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Contemplativos: Enamorados de Deus

Parece-me (tomei o risco de não checar o dicionário) que o prefixo “em” em

português é geralmente usado para descrever o estado de alguém que sofreu a ação

intensa de um agente externo que faz uso de um instrumento particular para afetá-lo.

Este estado pode ser transitório, renovável ou permanente. Um “enfeitiçado”, por

exemplo, é uma pessoa que foi posta sob um sortilégio por um feiticeiro através do

uso de um feitiço. Um “encantado” foi cativado pelo emprego de um encanto por um

encantador. Foi-me pedido falar nesta conferência acerca de “contemplativos

enamorados”. O próprio título designado para esta conferência (“Contemplativos:

Enamorados de Deus”) dá-nos uma pista acerca da identidade da parte culpada, o

enamorador. É o próprio Deus. Qual é o instrumento que ele usa, quais são os efeitos

que este enamoramento produz naqueles por ele atingidos e quais são as possíveis

consequências que este estado tem sobre outras pessoas? Será que enamoramento é

contagioso?

Deus tem muitos meios à sua disposição para fazer as pessoas se apaixonarem

por ele (esqueci de dizer que ele não apenas age como enamorador, mas também

deseja ser o objeto do amor que desperta). Ele possui sua própria beleza infinita que

nossa tradição afirma poder, de alguma maneira, tornar-se perceptível a um coração

purificado e a uma mente unificada. Ele tem aquilo que Mestre Eckhart chama de o

livro da natureza – um livro que Eckhart descreve como “cheio de Deus” e no qual

Deus pode ser “lido” em qualquer momento, desde o floco de neve até a Via Láctea.

Ele criou o milagre de nossa individualidade: isto é, a experiência de nós mesmos como

“tremenda e maravilhosamente feitos” (Sl 138) pode gerar um amor intenso por nosso

Criador. Ele possui os frutos da civilização, um espelho da sua criatividade e sabedoria

infinitas. Pintura, escultura, literatura, música (sobretudo música!) podem nos fazer

pular sobre elas ao as experimentarmos e encher-nos de amor por aquele que as

inspirou. Sempre que ele leva duas pessoas a se amarem, elas – como os dois

discípulos de Emaús, ou como S. Elredo e Ivo no tratado de Elredo sobre a amizade

espiritual – sentem a presença de um divino “terceiro” e seu amor um pelo outro pode

desembocar num amor pelo “homem no meio”. Aquele que deu origem a todas as

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tradições religiosas da humanidade pode nos levar através da prática, tradições e

literatura sagrada delas ao amor do Deus Desconhecido (ou parcialmente conhecido).

Mas sua “flecha escolhida” (como ele é chamado no livro do profeta Isaías e

também no Comentário ao Cântico dos Cânticos de Gregório de Nissa) é o próprio

Cristo. Cristo é o instrumento infalível que Deus usa para fazer o contemplativo (e todo

cristão) se apaixonar por ele, e o poder irresistível deste instrumento consiste no fato

de que Cristo é a suprema manifestação do amor de Deus por nós – uma manifestação

realizada não apenas através da poesia ou da filosofia ou mesmo através da divina

Torá, mas através da vida, morte e ressurreição de um ser humano, o Filho de Deus

encarnado.

Começamos falando do imenso arsenal de armas que Deus tem à sua

disposição para atrair as pessoas para amá-lo e como ele escolheu focar-se em uma –

o envio de seu Filho. Nós podemos estreitar, ou concentrar, nossa atenção ainda mais,

e dos trinta e três anos da vida deste Filho, nós podemos nos focar em meros três dias,

os dias do mistério pascal de Cristo. Mais que quaisquer outros dias na história do

mundo, estes três dias nos assaltam com o amor de Deus por nós (eles nos “ferem”,

diria Gregório de Nissa) e nos incitam à redamatio – ao “amar Deus de volta” (a única

maneira de amarmos aquele “que nos amou primeiro”) e, mais exatamente, a amá-lo

de volta com o mesmíssimo amor que ele nos concedeu.

