Contribuição à Crítica Da ‘Economia Solidária

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105 Rev. Katál. Florianópolis v. 11 n. 1 p. 105-115 jan./jun. 2008 Contribuição à crítica da ‘economia solidária’ Henrique André Ramos Wellen Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Contribuição à crítica da ‘economia solidária’ Resumo: Neste ensaio, procura-se problematizar algumas premissas sobre a ‘economia solidária’ a partir de dois movimentos centrais: a transmutação do valor de troca em solidariedade e a transformação de qualidades solidárias em mercadorias. O primeiro ponto remete ao fato da ‘economia solidária’ preconizar o uso do capital como uma escolha individual, promovendo uma visão mistificadora da atual fase do capitalismo. Nesta perspectiva, as vontades das pessoas são tratadas como independentes das determinações do capital, apelando-se a elas para que façam uso solidário do seu capital particular e ampliem, dessa forma, o projeto em questão. Posteriormente, com base em leitura crítica da tese de que essas organizações dispõem de autênticas qualidades subjetivas e que estas representam vantagens competitivas frente às empresas capitalistas, aponta-se para a mistificação do uso da solidariedade como diferencial competitivo. Essas posturas são tratadas como formas ideológicas e enganosas que servem para intensificar processos de alienação humana Palavras-chave: economia solidária, ideologia, alienação, marxismo, comunidade. Contribution to a Criticism of Solidarity EconomicsAbstract: This essay analyzes some concepts about ‘solidarity economics’ based on two principal movements: the transmutation of exchange value into solidarity and the transformation of solidarity into a commodity. The first point relates to the fact that ‘solidarity economics’ sees the use of capital as an individual choice, promoting a mystifying vision of the current phase of capitalism. From this perspective, individual will is treated as independent of the determinations of capital. Appeals are made to individuals to use their private capital in a solidarity manner and thus expand the project in question. Based on a critical reading of the thesis that these organizations have authentic subjective qualities that represent competitive advantages in relation to capitalist companies, the mystification of the use of solidarity as a competitive distinction is indicated. These positions are considered to be ideological and misleading forms that serve to intensify human alienation. Key words: solidarity economics, ideology, alienation, Marxism, community. Recebido em 25.10.2007. Aprovado em 15.01.2008. ENSAIO

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    Rev. Katl. Florianpolis v. 11 n. 1 p. 105-115 jan./jun. 2008

    Contribuio crtica da economia solidria

    Henrique Andr Ramos WellenUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

    Contribuio crtica da economia solidriaResumo: Neste ensaio, procura-se problematizar algumas premissas sobre a economia solidria a partir de dois movimentos centrais:a transmutao do valor de troca em solidariedade e a transformao de qualidades solidrias em mercadorias. O primeiro ponto remeteao fato da economia solidria preconizar o uso do capital como uma escolha individual, promovendo uma viso mistificadora da atualfase do capitalismo. Nesta perspectiva, as vontades das pessoas so tratadas como independentes das determinaes do capital,apelando-se a elas para que faam uso solidrio do seu capital particular e ampliem, dessa forma, o projeto em questo. Posteriormente,com base em leitura crtica da tese de que essas organizaes dispem de autnticas qualidades subjetivas e que estas representamvantagens competitivas frente s empresas capitalistas, aponta-se para a mistificao do uso da solidariedade como diferencial competitivo.Essas posturas so tratadas como formas ideolgicas e enganosas que servem para intensificar processos de alienao humanaPalavras-chave: economia solidria, ideologia, alienao, marxismo, comunidade.

    Contribution to a Criticism of Solidarity EconomicsAbstract: This essay analyzes some concepts about solidarity economics based on two principal movements: the transmutation ofexchange value into solidarity and the transformation of solidarity into a commodity. The first point relates to the fact that solidarityeconomics sees the use of capital as an individual choice, promoting a mystifying vision of the current phase of capitalism. From thisperspective, individual will is treated as independent of the determinations of capital. Appeals are made to individuals to use theirprivate capital in a solidarity manner and thus expand the project in question. Based on a critical reading of the thesis that theseorganizations have authentic subjective qualities that represent competitive advantages in relation to capitalist companies, the mystificationof the use of solidarity as a competitive distinction is indicated. These positions are considered to be ideological and misleading formsthat serve to intensify human alienation.Key words: solidarity economics, ideology, alienation, Marxism, community.

    Recebido em 25.10.2007. Aprovado em 15.01.2008.

    ENSAIO

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    Introduo

    Definida como um conjunto de atividades eco-nmicas de produo, distribuio, consumo e cr-dito organizadas e realizadas solidariamente portrabalhadores e trabalhadoras sob a forma coletiva eautogestionria (SENAES, 2006, p. 11), a economiasolidria1 representa atualmente um movimento eco-nmico e social de significante amplitude. Os dadosapontam para a sua relevncia: em quase metadedas cidades brasileiras existem experincias que aintegram. Em pesquisa realizada em 2005, foramidentificadas cerca de 14.954 empreendimentos eco-nmicos solidrios em 2.274 municpios do Brasil (oque corresponde a 41% dos municpios brasileiros)(SENAES, 2006, p. 15). Trata-se, portanto, de umaexperincia socialmente importante na fase atual docapitalismo, o que torna relevante um estudo maisaprofundado de seus principais postulados.

    Para Singer (2002, p. 09-10), a cooperativa deproduo representa o prottipo da empresa solid-ria, uma vez que nessa organizao, todos os sciostm a mesma parcela de capital e, por decorrncia, omesmo direito de voto em todas as decises. Naviso desse autor, a definio dessa experincia nose limita, no entanto, ao espao interno da organiza-o, mas abarca toda a estrutura social: a economiasolidria outro modo de produo, cujos princpiosbsicos so a propriedade coletiva ou associada docapital e o direito liberdade individual.

