Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

268
AUREA SATOMI FUZIWARA CONTRIBUIÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL PARA A JUSTIÇA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: O LAUDO SOCIAL E A APLICAÇÃO DA LEI - ENCONTROS E DESENCONTROS Mestrado em Serviço Social PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA –PUC/SP SÃO PAULO – 2006

Transcript of Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

Page 1: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

AUREA SATOMI FUZIWARA

CONTRIBUIÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL PARA A

JUSTIÇA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: O

LAUDO SOCIAL E A APLICAÇÃO DA LEI -

ENCONTROS E DESENCONTROS

Mestrado em Serviço Social

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA –PUC/SP

SÃO PAULO – 2006

Page 2: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

AUREA SATOMI FUZIWARA

CONTRIBUIÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL PARA A

JUSTIÇA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: O

LAUDO SOCIAL E A APLICAÇÃO DA LEI - ENCONTROS

E DESENCONTROS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção de título de Mestre em Serviço Social sob a orientação da Profª Drª Myrian Veras Baptista.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA –PUC/SP

SÃO PAULO - 2006

Page 3: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

“A criança é o princípio sem fim, o fim da criança é o princípio do fim.

Quando uma sociedade deixa matar as crianças

é porque começou seu suicídio como sociedade.

Quando não as ama é porque

deixou de se reconhecer como humanidade.

Afinal, a criança é o que fui em mim e em meus filhos,

enquanto eu e humanidade.

Ela como princípio é promessa de tudo.

É minha obra livre de mim.

Se não vejo na criança uma criança,

é porque alguém a violentou antes

e o que vejo é o que sobrou de tudo o que lhe foi tirado.

Mas essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida;

essa que vive a solidão das noites sem gente por perto,

é um grito, é um espanto. (...)

Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro,

porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós.”

Herbert de Souza (Betinho)

Page 4: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

AGRADECIMENTOS

Para chegar a estas páginas recebi muitas e diferentes contribuições.

Agradeço primeiramente aos meus pais, por expressarem o valor da eqüidade e da

liberdade. Ao meu irmão e minha irmã, meus amigos.

A militância me trouxe grandes amigos, inspiradores e onde tenho pouso seguro, em

quaisquer circunstâncias. Agradeço aos amigos de sempre: Kátia Cilene Barbosa, Mauricio

T. Bispo de Menezes, Andréia Mösken, Joel do Nascimento, Sandro Pereira, Maria Rita

Rodrigues. Pelos grandes debates e pelas simples coisas boas da vida: Mauricléia,

Giva(nildo), Edson Cabral, (Auxilia)Dora, Tânia, Andréia Torres, Renato de Paula, Roseli de

Albuquerque, Marlene Merisse, Renata M. de Souza, Célia de Souza, Julina Alves e Sr

Orlando Boico. Amiga Maria Suzete Caselatto, por nossas conversas, por me ajudar a rever

idéias e tê-las com mais clareza, como fez ao revisar este trabalho.

Francisca Rodrigues de Oliveira Pini e João Clemente de Souza Neto, amigos que

encontrei em caminhos diferentes, mas com um horizonte em comum, meu agradecimento

especial por terem me incentivado para que eu voltasse à academia. Defensores de novas

praticas pedagógicas, me ensinaram muito com sua generosidade e crítica corajosa. À

Terezinha Rodrigues, que trilhando o debate sobre a ética profissional, me incentivou a

perseguí-lo também no espaço acadêmico.

Agradecimento especial a Eunice Teresinha Fávero e Maria Liduína de Oliveira

Silva, pela importância de suas contribuições na banca de qualificação e em outros espaços.

Também um agradecimento ao Dr Edson Sêda, que, como elas, contribuiu decisivamente

para o delineamento da pesquisa.

Ao Edu, pela serenidade e companheirismo, pelo bom humor, e por tudo que

significa a nossa trajetória.

Page 5: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

Aos companheiros – diretores, base e funcionários - da gestão do CRESS SP/ 2002-

2005, o agradecimento pela confiança em tantos momentos difíceis, pelas reuniões

madrugadas a dentro, tensões e conquistas que pudemos compartilhar

Aos companheiros persistentes do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da

Criança e do Adolescente. Às colegas de trabalho que sabem muito do que trago nas linhas

destas reflexões.Aos docentes e discentes da Faculdade Mauá, por terem contribuído com

meu crescimento pessoal e profissional. Ao Grupo AmpliAçõeSS, que já faz parte da história

do Serviço Social em São Paulo, por tudo que vivemos juntos.

Agradeço a todos os professores da PUC-SP, particularmente àqueles com os quais

pude realizar as atividades acadêmicas, pela atenção e a seriedade dispensadas em todas

as ocasiões. No ensejo, ressalto a necessidade de investimento na pesquisa, registrando

meus agradecimentos à CAPES pela bolsa financiada. À Carmem e à Kátia, pela atenção e

preocupação em momentos importantes.

A todos aqueles que direta e indiretamente contribuíram para esta pesquisa.

Muitas reflexões somente foram possíveis por ter vivenciado importantes situações,

no “miúdo do cotidiano”, onde os usuários expressam sincera – ou desesperada - confiança

no trabalho que podemos realizar. Agradeço aqui as(os) usuárias(os), que massacrada por

inúmeras expressões da violência, é a denúncia da necessidade de construir outro mundo.

Em especial, agradeço a Dra Myrian Veras Baptista, pela riqueza, generosidade,

rigor científico e coerência ético-política das suas orientações. Certamente, estes momentos

têm um valor ímpar, que penso ser compreensível apenas para quem tem a oportunidade de

vivenciá-los. Myrian nos mostra que o conhecimento só faz sentido quando compartilhado e

quando direcionado para a superação da barbárie.

Page 6: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Myrian Veras Baptista

Profª Drª Eunice Teresinha Fávero

Profª Drª Maria Lúcia Martinelli

Page 7: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

INTRODUÇÃO.................................................................................................... 01 Capitulo I Serviço Social e Justiça ................................................................................... 09 1. Histórico do Serviço Social no Judiciário ........................................................ 09 1.1. O Serviço Social e os espaços sócio-ocupacionais: o campo sócio-jurídico. 34 1.2.Processos de trabalho do assistente social no Judiciário ............................ 49 1.2.1.Dimensão técnico-operativa do Serviço Social .......................................... 54 1.2.1.1. Procedimentos metodológicos: estudo social e perícia social................ 58 1.2.1.2. Formas de REgistro................................................................................ 60 .. CAPÍTULO II Relações Sociais e Justiça .............................................................................. 63 2.Relações sociais e Ciência do Direito................................................................ 63 2.1.Transformações sociais e judiciário................................................................ 73 2.2. Direitos sociais e Justiça............................................................................... 79 2.3.Infância e Adolescência: caso de Polícia ou de política? .............................. 86 2.3.1. Política Social, Justiça e a infância vulnerabilizada: assistir para prevenir................................................................................................................ 88 2.3.2. O bem-estar do menor............................................................................... 92 2.3.3. A Era do ECA............................................................................................. 95 2.3.4. Enfrentar a questão social e pensar as próximas gerações...................... 103 . CAPITULO III Exercício Profissional e construção do conhecimento................................. 111 3.1 Ciência e expressões ideológicas ................................................................ 114 3.1.1.Metodologia e ideologia ............................................................................ 120 3.1.2.Linguagem e ideologia ............................................................................. 126 3.1.3. Reflexões sobre Ética ............................................................................. 145 3.2. Jurisprudência e Serviço Social ................................................................ 150 3.3. Construção da pesquisa .......................................................................... 154

sobre a instituição ..................................................................................... 155 sobre os atores envolvidos no judiciário ................................................... 158 sobre os termos do campo sócio-jurídico, utilizados na pesquisa ............ 159 3.3.1 Aproximações ao objeto ..................................................................... 163 3.3.2. Casos selecionados ........................................................................... 178 Caso A .............................................................................................. 183 Caso B ............................................................................................... 191 Caso C ............................................................................................... 205

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 223 Bibliografia ......................................................................................................... 252

Page 8: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

SIGLAS AASPTJSP – Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social CAPES – Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CFESS – Conselho Federal de Serviço Social CRESS SP – Conselho Regional de Serviço Social – 9ª Região –SP ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social LDB- Lei de Diretrizes e Bases da Educação SUS – Sistema Único de Saúde FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo MP – Ministério Público UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

Page 9: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

RESUMO

A partir do conhecimento acumulado sobre a atuação do assistente social

junto ao Poder Judiciário, a pesquisa buscou levantar a contribuição deste

profissional nos casos relacionados ao direito da criança e do adolescente. Frente às

expressões da questão social contemporânea, também refletiu sobre o papel da

ciência na contemporaneidade, abordando as expressões ideológicas e suas

implicações nas metodologias adotadas. As reflexões sobre instrumentalidade,

teleologia e ética profissional foram inerentes ao percurso da pesquisa. Há,

inclusive, um horizonte ideopolítico que orienta este pesquisar. Esse conjunto de

elementos se mostra nas linhas de sustentam esta análise.

Para a pesquisa de campo, elegeram-se casos jurisprudenciais, em que se

expressam conflitos conformados num processo judicial. Do conjunto de casos

julgados em dez anos (1991 a 2001) extraiu-se uma amostra intencional, com casos

significativos. Numa reavaliação, oito casos foram estudados integralmente e três

casos apresentados em detalhes, por sua complexidade e sua relevância para o

estudo.

Afirma-se que os operadores do Direito reconhecem a importância do trabalho

do assistente social para subsidiar sua atuação, e a pesquisa, então, levantou os

elementos que foram utilizados com esse fim. Pautado num olhar crítico-propositivo,

identificou algumas fragilidades. Assim, o estudo evidencia algumas pistas para um

exercício profissional que contribua não apenas para a aplicação das leis, mas,

principalmente, para que as decisões sejam as mais benéficas para a efetivação de

direitos e da justiça social.

PALAVRAS CHAVES: Serviço Social, Judiciário, instrumentalidade, projeto

ético-político-profissional, ECA.

Page 10: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

ABSTRACT

From the gathered information concerning the social worker performance

related to the Judicial Power, the goal of this research is to bring up the joint action of

this professional in cases related to child and adolescent rights. Viewing the

expressions of contemporary social issues, there is also a reflection on the science

role now, approaching ideological expressions and its implications in the adopted

methodologies. The reflections on instrumentality, teleology and professional ethics

were inherent to the research sequence. In addition, this research is guided by an

ideopolitical horizon. This set of elements appears in the lines, which support this

analysis.

In relation to the field research, jurisprudential cases were elected, in which

conformed conflicts are expressed in a civil action. Among the cases judged in ten

years (1991 to 2001), an intentional sample with significant cases was extracted.

Eight cases were wholly studied and three cases presented in detail due to their

complexity and for the study relevance.

It is affirmed that law professionals acknowledge the importance of the social worker

performance because it supplies them with data to support their performance, so the

research brought up the elements used in this way. Also, oriented through a critical-

propositive prospective, it identified some fragilities. Therefore, the study makes

evident some clues for a professional exercise that contributes for not only law

enforcement, but also mainly for decisions which are the most beneficial in order to

bring into effect social justice and rights.

KEY WORDS: Social Work, Judiciary, instrumentality, ethical-political-professional

project, ECA – Childhood and Adolescence Statute.

Page 11: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

AUREA SATOMI FUZIWARA

CONTRIBUIÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL PARA A

JUSTIÇA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE: O

LAUDO SOCIAL E A APLICAÇÃO DA LEI - ENCONTROS

E DESENCONTROS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção de título de Mestre em Serviço Social sob a orientação da Profª Drª Myrian Veras Baptista.

Mestrado em Serviço Social

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA –PUC/SP

SÃO PAULO – 2006

Page 12: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

1

INTRODUÇÃO

A atuação dos assistentes sociais nas Varas da Infância e Juventude iniciou-

se em 1948, portanto, há mais de meio século. Assim, atualmente são, conforme

dados do Departamento de Pessoal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

em 2004, 699 assistentes sociais e 313 psicólogos, distribuídos em Foros da capital

e do interior do Estado de São Paulo, atendendo a população especialmente nas

Varas da Infância e Juventude, além das Varas Cíveis e eventualmente em ações

decorrentes de processo-crime envolvendo crianças e adolescentes vitimizados. Os

profissionais do Serviço Social e da Psicologia realizam perícias para subsidiar as

decisões judiciais e fundamentam seus pareceres nas várias áreas das ciências e

nas Leis. Diante da diversidade das situações atendidas, do volume do trabalho e

das divergências teóricas, há pareceres também diversos e por vezes contraditórios

no seu conjunto.

Os múltiplos olhares técnicos e, conseqüentemente, os laudos emitidos,

considerando que estes subsidiam as decisões que muitas vezes alteram a vida das

pessoas atendidas na esfera do judiciário, trazem questões relevantes: o que

desvelam os laudos técnicos do assistente social sobre as expressões da questão

social? Que direção social o profissional imprime ao seu fazer profissional? Quais

são os procedimentos e os elementos apresentados para subsidiar um julgamento?

E quais suas influências na aplicação das Leis? Há influência na jurisprudência?

Page 13: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

2

As reflexões consideram ainda as recentes conquistas legais, como a

Constituição Federal de 1988, com o princípio da participação social e o Estatuto da

Criança e do Adolescente – ECA, que traz o paradigma da proteção integral. Face a

este novo texto legal, fundamentado em novas concepções, e à exigência das

mudanças sociopolíticas, torna-se essencial o reordenamento das diversas

instituições e das suas práticas e, assim, também, do Poder Judiciário.

A literatura científica tem buscado compreender vários fenômenos

relacionados à violência, à criminalidade, aos Direitos Humanos e à Justiça.

Especificamente, o Serviço Social vem pesquisando vários aspectos da intervenção

profissional, procurando suas implicações ético-políticas e metodológicas. Nesta

temática, há muitos estudos sobre a efetivação do Estatuto da Criança e do

Adolescente e da implantação das políticas de atendimento, com muita atenção às

políticas sociais e às medidas de internação e abrigamento da população infanto-

juvenil. Esta reflexão sobre a defesa das políticas públicas parece consensual na

categoria, bem como de outras profissões e pesquisadores. Embora o Estatuto da

Criança e do Adolescente, que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal

de 1988, trate dos deveres da família, da sociedade e do Estado, a exigência do

cumprimento destes parece recair muito mais sobre a família. Assim, é fundamental

refletir os fatores que influenciam a pertinácia dessa tendência que confronta com os

princípios dos marcos legais mencionados.

Abordar os deveres dos pais/responsáveis em relação às crianças e

adolescentes, é tratar sobretudo de um cenário de desigualdade social e de

ausência de políticas garantistas que consolidem um viver com dignidade. Contudo,

Page 14: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

3

o judiciário ainda parece majoritariamente tratar estas demandas como questões

estritamente de âmbito privado.

O assistente social, na perspectiva teórico-metodológica que adotamos, é um

trabalhador que na sua trajetória pessoal e profissional reelabora sua leitura da

realidade, apreendendo no seu trabalho os valores, os comportamentos, as visões

de mundo, ou seja, está, como todos, implicado em uma realidade histórico-social

criada pelos homens na sua relação com o mundo, entre si e consigo mesmo. Por

este caminho analítico, buscamos refletir sobre os pareceres do assistente social,

como seu conteúdo é reinterpretado por outros profissionais atuantes no judiciário e

que elementos fundamentaram possíveis jurisprudências decorrentes do trabalho

desse profissional.