I. Olhemos para algumas das dimensões do amor com o qual Deus nos amou

nestes três dias; é este amor, no fim das contas, que é constitutivo de nossa

identidade, que nos transforma em enamorados.

a) Na morte de Cristo, Deus amou a nós, seus inimigos, para além de nossa

inimizade e para dentro de sua amizade (justificação; reconciliação). Com frequência

se afirma que Deus nunca foi nosso inimigo e que ele só precisava fazer-nos entender

sua benevolência ilimitada para que fôssemos reconciliados com ele e para que a

inimizade, na medida em que existia, fosse morta. Não tenho certeza que a

benevolência de Deus, tomada em si mesma, seja assim todo-importante. O que quero

dizer é que nós certa e verdadeiramente éramos seus inimigos, pela maneira como

vivíamos, pelas motivações que realmente governavam nosso comportamento, por

nossas tentativas de manipular Deus ou de ficarmos fora do seu alcance tanto quanto

possível, por nossa quase constante infidelidade à sua vontade revelada, por nossas

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múltiplas idolatrias, pela maneira como nos tratávamos uns aos outros. Uma

declaração explícita de ódio ou de rejeição a Deus não é necessária para que haja

inimizade. Éramos seus inimigos, e dominados pelo pecado como estávamos,

caminhávamos rumo à morte (Rm 7 e o outdoor na faculdade). A medida na qual “o

pecado continue dominando os nossos corpos mortais” – pelo menos o meu – mesmo

após o fato todo-transformativo da redenção, deveria nos dar uma ideia do qual era

realmente nossa situação antes de Cristo ter nos salvado. Para mim, a descrição mais

concisa e incisiva do nosso estado antes da morte de Cristo se encontra em Tt 3,

“odiosos e odiando-nos uns aos outros”. Odiávamos a Deus e uns aos outros, e

podemos acrescentar uma boa dose de ódio contra nós mesmos. Foi o amor sacrificial

além de toda medida com o qual Cristo nos amou na Cruz – não somente como

expressão de afeto verdadeiro, mas como sacrifício redentor – que nos libertou da

carga intolerável de ódio. Se a Cruz de Cristo era insuportavelmente pesada para ele,

era porque era composta de pecado e ódio e de um auto centrismo devastador.

Carregamos esta mesma cruz até Sexta-Feira Santa, quer estivéssemos conscientes

disto ou não, e seu peso nos esmagava e acabava com a nossa humanidade. Quando

Deus enviou o seu Filho, ele tirou este fardo dos nossos ombros, para nunca mais ser

imposto novamente. Pela primeira vez, podíamos respirar. Respirar livremente. Se não

entendemos ou acreditamos nisto, além de ainda ficarmos com nossa mochila de

pedras, teremos nulificado – pelo menos para nós mesmos – o estímulo infinito para

amar a Deus que é a crucifixão de Cristo.

b) Uma segunda dimensão do amor de Deus por nós, muito proximamente

relacionada à primeira, é quem nos libertou. Com quanta frequência o autor da carta

aos Hebreus nos repete que o sangue de bodes e novilhos nunca pode tirar o pecado.

Kierkegaard afirma que entre Deus e qualquer criatura existe uma “infinita diferença

qualitativa”. Dado que sacrifícios animais eram incapazes de nos livrar das obras

mortas para servirmos ao Deus vivo, será que não haveria uma instância intermediária,

será que não haveria um preço menor que Deus pudesse pagar por nossa

reconciliação? Considerando nossa dignidade indubitavelmente menos que divina,

será que era necessário que Deus pagasse nosso resgate com um preço imensurável –

imensurável não apenas ontológica, mas também afetivamente – isto é, com a morte

de seu querido Filho, o primogênito do seu coração? E, todavia é assim que Deus

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escolheu agir – não por extravagância ou por capricho ou por exibicionismo – mas

porque o sangue de Cristo era a única expiação eficaz para os pecados do mundo.

“Para redimir o escravo, destes o Filho”. Paulo nunca se cansa de voltar a esta ideia,

que para ele é o maior e mais incontroverso argumento que há para nos levar ao amor

de Deus. Vejo Paulo sentado à luz do sol, ofuscado e repetindo um sem número de

vezes, “Ele me amou e se entregou por mim”. E juntamente com este Jo 3,16, que

Lutero chamava “o pequeno evangelho” – todo o evangelho em miniatura: “Tanto

Deus amou o mundo que entregou seu Filho único”.

c) Uma terceira dimensão deste amor irrefutável de Deus por nós é o quanto

ele nos tornou livres. Você pode se reconciliar com seus inimigos sem ter que adotá-

los. In medio stat virtus. Mas o amor de Deus por nós não se limitava em nos justificar,

seja no sentido jurídico de nos declarar justos e como tais a salvo “da ira vindoura”,

seja no sentido ético de genuinamente nos capacitar a “servi-lo em santidade e justiça

todos os dias de nossa vida”, “caminhando na novidade da vida”. Certamente ele

operou nossa justificação, mas isto foi apenas o início da obra regeneradora de Deus.