    Alm de significar uma resposta importante dostrabalhadores e das comunidades pobres em relaos transformaes ocorridas no mundo do trabalho(SENAES, 2006, p. 07), conforme advoga o Ministrodo Trabalho e do Emprego do Brasil, Luiz Marinho, opapel da economia solidria seria o de superar omodo de produo capitalista, implantando no seulugar um novo ordenamento social. Na viso de seusdefensores, a economia solidria poder,gradativamente, superar o capitalismo, tendo comoincio de sua atuao os interstcios isentos das de-terminaes do capital.

    O objetivo central desse texto refere-se proble-matizao de algumas das principais premissas pre-sentes em obras sobre a economia solidria, luz decategorias extradas da anlise crtica da realidade dosistema capitalista. Trataremos, em especial, de doismovimentos centrais que, a nosso ver, estruturam asteses da economia solidria: a transmutao do va-lor de troca em solidariedade e a transformao dequalidades solidrias em mercadorias.

    Conforme veremos a seguir, o primeiro ponto dedestaque de nossa anlise crtica das teses da eco-nomia solidria remete ao fato desse projeto preco-nizar o uso do capital como uma escolha individual.Para tanto, seus autores promovem uma visomistificadora da atual fase do capitalismo, tratando

    as vontades humanas como independentes das de-terminaes do capital. Esse recurso serve ideologi-camente para justificar que o capital no representa-ria uma fora ativa na totalidade social, mas que se-ria induzido de acordo com a subjetividade de cadaum dos seus portadores. Com a vigncia dessapseudo-realidade, os representantes desse projetoapelam para a boa vontade das pessoas, para queessas faam um uso solidrio do seu capital particu-lar e ampliem, dessa forma, a economia solidria.

    Em momento complementar2, apontaremos para amistificao do uso da solidariedade como diferencialcompetitivo a servio dessas organizaes, a partir deuma leitura crtica da viso de que por causa do seupeculiar trato aos trabalhadores e clientes as mesmasdispem de autnticas qualidades subjetivas e que estasrepresentam vantagens competitivas frente s empre-sas capitalistas. Trataremos essas posturas como for-mas ideolgicas e mistificadoras que servem para in-tensificar processos de alienao humana.

    O valor de troca como solidariedade

    Uma das idias presentes nas propostas da eco-nomia solidria a da competio ser vantajosa paraambas as partes da relao comercial por permitir,ao mesmo tempo, a todos ns consumidores esco-lher o que mais nos satisfaz pelo menor preo, aconcorrncia tambm pode possibilitar que o me-lhor vena, uma vez que as empresas que mais ven-dem so as que mais lucram e mais crescem, ao pas-so que as que menos vendem do prejuzo e se noconseguirem mais clientes acabaro por fechar(SINGER, 2002, p. 7).

    J o mercado representaria o espao propciopara a realizao da liberdade humana, no qual cadaindivduo poderia efetivar suas escolhas de acordocom sua subjetividade: o indivduo tem o direito detomar uma iniciativa, abrir uma empresa ou vendero fruto do seu trabalho. O mercado no um mal,ele uma forma de realizao individual (SINGER,1998, p. 113). Seria, portanto, o local privilegiadopara se colocar em prtica a iniciativa de cada um.Conforme afirma Singer (1998, p. 113), o mercadode trabalho3 condio de liberdade humana e al-guns mercados de bens e de servios me parecemigualmente essenciais, porque uma das liberdadesinteressantes a de iniciativa.

    No entanto, segundo autores da economia solid-ria, apesar de representarem elementos positivos paratoda a sociedade, tanto a competio quanto a suaefetivao pela instncia do mercado possuem quali-dades que precisariam ser obstrudas. Isso se deve aofato de que a existncia das desigualdades imanentesao sistema capitalista teria a sua fonte nas diferenasparticulares, historicamente construdas, visto que, en-

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    quanto uns conseguiram acumular capital, outros ape-nas alcanaram maiores prejuzos4. Ou seja,

    [...] enquanto os primeiros acumulam capital, gal-gam posies e avanam nas carreiras, os ltimosacumulam dvidas pelas quais devem pagar juroscada vez maiores, so despedidos ou ficam desem-pregados at que se tornam inempregveis, o quesignifica que as derrotas os marcaram tanto queningum mais quer empreg-los. Vantagens e des-vantagens so legadas de pais para filhos e paranetos. Os descendentes dos que acumularam capi-tal ou prestgio profissional, artstico etc, entramna competio econmica com ntida vantagem emrelao aos descendentes dos que se arruinaram,empobreceram e foram socialmente excludos. O queacaba produzindo sociedades profundamente de-siguais (SINGER, 2002, p. 8-9).

    As diferenas sociais provenientes de aes parti-culares promoveriam a tal ponto as desigualdades soci-ais, que estas se tornariam pilares para as contradiessociais entre perdedores e ganhadores. Para o autor esse o fato que explica porque o capitalismo produzdesigualdade crescente, verdadeira polarizao entreganhadores e perdedores (SINGER, 2002, p. 8).

    Apesar da necessidade do mercado como localde afirmao dos interesses individuais, seria precisoa imposio de limites sociais para regular as desi-gualdades sociais5. A diferena entre o sistema soci-alista e o sistema capitalista encontrar-se-ia nessaforma de regular a sociedade: enquanto o primeiropermitiria a existncia de grandes diferenas entrevantagens e desvantagens sociais, o outro instaura-ria instituies para combat-las. A peculiaridade dosocialismo estaria, para Singer, presente na adiode uma qualidade imprescindvel: a tentativa deamenizao das desigualdades sociais.

    Aps o livre funcionamento do mercado, entrariaem ao uma instituio para redistribuir as vanta-gens: o que o socialismo tem a mais que, depoisque o jogo do mercado feito, depois que os ganha-dores e os perdedores esto definidos, deve existiruma instituio que tira uma grande parte dos bensmateriais dos ganhadores e d para os perdedores(SINGER, 1998, p. 114). O socialismo, nesse entendi-mento, representaria a manuteno no apenas domercado, mas tambm do Estado, isto , muito maisum sinnimo de keynesianismo, do que de socialismocomo fase de transio para o comunismo.