Os documentos elaborados pelos assistentes sociais, que devem ser

efetivados num processo de relação democrática e participativa com os usuários dos

serviços prestados, são um dos produtos do seu trabalho especializado, não se

encerrando em si mesmo, mas possibilitando um acúmulo que pode resgatar

trajetórias das pessoas, das comunidades, das instituições, todas elas implicadas e

parte da produção e reprodução social. Demonstram, ainda, o pertencimento dessa

população a nossa sociedade pela exclusão: um lugar determinado pela ordem

sócio-econômica, política e cultural vigente. Se esses “produtos” do trabalho do

assistente social registram e interpretam a vida e suas contradições, também

demonstram a importância da linguagem como instrumento para a afirmação de um

projeto societário que possibilite a autonomia, a emancipação e a plena expansão

dos indivíduos sociais, bem como a democracia enquanto a socialização da

Page 15: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

4

participação política e da riqueza socialmente produzida, sendo esses princípios

afirmados no Código de Ética Profissional do Assistente Social.

Há motivação nesta pesquisa em analisar como o conteúdo do laudo social,

produto do trabalho especializado, pode contribuir para a efetivação da justiça social,

ao desvelar aspectos objetivos e subjetivos do que se apresenta como litígio num

processo judicial e seus determinantes sociais, culturais, políticos e econômicos. A

leitura técnica não está isenta de um viés ideológico que, no conjunto das ações

profissionais, afirma representações sociais nos espaços sócio-ocupacionais. Tem-

se afirmado que os Juízes reconhecem a importância do trabalho do assistente

social no Judiciário, e buscou-se verificar, então, quais elementos apresentados no

trabalho deste profissional que proporcionam um laudo técnico revelador de fatos

que provoquem uma nova interpretação da situação em julgamento. Assim, a análise

buscou compreender quais elementos sobressaem na decisão que deve ser

aplicada considerando sempre “o mais benéfico para a criança/adolescente”, como

determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Tais elementos são necessários para a análise do impacto da intervenção do

assistente social junto ao trabalho do magistrado, do promotor de justiça e do

advogado, que culminem em jurisprudências pós ECA.

Para o exercício profissional com qualidade está implicada a capacidade do

assistente social de reelaborar a leitura de realidade, apresentando elementos a

partir de uma abordagem teórico-metodológica, com orientações ético-políticas. Há

um desafio de provocar a apropriação do conteúdo deste trabalho por parte dos

Page 16: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

5

operadores do direito para a sua intervenção. Considerando que há sempre um filtro

ideológico na comunicação, nem sempre o que é relevante para um profissional

pode sê-lo para outro. Nessa dinâmica, ocorrem encontros e desencontros,

revelando-se valores e representações sociais que orientam as práticas dos atores

em questão.

A intenção foi a de buscar elementos para o aprimoramento do trabalho

profissional pautado no projeto ético-político-profissional hegemônico do Serviço

Social e na perspectiva de outro horizonte societário.

Nesse sentido, no Capítulo I “Serviço Social e Justiça” recorreu-se

especialmente a duas autoras, Colman e Fávero, que também tiveram atuação no

Judiciário Paulista, para resgatar o histórico do Serviço Social nesse espaço sócio-

ocupacional, problematizando os projetos profissionais e sua teleologia. O enfoque

foi o de compreender a inserção do assistente social no Judiciário, bem como os

seus processos de trabalho. Nesse contexto, foram abordadas também a

instrumentalidade e a dimensão técnico-operativa do Serviço Social.

Para este estudo também precisou-se recorrer a teóricos que estudam a

Justiça e a necessidade de novas interpretações das legislações, considerando a

dinâmica da sociedade, bem como a construção histórica de seus valores e normas.

Nesse sentido, no Capítulo II serão abordadas as relações sociais e a justiça,

quando são tratadas as dinâmicas das transformações sociais e a inter-relação

destas com as instituições. Considerando que a questão da criança e do

adolescente permeia toda a pesquisa, buscaram-se pesquisas historiográficas para

Page 17: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

6

compreender o trato em relação à criança e ao adolescente, bem como as políticas

públicas.

No decorrer da pesquisa identificou-se a necessidade de aprofundar as

reflexões teóricas sobre a ideologia, vez que a ciência, sendo construção humana e,

portanto, histórica, tem, impregnadas, diferentes expressões ideológicas. Com essa

preocupação foram abordadas as relações entre ciência, ideologia, metodologias e

linguagem. Como um elo para dar sentido a este conjunto, foram elaboradas

reflexões sobre a ética. Essas reflexões estão contidas no Capítulo III intitulado

“Exercício profissional e produção de conhecimento.

Nessa parte da pesquisa se explicita o caminho percorrido, ou a “Construção

da Pesquisa”, realizada em torno de casos que são considerados jurisprudenciais,

ou seja, que são referências para os operadores do direito. Contudo, a abordagem

não se interessou pela aplicação da lógica jurídica, mas em levantar quais

elementos apresentados pelo assistente social judiciário, por meio do laudo social,

subsidiaram ou não as decisões tomadas em cada caso. Contudo, os procedimentos

estabelecidos a priori foram sendo alterados com base nos estudos teóricos, nas

discussões e no processo de levantamento de dados. Este foi composto pelas

ementas publicadas no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em

publicações científicas especializadas e nos autos analisados. Assim, chegou-se a

uma amostra intencional, colhida em documentação de fonte primária constituída por

autos judiciais.

Page 18: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

7

Para a apreciação dos autos, foram analisados oito autos judiciais, somando

2.076 folhas (ou 4.152 páginas, se assim consideradas). A princípio, os

procedimentos metodológicos previam estudar os documentos elaborados pelo

assistente social, individualmente ou em parceria com o profissional de psicologia, e

os documentos gerados pelo processo, nos quais fossem mencionados os

elementos apresentados pelo profissional do Serviço Social. Contudo, o pesquisar

demonstrou a necessidade de se ater integralmente a todas as folhas dos autos,

pois todos os atos processuais interferem no andamento e na conclusão dos autos.

Verificando as informações, às vezes insuficientes até para a tomada de algumas

decisões, os casos foram analisados com base nos elementos lá existentes.

Eventualmente, são colocadas algumas indagações que não foram respondidas ou

que foram suscitadas pelo conteúdo dos autos. O olhar, contudo, foi o de pensar os

casos como expressões de parte da totalidade, manejadas no interior do poder

judiciário.

Este trabalho é também a oportunidade de reflexão e de análise, sistemática

e acadêmica, sobre a instrumentalidade e a teleologia da profissão, face às

demandas, aos desafios e às possibilidades existentes na dinâmica social da

atualidade.

Por ser parte constituinte desta realidade saturada de contradições, o Serviço

Social também vivencia divergências no confronto das tendências ético-políticas e

profissionais dentro da própria categoria. Portanto, neste estudo há um fio condutor

que busca refletir sobre os caminhos adotados, os quais afirmam, de forma

Page 19: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

8

consciente ou não, um projeto político-profissional, entendendo, inclusive, a

categoria dos assistentes sociais enquanto potencial sujeito político que está na

arena da disputa de projetos societários.

Page 20: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

9

CAPÍTULO I

SERVIÇO SOCIAL E JUSTIÇA

1. Histórico do Serviço Social no Judiciário

Para refletir sobre a atuação do assistente social no judiciário é

importante compreender como se iniciou esta inserção e sua modificação no

decorrer das décadas, impulsionada pelas conjunturas e pelas demandas sócio-

políticas e institucionais.

Para tanto, faz-se necessário considerar a historicidade da profissão,

indissociável que é do desenvolvimento da sociedade. Nesta perspectiva, adotamos

Page 21: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

10

a concepção da profissão como uma especialização do trabalho coletivo, construída

e inserida numa realidade sócio-histórica.

Para autores da tradição marxista, o Serviço Social vem se consolidando

enquanto profissão fundada e inserida numa realidade contraditória, cuja estrutura

mantém e alimenta a luta de classes. Utilizamos aqui as referências marxistas

expressas por Iamamoto (2003, p. 57), que considera “a questão social como base

de fundação sócio-histórica do Serviço Social” e “a ‘prática profissional’ como

trabalho, e o exercício profissional inscrito em um processo de trabalho”.

Conforme Netto (1999), os projetos profissionais também expressam as

tensões sociais, sendo estruturas dinâmicas que respondem às alterações das

demandas sociais sobre e com as quais atua. Apresentam a auto-imagem de uma

profissão, elegem valores que a legitimam socialmente (expressos num código de

ética), delimitam e priorizam seus objetivos e funções (com leis/normas legais que a

regulamentem), formulam requisitos para seu exercício (aspectos teórico-

metodológicos) e prescrevem normas que balizam suas relações com usuários,

entre si e com outras categorias profissionais, bem como com as instituições

públicas e privadas.

Os projetos profissionais são necessariamente coletivos, expressando

respostas às requisições da dinâmica social. É esse processo de construção de

respostas que, ao se legitimar por meio das instituições e da ação profissional dos

sujeitos, consolidam espaços das diferentes profissões na sociedade.

Page 22: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

11

Essa dinâmica social vem exigir que profissionais desenvolvam,

portanto, conhecimentos teóricos e práticos. E esses profissionais formam um

sujeito coletivo heterogêneo, com indivíduos que têm diferentes opções

teóricas, ideológicas e políticas.

No Serviço Social não é diferente: a pressão exercida pela sociedade, devido

às suas expectativas em relação aos produtos produzidos pelos profissionais,

também influencia o processo de trabalho destes. O sujeito coletivo é composto por

uma heterogeneidade de indivíduos e grupos e, assim, pode gerar projetos

profissionais diferentes, os quais são parte da expressão de determinadas

perspectivas societárias.

Assim como em outras situações, as Leis vigentes na sociedade e as

normativas da profissão não são suficientes para orientá-la. No exercício

profissional são confrontadas escolhas teóricas, ideológicas e políticas, que

expressam projetos de sociedade e, portanto, com posicionamentos ético-políticos.

Nessa perspectiva, “uma indicação ética só adquire efetividade histórico-concreta

quando se combina com uma direção político-profissional” (Netto, 1998, p. 99). Este

é um grande desafio no cotidiano dos trabalhadores da área social.

Para resgatar o histórico do Serviço Social no Judiciário Paulista a produção

de Fávero (1999)1 e Colman (2004)2 foram fundamentais, pois as autoras articulam

em suas análises as determinações sócio-institucionais que influenciaram o

exercício neste espaço sócio-ocupacional.

1 Eunice FÁVERO. Serviço Social, práticas judiciárias, poder.São Paulo, Veras, 1999. 2 Silvia Alapanian COLMAN, A formação do Serviço Social no Poder Judiciário, 2004.

Page 23: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

12

Segundo suas pesquisas, em 1935 foi criado o Departamento de Assistência

Social do Estado de São Paulo, ao qual competia:

[...] a estruturação dos Serviços Sociais de Menores, Desvalidos,

Trabalhadores e Egressos de reformatórios, penitenciárias e hospitais e da

Consultoria Jurídica do Serviço Social (Iamamoto e Carvalho, 1982, p. 178,

apud Colman, 2004, p. 195).

Resgata ainda Colman que:

Desde o início, o Comissariado esteve fortemente ligado ao Departamento de

Assistência Social e, não obstante estar vinculado à estrutura do Juízo de

Menores, passou a ser dirigido e organizado pelo Departamento de

Assistência Social, numa relação que começou a criar alguns problemas com

o mesmo Juízo de Menores, que até então era o único responsável pelas

diretrizes no atendimento aos menores (p.195).

Após muitos tensionamentos decorrentes da disputa pelo controle das ações

junto a essa população, foi publicado em 1938 o Decreto que

reorganizou o Serviço Social de Menores, determinou que os cargos de

subdiretor de vigilância de comisssários de menores e de monitores de

educação passariam a ser privativos de assistentes sociais (Iamamoto e

Carvalho, 1982, p. 195, apud Colman, p. 199).

Page 24: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

13

A introdução de assistentes sociais no exercício dessa função buscava

atenuar o seu caráter3 eminentemente policial, dando-lhe uma conotação

técnico-profissional e protetiva. Porém, o Juízo de Menores da Capital não

partilhava dessa opinião, dando preferência à constituição de um corpo de

comissários ‘de sua confiança’ e sob sua subordinação. (Colman, p. 199)

No levantamento do histórico do Serviço Social no Judiciário verifica-se a

grande importância das Semanas de Estudos do Problema de Menores, no total de

13 semanas. As oito primeiras ocorreram de 1948 a 1957, “[...] protagonizadas pelas

forças políticas que podiam determinar a política de menores, à época” (Colman:

2004, p. 200) e a última ocorreu em 1983.

Segundo Colman, após a II Semana foi criada uma comissão, com o objetivo

de estudar a colocação familiar como alternativa à internação de crianças. Essa

comissão propôs um Projeto de Lei – que foi aprovada em 20 dias, entrando em

vigor a Lei Estadual nº560 em 27 de dezembro de 1949 –, o qual criava o Serviço de

Colocação Familiar, junto aos juízes de menores. Essa Lei colocava que

§ 3º Os componentes do Serviço devem ser pessoas de reputação ilibada e,

sempre que possível, assistentes sociais diplomados por Escola de Serviço

Social ou professores, educadores sanitários, ou orientadores educacionais,

com certificado de curso intensivo de serviço social ou de higiene mental.

[...]

3 A autora refere-se ao caráter do Comissariado.

Page 25: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

14

§5º Na Comarca de São Paulo, o chefe do Serviço, de preferência assistente

social diplomado por Escola de Serviço Social, será designado pelo Juiz de

Menores (idem:212).

Sendo esse Serviço de Colocação, assim, o marco da inserção formal do

Serviço Social no Judiciário, em 1955 contava com nove profissionais, era chefiado

por uma assistente social e contava com mais uma profissional do Serviço Social e

uma estagiária. É importante observar que a conjuntura política das décadas de 50 e

60 foi extremamente conturbada. Porém,

Do ponto de vista da política social e apesar do discurso desenvolvimentista

de Juscelino Kubitschek, a estrutura assistencial voltada aos menores durante

toda a década de 50 e início da década de 60 manteve-se intacta. Em

realidade, a prioridade da política social do governo federal seguiu o mesmo

modelo dos anos anteriores, dando ênfase especial apenas à educação em

razão da necessidade de formação de mão-de-obra para o parque industrial

que se ampliava no país (Colman, p. 224).

Em 1956, as assistentes sociais Idalina Montecarlo César, Zilnay Catão

Borges e Celina Celli foram convidadas para estruturar o Serviço Social nas Varas

de Menores. Nesse ano, juízes de menores realizaram em Porto Alegre o 1º

Encontro Nacional de Juízes de Menores, no qual elaboraram uma proposta para

reformulação do Código de Menores, em vigor desde 1927. Os juízes “enfatizavam a

sua posição de que o Judiciário era o órgão normativo e o Executivo deveria cumprir

as suas determinações” (Colman, p. 226).

Page 26: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

15

Nesse período, avolumavam-se as denúncias contra Comissários e

voluntários, por seu despreparo e falta de qualificação, havendo exigências de parte

da sociedade esclarecida para que o Juizado realizasse uma ação tutelar e não

policial junto aos menores. Nessa conjuntura, e com uma avaliação muito positiva do

corpo de profissionais do Serviço de Colocação Familiar, foi convidado

[...] em 1956, o assistente social José Pinheiro Cortez para retomar a

coordenação do Serviço de Colocação Familiar, desta vez com remuneração,

numa clara tentativa de profissionalizar o quadro dos funcionários do Juizado

de Menores, cercando-se de auxiliares capacitados (Colman, p. 233).