“Regeneradora” realmente é a palavra apropriada neste contexto: em Cristo, Deus nos

deu um novo nascimento. Ele próprio nos gerou e pelos sacramentos de seu Filho e o

dom de seu Espírito, ele cumpre em nós uma assimilação sempre mais perfeita ao

Primogênito. Ele coloca em nós um coração novo e um espírito novo, como ele

prometeu pelos profetas: a interioridade do próprio Cristo. “Temos a mente de Cristo”.

E a essência deste novo ser é a nossa relação sem limites com Deus. Se ele forma as

características de seu Filho em nós, é porque ele deseja que em Cristo “tenhamos

pleno acesso” a ele como seus filhos e filhas, o mesmo acesso que Jesus tem. Assim

nós vemos que o versículo acima citado do Exsultet – “para resgatar o escravo, destes

o Filho” – por mais belo e tocante que seja, é em certo sentido uma formulação

inadequada da intenção de Deus no sacrifício pascal de Cristo. “Para resgatar vossos

filhos, deste vosso Filho”. Somente Deus com seu olhar afiado podia perceber mesmo

antes da redenção que de nossa humanidade dividida e destroçada poderia surgir toda

uma nova raça de filhos e filhas de Deus – “uma raça eleita, um sacerdócio régio” (1 Pd

2,9). Mas é por isto que ele agiu assim. Numa das orações eucarísticas, o objetivo da

obra redentora de Cristo é expresso como sendo “a fim de que (o Pai) pudésseis ver e

amar em nós o que vedes e amais no Cristo”. Mas Deus não precisa esperar pela

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redenção para gozar desta “visão beatífica” de nós. É exatamente porque ele a tinha

desde toda a eternidade – que ele já nos via conforme a sua intenção para conosco em

Cristo – que, sem deixar-se dissuadir por nossa automutilação espiritual, ele “restituiu-

nos à vida quando estávamos mortos no pecado”, “ele nos ressuscitou para a vida com

Cristo”, “ele nos fez sentarmo-nos com Cristo nos lugares celestes”. Como podemos

ver desta cadeia de citações, perdoar os nossos pecados é apenas o primeiro passo no

projeto de Deus para nos conduzir à completa intimidade filial consigo. A Igreja

Ortodoxa chama a plena realização do plano de Deus theiosis – divinização. Nós,

ocidentais, podemos recuar diante da ousadia do termo. Mas os cristãos orientais

sabem que fomos verdadeiramente chamados a “participar na natureza divina” (2 Pd

1,4) e que esta participação não é primariamente ontológica mas relacional, é a

entrada na família trinitária através da perfeição da configuração com Cristo.

Lembrem-se do que o Senhor diz a Adão naquela extraordinária homilia antiga para o

Sábado Santo: “Levanta-te, ó homem, obra de minhas mãos, levanta-te, tu que foste

plasmado à minha imagem. Vamos, saiamos daqui; pois tu em mim e eu em ti, juntos

somos uma pessoa indivisa”.

d) Muitos anos atrás, antes que a maioria de vocês tivesse nascido, quando eu

era um vocacionado para o mosteiro trapista de Spencer, MA, um grupo de amigos me

questionou acerca de minhas intenções vocacionais. Sendo muito práticos, eles

perguntaram, “Então, que proveito você vai tirar disto?” Eu parei para pensar, e ainda

me lembro que fui tomado por uma tremenda alegria. Respondi: “Que eu vou ganhar?

Tudo. Vou ganhar tanto Deus quanto uma família, tudo ao mesmo tempo”. Naquela

época (19 anos de idade), quando eu disse “família”, estava pensando da comunidade

monástica, que me parecia ser a mais maravilhosa família imaginável. Sem negar isto,

hoje eu entendo que aquela “família” que juntamente com Deus é “tudo” é a Igreja.

Esta é a quarta dimensão do assalto de amor de Deus. Deus não se restringe ao nos

outorgar o imensurável dom de si mesmo. Ele sabe (afinal de contas, foi ele mesmo

que primeiro disse isto) que “Não é bom para o homem estar só”. Melhor ainda que os

Padres da Igreja, Deus, que nos fez, sabe que somos inescapavelmente sociales por

natureza: que ele nos estruturou para vivermos em comunhão amorosa não somente

com ele, mas com os “parceiros de nossa natureza”. A Igreja é exatamente o Corpo

daqueles que vivem esta unidade de espírito tanto com Deus quanto uns com os

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outros. Hoje nós entendemos melhor (melhor que em muito tempo) que o destino ao

qual Deus chama cada um de nós em Cristo não é a união solitária, monista com ele,

mas uma união com ele que se vive numa vida partilhada com todos os outros cristãos

crentes, uma unidade com ele que é nutrida por nossa união com os outros crentes.