    Ao analisarmos de forma crtica essa tese queestrutura a proposta da economia solidria, pode-mos perceber que, por trs dessa crtica romnticaao sistema capitalista, permanecem alguns fortes res-qucios de sua legitimao. Ao definir o uso individu-al feito do capital aqui como a causa central das de-sigualdades sociais, aparece como pano de fundo a

    idia de que o capital tem o seu destino determinadopelo uso particular. O capital, de acordo com essepensamento, aparece no como dominante, mas comodominado; no como uma fora social que gera de-terminaes, mas condicionado pelo emprego feitopelas pessoas, o que, no extremo, induz a uma anli-se moralista ou valorativa da sociedade. Isto signifi-caria a utilizao particular feita do capital, e no asdeterminaes da universalidade da lgica do capi-tal, que configurariam a sociedade6.

    A defesa da competio e do mercado como umaentidade necessria, mesmo estando ligada denn-cia da desvantagem social proveniente das diferen-as sociais acumuladas, nega a discusso central doprprio capital como uma fora social, como causageradora dessas desigualdades, sendo sua propostade fornecimento de vantagens para quem no as temuma forma de legitimao dessa mesma fora soci-al, no tocando, portanto na causa do problema. Aidia de que o mercado essencial ao socialismo(SINGER, 1998, p. 113), estabelece-se, nesse sentido,negando aquilo que prprio da especificidade domercado em sua concretude capitalista: o lcus pri-vilegiado de atuao das foras do capital, tanto deaquisio de fora de trabalho quanto de realizaode mais-valia.

    A mistificao promovida pelos representantes daeconomia solidria tem sua gnese no processo demanipulao e desvirtuamento da essncia da reali-dade atual. Essa viso aparece desprovida de gran-de parte das determinaes provenientes do capita-lismo moderno, apreendendo a fase atual do capita-lismo pela imagem de capitalismo embrionrio. Nose leva em conta que, no capitalismo moderno, o va-lor de troca deixa de ser um meio das relaes detroca para tornar-se uma meta suprema; fazendosurgir o capitalista como a figura do capital persona-lizado. Em outras palavras, omite-se que:

    O contedo objetivo daquela circulao a valori-zao do valor sua meta subjetiva, e s enquantoa apropriao crescente da riqueza abstrata o ni-co motivo indutor de suas operaes, ele funcionacomo capitalista ou capital personificado, dotado devontade e conscincia (MARX, 1985, p. 129).

    Como conseqncia dessa apreenso superficialda realidade, apresenta-se, dentro das premissas daeconomia solidria, a possibilidade de que as orga-nizaes integrantes desse projeto se localizem numespao alheio ao domnio do capital, ou seja, nosinterstcios do sistema capitalista7. No entender deSinger (2002, p. 88), o cooperativismo, apesar de si-tuar-se nos interstcios do sistema capitalista, conse-gue realizar um papel importante de obstruo ampliao do domnio do capital: se o cooperativismodesempenhou e desempenha um papel de freio

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    centralizao do capital ao menos num setor, ele nopassa de um modo de produo intersticial nas for-maes capitalistas.8

    A superficialidade dessa tese est em crer quealguma parte da sociedade, por mais isolada que seja,vai estar ausente das determinaes capitalistas e,por isso, pode ser passvel de no ser vista como reade promissora lucratividade. Para demonstrar tal mis-tificao, remetemo-nos s palavras de Paulo Netto(2005, p. 38-39), quando este afirma que, a partir dafase imperialista do capitalismo, surge uma tendn-cia de apropriao de todos complexos sociais pelalgica da mercantilizao:

    Na idade do imperialismo, a organizao monoplicada vida social tende a preencher todos osinterstcios da vida pblica e da vida privada; asubordinao ao movimento do capital deixa de tercomo limites imediatos os territrios da produo:a tendncia manipuladora e controladora que lhe prpria desborda os campos que at ento ocupa-ra (no capitalismo concorrencial), domina estrate-gicamente a circulao e o consumo e articula umainduo comportamental para penetrar a totalidadeda existncia dos agentes sociais particulares.

    Com o marco desse novo contexto histrico, noapenas os setores diretamente ligados produocapitalista so aprisionados pelo interesse do capital,mas tambm as demais esferas sociais: O monop-lio, uma vez que foi constitudo e controla milharesde milhes, penetra de maneira absolutamente inevi-tvel em todos os aspectos da vida social, indepen-dentemente do regime poltico e de qualquer outraparticularidade (LNIN, 1986, p. 618). Essa umadas diferenas que distingue a fase monopolista ouimperialista do capitalismo de sua fase embrionria,concorrencial9.

    Ao defender a existncia dos interstcios do ca-pitalismo, teramos que advogar tambm um retorno sua fase concorrencial. Para a permanncia de umintervalo social entre as partes dominadas do capital,seria necessrio que o capital, coerentemente, aindano tivesse entrado na fasemonopolista, e que no tives-se interesse imediato namercantilizao da totalidadesocial. Em nosso entendi-mento, o fator central presen-te na defesa da existnciados interstcios do capitalismo que, por meio da aceitaodesse artifcio, promova-seuma representao ideal queno reflita as especificidadesda fase atual do capitalismo.A idia de interstcio dentro

    do capitalismo nos conduz a visualizar a sociedadeatual como constituda por meio de setores ou partespossuidoras de altos nveis de autonomia10. Sob esteprisma, limitam-se as relaes de interdependnciaentre as diversas esferas da sociedade capitalistamadura, atribuindo a estas uma posio de autono-mia que no lhes peculiar. Confunde-se aquilo que referente s sociedades pr-capitalistas, com o que exclusivo e fundamental da organizao econmi-ca capitalista:

    Essa situao de fato tem seu fundamento na dife-rena profunda entre a organizao econmica docapitalismo e a das sociedades pr-capitalistas. Adiferena muito surpreendente que mais nos im-porta agora que toda sociedade pr-capitalistaforma uma unidade incomparavelmente menos co-erente, do ponto de vista econmico, do que acapitalista. Na primeira, a autonomia das partes muito maior, e suas interdependncias econmicasso muito mais limitadas e menos desenvolvidasdo que no capitalismo. Quanto mais frgil o papelda circulao das mercadorias na vida da socieda-de como um todo, quanto mais cada uma das par-tes da sociedade vive praticamente em autarquiaeconmica (comunas aldes) ou no desempenhanenhum papel na vida propriamente econmica dasociedade e no processo de produo em geral(como era o caso de importantes fraes de cida-dos nas vilas gregas e em Roma), tanto menos aforma unitria, a coeso organizacional da socieda-de e do Estado, tm fundamento real na vida real dasociedade (LUKCS, 2003, p. 149).

    As determinaes que so provenientes dessanova fase do capitalismo provocam impactos diretosna estrutura das organizaes da economia solid-ria, o que faz surgir a necessidade de repensar asrelaes dessas organizaes com o mercado. Anti-gos axiomas precisam ser repensados luz destasnovas configuraes societrias. Esse o caso, porexemplo, da premissa de que a grande vantageminicial das cooperativas era o mercado assegurado

    por um quadro de scios emplena expanso provenientedo fato de que, com base naassociao de consumidores ecom o uso de fundos empres-tados, era possvel concentrara atividade distributiva que lheconfere superioridade compe-titiva em relao ao comrciopreexistente, que na segundametade do sculo ainda erapr-capitalista, estando nasmos de pequenos operado-res (SINGER, 2002, p. 52).

    Para superar a ideologia capi-talista e fazer submergir quali-dades autenticamente huma-nas, preciso um movimento

    que abarque a totalidade sociale que no se restrinja

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    Ou, ainda, conforme advoga Birchall (apud SINGER,2002, p. 71), que a vantagem competitiva das organi-zaes de economia solidria perante as empresascapitalistas estaria no fato daquelas possurem umarelao mais prxima com as comunidades, ou seja,que o segredo do sucesso do movimento seu focoprimordial em comunidades locais e sua capacidadede reforar o senso de identidade tnica.

    Alm disso, a comunidade aparece nas teses daeconomia solidria como a panacia da emancipa-o humana, fazendo com que a relao dialticaentre indivduo e sociedade torne-se fraturada namedida em que se exponencia a importncia da au-tonomia subjetiva na organizao social. Quando ana-lisamos a afirmao de que,

    O trabalho segundo tais pensamentos desempe-nharia hoje um papel eminente no reforo das soli-dariedades colectivas, seria a maneira moderna doviver em comum e da cooperao, permitiria aosindivduos serem parte activa de uma relao soci-al maior (a relao de trabalho) e, atravs dela, inte-grarem-se na comunidade, na sociedade em minia-tura que a empresa (MDA apud ROSENFIELD,2003, p. 21),

    percebemos que ocorre um processo de valoraoindividualizada que singulariza11 a incidncia do capi-tal sobre a sociedade e, por isso, suspende as possi-bilidades concretas de transformao social.

    uma mistificao pensar que as relaes inter-nas dentro de uma comunidade esto suspensas dasdeterminaes do capitalismo e que a economia so-lidria poderia forjar, de forma independente, um tipode racionalidade peculiar. Para superar a ideologiacapitalista e fazer submergir qualidades autenticamen-te humanas, preciso um movimento que abarque atotalidade social e que no se restrinja comunidade,isto , que no se limite posio de que aracionalidade assenta na comunidade de trabalho[...], a qual funda-se em vnculos de reciprocidade,que diluem as eventualmente rgidas fronteiras entreinteresses individuais e coletivos (VERONESE;GUARESHI, 2005, p. 66).

    Por meio dessa anlise, identificamos nas teses daeconomia solidria um elevado grau de voluntarismoque, por sua vez, pode ser relacionado diretamentecom uma posio filosfica idealista. Essa perspecti-va relega a apreenso da totalidade social em prol deaspectos avulsos: o idealismo subjetivo, a partir dachamada aprioridade desta ou daquela atitude em faceda realidade, cria mundos especialssimos, isoladosum do outro; esta criao aparece, com particular evi-dncia, em Simmel (LUKCS, 1978, p. 160). Com avigncia desse recurso, a perspectiva de universalida-de desmerecida e o que resulta da anlise terica darealidade so representaes falsas ou distorcidas.

    Se esse ingrediente j estava presente nas idiasdos chamados socialistas utpicos durante a vign-cia da fase concorrencial do capitalismo, aps a as-censo da fase imperialista e dos grandes monopli-os, os defensores da economia solidria acentuamo apelo para a vontade individualizada. A validadedessa afirmao ocorre pela concepo de que, di-ferentemente da fase atual do capitalismo, o contex-to que influa nas organizaes dos socialistas utpi-cos era bem menos impactante, abrindo maiores pos-sibilidades de sucesso no mercado. O roteiro econ-mico de superao do sistema capitalista aparecia,aos olhos destes pensadores, como uma conquistagradativa que se iniciava pela esfera da distribuio,passando pela produo e culminando numa coope-rativa nacional. Ou seja, aplicando os princpios dosPioneiros, eles foram capazes de repetir o mesmoroteiro do varejo ao atacado, depois produo pr-pria e finalmente criao de uma unio cooperativanacional (BIRCHALL apud SINGER, 2002, p. 53).