Um sujeito significativo desse processo, José Pinheiro Cortez, assistente

social e advogado, foi um colaborador voluntário por muitos anos, posteriormente

coordenou o Serviço de Colocação Familiar como funcionário e protagonizou muitos

momentos de conquistas para o Serviço Social e a organização da atenção à

criança e ao adolescente no Judiciário. Sua ação técnica e política influenciou

decisivamente a inserção do Serviço Social no Judiciário Paulista. Atribui-se a ele a

autoria da conceituação de que o assistente social que atua no judiciário é também

um perito judicial4, condição que se soma às demais atribuições consolidadas e em

construção pelos profissionais.

Colman levantou em sua pesquisa que em 1964 o Serviço de Colocação

Familiar atendia 47.439 crianças e adolescentes, colocados em 10.065 famílias. A

4 Colman, op. cit. e informações obtidas nas sessões de orientação desta pesquisa

Page 27: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

16

maior parte deles recebia subsídio para permanecerem em suas próprias famílias e

apenas 836 estavam em famílias substitutas. Para a realização desse trabalho,

Colman refere que em 1967 foi realizado um concurso público, do qual, contudo, não

há registros no Departamento Pessoal do Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo.

O Serviço Social foi sendo integrado a vários departamentos e setores. Havia,

por exemplo, o Setor de Bolsas de Estudos, a pedido do Sindicato das Escolas

Particulares de São Paulo, vez que havia uma lei que obrigava essas instituições a

disponibilizarem vagas para crianças e adolescentes carentes. Em interessante

depoimento colhido por Fávero (1994), Zilnay relatou que havia uma compreensão

de que não bastavam as vagas disponíveis, mas que as crianças tivessem recursos

para comprar material escolar, uniforme, a fim de ter uma inserção sem

constrangimentos nas escolas da elite. Outros serviços também foram criados, como

o Recolhimento Provisório de Menores (adolescentes que cometiam delitos), Serviço

de Assistência Judiciária (tanto para defesa dos adolescentes que praticaram

infrações, quanto para os que sofreram violências), Serviço de Fiscalização do

Trabalho de Menores (com assistentes sociais do Juizado e também vinculados ao

SESI) e outras entidades, como casas para abrigamento das crianças e dos

adolescentes.

Em relação ao contexto sócio-político, é importante lembrar o movimento de

Reconceituação do Serviço Social, que marcou as décadas de 60 e 70. Nesse

mesmo período ocorreram, em vários países, questionamentos e mobilizações das

Page 28: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

17

classes subalternas devido à crise no padrão de desenvolvimento capitalista que

vinha tensionando as relações sociais desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Explica Netto :

A segunda metade dos anos 1960 marca, na maioria dos países em que o Serviço

Social já se institucionalizara como profissão, uma conjuntura de profunda erosão

das suas práticas tradicionais (e, compreensivelmente, dos discursos teóricos ou

pseudoteóricos que as legitmavam). No século passado, a transição da década de

1960 para 1970 foi, de fato, assinalada em todos os quadrantes por uma forte crítica

ao que se pode, sumariamente, designar como “Serviço Social tradicional’”: a prática

empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada, orientada por uma ética liberal-

burguesa, que, de um ponto de vista claramente funcionalista, visava enfrentar as

incidências psicossociais da “questão social” sobre indivíduos e grupos, sempre

pressuposta a ordenação capitalista da vida social como um dado factual ineliminável

( 2005, p. 06).

Netto afirma que diante das mobilizações em todo o mundo, bem como de

processos importantes como o impacto da Revolução Cubana, a inserção dos

países latino-americanos na divisão internacional de trabalho e o surgimento de

novos sujeitos políticos impactaram sobre os assistentes sociais, trazendo como

indagação central: “qual a contribuição do Serviço Social na superação do

subdesenvolvimento?” (idem, p. 09).

Page 29: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

18

Nesse contexto houve o que ele nomeou de grande união, que marcou os

primeiros passos do Movimento de Reconceituação, na qual uma frente renovadora

buscava o desenvolvimento econômico e social.

Segundo Netto, identificam-se nessa frente dois grandes segmentos, um que

buscava tornar o Serviço Social compatível com as

demandas macrossocietárias, vinculando-o aos projetos desenvolvimentistas de

planejamento social; outro, constituído por setores mais jovens e radicalizados,

jogava numa inteira ruptura com o passado profissional, de modo a sintonizar a

profissão com os projetos de ultrapassagem das estruturas sociais de exploração e

dominação [...]

Em pouco tempo, já por volta de 1971-72, a grande união se fratura,

dividindo-se os seus protagonistas em dois grandes blocos: os reformistas-

democratas (rigorosamente desenvolvimentistas) e os radicais-democratas (para os

quais o desenvolvimento supunha a superação da exploração-dominação nativa e

imperialista). Mas esta decisiva diferenciação não pôde se desenvolver (op. cit.

2005, p.10), pois, nesse período, primeiramente no Brasil e, após, em todo o Cone

Sul, “as ditaduras patrocinadas pelos Estados Unidos e a serviço das oligarquias

derrotaram todas as alternativas democráticas, reformistas e revolucionárias (2005,

p.10).

Page 30: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

19

Netto demonstrou que em meados de 1970 esse processo fundamental de

renovação da profissão, visando romper com o tradicionalismo que não impactava

em mudanças sociais, foi calado, assim como o pensamento crítico na América

Latina, devido à repressão dos regimes ditatoriais.

Em relação ao Judiciário, é possível identificar nos anais das Semanas de

Estudos do Problema de Menores realizadas em 1969, 70, 71 e 73 o discurso que

enfatiza o alinhamento do Judiciário Paulista com a política do governo militar. Havia

um longo caminho percorrido por diferentes atores em busca do atendimento às

crianças e aos adolescentes. Porém, inserida no contexto político, verificou-se a

tendência assumida na instituição:

[...] Sob o comando do Desembargador Marrey, filho do eminente

jurista Dr. Marrey Jr., as Semanas foram retomadas, mas agora com

outro objetivo: o de desmontar a estrutura do Juizado de Menores.

[...]

Reproduzindo o discurso ufanista do regime militar e da FUNABEM, o

Dr. Marrrey ignorou, nos seus pronunciamentos, os debates que

vinham sendo travados entre os juízes de menores do próprio Estado

de São Paulo com outros juízes de posicionamentos opostos, além de

pouco citar os serviços construídos pelo Juizado da Capital (Colman, p.

291).

Page 31: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

20

Nesse contexto, foi criada a Fundação Paulista de Promoção Social do Menor

– Pró-Menor – em dezembro de 1973, que teve vida curta, vindo a ser transformada

na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM-SP, em abril de 1976.

Com essas mudanças, o Juizado de Menores da Capital permaneceu com o

Serviço de Gabinete, Serviço de Plantão Permanente, Serviço de Administração do

Comissariado, Serviço de Colocação Familiar, Serviço de Menores Desaparecidos,

Serviço de Autorização e Fiscalização do Trabalho do Menor, Serviço de Relações

Públicas e Seção Anexa à Curadoria.

A existência de ações explicitamente do Executivo no Judiciário trazem

algumas indagações. Buscando compreender esse fato, as portarias, resoluções etc.

do Judiciário, levantados por Colman, exigem que se avance na reflexão sobre o

Serviço Social neste espaço articulado aos debates da renovação da profissão.

Considerando a argumentação de Colman de que os assistentes sociais

tiveram papel fundamental na organização do judiciário frente às demandas sociais

afetas à criança e ao adolescente, é preciso avançar na compreensão das marcas

deixadas por esta profissão na instituição.

Os estudos sobre o Movimento de Reconceituação e a renovação da

profissão, sob a perspectiva da tendência de ruptura com o conservadorismo, trazem

elementos que permitem afirmar que no Judiciário paulista, na década de 70, houve

tentativas nesse sentido, por parte dos profissionais inseridos naquele processo.

Page 32: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

21

Esta inserção evidencia que houve uma direção técnica de cunho

desenvolvimentista. A preocupação com os instrumentos e métodos de intervenção,

mas sobretudo com o planejamento e a execução do atendimento direto aos

menores é visível em alguns documentos do Judiciário.

Refletindo sobre as pesquisas relacionadas à história do Serviço Social e

dialogando com a sua inserção no Judiciário Paulista é possível afirmar que a

profissão incorporou a tendência dos “vetores desenvolvimentistas”. Assim como

outras instituições, o Judiciário sofreu a reestruturação impulsionada pela orientação

ideopolítica do período ditatorial, e o Serviço Social, em sua inserção nessa

instituição, foi fortemente influenciado por essa tendência, não sem resistências,

mas é possível identificá-la como dominante na sua organização e

instrumentalidade, principalmente nas décadas de 70 e de 80.

Além disso, pretendia-se ter maior definição sobre o papel do

assistente social, buscando sua qualificação como perito judicial.5 Nesse sentido, é

importante observar que, a partir da inserção do Serviço Social no Judiciário, alguns

juízes de Varas de Família também requisitavam estudos sociais de caso e, por volta

de 1978,

[...] se discutiu a formalização e ampliação deste trabalho.

Num movimento paralelo ao que ocorria no Juizado de Menores, José

Pinheiro Cortez – que era assistente social e advogado e havia saído da

coordenação do Serviço de Colocação Familiar –, contando com o apoio de

5 Este tema será melhor aprofundado quando da abordagem dos processos de trabalho no Judiciário.

Page 33: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

22

alguns juízes das Varas de Família, construiu uma justificativa para propor a

contratação de assistentes sociais para as Varas de Família (Colman, p. 309).

Essa justificativa

[...] passou a constar como anexo do Provimento nº.136, de 15 de abril de

1980, do Conselho Superior da Magistratura que fundamentava e

normatizava a atuação desses profissionais (idem, p.309).

Segundo os depoimentos colhidos por Colman, com essa mobilização foi

realizado, em 1979, concurso público para o provimento de 22 cargos de assistente

social para as dez Varas de Família e Sucessões do centro e mais 12 para as Varas

Distritais. Havia uma característica marcante nessa atuação, que era mais voltada

para a ação judicante e menos para a área assistencial. Nesse período havia 80

assistentes sociais na Vara de Menores.

Porém, como mencionado anteriormente, havia o propósito de desmontar a

estrutura assistencial do Juizado de Menores, agora sob a luz do Código de

Menores, publicado em 10 de outubro de 1979. O novo Juiz Titular da Capital, que

assumiu em 1980, Dr. Antonio Luís Chaves de Camargo, concluiu o processo de

descentralização da justiça na cidade. Com a publicação da lei nº 3.947 em 08 de

dezembro de 1983, alterou-se parcialmente a organização judiciária da comarca de

São Paulo, criando-se os Foros Regionais.

Page 34: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

23

Evidenciam-se no histórico do Judiciário Paulista as reformas administrativas

que estavam ocorrendo no Estado, quando se ampliou a burocratização das

atividades institucionais. Nesse contexto, dava-se ênfase a

aperfeiçoar o instrumental operativo, com as metodologias de ação, com a

busca de padrões de eficiência, a sofisticação de modelos de análise,

diagnóstico e planejamento (Iamamoto 2002, p. 32).

Em 19 de dezembro de 1984 foi aprovada a lei 4.467, que transferiu o Serviço

de Colocação Familiar para o Poder Executivo, sendo chamado de Instituto de

Assuntos da Família – IAFAM. Esta transferência aconteceu sem resistências

internas ou externas (COLMAN, p.321) e em 1985 o Tribunal de Justiça convocou

concurso público para provimento de 50 cargos de assistentes sociais para as Varas

de Menores, Família e Serviço Social do Trabalho. Este último setor, cuja criação

vinha sendo discutida desde 1982, foi efetivado em 1983 e sofreu muitas alterações

até os dias de hoje.

A resistência à ditadura, conduzida no plano legal por uma frente

oposicionista hegemonizada por setores burgueses descontentes, ganhou

uma profundidade e uma qualidade nova quando, na segunda metade dos

anos 70, a classe operária reinseriu-se na cena política, por meio da

mobilização dos trabalhadores termomecânicos do cinturão industrial de São

Paulo (o ABC paulista). A partir de então, a ditadura – que promovera a

modernização conservadora do país contra os interesses da massa da

população, valendo-se para isso inclusive do terrorismo de Estado – foi

Page 35: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

24

levada, de derrota em derrota, à negociação que, culminando na eleição

indireta de Tancredo Neves (1985), concluiu seu ciclo desastroso (Netto,

1999, p. 99).

Nessa fase, os assistentes sociais brasileiros vinham também realizando

intensos debates, inseridos inclusive nas lutas pela redemocratização do país,

repensando as diretrizes curriculares do curso de graduação em Serviço Social,

buscando novas perspectivas para a formação e para a intervenção profissional.

Integrado no sistema universitário em todos os níveis, nos anos 1980 o

Serviço Social brasileiro assistiu ao desenvolvimento de uma perspectiva

crítica, tanto teórica quanto prática, que se constituiu a partir do espírito

próprio da Reconceituação. Não se tratou de uma simples continuidade das

idéias reconceituadas, uma vez que as condições históricas, políticas e

institucionais eram muito diversas das do período anterior (Netto, 2005, p.

17).

Na passagem dos anos 80 para os 90, conforme Netto (1999), o Serviço

Social passa pelo quadro de maturação, através da democratização dos diferentes

posicionamentos teórico-metodológicos e ideopolíticos. Esta é uma fase de recriação

da profissão, marcada pela busca de rompimento com o conservadorismo histórico,

fundamentando seus posicionamentos principalmente na Teoria Social de Marx e,

em decorrência disso, sob a influência do pensamento de Marx e de autores

marxistas. A conjuntura adversa dos anos 80 impulsionou a definição “[...] dos rumos

técnico-acadêmicos e políticos para o Serviço Social” (Iamamoto, 2003, p. 50),

sendo que o projeto profissional hegemônico defendido atualmente foi gestado

Page 36: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

25

coletivamente. Esse projeto se expressa inclusive no Código de Ética Profissional do

Assistente Social e na Lei de Regulamentação da Profissão de Serviço Social –

ambos aprovados em 1993 – e nas atuais diretrizes curriculares.6 Estes avanços,

porém, por serem frutos da dinâmica social, não são homogêneos, lineares e

estáticos. Assim, temos a convivência entre continuidade e ruptura com o histórico

conservador da profissão e com as conquistas da sociedade e da categoria

profissional, principalmente no processo de redemocratização.

Nesse contexto de mudanças, o Brasil aprovou a Constituição Federal, a qual

tem como um dos eixos fundamentais a participação popular na formulação e

controle das políticas sociais. A regulamentação dos direitos sociais previstos na

Carta Magna foi realizada por meio da aprovação de várias leis,7 sendo fundamental

a apropriação das mesmas para o trabalho em diferentes campos ocupacionais e

nas lutas gerais da sociedade civil organizada com vistas a garantir tais direitos.

Destaca-se, dentre essa legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente

– ECA –, que regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal, trazendo também

elementos relacionados aos artigos 226, 228 e 229, criando um sistema de proteção

integral aos direitos da população infanto-juvenil.