Balduíno de Ford, abade cisterciense inglês do séc. XII, ao comentar sobre o versículo

de Efésios, “para preservar a unidade de espírito no vínculo da paz” lê este texto como

uma apresentação destas duas comunhões entrelaçadas – cada um de nós é chamado

a tornar-se um só espírito com Deus (1 Cor 6,17) e todos nós somos chamados a viver

esta unidade de espírito como uma única realidade orgânica, o Corpo de Cristo,

reforçando perpetuamente sua unidade ao estreitarmos o vínculo da paz. São João

expressa estas duas uniões como dois mandamentos; para ele, são os únicos dois que

existem: crer em Jesus como o Filho de Deus e amarmo-nos uns aos outros como Deus

nos amou. Eu me pergunto às vezes se damo-nos conta que nossa pertença à Igreja é a

maior bênção interpessoal que possuímos, e inseparável da bênção de conhecer a

Deus e saber-nos conhecido por ele. A Igreja (Jesus que o diga) é o cêntuplo – a

multidão de mães, irmãos e irmãs que se tornaram nossa herança – nossa família, no

sentido mais profundo da palavra – quando o seguimos.

e) A última dimensão do amor de Deus a nós através do mistério pascal do seu

Filho é o dom de sua Mãe. Os protestantes conseguiram “apaga-la da foto”; nós,

católicos, confessamos ser isto impossível. Embora não sendo Deus, sua própria

pessoa continuamente media e torna experiencial para nós a realidade divina – sua

compaixão, sua prontidão em “tudo desculpar, tudo crer, tudo esperar, tudo suportar”

(1 Cor 13,7), seu abraço materno, seu respeito por nossa individualidade e por nossos

limites. Deus, embora todo-poderoso, não pode ser nossa mãe, exceto por analogia;

Maria pode sê-lo, e por dom de Deus, ela o é. Se nós a cortássemos, ficaria faltando

algo em Deus. Com frequência a paz que Cristo deu aos seus discípulos na Última Ceia

é chamada de seu “dom de despedida”. Mas quando lemos o Evangelho de João,

vemos que seus últimos e melhores dons são literalmente sua mãe e seu Espírito.

II. É isto que o contemplativo contempla: o amor de Deus por nós em Cristo

Jesus nosso Senhor – e não a essência divina ou a Trindade imanente ou a Deidade

supratranscendente. Ele não contempla a bondade infinita de Deus para conosco com

o “ponto fino de sua alma”, mas sim, “com todo o seu coração, com toda a sua alma e

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com toda a sua força”. Seu objetivo não é atingir um conhecimento rarefeito (“O

conhecimento incha”, 1 Cor 8,1) mas um conhecimento amoroso, um conhecimento

que é amor – “Amor ipse notitia est” (“A caridade edifica”, 1 Cor 8,1). Este

conhecimento contemplativo não repousa em si mesmo. Tanto o Papa Bento XVI

quanto o Papa Francisco deixaram claro que a contemplação deve desembocar na

ação, numa vida que é uma resposta àquilo que é contemplado. Em Verbum Domini,

Bento acrescenta um quinto estágio aos quatro tradicionais passos da lectio, onde

contemplatio é transformada em actio. E em Vultum Dei Quaerere, Papa Francisco diz

que o fim último da lectio divina é tornar-se uma “exegese viva da Palavra”. Em outras

palavras, o fruto da contemplação de um enamorado contemplativo será um estilo

coerente de viver (uma conversatio, poderíamos chamá-la) que é uma redamatio

encarnada – uma resposta concreta da nossa parte ao “grande amor com o qual Deus

nos amou” (1 Jo 3,1). E esta resposta não será uma conformidade submissa à exigência

divina, mas a expressão livre de uma pessoa humana que se experimenta como amada

por Deus.

Eucaristia

a) Como é que uma pessoa, como é que uma comunidade que se sabe amada

por Deus em Cristo, responde? Em primeiro lugar, por ação de graças e louvor. Ação

de graças sobe dos corações daqueles que se sabem “altamente favorecidos” e que

maior favor poderíamos receber do que ser “chamados das trevas para a sua luz

maravilhosa (1 Pd 2,9)”? A Eucaristia diária é a ação de graças da comunidade

contemplativa pelo amor de Deus que ela veio a reconhecer. A Eucaristia é o grito de

“Bis!” da comunidade. “Queremos experimentar aqui e agora, em nossos dias e todo

dia, o ato salvífico de Deus em Cristo que é a suprema expressão do amor de Deus por

nós”. É misterioso que a celebração da Eucaristia é a mais plena expressão possível de

ação de graças pela nossa salvação através do mistério pascal e ao mesmo tempo a

manifestação da fome e sede a participar diariamente e sempre de novo na vivência

do mistério de nossa salvação. É a intuição da comunidade (assim como de toda a

Igreja) que não há outra forma de melhor expressar seu agradecimento amoroso do

que realizar o mandamento de Cristo “Fazei isto (de novo e de novo e de novo) em

memória de mim”.