    Enquanto as organizaes propostas pelos socia-listas utpicos possuam uma margem de manobrade sobrevivncia no mercado, as experincias de eco-nomia solidria atuais se defrontam com um quadromuito mais restritivo, consubstanciado pelo cresci-mento e dominao do capital. Para superaridealmente as determinaes imanentes fase atualdo capitalismo, os defensores desse projeto advogama possibilidade de determinao do sentido do capitalpelo seu portador individual. As contradies sociaisno teriam sua causa no capital como uma relaosocial, mas exclusivamente na vontade egosta do seuportador. Nesse sentido, sendo seu detentor um indi-vduo de valores solidrios, o capital teria tambmesse sentido, ou seja, a economia seria solidria.

    Entretanto, no mundo real, as organizaes da eco-nomia solidria, para disputarem com as empresascapitalistas as margens de mercado, precisam portarelementos que as tornem tambm competitivas. Talfato remete necessidade destas organizaes ampli-arem o apelo solidariedade como diferencial compe-titivo. Se para aquelas organizaes a vantagem com-petitiva era fato resultante da fase embrionria do ca-pitalismo, para estas o diferencial se faz por meio deum recurso intensificado de qualidades solidrias, trans-formando-as em valor de troca.

    A solidariedade como valor de troca

    Consta nas obras tericas da economia solid-ria a tese de que, como essas organizaes possu-em poucas chances de competir com as empresascapitalistas, devem centrar seus esforos em aten-der demanda de mercado formada pela busca deum atendimento sofisticado, agrupada por consumi-dores especiais por terem uma conscincia cidad.

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    Henrique Andr Ramos Wellen

    Diferentemente das empresas capitalistas que se di-rigem a um pblico massificado ou homogeneizado,a economia solidria deveria dar enfoque aos ni-chos de mercado dos clientes que buscam algo maisdo que apenas o valor de troca das mercadorias, ouseja, que no elegem o local de compra de suas mer-cadorias apenas pelo atributo preo. Conforme ad-voga Singer (2002, p. 58),

    A massificao dos consumidores um pressupos-to. As vantagens que ele oferece se dirigem a umpblico homogeneizado, cujas preferncias sopautadas pela publicidade dos meios de comunica-o de massa. Sempre existem demandas por outrotipo de atendimento, em que o consumidor cida-do, tem direito a ser ouvido e participar das deci-ses que o afetam. So estas as demandas que aeconomia solidria atende melhor que o varejo ca-pitalista.

    Esse seria o lema da economia solidria: nocompetir com as mercadorias massificadas das gran-des corporaes capitalistas, mas proporcionar umtipo de produto ou servio que tenha outros diferen-ciais, tais como atendimento personalizado e umarelao mais humana entre a organizao e seu cli-ente. Ficam, no entanto, algumas dvidas acerca davalidade desses requisitos: com este tipo de atendi-mento, o que est sendo vendido: a mercadoria ou aprpria relao social? O que a mercadoria princi-pal nessa relao de troca: o produto ou a forma comoesse produto elaborado e disponibilizado? A eco-nomia solidria produz e vende o qu: mercadoriasou slogans de solidariedade?

    Essas perguntas possuem, como pano de fundo,dois problemas decisivos. O primeiro e de percep-o mais aparente o aspecto econmico. Comoas organizaes de economia solidria conseguirosobreviver no mercado, tendo uma mercadoria compreo mais elevado do que as de seus concorrentesdiretos? Quais sero os clientes que tero condiesmateriais para adquirir esse tipo de mercadorias es-pecial? Eles se aproximam mais da faixa de rendi-mento da classe dos trabalhadores, que dificilmentetero margem disponvel de compra superior re-produo da sua fora de trabalho ou, daqueles que,por se apropriarem privadamente da produo soci-al, possuem riqueza a mais que sua necessidade di-reta de reproduo social e, por isso, dispem-se apagar mais por um atendimento do tipo especial12? Aque classe social a economia solidria quer con-vencer a tornar-se seu cliente fidelizado: os trabalha-dores ou os capitalistas?

    Em segundo plano, essa relao especial decompra e venda, traz em si um elemento que, pri-meira vista, no facilmente identificado, mas que essencial para a manuteno e legitimao da ordem

    capitalista. Trata-se da relao coisificada entre pes-soas, na qual no somente a mercadoria passa a sertida como possuidora de capacidades humanas, como,dialeticamente, capacidades humanas so vendidascomo sendo mercadorias. Fortalece-se o fenmenoda reificao que recebe subsdios dessa forma es-pecial de relao mercantil, na qual o cliente, ao com-prar uma mercadoria, por um acrscimo de preo,recebe como bnus certificados de solidariedade ecidadania13.

    Ao adotar essa postura, a economia solidria seapresenta como um projeto que busca substituir acentralidade do trabalho como fonte de valor da mer-cadoria por caractersticas individuais que lhe seriampeculiares. Para tanto, suscita-se um privilgio aosfatores subjetivos, atribuindo a estes uma fora socialque em muito extrapola quela referente na sua vali-dade social. Com esse artifcio, organizaes de eco-nomia solidria, orientadas a partir de qualidades comoa conscincia social, teriam capacidade de sucesso nomercado capitalista: Objetivos sociais podem substi-tuir a ganncia como uma poderosa fora motivadora.Se forem bem dirigidas, as empresas orientadas paraa conscincia social podem se sair muito bem no mer-cado, competindo com as outras baseadas na gann-cia (YUNUS; JOLIS, 2006, p. 264).

    A diferena competitiva entre as empresas capita-listas e as organizaes da economia solidria pode-ria ser suprimida, nesse sentido, pela aderncia de sen-timentos que conduzissem a processos motivacionaisde trabalho. Seria, a partir do melhor aproveitamentodessas qualidades subjetivas potencialmente presen-tes nesses tipos de organizaes, que a economia so-lidria utilizar-se-ia de importantes recursos tpicos dafase atual capitalismo: Tais empreendimentos encon-tram potencialmente no trabalho coletivo e na motiva-o dos trabalhadores que os compem, uma impor-tante fonte de competitividade reconhecida no capita-lismo contemporneo (TAUILLE; DEBACO, 2002, p.62). O bom emprego dessas qualidades supostamenteimanentes s organizaes solidrias, em especial dasrelaes de confiabilidade intrnseca, resultaria numaeficincia coletiva:

    Na medida em que se desenvolva a confiabilidadeintrnseca entre os agentes, uma espcie de efici-ncia coletiva poder resultar em economias derede. Pensando em termos de sucesso e expansodestas redes h quem aponte que, tanto em pasesavanados como em desenvolvimento, clusters depequenas e mdias empresas [...] conquistarammercados externos com base em sua eficincia co-letiva (TAUILLE, 2001, p. 16).