6 Parece-nos de peculiar importância a luta das entidades da categoria para garantir a integral aprovação destas Diretrizes junto ao MEC. Este estudo pode ser realizado por meio das publicações da ABEPSS e documentos do conjunto Cfess-Cress e da Enesso. 7 Dentre elas: Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 e a posterior criação do Sistema Único da Saúde – SUS (lei nº8.142, de 28 de dezembro de 1990); Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (lei nº 9.394 de dezembro de 1996); Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990); Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS ( Lei nº 8.742 de 7 de dezembro de 1993); Sistema Único da Assistência Social (Resolução CNAS nº145, de 15 de outubro de 2004 e Resolução CNAS Nº 130, de 15 de julho de 2005).

Page 37: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

26

É importante considerar que o ECA foi gestado no período de

redemocratização do país, por ser fundamental que o Brasil rompesse também com

o autoritarismo no trato da questão da infância e da adolescência. Setores da

sociedade civil organizada mantiveram essa bandeira após a promulgação da Carta

Magna, com vistas a criar outro marco legal, substituindo o Código de Menores e as

estruturas criadas que não garantiam o desenvolvimento da população infanto-

juvenil, principalmente da mais vulnerável.

Silva (2005, p. 34-36) apresenta uma densa reflexão sobre a conquista do

ECA, abordando questões jurídico-sociais:

Assim, o ECA nasceu em resposta ao esgotamento histórico-jurídico e social

do Código de Menores de 1979. [...]

É no movimento endógeno e exógeno que consideramos o ECA uma

conquista tardia das lutas sociais. [...] Ocorre que foi uma conquista obtida

tardiamente nos marcos do neoliberalismo, nos quais os direitos estão

ameaçados, precarizados e reduzidos, criando um impasse na “cidadania das

crianças”.

A autora se refere à conquista legal, decorrente da luta dos movimentos

sociais, mas tece a crítica frente ao fato de não terem sido criadas condições reais

para os direitos da criança e do adolescente serem efetivados e usufruídos.

O ECA traz uma nova filosofia e uma programática de ação, com princípios e

diretrizes para uma política direcionada ao segmento infanto-juvenil, devendo ser

aplicado sempre para garantir o que for mais benéfico para a criança e o

Page 38: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

27

adolescente. O ECA está dividido em duas partes: no “Livro I – Parte Geral, afirma

as concepções gerais necessárias para a efetivação do paradigma da proteção

integral, tratando dos direitos fundamentais e da prevenção à ameaça ou violação

desses direitos; no “Livro II – Parte Especial” trata da Política de atendimento, que

inclui as medidas protetivas e sócio-educativas, das ações voltadas aos pais ou

responsáveis, do Conselho Tutelar, do acesso à Justiça e dos procedimentos

processuais, dos crimes e das infrações administrativas. Nas disposições transitórias

estabeleceu que em noventa dias as entidades governamentais e não

governamentais deveriam adequar seu funcionamento aos termos dessa legislação.

Nesse sentido, o ECA é um instrumento jurídico que superou a divisão entre

“crianças” e “menores”, existente no Código de Menores, provocada pela diferença

entre as classes sociais. Estabelece, assim, um marco jurídico, com a previsão de

responsabilidades da família, da sociedade e do Estado, determinando a execução

de políticas sociais que devem garantir essa proteção especial aos direitos da

criança e do adolescente.

É importante ter um olhar sobre o conjunto formado por esses princípios,

diretrizes e atores, para se ter o entendimento de que o ECA estabelece medidas

para que gradativamente seja consolidada uma nova cultura em relação à criança e

ao adolescente.

Contudo, Silva (2005, p. 46) alerta que para este cenário ser consolidado

exige-se muita luta.

Page 39: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

28

É claro que o Eca se diferenciou da lei que o antecedeu, mas não rompeu

visceralmente com os pressupostos do projeto de sociedade consolidado

pelos Códigos de Menores brasileiros (1927 e 1979), que vêm desde o final

do século XIX.

Por isso, para essa discussão é sempre necessário resgatar o movimento

sócio-político que gerou esse novo marco legal, inclusive para compreendermos as

resistências contra a sua efetivação. O ECA estabeleceu o princípio da proteção

integral e a concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direitos,

garantindo ainda a participação popular na formulação e controle das políticas

públicas. No caso do ECA, o controle social será feito pelo Conselho Municipal dos

Direitos da Criança e do Adolescente (artigo 88).

O paradigma da proteção integral visa dar o pleno atendimento à criança e ao

adolescente, considerando-os sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento e,

portanto, demandantes de cuidados da família, da comunidade e do Estado. Nesse

sentido, o Estatuto estabelece a criação de órgãos para o atendimento e a

fiscalização dos direitos da população infanto-juvenil.

No ECA, a Justiça da Infância e da Juventude está prevista no capítulo II, que

estabelece as suas competências para a garantia daqueles direitos. Para tanto,

dentre outras questões, normatiza a criação das equipes interprofissionais:

“Seção III – Dos Serviços Auxiliares

Page 40: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

29

Artigo 150 – Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta

orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe interprofissional,

destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.

Artigo 151 – Compete à equipe interprofissional, dentre outras

atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios

por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim

desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento,

prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária,

assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.

Alguns fatos relacionados ao aprimoramento profissional e organização

das categorias foram muito significativos para os assistentes sociais e os

psicólogos no Judiciário. Dentre eles, ao final da década de 80 dois encontros

estaduais foram organizados, um em 1987 e o segundo, em 1988, quando se

avaliou a necessidade de realizar cursos de capacitação e iniciação funcional.

Decorrente desse processo, foi criada uma Comissão de Representantes, e

na sua vigência, 1989, criou-se a “Comissão de Desenvolvimento e

Capacitação Profissional dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo”. Essa Comissão foi incorporada à estrutura

do Tribunal de Justiça, com a denominação de “Equipe Técnica de

Coordenação e Desenvolvimento Profissional dos Assistentes Sociais e

Psicólogos Judiciários do TJSP”, tendo sido oficializada em 1994. Ainda em

decorrência desse processo, foi criada a Associação dos Assistentes Sociais

e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – AASPTJ-SP,

Page 41: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

30

no âmbito organizativo dos trabalhadores.8 Em 2005, como conquista dessa

Associação, chegou-se à criação do Núcleo de Apoio Profissional de Serviço

Social e Psicologia, que possui, dentre outros, o objetivo de propiciar

encontros entre os técnicos para capacitação e troca de experiências.

Outro aspecto relevante é que o Judiciário foi o primeiro órgão público a

contratar formalmente um profissional de Serviço Social, embora somente em 2004

tenham sido regulamentadas as atribuições e competências do assistente social

nesta instituição. Observamos, ainda, que essa regulamentação foi uma conquista

importante na qual houve intensa atuação da Associação dos Assistentes Sociais e

Psicólogos do Tribunal de Justiça – AASPTJ/SP –9 e também a contribuição do

Conselho Regional de Serviço Social do Estado de São Paulo – Cress 9ª Região/SP

– que, enquanto órgão de classe, apresentou documentos esclarecendo o papel

profissional e o compromisso ético-profissional do assistente social, expressos na

Lei de Regulamentação da Profissão e no Código de Ética Profissional.

O Serviço Social brasileiro, inserido nas mudanças sociais e políticas,

sempre enfrentou grandes desafios na afirmação de um projeto profissional, pois

buscou, no decorrer de sua história, a sua auto-superação e aprimoramento para dar

respostas às demandas. Estas considerações permitem afirmar que há um grande

desafio para os assistentes sociais que exercem a profissão no Judiciário: buscar

realizar o projeto profissional hegemônico, nesta instituição marcada pelos conceitos

positivistas e conservadores, inclusive devido à perspectiva ideológica da Ciência do

Direito no Brasil. 8 Dados extraídos da pesquisa realizada pela AASPTJ: “O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário: construindo saberes, conquistando direitos”. São Paulo, Cortez, 2005. 9 A AASPTJ SP foi criada em 1992.

Page 42: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

31

No histórico do Serviço Social identificam-se passagens importantes e

significativas na constituição da identidade profissional. As profissões podem ter

respostas com diferentes características ideopolíticas frente a uma demanda

(preservadas as devidas proporções) conforme o seu objeto e a função na

sociedade.

[...] a consolidação de uma determinada direção social estratégica não

equivale à supressão das diferenças no conjunto da categoria ou à

equalização dos vetores que compõem a cultura profissional [...].

Nesse sentido,

[...] há que lembrar que estamos diante de um processo e não, de um

monopólio, mas de luta por hegemonia, de direção: não se trata de consagrar

identidades cristalizadas, mas de promover unidades dinâmicas. Nas

condições contemporâneas, uma categoria profissional jamais é um bloco

identitário ou homogêneo – é sempre, sob todos os prismas, um conjunto

diferenciado e em movimento (Netto, 1996, p. 116).

E neste contexto é preciso refletir que há grande diversidade nas

características da ação profissional, na interpretação e na intervenção face às

demandas. Dentre as questões que têm sido debatidas no âmbito da organização da

Page 43: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

32

categoria, há uma ênfase sobre a necessidade de maior aprofundamento sobre

competências e atribuições profissionais. Tal debate exige que se tenha como

parâmetros os princípios fundamentais da profissão, com vistas a garantir a direção

ética e política do projeto profissional.

Diante, assim, desse histórico de lutas da profissão para consolidar um

espaço dentre as profissões, enquanto especialização do trabalho coletivo, há

cotidianamente a interlocução com vários profissionais: Juiz, Promotor, Psicólogo,

Psiquiatra, Advogado, Oficial de Justiça e os próprios colegas de categoria. Além

desses, também há os outros profissionais, médicos, professores, pedagogos etc. e

os membros dos Poderes Legislativo e Executivo. Obviamente, um interfere mais

diretamente que outro nesta inter-relação, mas todos são significativos para a

consolidação do projeto ético-político-profissional, vez que é nesta dinâmica que se

são colocadas as requisições a um trabalho particular, bem como a sua qualificação

e importância na composição da totalidade do processo coletivo de trabalho.

Nessa composição de trabalhadores especializados, é possível verificar que

por vezes os assistentes sociais se deparam com ações que demonstram a

heterogeneidade das posturas profissionais. Na relação com a população e nos

pareceres técnicos apresentados podem ocorrer posicionamentos arbitrários,

pautados em juízos de valor pessoal, contrários aos princípios afirmados no Código

de Ética em vigor. Tal aspecto tem grande relevância, na medida em que este

profissional apresenta elementos que podem contribuir para as decisões judiciais.

Page 44: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

33

Em pesquisa realizada pelo Cress-SP (2003) junto às Varas da Infância e da

Juventude e abrigos e unidades da FEBEM, no Estado de São Paulo, constatou-se

que, se por um lado o Código de Ética Profissional afirma a posição hegemônica da

profissão, é ainda um instrumento a ser apropriado pelos profissionais.

No Seminário “Políticas Públicas para a Infância e Adolescência”, onde se

apresentaram os resultados da pesquisa, verificaram-se dados preocupantes nesse

aspecto. No item em que se questionou “Possui/conhece a edição atualizada do

Código de Ética?”, 190 profissionais do Judiciário responderam que sim, 140 que

não e 03 deixaram em branco.

São múltiplos os determinantes que poderão contribuir para um exercício

mais aproximado ou não dos princípios afirmados no Código de Ética. Buscar uma

leitura crítica, articulando os pressupostos teórico-metodológicos e ético-políticos da

profissão frente às contradições da realidade pode propiciar uma intervenção voltada

à garantia do acesso aos direitos conquistados e a conquistar. Nesse caminho,

Iamamoto afirma:

[...] as alternativas não saem de uma suposta “cartola mágica” do Assistente

Social; as possibilidades estão dadas na realidade, mas não são

automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos

profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos,

desenvolvê-las, transformando-as em projetos e frentes de trabalho (2003, p.

21).

Page 45: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

34

Assim, o assistente social que atua no judiciário, para efetivar o projeto

profissional hegemônico, comprometido com o aprofundamento da democracia como

socialização das riquezas socialmente produzidas e com a construção de uma nova

ordem societária,10 necessita estar atento às múltiplas expressões da questão social

e suas diferentes manifestações. Sua ação deve identificar não apenas as

desigualdades, mas as possibilidades de enfrentamento. Conhecer a complexidade

da realidade é necessário para a intervenção profissional que não culpabilize o

usuário, mas o compreenda enquanto sujeito social que sofre determinações que

incidem sobre a sua existência material e subjetiva.

1.1. Serviço Social e campos sócio-ocupacionais: o campo sócio-jurídico

No resgate de algumas passagens importantes sobre a inserção e trajetória

dos assistentes sociais no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, identifica-se

que alguns documentos e pesquisas acadêmicas utilizam o termo “Serviço Social

Judiciário”. Assim, é necessário debater algumas questões.

Como já foi exposto, a profissão é criada para responder às demandas da

sociedade. O Serviço Social, nesse sentido, afirmou-se como profissão na sociedade

capitalista industrial, atuando sobre as diferentes expressões da questão social. No

Brasil, o Serviço Social conseguiu extrapolar as “marcas de origem no interior da

Igreja, quando o Estado centraliza a política assistencial, efetivada através da 10 Princípios do Código de Ética Profissional do Assistente Social.

Page 46: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

35

prestação de serviços sociais implementados pelas grandes instituições” (Iamamoto,

1992, p. 95) Porém, a conjuntura sociopolítica foi fundamental para essa

institucionalização: é no processo de formação e luta operária que surge uma

movimentação política em direção aos direitos da classe dos trabalhadores. Essa

situação exige a intervenção do Estado nas relações dessa classe com o

empresariado, formulando legislações sociais e trabalhistas e prestando serviços

sociais por meio de políticas sociais.

Esta é a característica fundamental do Serviço Social: uma profissão criada

frente aos conflitos gerados na relação entre capital e trabalho. Assim, possui

autonomia relativa, uma vez que não tem controle sobre as condições objetivas para

a realização de suas atribuições, as quais se expressam na forma de tais serviços.

Para compreender o que vêm a ser “serviços”, as produções de Iamamoto,

com base na sociologia das profissões, colocam que:

Os trabalhos que são desfrutados como serviços são aqueles que não se

transformam em produtos separáveis dos trabalhadores que os executam e,

portanto, não têm existência independente deles como mercadorias

autônomas. Esta forma de materialização do trabalho nada tem a ver com a

sua exploração capitalista, visto que os serviços podem se constituir como

trabalhos produtivos (de mais-valia), dependendo das condições e relações

sociais em que são produzidos. [...] Assim, o mesmo trabalho [...] pode ser

realizado pelo mesmo trabalhador a serviço de um capitalista industrial ou de

um consumidor direto, tratando-se, no primeiro caso, de um trabalhador

produtivo e, no segundo, de um trabalhador improdutivo (2003, p. 68).

Page 47: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

36

A autora traz vários elementos que bem ilustram a característica contraditória

imposta à profissão:

A expansão dos serviços sociais na sociedade moderna está estreitamente

ligada à noção de cidadania. [...] A luta pelos direitos sociais é perpassada

pela luta contra o estigma do assistencialismo. São antecedidos pelas leis

beneficentes que tratavam as reivindicações dos pobres como alternativa aos

direitos dos cidadãos. [...]

Porém, se os direitos sociais têm por justificativa a cidadania, o discurso de

igualdade, seu fundamento é a desigualdade de classe (1992, p. 96).