Ofício Divino

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b) Como podemos “bendizer o Senhor Deus em todo o tempo, seu louvor

estando sempre em nossa boca” (Sl 33,1)? A comunidade contemplativa encontrou

uma resposta a este anseio na celebração do Ofício Divino. O Ofício é um sacrifício

contínuo de louvor – não de louvor genérico, não de louvor por um dia ensolarado –

mas de louvor pela revelação por Deus de seu Filho. O Ofício, como o Bíblia, possui

uma unidade, porque tem um centro: Cristo. Os Padres, sobretudo Santo Agostinho,

ensinaram-nos que em cada um dos salmos louvamos Cristo ao permitirmos-lhe que

fale através de nós, permitindo-lhe narrar a história de sua vida encarnada, de seus

sofrimentos e de sua glória, e de expressar seu amor pelo Pai e pelo mundo. E

igualmente, os salmos oferecem-nos um meio de conversarmos continuamente com o

Senhor, de darmos voz a toda a amplitude de nossa relação com ele (e da relação da

humanidade inteira com Ele também) através das tonalidades variadas contidas no

Saltério. É fora de dúvida que a óctupla celebração diária do Ofício tal como prescrito

na Regra de S. Bento tem a finalidade de transbordar em todas as horas que estamos

despertos – e nas que estamos dormindo também. Sentimos isto nas citações do Sl

118 que ele usa ao estabelecer os ritmos do Ofício Divino: “Sete vezes por dia eu vos

louvarei... e à meia-noite me levantarei para louvar-vos” (RB 16,3.4).

Lectio Divina

c) A comunidade contemplativa, como Maria de Betânia, a quem ela é

frequentemente comparada, deseja manifestar seu amor pelo Senhor ao ouvir

continuamente sua palavra. E como Marta de Betânia, a quem ela é comparada por

figuras extraordinárias como Eckhart, a comunidade contemplativa quer manifestar

seu amor servindo-o – obedecendo à sua palavra. As duas irmãs vivem e atuam em nós

(como Jacó e Esaú no seio de Raquel) através do mesmo processo da lectio divina.

Durante os períodos do dia dedicados à lectio, o contemplativo tem a alegria de ouvir

o Jesus vivo falar-lhe no “hoje” do Sl 94 e na sua mais íntima individualidade. Como diz

S. Bento no Prólogo de sua Regra, “O que pode ser mais doce, caros irmãos, que esta

voz do Senhor a nos chamar?” E, todavia, esta palavra não é falada em nossos

corações simplesmente para serem saboreada, mas para ser cumprida – para ser

obedecida – e é esta escuta e ação conjuntas que Jesus chama de bem-aventuradas:

“Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática”. Obediência

à palavra de Jesus, por mais custosa que seja, é uma das mais autênticas – e

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indispensáveis – formas de se amá-lo. E neste mundo, é a única forma de se construir

nossa existência sobre um fundamento firme: “Aquele que ouve estas palavras e as

põe em prática é semelhante a um homem que construiu sua casa sobre a rocha (Mt

7,24)”.

Ascese

d) Quem quer que ame, deseja dar um espaço sempre maior ao Amado em sua

vida. Num sermão de seu comentário ao Cântico dos Cânticos, São Bernardo diz que

no início restringimos a morada de Cristo em nós a um espaço muito confinado. Na

medida que nosso amor por ele cresce, damos-lhe mais e mais espaço em nossa vida

interior – em toda a nossa vida – de modo que, enquanto que no início ele mal podia

sentar-se em nossa casa interior, com a passagem dos anos ele é capaz de passear, de

correr e até mesmo de dançar dentro de nós. O que permite que isto aconteça é a

ascese que empreendemos e na qual tentamos fielmente perseverar. Ascese é

fundamentalmente a remoção de “tranqueira”, a liberação de espaço interior pelo

abandono de apegos fúteis. Sejam estes apegos por bens e prazeres físicos, por

realizações emocionais ou para a manutenção de uma noção de nós mesmos que nos

ilude em acreditar que somos autossuficientes, eles deixam Cristo de escanteio. As

paixões são sempre substitutos pobres de relações pessoais, mesmo quando não

queremos que elas ajam assim. Assim como é impossível servir a Deus e ao dinheiro,

assim também é impossível viver em profunda amizade com Cristo e manter nosso

apego a múltiplas satisfações criadas. É um amor preferencial por Cristo que nos faz

empreender as práticas de renúncia, e estas práticas produzem os resultados

desejados. Como Tobit disse a Tobias depois que seu filho removera as escamas de

seus olhos, “Agora posso vê-lo”. Apegos são estas escamas sobre nossos olhos e a

renúncia nos ajuda a removê-las e a permitir que o Cristo que é amado e que já está

presente se manifeste, a fim de que mais e mais “vejamo-lo tal como ele é” (1 Jo 3,2).