    No lugar da competio ter a sua causa na estru-tura produtiva, que incide na totalidade social, essapassaria a ser superada de forma individual. A alter-

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    Contribuio crtica da economia solidria

    nativa para a superao dessa lgica competitiva dar-se-ia a partir da redefinio das formas de ver o tra-balho; de um novo sentido ao trabalho:

    A efetivao destes princpios dependeria, no nos-so entendimento, de um processo de redefiniodas formas de atribuio de sentido ao trabalhopara que os valores da autogesto e da solidarie-dade possam reconfigurar os modos desubjetivao associados competitividade, aomodelo de gesto e ao individualismo no capitalis-mo contemporneo (NARDI et al., 2006, p. 321-322).

    Atribuindo um sentido particular ao seu trabalho,os integrantes da economia solidria podem se ima-ginar como trabalhadores autnomos quando, na ver-dade, esto inseridos numa relao direta de explo-rao. Vendem sua fora de trabalho, mas so leva-dos a se ver como imunes e superiores a essa rela-o de explorao. Percebem-se como autnomos,mesmo estando a servio de empresas de capital in-ternacional: nos anos 90, cooperativas cearenses fi-caram quase seis meses sem encomendas em fun-o da crise Argentina, pas para o qual a empresaparceira destinava parte de sua produo (LIMA,2003, p.18), alm de que geralmente a empresa de-termina a produo, como deve ser organizada,padres, etc (LIMA, 2003, p.19). Os integrantesdessas organizaes podem no saber, mas o fazem.

    Promove-se, portanto, um movimento de mistifi-cao da realidade no momento em que se defendeque um importante diferencial competitivo a serviodas organizaes de economia solidria seria a ca-pacidade de atribuio de sentido do trabalho comoum recurso interno, assim como na caracterizaodessa qualidade subjetiva como atributo de valor detroca. Ou seja, alm de instaurar uma separao en-tre o espao interno das organizaes da economiasolidria e as determinaes do modo de produocapitalista, fomenta-se uma mercantilizao dessasqualidades subjetivas. Num primeiro momento, ocor-re o processo de autonomizao da economia soli-dria e, em seguida, as caractersticas provenientesdessas organizaes so transformadas em diferen-ciais competitivos frente ao mercado capitalista. Comoj afirmamos, uma contradio entre as partes quese completa para fechar um ciclo iniciado com a uti-lizao do capital como solidariedade e finalizado coma transformao da solidariedade em valor de troca.

    Auferindo para si a possibilidade de atribuio in-terna de sentido ao trabalho, a proposta da economiasolidria suscita uma ruptura mistificadora com a uni-dade material entre os diversos trabalhos dentro domodo de produo capitalista. Esse posicionamentoterico nos remete a formas anteriores de organiza-o da produo, nas quais as diferentes formas detrabalho ainda no estavam equiparadas numa s.

    Ao equiparar seus produtos de diferentes espci-es na troca, como valores, equiparam seus diferen-tes trabalhos como trabalho humano. No o sa-bem, mas o fazem. Por isso, o valor no traz escritona testa o que ele . O valor transforma muito maiscada produto de trabalho em um hierglifo social.Mais tarde, os homens procuram decifrar o sentidodo hierglifo, descobrir o segredo de seu prprioproduto social, pois a determinao dos objetos deuso como valores, assim como a lngua, seu pro-duto social. A tardia descoberta cientfica, de queos produtos de trabalho, enquanto valores, soapenas expresses materiais do trabalho humanodespendido em sua produo, faz poca na hist-ria do desenvolvimento da humanidade, mas nodissipa, de modo algum, a aparncia objetiva dascaractersticas sociais do trabalho. O que somentevale para esta forma particular de produo, a pro-duo de mercadorias, a saber, o carter especifica-mente social dos trabalhos privados, independen-tes entre si, consiste na sua igualdade como traba-lho humano e assume a forma de carter de valordos produtos de trabalho, parece queles que es-to presos s circunstncias de produo mercan-til, antes como depois dessa descoberta, to defi-nitivo quanto a decomposio cientifica do ar emseus elementos deixa perdurar a forma do ar, en-quanto corpo fsico (MARX, 1985, p. 72).

    O trabalho concreto surgiria como uma vantagemda economia solidria frente s empresas capitalis-tas, uma vez que, enquanto nestas ocorre o trabalhoabstrato, naquelas as pessoas atribuiriam um sentidoparticular sua produo. Com a prevalncia dessaposio analtica, o processo de superao dareificao social, ou de descoberta do hierglifo so-cial cunhado nos produtos do trabalho, recebe maisum obstculo. Com o advento desse ponto de vista,para descobrir o segredo de seu prprio produto so-cial, agora no basta apenas enxergar o trabalho comonica fonte de valor, mas, antes disso, superar o sen-tido individual atribudo ao trabalho, inserindo-o natotalidade social. O processo de reificao tambmest presente ao tratar no apenas mercadorias comodetentoras de subjetividade, mas diferenciando os tra-balhadores segundo suas especificidades como tra-balhadores concretos , o que promove implicaesdiretas para a conscincia de classe14.