Inserido no processo contraditório da sociedade, o Serviço Social vem

também se alterando, seja por demandas do Estado, das instituições, seja pelas

diferentes formas com que a questão social rebate sobre a vida dos cidadãos com

os quais atua. A categoria profissional tem intensificado as discussões na academia,

nos Congressos de Assistentes Sociais e em outras atividades técnico-científicas, no

interior das entidades organizativas e nos seus espaços de trabalho.

Nos últimos anos têm-se adensado os estudos em torno de alguns campos

sócio-ocupacionais, dentre eles o que se tem denominado “campo sócio-jurídico”,

que engloba o sistema penitenciário, o judiciário, o Ministério Público, as medidas

sócio-educativas (adolescentes) e as de proteção, relacionadas à população infanto-

juvenil, entre outros.

Page 48: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

37

Para realizar esse debate para além da dimensão técnico-operativa, o Serviço

Social tem se aproximado de vários autores que buscam compreender o processo

sócio-histórico e o modo de produção e reprodução da vida social e das

representações sociais.11

Além das pesquisas já realizadas, outros elementos da realidade trazem

significativas contribuições para a reflexão do trabalho do assistente social e o

tensionamento que pode gerar numa instituição como o judiciário paulista.

Ao atuar nos diferentes espaços ocupacionais os profissionais exercem uma

capilaridade de saber e de poder. A literatura científica tem buscado

compreender vários fenômenos relacionados à violência, à criminalidade, aos

Direitos Humanos e à Justiça. Especificamente, o Serviço Social vem

pesquisando vários aspectos da intervenção profissional, procurando suas

implicações ético-políticas e metodológicas. Nessa temática, há muitos

estudos sobre a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente e da

implantação das políticas de atendimento, com muita atenção às políticas

sociais. Sobressaem as indagações e a busca de metodologias relacionadas

às medidas sócio-educativas, principalmente de internação; em relação a

medidas protetivas, a maioria das quais trata do abrigamento e do

atendimento a vítimas de violência (sexual, exploração, trabalho infantil). Esta

segmentação ocorre mais a título de limitação exigida para o aprofundamento

analítico, pois sabe-se que muitas vezes há várias situações coexistentes,

cabendo aos profissionais identificar quais são as principais determinantes. 11 Conforme Oliveira, R.N.C. “A representação é um complexo de fenômenos do cotidiano que penetra a consciência dos indivíduos, assumindo um aspecto abstrato quando essa percepção do imediato está desvinculada do processo real que determina sua produção” (p.39).

Page 49: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

38

Assim, tais reflexões sempre exigem um debruçar-se sobre as características

e as peculiaridades dos processos de trabalho nos diversos campos sócio-

ocupacionais.

Recorrendo novamente a Colman e Fávero, verifica-se que ambas

elaboraram reflexões nesse sentido.

Para Colman:

Atualmente o fazer profissional do Serviço Social neste significativo campo de

trabalho tem sido pensado como uma pratica inserida no que se está

chamando de sistema sócio-jurídico. [...] As peculiaridades da ação

profissional no interior do Poder Judiciário estão marcadas pela natureza

diferenciada da organização cuja função não está diretamente vinculada à

prestação de serviços sociais (2004, p. 19).

A autora reflete sobre a construção do papel profissional no decorrer da

história do próprio Judiciário.

Essa problematicidade reforça a necessidade de conhecer como se deu a

construção dessa modalidade peculiar de ação profissional, longe de

considera-la um ramo ou uma especialidade do Serviço Social – daí a

impropriedade do uso da expressão Serviço Social Judiciário -, consideramos

apenas um tipo de resposta, uma adaptação da profissão às necessidades de

uma organização cuja função determina uma forma de ação específica [...]

(idem, p. 20).

Page 50: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

39

Compreendemos que Fávero trouxe uma grande contribuição com sua

conceituação, a qual vem sendo adotada pelo Serviço Social na sua literatura

técnico-científica, pelos seus órgãos representativos e pela categoria:

Campo (ou sistema) sócio-jurídico diz respeito ao conjunto de áreas em que a

ação do Serviço Social articula-se a ações de natureza jurídica, como o

sistema judiciário, o sistema penitenciário, o sistema de segurança, os

sistemas de proteção e acolhimento como abrigos, internatos, conselhos de

direitos, dentre outros. O termo sócio-jurídico, enquanto sínteses destas

áreas, tem sido disseminado no meio profissional de Serviço Social (2004, p.

10).

No I Encontro Nacional “Serviço Social Sócio-Jurídico” realizado em pelo

Conjunto CFESS-CRESS, em Curitiba, no ano de 2004, discutiu-se que a categoria

central para este debate é o “campo sócio-jurídico”.

Analisando essa categoria no conjunto de debates sobre o projeto ético-

político-profissional pode-se afirmar que é preciso pensar o campo sócio-jurídico

atrelado à teleologia e à instrumentalidade do Serviço Social.

Há que considerar que não é a temática que define o Serviço Social, mas sim,

o conjunto das dimensões teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-política da

profissão, manifestadas no posicionamento do assistente social diante das

expressões da questão social. Portanto, temos como pressuposto que não é a

dimensão jurídica que define o Serviço Social neste campo, mas a complexidade da

profissão e sua teleologia.

Page 51: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

40

Tânia Dahmer, assistente social e estudiosa dos direitos humanos,

especialmente em relação ao sistema penitenciário brasileiro, afirmou no citado

Encontro que é fundamental aprofundar as discussões sobre o aspecto sociopolítico

em comum nos diferentes espaços sócio-ocupacionais, vez que no cotidiano

enfrentamos as diferentes expressões da violência.

Beatriz Aguinsky, que também compôs a organização de tal Encontro,

afirmou que é um desafio realizar uma reflexão totalizante, buscando compreender o

que está posto na realidade. Na sua análise, trouxe a contribuição de que a

legalidade da moral é um princípio regulador no judiciário e mistificador da aparente

igualdade. Esta análise é fundamental, pois a normatização legal apresenta uma

igualdade que não se realiza, posto que não se implantaram mecanismos que

garantam o acesso à Justiça para sequer pleitear os direitos. Citou, na ocasião, o

exemplo da inexistência da defensoria pública em São Paulo (que foi criada somente

em 2006). Saliente-se que este órgão, previsto na Constituição Federal, deve

garantir a ampla defesa. Sem um mecanismo adequado, a norma legal não se

efetiva.

No debate atual há problematizações ao termo “sócio-jurídico”, considerando-

se o risco de retirar a determinação maior da profissão, que é o processo sócio-

histórico. Neste enfoque, Aguinsky ponderou que nos diferentes espaços sócio-

ocupacionais o assistente social, ao construir mediações, pode realizar passagens

totalizantes. Contudo, é importante considerar que o enfrentamento da questão

social é uma “tarefa” para um coletivo amplo, que defenda princípios comuns. Neste

sentido alertou sobre o risco de se reatualizar o discurso missionário. Compreender-

Page 52: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

41

se como ator inserido neste processo mais amplo é fundamental para realizar ações

profissionais e políticas coletivas para a superação desses cenários.

O grande desafio posto, nos diferentes espaços sócio-ocupacionais do

assistente social, é o de não realizar práticas que reiterem a violência em suas

diversas expressões e que atue juntamente com um coletivo maior para o

enfrentamento das situações que emergem no seu cotidiano. Todas as práticas

institucionais podem se tornar meramente instrumentos da produção e reprodução

do capital, à medida que não se apóie numa análise mais complexa. Por este

entendimento, a ação profissional deve reafirmar a teoria social crítica como

fundamento para um novo projeto societário.

É inegável que no exercício profissional no judiciário há dimensões imediatas,

voltadas à administração da justiça (reparação dos direitos violados) e mediatas

(pensar a defesa dos direitos por meio de lutas sociais mais amplas, antecipando-se

às violações). Em geral, o assistente social no campo sócio-jurídico está inserido na

dimensão da reparação, condição imposta pela estrutura institucional e pela cultura

política no trato das demandas sociais no país. Porém, os efeitos de sua

intervenção, enquanto parte do processo coletivo de trabalho, pode gerar pautas e

conquistas na direção da Justiça.

Um outro espaço dentro desse campo que agrega muitos profissionais é o

relacionado à execução de medidas sócio-educativas. Qual o lugar dessas medidas

quando defendemos o caráter pedagógico do Estatuto da Criança e do

Adolescente? Se, por um lado, as medidas são aplicadas por força de lei (tanto que

Page 53: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

42

comumente se discute a execução dessas medidas em analogia à execução penal,

evidenciando na verdade a realização de uma política penal juvenil)12, por outro, há

uma ênfase nas discussões sobre a responsabilização do adolescente como parte

de um processo pedagógico. Porém, embora o objetivo seja realizar uma ação

sócio-pedagógica, prevalece ainda na sociedade o entendimento e a defesa de que

a medida sócio-educativa seja aplicada como punição realizada por meio de ações

coercitivas e opressoras.

Nesse sentido, temos a questão cultural da sociedade brasileira, que é

bastante conservadora, defendendo a punição como resposta imediata, sem

conseguir realizar uma reflexão sobre os determinantes sócio-históricos dessa

sociedade desigual, opressora, violenta. Por fim, implicitamente parece haver um

entendimento majoritário afirmando que o elo com a justiça (responsabilização) deve

prevalecer na aplicação dessas medidas, sendo necessário refletir sobre as

intervenções técnico-legais em relação aos princípios filosóficos que fundamentam o

Estatuto da Criança e do Adolescente.

A realidade e a postura punitiva da sociedade impulsiona o discurso do

senso-comum, que não avalia que tais práticas repressivas já foram vastamente

aplicadas no Brasil e no mundo, sem, contudo, frear definitivamente os índices de

violência e criar novas relações que tenham possibilitado melhoria na vida da

população infanto-juvenil e das comunidades.

12 Maria Liduína de Oliveira SILVA (2005) traz uma discussão crítica e significativa neste sentido.

Page 54: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

43

Assim, o termo sócio-educativo merece também maior discussão não apenas

para o Serviço Social. Contudo, entendemos que no debate hegemônico do projeto

ético-político-profissional do Serviço Social, temos como parâmetro comum a defesa

do adolescente como sujeito de direitos, portanto, que tenha garantido um

atendimento que respeite sua individualidade, mas sem perder de vista o olhar

totalizante sobre as determinações dessa sua situação.

Estudando estes conflitos da sociedade, Faria relaciona a explosão da

litigiosidade.

... a um movimento de despolitização dos conflitos sociais, transformando

esses conflitos em questão de natureza econômico-administrativa.

Para ele, esses conflitos sociais, após serem retirados da esfera política da

luta de classe, são “repolizitados” no interior do aparelho estatal, através de outros

mecanismos de controle. (apud Colman, 2004, p. 118)

Colman considera que

... é o agravamento das contradições próprias do regime capitalista que

inviabiliza a possibilidade de aplicação das leis. Contudo, é o Poder Judiciário

que, através de seus organismos (tribunais, juizados etc.), experimenta

cotidianamente as conseqüências dos problemas sociais e, dele, a sociedade

cobra soluções.

Page 55: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

44

Diante da impossibilidade de resolver esses problemas que se expressam

como problemas individuais, mas são em realidade profundos problemas da

sociedade como um todo, impõe-se o reconhecimento da falência das

estruturas de operacionalização do Direito. (2004, p.121)

Face à complexidade da atual conjuntura, há preocupação de que o

profissional não esteja atento à direção social que imprime ao seu trabalho no

âmbito da Justiça e que possa estar cegamente exercendo um poder que limita o ser

humano.

O Conjunto CFESS-CRESS13 realizou em duas gestões (1996 a 1999 e 1999

a 2002) um amplo trabalho envolvendo a Comissão de Orientação e Fiscalização

Profissional dos Conselhos Regionais de Serviço Social, debatendo as

competências e as atribuições privativas do assistente social. Diante dos estudos

coletivos, foi publicado um livreto “Atribuições Privativas do Assistente Social em

Questão”, no qual consta um texto de Iamamoto:

[...] É comum os profissionais se identificarem com os cargos nomeados pelas

organizações, por exemplo, analistas de recursos humanos, assessores

internos, coordenadores de programas e projetos, confundindo cargo ou

função com profissão. Ora, não é a função atribuída pelo empregador que

define a qualificação profissional, as competências e atribuições que lhe são

inerentes. A profissionalização depende da formação universitária que atribui

o grau de assistente social e do Conselho Profissional que dispõe de poder

13 Conjunto formado pelo Conselho Federal de Serviço Social e Conselhos Regionais de Serviço Social, sendo que existem 24 CRESS no país. Autarquias federais, os Conselhos são órgãos de regulamentação e fiscalização do exercício profissional e, neste caso, do Serviço Social. O Conselho Federal normatiza na esfera federal e atua como tribunal recursal dos processos éticos.

Page 56: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

45

legal para autorizar e fiscalizar o exercício, a partir das atribuições e

competências identificadas historicamente e reguladas por lei. (2002, p. 40)

Há atualmente um intenso debate sobre a organização dos trabalhadores

frente à desregulamentação das conquistas trabalhistas, à criação de cargos

genéricos (por exemplo: analista técnico), à precarização das condições de trabalho

e das estratégias do mercado em desincumbir-se das obrigações trabalhistas, à

resistência em alterar a política tributária do mercado produtivo em detrimento do

financeiro etc.

O Serviço Social realizou em 1979 o Congresso Brasileiro de Assistentes

Sociais, que foi chamado de “Congresso da Virada”. Nesse período também foi

fechado o Sindicato dos Assistentes Sociais, orientado pela Central Única dos

Trabalhadores – CUT, por haver o entendimento de que os trabalhadores devem se

organizar por ramo de atividade (saúde, assistência, funcionalismo público etc.) e

não, por categoria profissional. Esta orientação foi fundamentada na compreensão

de que há necessidade de superar a perspectiva corporativista de categorias,

adotando a posição de classe trabalhadora, sobre a qual recaem as dificuldades

acima elencadas..

A categoria dos assistentes sociais tem debatido a necessidade de retomar a

dimensão sindical, ou a “transição inconclusa”. Porém, é imperativo maior o debate

anterior, sob o entendimento de que o assistente social compõe um trabalho coletivo

Page 57: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

46

e que é toda a classe trabalhadora, e não uma categoria específica, que vem

sofrendo os rebatimentos da reestruturação produtiva14.

Considerando, nesta ótica, os impactos da reestruturação tecnológica, da

organização da administração pública e do mercado, os assistentes sociais

necessitam incorporar-se às lutas mais amplas da sociedade e dos trabalhadores,

atentos às mudanças exigidas pela ordem neoliberal, mas com a clareza de seu

papel profissional inscrito num projeto ético-político-profissional.

Neste caminho analítico, Iamamoto esclarece que:

Importa afirmar enfaticamente que tratar as particularidades de uma profissão

na divisão social e técnica do trabalho não significa uma regressão aos velhos

dilemas presentes na busca de uma suposta especificidade profissional

aprisionada nos muros internos da profissão, em geral reduzida à dimensão

dos “métodos e técnicas do Serviço Social”, tal como estabelecido pela

tradição conservadora da profissão (2002, p. 42).

Portanto, é fundamental o resgate sobre a historiografia da profissão,

compreendendo-a no processo sócio-histórico, e das demandas apresentadas aos

sujeitos profissionais e seus órgãos representativos. Sem esta abordagem

historicizada, apreendem-se apenas alguns aspectos residuais do papel profissional

preso à instituição, e não inserido no campo de lutas da sociedade.

