. MASC.: Agora tá fácil esse ano agora tem em Santa Rita já tem banco já tem

comércio grande lá pra resolver [ã]ssim de documento essas coisa é aqui na São Paulo de

Olivença mas agora pra receber fazer comp[l]a é lá me[ø]mo em Santa Rita

Pesquisadora: Aí lá você pode falar o Tikuna que é entendido?

E.D.I../33. MASC.: Não. É em português

Pesquisadora: No comércio e no banco é português?

E.D.I../33. MASC.: É português

Pesquisadora: Mesmo lá em Santa Rita?

E.D.I../33. MASC.: Mesmo lá em Santa Rita

Pesquisadora: E aqui na cidade?

E.D.I../33. MASC.: Também

Em relação a ‘realizar atividades acadêmicas’ e ter ‘encontro com pesquisadores’, a

maioria dos participantes informou que tais atividades ocorrem tanto na sede quanto na

comunidade, e essa maioria usa as duas línguas.

No que diz respeito à atividade de ‘Formação de professores’, ou capacitação, como

eles mesmos mencionaram, apesar de ocorrer com maior frequência na sede, a língua utilizada

é a Tikuna porque na maioria das vezes quem ministra as capacitações são coordenadores da

educação indígena, falantes de Tikuna.

5.3 REDES DE INTERAÇÕES LINGUÍSTICAS

Por meio das entrevistas, os participantes foram questionados a respeito das pessoas

com que interagem em língua Tikuna e/ou em língua portuguesa. Nossa intenção com essas

questões era conhecermos as redes de interações linguísticas dos participantes e analisar como

podem influenciar no uso de uma ou outra língua.

A seguir, apresentamos as redes de interações dos professores Tikuna usando a língua

Tikuna.

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110

Figura 7: Redes de Interações dos professores Tikuna usando a língua Tikuna15

Fonte: Elaborado por Ligiane Bonifácio e Daniel Oliveira (ago. 2018). Grafo das interações linguísticas criado

com o software Adobe CC2018.

Como se pode ver, o uso da língua Tikuna ocorre, predominantemente, com pessoas

que pertencem ao círculo familiar e religioso. Foi citado, também, durante as entrevistas, o uso

da língua Tikuna nas interações com autoridades locais, também falantes de Tikuna.

A seguir, apresentamos as redes de interações dos professores Tikuna usando a

língua portuguesa.

Page 111: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

111

Figura 8: Redes de Interações dos professores Tikuna usando a língua portuguesa15

Fonte: Elaborado por Ligiane Bonifácio e Daniel Oliveira (ago. 2018). Grafo das interações linguísticas criado

com o software Adobe CC2018.

Como se pode ver, as redes de interações dos participantes usando a língua portuguesa

ocorrem, majoritariamente, em ambiente fora do familiar e envolvem uma quantidade maior de

interlocutores. Essas redes são estabelecidas, predominantemente, por meio de interações que

exigem algum grau de formalidade e que ocorrem na área urbana.

Conforme Labov (2010), a rede social e as comunidades de prática são duas potentes

forças que atuam no processo de variação e mudança. Para Labov, as redes que apresentam

maior complexidade e densidade tendem a preservar os falares, atuando contra os efeitos do

nivelamento dialetal. Já a mudança é liderada pelos participantes da rede que têm o maior

número de contatos dentro e fora dela.

Ainda em relação à ligação estabelecida entre redes e práticas sociais e o processo de

variação e mudança linguística, Milroy (2002) evidencia que nas redes, há laços fortes e fracos,

sendo fortes aqueles estabelecidos pela conexão com amigos e familiares e fracos aqueles que

ocorrem apenas entre pessoas conhecidas.

Page 112: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

112

Dessa forma, pode-se inferir que as pessoas que utilizam a língua Tikuna nas

interações familiares e cm amigos tendem a preservá-la e a utilizar traços desta na variedade de

português que usam como segunda língua, principalmente em ambientes formais e com pessoas,

muitas vezes, pouco conhecidas por elas. Já aquelas que usam a língua portuguesa dentro e fora

do ambiente familiar tendem a usar menos a língua Tikuna e a se aproximar da variedade

considerada padrão do PB.

5.4 DESLOCAMENTOS, ESCOLARIDADE E USOS LINGUÍSTICOS

Nesta seção, apresentamos os deslocamentos realizados pelos participantes da

pesquisa e a dinâmica escolar deles nessas localidades, na tentativa de, no capítulo 7,

procurarmos analisar em que medida o contato viabilizado pela mobilidade e/ou escolaridade

influenciam nos usos linguísticos, em relação à variedade do português falada por esses

participantes, professores Tikuna.

A.C.A./43. MASC. nasceu na comunidade de Vendaval, estudou da primeira à quarta

série (terminou a quarta série em 1993) em Vendaval. Para prosseguir os estudos, A.C.A./43.

MASC. se deslocava, semestralmente, para a comunidade de Filadélfia, no município de

Benjamin Constant, onde estudou, de forma modular, da quinta à oitava série do ensino

fundamental, o ensino médio em Magistério e o ensino superior (Terceiro Grau Indígena) -

todos realizados por meio de programas de formação da OGPTB. No ambiente escolar, tinha

aulas de língua portuguesa e Tikuna na comunidade, com professores da própria comunidade

e, nos cursos da OGPTB, tinha algumas aulas com professores não indígenas, falantes de língua

portuguesa, mas usava muito a língua Tikuna durante as aulas, com os colegas, que eram todos

indígenas.

B.C.C./35. FEM. nasceu na comunidade de Cuchillo Cocha, no município de

Caballococha, no Peru e morou lá por cinco anos. De Cuchillo Cocha, seguiu com a família

para o Brasil, instalando-se na comunidade de Filadélfia, no município de Benjamin Constant.

Nessa comunidade, morou por aproximadamente quatro anos e estudou do primeiro até o

terceiro ano do ensino fundamental (com nove anos cursou essa série). A partir do quarto ano,

com dez anos, passou a estudar na sede do município de Benjamin Constant, onde morou por

aproximadamente sete anos e cursou até o primeiro ano do ensino médio acadêmico. Casou-se

e se mudou para a sede de São Paulo de Olivença, onde mora por aproximadamente dezessete

anos. Nesse município, começou a estudar do 2º ano do ensino médio em diante, terminou o

ensino médio Acadêmico, cursou a graduação em Licenciatura Normal Superior e a

especialização em Psicopedagogia. Morou por dois anos na comunidade de Campo Alegre, no

Page 113: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

113

município de SPO, onde foi professora da educação básica. É aluna do curso de Mestrado em

Linguística e Línguas Indígenas (PROFLLIND/UFRJ). Para assistir às aulas, a aluna se desloca

até a cidade do Rio de Janeiro. A participante relatou durante a entrevista que nunca estudou

língua Tikuna na escola.

B.S.G./56. FEM. nasceu na comunidade Santa Clara, distrito do município de SPO,

onde mora até hoje. Começou a estudar com onze anos e, na comunidade, fez da alfabetização

à quarta série do ensino fundamental, em língua portuguesa, com uma professora não indígena

da sede municipal. Ficou dezessete anos sem estudar e, aos 38 anos de idade, começou a

lecionar. Foi alfabetizada na língua Tikuna aos quarenta e dois anos, ao participar de um curso

de formação na sede do município de Benjamin Constant. À guisa de exemplificação, abaixo

apresentamos trechos da fala da participante:

B.S.G./56. FEM.: (...) eu sabia falar minha língua materna mas não sabia escrever só

sabia português. Através da Marília foi me alfabetizar com quarenta e dois anos que fui me

alfabetizar na minha própria língua com a Marília ... através da Marília foi me alfabetizei a

minha língua própria eu dou aula na minha sala de aula eu já escrevo já alfabetiza meus aluno

na própria língua então isso eu agradeço muito a Marília porque se não fosse a Marília não

sabia nem minha língua porque lá na minha comunidade não tinha professor que dava aula

em língua na língua própria né porque as professora que estudei daqui do município.

Na comunidade de Filadélfia, B.S.G./56. FEM. cursou o ensino médio indígena, pela

OGPTB e dois períodos do curso de 3º grau indígena. Ficou doente, precisou realizar uma

cirurgia e não pôde terminar este curso. Atualmente, na sede do município de São Paulo de

Olivença, está cursando Pedagogia Intercultural Indígena pela UEA. Como é um curso modular

de formação, B.S.G./56. FEM. se desloca até a sede para assistir às aulas e, em seguida, retorna

à comunidade Santa Clara.

C.L.S./34. FEM. nasceu no município de São Paulo de Olivença e, logo em seguida

(após três dias), foi para a comunidade de Bom Jardim II. Ficou lá até uns 8 ou 9 anos. A família

se mudou, por conta da religião do pai, para comunidade Vila Alterosa Juí, no município de

Santo Antônio do Içá. Nessa comunidade, concluiu o ensino fundamental em 2000. Mudou-se

para São Paulo de Olivença em 2002 e, nesse município, cursou o ensino médio e está cursando

a graduação. A participante afirmou durante a entrevista que nunca estudou língua Tikuna na

escola. A primeira vez que estudou língua Tikuna foi em agosto de 2016, no curso de graduação,

por ocasião da disciplina Estudos Fonológicos Aplicados ao Ensino de Línguas, ministrada pela

professora Marília Facó Soares. C.L.S./34. FEM. atua como professora, desde 2012, na

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114

comunidade Bom Jardim do Passé. E, desde o início de 2017, passou a ensinar algumas palavras

em língua Tikuna aos alunos.

Os exemplos, tanto de B.S.G./56. FEM. quanto de C.L.S./34. FEM. sinalizam para a

importância de, nos cursos de formação, os professores Tikuna estudarem a língua ancestral,

refletirem sobre ela, porque isso repercute na sala onde esses professores atuam, bem como na

comunidade, no entorno e pode ser uma política linguística de manutenção da língua, tendo em

vista a importância para a vitalidade da língua via escola, diferentemente das formações

unicamente sobre e em língua portuguesa. Veja trecho abaixo.

J.M.G./40. MASC.: lá na OGPTB já estava aprendendo a língua Tikuna aí que conseguiu

explicar também como a escrever ensinar aluno.

E.A.L./29. FEM. nasceu na comunidade Nova Canaã, no município de Benjamin

Constant. Morou nessa comunidade até os seis anos, mudou-se para a comunidade Porto

Espiritual, também no município de Benjamin Constant e ficou lá por aproximadamente quatro

anos, onde cursou a 1ª e a 2ª séries. Voltou para Nova Canaã e estudou lá a terceira e a quarta

séries. Mudou-se para a comunidade Umariaçu, no município de Tabatinga, morou lá por

aproximadamente um ano e estudou a 5ª série. Em seguida, foi para a comunidade Feijoal,

município de Benjamin Constant, morou lá por aproximadamente 4 anos e estudou a 6ª, a 7ª e

a 8ª série do ensino fundamental e 1º ano do ensino médio. Casou-se e se mudou para a

comunidade Campo Alegre, no município de SPO e já mora em Campo Alegre por

aproximadamente 10 anos, onde fez o 2º e o 3º ano do ensino médio e trabalha. Desloca-se até

a sede de São Paulo de Olivença para assistir às aulas do curso de Pedagogia Intercultural

Indígena, ofertado pela UEA e, em seguida, retorna à comunidade Campo Alegre.

E.D.I../33. MASC. nasceu na comunidade São Domingos II, distrito de SPO, ficou lá

por 12 anos e estudou até a quarta série em língua Tikuna. Depois, para continuar os estudos,

foi para a comunidade Santa Rita, também distrito de SPO, ficou lá por 1 ano, mas não concluiu

a 5ª série porque tinha muitas dificuldades em relação à língua portuguesa. Retornou a São

Domingos II, ficou lá por 1 ano, cursou a 5ª série, já em língua Tikuna e em língua portuguesa.

Mudou-se para a sede de São Paulo de Olivença, e estudou da 6ª à 8ª série do ensino

fundamental e o ensino médio, apenas em língua portuguesa. Começou a trabalhar como

professor na comunidade Novo São João, distrito de SPO e ficou trabalhando lá por dois anos,

mas residia na comunidade São Domingos II, pois são comunidades vizinhas. Trabalha, há

cinco anos, em São Domingos II. Estuda, por meio de módulos, na sede de São Paulo de

Page 115: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

115

Olivença e na sede do município de Tefé, para onde se desloca para assistir às aulas e, em

seguida, retorna à comunidade.

F.A.D./56. MASC. nasceu em Vendaval, onde estudou da primeira à quarta série. Com

a finalidade de dar continuidade aos estudos, deslocava-se para a comunidade de Filadélfia, no

município de Benjamin Constant, onde estudou da quinta à oitava série e o ensino médio, por

meio de programas de formação da OGPTB. Atualmente, desloca-se para a sede de São Paulo

de Olivença, para participar das aulas do curso Pedagogia Intercultural Indígena pela UEA. Em

seguida, retorna a Vendaval.

H.A.R./38. MASC. nasceu na comunidade Campo Alegre, no município de SPO.

Mudou-se para a comunidade de Betânia, no município de Santo Antônio do Içá, onde estudou

o ensino fundamental completo, em língua portuguesa. Em seguida, passou a morar na sede de

São Paulo de Olivença, onde estudou por 13 anos, em língua portuguesa. Como professor,

trabalhou por 7 anos na comunidade Nova Reforma, distrito de SPO, por 1 ano, na comunidade

Otawari e na comunidade Novo Paraíso. Atualmente, mora na comunidade Campo Alegre e

vem até a sede de São Paulo de Olivença para participar das aulas do curso de Pedagogia

Intercultural Indígena.

H.Z.M./34. MASC. nasceu na comunidade Campo Alegre, onde estudou até a oitava

série. As aulas ocorriam, segundo o participante, na língua portuguesa, exclusivamente, na

escrita, e língua Tikuna mais na oralidade. Na sede de São Paulo de Olivença cursou o ensino

médio, todo apenas em língua portuguesa, porque na comunidade não havia ensino médio.

Quando terminou o ensino médio, retornou à comunidade Campo Alegre. Em 2010, começou

a atuar como professor na comunidade Deregüne, e em 2011 trabalhou na comunidade

Vendaval. Em seguida, voltou à comunidade Campo Alegre. Atualmente, mora na comunidade

Campo Alegre e vem até a sede de São Paulo de Olivença para participar das aulas do curso de

Pedagogia Intercultural Indígena.

J.O.C./29. MASC. nasceu na comunidade Campo Alegre, no município de São Paulo

de Olivença, onde estudou até a quarta série e, segundo o participante, foi alfabetizado na língua

portuguesa e na língua Tikuna. Passou a estudar na sede de São Paulo de Olivença da quinta

série até a conclusão do ensino médio. Estudou por meio do Programa chamado Tempo de

Acelerar, do seguinte modo, em 2003, cursou a 5ª e a 6ª séries; em 2004, cursou a 7ª e a 8ª

séries; em 2005, cursou o ensino médio. Em 2006, trabalhou como professor da educação

infantil na comunidade Porto Novo Jericó, no município de São Paulo de Olivença. Depois

disso, foi para Manaus e morou lá dois anos, estudando o curso técnico de saúde bucal.

Retornou para a comunidade Campo Alegre, no município de São Paulo de Olivença, e

Page 116: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

116

trabalhou 1 ano como técnico de dentista. Em 2011, passou no processo seletivo e trabalhou 1

ano como professor na comunidade Nova Jerusalém do Maité, no município de São Paulo de

Olivença. Em 2012 e em 2013, trabalhou na comunidade Otawari, no município de São Paulo

de Olivença. Em 2014, trabalhou na comunidade Vila Ribeiro, no município de São Paulo de

Olivença. Mora em Campo Alegre e trabalha como professor de Informática. Estuda em São

Paulo de Olivença o curso de Pedagogia Intercultural Indígena, pela UEA.

J.M.G./40. MASC. nasceu na comunidade Santa Inês, distrito de SPO, lá estudou da

1ª à 4ª série. Foi para a Sede de São Paulo de Olivença, onde estudou novamente da 1ª à 4ª,

sendo que a 1ª e a 2ª séries foram no mesmo ano, da 3ª série em diante, estudou uma série por

ano, em língua portuguesa. Fez curso de capacitação na comunidade Filadélfia, distrito de B.C.

Foi para Campo Alegre concluir o Ensino Médio. Trabalha na Comunidade Santa Inês, distrito

de SPO. Estuda na sede de São Paulo de Olivença, para onde se desloca semestralmente para

cursar as aulas de Pedagogia Intercultural Indígena.

J.G.M./29. FEM. nasceu na comunidade Nossa Senhora Nazaré, no município de São

Paulo de Olivença e se mudou para a comunidade Torre da Missão, distrito de São Paulo de

Olivença, por volta dos 3 anos. Em 2008, foi para a sede de São Paulo de Olivença e ficou lá

até 2012. Na cidade, cursou o ensino médio na modalidade EJA e concluiu o curso em 2009.

Fez o processo seletivo para professor e foi aprovada para atuar na comunidade Torre da

Missão, onde trabalhou de 2012 a 2016. Vem à sede de SPO semestralmente para participar das

aulas do curso de Pedagogia Intercultural Indígena.

J.M.T./30. MASC. nasceu na comunidade Vila Alterosa Juí, distrito do município de

Santo Antônio do Içá e ficou lá por 5 anos. Em 2001, se mudou para a comunidade Nova

Galileia (Chupão), distrito de SPO, e ficou lá até 2004. Durante esses anos cursou da 1ª à 4ª

série. Após esse tempo, foi para a comunidade Belém do Solimões, distrito de Tabatinga e lá

concluiu o ensino médio em 2011. Foi para a sede de São Paulo de Olivença, fez um Processo

Seletivo e trabalhou como professor na turma multisseriada por 4 anos, na comunidade Nova

Galileia (Chupão). Estuda na sede de São Paulo de Olivença, cursando Pedagogia Intercultural

Indígena pela UEA.

L.J.F./37. MASC. nasceu na comunidade Santa Inês, distrito de São Paulo de Olivença,

e morou três anos lá. Quando tinha quatro anos, mudou-se com a família para a comunidade

Vila Independente, distrito de São Paulo de Olivença. Em 1992, mudou-se para a sede de São

Paulo de Olivença, lá estudou da 2ª à 8ª série do ensino fundamental e o ensino médio em

magistério. Em 2002, começou a lecionar na comunidade Vila Independente e permaneceu até

2008. Trabalhou dois anos com ensino médio na comunidade Campo Alegre. Começou a

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117

estudar a graduação na sede de SPO, mas não conseguiu finalizar. Na comunidade de Filadélfia,

distrito de Benjamin Constant, cursou o 3º grau indígena, pela OGPTB, e concluiu o curso em

2011. Em 2013, foi convidado para trabalhar como coordenador na Secretaria Municipal

Indígena de São Paulo de Olivença. Em 2016, começou a estudar o mestrado em Linguística e

Línguas Indígenas na UFRJ, na cidade do Rio de Janeiro, para onde se desloca para participar

das aulas e retorna, em seguida, à sede de SPO.

L.F.D./27. MASC. nasceu na comunidade Vila Independente, distrito de SPO. Mudou-

se com a mãe para a comunidade Vila Betânia, no município de Santo Antônio do Içá e ficou

lá por 2 anos. Em seguida, voltou para a comunidade Vila Independente. Com o objetivo de

estudar, foi para a sede de São Paulo de Olivença, onde cursou o ensino fundamental e, após

terminar o ensino médio, começou a trabalhar como professor na comunidade Nova Jordânia,

distrito de SPO. Como boa parte da sua vida escolar ocorreu na sede de SPO, o participante

estudou, predominantemente, em língua portuguesa na escola. Atualmente, mora na

comunidade Vila Independente, distrito de SPO e se desloca à sede de São Paulo de Olivença

para cursar as disciplinas da graduação em Pedagogia Intercultural Indígena.

M.F.C./41. MASC. nasceu na comunidade Campo Alegre, distrito de SPO, onde

morou por 10 anos e estudou até a 4ª série. Com 10 anos, foi morar com a mãe e o tio em

Tabatinga, permanecendo lá por 5 anos. Rumou para sede de São Paulo de Olivença, onde

permaneceu por 5 anos. Retornou para a comunidade Campo Alegre, distrito de SPO, e lá

permaneceu por 4 anos. Começou a trabalhar como professor na comunidade Nova Galileia,

distrito de SPO, e lá permaneceu por 3 anos. Após esse período, trabalhou por 1 ano na

comunidade Vila Ribeiro, distrito de SPO. Em seguida, trabalhou na EJA por 3 anos, na

comunidade Campo Alegre, distrito de SPO. Depois disso, foi para a comunidade Porto Velho,

distrito de SPO, e lá permaneceu por 4 anos. Após isso, foi para a comunidade Torre da Missão,

distrito de SPO, onde trabalhou 4 anos. Trabalha, há 4 anos, na comunidade Otawari, distrito

de SPO. Desloca-se à sede de São Paulo de Olivença para cursar as disciplinas da graduação

em Pedagogia Intercultural Indígena.

N.C.F./42. FEM. nasceu na comunidade Campo Alegre, distrito de SPO, e ficou lá até

os doze anos. Após esse tempo, a família se mudou para a sede de São Paulo de Olivença e

reside atualmente lá. N.C.F./42. FEM. cursou, na sede de SPO, os últimos anos do ensino

fundamental, o ensino médio em magistério e a graduação em Pedagogia Intercultural. Em

2003, começou a trabalhar na comunidade Vila Ribeiro e ficou lá por dois anos.

Aproximadamente em 2005, passou a trabalhar como professora na comunidade de Campo

Alegre e ficou lá por cinco anos. Depois disso, voltou a trabalhar na sede de São Paulo de

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Olivença. Em 2016, começou a estudar o mestrado em Linguística e Línguas Indígenas na

UFRJ, na cidade do Rio de Janeiro, para onde se desloca para participar das aulas e retorna, em

seguida, à sede de SPO.

N.C.FR./28. FEM. nasceu na comunidade Campo Alegre, distrito de SPO e cursou

todo o ensino fundamental nessa comunidade. A partir dos 10 anos, do 5º ao 9º ano passou a

estudar língua portuguesa com professores indígenas e não indígenas na comunidade. Em 2002,

mudou-se para a sede de São Paulo de Olivença para cursar o ensino médio acadêmico,

concluindo-o em 2004. Depois disso, foi chamada para trabalhar como professora em uma

comunidade dentro do Igarapé de Vendaval. Em 2006, foi para Tabatinga participar de um

curso de capacitação do programa Escola Ativa. Passou no concurso e é professora efetiva na

comunidade Vila Independente. Vem à sede de SPO para participar das aulas do curso de

Pedagogia Intercultural Indígena.

O.B.A./54. MASC. nasceu na comunidade de Paranapara I, distrito de SPO. Nessa

comunidade, estudou a 1ª série. Após um tempo, a família se mudou para uma comunidade no

igarapé de Camatiã. Nesse local, não estudou por aproximadamente 15 anos porque não tinha

escola. Depois de um período, a família retornou para a comunidade de Paranapara I. Aos 17

anos, voltou a estudar, a partir da 2ª série até a 4ª série. Ia e voltava de Paranapara I a Campo

Alegre para Estudar. Nesta comunidade, estudou a 5ª e a 6ª série, mas não foi aprovado nesta

última série. Passou a estudar na Comunidade Santa Rita, da 6ª à 8ª série, apenas na língua

portuguesa e relatou sentir bastante dificuldade, mas conseguiu concluir a oitava série em 2004.

Em 2006, começou a estudar o ensino médio acadêmico na sede de São Paulo de Olivença,

concluído em 2008. Após esse período, retornou para a comunidade de Paranapara I, onde é

professor efetivo. O.B.A./54. MASC. se desloca até a sede para assistir às aulas do curso de

Pedagogia Intercultural Indígena e, em seguida, retorna à comunidade Paranapara I.

O.A.A./50. MASC. afirmou ter nascido na beira do rio porque, segundo ele, não existia

comunidade na época. Hoje, esse lugar é chamado Paranapara I, distrito de SPO. Nessa

localidade, estudou da 1ª à 4ª série. Em 1985, fez um curso na comunidade Vila Independência.

Começou a trabalhar como professor na comunidade Jacurapá, e trabalhou lá por 6 anos. Na

comunidade de Filadélfia, distrito de BC, terminou o ensino fundamental e o ensino médio em

magistério. O participante se desloca até a sede de SPO para assistir às aulas do curso de

Pedagogia Intercultural Indígena e, em seguida, retorna à comunidade Paranapara I.

P. B.M./33. MASC. nasceu na comunidade Santa Terezinha, distrito de SPO, onde

começou a estudar com 6 anos a Alfabetização. Nessa comunidade, até a 3ª série, estudou língua

Tikuna e língua portuguesa com professores indígenas. Para prosseguir os estudos, estudou, da

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119

4ª série do ensino fundamental ao ensino médio na sede do município de São Paulo de Olivença,

em língua portuguesa. Atualmente, é professor na comunidade Santa Terezinha. O participante

vai até a sede de SPO para participar das aulas do curso de Pedagogia Intercultural Indígena e,

em seguida, retorna à Santa Terezinha.

W.A.S./51. MASC. nasceu no Igarapé Preto, área pertencente ao município de

Tabatinga, e morou lá por 6 anos. Após esse período, a família se mudou para a comunidade de

Vendaval, distrito de SPO, onde o participante reside até hoje. Segundo o relato dele, começou

a estudar “na escola do patrão”, em 1973, com oito anos de idade, somente com professores

não indígenas que lecionavam em língua portuguesa. Não entendia praticamente nada do que

os professores falavam e, constantemente, era vítima de castigos na escola. A seguir,

transcrevemos trechos da fala do participante, os quais ilustram o que acabamos de afirmar:

(...) nem consegui de aprender alguma coisa porque naquele tempo nem fala português

muito complicado aquele tempo era palmada... palmada e outros meus colega levar[ʊ]

ca[x]tigo de todo jeito aí depois o seu Pe Pedro Inácio procurou um professor indígena.

Em 1976, W.A.S./51. MASC. começou a estudar com um professor indígena. Teve

que reiniciar os estudos a partir da 1ª série e cursou até a 4ª série na modalidade Mobral.

Precisou estudar por muitas vezes a 4ª série por não ter como prosseguir em outro nível de

seriação em Vendaval. Em 1988, começou a trabalhar como professor. Atualmente, desloca-se

para a sede de São Paulo de Olivença para participar das aulas do curso de Pedagogia

Intercultural Indígena.

A seguir, na figura 9, evidenciamos o local de nascimento dos participantes, seguido

dos deslocamentos, que representa a localidade na qual o participante permaneceu por um

tempo significativo, e o local de residência atual do participante.

Page 120: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

120

Figura 9: Principais deslocamentos dos professores Tikuna (ago., 2018)21

Fonte: Elaborado por Ligiane Bonifácio e Daniel Oliveira (ago. 2018). Gráfico criado com o Adobe CC2018.

Como se pode perceber, os participantes indígenas da pesquisa realizaram intenso

movimento migratório, tendo consequências, por exemplo, sobre o processo de escolarização

deles e sobre as línguas aí envolvidas, contribuindo para a perda linguística (caso de C.L.S) e

para a supremacia de uso da língua majoritária (caso de B.C.C).

Em relação ao processo de escolarização, o contato e a intensificação das relações com

os não-índios fez surgir, nas comunidades indígenas, a necessidade de conhecer os códigos e

os símbolos dos não índios, uma vez que estes e suas ações passaram a “povoar o entorno

indígena” (Maher, 1996). É nesse contexto histórico que surge a Educação Escolar Indígena.

De acordo com Maher (2006), a Educação Escolar Indígena pode ser encaixada em

dois paradigmas. Até o fim da década de 70, o paradigma que predominou foi o considerado

Assimilacionista, segundo o qual a alfabetização na língua indígena, nas séries iniciais serve

apenas de elemento que facilita a aprendizagem de língua portuguesa. Esta última, uma vez

21 Compilação dos dados coletados por meio de relatos de vida, entrevistas e questionários.

Page 121: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

121

aprendida, passa a ser, nos anos seguintes de escolarização, a língua de instrução. Segundo

Maher, em termos linguísticos, esse modelo evidencia o chamado bilinguismo subtrativo, cuja

finalidade é “subtrair a língua materna do repertório do falante” (op. cit. p. 21). Esse modelo

ainda prevalece em muitas escolas indígenas. Por outro lado, há o Paradigma Emancipatório,

no qual deve prevalecer o bilinguismo aditivo. Nesse modelo, a finalidade é que o aluno

indígena acrescente a língua portuguesa ao seu repertório linguístico, sem abandonar a língua

materna; pelo contrário, o que se pretende é que ele se torne cada vez mais proficiente na língua

indígena.

Em relação aos aspectos que devem ser pensados nos programas de formação em

contextos de minorias linguísticas, Maher (2007) evidencia que a avaliação que se faz do

bilinguismo de minorias linguísticas é o foco central na proposição e estabelecimento de

programas de educação pensados para essas minorias. O bilinguismo considerado como um

problema (aquele que envolve línguas minoritarizadas, como as indígenas, por exemplo) dá

vazão ao estabelecimento de objetivos de escolarização que contribuam para que o aluno deixe

de usar a sua língua materna e se torne monolíngue na língua considerada de prestígio, no caso,

a portuguesa.

Ao nos debruçarmos sobre os usos linguísticos e identidade, criamos condições que

nos permitiram verificar que o contato a partir de duas línguas em foco (Tikuna e Portuguesa)

concorre para o bilinguismo, com o predomínio de atitudes positivas em relação às duas línguas,

o que aponta para a manutenção da língua Tikuna e para a busca por desenvolver de forma

proficiente o desempenho quanto ao uso de língua portuguesa.

Page 122: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

122

CAPÍTULO 6 - SOBRE A LÍNGUA TIKUNA

Este capítulo trata de alguns aspectos relacionados à língua Tikuna, abordando,

inicialmente, a caracterização fonético-fonológica dessa língua, em seguida, apresentando

elementos relacionados à sintaxe e à morfologia.

Levando-se em consideração o ponto de vista histórico-comparativo acerca da língua

Tikuna, Soares (2017) traça o percurso que a seguir evidenciaremos. De acordo com a

pesquisadora, a língua Tikuna ainda é considerada isolada, não tendo nenhuma relação de

parentesco com outra língua indígena (classificação que coaduna com a de Rodrigues, 1970 e

Nimuendajú, 1952). A linguista esclarece que, contrariamente a essa classificação, Greenberg

(1987) levantou a hipótese de que Tikuna seria membro de um tronco Macro-Tukano. Porém,

essa hipótese, ainda conforme Soares (2017), não foi sustentada, devido a falhas nos

procedimentos empregados, pois os dados levados em consideração por Greenberg foram

tratados de maneira inacurada, não houve, por exemplo, controle dos empréstimos e foram

criadas falsas etimologias. Diante disso, a pesquisadora ressalta que o trabalho de Greenberg

(1987) acabou sendo considerado sem respaldo científico e a classificação que propôs não

passou de uma probabilística muito criticada (como por exemplo, por Kaufman, 1990).

Soares (2017) nos esclarece que, precedendo as classificações de Rodrigues (1970) e

Greenberg (1987), Nimuendajú (1952) já havia voltado sua atenção e realizado estudos

relacionados à questão da classificação Tikuna do ponto de vista histórico-comparativo. Esses

estudos, conforme Soares (2017) foram realizados da seguinte forma: Nimuendajú comparou

seus próprios dados do Tikuna com outras línguas, buscando encontrar possíveis equivalentes,

donde resultou que em Nimuendajú (1952, p. 156-158), há a menção a similaridades entre o

Tikuna e o Yurí, notadas a partir de listas vocabulares de Spix e Martius sobre essa última

língua. Por ter notado algumas características bastantes diferentes do Tikuna, como por

exemplo, as formas de terceira pessoa, marcadas por gênero e noções de localidade e tempo,

Nimuendajú acabou considerando Tikuna como uma língua isolada, seguindo Chamberlain

(1910) e Tessman (1930), que já haviam feito essa classificação precedentemente (cf. Soares,

2017, nota 10).

Ainda em relação à classificação da língua Tikuna, Soares (2017) assinala que

Campbell (1997, p.184) reconheceu a hipótese de um agrupamento Ticuna-Yurí (esta última

língua está possivelmente extinta), a qual teria sua origem em trabalhos como os de Greenberg

e Kaufman, por exemplo.

Page 123: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

123

Carvalho (2009) retomou a hipótese de Nimuendajú acerca de um possível parentesco

Tikuna-Yurí para, conforme Soares (2017, nota 10, p. 296), “reunir evidências relevantes para

aplicação dos instrumentos do método comparativo, tendo por base desenvolvimentos da teoria

fonológica”. A esse respeito, Rodríguez (2013) afirma ser esse parentesco uma hipótese ainda

não discutida de maneira conclusiva.

Continuando seu percurso de análise e reflexão envolvendo o ponto de vista histórico-

comparativo acerca da língua Tikuna, Soares (2017) traz à tona o texto de Seifart & Echeverri

(2014), os quais, com base em Rivet (2012), Carvalho (2009), Goulard e Montes (2013),

retomam e tentam levar adiante a hipótese do parentesco entre o Yurí e o Tikuna (cf. Soares,

2017, nota 10, p. 296)

Em termos de descrição da língua Tikuna, os primeiros trabalhos são os de Anderson

(1959,1966), Lowe (1960a, 1960b, 1960c), Soares (1984, 1986, 1990, 1992 e seguintes) e

Rodríguez (1987 e seguintes).

Com base em dados que obteve na comunidade de Cuchillo Cocha, localizada no Peru,

Anderson (1959, 1966) descreveu, seguindo uma orientação descritiva tagmêmica, a língua

Tikuna. No que diz respeito aos fonemas da língua, Anderson (1959) identificou dezoito

consoantes e seis vogais; quanto aos tonemas, o pesquisador realizou a identificação de cinco.

Realizou, também, uma listagem de afixos verbais e nominais; identificou as categorias lexicais

nome, verbo e partículas. Em Anderson (1966), o pesquisador apresenta os tipos de oração da

língua Tikuna, levando em consideração a estrutura das orações dependentes e independentes.

Lowe (1960), um pesquisador do Summer Institute of Linguistics, conduziu uma

pesquisa de campo na comunidade de Umariaçu, localizada no Brasil, por, aproximadamente,

dois meses no ano de 1959, por meio da qual realizou um breve estudo do nome e da morfologia

verbal, além de relacionar nomes de parentesco e de realizar um survey da sintaxe Tikuna.

Como esses trabalhos foram realizados por meio de apenas uma pesquisa de campo, a descrição

de Lowe é menos detalhada que a de Anderson e o próprio pesquisador considera como

tentativas algumas conclusões a que chega.

Soares, linguista brasileira que tem se dedicado há mais de trinta anos22 ao estudo da

língua Tikuna -, em artigo divulgado no ano de 1984, realiza estudo comparativo, no âmbito da

22 Ao longo desse tempo, Soares realizou trabalho de campo em grandes aldeias Tikuna, como as de Vendaval,

Belém do Solimões, Campo Alegre, Kanimaru e Betânia. Além disso, a linguista também percorreu e coletou

dados em pequenas aldeias situadas próximas ao igarapé da Rita e ao igarapé São Jerônimo, inclusive dentro do

Tunetü, que é a área mítica de surgimento dos Tikuna. Durante o trabalho efetivado de assessoria linguística e de

participação em cursos de formação de professores indígenas, no Alto Solimões, Soares esteve em contato com

cerca de 250 professores Tikuna, dentre os quais estão incluídos aqueles que são moradores de áreas mais afastadas

das áreas urbanas, como os que vivem na aldeia Bugaio, na Terra Indígena Estrela da Paz, no município de Jutaí

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124

fonética acústica, de diferentes realizações de fala de um número representativo de falantes

moradores de Vendaval, então uma aldeia de constituição relativamente recente. Nesse

trabalho, Soares apresenta a língua como tonal e possuidora de sentenças que são proferidas em

ritmo silábico, com sucessão regular de sílabas breves e longas (cf. Soares, 1984, p. 138). E

toma como dados empiricamente relevantes as vogais da língua indígena Tikuna enquanto

segmentos fonéticos. Dessa forma, observa como essas vogais se realizam dentro de certos

contextos e a relação que apresentam com determinada característica prosódica da língua

estudada. Em “Traços acústicos das vogais em Tikuna”, Soares (1984) nos mostra o resultado

de seus estudos sobre a expansão do sistema vocálico Tikuna. Nesse trabalho, a pesquisadora

parte da substância fonética para pensar o problema da interseção e da nasalização de segmentos

vocálicos, relacionando-o a aspectos prosódicos.

No trabalho de 1986, leva em consideração teorias silábicas e realiza uma análise

prosódica (nos termos concebidos por Firth), associando-a a pressupostos da Fonologia Natural.

Realizando a análise com base em dados que obteve por meio de pesquisa de campo entre os

meses de janeiro e fevereiro de 1983, na comunidade de Vendaval, no Brasil, Soares abordou

a sílaba e seus constituintes (margens e centro), o sistema de consoantes e vogais e determinou

alguns processos fonológicos em Tikuna. Abordou ainda o tom; a palavra e a sentença; bem

como alguns processos de fortalecimento e enfraquecimento em Tikuna, tais como

laringalização, ressilabificação; além disso, também tratou da duração silábica e da assimilação

tonal. Nesse trabalho, Soares (1986) chega a determinadas conclusões, entre as quais estão as

seguintes: existência de um bom número de processos de enfraquecimento na língua; processos

que ocorrem no nível segmental podem gerar efeito sobre o nível suprassegmental;

características prosódicas como o tom e a duração apresentam relação entre si.