    A transformao social no pode ter como seuncleo estrutural a premissa de superao subjetivae particular das determinaes materiais presentesno capitalismo, ao contrrio disso, faz-se preciso ana-lisar a economia solidria por meio de suas rela-es de dependncia com o mercado. A conscinciadas pessoas que integram essas organizaes noest acima dessas relaes, mas consubstanciadapor elas; no est suspensa aos determinantes eco-

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    nmicos, nem se sobrepem a estes. No existe umadualidade estrutural entre o espao internoorganizacional e a totalidade social, marcada por umaruptura da conscincia: para aquele, sentimentos desolidariedade, para este, a competio mais selva-gem. As regras que governam o funcionamento ex-terno da economia solidria so as mesmas queincidem sobre o seu espao interno. Conforme apon-ta Lima (2003, p. 19-20),

    Para Quijano (2002), as regras que regem as coope-rativas so as do mercado e do salrio e o carterde reciprocidade ou solidariedade operariam exter-namente s relaes de trabalho, a partir da deci-so consciente de seus membros. Essa conscin-cia um processo complexo, pois raramente signi-fica uma situao de materialidade mais satisfatriapara seus membros o que explica o desinteressepor esse tipo de empreendimento em momentos deestabilidade e crescimento econmico. O cartervoluntrio da adeso s cooperativas fica compro-metido em contextos de crise econmica nos quaisas possibilidades de ocupao so reduzidas. Ficaa questo se uma alternativa a explorao capita-lista, ou falta dessa mesma explorao.

    Dentro desse processo terico de autonomizao daeconomia solidria e de apresentao de suas carac-tersticas peculiares como di-ferenciais competitivos, desta-ca-se a relao dessas organi-zaes com a comunidade lo-cal em que est inserida. Con-forme observamos anterior-mente, a relao com a comu-nidade surge aos olhos de re-presentantes desse projetocomo uma vantagem competi-tiva perante as empresas capi-talistas. Por se estabelecer,majoritariamente, apenas nomercado local, essas organiza-es teriam mais proximidadecom os seus clientes e, por isso,aportariam maiores vendas.Promovendo um atendimen-to especial a seus clientes, noapenas restrito a uma pura re-lao mercantil, alcanar-se-iam nichos de mercado de pes-soas mais conscientes e cida-ds. As qualidades subjetivas que integram esse aten-dimento especial representam, portanto, uma forma deagregar mais valor ao produto comercia-lizado. Comisso, subjetividade transformada tambm em merca-doria. Esse um exemplo da mercantilizao de quali-dades subjetivas.

    A solidariedade que apresentada como uma qua-lidade que distingue essa proposta das empresas ca-pitalistas serve, na verdade, muito mais como valoragregado publicidade do que representa uma prti-ca concreta. Observamos que, dessa forma, a utili-zao dessa qualidade como valor de troca maisutilizada para alcanar maior quantidade de valoresde troca do que para efetivar as qualidades subjeti-vas. A solidariedade passa a ser, nesse sentido, umamercadoria tal como qualquer outra, usada para agre-gar valor econmico empresa.

    Consideraes finais

    Analisamos algumas teses da economia solid-ria buscando demonstrar, a partir de um confrontodestas com as determinaes advindas da realidadeatual, sua qualidade mistificadora em dois momentoscentrais: no trato do capital como uma entidade indi-vidual e no sentido singular atribudo ao trabalho. Ini-cialmente demonstramos o efeito enganador de ad-vogar que a contradio social do capitalismo temsua fundao na desigualdade individual, historica-mente constituda, e que podem existir partes da so-ciedade autnomas que no seriam consubstanciadaspelas determinaes do capitalismo e, por isso, esta-riam suscetveis influncia exclusiva de propostas

    alternativas limitadas ao es-copo da comunidade. Em se-guida evidenciamos que oapelo a qualidades suposta-mente solidrias como dife-renciais competitivos parasobrevivncia das organiza-es no mercado capitalista,seja presente na venda de ca-pacidades humanas comomercadorias ou no usofantasioso de sentido realiza-dor do trabalho nos proces-sos de motivao dos traba-lhadores, repercute em novosobstculos a uma apreensoda totalidade social.

    Ao promover a fantasiade uma sociedade resultantede caractersticas elegidas daforma que se almeja, a apre-enso da realidade presenteem autores da economia so-

    lidria, no lugar de se estabelecer pela diminuioda distncia inseparvel entre o subjetivo e o objeti-vo, produz uma suspenso fictcia dessa distncia.Desconsidera-se o fato de que o conhecimento no a superao da distncia entre o subjetivo e o obje-tivo, mas justamente sua mais plena reproduo: ape-

    Analisamos algumas teses daeconomia solidria buscando

    demonstrar, a partir de umconfronto destas com as deter-minaes advindas da realida-

    de atual, sua qualidademistificadora em dois momen-

    tos centrais: no trato do capitalcomo uma entidade individual e

    no sentido singular atribudoao trabalho.

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    nas tendo por mediao essa distncia pode o co-nhecimento se realizar enquanto movimento de cons-tante aproximao da conscincia ao ser (LESSA,2002, p. 98).

    Desta forma, o singular deixa de ser um meio decompreenso das determinaes da totalidade socialpara ser a fonte exclusiva dessa anlise mistificadora,como se, nada fosse preciso alm de si mesmo; neleestariam localizados a causa e a soluo dos proble-mas sociais. Esse fato agravado em momentos dedecadncia ideolgica nos quais ocorre em maiorquantidade e potncia a supervalorizao do singu-lar, de modo que isso se torna uma obsesso ou umfetiche: teoria e prxis da decadncia sublinhamsempre a singularidade, que se torna um fetiche comounicidade, irrepetibilidade, indissolubilidade etc(LUKCS, 1978, p. 165)15.