14 Atualmente existem 8 sindicatos de assistentes sociais filiadas à Federação Nacional de Assistentes Sociais, FENAS. Fonte: www.fenas.org.br

Page 58: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

47

Com a crescente desregulamentação e precarização das condições de

trabalho, voltado cada vez mais para o fortalecimento e aprimoramento do

capitalismo neoliberal, os trabalhadores podem cair na armadilha de desenvolver

lutas corporativistas, em busca da sobrevivência. Cabe às lideranças provocar

reflexões sobre essas condições, elaborando coletivamente estratégias de lutas. Os

assistentes sociais, quando não ampliam sua participação nos espaços coletivos,

tendem a recair em alternativas que parecem imediatamente satisfazer a sua

inserção no mercado de trabalho, mas que, na prática, podem fragilizar o projeto

profissional. Assim, sob outras feições e terminologias, podem-se retomar

perspectivas já superadas teoricamente. Tem havido a retomada do “Serviço Social

Clínico” como um indício dessa tendência, embora combatida pelas entidades da

categoria.

Assim, Iamamoto subsidiou as reflexões do Conjunto CFESS-CRESS ao

afirmar que:

...o trabalho coletivo não impõe a diluição de competências e atribuições

profissionais. Ao contrário, exige maior clareza no trato das mesmas e o

cultivo da identidade profissional, como condição de potenciar o trabalho

conjunto (2002, p. 42).

Compreende-se, assim, nesta pesquisa, que o assistente social Judiciário tem

essa denominação por identificar sua inserção. Adota-se conceitualmente que o

Serviço Social está inserido no campo sócio-jurídico, não se consolidando um outro,

denominado Serviço Social Judiciário. Para essa assertiva, portanto, é essencial que

Page 59: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

48

se tenha clareza do que é o espaço institucional e o papel profissional inscrito em tal

relação.

Por exemplo, o assistente social pode ser o Perito Judicial, nomeado por ser o

“especialista enquanto detentor de conhecimentos” (Fávero, 2003, p. 19) na área

de Serviço Social. Assim, é a qualificação como assistente social que efetiva o

espaço como especializado.

É importante salientar que no ano de 2003 foi criado o curso de pós-

graduação lato senso denominado Serviço Social na Área Judiciária, realizado pela

Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão – COGEAE-

PUC/SP, com carga horária de 360 horas e duração de três semestres. Na

apresentação há referência à ampliação do trabalho nesse campo “sobretudo no que

se refere a subsídios técnico-científicos para melhor fundamentar a decisão

judicial”.15

Neste sentido, conclui-se que o termo “campo sócio-jurídico” informa qual a

inserção sócio-ocupacional, sendo esta uma das condicionantes das

particularidades no fazer profissional. Não é, portanto, o campo que define a

profissão, mas sim o projeto ético-político-profissional que o faz e, em decorrência

disso, informa sua inserção em determinado campo.

15 Extraído do folder de divulgação do curso.

Page 60: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

49

1.2. Processos de Trabalho e Serviço Social

Ao pensar o Serviço Social e sua inserção no Judiciário, Colman e Fávero

resgataram a sua história, tensionamentos e conquistas e apontaram desafios.

Tendo essas produções como referência para compreender o exercício profissional

no Judiciário Paulista, buscou-se nesta pesquisa entender melhor o impacto do

trabalho do assistente social sobre as decisões judiciais. Identificamos na

constatação de Iamamoto a importância deste estudo:

Pensar a atividade do sujeito, isto é, o seu trabalho, supõe decifrar esses e

outros traços socioculturais que sustentam o imaginário existente sobre a

profissão na sociedade. É muito interessante observar que a maioria das

pesquisas especializadas focaliza a Instituição Serviço Social. Poucos são

aqueles estudos que têm como foco o sujeito profissional, e a análise do

Serviço Social sob o ângulo dos processos de trabalho permite dar-lhe a

atenção devida (2003, p. 65).

A autora, ao problematizar a necessidade de compreender os processos de

trabalho, fundamenta suas reflexões na tradição marxista, apontando que:

... o Serviço Social é um trabalho especializado, expresso sob a forma de

serviços, que tem produtos: interfere na reprodução material da força de

trabalho e no processo de reprodução sócio-política ou ideopolítica dos

indivíduos sociais. (p. 69)

Page 61: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

50

Verifica-se, nesse sentido, que as profissões assumem características

peculiares, determinadas pelas instituições onde se inserem. No caso do Serviço

Social, que é uma profissão generalista, é possível verificar que a forma como

compreende e explica os processos sociais vivenciados por diferentes sujeitos

(individuais e coletivos) incide sobre as estratégias e os processos de trabalho que

desenvolvem cotidianamente. No Judiciário, é possível dizer que há um produto

coletivo de tal trabalho, as decisões judiciais, que podem ser expressas nas

jurisprudências.

Os assistentes sociais que atuam no Judiciário têm buscado seu

aprimoramento permanente, lutando contra condições adversas (excesso de

trabalho, reduzido quadro da equipe interprofissional, problemas estruturais e

ambientais no local de trabalho, falta de uma política de incentivo ao aprimoramento

profissional etc.). Há algum tempo a Associação dos Assistentes Sociais e

Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – AASPTJ-SP tem

ampliado as formas de ação coletiva, aprimorando a ação da diretoria e a

organização da base em comissões de trabalho, obtendo vitórias importantes. Além

disso, provocou a criação do Núcleo de Apoio Profissional de Serviço Social e

Psicologia do Tribunal de Justiça, que vem buscando efetivar demandas da

instituição e acolher as dos técnicos. Esta relação não ocorre sem tensionamentos,

mas pelo fato de haver ações voltadas ao coletivo, os avanços são mais

significativos. Assim, é fundamental que ocorram essas lutas cotidianas, visando não

apenas conquistas coletivas relacionadas às condições de trabalho, mas

Page 62: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

51

essencialmente voltadas à direção ético-política e à instrumentalidade da ação

profissional.16

E é nesse contexto que, tanto o assistente social quanto o psicólogo,

acompanham parte das ações judiciais. As demandas que lhes são colocadas

exigem uma atuação de grande aprofundamento teórico-metodológico, mas se

deparam com muitos fatores institucionais e conjunturais que provocam dificuldades

para a realização das suas atribuições, competências e papéis profissionais.

O Serviço Social no Judiciário, ao atender diversos casos individuais, lida com

expressões da questão social que, muitas vezes, não são respondidas por meio das

políticas públicas que deveriam garantir a resolução dessas situações. Este não

atendimento decorre da precariedade e/ou insuficiência ou mesmo devido à

ausência de tais políticas de competência do Poder Executivo. Com o agravamento

das situações, o que deveria ser atendido no âmbito dos serviços do Poder

Executivo, acaba se tornando “caso de polícia” e remetido ao Judiciário.

Essa realidade é recorrente no cotidiano profissional nos diferentes campos

sócio-ocupacionais. Quando o assistente social busca compreender essas múltiplas

expressões da questão social, decorrentes das relações da sociedade capitalista na

qual estamos inseridos, pode levantar elementos relativos à sua produção e

reprodução social. Além disso, com fundamento em conhecimentos, pode levantar

como essas expressões são vivenciadas por sujeitos sociais, com suas diferentes

trajetórias sócio-culturais e econômicas.

16 A ASSPTJ-SP realizou uma pesquisa importante neste sentido, que foi publicada no livro Serviço Social e Psicologia no Judiciário.

Page 63: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

52

Assim, um dos meios de trabalho do assistente social é o conhecimento, o

que exige constante aprimoramento e capacitação (um dos direitos do

profissional),17 e um dos seus instrumentos de trabalho é a linguagem (Iamamoto,

2004; Magalhães, 2003).

Além disso, o assistente social, compondo esse trabalho coletivo, em que

compartilha de conhecimentos e competências, consolida também atribuições

privativas, ou seja, exclusivas de sua formação profissional.

Uma importante obra nesse campo foi realizada por Guerra (1995), em que a

autora discute a instrumentalidade do Serviço Social. Guerra, ao considerar também

a construção histórica da profissão, problematiza que

Há algo que precede a discussão de instrumentos e técnicas para a ação

profissional, que no nosso entendimento refere-se à sua instrumentalidade,

ou melhor, à dimensão que o componente instrumental ocupa na constituição

da profissão. Para além das definições operacionais (o que faz, como faz),

necessitamos compreender “para que” (para quem, onde e quando fazer) e

analisar quais conseqüências no nível “mediato” as nossas ações

profissionais produzem (p.30)

Inserido nesse contexto sócio-institucional, ideocultural e político, consolida-

se o projeto profissional, com suas conquistas, desafios e dificuldades. Nessa

inserção e permeado pelas tensões, inerentes às disputas de projetos, podem ser

17 Nos termos do Código de Ética Profissional

Page 64: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

53

buscados elementos para melhor entendimento a respeito do trabalho do assistente

social, seus processos e produtos. Dentre eles, é possível verificar sua contribuição

junto às decisões judiciais e às jurisprudências que podem, ou não, propiciar a

efetivação de direitos legalmente previstos e/ou socialmente demandados.

Nesta investigação categorizaram-se as decisões judiciais e as

jurisprudências como produtos do trabalho coletivo realizado no Judiciário, com a

participação de vários trabalhadores, dentre os quais está o assistente social. Os

processos de trabalho serão analisados com base nos registros existentes nos

autos. Os produtos serão arrolados neste levantamento: talvez se expressem em

despachos, decisões pontuais e, por fim, nas decisões judiciais e jurisprudenciais,

manifestadas nos termos de audiência, em primeira instância, e nos relatórios e

acórdãos do Tribunal de Justiça, instância recursal.

Há um leque de relações que são estabelecidas nos diferentes processos de

trabalho do assistente social, em que afirmamos valores, influenciando nas relações

sociais, na cultura, que interferem diretamente na vida dos sujeitos e nas relações

socioinstitucionais. Nas reflexões de Iamamoto, o Serviço Social tem como produto

“... um efeito que não é material, mas é socialmente objetivo...” (2003 p. 67).grifo

nosso

Page 65: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

54

1.2.1. Dimensão técnico-operativa do Serviço Social

Para a realização de suas atribuições, o assistente social utiliza-se

geralmente de entrevistas (individuais ou em grupo), visitas domiciliares, contatos

institucionais, discussão de caso com profissionais da rede de atendimento, reuniões

de equipe, pesquisas, dentre outras atividades.18

Além de Guerra (op. cit., 1995), que tratou da instrumentalidade do Serviço

Social ao problematizar o percurso histórico da profissão e sua teleologia frente à

realidade social, Fávero também traz reflexões importantes sobre os instrumentos e

técnicas que as diferentes profissões dispõem para realizar os processos de

trabalho:

Os instrumentos e técnicas de intervenção são meios geralmente

comuns a diferentes profissões. Os fundamentos é que distinguem a

especificidade de cada uma delas (2004, p. 36, grifo nosso).

Esta rica síntese de Fávero permite afirmar que a perspectiva a partir da

Teoria Social é que fundamenta o manejo destes instrumentos e técnicas. É a

perspectiva teórico-metodológica que direcionará as perguntas, trará “conteúdos” e

atribuirá significados neste processo e na sistematização das “respostas”.

18 No campo desta instrumentalidade, vale registrar a reflexão original de Fávero, que sugeriu, nos seus estudos, a importância da técnica da história de vida, que, contudo, não tem sido objeto de estudo e problematização na graduação em Serviço Social.

Page 66: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

55

Assim, conforme a perspectiva, a visita domiciliar pode erroneamente ser

utilizada com olhar fiscalizador, ao invés de subsidiar a leitura das relações sócio-

familiares que os diferentes sujeitos estabelecem dentro de condições particulares.

Uma entrevista pode recair não na possibilidade de os sujeitos se expressarem, num

momento de reflexão, de reconstrução de suas trajetórias, de busca de direitos, de

elaboração de estratégias e projetos, mas num momento de aconselhamento

policiador e pretensamente normatizador de condutas e comportamentos. Pode ser

realizado não a partir do sujeito de direitos, mas do lugar de um profissional que

detém o controle e o saber. Neste sentido, mesmo com um discurso emancipatório,

o profissional pode revelar em suas ações um posicionamento que não considere as

determinações da vida social e, pior, com viés moralizador.

Vale ressaltar que a visita domiciliar é um importante instrumento na

perspectiva de respeito ao usuário, para que no seu próprio espaço possa se

expressar. Assim, é antes a possibilidade de conhecer melhor este sujeito, seu

percurso, suas conquistas, dificuldades, e as respostas que elabora diante das suas

vivências. É mais uma possibilidade de permitir voz e vez. Ainda que não se possam

igualar os lugares que cada um ocupa nesta relação criada por um conflito judicial, é

uma estratégia para o profissional identificar outros elementos que fogem à

artificialidade imposta pelas instituições. Fundamentalmente, pode ser uma ação que

permita empatia e alteridade. Por meio da visita é possível verificar as relações

sócio-familiares, muito mais a partir da lógica do pertencimento dos usuários em

seus territórios e dos seus laços de sociabilidade. Para tanto, é preciso se despir de

preconceitos e estar aberto a ouvir e ver a realidade.

Page 67: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

56

É comum que nos despachos dos juízes esteja determinada a “realização de

estudo social por meio de visita domiciliar”. Não constitui um excesso que, no laudo,

se resgate que no cumprimento da determinação o técnico realizou o estudo social,

utilizando para tanto os instrumentos necessários para a situação a ser analisada.

Este tipo de posicionamento tanto auxilia na melhor compreensão do papel

profissional, quanto favorece a boa instrução dos autos, vez que os elementos que

são apresentados nos laudos são originados de procedimentos técnicos.

Evidentemente, as reflexões acima não podem ser “coladas” de forma linear à

realidade, posta a sua dinâmica contraditória e socialmente construída. Apenas

levantam aspectos que compõem os processos de trabalho, podendo evidenciar

posturas profissionais inseridas nas contradições da sociedade contemporânea.

Tem sido debatida, em espaços de discussão do Serviço Social, a relevância

de uma maior reflexão sobre a instrumentalidade do Serviço Social, a fim de

aprofundar o domínio da dimensão técnico-operativa da profissão. O avanço e

gradativa apropriação dos profissionais quanto ao debate das dimensões teórico-

metodológica e éticopolítica imprimiram a direção hegemônica da profissão. Ao

mesmo tempo, a fragilidade de organização da grande maioria dos profissionais os

faz buscar a legitimidade na sociedade por meio de respostas às demandas

imediatas. Os profissionais ainda persistem na falsa idéia de que “na prática a teoria

é outra”, evidenciando a dificuldade em se apropriar da teoria social crítica e articular

a dimensão teórico-metodológica. Vale observar que, por ser um debate que exige

substrato intelectual e cultural, torna-se menos atraente do que respostas imediatas.

Assim, é compreensível o interesse e a busca, nos espaços de discussão e

Page 68: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

57

capacitação profissional, por questões instrumentais, em detrimento de uma crítica

macrossocietária e histórico-dialética.

Conforme Netto,

[...] o conservadorismo e as proposições pós-modernas se dão as mãos: o

combate e a crítica ao ideal de sociabilidade posto pelo programa da

modernidade jogam claramente no sentido de desqualificar a direção social

que se construiu contra o conservadorismo. Eis por que, aqui, investir na pós-

modernidade é também levar água ao moinho do conservadorismo.