Imitatio Christi

e) Um provérbio inglês diz, “Imitação é a forma mais sincera de lisonja”. Para o

contemplativo, a imitação de Cristo representa um esforço empenhado em receber

amorosamente sua vida na nossa e em amorosamente reproduzi-la. O próprio Jesus

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em seu amor sem limites pelo Pai foi o grande imitator Dei e nós em nosso amor pelo

Senhor lutamos em ser imitadores dele. Esta é a base de nossos votos monásticos:

uma assimilação a Cristo que leva a uma identificação com ele através de uma

observância fiel de suas atitudes, de seus comportamentos, de seus valores, de sua

relação com a realidade criada. Vemos que em toda a sua existência humana, Jesus

“buscou o reino de Deus e sua justiça” e de fato “encontrou-o” através de sua pobreza,

castidade e obediência. Para Jesus, estas não eram experimentadas negativamente

como sacrifícios mas como portas para dentro do reino e a posse do reino. Ele deixa

isto muito claro nas Bem-aventuranças, em seus ensinamentos sobre o casamento e o

celibato, em sua insistência invariável em fazer a vontade do Pai. Num dado ponto nos

Evangelhos, Jesus diz a um fariseu, “Tu não estás longe do reino de Deus”, e Jesus

podia falar assim com autoridade, por ser aquele que tinha cruzado o limiar do reino.

Inicialmente, os votos são um risco para nós: para usar um neologismo, eles são

experimentados como “contraintuitivos”. Será que riqueza, liberdade sexual e

autonomia irrestritas não seriam acessos mais promissores ao reino? Lembro-me que

em meu primeiro ano de noviciado com os jesuítas, tivemos um longo diálogo com o

grupo formador acerca do celibato – os prós, os contras e os por quês. A palavra que

reverberou foi dita por um sacerdote holandês, assistente do mestre de noviços: “A

única razão pela qual eu vivo o celibato é porque Jesus o viveu”. Seria difícil expressar

melhor a unidade entre a vivência dos votos e o amor de Cristo.

Vida Fraterna

f) No centro do sonho de Jesus havia uma sociedade de amor e

respeitomútuos, de servir ao invés de ser servido, de dar sem pedir nada em troca, de

recusar perseverar em inimizade, de tratar todas as pessoas tal como Deus as trata, de

chamar mesmo os traidores de “Meu amigo”, de lavar os pés dos outros, de dar o

próprio manto e de oferecer a própria vida por eles. Ele não acreditava muito em

santidade eremítica, embora conhecesse o fardo da tentação e da tristeza solitárias.

Seu sonho, pelo qual ofereceu sua própria vida, era o do novo Israel, da comunidade

santa, todos unidos ao seu Pai e unidos entre si no poder do seu Espírito. Talvez a

maior manifestação de nosso amor que este seu amor por nós evoque seja nosso

compromisso em realizar este sonho de Jesus. A vida em comum, a vida fraterna, não

é uma estrutura enfadonha que permite a busca da santidade individual. No que

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concerne a Jesus (e sua convicção atinge seu zênite nos discursos joaninos de

despedida), a vita communis era “a gordura e o tutano” da vida espiritual. É fora de

dúvida que verdadeiro compromisso ao cenóbio inclui muita frustração, muito

sofrimento e muito autoconhecimento doloroso. É tentando viver o “bom zelo” que

Bento pede de seus monges na conclusão de sua Regra que nós nos deparamos

constantemente contra nosso próprio egocentrismo inflexível – assim como o de

outros membros da comunidade. É na tentativa de se viver em partilha, perdão e

serviço que somos forçados à descoberta humilhante que outras pessoas não

significam muita coisa para nós, se é que significam algo. Eu proporia isto – para

aqueles dentre vocês aqui presentes que pertencem à família beneditina – como um

décimo terceiro grau da humildade. Aceitemos esta verdade dolorosa, e peçamos a

Jesus que cumpra sua promessa profética e nos dê um novo coração e um novo

espírito – não diferentes de nossos velhos – mas ressuscitados dos mortos. Sim, nós

abraçamos a vida comunitária para testemunhar que Deus tem poder “de devolver a

vida aos mortos e chamar à existência as coisas que não são” (Rm 4,17).