Além da análise de aspectos fonético-fonológicos relacionados à língua Tikuna, Soares

também tem se dedicado a estudar fenômenos morfológicos e sintáticos dessa língua,

estabelecendo a relação existente entre componentes linguísticos, com destaque para a

fonologia e a sintaxe, conforme apresentaremos nas próximas seções. Os trabalhos de Soares

apresentam como um de seus objetivos refletir sobre as relações de interface entre os

componentes linguísticos.

e também aqueles que vivem em outras áreas, como São Leopoldo, Feijoal, e em áreas mais próximas de núcleos

urbanos, como Filadélfia, Bom Caminho e Porto Espiritual. Esse percurso se reflete em seus dados, por exemplo,

aqueles que se fazem presentes em sua tese de doutorado incluem dados existentes em narrativa coletada e

trabalhada na aldeia Kanimaru.

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125

6.1 CARACTERIZAÇÃO FONÉTICO- FONOLÓGICA DA LÍNGUA TIKUNA

A língua Tikuna possui um sistema tonal, contando com diferentes níveis de altura,

apresentando oposição entre dois tons, um alto e um baixo e, ainda, um tom médio, que funciona

como especificação default (cf. Soares, 1996, trabalho realizado no âmbito da Fonologia

Autossegmental, sob uma ótica derivacional). Já na análise de Soares (2001), que coloca em

evidência uma reinterpretação dos fatos fonológicos do Tikuna sob a ótica da Teoria da

Otimalidade, modelo não derivacional, o tom médio deixa de ser considerado um default e

passa a ser entendido como um tom neutro, não-marcado, estando permanentemente não-

especificado – o que tem efeitos não só sobre a composição do tom médio em Tikuna, mas

também sobre a eliminação de possíveis candidatos a output ótimo na língua (cf. Soares, 2003,

p. 71, nota 10).

O inventário fonológico do Tikuna apresenta as obstruintes /p t k b d g ts dz /, o rótico

/ɾ/, a semivogal /w/ e as nasais /m n ŋ ɳ/. Há, ainda, as vogais orais /a i e u o ɨ / e as nasais /i ɨ ã

õ/ (cf. Soares, 1995). Há a ausência das sibilantes /s z ʃ ʒ / e das laterais, tanto a alveolar /l/

quanto a palatal / ʎ/. Trataremos desse inventário, com mais detalhes, a seguir. A respeito da

ausência das sibilantes em Tikuna, já havia essa menção no texto de Curt Nimuendajú (1982,

p.206), que se refere à língua Tikuna como tendo “frequência de vogais guturais, [...] ausência

de conjucção de consoantes e de todos os sibilantes (s, z, ch, j)”.

Do ponto de vista de uma análise fonológica, em que se busque apenas o contraste, a

língua Tikuna apresenta como fonemas consonantais, conforme Soares (1995), os que são

evidenciados no quadro abaixo.

Quadro 5: Fonemas consonantais em Tikuna

Glotal Velar Palatal Alveolar Labial

Oclusivas

Surdas

ʔ k, kw t p

Oclusivas

sonoras

g d b

Africada

surda

ts

Page 126: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

126

Africada

sonora

dz

Nasais ŋ ɲ n m

Aproximante w

Tepe ɾ

Conforme Soares (1986, 1995), alguns segmentos do quadro fonológico do Tikuna

que ocorrem em início de sílaba se apresentam foneticamente com modificações secundárias,

enquanto outros são realizados de maneira alternante, conforme discriminamos abaixo.

A consoante velar surda é exemplo dos segmentos que se apresentam com

modificações secundárias. Sua realização é condicionada pelo seguinte contexto: quando a

vogal posterior é a central, a aspiração eventualmente pode ocorrer, sendo [kh] a realização de

/k/.

As consoantes velares, surda e sonora, podem ser modificadas por uma labialização.

No que diz respeito à velar sonora, pode ser realizada como [gw] quando se encontra precedendo

a vogal central baixa e pode ser substituída por [w]. Quanto à velar surda labializada, não foram

encontradas ocorrências, nos estudos de Soares, desse elemento precedendo vogal posterior; no

entanto, sua ocorrência foi encontrada em outros ambientes, por exemplo, precedendo a vogal

central e a vogal meio-aberta anterior.

Entre os segmentos consonantais do quadro fonológico do Tikuna que são realizados

de forma alternante estão: /kw/: [kw] e [ɸw]; /w/: [w], [β], [βw]; /k/: [k], [q]; /ts/: [tȿ], [ȿ]; /dz/:

[d] e []. Com base em Soares (1986), exemplificamos algumas dessas realizações alternantes.

A consoante velar labializada [kw] alterna com a fricativa labial, podendo essa última

se apresentar labializada ou não: [ɸw] ou [ɸ]. Exemplos23:

6.1 a. [nikwɛnɛ] ‘ele caça’

6.1 b. [niɸɛnɛ] ‘ele caça’

6.1 c. [nakwa ] ‘ele sabe’

6.1 d. [tȿaɸwa ] ‘eu sei’

23 Exemplos disponíveis em Soares (1986, p. 109).

Page 127: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

127

A consoante [w] alterna, de falante para falante, com a fricativa labial, esta última

podendo se apresentar labializada ou não: [β] ou [βw]. Exemplos24:

6.1 e. [tȿawɨ] ‘milho’

6.1 f. [tȿaβɨ] ‘milho’

6.1 g. [ŋianɛβwa] ‘ele-roça para’

6.1 h. [nanɛwa] ‘ele-roça para’

Nos dados analisados a partir de produção de moradores de Vendaval, Soares (1986,

p. 109) verificou que os sons consonantais [tȿ] e [ȿ], [d] e [] podem se apresentar de forma

alternada na fala de um mesmo indivíduo. Exemplos:

6.1 i. [tȿutȿi] ‘ponta da zagaia’

6.1 j. [ȿuȿi] ‘ponta da zagaia’

6.1 k. [datɨ] ‘homem’

6.1 l. [atɨ]‘homem’

Como variantes aparentemente não-condicionadas, Soares (1986) sustenta que podem

ocorrer na fala do mesmo indivíduo [k] e [q]. Quanto a este último, foi detectado

esporadicamente antes de [a ], [a] e [ɨ].

Considerando-se uma análise fonêmica, conforme aponta Soares (1984, 1986, 1995),

o sistema de vogais em Tikuna apresentaria o seguinte quadro de fonemas:

a) Vogais orais

anterior central posterior

Alto i ɨ u

Baixo e a o

24 Exemplos disponíveis em Soares (1986, p. 109).

Page 128: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

128

b) Vogais nasais

anterior central posterior

Alto i ɨ

Baixo ã õ

Com base nessa análise, segundo Soares (1986, 1995), o Tikuna conta com um sistema

fonológico de seis fonemas vocálicos orais, que são realizados como determinados sons,

conforme explicitamos a seguir. Quando em contato com uma consoante nasal, o fonema

vocálico oral se realiza como vogal nasalizada, tal como mostramos abaixo:

/i/ - [i]

/e/ - [ɛ]

/ɨ/ -[ɨ], [ǝ] (em variação)

/a/ - [ɜ], [ã] (em variação)

/u/ - [u], [ɷ], [õ]

Alguns fonemas vocálicos orais possuem mais de um alofone ao serem realizados

oralmente. Veja abaixo a lista completa, situando-se, aí, os fonemas que ocorrem sob um ou

mais alofone.

/i/ - [i], [ɩ]

/e/ - []

/ɨ/ -[ ɨ], [ǝ],[ɤ], [ɯ]

/a/ - [a]

/u/ - [u], [ɷ], [o]

/o/ - [ɔ]

Page 129: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

129

Os quatro fonemas vocálicos nasais são realizados conforme apresentamos abaixo:

/i/ - [i]

/ɨ/ - [ɨ]

/ã/ - [ã]

/õ/ - [ɔ]

Conforme a análise contida em Soares (1984, p.149-161), o número de fonemas

vocálicos nasais pode ser aumentado, tendo em vista que a distinção vogal oral / vogal nasal é

reforçada com a ajuda da laringalização (creaky-voice) nos seguintes termos: na relação entre

nasalidade e laringalização, os estudos acústicos realizados por Soares (Idem, p. 161)

apresentam evidências de que “a vogal percebida como oral já é ela própria um pouco

nasalizada, tornando-se necessário utilizar, para determinados segmentos, a laringalização

como recurso adicional, ao lado do aumento da nasalidade, para se obter a categoria vogal

nasal”. Essa conclusão, além de permitir que o quadro de fonemas vocálicos nasais em Tikuna

seja aumentado, destrói a possibilidade da existência fonológica de um quadro de vogais nasais-

laringalizadas.

A existência de um quadro fonológico que conte com vogais orais laringalizadas é

ameaçada pela possibilidade de que sons vocálicos orais laringalizados sejam uma modificação

que tem como causa a oclusão glotal.

A respeito das vogais em Tikuna, é importante mencionar que nas décadas de

cinquenta e sessenta do século passado, pesquisadores do Summer Institute of Linguistics,

conforme já mencionamos anteriormente, adotando a teoria tagmêmica, realizaram uma

enumeração detalhada dos elementos êmicos da língua.

Anderson (1959), que realizou sua pesquisa em uma comunidade chamada

Cushillococha, no Peru, postulou a existência de seis fonemas vocálicos orais na língua, que

são: /i, e, ɨ, a, u, o/. Destes fonemas vocálicos, descreveu com detalhes apenas dois, /e/ e /o/.

Segundo ele, /e/ se realiza como /ɛ/ nos seguintes contextos: antes de r, antes de ʔ e em final de

palavras. Quanto ao fonema /o/, o pesquisador afirma haver alternância livre entre [o] e [ɔ].

Além dos seis fonemas vocálicos orais, ainda conforme o autor, o Tikuna possui fonemas

vocálicos nasais, que ocorreriam em contraste com as correspondentes vogais orais. No entanto,

nos dados obtidos por ele, constam apenas cinco vogais nasais: /i, ɨ, ã, u, õ/. A vogal /e/ não foi

identificada nos dados coletados por Anderson.

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130

Em 1960, Lowe publicou três trabalhos resultados de estudos que realizou no Brasil,

mais especificamente, na comunidade Umariaçu, aldeia localizada nas proximidades de

Tabatinga, no Amazonas. Em Lowe (1960a), há a indicação de que a língua Tikuna conta,

fonemicamente, com seis vogais orais, sete vogais nasais e seis vogais laringalizadas.

Foneticamente, as vogais orais são realizadas como evidenciamos a seguir: [i, æ, ɨ, ɩ, a, u, ɔ]; já

as vogais nasais têm a seguinte realização: [i, æ, ɨ, ɩ, ã, u, ɔ]. Quanto a essas realizações, Lowe

(1960a) não considera que constituam problema no que diz respeito à relação fonema/alofone,

no entanto, algumas delas são fonte de dúvida para o pesquisador, por exemplo, /æ/ parece

possuir membros que ele não identifica.

Essa abordagem introdutória acerca dos estudos que envolvem a caracterização

fonético-fonológica da língua Tikuna teve a intenção de evidenciar os campos abertos deixados

pelos primeiros estudos, retomados e ampliados por pesquisas posteriores, por meio das quais

procederemos à análise da variedade do Português Tikuna, buscando-se identificar e explicar

possíveis mecanismos de transferência da L1 na variedade de português usada pelos professores

particpantes de nosso estudo. A seguir, apresentamos como os sistemas consonantal e vocálico

se manifestam na sílaba em Tikuna

6.1.1 A sílaba em Tikuna

A sílaba em Tikuna é apresentada de maneiras distintas em descrições já realizadas

por investigadores que se debruçam/debruçaram sobre esse tema.

Conforme Rodríguez (1987), a sílaba em Tikuna apresenta a seguinte configuração:

possui uma rima que não se ramifica e um núcleo que se ramifica com vogais longas e ditongos

pesados; a posição da coda é resultado de um processo epentético entre uma vogal nasal e uma

consoante oclusiva surda. A posição de coda é, para a pesquisadora, consequência da

propagação do elemento nasal para a direita. No entanto, quanto à posição de coda, a

investigadora apresenta alguns questionamentos, como os que seguem: se essa posição seria

licenciada pelos parâmetros silábicos conjecturados para a língua, o que seria essa nova posição

epentética e como poderia ser explicada sem se falar de algo não-fonológico. A oclusão glotal

é desconsiderada como possível ocupante de uma posição de coda porque não pertence ao nível

fonológico, e o aparecimento da oclusão glotal pode ser previsto tendo como base a ação dos

tons.

Anderson (1959) apresenta a sílaba em Tikuna de uma outra maneira. Segundo ele, a

língua é possuidora de padrões de quatro sílabas, sendo que dois são abertos, do tipo CV e V, e

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131

dois são fechados, do tipo CVʔ e Vʔ. No que diz respeito à oclusão glotal, tal como ocorre nos

padrões fechados, em que esse segmento fecha a sílaba, o pesquisador não evidencia uma

posição definida no que diz respeito a uma construção hierárquica da própria sílaba. Isso porque

os elementos que compõem a sílaba são percebidos como ‘casas’ dispostas de maneira linear.

Soares (1986), ao realizar uma análise prosódica nos termos concebidos por Firth,

descreve as características da sílaba em Tikuna considerando a estrutura prosódica como um

sistema de relações sintagmáticas, isto é, deixa de lado as teorias fonológicas que consideram

os sons a partir de uma visão paradigmática e monossistêmica e assume uma visão sintagmática

e polissistêmica. Dessa forma, descreve a prosódia do início de sílaba, do final de sílaba e da

sílaba como um todo.

Já em Soares (1995), ao focalizar a sílaba no trabalho intitulado “Núcleo e coda. A

sílaba em Tikuna” e, tendo como base o quadro da Fonologia Autossegmental, com atenção à

Geometria de Traços, a pesquisadora apresenta um tratamento para os movimentos, bem como

para os cortes de movimento que ocorrem no plano segmental da língua Tikuna. Por meio da

análise desses movimentos, a pesquisadora provê argumentos em favor de uma posição de coda

na língua, bem como, analisa o papel da oclusão glotal nessa posição, conforme veremos mais

adiante.

6.1.1.1. As margens da sílaba

Os sons consonantais que ocorrem em início de sílaba, conforme aponta Soares (1986,

1995), são os que apresentamos no quadro abaixo:

Quadro 6: Consoantes que ocupam início de sílaba em Tikuna

Glotal Uvular Velar Palatal Alveolar Labial

Oclusivas

Surdas

ʔ q k, kw t p

Oclusivas

sonoras

g, gw d b

Oclusivas

Aspiradas

kh

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132

Africadas

surdas

ʈʂ

Africadas

sonoras

ɖʐ

Fricativas

surdas

ʂ φ, φw

Fricativas

sonoras

ʐ β, βw

Nasais ŋ ɲ n m

Aproximante w

Tepe ɾ

Fonte: SOARES (1986, p. 102; 1995, p.197).

Exemplos:

6.1.1.1. a. po’i [pɔʔi] ‘banana’

6.1.1.1. b. de’tchi [dɛʔtʃi] ‘pirarucu’

6.1.1.1. c. curaü [kʊɾɐɯ] ‘teu nariz’

6.1.1.1. d. kowi [‘kɔβi] ‘estragado’

6.1.1.1. e. yori [dʐɔɾi] ‘mergulhão’

6.1.1.1. f. pawü [paβɯ] ‘aranha’

Do ponto de vista da escola prosódica, adotado por Soares (1986), os sons

consonantais podem estar relacionados à sílaba. O começo da sílaba, em Tikuna, é identificado

pelos seguintes elementos: oclusão, excetuando-se a oclusiva glotal; fricção, sendo esta

precedida ou não de oclusão; nasalidade, excluindo-se a nasal velar; ou pelos sons [w] e [ɾ].

A sílaba como um todo pode ter como traços característicos: a aspiração eventual da

oclusiva velar surda ou, ainda, a labialização de determinados sons consonantais, tais como

[gw], [[ɸw], [ßw].

No que diz respeito ao final de sílaba, este não seria distinguido, de um ponto de vista

prosódico, por qualquer som consonantal, tendo em vista que a oclusiva velar e a nasal velar

também aparecem em início de sílaba, portanto, essas duas consoantes não poderiam ser

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133

identificadas como prosódias, tanto de início quanto de fim de sílaba. Nas palavras de Soares

(1986, p. 111), “a oclusiva glotal e a nasal velar fazem parte de um sistema fonemático”, uma

vez que são comuns tanto ao início quanto ao fim da sílaba. Dessa forma, a pesquisadora

defende que o fim de sílaba não é prosodicamente caracterizado por nenhuma consoante.

Ainda em relação ao final de sílaba, Soares (1986, 1992a,1995) defende que há a

possibilidade de ocorrer oclusiva glotal, bem como uma nasal velar, a qual se constitui como

uma transição entre um som vocálico anterior e uma oclusiva velar posterior, ou ainda, podendo

ser fruto, tal como ocorre na fala de algumas pessoas, de um processo de ressilabificação.

Exemplos:

6.1.1.1. g. de’tchi [dɛʔtʃi] ‘pirarucu’

6.1.1.1. h. tetchi [tɛʔtʃi] ‘umari’

6.1.1.1. i. tchananongi [tȿananogɨ]25 ‘eu carreguei ele/ela’

6.1.1.2 O centro da sílaba

Os sons vocálicos que ocorrem em centro de sílaba, conforme aponta Soares (1986,

1992b, 1995), são os que apresentamos abaixo:

a) orais26:

anterior central posterior

fechado i ɨ ɯ u

ɩ ɷ

meio fechado ə ɤ o

meio aberto ɛ ɔ

aberto a

25 Exemplo disponível em Soares (1986, p. 103). 26 As realizações [ɯ] e [ɤ] não constam em Soares (1986) porque foram percebidas pela pesquisadora na

comunidade de Kanimaru, aldeia pertencente ao município de Amaturá e não em Vendaval, comunidade na qual

Soares realizou investigação com resultados publicados em 1986. No entanto, encontram-se registradas em Soares

(1992).

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134

Veja, abaixo, exemplos com vogais orais, os quais foram registrados durante as aulas

da disciplina Fonologia, ministrada em janeiro de 2018 pela professora Marília Facó Soares na

aldeia Filadélfia:

6.1.1.2 a. to’ü [t] ‘tucandeira’

6.1.1.2 b. pema [pma] ‘vocês’

6.1.1.2 c. bucü [bʊk] ‘criança’

b) nasais:

anterior central posterior

fechado i ɨ ɯ u

ɷ

meio fechado ə õ

meio aberto ɛ ɜ ɔ

aberto ã

Veja, abaixo, alguns exemplos27 com vogais nasais:

6.1.1.2 d. ng [ ] ‘casar’

6.1.1.2 e. ni’titie [nititi] ‘ele toca a música da cultura Tikuna’

6.1.1.2 f. nuu’tchi [nuti] ‘muito brabo, brabo demais’

6.1.1.2 g. nhutchitama [utitama] ‘rins’

6.1.1.2. h. ngunetüü [nt] ‘madrugada’

c) orais laringalizadas

anterior central posterior

27 Exemplos registrados durante as aulas da disciplina Fonologia, ministrada em janeiro de 2018 pela professora

Marília Facó Soares na aldeia Filadélfia.

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fechado i ɨ u

meio fechado o

meio aberto ɛ ɔ

aberto a

Veja, abaixo, exemplos28 com vogais orais laringalizadas:

6.1.1.2. i. te’e [tɛ Ɂɛ ] ‘quem?’

6.1.1.2. j. tü’e [tɨɁ ɛ ] ‘macaxeira’

6.1.1.2. k. woru [βɔ ɾu] ‘coruja’

d) nasais laringalizadas

anterior central posterior

fechado i

meio fechado õ

meio aberto ɛ

aberto

Veja, abaixo, exemplos29 com vogais nasais laringalizadas

6.1.1.2. l. i’e [i Ɂɛ] ‘zarabatana’

6.1.1.2. m. otchana [o tsana] ‘bebezinho’

28 Exemplos disponíveis em Soares (1986, p. 106). 29 Idem (p. 107).

Page 136: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

136

Em Tikuna, além das vogais, as consoantes nasais [n], [ŋ] também podem ocupar o

centro da sílaba. Exemplos30:

6.1.1.2. n. bu’# [bõɁŋ ] ‘criança’

6.1.1.2. o. #ka [ŋ ka] ‘rato’

Como ocupantes de centro da sílaba, ainda podem ocorrer os ditongos, (cf. Soares,

1986, 1992a, 1995), que apresentam dois conjuntos de movimentos aparentemente diferentes.

Um deles foi determinado em itens lexicais isolados (Soares, 1986), o outro conjunto foi

determinado quando Soares (1992a) realizou investigação sobre ritmo em Tikuna e lidou com

a noção de agrupamento fonológico31.

Quanto ao conjunto determinado em itens lexicais isolados, os ditongos apresentaram

as seguintes possibilidades restritas de movimentos:

1. movimento a partir da vogal [a] em direção à posição posterior fechada ou em direção à

posição anterior fechada. Exemplos32:

[aikuma] ‘é verdade’

[nadaɷ] ‘é vermelho; está maduro’

2. movimento a partir da vogal posterior em direção à posição anterior fechada, como [uɩ] e [ɔɩ]

(cf. Soares, 1995);

3. movimento a partir da posição anterior fechada em direção à vogal [a], como [ɩa].

De acordo com Soares (1992a, 1995), os tipos de movimentos permitidos possibilitam

afirmar que as sílabas com ditongo em Tikuna se caracterizam por uma palatalização ou

velarização que se dá entre pontos extremos, conforme discriminado acima. Os pontos são

extremos, tanto no sentido articulatório, quanto da abertura vocálica, ou ainda, em ambos os

sentidos. Quanto ao sentido articulatório, têm-se os movimentos [uɩ] e [ɷɩ] (cf. Soares, 1995,

30 Idem. 31 Tal noção já havia sido utilizada por Soares em trabalho anterior (1991, p. 76): “o agrupamento fonológico é

uma tentativa de determinação de agrupamentos rítmicos sem que esteja na base dessa determinação a idéia de

que a estrutura morfológica e sintática termina por fornecer o domínio maior dentro do qual são desencadeados os

processos fonológicos(...) Para a obtenção de agrupamentos fonológicos, buscamos fragmentar o texto, isto é,

buscamos fazer com que o próprio produtor de um texto ouça e fragmente sua produção ou, não sendo isso possível,

que o texto seja ouvido e fragmentado por outro falante”. 32 (Cf. Soares, 1986, p. 107).

Page 137: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

137

p. 205)33; já no sentido da abertura vocálica, os movimentos são [ɩa], [aɩ] e [aɷ]; em ambos os

sentidos, o movimento é [ɔɩ].

Figura 10: Movimentos vocálicos

No que diz respeito aos agrupamentos fonológicos (cf. Soares, 1992a, 1995), os

ditongos que ocupam o centro de sílaba são, em sua quase totalidade, longos. A ocorrência

desses ditongos faz ver que as qualidades vocálicas que frequentemente se alteram podem sofrer

acréscimos. Esses acréscimos, que são provenientes de um conjunto que conta com um número

pequeno de realizações, modificam o conjunto dos movimentos que evidenciamos acima. Nesse

sentido, àquele conjunto de movimentos discriminado acima, pode ser sobreposto um outro,

que tem relação com movimentos envolvendo qualidades vocálicas diferentes daquelas

mencionadas acima, como sendo o ponto de partida para o movimento e, em alguns casos, o

seu ponto de chegada. Esse segundo conjunto de movimentos, construído com base em

agrupamentos fonológicos e não em itens lexicais isolados, traz acréscimos em relação ao

primeiro conjunto discriminado acima. A natureza diferenciada dos movimentos vocálicos

relacionados aos agrupamentos fonológicos será explicitada abaixo entre: ditongos derivados

de segmentos lexicais simples; ditongos lexicais e ditongos pós-lexicais, associados à

silabificação e à ressilabificação, respectivamente.

Quanto aos ditongos derivados de segmentos lexicais simples, temos os seguintes

movimentos: derivando de /e/, há os movimentos [ɩɛ] e [ɛɨ]; derivando de /a/, os movimentos

[ɩa] e [aɨ]; derivando de /i/, os movimentos [ɯɩ] e [ɤɩ]. De acordo com Soares (1995), os

segmentos lexicais /e/, /a/ e /ɨ/ originam tipos diferentes de movimentos; no entanto, eles

compartilham uma característica: são processados, no interior do morfema, a partir de uma

33 Disponível em Soares (1995, p. 205).

Page 138: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

138

informação que provém de uma consoante adjacente que pode colocar, dependendo do caso, o

núcleo silábico longo em direção a uma velarização ou a uma palatalização.

A velarização de núcleo vocálico é vista por Soares (1995) como um caso de pré-

vocalização, tendo em vista que o movimento em direção à posição central fechada é resultado

da ditongação de um segmento lexical simples, da seguinte maneira: a vogal mais aberta, sendo

produzida de maneira anteriorizada em relação a outras vogais e participando de um núcleo

vocálico longo, é seguida por uma consoante velar. Diante desse processo, um traço consonantal

assume posição vocálica ligada à consoante e é transmitido à vogal precedente. Nos exemplos34

abaixo, a ocorrência de um componente central fechado na vogal ditongada é ocasionada por

conta de uma tendência à assimilação de um traço que pertence à consoante seguinte [k], que é

não-anterior:

˦ ˩ ˦ ˩

nɛɨka na ɨka

provavelmente provavelmente

Soares (1995) defende que o processo de velarização de um núcleo silábico ocorre de

maneira facultativa.

Já no que diz respeito à palatalização de núcleo vocálico, Soares (1995) evidencia que

este é um movimento decorrente de um processo de pós-oralização, conforme descrevemos a

seguir.

O movimento que tem como ponto de partida a posição anterior fechada em direção à

base não-arredondada é tendência ocasionada após consoante africada, a qual se apresenta, na

língua Tikuna, com ligeira retroflexão. Veja exemplos35 abaixo:

˧ ˧ ˩˨ ˨ tʂa na dʐi a ʔo ‘eu lavo’ 1p.-objeto interno- lavar

˧ ˧ ˩ ˨ tʂa na dʐi a ʔo ‘eu recebo, eu ganho’ 1p.-objeto interno- receber, ganhar

34 Exemplo disponível em Soares (1995, p. 210). 35 Exemplos disponíveis em Soares (1995, p. 214).

Page 139: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

139

Conforme Soares (1992a; 1995), uma vez que, na produção de consoantes retroflexas,

há sempre o envolvimento do ápice da língua e que, nos dados aos quais a pesquisadora teve

acesso, a vogal que segue a consoante retroflexa é não palatal, é de se prever que um movimento

no plano segmental seja iniciado na posição anterior fechada, seguida por uma consoante com

ligeira retroflexão. Diante desse processo, a palatalização do movimento vocálico se justifica e

pode ser vista como ocasionada por um processo de pós-oralização.

Os movimentos vocálicos presentes nesta têm como base o quadro de movimentos

apresentados em Soares (1986, 1992a), ampliados e rediscutidos em Soares (1995). Conforme

a pesquisadora, a constituição dos movimentos evidenciados no quadro abaixo não é motivada

pela duração vocálica, uma vez que não houve, nos dados disponíveis, segmentos vocálicos

que, sendo basicamente monotongos, se tornam ditongos por serem longos. Sendo assim, pode-

se esperar que segmentos breves também possam vir a ser ditongos. Além disso, esses

movimentos vocálicos não são o resultado de processos de silabificação ou ressilabificação,

tendo em vista que não são esses movimentos vocálicos resultantes do contato entre

determinados segmentos vocálicos que passam a compor uma mesma sílaba.

Figura 11: Movimentos que expressam processos segmentalmente condicionados30

Os movimentos expressos acima são processos segmentalmente condicionados e se

configuram como uma base para a evidenciação de regras fonológicas que atuam na língua.

Além disso, se constituem como um conjunto de dados que possibilitam a solução do problema

da ramificação ou não do núcleo silábico no nível do léxico.

Conforme análise presente em Soares (1992a, 1995), o quadro dos segmentos

vocálicos fonéticos e fonológicos do Tikuna apresenta o valor binário para o traço abertura.

Nos termos de Clements (1989), o traço de abertura, integrando uma teoria da sonoridade,

i

a

ɨ ɯ

ɛ

ɩ ɤ

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140

organiza um único parâmetro articulatório e acústico, a saber: a altura vocálica. Essa

organização se dá em uma série de registros e sub-registros. Essa concepção, sendo aplicada ao

Tikuna, possibilita que se vejam os segmentos vocálicos organizados conforme representação36

abaixo:

Por fim, quanto aos ditongos lexicais e pós-lexicais, Soares (1995) sustenta que os

movimentos expressos abaixo resultam de um processo de silabificação e/ou ressilabificação.

Figura 12: Movimentos resultantes de processos de silabificação/ressilabificação37

Já no movimento a ɩ, movimento considerado como uma palatalização

condicionada segmentalmente, o ponto terminal é proveniente de duas fontes. Uma é a vogal

anterior que é basicamente fechada e a outra é a vogal anterior aberta.

Quanto à fonte da vogal anterior fechada, sua realização sempre ocorre como um

segmento fechado no interior do morfema, independentemente da velocidade que o falante

imprime ao enunciado que produz, até mesmo em situações em que, também em função da

velocidade da fala, o falante precisa silabar. Veja exemplos38 foneticamente transcritos:

˨ ˧ ˨

naɩ akh ɨ

pau, árvore – filho,pé ‘pé de árvore’

36 Dipsonível em Soares (1992a, p. 375; 1995, p. 209). 37 Idem (p. 219). 38 Exemplos disponíveis em Soares (1991, p. 112; 1992a, p. 367; 1995, p. 219).

ɩ ɷ

u

ɔ

a

Page 141: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

141

˧ ˦ ˨

naɩ akh ɨ ...

pau – filho ‘pé de árvore’

˦ ˨ ˧

naɩ goa ...

pau, árvore – fim

Quando ocorre uma situação de fronteira em que um morfema termina em /a/ e o que

o segue se inicia ou é todo ele constituído por segmento anterior fechado, em que há a partícula

‘x’ constituindo sílaba com a vogal que a precede, não se alteram os traços desse segmento, ou

seja, ele continua sendo anterior e fechado, conforme se pode visualizar abaixo39.

... nagɷ tȿɨ dɛ aɩ i tȿɔɾɨ ...

3p.-dentro 1p.-falar x x meu, minha ‘...dentro dele eu falo, a minha...’

Tal como acontece na situação descrita acima, no movimento ɔ ɩ o ponto terminal

também possui como fontes a vogal anterior aberta e a vogal anterior fechada, conforme se

pode visualizar nos exemplos abaixo40:

˧ ˥

pɔʔi ‘banana’

˩ ˨ ˦ ˩˨

... ŋoatȿi βɔɩ também nesse momento

Já no que se refere ao movimento a ɷ, a fonte de seu ponto terminal é uma: a vogal

labializada não-aberta. Em termos de constituição da sílaba, há um resultado diferente

relacionado à realização dessa vogal labializada não-aberta. Se essa vogal é realizada de

maneira fechada, há a ditongação, conforme se pode visualizar no exemplo41 abaixo:

˦ ˩˨ ˧

na taɷʔma i ... 3p.-negação x

39 Exemplos disponível em Soares (1995, p. 220). 40 Exemplos disponível em Soares (1992a, p. 370; 1995, p. 221). 41 Exemplo disponível em Soares (1995, p. 223).

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142

Por outro lado, se essa vogal é realizada com um mínimo de abertura, não ocorre a

ditongação e as vogais em contato permanecem em sílabas diferentes, como no exemplo42

abaixo:

˦ ˧ ˨ ˧

naʔ taoma 3p.-negação

Ainda é preciso mencionar, no que diz respeito aos movimentos uɩ e ɷ ɩ, conforme

Soares (1995), esses movimentos não apresentam diversidade de fonte quanto ao seu ponto

terminal, isto é, a fonte é sempre uma vogal anterior fechada; também não apresentam

peculiaridades quanto à silabificação.

Os movimentos vocálicos que foram apresentados acima e que estão relacionados à

ditongação fazem parte de um conjunto ao qual se contrapõe um conjunto maior, formado por

sequências de segmentos que, mesmo estando em contato, pertencem a sílabas diferentes. Vale

mencionar que esse conjunto maior pode conter dois subconjuntos: um constituído por

segmentos vocálicos orais ou que contêm nasalidade em igual medida; outro constituído por

segmentos vocálicos, sendo um oral e o outro nasal. Soares (1992a; 1995) expressa esses dois

subconjuntos por meio dos quadros que reapresentaremos abaixo. Esses quadros evidenciam os

segmentos da forma como estão sendo fonologicamente representados.

42 Idem.

Page 143: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

143

Quadro 7: Sequência de segmentos vocálicos que se realizam como orais ou com nasalidade em igual medida43

Quadro 8: Sequência de segmentos vocálicos em que um dos segmentos manifesta nasalidade e o outro não44

Nesses quadros, podemos visualizar os elementos que não permitem dois segmentos

vocálicos ocuparem uma mesma sílaba, tendo em vista que, na maioria dos casos, os dois

segmentos não podem possuir a mesma abertura ou altura vocálica.

43 Disponível em Soares (1992a, p. 373; 1995, p. 224). 44 Disponível em Soares (1992a, p. 374, 1995, p. 225).

Page 144: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

144

Para a língua Tikuna, há uma restrição, em termos do traço abertura, quanto à altura

vocálica. A partir disso, conforme Soares (1992a; 1995), é possível formular a primeira

restrição quanto à participação de dois segmentos vocálicos em uma mesma sílaba, conforme

expresso abaixo:

Conforme Soares (1992a, p. 376; 1995, p. 225), os elementos da representação acima

têm a seguinte abreviatura: ẟ = sílaba; N= núcleo; X= unidade do esqueleto prosódico, expressa

tempo; r=nó estrutural que domina a estrutura fonológica do segmento; sl= supralaríngeo;

abert=abertura; aberto n= aberto 1 ou aberto 2; α= variável que significa identidade de valor

positivo ou negativo.

A formulação da restrição, tal como expresso na representação acima, constitui um

filtro fonético que age no léxico e não permite que um enorme número de sequências constitua

um mesmo núcleo silábico. A essa restrição, tem-se a exceção que permite que entrem na

constituição do núcleo silábico as seguintes sequências: /ui/, /oi/. Que são foneticamente

realizadas como

Uma segunda restrição lexical tem relação com o fato de que é possível a uma

sequência ocupar o núcleo de uma mesma sílaba desde que se atente a um jogo de graus de

ui ɷi oi ɔi

uɩ ɷɩ oɩ ɔɩ

|

N

X X

| |

| |

r r

| |

sl sl

| |

abert abert

| |

aberto n aberto n

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145

abertura, atendendo à seguinte restrição: o segundo segmento não pode ter o valor positivo para

traço de abertura, conforme se pode visualizar no esquema45 abaixo.

Essa restrição deixa de fora do núcleo silábico as sequências terminadas em /a/ ([+

aberto 1] e [+ aberto 2] e as sequências terminadas em /e/ e /o/ ([+ aberto 2]). As restrições

formuladas por Soares (1995) vinculam a formação do núcleo à abertura vocálica.

6.1.1.3 A oclusão glotal e seu papel na sílaba

Em Tikuna, a oclusão glotal pode assumir a função de abrir e travar a sílaba. Quando

abre a sílaba, a oclusão glotal adquire a mesma distribuição dos sons consonantais que ocorrem

em Tikuna. Dessa forma, ela pode ser interpretada como um elemento pertencente ao nível

segmental. Veja exemplos46 abaixo:

˨ ˦

ŋɔbɨ ‘jabuti’

˨ ˦

kɔwɨ ‘veado’

˨ ˦

kɔʔɨ ‘castanheiro, caju’

45 Disponível em Soares (1992a, p. 378; 1995, p. 227). 46 Exemplos disponíveis em Soares (1995, p. 235).

|

N

X X

| |

| |

r r

| |

sl sl

|

abert

|

[+ aberto n ]

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146

Em início de sílaba, a oclusão glotal separa duas vogais, e pode ser entendida como

um elemento inserido nesse contexto com a função de rearticular duas vogais que,

originalmente, seriam consideradas hiato. Soares (1992a, 1995) apresenta, como prova desse

fato, exemplos47 do tipo que reaplicamos abaixo.

˧ ˥

pɔʔi ‘banana’

˧˥

pɔi ‘banana’

Se consideramos a visão de que a oclusão glotal é elemento inserido entre duas vogais,

a sua presença, conforme pode ser visto acima, impede o hiato; enquanto que a sua ausência

pode permitir a presença do hiato e é acompanhada de ressilabificação de segmentos vocálicos

em sequência. A oclusão glotal, vista sob esse ângulo, relaciona-se à constituição da sílaba,

devendo ainda ser conciliada com alguns fatos.

O primeiro desses fatos é o de que a língua conta com hiato, o qual se apresenta tanto

em texto fragmentado quanto no texto produzido.

Quanto aos hiatos existentes em texto fragmentado, Soares (1992a,1995) atesta que

podem ser encontrados no interior de sequências morfofonêmicas realizadas de forma

sistêmica, sem oclusão glotal, conforme a pesquisadora identificou na fala de todos que

participaram da fragmentação de um texto.