[...] As implicações, naturalmente, estendem-se ao plano operativo: o

privilégio da ‘mudança cultural’, a centralização nas singularidades, a ênfase

nas especificidades, a valorização do trabalho focalizado etc. (1996, p. 118).

Por essa perspectiva, os processos de trabalho em que se insere o assistente

social, bem como a sua dinâmica e seus produtos, podem trazer pistas para esta

reflexão sobre a ação profissional e seus impactos. Para tanto, levantar

informações sobre o percurso da atuação em casos que geraram jurisprudências

pode trazer elementos significativos sobre a atuação do assistente social e a

contribuição do Serviço Social para a utopia da Justiça Social.

Page 69: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

58

1.2.1.1. Procedimentos metodológicos: Estudo Social e Perícia Social

Fez-se necessário introduzir reflexões sobre a profissão, seus campos sócio-

ocupacionais e os processos de trabalho para, então, organizar os principais procedimentos

realizados pelo assistente social no Judiciário: o Estudo Social e a Perícia Social, bem como

as formas de registro: os relatórios, laudos e pareceres sociais. Para a realização desses

processos estão implicados instrumentos e meios, sobre os quais haverá referência

somente quando necessário. Portanto, a sistematização abaixo abordará como se

expressam os processos de trabalho em que se insere o assistente social.

ESTUDO SOCIAL

O estudo social é um processo metodológico específico do Serviço Social,

que tem por finalidade conhecer em profundidade, e de forma crítica, uma

determinada situação ou expressão da questão social, objeto da intervenção

profissional – especialmente nos seus aspectos sócio-econômicos e culturais

(Fávero, 2004, p. 42).

O Estudo social é, portanto, um processo em que se resgata a trajetória de

um indivíduo, grupo ou sujeito coletivo, criticamente, numa perspectiva não apenas

compreensiva, interpretativa, mas explicativa de possíveis causas da situação

vivenciada. O conjunto de ações na realização do Estudo Social deve ser efetivado

de maneira fundamentada, planejada e com vistas a reelaborar intelectualmente a

trajetória dos sujeitos, articulando-a a análises sobre as determinações do contexto

sociocultural, ideopolítico e econômico. Para tanto, são utilizados instrumentos,

Page 70: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

59

técnicas e procedimentos fundamentados nos princípios ético-profissionais,

orientados pelos objetivos profissionais, institucionais e sociais.

PERÍCIA SOCIAL

A perícia, no âmbito do judiciário, diz respeito a uma avaliação, exame ou

vistoria, solicitada ou determinada sempre que a situação exigir um parecer técnico

ou científico de uma determinada área do conhecimento, que contribua para o juiz

formar a sua convicção para a tomada de decisão.

... quando solicitada a um profissional de Serviço Social, é chamada de

perícia social, recebendo essa denominação por se tratar de estudo e parecer

cuja finalidade é subsidiar uma decisão, via de regra, judicial. Ela é realizada

por meio do estudo social, e implica na elaboração de um laudo e na emissão

de um parecer (Fávero, 2004, p. 43).

Essa perícia é realizada tanto por um profissional funcionário do Tribunal,

nomeado nos autos para tal fim, quanto por profissionais contratados pelas partes,

denominados assistentes técnicos, que emitem o seu parecer após aquele emitido

pelo funcionário nomeado. Esta situação é mais usual nas Varas de Família e de

Sucessões.

Junto à determinação de realizar a perícia, podem constar quesitos

formulados pelos advogados/defensores a serem respondidos pelos técnicos. É

comum verificar em tais quesitos conteúdos que não são pertinentes ao Serviço

Social, ocasião em que o profissional geralmente responde como “quesito

Page 71: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

60

prejudicado”. Por exemplo, há quesitos que tratam das condições psicológicas, de

traumas decorrentes dos conflitos, de situações relacionadas ao desenvolvimento

cognitivo da criança, enfim, de matérias pertinentes a outras profissões.

A perícia social, portanto, é o estudo social especificamente voltado para uma

avaliação e/ou julgamento.

1.2.1.2. Formas de registro

Relatório Social e Laudo Social

O relatório social é utilizado em diferentes campos sócio-ocupacionais do assistente

social. Quando utilizado no judiciário, cumpre a função de

informar, esclarecer, subsidiar, documentar um auto judicial [...] ou enquanto

parte de registros a serem utilizados para a elaboração de um laudo ou

parecer (Fávero, 2004, p. 45).

O laudo social é o registro formal decorrente do estudo social ou da perícia

social, que reúne as principais informações, a análise técnica e o parecer que

poderão servir como subsídio para a decisão judicial.

Ambos são elaborações técnicas, não sendo necessário apresentar todo o

detalhamento dos dados obtidos. Estes, contudo, devem ser registrados e

Page 72: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

61

arquivados no Setor Técnico, para eventual necessidade de consulta pelo

profissional ou sua equipe envolvida no caso.

Parecer Social

O parecer social diz respeito a esclarecimento e análises, com base em

conhecimento específico do Serviço Social, a uma questão ou questões

relacionadas a decisões a serem tomadas (Fávero, 2004, p. 47).

No judiciário é mais usual que se apresentem os principais elementos

decorrentes do estudo social ou da perícia social e, após, adicione-se o fechamento

com o parecer social.

Conforme o Código Processual Civil, denomina-se parecer a manifestação do

assistente técnico contratado pelas partes sobre o conteúdo do laudo do perito

judicial. Assim, fará observações, comentários e questionamentos sobre tal

conteúdo.

[...] No âmbito do Sistema Judiciário, o parecer pode ser emitido enquanto

parte final ou conclusão de um laudo, bem como enquanto reposta à consulta

ou à determinação da autoridade judiciária a respeito de alguma questão

constante em um processo já acompanhado pelo profissional (Fávero, 2003,

p. 47).

Page 73: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

62

Embora seja usual que, em outras profissões, os pareceres sejam uma

síntese ou uma conclusão, sem serem apresentados os elementos que

fundamentaram tal avaliação, o Serviço Social e a Psicologia no Judiciário ainda

formulam um corpo de informações para, posteriomente, apresentar o seu parecer

técnico. Verifica-se, por exemplo, que o médico pode afirmar em seu parecer “lesão

ocasionada por objeto contundente”, sem ter de explicar como chegou a essa

conclusão. No caso do trabalho do assistente social e do psicólogo, há uma prática

que parece ter consolidado que é preciso que expliquem como chegaram às

conclusões apresentadas. Tal observação indica um caminho adotado

majoritariamente por estes profissionais, que afirmam a identidade atribuída e a

construída no judiciário.19

É necessário, também, refletir sobre as dissonâncias nos processos de

trabalho, se estes colidem com os imperativos legais e os princípios éticos afirmados

pela categoria, suas repercussões nas relações e nos produtos do trabalho. Essas

indagações serão aprofundadas na análise dos casos escolhidos para esta

pesquisa.

19 Cf. Maria Lúcia Martinelli. Serviço Social: Identidade e alienação do Serviço Social, 2001.

Page 74: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

63

CAPÍTULO II

Relações Sociais e Justiça:

2.1. Relações sociais e Ciência do Direito

Para a problematização proposta, faz-se necessária a aproximação de

algumas análises sobre o pensamento e o conhecimento jurídicos. Para tanto, foi

necessário recorrer a citações, por vezes longas, para melhor apresentar tais

análises.

Segundo Faria,

a abordagem estrutural da Ciência do Direito forjou um pensar jurídico

altamente sistematizante e pouco criativo. Em termos ideológicos, esse

pensar está impregnado pelo liberalismo político do século XIX e início do

século XX – ou seja, vinculado à concepção burguesa de Estado minimalista

Page 75: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

64

e ao reconhecimento da individualidade humana como ponto básico de

referência institucional no plano social (família), econômico (propriedade) e

político (livre-arbítrio). Em termos metodológicos, a rígida estrutura lógico-

formal da dogmática jurídica embotou sua percepção, por um lado,

impedindo-a de identificar a base histórica de seu aparelho conceitual e, por

outro, atrelando a divisão intelectual do saber normativo aos inflexíveis

critérios da hierarquização e classificação das leis e dos códigos (1988, p.

25).

Nessa direção, não se pretende aqui aprofundar a discussão sobre a ciência

do Direito, mas debatê-la frente à realidade contemporânea e diante do caráter

normativo da legislação.

Faria, em suas produções, afirma que a Ciência do Direito parte de um

discurso aparentemente objetivo e técnico, com clara tendência a projetar a

possibilidade de conciliar severas contradições sociais. Deste modo, o conhecimento

e a prática jurídica afirmam cotidianamente a visão positivista da realidade.

Faria questiona tal tendência e argumenta que “... o conhecimento jurídico

deve ser analisado no conjunto das determinações sociais, políticas, econômicas e

culturais” (1988, p. 27).

Sob a mesma perspectiva, Warat (1988, p. 31) afirma que “o Direito é uma

técnica de controle social” e que, nesse sentido, as teorias jurídicas visam assegurar

a eficácia desse controle. De tal forma, também estão elaboradas para não permitir a

mudança, permeada pela ideologia dominante.

Page 76: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

65

As elaborações reflexivas desses autores vêm ao encontro da preocupação

contida nesta pesquisa, ao tratar da pseudo-neutralidade do Direito positivo. A

realidade e sua dinâmica revelam cotidianamente facetas que interagem no conjunto

de determinações. E nesse contexto é possível identificar que diferentes sujeitos são

obrigados a responder com comportamentos irrealizáveis nas condições em que se

encontram. Por exemplo, já se abordou que a questão da negligência com os

cuidados de crianças/adolescentes não pode ser dissociada das condições

concretas mediatas e imediatas em que se verifica. Ou seja, se por um lado há um

acúmulo do que a sociedade considera “o bom trato"20 da criança e do adolescente,

há também a necessidade de confrontá-lo com as condições reais para sua

efetivação. Assim, por vezes, é possível identificar que os operadores do Direito

abordam o dever ser sem, no entanto, articulá-lo com a realidade e sua dinâmica.

Lopes considera que

há três espécies de conflitos emergindo com maior freqüência e intensidade

na última década, vindo a desaguar em controvérsias judiciais (1994).

Identifica que a primeira espécie é relativa a problemas do poder político,

onde há

[...] questões de limitação dos poderes, atribuições, funções e competências

entre os diversos poderes do Estado, sejam eles os poderes tradicionais do

liberalismo, sejam as novas agências e agentes, guindados de fato ou de

direito à linha de frente do cenário político (1994, p. 22-23)

20 Expressão criada pelo jurista Edson Sêda

Page 77: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

66

Nessa linha, avalia a crise das instituições que não se adaptaram às

mudanças sociais. Assim, embora tenhamos o direito à participação social, a

organização do Estado prejudica o exercício desse direito, impulsionado pelas

demandas de grupos, numa disputa desigual.

Em segundo lugar há os conflitos chamados coletivos, divididos em duas

categorias.

Uns mostram grupos organizados que reivindicam benefícios sociais ou

individuais coletivamente fruíveis (saúde, moradia, educação, transporte etc.).

Nestes casos, a solução natural não é um ato de adjudicação (típico do

Judiciário), mas uma política pública. Trata-se de uma solução que requer não

apenas um reconhecimento de um direito subjetivo e de um dar/entregar ou

obrigar a dar/entregar alguma coisa ou alguma quantia de dinheiro, mas um

fazer ou prover um serviço público (contínuo, ininterrupto, impessoal etc.).

(idem)

Compreender esses conflitos na perspectiva dos direitos coletivos pode

favorecer a criação de estratégias para a exigibilidade da efetivação de políticas

públicas. A solução ideal seria conquistar direitos por meio do serviço público que

garanta políticas estatais – permanentes – e não, ações de governo – condicionadas

a um determinado período administrativo. É mais que conhecido que os serviços

públicos que não se tornam permanentes ficam sujeitos à interrupção conforme as

decisões do grupo político eleito para determinado período de gestão e seus cargos

políticos.

Page 78: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

67

Explicitar a ausência do Estado na realização do seu papel e o

direcionamento das decisões que prejudicam direitos conquistados faz-se

fundamental para que a comunidade tenha uma atitude proativa na busca de seus

direitos.21 Sem esse entendimento dificulta-se a luta coletiva, mascarando como

individual o que é direito de toda uma coletividade. Além disso, ocorre a fragilização

das forças sociais que visam romper com a concentração de poder político e

econômico.

Essas lutas podem fortalecer os movimentos sociais em busca da efetivação

de tais políticas e, principalmente e enquanto princípio de maior relevância, a

incorporação de um sentimento de coletividade. Não apenas buscar aquilo que

individualmente o sujeito percebe como seu direito, mas reconhecer-se parte de um

coletivo que, embora excluído de um direito, tem possibilidade de exigi-lo

coletivamente. Esse processo traz muitos ganhos no tocante à organização da

população.

Uma terceira espécie de conflito, correspondente à segunda espécie de

conflito coletivo, é aquela aparentemente individual e tradicional (controvérsia

entre partes claramente limitadas e com objeto definido, como numa

obrigação contratual, uma separação, um crime ou uma contravenção). Na

sociedade de massas e de classes, porém, a repetição dos casos individuais

semelhantes indica a existência de classes, grupos, conjuntos em que a

21 No período da revisão deste texto estava em andamento a “CPI dos sanguessugas”, que verificou o desvio de recursos destinados à compra de ambulâncias, tendo suspeita de um grupo expressivo numericamente de parlamentares (no relatório parcial, em julho de 2006, eram 116 investigados). Foi noticiado que está sendo criado um sistema de controle do recurso público através dos Conselhos de Saúde. A notícia, embora traga a importância destes mecanismos de controle social, não esclarecia de que tais Conselhos deveriam estar em pleno funcionamento desde a aprovação do SUS.

Page 79: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

68

solução de um caso antecipa a de outros semelhantes. Assim, a adjudicação

em um caso pode ter conseqüências em muitos outros semelhantes,

podendo-se pôr em dúvida se haveria necessidade de um processo judicial

completo para cada caso ou se bastaria uma decisão seguida do

reconhecimento dos casos individuais como participantes da mesma classe (o

problema da extensão da res iudicata). Um tipo ideal de conflito, assim, é o

das relações consumidor/fornecedor. Para complicar as coisas, os indivíduos

pertencem simultaneamente a grupos distintos: um consumidor de sapatos é

um fornecedor de serviços financeiros. Não apenas na esfera do direito

privado a "coletivização" é visível. Também no direito penal: a impunidade

vigorante no Brasil traz a marca do coletivo. Não é uma pessoa que passa

impune, mas uma classe, grupos inteiros jamais são punidos. Não apenas

deixam de ser punidos os responsáveis por crimes tradicionais e cometidos

individualizadamente Há os crimes novos, as fraudes mais diversas,

cometidas por grupos organizados, como prática comum em certos setores,

ou o dano causado ao patrimônio comum histórico, ambiental, urbano etc.)

(1994).

Temos observado que a dinâmica social e as mudanças estruturais trazem

impactos que distanciam os sujeitos de seu reconhecimento enquanto parte da

coletividade. Porém, se estes sujeitos percebem que outros também tiveram seus

direitos violados, pode-se fomentar uma luta maior, coletiva. Como exemplo, podem-

se verificar os direitos relacionados às conquistas das relações homoafetivas, seja

quanto aos direitos patrimoniais, seja quanto ao direito à maternagem/paternagem

por meio da adoção de filhos. As decisões jurídicas que favorecem o

reconhecimento desses direitos podem favorecer outras reivindicações.