Espero ter conseguido deixar claro na segunda parte desta reflexão que todo o

conjunto de estruturas, práticas, atividades, votos que compõem uma comunidade

contemplativa não vêm “da parte dos homens, nem por homem algum” (Gl 1,1) – isto

é, não são o resultado do planejamento e criatividade humanos. Antes, são uma

resposta eclesial integrada ao impacto de sermos amados por Deus em Jesus Cristo.

Eles são simplesmente (embora talvez não unicamente) aquilo que surge da percepção

inegável de que Deus nos amou e nos salvou em seu Filho e nos destinou à vida eterna.

Eucaristia, Ofício Divino, meditação da Palavra de Deus, ascese, imitação de Cristo,

comunidade cristã – não representam componentes aleatórios de uma resposta de fé

na proclamação do Evangelho. Eles são a resposta. Cada vez que pessoas são

arrebatadas (ou “enamoradas”) pelo amor que Deus manifestou em seu Filho, estes

são os elementos que constituirão sua nova vida. E igualmente, cada vez que uma

comunidade contemplativa é fundada ou deseja fazer contato renovado com as fontes

de sua vitalidade, ela terá que prestar intensa atenção com o “ouvido do coração” aos

ensinamentos do Novo Testamento, a escutar e acreditar naquilo que Deus fez por

mim – por nós – e a que preço. Então tal comunidade nascerá do alto.

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III. “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25). Quanto mais nós,

contemplativos, tornarmo-nos enamorados do Deus que se revela em Jesus Cristo,

mais teremos o coração e a mente de Cristo, e experimentá-la-emos como um solene e

alegre imperativo de amar a Igreja e de nos entregarmos por ela. Assim como a

dimensão fraterna da vida cristã é tão central que não existe Ordem inteiramente

eremítica na Igreja Católica (os cartuxos se descrevem como “semieremitas”), assim

também o elemento eclesial é tão integral à vocação cristã – a toda vocação cristã –

que é impossível dar-se autenticamente a Cristo sem dar-se igualmente ao Povo de

Deus. Aquele famosíssimo apoftegma de Evágrio tem que ser compreendido na sua

integridade para ser válido e todo o apoftegma tem que ser lido à luz de seu telos: “O

monge é aquele que é separado de todos a fim de estar unido a todos”.

Como é que nós, contemplativos, devemos amar a Igreja pela qual Cristo se

entregou, reconhecendo que o amor que recebemos enquanto indivíduos é uma

“personalização” de seu amor pela Igreja da qual somos membros? Como podemos

viver a intuição de um São Bernardo que o “grande casamento” descrito nos Cânticos

dos Cânticos ocorre entre Cristo e a Igreja, e que nossa própria experiência individual

constitui um “pequeno casamento” (entre o Logos e a mens) que só é válido dentro do

contexto da união entre Cristo e seu Corpo?

a) A expressão mais fundamental de nosso amor à Igreja de Cristo é nossa

fidelidade à nossa vocação. Todo domingo nós afirmamos nossa fé na communio

sanctorum – a posse comum de todos os bens sagrados da Igreja. Destes “bens”, a

santidade em si é um dos mais preciosos e um dos mais comunicáveis. Durante muitos

séculos, os contemplativos se entregaram com grande generosidade à sua vocação, na

convicção de que esta autotranscendência se “traduz” em numerosas graças para o

povo de Deus – graças de conversão, graças em tempo de tentação, graças de

perseverança e, em particular, graças para os esforços missionários da Igreja. Há uma

“parceria” entre os contemplativos e os missionários. A intenção deles é a mesma –

“Da mihi animas” (“Dai-me almas”) – e é crucial que o contemplativo assuma

conscientemente esta finalidade missionária de seu chamado de clausura.

b) Papa Francisco em sua constituição apostólica Vultum Dei Quaerere

veementemente insistiu numa segunda expressão, próxima à primeira, de nossa

dedicação à Igreja: a orientação de nossa oração contemplativa. Para ele, a oração

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contemplativa cristã é necessariamente intercessora, necessariamente se preocupa

com todas as necessidades da humanidade, e se recusa a fechar-se sobre si mesma

como uma busca privada por iluminação espiritual ou por experiência mística. A seus

olhos, a oração contemplativa eclesialmente compreendida e intensamente vivida

possui um valor e importância que não podem ser superestimados: “Hoje... podemos

pensar que o destino da humanidade se decide no coração orante e nos braços

levantados das contemplativas” (nº 17).

c) Uma particular conjunção de santidade e oração intercessora é a aceitação

de livre vontade de um chamado ao sofrimento vicário. Embora isto talvez possa ser

considerado uma “vocação dentro da vocação” na vida contemplativa ao invés de

como algo característico da vocação de cada contemplativo, onde este chamado é

acolhido, ele é uma expressão preciosa e frutuosa do amor pela Igreja. Foi o próprio S.