Outro fato está relacionado ao que segue: a ausência da oclusão glotal entre vogais não

é simetricamente acompanhada de ressilabificação, como pode ser comprovado pela

inexistência, no interior de uma mesma sílaba, de sequências do tipo /ei/ [ɛɩ], eu [ɛɷ], /ou/ [ɔɷ],

as quais seriam, conforme Soares (1992a,1995), possíveis respostas de que a língua disporia

para evitar o hiato no caso de não haver inserção da oclusão glotal entre as vogais que compõem

essas sequências.

Ainda conforme a pesquisadora, o que resolveria esse último fato seria o próprio

condicionamento que pesa sobre a ressilabificação, tendo em vista que a ressilabificação tem

como condicionamento uma diferença específica de sonoridade. Tal fato explica a razão de nem

sempre a ressilabificação ocorrer onde não houve inserção de oclusão glotal.

47 Exemplos disponíveis em Soares (1992a, p. 380; 1995, p. 236).

Page 147: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

147

A existência de hiatos em Tikuna deixa de ser problemática se a inserção de oclusão

glotal for vista como tendência para que o hiato seja evitado. Diante disso, a inserção da oclusão

glotal é facultativa e, o processo pelo qual ela é inserida pode ser relacionado à ressilabificação,

do seguinte modo: o processo de ressilabificação é facultativo e, se não ocorre a ressilabificação

facultativa, ocorre a epêntese facultativa.

A partir dos estudos que realizou, Soares (1992a, 1995) sustenta a visão de que a

oclusão glotal entre vogais é elemento inserido. Dessa maneira, não possui caráter fonológico.

Já quando fecha a sílaba, a oclusão glotal se manifesta em diferentes situações,

podendo ser encontrada nos agrupamentos fonológicos e em certos itens lexicais isolados.

Ao fechar a sílaba, a oclusão glotal ocorre sem possibilidade de previsão, no entanto,

conforme Soares (1992a, 1995), sua realização está sistematicamente ligada a certos itens

lexicais, e, também de forma sistêmica, não ocorre oclusão glotal em outros itens lexicais,

conforme se pode verificar no quadro48 abaixo.

Presença sistemática da oclusão glotal Ausência sistemática da oclusão glotal

˩ ˦

ŋaʔβɨ ‘porco selvagem’

˧ ˧

paβɨ ‘aranha’

˩˧ ˧

ŋaʔβɛ ‘cuia’

˧ ˧

baβɛ ‘tartaruga’

˧ ˨

naʔnɛ ‘arma’

˦ ˧

nanɛ ‘filho’

Além de sua ocorrência ser imprevisível, em final de sílaba, a oclusão glotal pode ser

considerada como possuindo um papel fonológico, desde que ela seja vista como tendo a

capacidade de afetar, além da vogal precedente, de forma a laringalizá-la, como também o tom

portado por essa vogal, de forma a abaixá-lo, conforme se observa nos dados49 abaixo.

48 Adaptado de Soares (1995, p. 239). 49 Disponíveis em Soares (1995, p. 240).

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148

˧

tɔ ‘outro’

˩

tɔ ʔ ‘outro’

˦ ˨

naka ‘fígado dele’

3p.-fígado

˦ ˩

naka ‘por ele’

3p.-por

A oclusão glotal possui aqui um caráter imprevisível e, por isso, tem um papel

distintivo. Ao final de sílaba, a oclusão pode ser considerada lexical e possibilita que se tenha

na língua uma posição de coda como resultado de uma rima ramificante. Porém, para que essa

posição de coda seja ocupada, é preciso que algumas situações de ocorrência, as quais são

variadas, sejam satisfeitas.

Uma das situações diz respeito àquela em que a oclusão glotal representa um corte

abrupto na sonoridade de uma vogal que pertence a uma sílaba longa. Conforme Soares (1992a,

1995), nesse caso, a oclusão glotal pode se apresentar com a mesma distribuição daquele que é

o ponto de menor sonoridade dentro de um ditongo. Veja exemplos50:

˨ ˦

ɲoʔmã ‘agora’

˨ ˦

dʐɔʔni ‘enquanto isso’

˨ ˧ ˦ ˨

tʂɔɨ nina ʔ me 3p.-amarrar

˨ ˧ ˦ ˩˨

tʂɔɨ ninaɩ me 3p.-amarrar

50 Disponíveis em Soares (1995, p. 241).

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149

Uma outra situação ocorre quando a oclusão glotal se apresenta como fecho de

ditongo. Nesse caso, sua presença está invariavelmente relacionada ao final de um morfema,

no entanto, ele próprio pode não se encontrar em situação final de enunciado. Soares (1992a,

1995) observou essa situação tanto em agrupamento fonológico quanto em itens lexicais

isolados, conforme exemplos51 abaixo.

˧ ˨ ˧ ˧

Agrupamento fonológico: ... tʂa dʐaɷʔ maɾɛ ... 1p.-pegar-só

˧ ˩ Itens lexicais isolados: paɩʔ βa ‘árvore da família do araçapeva’ araçapeva-unidade taxonômica

Ainda uma outra situação é aquela em que a oclusão glotal se apresenta após um

segmento laringalizado, tanto se esse for longo ou breve, conforme pode se ver nos exemplos52

abaixo:

˧ ˧ ˩ ˧ ˨

tʂanaʔ ma ʔ ɯtʂa 1p-objeto interno-matar-nominalizador eu

˨ ˩˨ ˦

tʂa ʔnoʔɯ... 1p-colocar-nominalizador

Nesse caso, a laringalização é ocasionada pela oclusão glotal, a qual pode atuar tanto

sobre a vogal breve ou longa que precede essa laringalização. Soares encontrou exemplos da

atuação facultativa sobre a vogal breve ao realizar uma comparação no interior dos dados

analisados por ela, com por exemplo, aqueles que envolvem prefixo pessoal em verbo,

conforme exemplos53 disponibilizados pela pesquisadora:

˨ ˩˨ ˦

tʂa ʔnoʔɯ... 1p- colocar- nominalizador

˦ ˧ ˨ ˦

... itʂaʔ tɨʔɨ aspecto 1p- perder

51 Disponíveis em Soares (1995, p. 241). 52 Disponíveis em Soares (1995, p. 242). 53 Disponíveis em Soares (1995, p. 242).

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150

No que diz respeito à laringalização de vogal longa, essa foi encontrada também por

Soares em dados que Anderson (1959) registrou e analisou como possuindo vogal oral seguida

de oclusão glotal e utilizados pelo pesquisador como prova do contraste entre vogal seguida de

oclusão glotal e vogal laringalizada. Nos dados de Anderson (1959), V’= vogal laringalizada;

número subscrito = tom, altura fonêmica; 1= tom alto; 2= tom meio-alto; 5= tom baixo. Veja

exemplo54 abaixo.

˩˧ ˦

[ŋɔ ɾɛ] ‘quanto’ /no’3-5re2/ ‘alguns’

versus

˨ ˥

[ŋɔ ɾi] ‘primeiro’ /no5ri1/ ‘alguns’

Ao comparar os dados de Anderson (1959), com os seus próprios dados, Soares (1986,

1992a, 1995), nota que há uma laringalização facultativa de vogal longa. Já no que diz respeito

à ocorrência frequente de laringalização no núcleo vocálico longo de determinados itens

lexicais nos dados de Anderson (1959), há, conforme Soares (1995), também a possibilidade

de que, no nível da realização, seja recuperado o elemento causador dessa laringalização, no

caso a oclusão glotal. Diante disso, Soares (1995) mantém a hipótese de que a laringalização

ocorre por conta de uma modificação ocasionada pela oclusão glotal.

As três situações apresentadas anteriormente estão relacionadas com a presença de

oclusão glotal, no interior da sílaba, manifestada de forma não condicionada, facultativa.

Porém, Soares (1995) nos apresenta outras três situações envolvendo a ocorrência de oclusão

glotal no interior da sílaba, agora, condicionada. Veja as situações a seguir:

1. oclusão glotal resultante de silabificação. Nesse caso, a oclusão glotal entra em relação

de substituição com a pausa, e se manifesta entre sílabas longas, também transcritas por

Soares (1992a, 1995) como sílabas de igual duração ( ). Veja exemplos55 abaixo:

˦ ˧ ˨ ˦

gɷʔɯʔgɷma

sempre

54 Disponível em Anderson (1959). 55 Disponível em Soares (1995, p. 244).

Page 151: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

151

˨ ˦ ˧ ˨

... ŋɛ taʔni na

onde de 3p-

2) oclusão glotal associada à realização de altura por conta de uma tensão muscular aumentada

das cordas vocais após um tom ascendente. Nesse caso, a oclusão glotal pode ser interpretada

como oclusiva glotal pós-vocálica e pode servir à demarcação de um agrupamento rítmico.

Sendo assim, pode também desempenhar as mesmas funções desempenhadas pela pausa, como

é o caso do dêitico, que, como no exemplo56 ilustrado abaixo, se encontra marcado com o caso

locativo:

˧ ˨ ˦

dɀimawa aquele (previamente referido) locativo

˧ ˦ ˧ ˦ ˧ ˨

ŋi i t imaagɷ 3p.fem. objeto 3.p. íntima-matar/surrar

˧ ˨ ˦

dɀimawaʔ aquele (previamente referido) locativo

‘naquele, ele a surrou, naquele’

Além disso, a oclusão glotal pode, em conjunto com a altura (pitch) alta que a provoca,

marcar interjeições, conforme pode ser visto nos exemplos57 abaixo.

˨ ˦ ˧

dɨ ka ʔdɀa... olha x

˦ ˨ ˧ ˦

kɨ ʔ ɲɷmata êh agora

56 Disponível em Soares (1995, p. 245). 57 Disponível em Soares (1995, p. 245).

Page 152: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

152

Pode, ainda, servir à expressão da ênfase, conforme se pode visualizar no exemplo58

abaixo, com o locativo [gɷ], que em circunstâncias que não evidenciam ênfase se realiza

portando altura (pitch) meio-baixa:

˩˧ ˥ ˧ ˦

aɩɾɷɐg ɷʔ cachorro- ter locativo

3) oclusão glotal ocorrida como resultado de realizações vocálicas recuadas. Nesse caso, a

oclusão glotal se manifesta ao final de agrupamento fonológico constituído por uma palavra

apenas ou ao final de palavra em final de agrupamento fonológico, ocasião em que ocorre

alternância com oclusiva velar não-explodida, conforme exemplos59 a seguir:

˧ ˩

... tȿ i ma ʔ 1p- matar

˧ ˩

... tȿ i ma ʔk 1p- matar

A ocorrência da oclusiva velar não-explodida também foi encontrada por Soares (1992

a, 1995) em situação final e após realização vocálica recuada em itens isolados. Veja exemplos60

abaixo:

˨ ˦

boʔɨk ‘menina, criança’

˨ ˦

boʔɯk ‘menina, criança’

Conforme Soares (1995), ainda que condicionada, a oclusão glotal deve ser possuidora

de um lugar na sílaba e esse lugar pode ser determinado considerando-se as três situações

apresentadas acima.

Os dados de Soares (1992a, 1995) mostram que a oclusão glotal, ao se manifestar como

fecho de ditongo, ocasiona uma maior duração do ditongo. Tal fato justifica a postulação de

uma rima que se ramifica e contém como núcleo um ditongo. Diante disso, Soares (1992a,

1995) defende ser possível falar em rima com três tempos. A esse respeito, a pesquisadora

formula a representação61 que ilustramos a seguir:

58 Disponível em Soares (1992a, p. 392; 1995, p. 246). 59 Disponível em Soares (1992a, p. 393; 1995, p. 246). 60 Disponível em Soares (1992a, p. 393; 1995, p. 246). 61 Disponível em Soares (1992a, p.394; 1995, p. 247).

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153

˧ ˨ ˧ ˧

... tʂa dʐaɷʔ maɾɛ ... 1p.-pegar-só

Quando a oclusão glotal representa um corte abrupto na sonoridade de uma vogal

pertencente a uma sílaba longa, essa se apresenta com distribuição semelhante com o ponto de

menor sonoridade dentro de um ditongo. Conforme Soares (1995), como a vogal que sofre o

corte da oclusão glotal pode não ser ela própria longa, postula-se a suposição de que a oclusão

glotal participa do núcleo, conforme exemplos62 a seguir:

˨ ˧ ˦ ˩˧

tȿɔɨ ni naɩ me 3p-amarrar

˨ ˧ ˦ ˨

tȿɔɨ ni naʔ me 3p-amarrar

Soares (1995) determinou para a oclusão glotal em final de sílaba a ocupação de uma

posição de coda fonológica, diferentemente do que ocorre quando a oclusão glotal abre a sílaba.

Nessa posição, Soares (1992a, 1995) sustenta a visão de que a oclusão glotal não possui caráter

fonológico.

62 Disponíveis em Soares (1992a, p.395; 1995, p. 248).

|

Rima

Núcleo Coda

|

Pico |

| |

X X X

| | |

a ɷ ʔ

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154

Cabe dizer que, tanto em início quanto em final de sílaba, o caráter fonológico da

oclusão glotal é alvo de questionamento (cf. Soares, 1995).

A seguir, abordaremos, com base em Soares (1984, 1986, 1992a, 2001, 2003) aspectos

relacionados a uma característica da língua Tikuna: o tom.

6.1.1.4 Os Tons em Tikuna

A partir da publicação de Anderson, em 1959, o mundo científico soube que Tikuna é

uma língua tonal, e possui o sistema de cinco níveis fonêmicos de altura. Na América do Sul,

não havia registros de nenhuma outra língua que tivesse, tal como se tem em Tikuna, um

intricado sistema tonal (cf. Anderson, 1959, p. 77).

Fonologicamente, o sistema tonal que o Tikuna possui é complexo, tendo em vista que

as manifestações fonéticas ocorrem de uma tal forma que não se pode prever, de modo claro e

evidente, todas as motivações dos processos que dão origem a tais manifestações.

Em análises realizadas mais recentemente e, até o momento, o número de tons

subjacentes (ou fonológicos) propostos para a língua Tikuna foi reduzido. Conforme Soares

(1995b, 1996, 1998), na língua Tikuna são materialmente encontrados seis níveis fonéticos de

altura (pitch): alto, meio-alto, médio, meio-baixo, baixo e extra baixo. Já os tons fonológicos

podem ser reduzidos a dois, que são os tons alto e baixo, considerando-se o médio como default.

Para Montes Rodríguez (1987; 1995), os tons em Tikuna podem ser reduzidos a três: alto, médio

e baixo.

Segundo Soares (1994), o tom médio é contrastivo em Tikuna, mas não apresenta

atividade fonológica. A pesquisadora considerou o tom médio como não-especificado na

representação fonológica subjacente, utilizando como argumento o fato de que esse tom não

deve se fazer presente em certos morfemas para que ocorra uma expressão perfeita de processos

ligados aos tons, entre os quais está a dissimilação tonal, ligada ao Princípio do Contorno

Obrigatório (OCP ou PCO). A não ocorrência do tom médio nas representações

subjacentes/fonológicas e a sua materialização fonética em Tikuna faz com que essa língua se

insira no debate que envolve a subespecificação e/ou não especificação em fonologia (cf.

Soares, 1998, 2001).

Segundo a análise de Soares (1998, 2001), os tons fonológicos alto e baixo não se

propagam automaticamente em Tikuna, uma vez que sua propagação não é obrigatória e está

relacionada unicamente às representações finais. No entanto, para que esse processo ocorra, são

necessários alguns requisitos: (a) é necessário que haja adjacência silábica; (b) a palavra

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155

morfológica é o domínio de propagação, e a vogal não-especificada é, do ponto de vista tonal,

aquela que se constitui como o legitimador indireto dessa propagação. Ainda conforme a análise

de Soares, é a ideia de legitimação, associada àquela da não-especificação do tom médio, que

pode dar conta dos fatos do Tikuna referentes à palavra morfológica.

Em relação aos tons alto e baixo, estes podem alcançar realizações fonéticas extremas,

isto é, mais alta e mais baixa, devido a alguns efeitos, tais como o alinhamento do tom com a

margem da palavra e o papel da oclusão glotal.

No que diz respeito às sílabas em Tikuna, Soares (1984, 1986) nos informa que o tom

é um traço da sílaba e que a cada sílaba é atribuída uma dentre cinco diferentes alturas. Veja

exemplos63 abaixo:

˧ ˧ ˧

tȿanamõ ‘eu teço ele’

˧ ˧ ˧

tȿanamõ ‘eu envio ele’

˧ ˧ ˨

tȿanamõ ‘eu comi fruta fresca’

˧ ˥

kɔɾi ‘senhor, patrão’

˧ ˥

kupi ‘tipo de peixe’

Sendo uma característica da sílaba, o tom pode ser de nível ou de contorno, havendo

coincidência entre os pontos extremos do contorno com os cinco níveis de altura existentes64.

Em relação a tons de nível e contorno em Tikuna, Soares (1986) nos apresenta as

seguintes situações:

a) todos os monossílabos são longos e apresentam tom de nível ou contorno,

conforme exemplos65 abaixo:

˨

ŋõ ‘tipo de fruta’

63 Disponíveis em Soares (1986, p. 113). 64 Por haver coincidência entre os pontos extremos de um contorno tonal com níveis de altura, isso levará Soares,

em seus trabalhos sobre o tom em Tikuna, a interpretar os contornos tonais como manifestações fonéticas de tons

que, fonologicamente, são de nível. 65 Disponíveis em Soares (1986, p. 113-114).

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156

˩˨

ŋəŋ ‘sim’

˥

tɷ ‘puxão’

˨

tɔ ‘outro’

˩

tɔ ʔ ‘macaco da noite’

b) os dissílabos apresentam uma sílaba longa e uma breve, sendo que nas formas

consideradas verbais, a sílaba longa, de forma geral, é parte constituinte da raiz.

Apresentam tons de nível médio e contorno, conforme podemos visualizar nos

exemplos66 abaixo:

˧ ˦

kupi ‘tipo de peixe’

˧ ˦

kupɛ ‘você dorme’

˧ ˥

taɾa ‘terçado’

˧ ˥

tɔɾa ‘rã’

c) os trissílabos apresentam uma sílaba longa, esta podendo ser a última, a penúltima

ou a antepenúltima. Em se tratando de formas consideradas verbais, a sílaba longa

é parte constitutiva da raiz. Os tons são de nível e contorno, conforme se pode

visualizar nos exemplos67 a seguir:

˧ ˦ ˥

66 Disponíveis em Soares (1986, p. 114). 67 Disponíveis em Soares (1986, p. 114-115).

Page 157: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

157

tȿanaβi ‘eu corto (com faca)’

˧ ˦ ˦

tȿanatɔ ‘eu planto’

˧˥ ˨ ˧

tɛta nɨ ‘gaviãozinho pequeno’

˧ ˧˥ ˧

taβama ‘rio abaixo’

d) os polissílabos possuem uma sílaba longa, podendo ser a última, a penúltima ou a

antepenúltima, tal como ocorre com os dissílabos e trissílabos, nas formas

consideradas verbais, a raiz possui a sílaba longa. Os tons são de nível e de

contorno. Veja exemplos68:

˩ ˧ ˧ ˦

iȿa napa ‘eu seco’

˧ ˥ ˦

natȿa mɛtɨ ‘rosto dele’

˧ ˥ ˦

tȿanadɀɩa ʔo ‘eu lavo’

Ainda em relação à palavra, cabe dizer que, conforme Soares (1986), há poucas

palavras em Tikuna que terminam por uma consoante glotal ou por uma vogal surda, como nos

exemplos69 abaixo:

˩

tɔ ʔ ‘macaco da noite’

˧ ˥ ˦

natȿa mɛtɨ ‘rosto dele’

Devido à baixa ocorrência de palavras terminadas por oclusão glotal, Soares (1986)

defende que não há, em Tikuna, uma prosódia característica de final de palavra. Já no que diz

68 Disponíveis em Soares (1986, p. 115). 69 Idem.

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158

respeito ao ensurdecimento da vogal em final de palavra, a pesquisadora defende que esse fato

se manifesta ocasionalmente e, ainda, pode ser uma característica própria de final de enunciado,

tendo em vista que a palavra na qual esse ensurdecimento se apresenta foi dita isoladamente e

palavras isoladas se manifestam em final de anunciado.

Soares (1986) não constatou a existência de grupos tonais na sentença, ou seja,

unidades de entoação não se estendem por sobre partes de uma sentença nem constituem, nesse

nível, contrastes significativos. De acordo com a pesquisadora, o que ocorre em Tikuna é uma

sequência de tons lexicais que se estende por toda a sentença. As sentenças são produzidas em

ritmo silábico, apresentando sucessão regular de sílabas longas e breves.

Ainda que não tivesse sido identificada, na sentença, a ocorrência de grupos

fonológicos nos dados registrados e analisados por Soares (1986), a pesquisadora nos apresenta

algumas observações, considerando-se a relação entre a duração silábica, que é um traço da

palavra, e o tom, que é um traço da sílaba. As observações, que no texto original se dão

acompanhadas de dados, são as seguintes (Idem, p. 131-132):

a) em fala lenta, não há ocorrência, de modo geral, de assimilações tonais;

b) em fala rápida, o tom de uma sílaba breve que ocorre em final de palavra sofre uma

assimilação pelo tom de sílaba longa adjacente;

c) em fala rápida, o tom de uma sílaba breve que ocorre em início de palavra pode ser

assimilado pelo tom da sílaba breve da palavra anterior; como resultado, tem-se a

formação de ditongo no nível segmental;

d) em fala rápida, o tom de uma sílaba breve pode sofrer uma assimilação pelo tom de

sílabas vizinhas que fazem parte de uma mesma sequência tonal, quebrando-se, assim,

uma determinada modulação tonal.

O texto “Subespecificação Tonal e Tom Default: O Caso Tikuna”, de Soares (2001),

é fruto de um projeto de pesquisa sobre acento de altura e tom em Tikuna, e apresenta questões

que se relacionam à subespecificação tonal e tom default nessa língua, tendo como aporte

teórico a Teoria da Otimalidade. Em estudos anteriores (1992, 1995a, 1995b, 1996, 1997,

1999a), Soares analisou alguns aspectos do nível tonal em Tikuna, sendo que essas análises

foram efetivadas em termos derivacionais e os resultados alcançados podem ser resumidos da

seguinte forma:

Page 159: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

159

a) pré-associação tonal no léxico, tendo os tons alto e baixo como constituintes das

representações subjacentes, por exemplo70:

1) pukɨre ‘murapiranga’

B

2) pakara ‘tipo de cesto’

A

b) um filtro lexical que inspeciona estágios não-finais da derivação e que exclui

sequências de três sílabas associadas ao mesmo tom, conforme representação71

abaixo.

* V V V (T= tom)

T

c) dissimilações tonais, como meio de impedir violações ao Princípio do Contorno

Obrigatório (que proíbe identidades adjacentes na mesma camada)72.

d) ao final de uma derivação, pode ocorrer a inserção do tom médio como default

ø M tom médio (default)

Exemplos73:

70 Disponível em Soares (1996, p. 14; 2001, p. 13; 2003, p. 66). 71 Adaptado de Soares (1996, p. 15; 2001, p. 14; 2003, p. 16). 72 Conforme Soares (1996), os processos que envolvem dissimilação tonal em Tikuna podem ser expressos, em

termos lineares, do seguinte modo: α T - α T/ α T. Já em termos não-lineares, a analista sustenta que a expressão

da dissimilação tonal pode ocorrer por meio do desligamento do tom alvo, seguido da inserção do tom oposto ao

do tom fonte. Conforme Soares (1996), a dissimilação tonal é a resposta que o Tikuna oferece para que não ocorram

sequências de tons adjacentes iguais. Dito de outra forma, a dissimilação tonal é, em Tikuna, uma resposta ao

PCO, que proíbe, na camada tonal, o que segue: [α T] [α T]. 73 Disponível em Soares (2001, p. 15; 2003, p. 66).

pukɨre

pakara

orawe

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160

No que diz respeito ao acento, de acordo com Soares (1992a, 1999, 2003), o Tikuna

apresenta um acento linguístico e um acento rítmico. Quanto ao acento linguístico, a

pesquisadora o analisa como morfologicamente condicionado, encontrando-se regularmente

localizado na sílaba mais à esquerda da raiz e tendo como seu correlato físico a duração longa.

Em Tikuna, as raízes usualmente não possuem mais que três sílabas e esse fato contribui para

que itens lexicais com no máximo três sílabas e somente uma raiz não seguida por sufixos

possam ter como sílaba acentuada a primeira, a segunda ou a terceira sílaba, a contar da direita

para a esquerda. Já no que se relaciona ao acento rítmico, Soares o analisa como estando ligado

a uma aparente colaboração entre duração e altura, surgindo quando uma sequência sofre

acréscimos para a direita por um processo de sufixação e é ultrapassada a extensão limite de

três sílabas.

A propósito do acento linguístico, veja os exemplos a seguir (notação: * = acento

linguístico abstrato; = duração longa; = duração breve; parênteses indicam representações

mais abstratas; colchetes indicam a constituição interna das palavras. Veja exemplos74:

*

tȿa dɀa ‘eu me criei’ ( [ tsa [dza] ] )

1p –criar

*

na gɷ ‘dentro dele’ ( [ [ na] gu ] )

3p - dativo

74 Disponíveis em Soares (2001, p. 16; 2003, p. 67).

M B

˧ ˧ ˨

[pokiɾɛ]

‘murapiranga’

M A

˧ ˧ ˥

[pakaɾa]

‘tipo de cesto’

M B

˧ ˧ ˨

[ɔɾaβɛ]

‘barata’

Page 161: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

161

Como exemplificação da presença e dos efeitos do acento rítmico, veja (conforme esta

notação: *= acento rítmico 75; ˦ = altura meio-alta; ˨ = altura meio-baixa; ˥ = altura alta; ˩ =

altura baixa; ˧ = altura média; A = tom alto; B= tom baixo) o seguinte exemplo76:

˧ ˦ ˦ ˥ ˧ ˦ * *

˷nõkɨmaʔ ɨ tȿi ma] ‘muitíssimo antigo’ ( [ [ [ nukɨma] ɨtsi] ma] )

antigo- intens1 –intens2

B A A B A

Quanto à sequência foneticamente realizada acima, correspondente a ‘muitíssimo

obrigada’, Soares (2001) esclarece que a altura meio alta se distribui por duas sílabas, mas estão

associadas a um único tom na camada tonal. Tal fato não fere o PCO. A restrição identificada

como PCO (Princípio do Contorno Obrigatório), que proíbe uma sequência de especificações

tonais idênticas.

Ainda conforme Soares (2001), em Tikuna, não ocorre proliferação de melodias tonais,

portanto, não há a possibilidade de repetição de um mesmo tom por sobre um conjunto extenso

de sílabas. Pelo contrário, o que ocorre na língua é o favorecimento de uma alternância de tons

ocasionada, em boa parte, por processos que operam na camada tonal. Ainda conforme a

pesquisadora, há uma relação entre a estrutura prosódica e a camada tonal, tendo em vista que

aquela parece usufruir de informações que provêm desta. Dessa forma, a pesquisadora sustenta

que a duração não é responsável por criar ou atrair a altura alta, nem o acento secundário faz

isso. É o acento abstrato o responsável por criar a duração e essa duração pode vir a coincidir

com um ponto da camada tonal que faz parte de uma alternância.

Em termos de especificação ou não especificação tonal em Tikuna, as análises de

Soares (2001) revelam que as alternâncias tonais são devidas ao PCO; que todas as vogais

devem ser portadoras de um tom e que existe uma tendência para que a estrutura seja

preservada. No entanto, essa tendência pode sofrer alteração se estiverem em jogo interferências

de ordem perceptual. Para que se mantenha a estrutura, um tom no output depende da existência

de um tom no input; e um tom sem especificação no output corresponde a um tom sem

especificação no input.

75 Soares (2001) indicou o acento rítmico por um asterisco maior. Estamos utilizando a mesma representação

adotada pela pesquisadora. 76 Disponível em Soares (2001, p. 16; 2003, p. 68).

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162

Ainda em relação ao tom, no que tange à língua Tikuna, em Soares (2003), a

pesquisadora apresenta os caminhos de investigação que trilhou em projetos que ela coordena

e mostra a interação entre acento de altura e tom com base na Teoria da Otimalidade. Conforme

os resultados das análises de Soares, a língua Tikuna não apresenta uma restrição tonal ou uma

restrição de estrutura prosódica sob a dominação das Restrições de Proeminência – Tom. Tal

fato apresenta uma significativa importância que sinaliza para outras maneiras de ver a

interação entre tom e estrutura prosódica. Os resultados de Soares também apontam para a

importância do PCO na relação entre tom e acentos, sob diferentes formulações, que evidencia

o seguinte: o PCO parece ser necessário para que a necessidade acentual possa ser suprida.

As conclusões a que Soares (2003) chega mostram que em Tikuna, as Restrições

Tonais dominam as Restrições de Estrutura Prosódica, isso quer dizer que o tom precede o

acento. Por conta dessa precedência, a estrutura prosódica é submetida a processos provenientes

do nível tonal, apresentando possíveis violações de uma estrutura prosódica, isto é, SEM PÉ.

6.2 ASPECTOS DA MORFOLOGIA E DA SINTAXE DA LÍNGUA TIKUNA

Lowe (1960 c), um estudioso que fez seu trabalho com base na teoria tagmênica, a

qual foi fortemente adotada, na época, pelos linguistas do Summer Institute of Linguistics (SIL),

realizou uma abordagem preliminar da sintaxe Tikuna e, nessa abordagem, tratou das orações

transitivas e intransitivas. Conforme o linguista, nas orações intransitivas, a ordem é

extremamente fluida, o núcleo da oração é o verbo ou o complexo verbal. A proposta do

linguista é que as orações intransitivas apresentam uma estruturada em camadas, do seguinte

modo: o verbo ou o complexo verbal é o núcleo; uma posição facultativa de direção-locacional

fica na primeira camada fora da camada verbal; tempo e modo, que são duas posições

facultativas, ficam na segunda camada fora da camada verbal.

Segundo o que Lowe (1960c) estabelece, as posições que precedem e seguem

imediatamente o núcleo podem ser ocupadas por direção-“locacional”, que é facultativa,

assumindo a seguinte forma: (±DL). Segundo o pesquisador, quando somente uma posição de

direção-“locacional” é preenchida, esse preenchimento ocorre sempre antes do núcleo. No

entanto, ambas as posições de direção “locacional'” - pré-núcleo e pós-núc1eo- podem ser

preenchidas.

Page 163: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

163

Quanto ao preenchimento da posição tempo (T) e modo (M), Lowe (1960c) afirma

parecer haver uma estrutura em camadas organizada de maneira simétrica, cuja fórmula77

reapresentamos abaixo:

±T/±M (±DL + S± DL) ±T/ ± M

Ainda em relação às orações intransitivas, Lowe (1960c) sugere que, no caso de a

segunda camada a partir do núcleo estar ocupada, a direção locacional possivelmente pode

anteceder ou proceder o núcleo, conforme as ordens constatadas nos dados a que teve acesso:

±T + V ±DL; ±T ±DL + V; ± DL +V ±T

Quanto às orações transitivas, Lowe (1960 c) declara que podem ter as seguintes

formas: ± O + A; + A± O. Sendo que A, conforme o linguista, é uma ação tagmênica obrigatória

manifestada por um verbo ou um complexo verbal; enquanto o O é um objeto tagmênico

facultativo manifestado por um nome ou uma expressão nominal.

Como as orações intransitivas e as transitivas não precisam apresentar um objeto,

Lowe (1960c) chegou a levantar suspeita sobre a diferença êmica entre elas.

A respeito das orações intransitivas e transitivas em Tikuna, Anderson (1966) enxerga

a seguinte diferença: as orações transitivas são constituídas por verbos transitivos, ou seja, por

raízes transitivas e, até mesmo, intransitivas. Essas raízes seriam identificadas em conformidade

com os elementos com os quais cada uma poderia ocorrer. Segundo o pesquisador, a língua

Tikuna é possuidora de cinco classes maiores de verbos transitivo, os quais estariam

subdivididos, por exemplo, tendo como base a ocorrência do objeto externo, os alomorfes do

objeto interno e no conjunto de alomorfes do prefixo referencial de pessoa rɨ.

Anderson (1966) classificou os verbos de acordo com os seus componentes e/ou de

acordo com os componentes da oração, ou seja, os objetos externos. Já as orações foram

classificadas conforme o tipo de verbo presente nelas. Conforme Soares (1992a), o linguista

não apresenta em seu trabalho a relação entre o verbo e seus argumentos, restringindo-se apenas

a oferecer um inventário de verbos e orações em Tikuna.

Em 1992, Marília Facó Soares defendeu sua tese apresentando, dentre vários outros

estudos, uma análise, com base na Teoria Gerativa, em que a ordem é vista como uma

consequência de princípios mais gerais da Teoria de Parâmetros especificamente determinados.

77 Lowe (1960c, p. 4)

Page 164: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

164

Em 2000, Soares publica o livro “O supra-segmental em Tikuna e a teoria fonológica -

Investigações de aspectos da sintaxe Tikuna, que traz a abordagem analisada e ampliada do

primeiro volume da tese defendida em 1992. No prefácio ao livro, a autora apresenta-o como

sendo sobre a teoria dos casos em sintaxe. Para mostrar a aplicabilidade e resoluções que a

teoria adota para possíveis problemas que se apresentariam às suas postulações, a autora se vale

de sentenças e trechos de textos produzidos por falantes Tikuna e analisados por ela, tendo

como referência basilar versões pré-minimalistas da teoria de princípios e parâmetros, também

conhecidas como teoria de regência e vinculação (GB). Em seus estudos, Soares chama a

atenção para a relação que existe - e que deve ser considerada – entre a sintaxe e a fonologia.

Conforme, Soares (1992a, 2000), a língua Tikuna é, tipologicamente, nominativo-

acusativa. A ordem dos constituintes maiores de uma sentença é flexível, e a ordem Sujeito

Objeto Verbo (SOV) permite que se fale em vinculações em Tikuna e, especificamente, de

vinculações e ordem SVO.

Devido à flexibilidade em relação à ordem de palavras em Tikuna, um modo de se

chegar a uma variação de posicionamento entre os constituintes maiores de uma sentença é o

seguinte: na língua Tikuna, os constituintes são ordenados segundo um parâmetro estrutural ou

segundo uma variada manifestação casual.

No que diz respeito ao parâmetro estrutural básico, este é núcleo final e se manifesta

com predicação, atribuição de papéis temáticos e casos estruturais à esquerda.

Já a manifestação casual inclui os casos estruturais (nominativo e acusativo), os casos

morfológicos, casos via cadeia com clíticos e casos via modificação do verbo.

Quanto aos casos estruturais, o nominativo se manifesta via concordância. Na análise

de Soares (1992a, 2000), a concordância em Tikuna é entendida como manifestação da relação

de predicação, e não como algo que está contido em Flex. Já o caso acusativo ocorre via

regência pelo verbo e pelas posposições e adjacência a esses regentes.

Ainda conforme Soares (1992a, 2000), os casos não-estruturais mencionados acima

têm a sua presença na língua Tikuna vinculada ao rompimento da ordem estrutural. Por

exemplo, os casos via modificação do verbo, ou seja, a marcação da diátese verbal, se

manifestam com a presença de marcas de objeto direto interno. Tais casos podem sofrer uma

redução ao mecanismo anterior ocasionada por conta da possível incorporação do clítico ao

verbo.

Além da distinção entre um parâmetro básico estrutural e uma manifestação casual

variada, a língua Tikuna também apresenta uma distinção entre o que é o predicado e o que é o

adjunto. Quanto aos adjuntos, estes são gerados na base e as estruturas em adjunção abarcam

Page 165: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

165

sintagmas nominais posicionados após o núcleo, ‘adjetivos’, orações ‘relativas’, sintagmas

‘adverbias’ não-argumentais.

A diferença entre o caráter argumental e o caráter adjuntivo de um constituinte tem um

papel restritivo sobre a ordem, tendo em vista que é desse caráter que um constituinte pode

retirar o seu ordenamento em relação ao núcleo, que é o atribuidor de função temática.

Em relação ao verbo em Tikuna, Soares (1992a, 2000) atesta que a existência de

modificações na forma verbal faz com que o verbo funcione como uma fronteira na língua,

tendo em vista que um argumento interno não é simplesmente posicionado à direita do verbo.

Há, também, a íntima ligação entre o verbo e a frase nominal complemento. Dito de outro modo,

em Tikuna, há uma relação entre os elementos constitutivos do sintagma verbal no seu nível

mais básico, isto é, a íntima ligação existente entre O e V. O que comprova isso é o uso de

marcas morfológicas que, posicionadas fora do SV, readquirem sua autonomia e, por conta

disso, são consideradas como posposições e não como afixos, como é o caso quando essas

marcas ocorrem dentro do SV.

Ainda em relação ao verbo, Soares (1992a, 2000) revela que o fato de existirem

modificações na forma do verbo e o de haver íntima conexão entre O e V indicam que o verbo

é o elemento que tem o papel de permitir e limitar certos comportamentos sintáticos. Isso quer

dizer que o verbo, além de ser fronteira na língua, também é o núcleo da sentença, e é do núcleo

que se originam certas informações e que, consequentemente, poderão ser acrescidas outras. A

sintaxe Tikuna, tal como foi analisada e apresentada por Soares, tem as suas principais questões

relacionadas à teoria do Caso.