    Tal como acontece com autores que advogam aeconomia solidria, a mistificao presente em an-lises restritas a aspectos singulares da realidade pro-porciona um reflexo falso das possibilidades concre-tas de superao do sistema capitalista, elegendocomo regra aquilo que , na verdade, exceo. Ocor-re, dentro desse processo, uma supervalorizao dosingular a tal ponto deste tornar-se ilusoriamente in-dependente do contexto social que lhe fornece senti-do. Como uma proposta que tencione superar a or-dem do capital e abolir as causas que a mantm nopode prescindir de uma apreenso correta das deter-minaes da totalidade social, a perspectiva apresen-tada na economia solidria se mostra, portanto, nocom uma funo social revolucionria, mas repre-senta um retrocesso ideolgico.

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    Notas

    1 O uso recorrente deste termo entre aspas justifica-se pelasua elevada carga ideolgica, requerendo uma anlise crticaque o desmistifique.

    2 Faz-se preciso explicitar que a separao entre esses doismomentos tem a funo exclusiva de facilitar a compreensodesse texto, ou seja, trata-se de um recurso didtico. Dentroda totalidade social, no existe uma separao temporal entreeles, uma vez esto conectados dialeticamente.

    3 Ressaltamos que nessa passagem o autor usa os termosmercado e mercado de trabalho com o mesmo sentido. Afalta de preciso e rigor nos termos utilizados um problemarecorrente em suas anlises sobre economia solidria: preciso alertar para o fato de que os escritos de Singer sobrea economia solidria possuem caractersticas que tornamdifcil a crtica. Por um lado, o autor no se esfora em precisaros fundamentos tericos das suas teses e propostas e dosconceitos que utiliza. O autor faz uso de conceitos marxistassem se ater ao seu sentido original e sem chamar a atenodo leitor para o sentido alterado que lhes d. Por outro lado,Singer muda de opinio sobre pontos especficos do tema,de um escrito a outro, sem aparentemente preocupar-se emevitar afirmaes contraditrias e, quando incorre nelas, noadverte para a mudana de opinio nem explica os seusmotivos (GERMER, 2006 p. 196).

    4 Essa posio fica ainda mais clara nas palavras do ganhadordo prmio Nobel da Paz: Nos Estados Unidos descobri quea economia de mercado liberava o indivduo e lhe permitia

    fazer escolhas pessoais. O nico inconveniente que elafavorece os poderosos. Mas eu achava que os pobresdeveriam tirar proveito do sistema para melhorar a sua sorte(YUNUS; JOLIS, 2006, p. 261). Ou seja, lastima-se que onico inconveniente seja o favorecimento dos poderosos.

    5 Mesmo numa sociedade estruturada pela economiasolidria, a desigualdade seria uma realidade insupervel:Se toda economia fosse solidria, a sociedade seria muitomenos desigual. Mas, mesmo que as cooperativascooperassem entre si, inevitavelmente algumas iriam melhore outras pior, em funo do acaso e das diferenas dehabilidades e inclinao das pessoas que as compem.Haveria, portanto, empresas ganhadoras e perdedoras. Suasvantagens e desvantagens teriam de ser periodicamenteigualadas para no se tornarem cumulativas, o que exige umpoder estatal que redistribua dinheiro dos ganhadores aosperdedores, usando para isso impostos e subsdios e/oucrdito (SINGER, 2002, p. 10).

    6 Omitem, portanto que, os capitalistas no partilham o mundolevados por uma particular perversidade, mas porque o graude concentrao a que se chegou os obriga a seguir essecaminho para obterem lucros; e repartem-no segundo ocapital, segundo a fora; qualquer outro processo departilha impossvel no sistema da produo mercantil e nocapitalismo (LNIN, 1986, p. 631).

    7 Essa discusso tem no seu bojo distintas anlises superficiaisda realidade capitalista. Dentre estas, poder-se-ia destacar aideologia presente na categoria alternativo, conformedemonstra criticamente Iamamoto (2004), ou nas ficesdisseminadas pelos representantes do trabalho imaterial,segundo explicita Lessa (2004).

    8 Afirmao que no passa de mistificao ideolgica comodemonstram: Tavares (2004); Montao (2005, 1999); Lima(1998, 2003); Germer (2006).

    9 Trata-se do perodo histrico em que ao capitalismoconcorrencial sucede o capitalismo dos monoplios,articulando o fenmeno global que, especialmente a partirdos estudos lenineanos, torna-se conhecido como o estgioimperialista (PAULO NETTO, 2005, p.19).

    10 Diferentemente dessa postura mistificadora, uma importantediscusso concreta sobre a relao entre autonomia dasorganizaes produtivas e a planificao do mercado na fasede transio ao comunismo, pode ser encontrada em: Guevara,Mandel e Bettelheim (2005).

    11 Sobre as distines entre as categorias singular, particular euniversal no pensamento marxista, ver: Lukcs (1978).

    12 Retoma-se, assim, a velha mxima apontada por Marx contraProudhon: a necessidade de apelar para os coraes e bolsosdos burgueses (MARX, 2001).

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    13 Um exemplo atual dessa dinmica so os diversos selos decertificao ISO (International Organization forStandardization).

    14 Um importante texto que se prope a desmistificar a relaocomplementar entre economia solidria e classe trabalhadora o de Germer (2006).

    15 A conscincia reificada deve permanecer prisioneira, namesma medida e igualmente sem esperana, nos extremosdo empirismo grosseiro e do utopismo abstrato. Desse modo,ou a conscincia se torna um espectador inteiramente passivodo movimento das coisas conforme a lei, no qual no podeintervir sob nenhuma circunstncia, ou se considera comoum poder capaz de dominar ao seu bel-prazer subjetivamente o movimento das coisas, em si destitudo de sentido(LUKCS, 2003, p. 185).

    Henrique Andr Ramos WellenDoutorando em Servio Social na Escola deServio Social na Universidade Federal do Rio deJaneiro (UFRJ)Orientador: Carlos Eduardo Montao Barreto

    UFRJEscola de Servio SocialAvenida Pasteur, 250 - FundosPrdio da ESSUrcaRio de Janeiro Rio de JaneiroCEP: 22290-902

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