Paulo que primeiro apresentou esta misteriosa possibilidade: “Completo em meu

corpo aquilo que ainda falta aos sofrimentos de Cristo em favor de seu corpo que é a

Igreja” (Cl 1,24). Seja através de sofrimentos físicos, emocionais ou espirituais, o

contemplativo se identifica com o Cristo sofredor e oferece seus sofrimentos pessoais

para alívio do sofrimento de outros e para sua própria salvação. Meu corpo é

conformado ao corpo humano de Cristo em favor de seu corpo universal.

d) A celebração de nossa liturgia monástica é uma quarta expressão de nosso

amor pela Igreja. No texto francês da Missa, a resposta do povo ao convite do

sacerdote, “Orai, irmãos e irmãs”, é “Para a glória de Deus e a salvação do mundo”. É

importante reconhecer que um grande número de hóspedes e visitantes aos nossos

mosteiros experimenta a salvação como uma realidade precisamente através da

interioridade, atenção, participação e alegria que caracterizam a celebração litúrgica

em comunidades contemplativas. Nossas liturgias devem ser expressões vividas – não

somente para nós mesmos, mas também os que participam nelas conosco – das

verdades da fé. A liturgia é dogma vivenciado e a liturgia é pregação. Oferecemos à

Igreja um grande serviço (um ao qual ela tem pleno direito) através de nossa maneira

especificamente contemplativa de celebrar a Eucaristia e o Ofício Divino.

e) Hoje há um grande desequilíbrio entre oferta e demanda no que concerne a

disponibilidade de diretores espirituais. Muitos leigos buscam alguém com experiência

na busca da santidade cristã para guiá-los, e muitos religiosos, seminaristas e padres

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diocesanos – que sem dúvida alguma têm necessidade de um diretor, especialmente

nos anos de formação – encontram-se na mesma situação de não conseguirem

localizar uma pessoa com a disponibilidade e capacidade de orientá-los. Ainda que

mosteiros não sejam a mesma coisa que “centros de espiritualidade”, membros de

uma comunidade contemplativa prestam um auxílio necessário à Igreja quando se

mostram desejosos em atender os fiéis na direção e confissão. Isto é especialmente o

caso quando é questão daqueles que fazem retiro em nossas hospedarias.

f) Um dos pontos sobre os quais mudei de ideia durante estes vinte anos no

Brasil é a conveniência do envolvimento de uma comunidade contemplativa na vida

espiritual de uma diocese. Quando cheguei aqui, eu era completamente contra a ideia

de qualquer engajamento num “apostolado”. Com o passar do tempo, porém, cheguei

a ver que os contemplativos têm uma contribuição única a fazerem com respeito ao

aprofundamento do apreço da Palavra de Deus e à prática da lectio divina, ao

crescimento da vida interior e a uma compreensão genuína da espiritualidade cristã.

Pessoalmente, acredito que os nossos mosteiros podem e devem aceitar um número

limitado de convites para falarem e participarem em encontros, especialmente aqueles

que ocorrem dentro de suas próprias dioceses. A amizade e sentimento de pertença

mútua que tal participação gera entre nossas comunidades e a diocese é em si mesma

uma expressão de nosso amor pela Igreja local – assim como de seu amor por nós.

g) Finalmente, expressamos nosso amor pela Igreja pelo dom de nós mesmos

em nossa humanidade comum, das pessoas que nos tornamos através da vivência

diária de nossa vocação. Muitos anos atrás, Pe. Francisco (nosso ancião) e eu

estávamos almoçando num restaurante vegetariano em Curitiba quando nos dávamos

conta de que uma senhora nos estava “estudando”. Após certo tempo ela partiu e

continuamos nossa refeição. Quando saímos do restaurante, vinte minutos mais tarde,

ela estava esperando na porta. “Quem são vocês?”, perguntou ela. “Por quê?” “Vocês

são diferentes”. “Diferente bom ou diferente ruim?” “Diferente bom... tranquilos,

alegres”. “Somos monges”. “Ah... tá”. Este “tá” era uma percepção intuitiva renovação

de nossa natureza, que Deus leva toda uma vida para nos comunicar e a nós, para a

recebermos. Ela é um fruto lentamente amadurecido do amor de Deus por nós em

Cristo e de nossa resposta a ele. Normalmente nós sequer somos conscientes dele,

mas ele é real, ele “fala”, e como todo o mais que recebemos, ele pertence à Igreja.