Em Tikuna, há o tópico sentencial morfologicamente marcado, posicionado na

margem esquerda da sentença. Além do tópico, o Tikuna conta um sistema de clíticos e um

sistema de marcação temporal bem particular. Isso porque os clíticos são comuns em línguas

pro-drop, ou seja, em línguas em que o sujeito é omitido e é representado de forma abstrata por

pro em orações finitas declarativas ou interrogativas. O Tikuna é uma língua pro-drop, no

entanto, é preciso que sejam investigadas as categorias funcionais que funcionam como sítios

de adjunção para os clíticos.

Já em relação ao Tempo, ainda conforme Soares (1992a, 2000), em Tikuna, essa não

é uma categoria funcional à qual os clíticos possam se adjungir, como ocorre, por exemplo, em

grego e nas línguas românicas padrão, em que o Tempo tem sido considerado como uma das

categorias funcionais às quais os clíticos se adjungem. Esses fatos em relação ao tópico e ao

Tempo apresentam implicações para a teoria gramatical. Quanto ao tópico, a implicação diz

Page 166: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

166

respeito à assimetria entre sujeito e objeto; quanto ao Tempo, diz respeito ao seu estatuto

categorial nas línguas naturais.

A seguir, vamos apresentar, resumidamente, alguns dos elementos referentes à sintaxe

da língua Tikuna, abordados nessa introdução da seção.

6.2.1 Ordem de palavras

A língua Tikuna conta com uma sintaxe complexa, privilegiando construções com

tópico, em detrimento da posição de sujeito, candidata a vazio estrutural, conforme análise de

Soares (1990). Esse fato tem relação com a não geração de um sujeito interno a um vP.

Quanto à ordem superficial de palavras, conforme já dissemos, há uma flexibilidade,

tendo sido apontadas por Soares (1990, 1992a, 1992b, 2000, 2002b), principalmente, as

chamadas ordens SOV, SVO e OVS. Nos trabalhos de 1992a e 2000, Soares utilizou a Teoria

do Caso para explicar a aparente flexibilidade da ordem de palavra em Tikuna. Para isso, a

pesquisadora considerou importante investigar qual a relação entre o verbo e seus argumentos

na língua objeto de estudo, investigação que implicou lidar, no quadro teórico em questão, com

categorias vazias.

6.2.1.1 A ordem SOV

Nos dados analisados por Soares (1990, 1992a, 1992b, 2000, 2002b), a pesquisadora

identificou que em Tikuna há sentenças construídas seguindo a ordem SOV, em que o verbo é

precedido de dois argumentos, sendo o primeiro o agente e, o segundo, o paciente, que sofre o

resultado objeto da ação. Veja exemplos78 abaixo:

Maria pacara i-ü ga ine

Maria cesto 3PF-fazer x ontem

‘Maria fez cesto ontem’

Reinaldo airu ni-ma'

Reinaldo cachorro 3p-matar

78 Disponíveis em Soares (1990, p. 80; 1992a, p. 17; 1992b, p. 91; 2000, p. 26, 2002b, p. 1-2)

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167

‘Reinaldo matou o cachorro’

Maria rü Elisa-si i- dau

Maria TOP Elisa-piolho 3PF-procurar

‘Maria catou piolho da Elisa’

Na ordem SOV, o objeto aparece antes do verbo e o sujeito pode ser considerado como

um tópico natural da sentença. A respeito da ordem focalizada, Soares (1990, 1992a, 1992b,

2000) atesta que o que poderia ser considerado como sujeito aparece, muitas vezes, seguido

pela partícula rü. Além disso, essa partícula também aparece, de forma facultativa, em orações

intransitivas, após agente, como nos exemplos79 abaixo:

Reinaldo rü ni-fene i ngewa

Reinaldo TOP 3P-caçar x hoje

‘Reinaldo foi caçar hoje’

Reinaldo ni-fene i nhumã

Reinaldo 3P-caçar x agora

‘Reinaldo foi caçar hoje’

A respeito dessa mesma partícula (rü), conforme se pode visualizar acima, nas orações

transitivas, pode acontecer de a partícula não aparecer após o agente. Tal fato indica rü não é

identificadora de sujeito. Com base nesses fatos, Soares (1990, 1992a, 2000) considera essa

partícula como marca de tópico, por poder, além de outras coisas, se seguir ao que não é um

argumento do verbo.

A ordem – sem a ajuda de qualquer outro dispositivo – é, às vezes, suficiente para

indicar as funções sintáticas. Isso porque quando os argumentos indicadores de agente e

paciente antecedem o verbo, ambos não recebem necessariamente uma marca morfológica e a

ordem pode bastar para que agente e paciente sejam identificados.

79 Disponíveis em Soares (1990, p. 81-82, 1992a, p. 18-19; 2000, p. 26-27)

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168

A possibilidade de marcação de caso no segundo argumento, que é o paciente, aumenta

quando esse apresenta o traço [+animado]. Isso faz ver que a marcação de caso no objeto se dá

por razões semânticas e é ilustrada por meio do uso de um morfema a que Soares (1992a, 1992b)

se refere como ‘dativo’.

No que diz respeito à concordância verbal, na ordem SOV, o verbo concorda apenas

com a primeira frase nominal. Veja exemplos80 abaixo:

Peduru Luiza-ü ni-wü-para

Pedro Luiza-DAT 3P-coçar-perna

‘Pedro está coçando a perna da Luiza’

Luiza Peduru -ü iya-wü-para

Luiza Pedro-DAT 3PF-coçar-perna

‘Luiza está coçando a perna do Pedro’

Conforme Soares (1992a, 2000), a concordância manifesta entre o verbo e o primeiro

sintagma nominal é a forma como a língua trabalha para mostrar a relação entre um predicado

e seu sujeito.

A concordância que ocorre entre o verbo e o primeiro sintagma nominal tem um lugar

na teoria dos Casos, nos seguintes termos: a concordância faz saber o caminho pelo qual o caso

nominativo é atribuído ao sujeito. É importante frisar que essa atribuição, nas construções

focalizadas, ocorre da direita para a esquerda.

No que se refere às propriedades de marcação de caso em Tikuna, essa língua, que

pode apresentar caso morfologicamente expresso, não é ergativa, e sim nominativo-acusativa.

Nos exemplos que utilizamos acima como ilustrativos da ordem SOV, podemos identificar um

objeto direto ao lado esquerdo do verbo e adjacente a ele. Esse objeto pode ser entendido como

regido pelo verbo, o qual atribui ao objeto o Caso acusativo, sendo que essa atribuição ocorre

da direita para a esquerda,

Dessa forma, em Tikuna, a atribuição de Caso e das funções temáticas de agente e

paciente ocorre da direita para a esquerda no interior de uma ordem cuja estrutura é

caracterizada por ser núcleo final, ou seja, a ardem SOV. Vale dizer ainda que é gramatical a

80 Disponíveis em Soares (1990, p. 82, 1992a, p.19-20; 2000, p. 27)

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169

presença de objeto indireto em posição pré-verbal, tendo em vista que tal ocorrência mantém

as expectativas geradas pela atribuição de Caso e sua manifestação em uma ordem estrutural.

6.2.1.2 A ordem SVO

Conforme a análise de Soares (1990, 1992a, 1992b, 2000), sentenças organizadas na

ordem SVO são comuns em Tikuna. Elas possuem um verbo que, sob o viés da transitividade

semântica, é transitivo prototípico, ou seja, é um verbo que tem como sujeito um agente e como

objeto um paciente. Nessas sentenças, o argumento que manifesta o paciente, o resultado ou o

objeto da ação (P), está localizado à direita do verbo e é precedido por determinadas partículas

que, conforme a intuição de falantes nativos sobre a língua, identificam o item que as segue

como ‘feminino’ ou ‘masculino’81. Veja exemplos82 abaixo:

Reinaldo na-ya-ma ga airu ga üpaüra

Reinaldo ele-objeto-matar x cachorro x tempo passado (recente)

‘Reinaldo matou o cachorro faz dias’

Bu'ü na-na-yau ya nuta

menino ele-objeto-pegar x pedra

‘O menino pegou a pedra’

As mesmas partículas, que são tratadas na tradução literal de Soares como x estão

relacionadas, ainda conforme a intuição dos falantes sobre a língua, a uma noção de tempo,

conforme se pode visualizar a seguir: i ‘não-passado’; ya ‘não-passado’; a ‘não-passado’. Essas

partículas alternam com ga ‘passado’.

Ainda em relação aos traços da ordem SVO, Soares (1990, 1992a, 1992b, 2000)

defende que não basta o objeto estar simplesmente posicionado à direita do verbo, tendo em

vista que, para que esse posicionamento tenha lugar, faz-se necessário que o verbo contenha,

no seu interior, um morfema que, na análise de Soares, está ligado à expressão da noção

‘objeto’, como acontece nas sentenças acima. A noção ‘objeto’ é interna ao verbo e assume a

81 Conforme Soares (1992b), as informações de alguns informantes expressam que tais partículas são termos

relacionados à altura da voz, sendo que ‘feminino’ se refere a um nível de altura baixo e ‘masculino’ a um nível

de altura alto. Ainda de acordo com a linguista, essa categorização da altura pode ser estendida ao item que

imediatamente segue a partícula. 82 Disponíveis em Soares (1990, p. 83; 1992a, p. 22; 1992b, p. 94; 2000, p. 28-29).

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170

função de sinalizar que em um enunciado há um argumento nominal que é o paciente, o

resultado, o objeto da ação. Em Tikuna, de modo geral, esse argumento se encontra à direita do

verbo em sentenças como as exemplificadas acima. Essa regularidade de ocorrência torna

possível o reconhecimento do argumento a partir da noção ‘objeto’ interna à forma verbal.

De acordo com Soares (1990, 1992a, 1992b, 2000), a expressão da noção ‘objeto’

interna à forma verbal é um modo de se estabelecer uma concordância entre o verbo e o

argumento paciente, objeto da ação.

Caso o objeto se encontre à direita do verbo e esse não expresse internamente a noção

‘objeto’, um clítico estará localizado à esquerda do verbo com marcação de caso e correferente

ao objeto nominal posposto, como nas sentenças83 abaixo:

Yatü nü-’ü i ni-’u i ore-güi

homem 3p.-dativo ele-contar x história-plural

‘O homem conta histórias’

Airu nü-’üi na-ngõ i bü-’üi

cachorro 3p.-dativo ele-comer x menino (criança pequena)

‘O cachorro mordeu o menino’ (= O cachorro mordeu ele o menino)

Em sentenças como as exemplificadas acima, o clítico é quem carrega consigo a

possibilidade de identificação do argumento nominal localizado à direita do verbo como objeto

direto. O clítico se caracteriza por conter informações relativas à pessoa e por desencadear uma

coindexação forçosa entre ele e o argumento nominal à direita do verbo. A ocorrência de

construções com clítico em Tikuna sustenta a tese de que o clítico está ligado à esfera do verbo

e, estando ligado a essa esfera, se aproxima da marca 'objeto' interna ao verbo, constituindo

também característica da ordem SVO.

6.2.1.3 A ordem OVS

A ordem OVS apresenta o sujeito nominal posposto ao verbo, sendo precedido pelas

partículas que antecedem o objeto nominal quando esse se encontra à direita do verbo (como

83 Disponíveis em Soares (1992a, p. 24; 1992b, p. 96; 2000, p. 30).

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171

ocorre na ordem SVO). Além disso, na ordem OVS, o objeto nominal é morfologicamente

marcado por um sufixo dativo, conforme se pode visualizar nos exemplos84 abaixo.

Luiza- ü iya-wü-para i Elisa

Luiza-dativo 3PF.-coçar-perna x Elisa

‘Elisa está coçando a perna da Luiza’

Luiza- ü iya-me i Elisa

Luiza-dativo 3PF.- lavar-mão x Elisa

‘Elisa está lavando a mão da Luiza’

Viuma-ü na-ngõ ya airu

Vilmar-dativo 3p-rnorder x cachorro

‘O cachorro mordeu Vilmar’

Conforme Soares (1990, 1992a, 1992b, 2000), a marcação do objeto nas sentenças

OVS resulta não propriamente do fato de estar posicionado antes do verbo, tendo em vista que

nesse caso o objeto não necessita de qualquer marca. Além disso, Soares (1992b) esclarece que

a marcação do objeto também não ocorre por razões semânticas, haja vista que, na ordem em

questão, o objeto será obrigatoriamente marcado, tanto no caso de codificar um argumento com

traço [+ animado], quanto no caso de codificar um argumento com traço [- animado]. Diante

disso, pode-se concluir que a marcação do objeto na ordem OVS não possui uma motivação

semântica e resulta do fato de o sujeito nominal se apresentar posposto ao verbo. Ainda resta

dizer que, na ordem OVS, o verbo nunca manifesta internamente a noção ‘objeto’,

diferentemente do que se pode constatar na ordem SVO.

6.2.2 Sobre as noções de aspecto e tempo

Antes de tratarmos do aspecto, mister se faz que apresentemos ao leitor em que

consiste essa categoria, que tanto é confundida com o tempo. De acordo com Comrie (1976), o

tempo verbal (tense) e o aspecto não são desconectados entre si; ao contrário, guardam íntima

84 Disponíveis em Soares (1990, p. 93; 1992a, p. 149; 2000, p. 118).

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172

relação. É preciso entender, no entanto, que ambas as categorias se relacionam de forma

diferente com o tempo (time), o momento de uma determinada situação.

Segundo Comrie (1976, p. 5), tempo verbal (tense) é uma categoria dêitica, ou seja,

localiza determinadas situações no momento em que essas ocorrem. Geralmente, mas não

exclusivamente, tais situações se dão no momento presente, podendo também fazer referência

a outras situações realizadas em outros momentos. Já o aspecto não está vinculado ao momento

em que a ação acontece, mas sim à estrutura interna da ação. Dito de outro modo, o aspecto não

se confunde com o momento em que um evento ocorre, mas, sim, com a circunscrição temporal

interna desse evento.

Aproximando-se dos postulados de Comrie, Payne (1997) afirma que o tempo se

associa a uma sequência de ações no momento da ação expressa em uma dada situação. Já o

aspecto está relacionado à estrutura temporal interna de uma situação; por exemplo, passado

concluso ou inconcluso.

6.2.2.1 As noções de Aspecto e Tempo na Sintaxe da língua Tikuna

De acordo com Soares (2008), nem todas as noções aspectuais na língua Tikuna seriam

abrigadas por uma mesma categoria funcional, sendo que algumas não estariam vinculadas a

uma categoria funcional propriamente dita. Além disso, as categorias de Tempo e Aspecto

apresentariam uma relação de independência e poderiam se manifestar como categorias

funcionais diferentes. Haveria na língua Tikuna uma categoria funcional Aspecto, independente

daquela que poderia abrigar noções temporais.

No âmbito dos estudos sobre categorias funcionais, é necessário, também, tratar de

uma categorial funcional chamada de pequeno verbo ou v-zinho, que também se manifesta

como um “núcleo com conteúdo semântico, dando, por exemplo, ao evento descrito pelo verbo

uma interpretação ativa, agentiva ou durativa” (SOARES, 2008, p. 52-53, com base em Arad,

1999). Há, ainda, evidências de que, na sintaxe da língua Tikuna, o conteúdo semântico pode

ser abrigado na categoria funcional pequeno verbo. Tal resultado foi alcançado quando se tentou

determinar o conteúdo do núcleo do sintagma aspectual e do núcleo do sintagma do pequeno

verbo (o núcleo v-zinho).

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173

6.2.2.2 A categoria funcional pequeno verbo (ou v-zinho) e a projeção Aspecto

Para que um morfema aspectual seja considerado abrigado pelo pequeno verbo, esse

deve ter um traço categorial verbalizante. Dito de outra forma, um morfema aspectual somente

será considerado como abrigado pelo v-zinho se fizer com que a base morfológica na qual se

encontra passe à condição de verbo. Além dessa exigência, é preciso que, como pequeno verbo,

o morfema aspectual imponha a presença de um argumento na posição de seu especificador.

Segundo Soares (2008), caso em uma determinada língua existam nomes e verbos cuja

estrutura morfológica exiba raiz acrescida de sufixo aspectual e efeito semântico regular do

sufixo, não será possível atribuir a propriedade de verbalizador a esse sufixo aspectual. Nessa

situação, a estrutura (raiz+sufixo aspectual) pode ser categorizada, “tornando-se um verbo ou

um nome a partir da junção de um morfema funcional pequeno verbo ou pequeno nome

fonologicamente nulos”. (SOARES, 2008, p. 53)

6.2.2.3 Sobre estruturas acategoriais em Tikuna e noções aspectuais

A partir da obtenção e análise de dados, Soares (2008) atesta que os sufixos aspectuais

-ãtchi e -cü’ü, da língua Tikuna utilizada no lado brasileiro fazem parte de uma estrutura

acategorial, uma vez que não possuem um traço categorial verbalizante. Isso acontece porque

esses sufixos apresentam como característica o fato de poderem ou não ocorrer em uma

estrutura verbal. Dados coletados e analisados por Soares permitem sustentar que esses sufixos

podem ser utilizados tanto em estruturas verbais como nominais, ou seja, estruturas que não

trazem em si a sua própria definição categorial. Eis alguns exemplos85:

pe-ãtchi

dormir – DURAÇÃO CURTA, LIMITADA

na – dawenü – ãtchi

3P – olhar – DURAÇÃO CURTA, LIMITADA

‘Ele deu uma olhadinha’

bua –cü’ü ya ngu’e

85 Exemplos disponíveis em Soares (2008, p. 54).

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174

? - AÇÃO REPETIVITVA E RÁPIDA x canoa

‘canoa que balança (balançante )

Tchama tchã-ya-bua-cü’ü

3PS 1PS-OI- ? – AÇÃO REPETITIVA E RÁPIDA

‘Eu o balancei’

Tendo em vista que os sufixos aspectuais -ãtchi e -cü’ü fazem parte de estruturas

acategoriais, é necessário, para que se obtenha um verbo a partir desta estrutura, um molde

sintático no qual haveria um pequeno verbo ou v-zinho fonologicamente nulo, conforme o

esquema86 abaixo.

[v (fonologicamente nulo) [RAIZ + ãtchi]]

[RAIZ + cü’ü]]

Ainda em relação a estruturas acategoriais em Tikuna, Soares (2010, p. 213)

argumenta que os morfemas –ãtchi e -cü’ü se juntam a uma raiz, mas não são capazes de

categorizá-la; fazem parte, por isso, de uma base acategorial. Para que ocorra a categorização,

é preciso que a combinação da base acategorial [RAIZ + cü’ü] ou [RAIZ+ ãtchi] seja adjungida

ao pequeno verbo ou v-zinho, em movimento obrigatório para a esquerda. Nesse caso, o

pequeno verbo ou v-zinho, fonologicamente nulo, verbaliza essa estrutura. Veja-se o

diagrama87 arbóreo a seguir:

86 Disponível em Soares (2008, p.54) 87 Elaborado com base em Soares (2010, p. 213)

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175

ѵP

ѵ’

ѵ BASE

[RAIZ + ãtchi]

ѵ [RAIZ + cü’ü]

ø

Adjunção da base acategorial [Raiz + ãtchi] / [Raiz+ cü’ü] ao ѵ

fonologicamente nulo

Os sufixos – ü e - etcha e as noções aspectuais verbalizantes

O que caracteriza os sufixos – ü ‘continuativo e – etcha ‘ habitual’ é o fato de esses

fazerem parte da estrutura verbal, o que, de acordo com Soares (2008), possibilita que sejam

considerados como possuidores de um traço gramatical verbalizante.

- Sobre o sufixo – ü: apresenta a noção de algo contínuo, de um evento ou estado de longa

duração, cujo término não é indicado/explícito/previsto. Veja os dados presentes em Soares

(2010, p. 208):

na – pe- ü

3P – dormir – CONTINUATIVO

‘ele dorme/dormiu continuamente

na – tchibü – ü

3P – alimentar /comer – CONTINUATIVO

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‘ele continua/continuou a se alimentar/comer’

- Sobre – etcha: indica um fato que ocorre rotineiramente, algo que é habitual, conforme os

dados apresentados por Soares (2010, p. 208):

tcha - powae – etcha

1P – pescar[com vara] – HABITUAL

‘eu vivo pescando’

tcha – tchibü – etcha

1P – alimentar, comer – HABITUAL

‘eu vivo comendo/me alimentando’

Tais sufixos aspectuais, uma vez que possuem um traço categorial verbalizante,

assumem o papel próprio da categoria de pequeno verbo ou v-zinho (v). Dito de outra forma,

adquirem o papel de verbalizadores até que, em um momento derivacional seguinte, a raiz

verbal seja adjungida a v em movimento obrigatório para a esquerda. Veja abaixo a estrutura e

o diagrama arbóreo que explicitam o que fora mencionado acima.

Estrutura para a obtenção da categoria verbo a partir de sufixo aspectual no papel de pequeno

verbo:

[v (ü) [RAIZ]]

[v (etcha) [RAIZ +]]

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177

Adjunção da raiz ao pequeno verbo

ѵP

ѵ’

ѵ BASE

[RAIZ]

ѵ

ü

etcha

(SOARES, 2008, p. 57)

6.2.2.4 Sobre a projeção Aspecto

Determinados sufixos podem ser agregados à raiz e, dessa forma, fazerem parte de uma

base acategorial, a exemplo de -ãtchi ‘duração curta, limitada’ e -cü’ü ‘ação repetitiva e rápida’,

enquanto outros sufixos aspectuais podem possuir a propriedade de verbalizadores e, dessa

forma, constituírem categoria funcional de pequeno verbo, por exemplo, - os sufixos – ü

‘continuativo’ e – etcha ‘ habitual’.

Soares (2008) também defende que há um lugar, na gramática Tikuna, para a projeção

Aspecto, desde que sejam levados em consideração alguns fatos.

O morfema aspectual (i-) ‘progressivo’ ocorre antes do prefixo pessoal subjetivo e se

manifesta na margem esquerda do verbo. Tal morfema não faz parte da estrutura da raiz,

combinando-se a um verbo já categorizado como tal. Conforme Soares (2008), o morfema

aspectual (i-) ‘progressivo’ pode conviver com sufixos aspectuais, tanto os que integram uma

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178

base acategorial quanto os de expressão de um pequeno verbo. Vejam-se os dados88

apresentados por Soares (2008) para sustentar a presença de uma projeção Aspecto em Tikuna

por meio do morfema aspectual (i-):

Tchama rü i- tcha-wiyae ‘eu estou cantando’

1PS TÓPICO PROGR- 1PS-cantar

(cf. tcha-wiyae ‘eu canto/cantei)

Tchama rü i- tcha-powae ‘eu estou pescando’

1PS TÓPICO PROGR- 1PS-pescar

(cf. tcha-powae ‘eu pesco/pesquei)

i-tcha-nha-ãtchi-etcha ‘eu sempre estava dando uma corridinha’

PROGR-1PS-fugir-DURAÇÃO CURTA, LIMITADA-HABITUAL

Soares (2008) apresenta as possibilidades de materialização de noções aspectuais em

Tikuna, por meio do quadro que reproduzimos abaixo:

Quadro 9: Materialização de noções aspectuais em Tikuna

Núcleo da projeção ASP Verbalizador (v) Parte de uma estrutura

acategorial

i progressivo

- ü ‘continuativo’

-etcha ‘habitual’

-ãtchi ‘duração curta, limitada’

-cü’ü ‘ação repetitiva e rápida’

De acordo com Soares (2008, p. 58), esse quadro mostra que as noções aspectuais em

Tikuna possuem três lugares para a sua materialização: 1. núcleo da projeção aspecto: morfema

de aspecto progressivo; 2. verbalizadores abrigados por v-zinho: sufixos aspectuais: -ü

88 Disponível em Soares (2008, p.57-58).

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179

‘continuativo’ e -etcha ‘habitual’ e 3. parte de uma estrutura acategorial: sufixos aspectuais –

ãtchi ‘ação curta, limitada’ e -cü’ü ‘ação repetitiva e rápida’. Cabe enfatizar que a projeção

Aspecto, levando-se em consideração os termos de uma hierarquia sintática, estaria acima da

projeção do pequeno verbo.

Os resultados da investigação de Soares em relação às categorias funcionais Aspecto

e v-zinho demonstram que, na língua Tikuna, a noção de aspecto progressivo pode ser tratada

por meio do núcleo da projeção Aspecto. De outro lado, alguns sufixos agregados ao verbo em

Tikuna apresentam noções aspectuais que “seriam melhor tratadas no âmbito da projeção do

pequeno verbo ou v-zinho” (SOARES, 2008, p. 61), a exemplo dos sufixos que indicam as

noções de aspecto continuativo (-ü) e de aspecto habitual (-etcha). Tais sufixos, por serem

tratados no âmbito do pequeno verbo, estão na condição de verbalizadores, ao contrário dos

sufixos que indicam a noção de duração curta, breve, limitada (-ãtchi) e repetitiva, rápida (-

cü’ü), os quais, ainda que se agreguem a uma raiz, não são capazes de categorizá-la, sendo

considerados, portanto, parte de bases acategoriais.

6.2.2.5 Nota sobre o Tempo em Tikuna

No trabalho que publicou em 2005, Soares No trabalho que publicou em 2005, Soares

priorizou o estudo do Tempo em Tikuna, buscando tratar, do ponto de vista formal, o fato de

que, em Tikuna, as propriedades do Tempo nessa língua não estão codificadas na morfologia

verbal (cf. Soares 1992a; Maia et alii (1998, 1999) 89. Em publicação de 2017, Soares revisita

o estudo do Tempo em Tikuna, no quadro de desenvolvimentos recentes em sintaxe sob a ótica

do Programa Minimalista chomskyano e tendo no horizonte questões de anáfora e

sequenciamento temporal. Vejamos o desenrolar dos estudos acerca do Tempo em Tikuna.

Para Soares (2005; 2008), há indícios de que o Tempo em Tikuna “possui escopo sobre

a sentença, isto é, alguns elementos na sentença estão no escopo do Tempo, sendo que esses

elementos não estão no verbo. ” (SOARES, 2005, p. 155; 2008, p. 59). Isso quer dizer que os

elementos que indicam o Tempo na sentença estão em alguns constituintes dela, mas não no

verbo. Expomos, abaixo, formas extraídas de Soares (2002a, 2002b, 2005, 2008, 2017) – que

se encontram ao alcance da categoria Tempo.

89 Soares participou da autoria dessas duas publicações, que foram escritas dentro de uma concepção minimalista,

norteada, naquele momento, por Chomsky (1993).

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180

a) Dêiticos que se encontram no escopo do Tempo:

Passado Não-passado

yeguma ‘aquele tempo; quando’

ngeguma ‘aquele tempo; quando’

yema/guma ‘aquele’

ngema ‘aquele’

yea ‘lá’

ngea ‘lá’

yia/yima ‘aquele’ (conhecido e estimado)

yema ‘lá; aquele lugar’

ngema ‘lá, aquele lugar’

nhaã ‘esse (coisa)’

daa ‘esse (pessoa)’

nhuma ‘agora’

nhuã ‘aqui’

b) Partículas e conectivos (os quais introduzem sentenças nominalizadas) que se encontram no

escopo do Tempo:

Passado Não-passado

Partículas ga

i, a, ya

Conectivos yerü ‘porque’

erü ‘porque’

gana conectivo que pode introduzir uma

sentença nominalizada interpretada como

objeto direto

na idem

Page 181: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

181

c) Raízes com origem em dêiticos e que pertencem a formas verbais:

Passado Não-passado

yii ser

i

yema

ngema

(na-yema ‘havia’)

3P-lá

(na-ngema ‘há’)

3P-lá

Além das regularidades relacionadas ao Tempo em Tikuna, é preciso chamar a atenção

para o fato de que, na língua, o Tempo não é expresso pela morfologia verbal, bem como é

separado da materialização aspectual, conforme Soares (2008; 2010).

A seguir, veja exemplo90 que mostra a convivência de elementos alcançados pelo

Tempo. Esse exemplo se constitui em sentença da língua, a partir de produção espontânea de

falante nativo, coletada por Soares durante a realização de estudo de campo.

Trecho de narrativa mítica

Naturü yeguma ye(ma) na-taã-gu

Então, mas naquele tampo/quando (PAS) lá (PAS) 3P-jogar-LOC

ga guma norü woweru rü

X (PAS) aquele (PAS) 3P POSS flauta TOP

Mutchicutü – ü ni-nha

nome de um pássaro –DATIVO 3P-transformar

(Mas quando lá ele (Yoi) jogou aquela flauta dele, ela em Mutchicutü se transformou.)

90 Disponível em Soares (2002a, p.3; 2005, p. 156; 2008, p. 60; 2017, p. 300).

Page 182: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

182

‘Mas quando ele (Yoi) jogou aquela sua flauta, ela se transformou em Mutchicutü.

Segundo Soares, os dados da língua Tikuna possibilitam postular a existência de um

sintagma temporal (TP) que atuaria como operador sentencial. A autora (2002a, p.4; 2002b, p.

16; 2005, p.158; 2008, p.60; 2017, p.302) apresenta uma possível representação da situação

encontrada em seus dados, conforme podemos visualizar abaixo.

TP como operador sentencial

(diagrama em árvore em sintonia com os dados da língua Tikuna

XP

TP XP

No diagrama, T, que se encontra no interior de um sintagma temporal (TP) não

ramificado, é um elemento adjungido com escopo sobre a oração.

Na língua Tikuna, o Tempo funciona como operador sentencial e se manifesta por meio

de elementos que se encontram no interior da sentença. Conforme Soares (2008, p. 60), “na

qualidade de operador, o Tempo em Tikuna também alcançará formas linguísticas marcadas

pela materialização de noções aspectuais. ”

Soares (2017), ao retomar e avançar em relação a Soares (2005), diz que é importante

considerar a interação entre tempos que pertencem a orações relacionadas na língua Tikuna,

para que algumas verificações sejam realizadas e para que respostas a algumas questões sejam

obtidas, no sentido de saber se em uma oração considerada encaixada haveria: 1. tempo

específico no passado ou tempos passados arbitrários; 2. tempo passado que poderia ou deveria

ser anafórico; 3. uma verdadeira operação de sequenciamento temporal.

Quanto aos pontos acima, Soares (2017) enfatiza que o ponto 1 é crítico para uma teoria

do Tempo que estivesse ligada puramente à lógica, uma vez que esta não poderia captar, por

meio de operadores, um tempo específico no passado, tendo como causa o fato de ter que lidar

com tempos passados arbitrários. Por outro lado, aquelas que lidam com tempos específicos no

passado sairiam em vantagem. Quanto ao ponto 2, a pesquisadora revela que esse é relevante

para determinar a existência de um tempo concebido como zero ou como traços em categoria

funcional. Já em relação ao ponto 3, esse está diretamente relacionado à comprovação da

existência ou inexistência de um mecanismo de identificação gramatical por meio do qual é

Page 183: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

183

possível obter a concordância de uma oração complemento e o tempo de uma oração matriz. A

esse respeito, Soares (2005, 2017) apresenta dados91 que revelam a interação entre tempos que

pertencem a orações relacionadas, conforme se pode ver abaixo:

Pedru nü-' ü i u-gu rü Maria i-ããcü

Pedro 3P-DATIVO x contar, narrar-LOC TOP Maria 3PF-engravidar, ter filho

(Na narração de Pedro, Maria está grávida)

‘Pedro disse que Maria está grávida’

Pedru nü-' ü i u-gu rü Maria yeguma

Pedro 3P-DATIVO x contar, narrar-LOC TOP Maria naquele tempo (PAS)

rü i-ããcü

TOP 3PF-engravidar, ter filho

Tradução mais próxima: “Na narração de Pedro, com respeito a Maria naquele tempo passado, ela estava

grávida.

O emprego de yeguma ‘naquele tempo (PAS)’ na sentença acima não ocorreu por esse

estar vinculado a um suposto verbo finito de uma oração matriz. O que ocorreu foi um evento

matriz que contém um tópico com uma sentença nominalizada e o dêitico alcançado pelo tempo

yeguma vincula a interpretação de que Maria está grávida diretamente a um tempo passado, o

que significa que Maria estava grávida no tempo passado e que, no momento presente, não está

mais.

Pedru nü-' ü ni-u Ilda ta iya- u

Pedro 3P-“DATIVO” 3P-contar, narrar Hilda não agora 3PF-ir

Tradução mais próxima: Pedro contou: “Hilda irá embora”

Tradução ‘livre’ para o português: ‘Pedro disse: “Hilda irá embora”’

91 Disponíveis em Soares (2005, p. 159; 2017, p. 303-304)

Page 184: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

184

A oração92 acima constitui um discurso direto, em que o uso de ta ‘não agora’ retira o

enunciado do momento da fala (cf. SOARES, 2000, p. 115).

Abel nü-' ü i u-gu ã rü

Abel 3P-“DATIVO” x conta,narrar-LOC INC93 TOP

Yutche marüma i-ni- u ega

José já ASP-3P-ir HIP

Tradução mais próxima: Na possível narração provavelmente de Abel, José

supostamente já estava indo embora’

Tradução ‘livre’ para o português: “Abel disse que José estaria indo embora’

Quanto à oração acima94, a ação de ir do José é passada, devido ao uso do advérbio

marüma ‘já’, e está caracterizada por uma progressividade aspectual, apresentando-se como

hipotética, por conta da existência da partícula ega.

A partir dos dados acima, que apresentam as orações relacionadas, Soares (2017) propõe

que, na segunda oração introduzida, trabalha-se regularmente com um tempo específico. Tal

proposta responde a questão (1) expressa acima. No que diz respeito ao tempo passado que

deveria ou poderia ser anafórico, conforme se indagou na questão (2), o fato de uma segunda

oração, a qual pode ser vista como encaixada em uma oração mais alta, apresentar sempre um

tempo específico, - e não um tempo que depende formalmente do tempo da oração mais alta-

configura-se como um indicativo para a ausência, na língua Tikuna, de tempo passado anafórico

resultante de uma relação entre orações. No par de dados95 abaixo, em que a primeira oração é

idêntica, não é a primeira oração que apresenta um tempo que possa ser considerado como

antecedente para o tempo da segunda oração, ao contrário, o que acontece aí é a fixação de um

quadro temporal, ou ainda, aspectual, para a segunda oração, conforme pode ser visualizado

abaixo.

92 Disponível em Soares (2005, p. 160; 2017, p. 304). 93 Conforme Soares (2017), a partícula ã INC (incerteza) indica que alguém falou algo, mas não há certeza quanto

a quem falou nem quanto àquilo que foi falado. 94 Disponível em Soares (2005, p. 160; 2017, p. 304). 95 Disponível em Soares (2005, p. 160; 2017, p. 305).

Page 185: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

185

Pedru na-gu na-rüinü ã: “Maria rü iya-u ta”

Pedro 3P-LOC 3P-pensar INC Maria TOP 3PF-ir não-agora

(Talvez Pedro possivelmente dentro dele pensou: “Maria vai embora”)

Pedro pensou: “Maria irá embora”

Pedru na-gu na-rüinü ã: Maria rü i-u ega

Pedro 3P-LOC 3P-pensar INC Maria TOP 3PF-ir não-agora

(Talvez Pedro possivelmente dentro dele pensou: Maria, ela supostamente vai embora)

‘Pedro pensou: Maria vai embora (supostamente) / Pedro pensou que Maria iria embora.’

Na primeira oração do par de orações acima, a ‘ida de Maria’, presente na segunda

oração, é retirada do momento da enunciação por meio de ta ‘não-agora’. Já na segunda oração

desse par, ‘a ida de Maria’, que pode ser traduzido para o português por um futuro do passado,

é, na realidade, uma hipótese. Conforme Soares (2017), esses fatos contestam a ideia de um

tempo zero, de natureza anafórica, em Tikuna, tendo em vista que um suposto tempo zero não

teria aí como receber traços de um antecedente temporal.

Há, segundo Soares (2017), a confirmação da existência de tempos específicos quando

estão em jogo tempos em orações relacionadas e a negação da existência de um tempo zero,

anafórico. Diante disso, ganha força um investimento na concepção do Tempo (Tense) como

traço em uma categoria funcional, considerando-se a transmissão temporal a partir desse ponto

de vista. A pesquisadora reconsidera dados importantes para o sequenciamento temporal (SOT)

a partir dessa ótica, com enfoque na questão (3) mais acima.

Veja, abaixo, sentenças96 gramaticais em Tikuna e que apresentam construção com

tópico. Essas sentenças têm o predicado demarcado por ta ‘não-agora’, que retira o enunciado

do momento da fala e permite que, no interior de cada sentença, se possa trabalhar com itens

que correspondem a ‘amanhã’ ou a ‘ontem’, conforme Soares (2000, p. 115).

96 Disponíveis em Soares (2005, p. 163; 2017, p. 306).

Page 186: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

186

Maria rü ta ti-u i mo´ü

Maria TOP não agora 3PF/C-ir x amanhã

‘Maria irá embora amanhã’

Maria rü ta ti-u i ine

Maria TOP não agora 3PF/C-ir x ontem

‘Maria foi embora ontem’

Os dados analisados por Soares apontam, assim, para a não ocorrência de SOT em

Tikuna. Isso porque, conforme a pesquisadora, “não há evidências, no que poderia ser uma

sentença encaixada, de engatilhamento de concordância com o tempo de uma oração matriz

através de um mecanismo de identificação gramatical” (SOARES, 2017, p. 306).

Para finalizar essa seção, no que diz respeito ao Tempo, ainda resta enfatizar que, no

interior da sentença, estão determinados elementos que estão no seu escopo, no entanto, esses

elementos não estão no verbo e têm o seu alcance limitado à própria sentença. Em Tikuna, não

há imposição de concordância temporal entre uma oração principal e uma oração complemento.

Tal fato é compatível com uma característica importante do Tikuna, qual seja: a de ser uma

língua que não apresenta SOT.

Ao que tudo indica, há que se estudar cada língua particular de modo a verificar qual o

leque de categorias funcionais que essa língua utiliza e o modo como tais categorias são aí

organizadas.

6. 3 A ESTRUTURA DA LÍNGUA TIKUNA E A VARIDADE DO PORTUGUÊS TIKUNA

Para analisarmos a variedade de português falada pelos professores Tikuna, mister se

fez que, primeiramente, efetivássemos uma revisão acerca dos estudos realizados a partir da

língua Tikuna, tal como ela é falada no Brasil. Essa revisão foi feita tendo em vista nossa busca

por testarmos a primeira de nossas hipóteses, que é a de que ao adquirirem o português como

L2, os professores se valem de regras/restrições da sua língua materna.

Diante disso, na seção 6.1, iniciamos o estudo sobre a estrutura da língua Tikuna, a

começar por sua organização fonológica. Tal fato nos possibilitou conhecer aspectos da

gramática Tikuna que auxiliaram na análise dos dados de nossa investigação, conforme poderá

ser visto na seção 7.1.

Page 187: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

187

Já na seção 6.2, focamos nossa atenção nos aspectos morfológicos e sintáticos da

língua Tikuna, com vistas a analisarmos, na variedade do Português Tikuna, possível

interferência da estrutura da L1 na língua-alvo, no que diz repeito, por exemplo, à flexão de

gênero no interior do SN, à marcação (ou não) de concordância verbal, à ordem sintática, dentre

outros fenômenos, conforme análise presente na seção 7.2.

Enfim, neste capítulo, fizemos uma revisão, com base, principalmente, em Soares, das

características da língua Tikuna, relevantes para a identificação de traços particulares

relacionados a possíveis mecanismos de transferência da L1 no uso do português como segunda

língua pelos participantes de nosso estudo, conforme poderá ser visto no capítulo a seguir.

Page 188: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

188

CAPÍTULO 7 - ASPECTOS DA VARIABILIDADE

LINGUÍSTICA DO PORTUGUÊS TIKUNA

Este capítulo da tese tem a intenção de registrar a variedade ou variedades que a

comunicação verbal interétnica dos professores Tikuna assume em virtude das diferenças que

o tipo de contato imprime em cada professor e/ou nesse grupo de professores.

A gama de situações linguísticas que abarca os professores Tikuna se configura como

um continuum que vai desde os falantes com menos fluência bilíngue até os indivíduos com

uma maior fluência bilíngue, mais próximos da variedade padrão, conforme poderá ser visto na

seção 7.3.

A variação linguística observada abrange os níveis fonético-fonológico e

morfossintático. Alguns fenômenos variáveis serão delineados a fim de que se cumpram os

objetivos do trabalho, que é o de registrar, analisar e caracterizar a variedade do português de

contato falada por professores Tikuna. O registro e a análise possibilitam-nos, ainda, verificar

a existência de falantes que utilizam uma variedade próxima de estágios iniciais de aquisição,

de falantes que estão em estágio mediano e aqueles que estão em estágio avançado de aquisição

e utilizam uma variedade mais próxima do português brasileiro padrão.

A gama desses fenômenos varáveis permite verificar o continuum que caracteriza o

português Tikuna, e que é a marca linguística da identidade desses falantes. Neste capítulo,

portanto, apresentamos o registro de alguns fenômenos fonético-fonológicos e morfossintáticos

variáveis, identificados nas falas dos vinte e três professores Tikuna participantes da pesquisa,

analisando-os com vistas a responder o que caracteriza essa variedade de português falada por

esses professores Tikuna.

Além disso, na subseção 7.4.1, apresentamos a análise da variação /s/ em posição de

onset, levando em consideração a variável linguística contexto seguinte e as variáveis sociais

eleitas neste trabalho: gênero, faixa etária, escolaridade, localidade, grau de contato e fluência,

com vistas a entender fatores sociais que podem motivar essa variação. E, na subseção 7.4.2,

apresentamos a análise sobre a variação na concordância de primeira pessoa verbal, e, como

fator linguístico condicionante da variação em estudo, postulou-se, no nível de discurso, a forma

de interação linguística. As variáveis sociais eleitas foram as já citadas anteriormente.

Conforme evidenciamos na metodologia, os corpora analisados se constituem de

gravações espontâneas dos professores Tikuna que atuam na educação básica, tendo sido

Page 189: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

189

computadas nove (09) horas, quinze (15) minutos e trinta e seis (36) segundos de gravação, das

quais foram extraídos os dados para descrição e análise, que apresentamos a seguir.

7.1 VARIAÇÃO NO ÂMBITO FONÉTICO-FONOLÓGICO

A língua Tikuna possui um sistema tonal, apresentando oposição entre dois tons, um

alto e um baixo e, ainda, um tom médio, que funciona como especificação default. (cf. Soares,

2001).

O inventário fonológico do Tikuna apresenta as obstruintes /p t k b d g tʃ dʒ /, o rótico

/ɾ/, a semivogal /w/ e as nasais /m n ɲ ɳ/. Há, ainda, as vogais orais /a i e u o ɨ / e as nasais /i ɨ ã

õ/ (cf. Soares, 1984, 2000). Há a ausência das sibilantes /s z /, das chiantes /ʃ ʒ / e das laterais,

tanto a alveolar /l/ quanto a palatal / ʎ/.

A respeito da ausência das sibilantes e chiantes em Tikuna, já havia essa menção no

texto de Curt Nimuendajú (1982, p.206), que se refere à língua Tikuna como tendo “frequência

de vogais guturais, [...] ausência de conjucção de consoantes e de todos os sibilantes (s, z, ch,

j)”. Essas e outras especificidades da língua Tikuna, as quais apresentamos no capítulo 6, nos

subsidiam em nossa análise acerca da variedade do português falada pelos professores Tikuna.

No gráfico abaixo, evidenciamos alguns fenômenos fonético-fonológicos identificados a partir

das falas dos participantes, dos quais extraímos exemplos para análise. Ao todo, identificamos

1.934 ocorrências e, ainda que o número de ocorrências de alguns fenômenos nos corpora

analisados seja muito pequeno, cumpre-nos registrá-los porque alguns deles são pouco

recorrentes (ou não ocorrem) no PB falado em outras regiões do país, o que confirma uma de

nossas hipóteses. Além disso, com base nesses registros, novas pesquisas podem ser suscitadas,

tendo em vista que saber ou registrar quem fala um determinado fenômeno e onde esse

fenômeno é falado se constitui em um importante dado para pesquisas no campo da variação.

Page 190: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

190

Gráfico 8: Quantidade de ocorrência de fenômenos fonético-fonológicos por pessoa

Ao visualizarmos o gráfico, podemos constatar que a quantidade de ocorrências dos

fenômenos variáveis é superior entre as pessoas de gênero masculino, pertencentes à faixa 2,

ou seja, foram os homens mais velhos quem mais manifestaram ocorrências de variantes tidas

como não padrão no PB. Para melhor visualização desse quantitativo por gênero, veja gráfico

abaixo.

Gráfico 9: Quantidade de ocorrência de fenômenos fonético-fonológicos por gênero

0

100

200

300

400

500

600 553

363

203

154126

10184

66 60 57 49 39 36 36 35 34 31 29 20 18 17 13 5

Fenômenos Fonético-Fonológicos X Participantes

256

1678

0

200

400

600

800

1000

1200

1400

1600

1800

Feminino Masculino

Fenômenos Fonético-Fonológicos x Gênero

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191

De todas as ocorrências de variantes fonético-fonológicas registradas por nós em

nossos corpora, 86% foram produzidas por homens, enquanto que apenas 14%, por mulheres.

Ainda que o quantitativo de mulheres seja menor que o dos homens em nossa amostra, quando

analisadas individualmente as variantes nas gravações, percebe-se, de modo geral, uma baixa

frequência de variação entre as mulheres, em comparação com os homens, com perfis

parecidos. Em relação à variação linguística entre homens e mulheres, muitos registros de

pesquisas em Sociolinguística evidenciam o uso mais frequente, por mulheres, das formas não

estigmatizadas, como, por exemplo, Labov (2008), afirma que: “na fala monitorada, as

mulheres usam menos formas estigmatizadas do que os homens e são mais sensíveis do que os

homens ao padrão de prestígio” (LABOV, 2008, p. 282).

A seguir, apresentamos fenômenos fonético-fonológicos registrados a partir da fala

dos participantes que compõem esta pesquisa, buscando-se explicar se essas ocorrências são

motivadas por transferência e/ou interferência da L1 ou por outra possível motivação.

7.1.1 Tendência à inexistência de contraste fonológico no âmbito das consoantes contínuas

coronais

Inicialmente, no que diz respeito ao âmbito das consoantes contínuas coronais, cabe-

nos realizar algumas observações. Conforme Clements & Hume (1995), o traço [contínuo] está

diretamente ligado ao nódulo Cavidade Oral, não sendo, por isso, traço subarticulatório de

nenhum outro. Já o traço [coronal] é dependente direto, em se tratando de consoantes, do nódulo

PAC (Ponto de Articulação Consonantal), também chamado Ponto-de-C e possui os seguintes

traços subarticulatórios: [± anterior] e [± distribuído].

Esse sistema de traços é gerativo e derivacional, portanto, tem que dar conta, tanto de

representações subjacentes, quanto de representações derivadas. Dessa forma, em termos

teóricos, os valores dos traços subarticulatórios de [coronal] para segmentos coronais contínuos

ou africados são os seguintes:

[s] , [ts], [z], [dz]: [+anterior, - distribuído]

[], [], [], []: [-anterior, + distribuído]

[ʂ], [tʂ], [ʐ], [dʐ]: [-anterior, - distribuído]

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192

Em nossos dados, identificamos a tendência à inexistência de contraste, no âmbito das

consoantes contínuas coronais, entre os valores positivo e negativo dos traços subarticulatórios

de coronal [ anterior] [ distribuído]. Tal fato resulta na ausência de contraste/oposição entre

as chamadas fricativas alveolares e as fricativas palato-alveolares em posição de abertura de

sílaba, que se realizam conforme evidenciamos a seguir.

- Com oscilação do traço subarticulatório [anterior] e implementação fonética da retroflexão

[+anterior] [-anterior]

[s] ~ [ʂ]

7.1.1 a) ... vai co[ɾ]ocar de nome de [ʂ]egundo em português... a[ʂ]im que é. (O.B.A./54.

MASC.)

7.1.1 b) .... maioria fazer a... trabalho na ro[ʂ]a. (E.A.L./29. FEM.)

[+anterior] [-anterior]

[z]~ [ʐ]

7.1.1 c) ... tô no quinto período graças a deu[ø] que nunca de[ʐ]isti, né? (M.F.C./41. MASC.)

7.1.1 d) Eu sou professor de educação fí[ʐ]ica. (J.O.C./29. MASC.)

- Com oscilação em relação ao traço subarticulatório [distribuído] e implementação fonética

da retroflexão:

[+distribuído] [-distribuído]

[ʃ] ~ [ʂ]

7.1.1 e) ... aí que [ʂ]amou de mim pra levar aqui no município. (F.A.D./56. MASC.)

7.1.1 f) ... [ʂ]egou daqui na comunidade primeiro. (A.C.A./43. MASC.)

[+distribuído] [-distribuído]

[ʒ] ~ [ʐ]

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193

7.1.1 g) ... dois via[ʐ]em que nós fi[ʐ]emo[ø]. (W.A.S./51. MASC.)

7.1.1 h) ... ele também ajeitar a nossa igre[ʐ]a (J.M.G./40. MASC.)

Além das realizações acima, também detectamos, mesmo que com frequência muito

reduzida, ocorrências em que as chamadas fricativas palato-alveolares se realizam como

fricativas alveolares, em que há oscilação dos dois traços subarticulatórios de coronal [anterior]

[distribuído], conforme ilustramos abaixo.

[-anterior, +distribuído] [+anterior, -distribuído]

[ʒ] ~[z]

7.1.1 i ) ...aí eu terminei através desse curso eu terminei o terceiro ano que é ma[z]istério né da

OGPTB (B.S.G./56. FEM.)

7.1.1 j) ... aquele professor de Luís [z]osias aí até eu fez sétimo ano aí também com ele mesmo.

(J.G.M./29. FEM.)

7.1.1 k) Qualquer lo[z]a eu perguntei. (W.A.S./51. MASC.)

[-anterior, +distribuído] [+anterior, -distribuído]

[ʃ] ~ [s]

7.1.1 l) ... vai concluir meu ensino médio lá na escola estadual Nilce Ro[s]a Coelho (J.O.C./29.

MASC.)

7.1.1 m) ... eu queria [s]egar diante... isso que meu sonho (L.F.D./27. MASC.)

Conforme evidenciamos na seção 6.1.1, as consoantes fricativas alveolares /s/, /z/ e as

consoantes fricativas palato-alveolares /ʃ/, /ʒ/ não compõem o inventário fonológico da língua

Tikuna. Ainda em relação ao quadro de fonemas consonantais do Tikuna, cabe reiterar que o

fonema /ts/ congrega a realização alternante [ʂ] e o fonema /dz/ congrega a realização alternante

[ʐ].

O fato de, no quadro fonológico da língua Tikuna, haver ausência dos segmentos

consonantais /s/, /ʃ/, /z/ e /ʒ/ é, em nossa análise, uma possível explicação para que, nos dados

de fala de nosso corpus, tenhamos identificado a tendência à inexistência de contraste, no

âmbito das consoantes contínuas coronais, entre os valores positivo e negativo dos traços

subarticulatórios de coronal [ anterior] [ distribuído]. Entendemos que há uma interferência

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194

sistêmica/estrutural da língua Tikuna atuando sobre o sistema do português, o que favorece a

tendência à ausência desse contraste.

Essa interferência se mostra elevada entre os falantes situados nos pontos mais baixos

do continuum e sofre uma diminuição ou anulação entre os falantes que se situam nos pontos

mais altos do continuum. Esse é um fato comum em falantes que estão em um processo contínuo

de aquisição de L2, como é o caso dos professores Tikuna participantes de nosso estudo.

Cabe reiterar que as realizações apresentadas nessa seção, ainda que sem a ligeira

retroflexão identificada em nossos dados, já foram registradas em outras variedades de

português indígena, como no Português Timbira (cf. Amado, 2015), no Português Latundê (cf.

Amorim, 2015) e no Português Xerente Akwe (cf. Braggio, 2015). Tal fato confirma nossa

quarta hipótese.

7.1.2 Palatalização Fonemas Africados

Tendo em vista que a passagem de um segmento alveolar a uma africada retroflexa é

um processo de palatalização, dentre os fenômenos identificados na fala dos professores

Tikuna, encontram-se a palatalização de fonemas africados desvozeados e a palatalização de

fonemas africados vozeados, conforme pode ser visualizado abaixo.

- Palatalização de fonemas africados desvozeados (com ligeira retroflexão)

7.1.2 a) ... por isso que con[tʂ]inua aí. (M.F.C./41. MASC.)

7.1.2 b) ... duran[ʈʂ]e cinco ano[ø] parado a minha estudo. (F.A.D./56. MASC.)

- Palatalização de fonemas africados vozeados (com ligeira retroflexão)

7.1.2 c) Boa tar[dʐ]e, professora. (A.C.A./43. MASC.)

7.1.2 d) ...com não in[ɖʐ]í[ʐ]ena pode falar a língua portuguesa porque também ele não

entende.

Tal como acontece com o fenômeno que evidenciamos na seção anterior, aqui, quanto

à palatalização de fonemas africados, percebemos uma interferência do padrão articulatório

nativo. Essa interferência, no entanto, não deve ser vista como transferência negativa, mas como

Page 195: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

195

um processo natural que ocorre em aquisição de segunda língua. A ocorrência desse fenômeno

só foi notada entre falantes mais velhos e que estão nos pontos mais baixos do continuum.

7.1.3 Supressão de Segmento (Travamento de Sílaba)

Conforme Soares (1986), a única consoante que pode ocupar a posição de coda em

língua Tikuna é a glotal /ʔ/, não sendo lícito às outras consoantes a ocupação de tal posição. É

possível que, na tentativa de adaptar ao padrão da L1, alguns professores Tikuna, falantes de

língua portuguesa como L2, apagam o segmento consonantal quando em posição de coda, seja

medial ou final, conforme apresentaremos a seguir.

- Supressão de /s/ em posição de coda final após glide palatal /ј/

7.1.3 a) ... no quinto ano que eu fui começou estudar em portuguê[ј] e no língua Tikuna ãhã.

(J.G.M./29. FEM.)

7.1.3 b) ... aí depo[ј] dessa daí nunca estudei na língua Tikuna aqui. Já só no português.

(J.M.G./40. MASC.)

7.1.3 c) Eu terminei ensino médio do[j] mil e sete. (E.D.I./33. MASC.)

7.1.3 d) ... lá fala ma[ј] de nossa língua. (N.C.F./42. FEM.)

- Supressão de /s/ em posição de coda final (outros contextos)

7.1.3 e) ... cinco professore[ø] não indígena e três professore[ø] Tikuna. (N.C.FR./28. FEM.)

7.1.3 f) Nós somo[ø] cinco município[ø] fazendo toda a participação. (B.C.C./35. FEM.)

7.1.3 g) Nó[ј] estudamo[ø] aqui Escola Nossa Senhora da Assunção. (H.Z.M./34. MASC.)

7.1.3 h) ... lugar do igarapé de camatiã moramo[ø] de muito tempo. (O.B.A./54. MASC.)

- Supressão de /s/ em posição de coda medial

7.1.3 i) ... na cidade estudo é língua só português... não exi[ø]te é... língua Tikuna (J.O.C./29.

MASC.)

7.1.3 j) ... assim me[ø]mo nós vai seguir a caminho. (P. B.M./33. MASC.)

7.1.3 k) ... abre a conta quando gente fazer empré[ø]timo (W.A.S./51. MASC.)

Page 196: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

196

7.1.3 l) ... onde estudei era mais trabalhada a língua portuguesa me[ø]mo (B.C.C./35. FEM.)

- Supressão do /r/ em coda medial

7.1.3 m) ... aí não tem de ve[ø]gonha de fa[ɾ]ar de portuguê[ј]. (O.B.A./54. MASC.)

7.1.3 n) ... Ja[ø]dim um e dois durante [ʂ]inco ano[ø] pra trabalhar. (Z.L.S./48. FEM.)

7.1.3 o) Na ve[ø]dade eu... eu não conseguiu muitos anos. (E.A.L./29. FEM.)

7.1.3 p) Eu trabalho como professor de info[ø]mática também. (J.O.C./29. MASC.)

Em relação às supressões acima, em nosso entendimento, ainda que algumas sejam

parecidas com aquelas realizadas por um falante nativo de PB, outras não o são e podem ser

motivadas pela restrição existente em Tikuna de realização fonética de consoantes ocupando a

posição de coda silábica. É possível, pois, que, na tentativa de adaptar ao padrão da L1, alguns

professores Tikuna, falantes de língua portuguesa como L2, apagam o segmento consonantal

quando em posição de coda, seja medial ou final.

No que diz respeito ao apagamento das consoantes /s/ e /r/ pós-vocálicas em coda

silábica, muitos estudos têm evidenciado que esse é um processo bastante comum no PB, seja

em posição de coda medial ou final. Como já dissemos, porém, em certos contextos, esse

apagamento que ocorre em alguns itens lexicais produzidos pelos professores Tikuna, ou não

ocorre em PB ou é menos esperado, conforme exemplos 7.1.3 b, 7.1.3 c, 7.1.3 e, 7.1.3 i, 7.1.3

m, 7.1.3 n, já exemplos como os 7.1.3 f e 7.1.3 g evidenciam ocorrências já categorizadas no

PB e replicadas pelos falantes Tikuna.

Quanto à queda de /r/ medial, Mollica (1997), ao analisar dados de informantes do

Alto Xingu, verifica que esses informantes manifestam baixa taxa de cancelamento deste

segmento. A maior frequência se manifesta no primeiro estágio de fluência e, no segundo

estágio, ocorre uma considerável redução, chegando a um índice muito baixo de aplicação no

terceiro estágio. Em nossa amostra, a queda desse segmento em posição de coda medial ocorreu

com uma pequena frequência, ocorrendo apenas entre poucos falantes do primeiro e segundo

estágios.

Além da supressão de /s/ e /r/ em posição de coda final, também identificamos em

nossa amostra, ainda que em número bastante reduzido, a ocorrência da supressão de /r/ em

grupo consonantal, conforme exemplificamos a seguir.

Page 197: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

197

- Supressão de /r/ e /l/ para desfazer onset complexo (síncope de /r/ e /l/ em onset complexo)

7.1.3 q) ... com vereadores p[ø]ecisei mas só que ele não ajuda a gente assim na necessidade

(E.D.I./32. MASC.)

7.1.3 r) ... padrinho também co[ɾ]ocar de nome de próp[ø]io. (O.B.A./54. MASC.)

7.1.3 s) ... ensinar com discip[ø]ina de oito matéria[ø]. (A.C.A./43. MASC.)

Os falantes que realizaram a supressão de /r/ e/l/ para desfazer onset complexo são os

que se encontram nos níveis mais baixos e medianos do continuum e fazem parte do grupo que

realiza maior número de ocorrências de transferência de L1 para L2 nos itens lexicais

produzidos. Nesse caso, a restrição silábica CV da língua Tikuna evidencia uma nítida pressão

estrutural sobre esses falantes.

Ainda em relação à supressão de segmentos, identificamos a aférese, com supressão

do elemento vocálico /a/, como em 7.1.4 b e 7.1.4 c, mas também verificamos a supressão de

sílabas com o padrão VC, como em 7.1.4 a e 7.1.4 d.

7.1.4 Aférese

Conforme Dubois et.al. (2014), a aférese consiste em uma mudança fonética que se

manifesta por meio da supressão de elementos, variando entre supressão de um fonema, de uma

sílaba ou da parte inicial de um vocábulo. Nos dados de fala de nosso corpus, identificamos

ocorrências de aférese, tais como exemplificamos a seguir.

7.1.4 a) ... [ø]topedia que ela terminou também. (B.S.G./56. FEM.)

7.1.4 b) ... aí dois mil onze ela me colocou de novo pra mim [ø]prender bem né. (J.G.M./29.

FEM.)

7.1.4 c) ... sempre também ele me [ø]judava. (P. B.M./33. MASC.)

7.1.4 d) ... meu família agora pra [ø]frentar. (A.C.A./43. MASC.)

Segundo Mollica et.al. (1998), a aférese é um dos fenômenos diacrônicos mais

produtivos de mudança no PB. Já existia no latim, passando ao português, mantendo-se como

variação ainda hoje no estágio em que se encontra a língua portuguesa no Brasil. De acordo

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198

com os autores (1998, p. 72), “no português brasileiro hodierno, as aféreses mais audíveis e/ou

mais frequentes envolvem as cadeias a- (aqui ~ Øqui), es- (estava~ Øtava) e en- (então ~ Øtão)”.

Apesar de a aférese se manifestar em muitas variedades do PB, em itens lexicais como

os citados por Mollica et.al. (1998), no Português Tikuna, essa supressão de sílaba inicial é

expandida para outros vocábulos da língua. Uma possível explicação para o fenômeno está no

fato de que no inventário fonológico do Tikuna, consoante não ocupa posição de coda, além

disso, a restrição silábica CV da língua Tikuna, conforme já mencionamos no item anterior,

evidencia uma nítida pressão estrutural sobre esses falantes, principalmente entre aqueles que

se encontram na base do continuum. Em nossa análise, tal restrição é transferida para o

português falado pelos Tikuna, conforme exemplos 7.1.4 a a 7.1.4 d.

7.1.5 Rotacismo

A ausência de laterais, tanto a alveolar /l/ quanto a palatal /ʎ/, e a presença do tepe/ɾ/

no sistema fonológico da língua Tikuna podem ser possibilitadoras da produção de rotacismo

por alguns dos falantes entrevistados, conforme exemplificamos abaixo.

7.1.5 a) ... Pau[ɾ]o Mafra primeiro chegar aqui. (Z.L.S./48. FEM.)

7.1.5 b) ... eu comecei a ler na esco[ɾ]a Eunice Rocha Coelho. (J.M.G./40. MASC.)

7.1.5 c) ... por exemp[ɾ]o, os pronomes, né? (L.J.F./37. MASC.)

7.1.5 d) ... c[ɾ]ã que eu pertenço avaí (H.Z.M./35. MASC.)

7.1.5 e) ... aí depois veio concurso púb[ɾ]ico. (N.C.FR./28. FEM.)

Apesar de o rotacismo ser um fenômeno comum no português brasileiro, a motivação

da ocorrência desse fenômeno no português falado pelos professores Tikuna pode ser outra. O

falante pode utilizar elementos estruturais da língua nativa ao falar na língua-alvo, no caso usa

o fonema /ɾ/ na L2 por conta da ausência do fonema /l/ no inventário fonológico de sua L1.

Os estudos acerca da presença de rotacismo no PB têm detectado e investigado a

ocorrência desse fenômeno na posição de ataque complexo e em coda medial (cf. Costa 2006,

2013; Aguilera, 1996; Silva et al., 2006), mas a presença de rotacismo na posição de ataque

simples, como em 7.1.5 a e 7.1.5 b não é um fenômeno muito estudado nem esperado no PB.

Page 199: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

199

7.1.6 Lambdacismo

Outro fenômeno que identificamos em nossa amostra foi o lambdacismo. Conforme já

mencionamos anteriormente, não há, no inventário fonológico da língua Tikuna, laterais e esse

fato pode ser a motivação para que alguns professores Tikuna tenham se valido da estratégia

de hipercorreção ao produzirem alguns itens lexicais, conforme exemplificamos a seguir.

7.1.6 a) ... durante esses pe[ʎ]íodo aí eu mudei de dois casa. (E.D.I./32. MASC.)

7.1.6 b) Eu conside[l]ando língua Tikuna porque essa que língua Tikuna é meu língua

(J.O.C./29. MASC.)

7.1.6 c) ... eu era aluno dele e tinha tinha feito ma[ʐ]isté[ʎ]io. (L.J.F./37. MASC.)

7.1.6 d) A arara que tinha peito ama[l]elo. (N.C.F./42. FEM.)

7.1.6 e)... Rogé[ʎ]io que vem lá no Manaus. (Z.L.S./48. FEM.)

7.1.6 f)... na língua Tikuna significa pena p[l]eta. (E.D.I./32. MASC.)

O lambdacismo é um fenômeno oposto ao que apresentamos na seção anterior, o

rotacismo. Aqui, o falante realiza uma lateral no ambiente em que um rótico é esperado,

conforme exemplificamos acima. Em nossa amostra, o lambdacismo se apresentou em posição

de ataque silábico, como em 7.1.6 a a 7.1.6 e, e em grupos consonantais, como em 7.1.6 f.

Diante da vogal alta /i/, houve a realização da lateral palatal [ʎ] e, diante de vogais baixas ou

médias, realizou-se a palatal alveolar /l/.

7.1.7 Epêntese

Conforme apresentamos no capítulo 6, em Tikuna, os padrões silábicos são CV, V,

CVʔ e Vʔ. Ainda que, com pouca frequência em nossa amostra, identificamos ocorrências de

epêntese, em que foram efetuados acréscimos da vogal alta anterior após consoantes fricativas,

conforme exemplos abaixo.

7.1.7 a) ... aí depoi[zi] de outro ano fim do ano mês de janeiro assim é já ganhar só sessenta

reais (F.A.D./56. MASC.)

7.1.7 b) Só português que eles dominavam né mai[zi]. (B.S.G./56. FEM.)

7.1.7 c ) ... quando pa[ʂ]ar de um mê[ʐi]... aí vai procurar de outro... (O.B.A./54. MASC.)

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200

A inserção de uma vogal após segmento consonantal, que deveria ocupar a coda

silábica, demonstra uma nítida pressão estrutural em favor do padrão CV.

7.1.8 Africação

No conjunto de dados investigados por meio de nosso estudo, foi possível identificar

a africação de consoante fricativa pós-alveolar, fricativa alveolar e oclusiva alveolar, conforme

se pode visualizar nos trechos abaixo.

[ʒ] ~ [dʐ]

7.1.8 a) ... cuidava filho da [dʐ]ussara. (J.G.M./29. FEM.)

7.1.8 b) ... aí não tinha outro professor pra [ɖʐ]ente estudar pro quinto, né? (N.C.F./42. FEM.)

[s] ~ [tʂ]

7.1.8 c) Na verdade, são os professores que que têm suas próprias ini[tʂ]iativas. (L.J.F./37.

MASC.)

[d] ~ [dʐ]

7.1.8 d) ... pai e mãe vai pagar pra ele pra poder dava aula pro seu filho, enten[dʐ]eu

professora? (P. B.M../33. MASC.)

A ocorrência das formas que demonstramos nos exemplos 7.1.8 a a 7.1.8 b também

foram identificadas, ainda que sem a ligeira retroflexão, no português Latundê (cf.Amorim,

2015).

Pesquisadores têm identificado e analisado a palatalização das consoantes oclusivas

alveolares /t/ e /d/ diante de /i/ tônico em diferentes regiões do Brasil, a exemplo de Bisol e Da

Hora (1993), Da Hora (1999), Abaurre e Pagotto (2002), Pagotto (2004), Brandão (1997), Bisol

(1986), Cruz (2004), para citar alguns.

Diferentemente desse contexto fonético, Cristófaro Silva (2003) apresenta dados que

evidenciam a ocorrência de africadas em neologismos que contam com a vogal posterior a /t/ e

/d/ diferente de uma vogal alta anterior, como em tchutchuca ou Djavan. Conforme a

pesquisadora, além de ocorrerem em neologismos, africadas seguidas de outras vogais,

diferentes de [i] também ocorrem em casos de epêntese entre uma oclusiva e uma fricativa,

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201

como em adjetivo ou coadjuvante. Nesses casos, segundo a pesquisadora, há interação do

fenômeno de palatalização com a epêntese.

Ainda em relação à ocorrência de africadas seguidas de vogais diferentes de [i],

Cristófaro Silva (2003) evidencia que estas podem apresentar alternância com ditongos

crescentes, como por exemplo, sí[tʃju] ou sí[tʃu]. Aqui, de acordo com a pesquisadora, há a

interação do fenômeno de palatalização com o cancelamento de glide palatal em ditongos

crescentes.

Santiago-Almeida (2000) e Souza (1999), ao analisarem dados de fala da cidade de

Cuiabá, verificaram a ocorrência das africadas [tʃ] e [dʒ] onde eram esperadas as fricativas pós-

alveolares [ʃ], [ʒ] por exemplo, em palavras como chuva [tʃuva], chave [tʃavi], já [dʒa] e jeito

[dʒeitu]. De acordo com a análise de Santiago-Almeida (2000), a substituição de fricativas por

africadas é um fenômeno que se manifesta frequentemente na fala dos informantes que possuem

menor grau de escolaridade, independentemente da faixa etária. Nesse caso, as africadas não

têm relação com a palatalização de oclusivas alveolares, tendo em vista que estão relacionadas

com as fricativas alveopalatais. O fenômeno registrado e analisado por Santiago-Almeida

(2000) e Souza (1999), segundo eles, se restringe à cidade de Cuiabá, no entanto, guardam uma

certa aproximação com os nossos dados, ainda que a motivação, em nosso entender, seja

diferente.

Em nossa análise, a africação da consoante fricativa pós-alveolar, fricativa alveolar e

da oclusiva alveolar na fala dos professores Tikuna guarda íntima relação com os hábitos

articulatórios nativos, tendo em vista que [s] e [ʒ] não fazem parte dos sons do Tikuna e, ao ter

que produzir itens lexicais que contam com esses sons, os falantes realizam uma aproximação

com o inventário de que dispõem a partir do material de sua L1.

7.1.9 Flutuação quanto à altura das vogais

Verificou-se, nos dados de fala do grupo Tikuna investigado, a ocorrência de flutuação

quanto à altura das vogais, sobretudo entre vogais altas e médias, conforme exemplificaremos

a seguir e analisaremos ao final desta subseção.

- Alteamento da vogal posterior

Abaixo, evidenciamos trechos da fala dos participantes em que há ocorrência da

flutuação com alteamento da vogal posterior.

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202

7.1.9 a) ... quando eu tinha [u]ze ano[ø] por aí... aí que... aí que entra um pouco parte da escola

pra mim. (L.F.D./27 MASC.)

7.1.9 b) ... depois de [u]itenta e três já fizemo[ø] de terceira série e passemo[ø] de terceira

série... (O.A.A./50. MASC.)

7.1.9 c) Eu ensinando do Matemática atravé[ø] da... uma car[u]ço, significando um car[u]ço...

(Z.L.S./48. FEM.)

7.1.9 d) ... an[tʂ]igamente do povo daqui dos [tʂ]ikuna só pra fa[ʐ]er uma... fa[ʐ]er uma

can[ʊ]a (canoa) e b[u]sa (bolsa) pra tecer aí... (A.C.A./43. MASC.)

- Alteamento da vogal anterior

Abaixo, evidenciamos trechos da fala dos participantes em que há ocorrência do

alteamento da vogal anterior.

7.1.9 e) ... sabia falar só que eu não sabia escr[i]ver eu sabia falar minha língua materna

(B.S.G./56. FEM.)

7.1.9 f) ... naquela época nós temo[ø] dúvida mesmo só que nós entend[i]mo. (H.Z.M./35.

MASC.)

7.1.9 g) ... quem me escolh[i]u como cargo de professor é meu professor. (W.A.S./51. MASC.)

- Abaixamento da vogal posterior

A seguir, evidenciamos trecho da fala de um participante em que há abaixamento da

vogal posterior

7.1.9 h) Então [duј] mil e dez faz c[o]rso de público e para passar como professor. (O.B.A./54.

MASC.)

- Abaixamento da vogal anterior

Abaixo, evidenciamos trechos da fala dos participantes em que há ocorrência de

abaixamento da vogal anterior.

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7.1.9 i) ...significa p[ɛ]na cai. (J.O.C./29. MASC.)

7.1.9 j) ... agora nesse tempo lá água não tem nada o rio tá todo s[ɛ]co (L.F.D./27. MASC.)

Em nossa análise, a variação observada entre a realização das vogais do português

padrão e do português de contato Tikuna (PT) pode ser explicada levando-se em consideração

a diferença existente no traço de abertura vocálica dos sistemas da língua portuguesa e da língua

Tikuna, conforme pode ser visualizado no quadro abaixo.

Quadro 1097: Sistema vocálico da língua Tikuna x sistema vocálico da língua portuguesa

LT LP

Altura Anterior Central Posterior Anterior Central Posterior

Alta /i/ /ɨ/ /u/ /i/ /u/

Média-

Alta

/e/

/o/

Média-

Baixa

/ɛ/

/ɔ/

Baixa /e/ /a/ /o/ /a/

Ao visualizarmos o quadro acima, que leva em consideração a análise fonêmica do

tikuna e do português, podemos verificar, no que diz respeito ao traço de abertura, que em

Tikuna, há três fonemas vocálicos baixos, em contraste com o português, que conta com apenas

um fonema vocálico nessa mesma posição; por outro lado, o sistema vocálico do PB conta com

quatro vogais médias, diferentemente do Tikuna, que não apresenta nenhum fonema nessa

posição. Cabe ainda, ressaltar que, diferentemente do sistema vocálico do português, em

Tikuna, há a vogal central alta //.

Por entendermos que diferenças fonológicas geram implicações fonéticas, julgamos

importante também tecermos considerações acerca das diferenças entre as realizações vocálicas

em Tikuna e em português. Para tanto, replicamos, inicialmente, o quadro abaixo, em que

podem ser visualizadas as áreas vocálicas das duas línguas já mencionadas.

97 Elaborado a partir de Soares (1986) e Bisol (2001).

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204

Figura 13: Áreas vocálicas do Tikuna e do português

Fonte: Disponível em Soares (1984, p. 157)98

A partir de agora, discorremos acerca das diferenças significativas entre os sistemas

vocálicos e suas realizações em Tikuna e em Português. Inexiste, em Tikuna, o som vocálico

médio alto anterior [e], existente em Português; em Tikuna, o fonema vocálico /e/ apresenta

como única realização fonética o som vocálico médio-baixo [ɛ], já em Português, /e/ pode

apresentar as seguintes realizações fonéticas: [ɛ], [e], [i], [I]; em Tikuna, o fonema /o/ tem

apenas a realização fonética [ɔ], enquanto em Português, o fonema /o/ apresenta os seguintes

sons: [o], [ɔ], []; em Tikuna, [o] não é realização fonética do fonema /o/ e sim do fonema /u/,

outra diferença em relação ao português.

98 Área vocálica do português ----

Área vocálica do Tikuna _______

As vogais em Tikuna estão circuladas

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205

Devido a essas diferenças, acreditamos que o falante, ao usar o português de contato,

ou varia livremente entre [i~e], [e~i], [u~o] e [o~u], ora alteando, ora abaixando a vogal por

influência de seu sistema nativo, ou incorpora a oposição do sistema do português.

Com uma ocorrência maior que as outras flutuações, encontra-se, em nossa amostra,

o alteamento da vogal posterior, como nos exemplos 7.1.9 a a 7.1.9 d. Com baixa frequência,

identificamos a ocorrência de alteamento da vogal anterior, como em 7.1.9 e a 7.1.9 g. Com

raríssima ocorrência, identificamos o abaixamento da vogal posterior, como em 7.1.9 h. Em

Tikuna, o fonema /u/ pode ser realizado como [o], o que, a nosso ver, pode gerar uma

interferência que resulta na flutuação com o abaixamento da vogal posterior, conforme

exemplos em 7.1.9 h.

Uma outra flutuação que identificamos foi entre [e ~ ɛ], como nos exemplos 7.1.9 i e

7.1.9 j. Em nossa análise, também essa flutuação é motivada pela ausência da vogal média /e/

no sistema vocálico Tikuna.

A explicação para esse conjunto de variações, a nosso ver, parece estar na interferência

resultante da diferença entre sistemas fonológicos em contato, no caso o Tikuna e o português.

A esse respeito, conforme Weinreich (1953), a interferência surge quando uma pessoa

bilíngue identifica um fonema da L2 em aquisição como sendo diferente do sistema de sua L1

e, ao reproduzi-lo, submete-o às regras/restrições da primeira língua.

7.1.10 Fricativização de oclusivas (Bilabial e Velar)

Abaixo, evidenciamos trechos da fala dos participantes em que há ocorrência de

fricativização, tanto da consoante bilabial quanto da velar.

[p] ~ []

7.1.10 a) ... comunidade também tem cacique e pessoal do [ϕ]olo base também. (A.C.A./43.

MASC.)

[kw] ~ []

7.1.10 b) ... do[ј] mil e [ɸ]uatro eu fazendo sétima e oitavo séria. (J.O.C./29. MASC.)

7.1.10 c) ... [ɸ]uando eu quero repassar a... a atividade pros meus... meus aluno, né?

(J.G.M./29. FEM.)

7.1.10 d) Então não era [ɸ]ualquer professor que entrava, né? (L.J.F./37. MASC.)

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206

No capítulo 6, com base nos dados analisados por Soares (1986, 1995), evidenciamos

que entre os segmentos consonantais do quadro fonológico do Tikuna que são realizados de

forma alternante está o /kw/, que pode ser alternar com [kw] e [ɸw], como em [nikwɛnɛ] ‘ele caça’

e [niɸɛnɛ] ‘ele caça’.

Como se pode perceber por meio dos exemplos acima, em Tikuna, a consoante velar

labializada [kw] alterna com a fricativa labial, podendo essa última se apresentar labializada ou

não: [ɸw] ou [ɸ]. Essa alternância também se apresenta em alguns itens lexicais realizados pelos

professores Tikuna em língua portuguesa. É possível que esse seja um caso de transferência de

um padrão articulatório nativo para a L2, tanto da velar [kw], quando da bilabial [p], tendo em

vista que, conforme Jakobson, Fant e Halle (1952), os sons labiais e velares compartilham uma

propriedade, que é a gravidade. Tal compartilhamento propicia essa alternância. Esse fenômeno

ainda não foi verificado em nenhuma variedade de PB, o que confirma nossa segunda hipótese

de trabalho.

7.1.11 Redução de Ditongo (Monotongação)

Abaixo, evidenciamos trechos da fala dos participantes em que há ocorrência de redução

de ditongo (monotongação), tanto em posição de coda medial, quanto final.

7.1.11 a) ... aí fizer[ʊ] uma reunião que é pra poder eles me escolherem pra ser professora da

comunidade. (B.S.G./56. FEM.)

7.1.11 b) ... dava aula na língua portuguesa e em língua Tikuna só p[u]co (E.A.L./29. FEM.)

7.1.11c) eles voltar[ʊ] né a querer aprender a língua. (C.L.S./34. FEM.)

7.1.11 d) ... pe[ɾ]o meno[ø] só p[ʊ]quinho. (A.C.A./43. MASC.)

7.1.11 e) ... professor de Gi[ø]berto Mestrinho. (J.G.M./29. FEM.)

7.1.1 f) ... na escola já quem que é responsáve[ø]? (P. B.M./33. MASC.)

7.1.3 g ) (...) porque dá aula de só português só a[ø]fabeto (F.A.D./56. MASC.)

Dentre as ocorrências de redução de ditongos identificadas em nossa amostra, estão

aquelas relacionadas aos ditongos decrescentes [ãw] e [ow] e que trouxemos à baila de

exemplificação, tendo em vista que os dados revelam o seguinte: os contextos em que ocorrem

a ditongação no português falado pelos professores Tikuna não apresentam significativa

diferença em relação ao que acontece em português, ou seja, conforme Bisol (2001), os

ditongos que mais apresentam o fenômeno da monotongação em PB são os decrescentes.

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207

Ainda de acordo com Bisol (2001), dentre os ambientes mais favoráveis à

monotongação estão a presença da tepe ou da palatal em posição anterior ao ditongo. Em nossos

dados, identificamos que os os ditongos presentes nas formas verbais antecedidos por tepe são

os que mais frequentemente se monontogaram. Esse comportamento fonético pode ser indício

da replicação dessas formas verbais do PB no português Tikuna.

Em 7.1.11 b e 7.1.11 d, a fusão do ditongo decrescente /ow/ resulta na vogal alta

posterior [u], [ʊ], diferentemente do português, em que, nesse ambiente, é esperada a vogal

média alta [o]. Essa realização tem relação com o sistema vocálico Tikuna, diferente do

português, em que [o] não é realização fonética do fonema /o/ e sim do fonema /u/. Conforme

já explicitamos na seção 7.1.9, devido a diferenças entre os sistemas vocálicos do português e

Tikuna, acreditamos que o falante, ao usar o português de contato, ou varia livremente entre

[i~e], [e~i], [u~o] e [o~u], ora alteando, ora abaixando a vogal por influência de seu sistema

nativo ou incorpora a oposição do sistema do português.

Ainda em relação à monotongação no Português Tikuna, cabe ressaltar que os

processos em que ocorre a perda de elementos são tendências universais das línguas. Dessa

forma, vemos na monotongação no PT uma relação direta entre a estrutura silábica dos dois

sitemas: Português e Tikuna, em que há o rearranjo dos componentes da sílaba para se

enquadrar no padrão CV, como em 7.1.11 e, por exemplo.

7.1.12 Ditongação (ou Iotização)

Abaixo, evidenciamos exemplos de fenômenos que dizem respeito ou à inserção de [j]

após fricativa alveolar ou ao apagamento da palatal lateral, sendo esta substituída pela

semivogal correspondente à vogal anterior alta /i/. Nos dois casos, temos como resultado o

surgimento de ditongo, conforme podemos visualizar abaixo.

7.1.12 a) ... formei [i] terceiro ano e veio pra cá no sede São Paulo de olivenç[ј]a (J.M.T./30.

MASC.)

7.1.12 b) ... agora que eu tô aí cada vez mais mê... me[ј]orando a minha situação (N.C.FR./28.

FEM.)

Em 7.1.12 a, a ditongação ocorre após a presença da fricativa alveolar. A esse respeito,

cabe lembrar o que apresentamos na seção 6.1.2, como base em Soares (1995). De acordo com

a pesquisadora, deriva-se de /a/ os movimentos [ɩa] e [aɨ]. A inserção da semivogal [j] no item

lexical ‘Olivença’ pode ter sido motivada pela aproximação de sons pelo falante em processo

Page 208: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

208

de aquisição. No Tikuna, há a palatalização do movimento vocálico [ɩa], por exemplo, que

ocorre após a produção de consoantes realizadas como ligeiramente retroflexas, no caso, [tʂ]

(realização de /ts/). Como em português, não existe o som da fala [tʂ] e o mais próximo é a

fricativa alveolar [s] (vinculada a /s/), é de se esperar que os falantes de menor fluência

estabeleçam identidade entre esses sons e, consequentemente, realizem os movimentos

vocálicos que aquele fonema propicia em Tikuna e transfiram esse movimento para o português.

Em 7.1.12 b, ocorre um fenômeno conhecido como iotização. Conforme Câmara Jr.

(1970), a iotização consiste na transformação de uma vogal ou consoante para a vogal anterior

alta /i/ ou para a semivogal que lhe corresponde ou iode. Ainda conforme o autor, é um

fenômeno comum nos falares afro-brasileiros, crioulos portuguesa a iotização das consoantes

molhadas /ʎ/ e /ɲ/, como por exemplo: mulher > muyé; nhonho > ioiô. O fato de a lateral /ʎ/

não fazer parte do inventário fonológico do Tikuna pode ser uma das razões para a iotização

desse fonema por alguns professores Tikuna, especificamente os que se encontram na base do

continuum.

7.1.13 Nasalização de Vogal

Em nossa amostra, identificamos o fenômeno de nasalização em itens lexicais que

apresentam uma consoante nasal seguinte, mas não necessariamente contígua ao primeiro

segmento nasalizado de uma palavra (ver abaixo 7.1.13a).

A hipótese aqui poderia ser a de que, determinados falantes Tikuna estariam levando

adiante um processo de propagação da nasalidade que, existente, de curta distância e com

características predominantemente locais em português, tem na vogal [a] um elemento

importante: seja pelo fato de essa vogal, em Tikuna, ser mais baixa do que a do PB (cf. quadro

comparativo da área vocálica das duas línguas em Soares (1984, p. 157) e replicado acima) e

um pouco de adição de nasalidade a vogais orais em Tikuna é comum, sem que isso leve

necessariamente à percepção da categoria vogal nasal (cf. Idem, p. 155-161); seja devido à

própria percepção que falantes Tikuna podem ter da vogal [a] nasal ou nasalizada do português

(que se torna menos baixa com a adição da nasalidade); seja ainda a combinação dessa

percepção com a pouca estudada produção linguística de falantes nativos de português que

fazem parte da chamada (e também pouco estudada, em termos sociais e linguísticos) sociedade

envolvente da realidade Tikuna. Como está aqui uma matéria para investigação futura, diremos,

preliminarmente, que, por assimilação regressiva, a vogal adquire o traço de nasalidade, como

visto em 7.1.13 a. Também salientaremos que esse é um caso muito comum no PB e se

Page 209: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

209

manifesta em falantes menos escolarizados. Em nossa amostra, a nasalização, nesse contexto,

esteve presente em quase todas as faixas do continuum.

Também identificamos a nasalização em vogal alta anterior, seguida de consoantes

oclusivas, como em 7.1.13 b e 7.1.13 c). Diferentemente do caso anterior, não temos aqui um

caso de propagação da nasalidade. Parece se tratar de um caso de nasalidade espontânea (isto

é, não condicionada) que tem como seu suporte desencadeador privilegiado a vogal anterior

alta: uma vez nasalizada, mesmo com pouca adição de nasalidade, essa vogal é facilmente

perceptível como tal em diferentes línguas não geneticamente relacionadas e geograficamente

separadas (cf. Soares, 1979), o que poderia ser imputado à diferença marcante, em termos de

fonética acústica, entre o spectrum de uma vogal alta anterior oral e aquele de sua contraparte

nasal/nasalidade. Se assim for, estaríamos aqui diante de um caso que, para além do contato

linguístico, exemplificaria tendências mais gerais em termos de surgimento e percepção de

nasalidade vocálica. De todo modo, esse caso, tal como o anterior, é indicador de investigações

futuras na região do Alto Solimões, e não apenas entre os falantes de Tikuna.

7.1.13 a) ... eu sempre digo [a]ssim eu trabalho numa repartição onde você incentiva a nossa

língua mas aí em casa nós tamo[ø] perdendo a nossa cultura. (B.C.C./35. FEM.)

7.1.13 b) ... voltar de novamente a lugar de Paranapara um e tem de [i]dade [dʐiʐɛʂɛtʂI] ano[ø].

(O.B.A./54. MASC.)

7.1.13 c) ... portuguê[ј] não [i]gual de língua [tʂ]ikuna né? (A.C.A./43. MASC.)

Page 210: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

210

7.2 VARIAÇÃO NO ÂMBITO MORFOSSINTÁTICO

Nesta seção, apresentamos alguns fenômenos em variação, no âmbito morfossintático,

identificados na fala dos professores Tikuna, cujas ocorrências ilustramos no gráfico abaixo.

Gráfico 10: Fenômenos morfossintáticos identificados nas falas dos professores Tikuna

Como se pode notar, dentre os fenômenos que registramos, os de maior ocorrência,

por exemplo, foram: concordância nominal variável (gênero); concordância nominal variável

(número), não (ou indevida) flexão de tempo verbal, concordância verbal variável e

omissão/substituição ou uso inadequado de preposições.

050

100150200250300350400450

429 429390

275

8943 22 30

6

Fenômenos Morfossintáticos

Page 211: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

211

No gráfico abaixo, apresentamos o quantitativo de ocorrências de fenômenos

morfossintáticos identificados a partir da fala de cada participante.

Gráfico 11: Quantidade de ocorrência de fenômenos morfossintáticos por pessoa

Tal como aconteceu com os fenômenos fonético-fonológicos, aqui, ao visualizarmos o

gráfico, podemos constatar que a quantidade de ocorrências dos fenômenos morfossintáticos

variáveis é superior entre as pessoas de gênero masculino, a diferença está no fato de que aqui

as duas faixas etárias apresentam-se no ápice da variação.

A seguir, apresentamos fenômenos morfossintáticos registrados a partir da fala dos

participantes que compõem esta pesquisa, buscando-se explicar se essas ocorrências são

motivadas por transferência e/ou interferência da L1 ou por outra possível motivação.

7.2.1 Variação na marcação da flexão de número nos sintagmas nominais

Na língua Tikuna, a indicação de número que expressa a quantidade “mais de um” é

feita por meio da partícula gü, que se posiciona à direita do nome (oregü ‘histórias’; werigü

‘pássaros’; yatügü ‘homens’; aegacügü ‘governos’).

0

20

40

60

80

100

120

140

160

180

200200

145 141 141 138133

120

8782

6356 53

4840 39 39 35

30 30 28 28 28

9

Fenômenos Morfossintáticos X Participantes

Page 212: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

212

Vejamos, a seguir, exemplos de como ocorre a flexão de número no interior do

sintagma nominal, em sentenças produzidas em língua portuguesa pelos participantes da

pesquisa.

7.2.1a) nós somo[ø] cinco irmão[ø]. (B.S.G./56. FEM.)

7.2.1 b)...e ficou dois cadeira[ø] efetiva[ø] agora. (J.M.G./40. MASC.)

7.2.1 c)... aí que eu tô conseguindo trabalhando com as criança[ø]. (N.C.FR./28. FEM.)

7.2.1 d)...as palavra[ø] que tá escrito na bíblia. (E.D.I./33. MASC.)

7.2.1 e)... pra melhor educação na comunidades. (P. B.M./33. MASC.)

7.2.1 f)... eles criavam os animais de vários tipos. (W.A.S./51. MASC.)

7.2.1 g)... tudo aquele disciplinas. (N.C.F./42. FEM.)

As sentenças acima foram extraídas da amostra de nossos dados, como exemplos que

ilustram a variação de fala analisada por nós. Nessa amostra, constatamos que a marca explícita

de plural ocorre: i) com elevada frequência, apenas no primeiro dos elementos flexionáveis do

SN, como em 7.2.1 c e 7.2.1 d; ii) com baixíssima frequência, em todos os elementos

flexionáveis do SN como em 7.2.1 f; iii) com elevada frequência, em nenhum dos elementos

flexionáveis do SN, quando antecedidos por um numeral que indica quantidade mais de um,

como em 7.2.1 a e 7.2.1 b e iv) com raras ocorrências, apenas no elemento à direita do SN,

como em 7.2.1 e e 7.2.1 g.

A concordância nominal é um fenômeno variável no PB e muitos estudiosos têm se

debruçado sobre esse tema. Dentre os estudos que versam sobre a concordância variável de

número entre elementos do sintagma nominal e que abarcam as variedades do português como

L1, podemos citar, entre outros, os de Braga e Scherre (1976), Scherre (1978, 1994); Vieira e

Brandão (2014). E, dentre aqueles estudos que abarcam as variedades do português como L2,

podemos citar, entre outros, os de Fernandes (1996), Loureiro (2005), Baxter (2009), Lima e

Silva (2011), Christino e Silva (2012), Brandão (2015) e Ribeiro (2018).

Scherre (1994), no texto Aspectos da Concordância de Número no Português do

Brasil, ilustra alguns exemplos de estruturas analisadas por ela em 1988 e obtidas por meio do

banco de dados do Corpus Censo do grupo PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da

Língua). A pesquisadora extraiu da amostra todos os sintagmas nominais plurais passíveis de

variação não prevista pela tradição gramatical brasileira. Dentre as estruturas analisadas, há

aquelas que se assemelham às produzidas pelos nossos participantes, conforme exemplificamos

acima, com exceção do exemplo 7.2.1 e.

Page 213: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

213

De acordo com Scherre (1994), e de tantos outros estudiosos que se debruçam acerca

da concordância nominal, as variedades populares do português brasileiro manifestam a

tendência a marcar expressamente o número plural no(s) primeiro(s) elemento(s) do sintagma

nominal. Portanto, o emprego da flexão de número no interior do sintagma nominal em

sentenças realizadas pelos Tikuna no(s) primeiro(s) elemento(s) do sintagma nominal pode

estar relacionado à maneira como eles estão aprendendo/aprenderam o português.

Por outro lado, o exemplo 7.2.1 e, ainda que tenha sido raramente encontrado em nossa

amostra, ilustra a existência da variação na concordância de número que apresenta marcas de

flexão na posição à direita do nome determinado, diferentemente do padrão do PB, mas

semelhante ao padrão Tikuna, conforme demonstramos no início da seção. Os dados presentes

nos trabalhos de Amado (2015); Christino e Lima e Silva (2012); Christino e Silva (2017), que

versam sobre as variedades de português indígena dos povos Timbira, Kaingang e Huni-Kuin,

respectivamente, também apresentam a marcação expressa de plural apenas no elemento que se

encontra mais à direita do sintagma nominal. Em todos esses trabalhos, as autoras consideram

essa marcação como sendo uma forma peculiar de expressão de concordância ligada às

características estruturais das línguas indígenas, que apresentam a marcação de plural à direita,

como é o caso da língua Tikuna também.

7.2.2 Flutuação com ausência da marcação da flexão de gênero no sintagma nominal

Conforme Soares (1992, 2000), a flexão de gênero não ocorre em Tikuna. A indicação

de feminino, bem como de masculino, se dá por meio de marcas de terceira pessoa no nome e

no verbo, de formas dêiticas, das partículas i (feminino), ya (masculino) que antecedem o nome

(ou formas nominalizadas). Exemplificamos aqui esta última:

ya nuta (ya ‘masculino’) - ‘(a) pedra’

i bu’ü (i ‘feminino’) - ‘(a) criança’

i ore (i ‘feminino’) - ‘(a) história’

Abaixo, apresentamos algumas sentenças em português proferidas pelos participantes

de nosso estudo, em que se pode verificar a ausência da marcação da flexão de gênero no

sintagma nominal.

7.2.2 a) ... língua Tikuna é meu língua. (J.O.C./29. MASC.)

7.2.2 b) ... meu nação é De’remüna (N.C.F./42. FEM.)

Page 214: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

214

7.2.2 c) ... naquele época sempre o papai trabalha no... no coisa... no seringa também.

(P.B.M./33. MASC.)

7.2.2 d) Eu queria pensar na minha futuro. (H.A.R./38. MASC.)

7.2.2 e) ... aí chegar minha professor Reinaldo. (F.A.D./56. MASC.)

7.2.2 f) .... nossa alimento assim... pei[ʂ]e bem guisado. (A.C.A./43. MASC.)

Conforme mencionamos na seção anterior, a concordância variável de número entre

elementos do sintagma nominal no PB tem sido amplamente estudada por pesquisadores

brasileiros, dada a variação existente entre os elementos que constituem o SN. No entanto,

concordância variável de gênero não tem sido objeto amplo de estudos, tendo em vista que a

concordância de gênero em todos os elementos constitutivos do SN, por alguns estudiosos, tem

sido considerada como categórica no PB brasileiro (cf. Holm, 2008). No entanto, há pesquisas

acerca de outras variedades do PB, seja como L1 ou como L2, que atestam a variação de gênero

entre elementos do sintagma nominal, como, por exemplo, os de: Lucchesi e Macedo (1997),

que versa sobre a concordância de gênero no português de contato do Alto Xingu; Lucchesi

(2000), que analisa a variação na concordância de gênero em Helvécia, uma comunidade de

fala afro-brasileira da Bahia; Dettoni (2003) e Lima (2008), que analisam a variação na

concordância de gênero no falar cuiabano e, o de Christino (2015), que apresenta a primeira

descrição da concordância de gênero no interior do sintagma nominal no Português Huni-Kuin.

Nesse trabalho, a autora observa diferentes classes gramaticais e considera tanto núcleos do

gênero masculino quanto do gênero feminino, procurando reconhecer traços ligados a

universais de segunda língua e diferenciá-los daqueles relacionados a transferências da L1.

No que se relaciona à variação da concordância de gênero no interior do sintagma

nominal na variedade de português falada por indígenas, o trabalho de Amado (2015) sinaliza

para o fato de que os falantes Timbira não cumprem a concordância determinante-determinado,

como um falante nativo de PB faz porque as marcas de gênero nominal no português, que,

majoritariamente, não fazem alusão a sexo, podem não ter significação para os Timbira, tendo

em vista o padrão diferenciado do Timbira, que utiliza uma palavra antes do nome para

expressar sexo.

Com relação à concordância de gênero em sintagmas nominais, Christino (2015)

observou no Português Huni-Kuin uma tendência excessiva em generalizar formas masculinas.

Tal fato, conforme a autora, possivelmente está relacionado aos universais de aquisição da L2.

Em nossos dados, também encontramos a mesma tendência, conforme ilustramos acima, nas

sentenças 7.2.2 a, 7.2.2 b e 7.2.2 c.

Page 215: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

215

Além da tendência excessiva em generalizar formas masculinas, também

identificamos, em nossos dados, nomes masculinos sendo associados a formas femininas de

determinantes, conforme pode ser visto nas sentenças 7.2.2 d, 7.2.2 e e 7.2.2 f. Tal ocorrência

também foi registrada por Christino (2015) no Português Huni-Kuin. Tal como nos dados de

Christino, em nossos dados, a ausência de concordância explícita de gênero ocorre com maior

frequência entre pronomes demonstrativos.

Em nossa análise, ainda que, tal como Christino (2015), consideremos que essa

variação de gênero seja uma realidade prevista pelos estudos que versam sobre os universais de

aquisição da L2, entendemos, assim como Amado (2015) que a motivação para esse tipo de

variação se encontre no fato de haver diferença entre o padrão de marcação de gênero do

português e o da língua materna dos falantes. Esse fato pode contribuir para que a marcação de

gênero em português não tenha significação para os Tikuna. A tendência pode ser universal,

mas a motivação tem a ver com o fato de os sistemas linguísticos serem diferentes.

7.2.3 Variação na concordância verbal

Na língua Tikuna, a flexão que marca o número e a pessoa ocorre na margem esquerda

do verbo, diferente do padrão morfológico do português, em que o morfema indicador de

número e pessoa se manifesta na margem direita do verbo. Veja alguns exemplos em Tikuna.

Yeguma tchi – üé99 ‘Naquele tempo eu embarquei’

naquele tempo 1PS. embarcar

Reinaldo airu ni-ma’100 ‘Reinaldo matou o cachorro’

Reinaldo cachorro 3PS. matar

Nos dados analisados por nós, evidenciamos variação na marcação (ou não) da

concordância verbal, conforme explicitamos a seguir.

99 Extraído de Soares (2000, p 57). 100 Extraído de Soares (2000, p 26).

Page 216: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

216

- No emprego da primeira pessoa do singular

Identificamos, nos dados de fala dos professores Tikuna, a variação na concordância

verbal no emprego da primeira pessoa do singular, sendo recorrente o uso do pronome de

primeira pessoa do singular acompanhado de forma verbal na terceira pessoa.

7.2.3 a) ... pouquinho de minha história eu fala pra meu aluno. ( J.M.G./40. MASC.)

7.2.3 b)... por causa disso que eu desistiu. ( B.S.G./56. FEM.)

7.2.3 c) Eu fez um processo seletivo de novo aí passou. ( J.O.C. 29/MASC.)

7.2.3 d)... eu sempre fala na língua Tikuna. ( E.A.L./29. FEM.)

7.2.3 e) ... mas não fala português com elas só língua materna. (eu) (H.Z.M./34. MASC.)

No paradigma verbal presente em nossa amostra, verificamos, em praticamente todas

as faixas do continuum, uma nítida tendência à neutralização das formas flexionadas de número-

pessoa em favor da pessoa gramatical não-marcada, ou seja, a terceira pessoa singular.

Tal como ocorre com a concordância variável de número entre elementos do sintagma

nominal, a concordância variável entre os elementos do sintagma verbal também tem sido

objeto de vários estudos por pesquisadores brasileiros que investigam as variedades regionais

e sociais do PB, sendo recorrente o estudo com as regras de concordância da primeira e terceira

pessoa do plural e, menos recorrente, da segunda pessoa do singular.

No Brasil, a regra de concordância de primeira pessoa verbal é tida como categórica

(cf. Emmerich, 1984; Lucchesi e Baxter, 2009) e não tem sido alvo de muitos estudos

linguísticos, restringindo-se a poucas pesquisas que versam sobre elementos característicos de

língua de contato, como, por exemplo, o de Emmerich (1984), que trata da língua de contato no

Alto Xingu e os de Ferreira (1994), Baxter e Lucchesi (1997), que identificam a existência de

crioulização no português brasileiro.

Em nosso trabalho, concebemos essa variação na concordância da primeira pessoa

verbal, recorrente na fala dos professores Tikuna participantes de nossa pesquisa, como sendo

motivada pela diferença entre o padrão morfológico entre o português e o Tikuna. Os fatores

linguísticos e socioculturais que condicionam a incorporação linguística da regra com

referência à primeira pessoa singular serão estudados na subseção 7.4.2.

Além da variação no emprego da primeira pessoa do singular, mais presente em

falantes de português como segunda língua ou língua estrangeira, também identificamos outras

Page 217: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

217

variações, estas também presentes em outras variedades de português, inclusive faladas como

L1. A seguir, exemplificamos a variação encontrada em nossa amostra.

Com pouca ocorrência, identificamos variação verbal no emprego da primeira pessoa

do plural:

7.2.3 e)...nós tem dúvida. (H.Z.M./34. MASC.)

7.2.3 f) nós vai seguir a caminho pra levar o futuro pra melhor educação. (P. B.M./33. MASC.)

Com baixa ocorrência, também identificamos variação verbal no emprego da terceira

pessoa do plural:

7.2.3 g)... não trabalha professore[ø] nossa língua. (A.C.A./43. MASC.)

7.2.3 h) foi eles que me chamaram. (E.D.I../33. MASC)

7.2.3 i) essa dois língua[ø] é muito importante pra nós. (L.F.D./27. MASC.)

7.2.3 j) os professore[ø] é de lá. (B.S.G./56. FEM.)

Essa baixa ocorrência no emprego de pessoas do plural pode ser explicada pelo fato

de que não controlamos essa variável, além disso, muitos pontos de nossa entrevista se

constituíam como relatos de vida, em que era mais utilizada a primeira pessoa do singular, ou

seja, a pessoa que estava falando, falava, majoritariamente, em primeira pessoa.

7.2.4 Não marcação/distinção de tempo na forma verbal

Soares (2000, 2008) defende que em Tikuna, uma categoria como Tempo, que integra

teoricamente o nódulo Flexão, é um dêitico que tem por escopo toda a sentença. Essa afirmação

é mantida em Soares (2017), com a diferença de que o Sintagma Temporal (TP) é visto como

operador, porém não fora da sentença. A manifestação do Tempo se dá por meio de

constituintes que se encontram no interior da sentença, mas não no verbo.

Conforme exemplificamos nas orações abaixo, na fala dos professores com os graus de

fluência mais baixos, o verbo é, geralmente, flexionado no presente, pretérito perfeito e

imperfeito, no entanto, o momento da ação não encontra correspondência nessas flexões. A

correspondência do tempo da ação encontra correspondência no uso de itens lexicais agora,

antes, desde pequeno, durante uns tempos. Em nossa amostra, também identificamos esses

tempos sendo frequentemente neutralizados com a forma do infinitivo, como em 7.2.4 d.

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218

7.2.4 a) ... isso é minha vida eu sempre ando no mato quando era mais... mas tem nove ano[ø]

por aí (era/andava/tinha). (L.F.D./27. MASC.)

7.2.4 b)... e durante uns tempos também não entende bem língua português... até agora eu

tava querendo compreender melhor (entendia/ estou). (J.M.G./40. MASC.)

7.2.4 c).... ante[ø] não sei agora já consegui pouco (sabia/consigo). (J.M.T./30. MASC.)

7.2.4 d)... esse daí que minha madrinha co...colocar no...no tempo de...desde pequeno.

(colocou) (F.A.D../56. MASC.)

Conforme Soares (2017), “não há evidências, no que poderia ser uma sentença

encaixada, de engatilhamento de concordância com o tempo de uma oração matriz através de

um mecanismo de identificação gramatical” (SOARES, 2017, p. 306).

No que diz respeito ao Tempo em Tikuna, cabe enfatizar que, no interior da sentença,

estão determinados elementos que estão no seu escopo, no entanto, esses elementos não estão

no verbo e têm o seu alcance limitado à própria sentença. Em Tikuna, não há imposição de

concordância temporal entre uma oração principal e uma oração complemento. Tal fato é

compatível com a característica do Tikuna, de ser uma língua que não apresenta

sequenciamento temporal (SOT).

Orações com estruturas parecidas como as produzidas pelos participantes Tikuna são

apresentadas por Souza e Amado (2011), em orações produzidas em Português Timbira. De

acordo com as autoras, a ausência de formas verbais flexionadas no passado é frequente em

Português Timbira e a marcação de tempo é estabelecida pelos advérbios. Emmerich (1984)

também apresenta o registro com orações parecidas como as apresentadas acima, em orações

produzidas em Português Xinguano. Conforme, a pesquisadora, para indicar noções de passado,

ou ainda, de futuridade, o falante recorre ao uso de determinados itens lexicais, como antigo,

já e amanhã.

A morfologia verbal, nos dados de nossa amostra, apresenta reduções no seu aspecto

modal, temporal e paradigmático e, no nosso entender, essa redução se dá por conta das

diferenças entre os paradigmas verbais do Tikuna e do português com as quais o falante em

estágio aquisitivo precisa lidar.

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219

7.2.5 Omissão ou uso inadequado de preposições

Além das variações que apresentamos acima, identificamos em nossa amostra outros

exemplos que podem estar associados a uma tendência de uso de determinadas estruturas na

segunda língua por conta da estrutura da primeira língua.

Observamos, com bastante frequência, a omissão e o uso inadequado de preposições.

Veja as sentenças abaixo.

- Omissão de preposições

7.2.5 a) Vendaval é longe (da) cidade aí. (A.C.A./43. MASC.)

7.2.5 b) Pergunta (para o/ao/pro) José Patrício, né? (F.A.D./56. MASC.)

7.2.5 c) Eu nasci (em) Juí. (J.M.T./30. MASC.)

7.2.5 d)... já me mandar (para) lá. (L.F.D./27. MASC.)

7.2.5 e)...estudei (na) comunidade de santa [ɾ]ita. (O.B.A./54. MASC.)

- Uso inadequado de preposições

7.2.5 f)... lá, eu estudei dos (com os) meus professores daqui do município. (B.S.G./56. FEM.)

7.2.5 g)... comecei de meu estudo quando eu tô com nove ano[ø]. (N.C.FR./28. FEM.)

7.2.5 h)...moramo[ø] de (por) muito tempo. (O.B.A./54. MASC.)

7.2.5 i)... o pessoal não tem pra (de) onde tirar água. (L.F.D./27. MASC.)

Em Tikuna, conforme Soares (1992, 2000), no interior de sintagmas adverbiais, pode-

se considerar a condição de posposição, sendo gu a posposição que assume a função de locativo

(lugar dentro); wa também locativo (lugar em, para); ca’ indica causa (por causa de ) e ma’a

significa ‘com’. Veja os exemplos abaixo:

napa i weawa ‘na rede velha’

3p.-rede x velha-locativo

guma berureca’ ‘por causa daquela abelha’

dêitico belha-por

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220

Tendo em vista a diferença estrutural quanto ao uso de preposições em sintagmas

adverbiais na língua portuguesa e o uso de posposições em sintagmas adverbiais em Tikuna, é

possível que o falante Tikuna, ao produzir sentenças em português que demandem o uso de

preposições, apresente uma certa flutuação, ora omitindo a preposição, ora usando-a de forma

indevida.

7.2.6 Ordem Sintática – SVO e Variações

Conforme já elucidamos na seção 6.2.1 desta tese, a ordem dos constituintes maiores

de uma sentença em Tikuna é flexível, e a ordem Sujeito Objeto Verbo (SOV) permite que se

fale em vinculações em Tikuna e, especificamente, de vinculações e ordem SVO.

Tendo em vista a flexibilidade em relação à ordem de palavras em Tikuna, um modo

de se chegar a uma variação de posicionamento entre os constituintes maiores de uma sentença

é o seguinte: na língua Tikuna, os constituintes são ordenados segundo um parâmetro estrutural

ou segundo uma variada manifestação casual. No que diz respeito ao parâmetro estrutural

básico, este é núcleo final e se manifesta com predicação, atribuição de papéis temáticos e casos

estruturais à esquerda. Já a manifestação casual inclui os casos estruturais (nominativo e

acusativo), os casos morfológicos, casos via cadeia com clíticos e casos via modificação do

verbo.

Veja, abaixo, exemplos de orações produzidas em português pelos participantes da

pesquisa em que há a manifestação de diferentes ordens em relação aos constituintes da

sentença.

7.2.6 a) ...eles criavam os animais de vários tipos... naquele tempo (SVO) – (W.A.S./51.

MASC.)

7.2.6 b)... não trabalha professore[ø] nossa língua (VSO) – (B.S.G./56. FEM.)

7.2.6 c)... pra tempo pagar do professore[ø] do povo me[ø]mo daqui (VOS) – (A.C.A./43.

MASC.) ‘naquele tempo o povo daqui mesmo pagava os professores’

Em Tikuna, a ordem sintática básica é SOV, no entanto, dada a flexibilidade na ordem

dos constituintes, também é possível que sejam produzidas sentenças em Tikuna nas ordens

SVO e OVS. Essa flexibilidade pode se refletir na forma como algumas frases em português

são ditas pelos falantes Tikuna, inclusive, apresentando outras ordens de constituintes,

Page 221: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

221

conforme ilustramos nas sentenças 7.2.6 a, 7.2.6 b e 7.2.6 c acima. A sentença 7.2.6 a, que

segue a ordem SVO é semelhante a sentenças comumente utilizadas por falantes nativos de PB,

no entanto, a sentença 7.2.6 b não é tão comum na fala de nativos de PB, mais incomum ainda

é a sentença 7.2.6 c.

7.2.7 Criação de flexão com acréscimo de – s

Conforme explicitamos na seção 6.1, na análise de Soares (1992a, 2000), a

concordância em Tikuna é entendida como manifestação da relação de predicação, e não como

algo que está contido em Flex, diferentemente do padrão estrutural do português. Essa diferença

pode contribuir para que alguns falantes Tikuna, na tentativa de adaptar ao padrão da L2,

empreguem a flexão com acréscimo de –s em itens lexicais que não necessitam de tal sufixo,

causando a hipercorreção, conforme exemplificamos a seguir.

7.2.7 a) quatro ano[ø] estuda aí formás e terminas ensino médio. (F.A.D./56. MASC.)

‘estudei quatro anos, aí formei e terminei ensino médio’

7.2.7 b) lá que eu aprendeus vários coisas. (M.F.C./41. MASC.)

7.2.7 c) agora vou falar um pouco a vida da minha comunidades. (P. B.M./33. MASC.)

7.2.8 Não uso do verbo

A omissão de verbos de ligação ou que indicam ação foi registrada apenas nas faixas

de baixa e média fluência:

7.2.8 a) porque as professora[ø] que estudei daqui do município. (B.S.G./56. FEM.)

7.2.8 b) do[ј] mil e três fazendo segunda séria. (H.A.R./38. MASC.)

7.2.8 c) ... aí primeiro ano já pra cá. (H.Z.M./34. MASC.)

7.2.8 d) ... eu trabalhando hoje. (M.F.C./41. MASC.)

Em Tikuna, a construção do SV que expressa a ideia de uma ação progressiva se

manifesta por meio do morfema aspectual (i-), que é acrescido antes do prefixo pessoal

subjetivo e se manifesta na margem esquerda do verbo, conforme exemplo que reproduzimos

abaixo:

Tchama rü i- tcha-wiyae ‘eu estou cantando’

Page 222: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

222

1PS TÓPICO PROGR- 1PS-cantar

(cf. tcha-wiyae ‘eu canto/cantei)

Como se pode ver, diferentemente do português, em que, para expressar a ocorrência

de uma ação de forma progressiva, o SV é composto por um verbo auxiliar e um verbo principal

no gerúndio, em Tikuna não há SV composto por auxiliar e verbo principal. A ação progressiva

é manifesta por meio da inserção do morfema aspectual (i-) no verbo.

Essa diferença entre os padrões estruturais do português e do Tikuna pode, em nossa

análise, favorecer a omissão do verbo de ligação em sentenças produzidas em português, como

em 7.2.8 b e 7.2.8 d, uma vez que a expressão de progressão já se fez presente no verbo

principal, acrescentando-se o sufixo –ndo.

Quanto à omissão de verbos como nas sentenças 7.2.8 a e 7.2.8 c, esta se apoia no

preenchimento de informação favorecido pela oralidade e pelo auxílio de gestos, que podem,

facilmente, ajudar na recuperação da informação omitida.

7.3 O CONTINUUM

Historicamente, a noção de continuum foi desenvolvida para descrever a mobilidade

linguística e social dos falantes de comunidades crioulas migrando em direção à língua padrão,

oficial. Essas comunidades foram observadas na Jamaica, Guiana Inglesa e no Hawai na

segunda metade do século XX.

A segmentação que estabelecemos do continuum em nosso estudo teve como base os

fenômenos linguísticos (cf. seções 7.1 e 7.2), a frequência destes, expressa pelos professores

Tikuna por ocasião das entrevistas ou dos relatos de vida, bem como o peso atribuído a cada

fenômeno, variando a atribuição de peso mais alto aos fenômenos que apresentavam maior

possibilidade de transferência da L1 para a L2 e menor pontuação àqueles fenômenos que

representavam replicação de condicionamentos conforme o português popular regional.

Page 223: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

223

Veja gráfico abaixo.

Gráfico 12: Base linguística para a segmentação do continuum

A grosso modo, essa segmentação consegue divisar três categorias de falantes: os de

pouco contato, abarcando os que só tiveram acesso a centros urbanos com contato um pouco

mais intenso por conta de cursos escolares modulares, mas que vivem em aldeias e com pouca

convivência nas sedes municipais, deslocando-se até elas de forma pontual, por exemplo,

realizando algumas idas às sedes municipais para receber o salário e efetivar algumas compras;

os de contato médio, ou seja, aqueles que vivem e trabalham nas comunidades indígenas, mas

que já viveram por um período maior que um ano nas sedes municipais, estudando e/ou

trabalhando, e tiveram contato mais intenso com falantes não nativos de língua Tikuna e se

deslocam com uma certa frequência para os centros urbanos; por fim, há os que apresentam

contato elevado, isto é, vivem ou viveram nos centros urbanos por um período maior que cinco

anos, realizaram grande parte dos estudos escolares e atividade laboral nos centros urbanos e,

dessa forma, mantêm um contato sistemático com falantes não nativos de Tikuna. Em nosso

estudo, o grupo mais numeroso é o que apresenta um contato mediano e o de menor

representatividade é composto por professores Tikuna da última categoria.

Cada categoria possibilita que se realizem subdivisões culturais ou linguísticas, o que

nos fez, com base em Emmerich (1984), estabelecer uma escala de fluência e proficiência,

0

200

400

600

800

1000

1200

1400

1600

1800

20001968

1669

882 871 854

611 565 557480

289 288 271 239 229 215 171 164 151 131 116 90 8524

Total de ocorrências dos fenômenos (com peso) por participante

Page 224: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

224

ancorando a variabilidade do continuum na diversidade, na frequência e no peso dos fenômenos

linguísticos variáveis observados na fala dos professores Tikuna, conforme pode ser visualizado

no gráfico abaixo.

Gráfico 13: Faixas de fluência

Emmerich (1984) concebe o continuum como uma situação linguística marcada pela

variação. Em sua tese, a pesquisadora apresentou o continuum na língua de contato do Alto

Xingu e, por meio de seu estudo, detectou que a variação no Alto Xingu se manifesta em todos

os falantes, desde o indígena monolíngue até aquele que apresenta uma fluência praticamente

bilíngue em português. Conforme a estudiosa, os diferentes níveis de proficiência e fluência

observados por ela nos falantes do alto Xingu decorrem de fatores vários, dentre os quais

podemos destacar o importante papel desempenhado pelos padrões socioculturais nativos e a

assiduidade do contato interétnico.

Com o intuito de abranger a gama de situações linguísticas observadas por Emmerich

no Alto Xingu, a pesquisadora elaborou uma escala de fluência que abarca toda a extensão do

continuum do português Xinguano. Foram elencadas sete situações ou faixas de fluência com

base nas características apresentadas no português falado pelos xinguanos, as quais incluem

desde os falantes monolíngues nas línguas nativas até os falantes com uma proficiência bilíngue

próxima àquela do falante nativo de português.

Page 225: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

225

Em nosso estudo, a partir das entrevistas e relatos de vida analisados, procedemos à

elaboração de uma escala de fluência abarcando os professores que apresentam uma variedade

com bastantes traços da língua Tikuna até aqueles que quase não apresentam traços do Tikuna

na variedade de português que usam. Dessa forma, a segmentação proposta por nós e

estabelecimento do continuum é a que demonstramos a seguir: Faixa 1 – encontra-se na base

do continuum e agrupa os falantes que manifestaram o maior quantitativo de fenômenos

variáveis como resultantes de uma transferência da língua nativa para a língua-alvo no processo

de aquisição do Português. Esses falantes vivem e trabalham nas comunidades indígenas e têm

um contato intenso com pessoas falantes de Tikuna em suas aldeias. Faixa 2 – abarca quatro

falantes que manifestaram bastantes ocorrências de fenômenos variáveis como resultantes de

uma transferência da língua nativa para a língua-alvo no processo de aquisição do Português,

porém menos que os falantes da faixa 1. Outra diferença em relação à faixa 1 é a intensidade

do contato com pessoas nas sedes municipais. Esses falantes vivem e trabalham nas

comunidades indígenas, mas já viveram nas sedes municipais, para estudar e trabalhar. Tiveram

contato mediano com falantes nativos de Português, mas, ao voltarem para as aldeias,

continuaram tendo um contato intenso com pessoas falantes de Tikuna e, no domínio

doméstico, a língua Tikuna é usada de forma privilegiada; Faixa 3 – é constituída por quatro

falantes que apresentaram uma variabilidade mediana de fenômenos fonético –fonológicos e

morfossintáticos. Dois desses falantes têm contato intenso com falantes de Tikuna, e não

realizaram consideráveis deslocamentos para outras localidades em que só se falava o Português

(F.A.D./56. MASC. e O.A.A./50. MASC.), diferentemente dos outros dois falantes (J.O.C./29.

MASC. e N.C.FR./28. FEM.). Ainda em relação às manifestações fonético-fonológicas e

morfossintáticas desses participantes, é importante frisar que três (3) deles preferiram, ao falar,

fazer um relato de vida e que suas gravações foram com tempo bastante curto (menos de quinze

minutos cada). Nesse caso, em nosso entendimento, o pouco tempo de fala desses participantes

contribuiu para que fossem computadas menos variantes na amostra da faixa 3. Quando

analisadas as falas falante por falante, apesar de o número de variantes ser reduzido, por conta

do tempo, cogitamos que há uma grande probabilidade de, em um tempo comparado com os

falantes da faixa 2, por exemplo, os da faixa 3 tivessem apresentado uma variabilidade bem

maior. Diante disso, há uma grande possibilidade de que, ao analisarmos o fator fluência nas

próximas seções (7.4.1 e 7.4.2), a faixa 3 apresente menos frequência de ocorrências fonético-

fonológicas e morfossintáticas que a faixa 2, o que nos colocará diante da necessidade de

amalgamar as duas faixas; Faixa 4- é a que tem o maior número de falantes e é composta por

professores que têm intenso contato com pessoas falantes de Português e deslocam-se

Page 226: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

226

continuamente para zonas urbanas. Apresentam uma elevada proficiência bilíngue; Faixa 5 –

encontra-se no ápice do continuum, é formada por três professoras, dentre as quais duas que

vivem nas sedes municipais, tendo intenso contato com falantes de Português, e que não

transmitiram língua Tikuna aos seus filhos; e uma professora que é casada com um não-

indígena, falante de Português como L1, e usa, cotidianamente, Português no ambiente

doméstico. Duas professoras apresentam uma elevada proficiência bilíngue, uma professora é

monolíngue em Português e está, no momento, iniciando o processo de aquisição do Tikuna.

Veja o gráfico na página seguinte:

Page 227: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

227

Gráfico 14: Continuum linguístico por faixa etária e sexo

Idade Faixa de Fluência

Faixa 1 Faixa 2 Faixa 3 Faixa 4 Faixa 5

60

∆ ○ ∆ ∆

50 ∆ ○ ∆ ∆ ○

40 ∆ ∆∆ ∆ ○ ∆ ○ ∆

30 ○ ∆ ∆ ○ ∆ ○

20

10

0

∆ Homem

○ Mulher

Page 228: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

228

A variedade de português falada pelos Tikuna configura um continuum que se

caracteriza por estágios, faixas ou graus de fluência e proficiência. Nos diferentes estágios, há

influências da língua Tikuna, no âmbito fonético-fonológico, morfossintático, replicações de

padrões da variedade popular do português falado por não-indígenas e por indígenas de outras

etnias, associando-se a realizações comuns a universais de aquisição de segunda língua.

O português Tikuna é falado pelos indígenas Tikuna para estabelecer comunicação

entre eles e a população da zona urbana, falante monolíngue de Português, ou ainda, entre eles

e alguns comerciantes peruanos, falantes bilíngues de Espanhol e Português. A variedade do

Português Tikuna se configura, também, como uma língua franca ao ser usada na interação

verbal entre os diferentes grupos indígenas que habitam na região do Alto Solimões.

7.4 ANÁLISE DE FATORES LINGUÍSTICOS E SOCIAIS QUE CONDICIONAM

FENÔMENOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS E MORFOSSINTÁTICOS NO PORTUGUÊS

TIKUNA

Esta seção descreve, em termos de frequência, os resultados do estudo sobre a variação

de /s/ em posição de onset e sobre a concordância de primeira pessoa verbal no Português

Tikuna a partir de variáveis sociais e linguísticas.

7.4.1 A variação de /s/ em posição de onset

A seguir, evidenciamos a análise da variação no uso da fricativa /s/ em posição de

onset, levando em consideração o fator linguístico contexto seguinte e as variáveis sociais

apresentadas na metodologia deste trabalho.

A maioria dos estudos sociolinguísticos se dedicam a analisar a variação no uso da

fricativa /s/ em posição de coda, tendo em vista que no português brasileiro, as consoantes

fricativas [s, ʃ, z, ʒ] participam de pares opositivos que constituem prova da existência de quatro

fonemas fricativos coronais na língua, contrariamente ao que ocorre na posição de coda. Nessa

posição, a distintividade entre tais fonemas é neutralizada.

Gomes, Brescancini e Monaretto (2015) afirmam que existe, no PB, o registro de

variação em onset de consoantes fricativas, restritas a alguns itens lexicais, como em re[ʒ]istro

~ re[z]istro e [ʃ]urrasco] ~ [s]urrasco. A esse respeito, Benayon (2010) afirma que essa variação

é altamente estigmatizada no PB.

Paiva (1997) afirma que, no português de contato falado pelos índios Xinguanos, /s/ e

/z/, por exemplo, constituem duas variantes fonéticas para a expressão do mesmo significando.

Page 229: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

229

Isso porque, conforme a pesquisadora, a inversão variável do valor do traço de sonoridade em

consoantes oclusivas, fricativas e africadas se manifesta como uma característica que marca o

português em aquisição como segunda língua pelos índios do Xingu.

Tendo essas pesquisas em mente e assumindo que, no português Tikuna, identificamos

outro comportamento de /s/ em posição de onset, o qual se mostra como alofone em distribuição

complementar, a seguir, apresentamos a variação dessa fricativa em posição de onset, no

português de contato falado pelos Tikuna, com vistas a evidenciar as variantes fonéticas que se

manifestam na fala dos professores Tikuna nesse contexto fonético.

Para descrever e analisar a variação da fricativa /s/ em posição de onset na fala dos

participantes da pesquisa, foram delimitados os seguintes fatores condicionadores (ou

inibidores) da variação em estudo:

a) Fator linguístico: contexto seguinte – vogal alta [i]; vogal média-alta [ɛ]; vogal média-

baixa [e] e vogal baixa [a];

b) Fatores sociais: gênero, faixa etária, escolaridade, localidade e grau de fluência.

Abaixo, apresentamos a atuação da variável linguística: Contexto seguinte.

Tabela 5: Atuação da variável linguística contexto seguinte para a pronúncia de /s/ em onset

Contexto

Seguinte

[s] [ʂ] [tʂ] Total Nº de

Ocorrências

Frequência Nº de

Ocorrências

Frequência Nº de

Ocorrências

Frequência

Vogal alta

[i]

395 75% 120 23% 11 2% 526

Vogal

média-alta

[ɛ]

34 79% 9 21% 0 0% 43

Vogal

média-

baixa [e]

27 37% 46 63% 0 0% 73

Vogal

baixa [a]

15 58% 11 42% 0 0% 26

Quanto aos resultados, dentre as variantes não previstas no PB padrão em relação à

fricativa /s/, [ʂ] foi a mais utilizada pelos participantes da pesquisa, com uma frequência de 63%

em posição de abertura de sílaba após vogal média-baixa. Tal fato indica que essa vogal

favorece a palatalização da fricativa, sendo esta pronunciada, ainda, com ligeira retroflexão.

Por conseguinte, de modo complementar, a variante [tʂ] foi pronunciada em apenas 2% no

universo de nossa amostra.

Page 230: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

230

O ponto sobre o qual gostaríamos de chamar a atenção diz respeito não tanto à

quantidade de ocorrências por fenômenos, mas à quantidade de variantes possíveis no português

Tikuna, quanto à variação da consoante fricativa /s/ em posição de onset, fato que não é comum

em outras variedades do PB.

Em relação à variante [ʂ], um outro fator que merece atenção é que a segunda vogal

que mais favoreceu a palatalização da fricativa, acompanhada de ligeira retroflexão, foi a vogal

baixa [a]. O fato de, tanto a vogal média-baixa quanto a vogal baixa terem contribuído para a

produção dessa variante indica que o ponto de articulação baixo favorece que a artitulação da

fricativa ocorra com recuo. Já em relação à variante [tʂ], a vogal alta foi que favoreceu a

ocorrência dessa africação.

Abaixo, será apresentada e discutida a atuação das variáveis sociais, gênero, faixa

etária, escolaridade, localidade, graus de contato e fluência no comportamento fonético-

fonológico do /s/ em posição de onset

Em relação à variável diassexual, o /s/ em posição de onset, nos dados do corpus

investigado, distribui-se da seguinte forma:

Tabela 6: Índices gerais referentes à variável social gênero para a pronúncia do /s/ em posição de onset

Gênero [s] [ʂ] [tʂ]

Total Nº de

Ocorrências

Frequência Nº de Ocorrências Frequência Nº de Ocorrências Frequência

Masculino 331 67% 153 31% 9 2% 493

Feminino 140 80% 33 19% 2 1% 175

Conforme dados expressos na tabela acima, os falantes homens são aqueles que mais

utilizam variantes de /s/, em distribuição complementar. As mulheres, por sua vez, apresentam

uma frequência quase que exclusiva da variante de prestígio.

O fato de as mulheres preferirem a variante considerada de prestígio pode ocorrer por

dois fatores. Primeiramente, conforme Paiva (2013), as mulheres manifestam menos reserva

em relação à mídia que os homens. Por serem mais expostas à mídia, tendem a utilizar mais as

variantes manifestas ali. Outro fator tem relação com o status. Em um contexto social, em que

homens e mulheres ainda são vistos de forma desigual, a mulher parece ter maior consciência,

são mais sensíveis - nos dizeres de Labov-, em relação ao status social que o homem.

A seguir, apresentamos os índices relativos à variável social faixa etária para a

pronúncia do /s/ em posição de onset.

Page 231: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

231

Tabela 7: Índices relativos à variável social faixa etária para a pronúncia do /s/ em posição de onset.

Idade [s] [ʂ] [tʂ]

Total Nº de Ocorrências

Frequência Nº de Ocorrências Frequência Nº de Ocorrências Frequência

Faixa 1 (25 a 40 anos)

323 96% 11 3% 3 1% 337

Faixa 2 (41 a 60 anos)

148 45% 175 53% 8 2% 331

Conforme se pode visualizar na tabela 8, a variante fricativa alveolar [s] apresenta

maior índice de ocorrência na faixa etária 1, sendo que os falantes mais jovens realizaram tal

variante com uma frequência quase categórica de 96%, já os mais velhos, realizaram com maior

frequência a palatal, com ligeira retroflexão [ʂ], com o índice de 53%.

A frequência mais baixa do uso da variante fricativa palatal, com ligeira retroflexão

[ʂ], (3%) e da africada palatal, com ligeira retroflexão [tʂ] (1%), pelos mais jovens, parece ser

indício de um processo de mudança em curso, com a diminuição do uso dessas variantes nas

gerações mais novas.

A seguir, apresentamos os índices relativos à variável social escolaridade para a

pronúncia do /s/ em posição de onset.

Tabela 8: Índices relativos à variável social escolaridade para a pronúncia do /s/ em posição de onset.

Escolaridade [s] [ʂ] [tʂ]

Total Nº de Ocorrências

Frequência Nº de Ocorrências Frequência Nº de Ocorrências Frequência

Ensino Superior

Completo 145 82% 30 17% 1 1% 176

Ensino Superior

Incompleto 326 66% 156 32% 10 2% 492

No que diz respeito à variável social escolaridade, Votre (2013) enfatiza que a atuação

da escola é de preservadora das formas dotadas de prestígio, geralmente negando/refutando as

tendências de mudança em curso nas comunidades economicamente menos favorecidas ou

localizadas em áreas rurais.

Tendo em vista que em muitas pesquisas sociolinguísticas que levam em consideração

essa variável, os resultados sustentam a hipótese de que quanto maior a escolaridade do falante,

maior a possibilidade de ele utilizar as formas de prestígio, em nosso estudo, elegemos

investigar o comportamento fonético-fonológico (e também morfossintático) dos falantes a

partir dessa variável.

Page 232: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

232

Os dados revelam que as variantes [ʂ] e [tʂ] ocorrem com maior frequência entre os

falantes com ensino superior incompleto, enquanto os participantes da pesquisa que têm ensino

superior completo fazem o uso mais frequente da variante de prestígio [s] (82%).

A seguir, apresentamos os índices relativos à variável social localidade para a

pronúncia do /s/ em posição de onset.

Tabela 9: Índices relativos à variável social localidade para a pronúncia do /s/ em posição de onset.

Localidade [s] [ʂ] [tʂ]

Total Nº de

Ocorrências

Frequência Nº de Ocorrências Frequência Nº de Ocorrências Frequência

Comunidade Vendaval

113 54% 87 42% 8 4% 208

Comunidade

Santa Inês 22 71% 9 29% 0 0% 31

Comunidade Otawari

10 63% 6 38% 0 0% 16

Comunidade

Paranapara I 16 16% 82 84% 0 0% 98

Comunidade Santa

Terezinha

32 89% 2 6% 2 6% 36

Comunidade Vila

Independente

77 99% 0 0% 1 1% 78

Sede de São

Paulo de Olivença

39 100% 0 0% 0 0% 39

Comunidade

Campo Alegre 69 100% 0 0% 0 0% 69

Torre da Missão

29 100% 0 0% 0 0% 29

São Domingos

II 31 100% 0 0% 0 0% 31

Santa Clara 12 100% 0 0% 0 0% 12

Nova Galileia 4 100% 0 0% 0 0% 4

Bom Jardim

do Passé 17 100% 0 0% 0 0% 17

Em relação à variável localidade, os dados mostram que os participantes que moram

e atuam na comunidade de Paranapara I foram os que mais uso fizeram das variantes não

previsíveis no PB, seguidos dos moradores de Vendaval e Santa Inês.

Ao postularmos o fator localidade, nossa intenção era identificarmos se há localidades

cujos moradores apresentam variantes que não ocorrem em outras, bem como se a localização

geográfica e o contato dos falantes de Tikuna com falantes de Português exerce alguma

influência sobre essa variação. Fato, em nossa amostra, confirmado. Tendo em vista que, em

comunidades mais próximas dos centros urbanos, como Campo Alegre e Vila Independente,

por exemplo, apresentam variação quase nula, contrariamente às aldeias mais afastadas dos

centros urbanos, como Paranapara I e Vendaval, por exemplo.

Page 233: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

233

Tabela 10: Índices relativos à variável social grau de contato para a pronúncia do /s/ em posição de onset

Grau de

Contato

[s] [ʂ] [tʂ] Total Nº de

Ocorrências Frequência Nº de Ocorrências Frequência Nº de Ocorrências Frequência

Alto 161 99% 0 0% 1 1% 162

Médio 209 82% 37 15% 8 3% 254

Baixo 101 40% 149 59% 2 1% 252

Com base nos pressupostos teóricos aqui adotados, de que a intensidade do contato

exerce alguma influência sobre o processo de aquisição de segunda língua é que utilizamos essa

variável social em nosso estudo.

Além disso, em estudos realizados em outras comunidades cujos falantes também têm

uma língua indígena como sua L1, a intensidade do contato de falantes de PB L2 com falantes

de PB L1 tem se relevado um fator importante para a análise dos estágios aquisitivos em que

esses falantes se encontram (cf. Emmerich, 1984; Paiva, 1997; Loureiro, 2005).

Nossos dados revelam o que esperávamos, isto é, no grau mais baixo de contato, as

variantes [ʂ] e [tʂ] foram mais produzidas que nos graus médio e alto.

Tabela 11: Índices relativos à variável social fluência para a pronúncia do /s/ em posição de onset

Fluência [s] [ʂ] [tʂ]

Total Nº de

Ocorrências

Frequência Nº de Ocorrências Frequência Nº de Ocorrências Frequência

Fluência 1 127 43% 159 54% 10 3% 296

Fluência 2 88 85% 15 15% 0 0% 103

Fluência 3 45 79% 12 21% 0 0% 57

Fluência 4 155 99% 0 0% 1 1% 156

Fluência 5 56 100% 0 0% 0 0% 56

Por meio da variável fluência, pretendeu-se testar e validar (ou refutar) as faixas de

fluência postuladas a partir da frequência de ocorrências dos fenômenos selecionados para

estudo, seguido de um peso para cada fenômeno, e atribuídas a cada um dos professores Tikuna.

Os resultados das cinco faixas, manifestos na tabela acima, revelam que os falantes

que se encontram na base do continuum fazem maior uso das variantes concorrentes da forma

padrão, ao passo que os falantes que se encontram nas últimas faixas do continuum usam

categoricamente a forma padrão do PB. Em termos numéricos, a frequência dos resultados nas

faixas 2 e 3 sugere a necessidade de uma amalgação dessas faixas de fluência; fato que também

ocorre com as faixas 4 e 5.

Essa variável mostrou-se de natureza complexa, haja vista que nela manifestam-se

mais nitidamente as pressões que as variáveis exercem umas sobre as outras, sendo que a

frequência da ocorrência dos fenômenos está relacionada aos contextos socioculturais, como

Page 234: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

234

intensidade do contato, ao status etário, à localidade onde os professores atuam (e para onde se

deslocaram para estudar, morar, trabalhar etc).

A segmentação das faixas de fluência, apesar da necessidade de amalgamação de

algumas delas, é válida por revelar que os professores falantes bilíngues têm diferentes graus

de fluência. Essa diferença é motivada por inúmeros fatores, dentre os quais aqueles que

apresentamos no capítulo 5 desta tese. A depender do grau de fluência do falante, ele vai usar

mais as formas alternantes que são estigmatizadas localmente ou vai utilizar mais a forma de

prestígio, aproximando-se da variedade padrão do PB e afastando-se dos condicionamentos da

sua L1.

7.4.2 A variação na concordância de primeira pessoa verbal

Esta subseção focaliza a variação na concordância verbal de primeira pessoa do

singular, com o propósito de identificar os contextos favorecedores ou inibidores do emprego

da marcação de primeira pessoa do singular, bem como avaliar a probabilidade de fixação

gradual da flexão de pessoa verbal no Português falado pelos professores Tikuna.

Conforme já elucidamos na subseção 7.2.3, no Brasil, a regra de concordância de

primeira pessoa verbal é vista como categórica (cf. Lucchesi e Baxter, 2009) e não tem sido

alvo de muitos estudos linguísticos. As investigações que focalizam a variação nessa regra de

concordância são em número bastante reduzido e analisam elementos característicos de línguas

de contato, como, por exemplo, o de Emmerich (1984), que focaliza a língua de contato no Alto

Xingu e os de Ferreira (1994), Baxter e Lucchesi (1997), que usam a variação nessa regra de

concordância como um dos argumentos para sustentar a tese da existência de crioulização na

formação do português brasileiro.

Quanto ao paradigma flexional do PB, Duarte (1995) evidencia que este tem se

reduzido a 3 formas: eu trabalho; você/ele ou ela/a gente trabalha; vocês/eles ou elas

trabalham. Essa redução ocorre por dois motivos: primeiro, devido à substituição da segunda

pessoa do singular pelo pronome você e; segundo, pela substituição da primeira pessoa do plural

por a gente. Diante desse cenário e, levando em consideração que a regra de concordância de

primeira pessoa do singular é tida como categórica no PB (cf. Emmerich, 1984; Lucchesi e

Baxter, 2009), é que a maioria dos estudos sociolinguísticos no Brasil têm se dedicado a analisar

a variação de concordância verbal entre nós e a gente (por exemplo: Menon, 2000; Omena,

2003; Tamanine, 2002, 2010; Franceschini, 2011; Mattos, 2013; Vianna e Lopes, 2015); tu e

você (por exemplo: Duarte, 1993; Lopes, 2008; Martins, 2010; Babilônia e Martins, 2011;

Page 235: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

235

Scherre et al., 2015); e terceira pessoa do plural eles ou elas (por exemplo: Naro, 1981; Scherre,

1998; Scherre & Naro, 1997; Vieira, 1997, 2015; Silva, 2005; Scherre, Naro & Cardoso, 2007;

Lucchesi, Baxter e Silva, 2009; Calazans, 2018).

Em nossos dados, identificamos variação no emprego da flexão verbal, tendo a

primeira pessoa verbal co-ocorrendo com as formas não marcadas de terceira pessoa do singular

e com as formas não marcadas de infinitivo, gerúndio ou particípio. Diante disso, elegemos

analisar esse fenômeno em nosso estudo. Em 2018, em comunidades rurais do Amazonas,

compostas por indígenas, ainda ocorre essa variação, diferentemente do que postulam muitos

pesquisadores em outras regiões do Brasil.

Para descrever e analisar a variação no emprego da primeira pessoa verbal na fala dos

professores participantes da pesquisa, foram delimitados os seguintes fatores condicionadores

(ou inibidores) da variação em estudo:

c) Fator linguístico: forma de interação.

d) Fatores sociais: gênero, faixa etária, escolaridade, localidade, grau de contato e fluência.

Abaixo, apresentamos a atuação da variável linguística: forma de interação.

Tabela 12: Atuação da variável linguística forma de interação para a marcação ou não-marcação de concordância

verbal

Forma de

interação

Presença da marca de

primeira pessoa verbal

Presença de forma não

marcada - terceira

pessoa verbal

Presença de forma não

marcada – infinitivo,

gerúndio, particípio

Total

Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência

Discurso

livre

1195 67,2% 400 22,5% 183 10,3% 1778

Discurso

reportado

34 44,1% 41 53,2% 2 2,6% 77

Para fins de esclarecimento, concebemos como discurso livre a fala espontânea dos

participantes durante o relato de vida ou nas entrevistas. Por exemplo, como nos momentos em

que os participantes eram convidados a falarem sobre a vida escolar, a vida profissional deles

e eles começavam a tecer comentários livremente. Já como discurso reportado, consideramos o

fato de os participantes repetirem a forma verbal usada na pergunta da pesquisadora para

veicularem a informação solicitada.

Page 236: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

236

Os resultados mostram que o discurso livre favoreceu a presença da marca de primeira

pessoa verbal, já o discurso reportado favoreceu o uso da forma não marcada de terceira pessoa.

A presença da forma marcada de primeira pessoa foi favorecida, tanto em discurso livre, quanto

em discurso reportado por falantes que se encontram no ápice do continumm.

Quando buscamos identificar o perfil dos participantes que usaram a forma não

marcada logo após uma pergunta em que o verbo também se apresentava na terceira pessoa do

singular, como em “você tem filhos? ”, os dados revelam que esse perfil é composto por falantes

que se encontram na base do continuum. Dessa forma, discurso reportado é entendido como um

gatilho que evidencia uma manifestação baixa de autonomia linguística ocasionada por conta

do grau de fluência bilíngue e motivação para o contato (cf. Emmerich,1984).

Tabela 13: Índices gerais referentes à variável social gênero para a marcação ou não-marcação de concordância

verbal

Gênero

Presença da marca de

primeira pessoa verbal

Presença de forma não

marcada - terceira

pessoa verbal

Presença de forma não

marcada – infinitivo,

gerúndio, particípio

Total

Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência

Feminino 427 74,6% 100 17,5% 45 7,9% 572

Masculino 802 62,5% 341 26,5% 141 11% 1284

Conforme já evidenciamos anteriormente, os homens compõem o grupo mais numeroso

de nossa amostra. Isso, no entanto, não impede que tenhamos uma base do quanto eles alternam

entre as variáveis em estudo e do quanto, comparados individualmente, eles apresentam maior

casos de variação que as mulheres.

Chambers (2003) afirma que, em praticamente todos os estudos sociolinguísticos, nos

quais há uma amostra de homens e mulheres, estas usam menos variantes estigmatizadas e não-

padrão do que os homens do mesmo grupo social, nas mesmas circunstâncias. Os estudos de

vários sociolinguistas, como Wolfram (1969), Romaine (1978) e Trudgill (1972) reiteram essa

análise. Esses estudos apresentam diferentes objetos de pesquisa, no entanto, mostram-se

similares em relação à conclusão dos fatos acerca da variável gênero/sexo, tal como neste

estudo, que reitera as interpretações de William Labov.

Page 237: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

237

Tabela 14: Índices gerais referentes à variável social faixa etária para a marcação ou não-marcação de

concordância verbal

Faixa

etária

Presença da marca de

primeira pessoa verbal

Presença de forma não

marcada - terceira

pessoa verbal

Presença de forma não

marcada – infinitivo,

gerúndio, particípio

Total

Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência

Faixa1:

25 a 40

anos

957 73,5% 262 20,1% 83 6,4% 1302

Faixa2:

41 a 60

anos

277 49,5% 179 32,1% 103 18,4% 559

Ao valermo-nos do fator faixa etária, nossa intenção era buscar determinar se as variantes

observadas nos corpora de nosso estudo estão situadas no campo de variação estável ou de

mudança linguística. A esse respeito, Tarallo (2007) esclarece que ocorre variação estável

quando não se manifestam mudanças entre as faixas etárias. Já a situação de mudança em

progresso ocorre quando o uso da variante mais inovadora se manifesta com maior frequência

na faixa etária mais jovem, sofrendo decréscimo em relação à idade dos informantes mais

velhos. Nesse sentido, podemos afirmar que as duas formas alternantes estão em situação de

mudança em progresso para a forma marcada de primeira pessoa, que foi privilegiada pelos

mais jovens em nosso estudo.

Tabela 15: Índices gerais referentes à variável social escolaridade para a marcação ou não-marcação de

concordância verbal

Escolaridade

Presença da marca de

primeira pessoa verbal

Presença de forma não

marcada - terceira

pessoa verbal

Presença de forma não

marcada – infinitivo,

gerúndio, particípio

Total

Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência

Ensino

Superior

Incompleto

953

62%

416

27%

168

11%

1.537

Ensino

Superior

Completo

281

87%

25

8%

18

5%

324

Aqui, mais uma vez, os dados revelam que a variável escolaridade exerce grande

influência sobre o uso da marca de primeira pessoa verbal, com sensível decréscimo nesse uso

por falantes situados na base do continuum.

Diante disso, temos o que segue: o resultado esperado foi alcançado, isto é, quanto

maior o nível de escolarização dos falantes, maiores foram as ocorrências que evidenciaram a

Page 238: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

238

preservação das marcas de solidariedade entre verbo-sujeito na primeira pessoa do singular.

Cabe ainda reiterar que na escola, a forma padronizada é tida como o modelo a ser seguido

pelos alunos dentro e fora das salas de aula.

Tabela 16: Índices gerais referentes à variável social localidade para a marcação ou não-marcação de concordância

verbal

LOCALIDADE

Presença da marca de

primeira pessoa

verbal

Presença de forma não

marcada - terceira

pessoa verbal

Presença de forma não

marcada – infinitivo,

gerúndio, particípio

Total

Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência

Comunidade

Vendaval

98 49% 55 28% 46 23% 199

Comunidade

Santa Inês

78 65% 34 29% 7 6% 119

Comunidade

Otawari

31 37% 36 43% 16 19% 83

Comunidade

Paranapara I

28 19% 83 56% 37 25% 148

Comunidade

Santa Terezinha

64 45% 56 39% 23 16% 143

Comunidade Vila

Independente

234 84% 36 13% 8 3% 278

Sede de São

Paulo de Olivença

116 94% 5 4% 3 2% 124

Comunidade

Campo Alegre

233 70% 75 22% 26 8% 334

Torre da Missão 93 62% 44 29% 14 9% 151

São Domingos II 108 91% 9 8% 1 1% 118

Santa Clara 64 94% 3 4% 1 1% 68

Nova Galileia 24 77% 4 13% 3 10% 31

Bom Jardim do

Passé

59 96% 5 8% 0 0 61

No estudo de Emmerich (1984), considerando-se a hierarquia dos fatores, o fator local de

residência do falante se destacou como a variável extralinguística que exerceu maior influência

sobre a língua de contato.

Conforme a pesquisadora, o fato responsável por esse resultado foi o caráter

multidimensional dessa variável, pois de uma lado, há aldeias localizadas geograficamente

próximas aos núcleos de difusão do português e esse fato exerce papel relevante sobre a fluência

dos falantes e, de outro, por se localizarem perto desses núcleos de difusão, as aldeias recebiam

bastantes visitantes não índios.

Em nosso estudo, os dados revelam que, tal como ocorreu com o fenômeno analisado

na subseção anterior, os participantes que moram e atuam na comunidade de Paranapara I foram

Page 239: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

239

os que mais uso fizeram das variantes não previsíveis no PB, seguidos dos moradores de

Otawari, Santa Terezinha, Vendaval e Santa Inês.

Por meio das entrevistas, os professores que atuam nessas aldeias nos relataram que

nessas localidades há o predomínio do uso da língua Tikuna. E, em relação à localização

geográfica, essas aldeias são distantes dos centros urbanos, para onde os professores se

deslocam com uma frequência média. Já os moradores, segundo eles, têm pouco contato com

falantes de português

Como já afirmamos anteriormente, ao postularmos o fator localidade, nossa intenção

era identificarmos se há localidades cujos moradores apresentam variantes que não ocorrem em

outras e se esse fato tinha relação com a localização geográfica e o grau de contato nessas

localidades. Fato, em nossa amostra, confirmado.

Tabela 17: Índices gerais referentes à variável social grau de contato para a marcação ou não-marcação de

concordância verbal

Grau de

Contato

Presença da marca de

primeira pessoa verbal

Presença de forma não

marcada - terceira pessoa

verbal

Presença de forma não

marcada – infinitivo,

gerúndio, particípio

Total

Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência

BAIXO 69 25% 125 46% 80 29% 274

MÉDIO 608 65% 246 26% 82 9% 936

ALTO 524 84% 70 11% 25 4% 619

Os resultados concernentes à variável social grau de contato em nossa amostra reitera

os resultados alcançados em estudos que também investigam os resultados do contato

linguístico entre os indígenas, como os de Emmerich (1984), os trabalhos elencados em

Roncarati & Mollica (1997) e o de Loureiro (2005). Nesses trabalhos, assim como em nosso

estudo, os falantes mais fluentes são aqueles que apresentam um proximidade linguística com

a língua-alvo. São também os que mais frequentemente têm contato com os falantes nativos de

PB e se deslocam das aldeias para centros urbanos.

Em nosso estudo, os falantes de grau alto apresentaram uma frequência de 84% dos

casos de marcação de concordância do verbo com a primeira pessoa do singular, ao passo que

os falantes de grau baixo apresentram uma frequência de 25%, ou seja, mais distante

linguisticamente do padrão da língua-alvo.

Page 240: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

240

Tabela 18: Índices gerais referentes à variável social fluência para a marcação ou não-marcação de concordância

verbal

Faixa de

fluência

Presença da marca de

primeira pessoa verbal

Presença de forma não

marcada - terceira pessoa

verbal

Presença de forma não

marcada – infinitivo,

gerúndio, particípio

Total

Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência Número de

Ocorrências

Frequência

Faixa 1 177 40% 173 39% 89 20% 439

Faixa 2 293 61% 148 31% 37 8% 478

Faixa 3 107 53% 64 31% 32 16% 203

Faixa 4 470 86% 49 9% 27 5% 546

Faixa 5 183 95% 8 4% 1 0,5% 192

Como se esperava, os dados revelam que os falantes das faixas mais altas do continuum

realizam, com um alto índice (86% e 95%), a concordância verbal de primeira pessoa do

singular, enquanto os falantes da faixa mais baixa do continuum realizam essa concordância

com índice menor (40%). Tal fato atesta a validade das faixas de fluência que estabelecemos

em nosso estudo, pois os falantes das faixas 4 e 5 demonstram uma elevada fluência bilíngue,

com as menores ocorrências de transferência de traços da L1 na variedade de português que

eles falam; já os falantes da faixa 1 apresentam uma fluência bilíngue marcada por traços

acentuados de transferência da L1 nos níveis estudados; por outro lado, os falantes das faixas

2 e 3 apresentam um fluência bilíngue que oscila entre transferência de L1, porém menos que

os da faixa 1, e incorporações de padrões da língua-alvo (Português), também, menos que os

das faixas 4 e 5.

Na tese de Emmerich (1984), a pesquisadora defende que a variação entre a primeira

pessoa verbal e a forma flexionada de terceira pessoa singular é característica de línguas em

contato e que tal fenômeno marca o português xinguano, considerado como pidgin pela

linguista. Já nos trabalhos de Ferreira (1994), Baxter e Lucchesi (1997), encontramos a defesa

de que essa variação entre a primeira pessoa verbal e a forma flexionada de terceira pessoa

singular é característica de línguas em contato, sendo fruto da transmissão linguística irregular

e utilizada como um dos argumentos em favor da existência de crioulização no português

brasileiro. Por outro lado, Naro e Scherre (2007) rechaçam os estudos que utilizam a

neutralização entre 1ª e 3ª pessoa do singular como argumento para validar a hipótese de

crioulização no português brasileiro, bem como rechaçam os estudos que usam essa

neutralização como argumento para evidenciar a influência de processos de aquisição do

português como segunda língua ou como língua estrangeira. De acordo com os autores, “os

Page 241: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

241

paradigmas verbais da língua portuguesa codificada pelas gramáticas tradicionais – normativas

ou não- estão repletos de neutralização de 1as e 3as pessoas do singular, não interpretadas como

falta de concordância”. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 93).

Naro e Scherre (2007) realizaram um verdadeiro garimpo linguístico na tentativa de

identificar traços linguísticos no português europeu não padrão que têm sido considerados, em

alguns estudos sobre o contato de línguas, como exclusivos do português popular brasileiro.

Em nosso estudo, o fato de ocorrerem, na fala dos professores Tikuna, variantes

concorrentes com a regra de concordância de primeira pessoa do singular é fruto do estágio

aquisitivo em que se encontram esses falantes de português como segunda língua e essa

variação faz parte da variedade de Português Tikuna. Contrariamente a que outros estudos

postulam, de que a regra de concordância de primeira pessoa, na atualidade é categórica no PB

(cf. Emmerich, 1984; Lucchesi e Baxter, 2009), inclusive em comunidades rurais, em nosso

estudo, tal postulação é refutada e marca a variedade do Português Tikuna, cujos falantes

apresentam diferentes graus de fluência.

Page 242: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

242

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados que evidenciamos nessa tese fazem parte de uma pesquisa, por meio da

qual pudemos registrar, analisar e caracterizar a variedade de português falada por professores

Tikuna bilíngues que moram em comunidades (aldeias) pertencentes ao município de São Paulo

de Olivença, no Amazonas, atingindo, dessa forma, o nosso objetivo.

Como partes constitutivas do registro, da análise e da caracterização do Português

Tikuna (PT), adotamos os seguintes procedimentos metodológicos: (i) os dados foram gerados

a partir da aplicação do método etnográfico de entrevistas e de relatos de vida dos partipantes

de nossa amostra; (ii) fizemos o levantamento da situação sociolinguística dos participantes,

bem como das atitudes e dos usos linguísticos, das redes de interações linguísticas, dos

deslocamentos, da escolaridades e da identidade do grupo pesquisado, buscando associá-los à

variedade de português usada por esse grupo, considerando o contexto indígena em que se

inserem as línguas aí em jogo, no caso o Tikuna e o Português; (iii) investigamos as

características da gramática da língua Tikuna, as quais foram relevantes para a identificação de

traços particulares relacionados a possíveis mecanismos de interferência/transferência da L1 no

uso do português falado como segunda língua pelos professores Tikuna participantes de nosso

estudo; (iii) registramos e analisamos a variação fonético-fonológica no âmbito dos dados

produzidos pelos professores Tikuna ao falarem português; (iv) registramos e analisamos a

variação morfossintática nesse mesmo âmbito; (v) estabelecemos o continuum, o qual se

caracteriza por diferentes faixas de fluência que evidenciam o estágio aquisitivo dos professores

na segunda língua (português); e, (vi) por fim, apresentamos a análise de fatores linguísticos e

sociais que condicionam a variação de fenômenos fonético-fonológicos e morfossintáticos no

Português Tikuna.

Tais procedimentos abriram caminho para a caracterização do Português Tikuna e nos

permitiram, de um lado, descrever e analisar alguns fenômenos variáveis no português falado

pelos Tikuna e, de outro lado, testar hipóteses de trabalho e atingir os objetivos da pesquisa.

Com a finalidade de sermos didáticos, a seguir, passamos a evidenciar as hipóteses de

trabalho, em função dos resultados alcançados, por meio dos quais defendemos as hipóteses

levantadas, respondemos as questões da pesquisa e evidenciamos como ocorreu o registro, a

análise e a caracterização da variedade estudada.

As primeiras quatro hipóteses de trabalho relacionam-se a fenômenos linguísticos no

âmbito fonético-fonológico e morfossintático. A quinta e a sexta hipóteses referem-se a

aspectos socioculturais e linguísticos do contato Tikuna-Português.

Page 243: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

243

Em nossa investigação, partimos, inicialmente, da hipótese de que ao falarem

português, os professores Tikuna manifestam traços de sua própria língua materna, o que deixa

indícios de que, ao adquirirem uma segunda língua, eles usam a estratégia de valer-se de

material e regras/restrições de sua língua materna. Para testarmos nossa hipótese,

primeiramente, fizemos a identificação e registro de fenômenos que apresentam variação nos

níveis fonético-fonológicos e morfossintáticos, em seguida, fizemos uma revisão, com base

nos estudos de Marília Facó Soares, de aspectos da Fonologia, da Morfologia e da Sintaxe da

língua Tikuna, tal como é falada no Brasil, com vistas a buscarmos, na Gramática Tikuna,

elementos que permitem/condicionam a variação observada nos dados produzidos em

português pelos professores que participaram do nosso estudo. Dentre as ocorrências

registradas em nosso corpus, cujas motivações confirmam nossa primeira hipótese, estão

aquelas que fazem parte dos seguintes fenômenos, apresentados e discutidos no capítulo 7: i)

tendência à inexistência de contraste fonológico no âmbito das consoantes contínuas coronais;

ii) palatalização de fonemas africados; iii) supressão de segmento (travamento de sílaba); iv)

aférese; v) rotacismo; vi) lambdacismo; vii) epêntese; viii) africação; iv) flutuação quanto à

altura das vogais; x) fricativização de oclusivas (bilabial e velar); xi) redução de ditongo

(monotongação); xii) ditongação (ou iotização); xiii) variação na concordância de número que

apresenta marcas de flexão na posição à direita do nome determinado, diferentemente do padrão

do PB, mas semelhante ao padrão Tikuna; xiv) flutuação com ausência da marcação da flexão

de gênero no sintagma nominal; xv) variação na concordância verbal; xvi) não

marcação/distinção de tempo na forma verbal; xvii) omissão ou uso inadequado de preposições;

xviii) ordem sintática – SVO e variações; xix) criação de flexão com acréscimo de – s; xx) não

uso do verbo.

Conforme explicamos no capítulo 7, ainda que muitos dos fenômenos acima

relacionados também ocorram no PB, confirmando nossa terceira hipótese, há ocorrências

particulares do PT, cujas motivações estão relacionadas a possíveis mecanismos de

interferência/transferência da primeira língua (Tikuna) dos participantes do estudo.

Ligada à primeira, nossa segunda hipótese de trabalho considerou que o português de

contato falado pelos Tikuna apresenta traços particulares não identificados no português

brasileiro falado por indivíduos que o adquiriram como L1. Para testarmos nossa hipótese, a

partir da identificação e registro de fenômenos que apresentam variação nos níveis fonético-

fonológicos e morfossintáticos do PT, fizemos uma comparação com pesquisas já realizadas

neste mesmo âmbito com variedades do PB. Desse modo, pudemos identificar, por exemplo,

Page 244: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

244

o seguinte fenômeno que valida nossa segunda hipótese: fricativização de oclusivas (bilabial e

velar).

A terceira hipótese com a qual trabalhamos foi a de que o português de contato falado

pelos Tikuna também apresenta condicionamentos identificados no português brasileiro falado

por indivíduos que o adquiriram como L1. Usando o mesmo procedimento discriminado no

parágrafo anterior, chegamos aos fenômenos que validam essa terceira hipótese, por exemplo:

i) supressão de segmento; ii) nasalização de vogal; iii) o emprego da flexão de número no(s)

primeiro(s) elemento(s) do sintagma nominal; iv) variação verbal no emprego da primeira

pessoa do plural; v) variação verbal no emprego da terceira pessoa do plural; vi) ordem sintática

– SVO.

Nossa quarta hipótese de trabalho foi a seguinte: a variedade de português falada pelos

professores Tikuna apresenta realizações parecidas com algumas já identificadas em outras

variedades de português faladas por indígenas no Brasil. Para testar essa hipótese, comparamos

os dados de nosso corpus com os de outros trabalhos que se debruçam sobre variedades de

português faladas por indígenas no Brasil e identificamos alguns fenômenos que validam nossa

quarta hipótese, por exemplo: i) flutuação com ausência da marcação da flexão de gênero no

sintagma nominal; ii) não marcação/distinção de tempo na forma verbal; iii) ordem sintática –

SVO e variações; iv) tendência à inexistência de contraste fonológico no âmbito das consoantes

contínuas coronais; v) variação na marcação da flexão de número nos sintagmas nominais.

A partir da análise dos fenômenos fonético-fonológicos e morfossintáticos presentes

em nosso corpus, identificamos que em um mesmo fenômeno havia ocorrências que

confirmavam uma hipótese, enquanto outras ocorrências do mesmo fenômeno confirmavam

outra. A esse respeito, consta análise detalhada no capítulo 7.

A quinta hipótese de nossa pesquisa considerou que os professores Tikuna apresentam

diferentes graus de fluência, em que pesa o contato nos seguintes termos: quanto maior o grau

de contato com o PB, mais os professores se afastam dos padrões da língua nativa e,

proporcionalmente, quanto menor for esse contato, mais próximos os professores se encontram

dos padrões de sua língua nativa, manifestando acentuada interferência da L1 na variedade de

português em aquisição e, como consequência, mais distantes dos padrões da língua-alvo.

Como resultado, por meio do continuum que se estabeleceu em nosso estudo,

conseguimos identificar que, em estágios que se encontram na base desse continuum, os falantes

manifestam uma variedade mais distante do padrão da língua-alvo. Esse fato se reverte, porém,

à medida que o falante tem mais contato com falantes de português e usa mais a língua

Page 245: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

245

portuguesa em diferentes domínios sociais. Nesse caso, os usos linguísticos tornam-se mais

próximos da variedade padrão do PB, o que confirma nossa quinta hipótese.

A sexta hipótese, intimamente relacionada à quinta, leva em consideração a análise

variacionista, defendendo que os fatores linguísticos e socioculturais, relacionados à dinâmica

do contato linguístico, à identidade e aos usos linguísticos repercutem na variedade de

português falada pelo grupo investigado.

Para testar essas duas hipóteses, estabeleceu-se o continuum que evidenciamos no

subcapítulo 7.3, além deste fez-se, no subcapítulo 7.4, a análise variacionista a partir de dois

fenômenos identificados em nossos dados: comportamento de /s/ em posição de onset e

marcação de CV de primeira pessoa verbal.

Quanto à análise variacionista, nossa defesa é a de que a replicação de padrões, tanto

em relação ao comportamento de /s/ em posição de onset, quanto à marcação de CV de primeira

pessoa verbal, ocorre de maneira gradativa, tendo em vista que, por se tratar de um processo de

aquisição de segunda língua, estão aí em jogo certos condicionamentos, como a

interferência/transferência da L1 do falante, o grau de contato com a língua-alvo, motivado, por

exemplo, pela mobilidade dos participantes da pesquisa, pela escolaridade e pelas redes de

interação da qual eles participam. Dessa forma, defendemos que esse processo aquisitivo

configura um continuum.

Por meio dos dados identificados e analisados em nossa pesquisa, pudemos confirmar

o que preconiza o aporte teórico adotado em nosso estudo, tanto no que se relaciona aos

pressupostos do Contato Linguístico quanto da Sociolinguística, basilares para nossa

investigação.

Tal como Thomason (2001) aponta, percebemos que os falantes utilizam diferentes

estratégias de aquisição de segunda língua. Uma delas, ligada à nossa primeira hipótese de

trabalho, é a manutenção de distinções e outros padrões de sua língua nativa (sua L1) ao

produzirem sua versão da gramática da língua-alvo (a L2), como por exemplo, apagamento de

segmento consonantal em posição de coda medial e em posição de coda final, uma vez que na

língua Tikuna consoantes não ocupam posição de coda.

Uma outra estratégia apontada por Thomason (2001) também ligada à primeira

hipótese de nosso estudo e que identificamos nas produções de fala dos participantes da

pesquisa é o fato de alguns deles ignorarem distinções, especialmente as distinções marcadas,

as quais se encontram presentes de forma clara na língua-alvo, mas incompreensíveis aos

aprendizes que se encontram no início de estágios do processo de aquisição de uma língua (que

é o caso de alguns de nossos entrevistados). Como exemplo dessa estratégia, podemos apontar

Page 246: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

246

a ausência da marcação da flexão de gênero no sintagma nominal ou a não marcação/distinção

de tempo na forma verbal.

Nesse estudo, foi possível identificar, por exemplo, no nível fonético-fonológico,

determinadas características do Português falado por falantes nativos de Tikuna, quais sejam:

a) a tendência à inexistência de contraste, no âmbito das consoantes contínuas coronais, entre

os valores positivo e negativo do traço subarticulatório [ anterior] – o que tem, como resultado,

a ausência de contraste/oposição entre as chamadas fricativas alveolares e as fricativas palato-

alveolares em posição de abertura de sílaba. Tal tendência à inexistência de contraste

fonológico no âmbito das consoantes contínuas coronais é exemplo de que o falante nativo de

Tikuna ignora distinções no âmbito da L2 por não tê-las na L1; b) não ocorrência, após glide

palatal, de segmento consonantal sibilante em posição de coda, quer seja medial ou final - um

caso de transferência de um padrão da L1 para estruturas da L2; c) diante de uma palavra que

apresenta segmento consonantal sibilante em posição de coda, seja medial ou final, alguns

falantes tendem ou a suprimir o segmento consonantal, ou a inserir um segmento vocálico. Em

nossa análise, tal ocorrência evidencia uma nítida pressão estrutural para CV, motivada pela

restrição, existente em Tikuna, de realização fonética de consoantes em posição de coda

silábica; d) rotacismo, em que o falante utiliza elementos estruturais da língua nativa ao falar

na língua-alvo, no caso usa o fonema /ɾ/ na L2 por conta da ausência do fonema /l/ no inventário

fonológico de sua L1 (o que pode ser um exemplo de estratégia por preenchimento de lacuna -

gap-filling approach). No nível morfossintático, detectamos, por exemplo: a) marcação da

flexão de número nas primeiras posições do sintagma nominal. Quanto a essa marcação,

detectamos que o emprego da flexão de número no interior do sintagma nominal em sentenças

realizadas pelos Tikuna também se faz presente nos usos de pessoas que têm o português como

L1, membros da sociedade envolvente da qual a pesquisadora faz parte; b) flutuação com

ausência da marcação da flexão de gênero no sintagma nominal pelo fato de o falante ignorar

distinções existentes na L2 por não tê-las na L1; c) não marcação/distinção de tempo na flexão

verbal. Essa não distinção pode ocorrer devido ao fato de que, em Tikuna, a marcação temporal

não ocorre no verbo, e sim em outros constituintes da sentença, como os dêiticos e partículas.

Cabe ressaltar que a variação na marcação da flexão de número nos sintagmas

nominais apresenta traços parecidos com os realizados por falantes nativos de PB, no entanto,

também há, ainda que com baixíssima ocorrência, a marcação na posição à direita, o que

evidencia, tal como em outros estudos sobre variedade de português falados por indígenas, uma

transferência estrutural da L1 para L2.

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247

Estudar as especificidades do português Tikuna nos possibilitou compreender como a

dinâmica do contato influencia na variação (observando-se aí casos de transferência da L1 e de

replicação de condicionamentos conforme os falantes nativos do PB) e mudança linguística do

grupo investigado.

Ainda que seja uma terefa desafiadora determinar ao certo a motivação das realizações

linguísticas dos falantes de uma segunda língua, é possível sinalizar tendências que indicam

uma interferência/transferência de padrões/regras/restrições da primeira língua operando na

segunda língua, principalmente em estágios incipientes de aquisição.

A variedade de português falada hoje pelos professores Tikuna é resultado de uma

língua que se desenvolveu entre eles a partir do contato com não-indígenas, falantes de

português. Nesse contato, somente os Tikuna tiveram que aprender o português, o que evidencia

claramente a relação de poder que se estabeleceu nesse contato.

Não concebemos a língua de contato utilizada pelos professores Tikuna como pidgin,

no termo clássico, como fazem outros pesquisadores que trabalham com variedades de

português indígena, por exemplo Emmerich (1984) e Costa (1993), nem como interlíngua como

o faz Amado (2015). Em nossa análise, o português Tikuna é uma variedade que apresenta

traços de pidgnização ou, nos termos de Naro (1997), é uma variedade pidgnizante, que

apresenta simplificações, por exemplo, na morfologia verbal. Essa simplificação se manifesta

entre os falantes dos graus baixo e médio, diminuindo consideravelmente entre os falantes que

se encontram no ápice do continuum.

Segundo a definição de Hall (1974, p. 4), uma língua de contato assume a seguinte

forma e função: é uma variedade que apresenta simplificação e serve para que se estabeleça

intercâmbio econômico. Para alguns falantes de nosso estudo, essa é a situação linguística,

principalmente aqueles que sem encontram nos pontos mais baixos do continuum.

Em determinadas circunstâncias, o português falado pelos Tikuna assume o papel de

língua franca indígena interétnica, uma vez que é usada como código linguístico comum a

falantes de diferentes etnias e línguas nativas representadas na região.

O estudo que elegemos realizar de como os Tikuna falam e por que falam dessa forma

foi motivado pela busca em provar que aquilo que é tido como “não saber falar bem o

português” tem explicação no fato de que a primeira língua exerce influência sobre a fala em

português desses indivíduos e não por incompetência ou dificuldade de aprendizado, como

muitas vezes, a escola e os meios de comunicação de massa querem nos fazer acreditar.

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248

Muitos dos fenômenos que identificamos na fala dos professores Tikuna,

especialmente, aqueles que são estigmatizados pelos falantes não-indígenas, são motivados por

influência de elementos estruturais da língua Tikuna.

Nossa conclusão é a de que o Português Tikuna não é a formação de uma nova língua,

mas é uma variedade que surgiu a partir do contato e que tem maior proximidade, no nível

morfossintático, da variedade falada pelos nativos do PB, no entanto, guarda íntima relação

com a L1 dos falantes (Tikuna) no nível fonético-fonológico, caracterizando assim, uma

variedade particular, a que intitulamos Português Tikuna (PT) e que também é marca de

identidade~indexical desse grupo étnico.

Resta dizer que, a partir deste estudo, novas pesquisas podem ser realizadas, inclusive,

ampliando o escopo de investigação, adotando-se o português do entorno como parâmetro de

comparação com o PT. Nesta tese, utilizamos como parâmetro nosso conhecimento empírico,

como moradora da região, da variedade do entorno, além de nos basearmos na variedade

considerada padrão. Além disso, outras pesquisas podem aprofundar o estudo das variantes

morfossintáticas do PT, tendo em vista que o texto desta tese contribui para uma caracterização

da gramática que produz as variantes fonético-fonológicas, em maior profundidade e, em

relação às variantes morfossintáticas, apresentamos apenas algumas características. A razão

para isso foi a impossibilidade de uma maior sistematização dos dados morfossintáticos, devido

à natureza da coleta realizada (dados de fala espontânea).

Por fim, cabe ressaltar que, anteriormente a esta tese, ainda não havia sido realizado

nenhum estudo investigando as formas de comunicação verbal resultantes do contato linguístico

entre falantes de Tikuna com falantes de português. Nesse sentido, para além do preenchimento

de lacunas, esse trabalho é o pioneiro ao estudar a variedade de português falada por pessoas

que pertencem à maior etnia indígena do Brasil: a Tikuna. Com a tese, esperamos contribuir

para a descrição do português indígena falado na região norte do Brasil.

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Page 261: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

261

ANEXO A- FICHA PARA CONTROLE DE DADOS

Projeto: Línguas da Amazônia Brasileira: Variação, Cognição e Estudos de Fonologia,

Gramática e História – Fase II

Línguas indígenas brasileiras

Ficha para controle de dados

Marília Facó Soares

Museu Nacional/UFRJ

FICHA

NOME DO POVO (COM AUTODENOMINAÇÃO):

LÍNGUA:

A) LOCAL DA COLETA (com localização geográfica):

B) DATA DA COLETA:

C) DADOS SOBRE O CONSULTOR NATIVO

a) Falante (Qual é o (seu) nome completo (do(a) senhor(a)?):

b) Clã101 / grupo de pertencimento (O(a) senhor(a)/você pertence a que clã?):

c) Idade (idade registrada em documento oficial ou idade aparente): (Qual a sua idade?)

d) Sexo [ M, F]:

e) Nome próprio na língua: (Qual o seu nome na língua Tikuna?)

f) Nome próprio na língua oficial do país (se houver): (Qual o seu nome na língua

portuguesa?)

g) Nome do pai (na língua indígena e na língua oficial do país (se

houver): (Qual o nome do seu pai em língua Tikuna? E em língua Portuguesa?)

Observação - No caso da sociedade Ticuna, essa é patrilinear, possuindo

o(s) filho(s) o mesmo clã (a mesma ' nação') do pai. Se uma mulher Ticuna

se casa com um não-Ticuna, seu(s) filho(s) não será(serão) visto(s)

como Ticuna. Apenas poucos casos são mencionados por alguns em que,

sendo o pai um não-Ticuna, o clã é indiretamente atribuído pelo avô.

h) Nome da mãe (idem) e clã da mãe: (Qual o nome da sua mãe em língua Tikuna? E em

língua Portuguesa? A que clã sua mãe pertence?)

i) Comunidade de origem: (Em que comunidade o(a) senhor(a)/você nasceu?)

j) Comunidade(s) de moradia (com informação sobre o tempo de moradia):

(Já morou em outras comunidades? Quais? Por quanto tempo ficou nessas comunidades? Já

morou fora da comunidade alguma vez?

l) Comunidade de atuação (no caso de o falante ser professor indígena,

agente de saúde ou ter outro posto oficial em função de novas categorias

introduzidas no grupo): (O que você faz na aldeia? Em que comunidade o(a) senhor(a)/você

trabalha?) O que você faz todos os dias?

m) Grau de escolaridade: (O(a) senhor(a)/você estuda(ou)?) Até que ano o(a) senhor(a)/você

estudou? Aprendeu a ler e a escrever em que língua(s)?)

n) Grau de domínio/uso da escrita: (Você pode escrever em língua indígena? E em língua

portuguesa?)

o) Conhecimento de outras línguas - Grau de bilinguismo/ multilinguismo 101 O termo ‘nação’ é utilizado pela maioria dos Ticuna ao se referirem, em português, a ‘clã’ ( que, em Ticuna,

é expresso pelo morfema cüã ‘origem’).

Page 262: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

262

(o que pode incluir outra (s) línguas indígenas e/ou línguas oficiais de

países diferentes).

(Que línguas o(a) senhor(a)/você fala? Qual foi a língua que aprendeu primeiro? Em que

situações fala cada uma delas?

p) Língua(s) utilizada(s) para conversar.

(Que língua(s) o(a) senhor(a)/você utiliza para conversar com: (i) os parentes, de modo geral;

(ii) o(a) esposo(a); (ii) os mais velhos; (ii) os filhos; (iii) as crianças na comunidade.

q) Língua utilizada para falar na escola (no caso de o consultor nativo ser professor ou mesmo

um aluno). Informação complementar: nível em que a língua em questão é utilizada (ensino

fundamental, ensino médio ou terceiro grau)

(Que línguas o(a) senhor(a)/você fala na escola?) Em que série começou a utilizar essa(s)

língua(s)?)

r) Língua utilizada para falar nos locais de negócio/comércio [com identificação desses locais]

(Que línguas o(a) senhor(a)/você fala nos locais de negócio/comércio, como:

Banco:

Correios:

Cartório:

Mercadinho na sede:

Mercadinho na comunidade:

Outros:

s) Língua utilizada para falar com autoridades locais [com identificação dessas autoridades]

Que línguas o(a) senhor(a)/você usa para falar com autoridades locais, como

Cacique

Prefeito

Vereador

Secretário de Educação

Secretário de Finanças

Coordenador de Educação Indígena

Outros

t) Língua utilizada para escrever (quando é o caso) e seus locais ou situações de utilização.

(Que língua(s) o(a) senhor(a)/você usa para escrever? Em que situações você precisa

escrever? Em que locais? Quais os textos que você já escreveu?

Como aprendeu o português?

D) INFORMAÇÕES SOBRE A COMUNIDADE DE MORADIA (O(a) senhor(a)/você poderia falar um pouco sobre como é a vida na comunidade?

O que os homens e as mulheres fazem para manter a família?

O que as pessoas fazem para se divertir?

Que língua é mais usada na aldeia?

Caso a resposta TIKUNA, perguntar: em que situações o português é usado?

Caso a resposta PORTUGUÊS, perguntar: Por que o(a) senhor(a)/você acredita que falam

mais o português? Sempre foi assim?

Esta comunidade sempre teve este nome? O(a) senhor(a)/você sabe por que a comunidade

recebeu este nome?

O(a) senhor(a)/você gosta daqui? Por qual razão? Já teve ou tem a intenção de morar em outro

lugar? Onde?

O(a) senhor(a)/você acha que a vida aqui é agradável? Vocês enfrentam alguma dificuldade

aqui? O que não tem e deveria ter na comunidade?

Page 263: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

263

Como é a alimentação aqui na comunidade? O que as pessoas costumam comer? Há pratos

típicos Tikuna? Como são feitos?

Quantos moradores existem na comunidade?

O que o/a senhor/a sabe sobre a história dos Tikuna?

Obs.: aqui também seriam incluídas características da situação social

local e, ainda, informações sobre as dimensões da comunidade.

E) USOS DE ACORDO COM DOMÍNIOS SOCIAIS E ATITUDES LINGUÍSTICAS

Qual foi mesmo a primeira língua que o(a) senhor(a)/você aprendeu quando criança?

Com que idade o(a) senhor(a)/você aprendeu uma outra língua?

Que língua o(a) senhor(a)/você se sente mais à vontade para falar?

Que língua o(a) senhor(a)/você acha mais bonita?

A língua tikuna hoje é a mesma que era falada pelos índios mais antigos? (se for não,

perguntar: ‘por que’).

Os jovens falam da mesma maneira que os mais velhos? (se for não, perguntar ‘por que’)

Que língua o(a) senhor(a)/você usa mais frequentemente em casa para falar com adultos?

Que língua você usa mais frequentemente em casa para falar com as crianças?

Que língua você usa mais frequentemente em casa para escrever?

Que língua você fala com pessoas da mesma idade na vizinhança?

Qual é a língua das rezas/preces?

Que língua você usa durante uma cerimônia de sua comunidade?

Que língua você usa quando reza/ora no local religioso que frequenta, se frequentar?

Que língua as crianças falam mais frequentemente na comunidade?

Que língua os mais velhos falam mais frequentemente?

Que língua o(a) senhor(a)/você usa quando está zangado/ com raiva?

Vocês costumam contar piada? Que língua o(a) senhor(a)/você usa para contar uma piada?

Conta piada em português? Conta piada em Tikuna? Em que lugar? Para que pessoas?

É melhor para uma pessoa falar língua indígena, Português ou ambas?

Que língua deve ser ensinada na escola?

Qual é a língua mais importante?

Que língua você prefere para ler?

Que língua você prefere para escrever?

O que sente sabendo que é Tikuna? Tem orgulho da sua etnia?

CONTATO

O(a) senhor(a)/você tem contato com pessoas de fora da aldeia? Com outros índios? De qual

etnia? E com não-índios? Em que situações?

O(a) senhor(a)/você costuma ir à sede de São Paulo de Olivença? Com que frequência? O que

costuma fazer na sede? Geralmente, conversa com quem ?

O que (a) senhor(a)/você pensa sobre a(s) escola(s) da comunidade?

O (a) senhor(a) /você gosta de assistir televisão? Com que frequência? Utiliza celular? Que

língua usa para escrever mensagens de texto? Tem acesso à internet? Costuma escrever nesse

ambiente virtual (redes sociais, e-mails, blogs, ec)? Em caso afirmativo, em que língua?

PRECONCEITO

Existe preconceito contra o índio? Já vivenciou uma situação assim? O que aconteceu? Como

se sentiu? Viu algum exemplo?

Page 264: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

264

Isso aconteceu quando a pessoa estava falando Tikuna ou quando estava falando português?

F) NATUREZA DOS DADOS/ NATUREZA DA INFORMAÇÃO FORNECIDA PELO

CONSULTOR

a. [ Oral Espontânea ] [Oral Elicitada/ Induzida]

b. [ Escrita]

G) CLASSIFICAÇÃO DO MATERIAL LINGUÍSTICO PRODUZIDO [Lista de palavras] [Questionário Linguístico] [ Narrativa pessoal]

[Narrativa coletiva] [Oratória política] [Fala ritual/ cerimonial]

[Conversação] [Entrevista] [ Outro]

H) TIPO DE VEÍCULO [Vídeo] [Filme] [ Papel]

I) CARACTERÍSTICA(S) LINGUÍSTICA(S) SOB ANÁLISE

O(a) senhor(a)/você autoriza a utilização dos dados desta gravação para fins científicos?

Page 265: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

265

ANEXO B - QUESTIONÁRIO SOCIOLINGUÍSTICO

A - INFORMAÇÃO PESSOAL

01Nome:____________________________________________________________________

02 - Data: ____________ Local:________________________________________

03 - Sexo: M( ) F( )

04 - ldade: _________________

05 – Etnia:____________________________ 6 – Clã:_____________________________

7- Grau de escolaridade:______________________________

B - USOS DE ACORDO COM DOMÍNIOS SOCIAIS E ATITUDES LINGUÍSTICAS

PERGUNTAS TIKUNA PORTUGUÊS AS

DUAS

NÃO

SEI

Que língua(s) você aprendeu primeiro quando

criança?

Que língua você usa mais frequentemente em

casa para falar com adultos?

Que língua você usa mais frequentemente em

casa para falar com crianças?

Que língua os mais velhos da comunidade

falam mais frequentemente?

Que língua você usa para falar com pessoas

da mesma idade na vizinhança?

Que língua as crianças da comunidade falam

mais frequentemente?

Que língua você usa mais frequentemente em

casa para escrever?

Que língua você usa para escrever

mensagens de texto no celular, na internet ?

Que língua você usa quando está usando o

telefone para falar?

Que língua você usa caso reze/faça preces em

casa?

Que língua você usa se reza/ora no templo

religioso?

Que língua você usa durante uma cerimônia

de sua comunidade?

Que língua você se sente mais à vontade para

falar?

Que língua você acha mais bonita? Que língua você usa quando está zangado(a)/

com raiva?

Que língua você usa para contar uma piada? É melhor para uma pessoa falar língua

indígena, Português ou ambas?

Que língua deve ser ensinada na escola?

Page 266: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

266

Qual é a língua mais importante? Que língua você prefere para ler? Que língua você prefere para escrever?

C - GRAU DE DOMÍNIO LINGUÍSTICO EM LÍNGUA TIKUNA

D- GRAU DE DOMÍNIO LINGUÍSTICO EM LÍNGUA PORTUGUESA

PERGUNTAS SIM UM

POUCO

NÃO

Você consegue entender uma conversação em

língua portuguesa?

Você fala língua portuguesa?

Você consegue ler em língua portuguesa?

Você consegue escrever em língua

portuguesa?

E - USOS EM ATIVIDADES NA COMUNIDADE E NA SEDE DO MUNICÍPIO

USOS EM ATIVIDADES

LÍNGUAS LOCALIDADE

INDÍGENA PORTUGUÊS AS

DUAS

COMUNIDADE SEDE AS

DUAS

Conversas na família Reuniões da comunidade Trabalho na roça Pescaria Caçada Celebração da comunidade Festa ou ritual indígena Banho no rio Velório/ritos fúnebres Comércio/Mercadinho Formação de professores Reunião com órgãos do

governo

Encontro com pesquisadores Reunião na escola Missa ou culto Rezas cristãs (terço,

procissão, festa)

PERGUNTAS SIM UM POUCO NÃO

Você consegue entender uma conversação em língua

Tikuna?

Você fala língua Tikuna?

Você consegue ler em língua Tikuna?

Você consegue escrever em língua Tikuna?

Page 267: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

267

Tratar de assuntos no Banco Tratar de assuntos nos

Correios

Tratar de assuntos no

Cartório

Falar no posto de saúde Realizar atividades

acadêmicas

Eu,

___________________________________________________________________________

autorizo a utilização dos dados desta pesquisa para fins científicos.

Page 268: CONTATO LINGUÍSTICO TIKUNA -PORTUGUÊS NO ALTO …

268

ANEXO C- TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

SOBRE USOS LINGUÍSTICOS, FORMAÇÃO E ATUAÇÃO EM AULAS DE LÍNGUA TIKUNA E DE LÍNGUA

PORTUGUESA: UM ESTUDO COM PROFESSORES DE ESCOLAS BILÍNGUES EM COMUNIDADES

INDÍGENAS DE BENJAMIN CONSTANT- AMAZONAS

Prezada participante,

Você está sendo convidada a participar da pesquisa a ser desenvolvida por meio do projeto intitulado Sobre usos linguísticos, formação e atuação em aulas de Língua Tikuna e de Língua Portuguesa: um estudo com professores de escolas bilíngues em comunidades indígenas de Benjamin Constant-Amazonas. O estudo será realizado por

Ligiane Pessoa dos Santos Bonifácio, discente de Doutorado em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Professora Dra. Marília Facó Soares. O objetivo central do estudo é: Analisar como ocorre o processo de formação de professores que atuam em escolas bilíngues de comunidades indígenas da Mesorregião do Alto Solimões-AM e a repercussão dessa formação nas aulas de Língua Tikuna e de Língua Portuguesa, tendo em vista o modelo de bilinguismo trabalhado. Além disso, pretendemos determinar o grau de relação entre formação, atuação profissional, usos linguísticos e identidade social nos espaços escolares apontados. Você está sendo convidada a participar da pesquisa porque atua como professora de Língua Portuguesa em uma escola bilíngue situada em uma comunidade indígena de Benjamin Constant- Amazonas. A sua participação será voluntária, o que lhe assegura autonomia plena para decidir sobre a sua participação ou não nas etapas da pesquisa, cabendo-lhe, ainda, desistir da sua participação a qualquer momento. O registro da pesquisa será confidencial, sendo garantida a privacidade das informações prestadas por você. O resultado do estudo constará na tese com nomes fictícios. Cabe, ainda, informar que qualquer dado que possa identificá-la será omitido na divulgação dos resultados da pesquisa e você poderá, a qualquer momento, solicitar informações sobre a sua participação na pesquisa ou sobre o andamento desta. A sua participação será por meio de resposta a perguntas de um roteiro de entrevista/questionário à pesquisadora do projeto e de regência de aulas de Língua Portuguesa, a serem observadas de forma não-participante pela pesquisadora. A entrevista e as aulas somente serão gravadas se houver a sua autorização. As entrevistas serão transcritas e armazenadas, em arquivos digitais, às quais terão acesso apenas a pesquisadora e a orientadora. A sua participação é muito importante porque, uma vez conhecidas as limitações (se houver) da formação ofertada aos professores que atuam em escolas bilíngues localizadas em comunidades indígenas de Benjamin Constant-AM, é possível refletir sobre como o ensino bilíngue pode ser pensado nos programas de formação e efetivado nas escolas indígenas. Os resultados serão divulgados em palestra dirigida ao público participante, artigos científicos e na tese, sendo-lhe assegurada a confidencialidade da sua identidade. Os dados coletados servirão exclusivamente para fins de pesquisa e divulgação científica. LOCAL E DATA: __________________________________________________ Assinatura da Pesquisadora Responsável Contato com a pesquisadora responsável: Tel: (97) 99174-8499. e-mail: [email protected] Declaro que entendi do que trata a pesquisa, bem como os objetivos e condições de minha participação e manifesto minha concordância em participar. _________________________________________ (Assinatura do participante da pesquisa)

Universidade Federal do Rio de Janeiro