Page 80: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

69

Piovesan, Promotora de Justiça, expressa esse tipo de ação:

Nós temos também, paralelamente, que obter ganhos na Justiça, lidar com

casos paradigmáticos, exemplares, que possam criar jurisprudências

inovadoras. Tentar um encaminhamento da mesma maneira que fizeram os

portadores de HIV, até porque eles não podiam esperar a criação de uma lei,

então entravam com processos na Justiça. Depois, muitos ganhos de causa

permitiram que isso fosse universalizado por lei. O caminho dos direitos

humanos é duplo: no Legislativo e no Judiciário.22

Nesse sentido, a dinâmica da vida e a ampliação do exercício dos direitos de

alguns sujeitos são reiteradas na esfera judiciária, trazendo o costume como uma

fonte do direito.23 Se antes podíamos deparar com a alegação de que fatos como o

reconhecimento da convivência afetiva dentre pessoas do mesmo sexo ou a adoção

de crianças por este mesmo grupo seriam atos contra os costumes, hoje temos visto

o avanço no respeito à diversidade, quando a mesma situação é entendida como

costume que deve ser fonte para ampliar direitos.

Nesta problematização é preciso aprofundar a questão da interpretação da

realidade e da ideologia que a substancia. Conforme Warat:

A ciência social e jurídica, que aparece como suporte indiferente das relações

de poder, faz surgir, no entanto, uma instância ideológica, sobretudo e na

medida em que atribui significações discutíveis de realidade social, projetadas

imaginariamente como possíveis e desejáveis, ainda que nem sempre 22 Entrevista realizada em 12/10/2002 retirada da revista eletrônica EmCrise. http://www.emcris.com.br Acesso em 06 abr. 2004. 23 Fonte de Direito podem ser as leis,as jurisprudências, as Doutrinas e os costumes

Page 81: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

70

factíveis, plasmando-as em discursos reificantes, a-históricos e com

pretensões de generalidades e universalidade (1988, p. 33).

É nesse contexto de análise que se insere o Serviço Social como uma das

profissões que participa da divisão sócio-técnica do trabalho e, no caso desta

pesquisa, inserida no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. É notável o

crescimento de situações que, por não terem sido respondidas pelas políticas

públicas, pela sociedade e pela família, acabam por ser apresentadas ao judiciário.

Considerando esse cenário, é necessário indagar se o trabalho especializado do

Serviço Social tem se posicionado criticamente diante dessa realidade e apontado

alternativas para a efetivação dos direitos. Faria (1991, p. 83) observa que a

realidade contemporânea apresenta novas formas de conflito, geradas em grande

parte pelos interesses do capital, e que “[...] a dogmática jurídica vai sendo obrigada

a assumir tarefas com dimensões ignoradas pelo liberalismo político que a inspirou”.

Lopes (1998, p. 113) provoca a reflexão questionando se os direitos sociais

seriam subjetivos. Referindo-se ao antigo Código Civil demonstra em seus

argumentos que a cada direito corresponde uma ação, que o assegura. Assim, a

falta de tutela, ou a falta de ação disponível, significa de fato a inexistência ou a

inexigibilidade do direito subjetivo. Outrossim, afirma que os direitos sociais

compõem uma classe de direitos destituídos de tutela. Por esse caminho, pergunta:

“Quais as ações que asseguram, garantem e viabilizam tais direitos sociais? A quem

corresponde o dever reflexo respectivo? (sic!)” Tal indagação

Page 82: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

71

coloca-se na esfera da teoria geral do direito, pois trata do ordenamento de

modo geral e de uma categoria jurídica em si, antes de ser um instituto

jurídico particular. Coloca-se também na esfera da Teoria do Estado, pois diz

respeito às relações fundamentais da organização da cidadania.

Do ponto de vista prático, o tema é de relevância extraordinária para os

profissionais do direito: uma enorme série de questões hoje discutidas nos

tribunais, nos órgãos legislativos e na administração pública tem a ver com os

direitos sociais. O despreparo jurídico para lidar com o tema, no entanto,

parece tão grande quanto a gravidade das questões sociais brasileiras (1998,

p. 114).

Assim, a aplicação do Direito na contemporaneidade traz a exigência da

participação de outros atores na busca da efetivação da justiça.

É interessante e preocupante observar que mesmo os autores que tratam

dessas questões criticamente, pautados na perspectiva materialista-histórico-

dialética, conceituam e defendem suas reflexões compreendendo o Direito, o

Judiciário e a Justiça como assuntos de pesquisa e de trabalho exclusivos dos

chamados operadores do Direito (juízes, advogados, promotores de justiça,

procuradores de justiça, desembargadores). Porém, basta averiguar a realidade para

concluir que a instituição não caminha sem a atuação dos outros profissionais que

possuem e operacionalizam conhecimentos especializados de outras áreas (Serviço

Social, Psicologia, Medicina, Engenharia, Ciências Contábeis etc.) e sem o suporte

de outros trabalhadores (oficiais de justiça, escreventes, escrivãos etc.).

Page 83: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

72

Problematizar se a Justiça é um assunto exclusivo dos operadores do Direito

é necessário para pensar o alcance e a efetividade da legislação vigente. Nas

palavras do importante jurista que debate essa questão, pode-se identificar parte

deste desafio:

A utopia faz sempre apelo à justiça. O ceticismo burguês acabou com a

justiça, como acabou com a verdade. A luta eficaz dos marginalizados

recolocou a justiça no centro da discussão. [...] Não há propriamente justiça:

há o fazer justiça. [...] Fazer justiça para o status quo é cumprir a lei. Mas a lei

desconhece a utopia. [...] A lei é o contrário da utopia, se for tomada pronta.

Aplicar a lei dispensa a justiça (Faria, 1988, p.71).

Assim, a Lei pode não alcançar a complexidade das contradições sociais se

for aplicada conforme a concepção positivista. Não se pode negar que as mudanças

sociais não são realizadas necessariamente em direção a valores libertários e

humanizadores: assim, há também o risco de que as alterações nas leis sejam

reacionárias. Ainda que teoricamente não se possam aprovar leis que regridam às

anteriores, trata-se também de disputa ideopolítica que se expressa nas instituições

e nas normas legais. Um importante exemplo é o debate sobre a redução da

maioridade penal, sendo que até 2004 havia vinte e dois projetos de lei em

tramitação24. Embora, conforme exposto no capitulo anterior, o ECA tenha sido

24 Cabem alguns registros sobre um caso muito publicizado: em 2003 quatro adultos e um adolescente de 16 anos foram acusados por estupro e homicídio de um casal de namorados. Em julho de 2006 foi realizada a cobertura jornalística sobre o julgamento de três desses adultos, quando em todas as matérias jornalísticas era anunciado que, contudo, “o adolescente jamais será julgado porque o ECA não permite”. Na verdade, o adolescente foi internado na FEBEM logo ao ser

Page 84: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

73

aprovado no bojo das lutas sociais, é preciso persistir na sua afirmação, defesa e

implementação. O ECA afirma uma nova concepção, mas na sua realização se

confrontam resistências que representam os grupos que reconhecem na justiça

retributiva o único meio de solucionar conflitos sociais.

São essas as contradições, permeadas por inovações e resistências, que

trazem disputas na direção ética e política da sociedade. Assim, o grande desafio do

Judiciário é efetivar Justiça e não apenas aplicar a lei.

2.1. Transformações sociais e judiciário

Faria defende a

visão do direito como processo transcendente a questão relativa a fontes

formais do direito, pois os antagonismos, as clivagens e a transformação

rápida da sociedade de classes corroem, na prática, o monopólio da produção

jurídica detido pela lei. Logo, considerando o ordenamento jurídico como um

construído histórico, isto é, como um produto do universo cultural, em

permanente vir-a-ser, o jurista já não se concentra mais no exame de um

sistema de regras postas e transmitidas, mas sim, na busca de um direito in

encontrado; foi julgado e recebeu medida de internação de três anos. Portanto, a mídia apresentou os fatos de maneira distorcidas. A mídia, assim, distorceu os fatos visivelmente. Na ocasião do crime, uma ex-professora do adolescente disse algo como: “Ele era tão difícil que foi expulso da escola aos nove anos de idade”. Ora, realmente existisse interesse público a médio e longo prazo, e não apenas a reação imediata ao fato (que realmente foi um crime hediondo), teríamos no mínimo um amplo debate sobre a política educacional e a incompetência e incapacidade das escolas em trabalhar a sociabilidade, componente fundamental do processo pedagógico que priorize a formação do cidadãos para a vida. Vale salientar que o crime de Pimenta das Neves, que assassinou a namorada, e a absolvição do Coronel Ubiratan não provocou debates senão entre os defensores de Direitos Humanos. A mentalidade punitiva é tão arraigada que, ao invés haver maior engajamento social para se evitar que outros adolescentes tenham atos como o citado, a sociedade se mobiliza para pensar maneiras de punir. A punição, por lógica, viria após a ocorrência e, assim, o dano já teria sido causado.

Page 85: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

74

fieri: um conjunto de regras em movimento, sujeito a contínua produção e

reprodução, onde se destacam as forças extralegislativas e extra-estatais.

Com isso, o objeto da Ciência do Direito acaba sendo deslocado: em vez do

conjunto de valorações dos fatos sociais cristalizados em regras jurídicas, ele

é constituído pelos próprios fatos sociais dos quais as regras são meras

valorações (1988, p. 24).

Martha de Abreu Esteves (1989) realizou uma importante pesquisa que

investigou como o Judiciário carioca, nos primeiros anos do século XX, atuou em

relação a crimes sexuais, cujas vítimas eram em sua maioria mulheres pobres

violentadas por seus patrões. A pesquisadora verificou uma tendência de julgamento

moral, onde o crime contra a mulher tinha pouca evidência e, majoritariamente,

invertia-se a ótica em relação aos fatos, de maneira moralizadora, culpabilizando-a

pela violência sofrida. Abreu verificou nos casos estudados os padrões de

comportamentos e valores aceitos, que se expressaram, tendo como resultado um

certo entendimento de culpa e inocência daquela época. Um fator importantíssimo

foi o de que, em tal período, as mulheres que saíam sós de casa, sem o

acompanhamento de um homem (marido, irmão ou parente mais velho) ou da mãe,

eram mal vistas socialmente e isso, se em tal situação sofria uma violência sexual,

era alvo de um julgamento antecipado sobre sua culpa. Ora, e qual seria a solução

para as jovens solteiras que precisavam trabalhar para o seu sustento e de sua

família? Além disso, era comum viverem como agregadas da família para a qual

realizavam serviços domésticos. No entanto, essas condições de vida eram pouco

consideradas e o aparelho judiciário somava, nesse contexto, várias funções

moralizadoras e de controle: controlava a moral dos pobres, estabelecia normas

sexuais e padrões para o comportamento feminino, justificando os atos violentos

Page 86: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

75

cometidos por homens. Além disso, controlava também os nascimentos ilegítimos

(gerados sem a união formal, ou de homens casados com jovens solteiras) e até

preservava o direito dos homens para que não tivessem de assumir mulheres

desonestas como esposas. Isto porque o casamento era uma correção possível

caso fossem condenados pelo defloramento ou ofensa às mesmas. Todos esses

componentes eram aceitos visando a manutenção da ordem social defendida na

época.

O estudo de Abreu, ao tratar de situações ocorridas no início de 1900, traz

elementos que demonstram o quanto os valores sociais e a ideologia direcionam as

instituições e as práticas sociais.

Seu estudo expressa, ainda, que os fatos analisados devem ser considerados

dentro do contexto sócio-político, diante do desenvolvimento econômico, social e

cultural, bem como das forças sociais que se enfrentam para consolidar

hegemonias. Sem articular a forma de manifestação desses fatos às determinações

maiores podem-se tecer afirmações insuficientes, superficiais ou, pior, serem

estabelecidas não em função do conhecimento, mas com o propósito de justificar

situações de opressão, exploração e outras expressões de violência.

Os estudos de Faria têm buscado explicitar os danos à sociedade quando não

se articulam esses elementos:

O resultado desse conhecimento alienante é conhecido: a formação de um

conjunto de idéias gerais, proposições falsamente científicas, juízos éticos e

pontos de vista hegemônicos, todos contribuindo para a consolidação de um

Page 87: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

76

discurso aparentemente objetivo, técnico, ideologicamente depurado e capaz

de provocar efeitos de realidade e coerência, de projetar uma dimensão

harmoniosa das relações sociais e de justificar a imposição de um padrão

específico de dominação com base na “natureza das coisas”. Além de

conciliar retoricamente as contradições sociais, esse “senso comum” dos

juristas também influi decisivamente tanto na definição dos “verdadeiros”

problemas da Ciência do Direito quanto nos seu possíveis equacionamentos,

“resolvendo-os” com esquemas ideais destinados à eliminação das

antinomias, à integração das lacunas e à identificação dos casos de abuso de

direito (1988, pp. 25-26).

As produções de Faria são importantes por demonstrar que o direito positivo

tem sido também um dos fatores que levam ao descompasso do Judiciário frente às

graves situações que lhe são colocadas. Mas, é verdade que também os valores

quanto ao que é justo e ao que é esperado da instituição são motivo de reflexão. Por

exemplo, a forma com que é tratada, no Brasil, a maioria das pessoas que cometem

crimes causa espanto e indignação àqueles que recusam toda forma de violência.

Porém, pessoas que discursam exigindo justiça consideram, muitas vezes,

adequado esse tratamento, ainda que seja cruel, desumano e violador das

legislações e protocolos internacionais. Esta é uma representação de justiça que

está arraigada na cultura da sociedade brasileira. Chauí (2004) atribui essa

representação à constituição autoritária do Brasil como nação, que até hoje possui

trabalho escravo, tem agravada a superexploração do trabalho, prostitui meninas e

trafica seres humanos.

Page 88: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

77

Verificamos em estudos que alguns juristas têm sido importantes atores no

tensionamento pelo respeito aos direitos humanos, entendendo sua indivisibilidade e

a busca de uma atuação dos profissionais com visão crítica, que busque

compreender as contradições sociais existentes, defendendo uma sociedade sem

opressão. Shelma Kato, desembargadora do Tribunal de Justiça do Mato Grosso,

expressa bem este entendimento:

Só uma visão do direito voltada para a realidade social pode salvar o país e

impedir a desagregação de seu povo. Essa visão se dá através da

consciência crítica, que não pode ignorar as forças conflitantes a nível de

infra-estrutura, para que o capital, deificado em detrimento do suor humano,

não perpetue as injustiças a nível de superestrutura. [...] Através da visão

dialética, eminentemente crítica, o juiz coloca-se dentro da realidade social e

identifica as forças que produzem o direito, para estabelecer a relação entre

esse direito e a sociedade. Nessa postura, o juiz pode e deve questionar a

própria legitimidade da norma, para adequá-la à realidade social.

[...] Comprovado que o direito não é neutro; que a norma legal nem sempre é

o ponto de equilíbrio entre interesses conflitantes; que o poder muitas vezes

atua em benefício de uns em detrimento de muitos; que, no Brasil, a maioria,

constituída das classes trabalhadoras, está marginalizada e não tem acesso

aos bens da produção – em suma, que a ordem legal é injusta e opressora –

em que consiste a prática libertadora do advogado em função de seu

compromisso político? Ela se inicia pela defesa dos direitos individuais

violados emergentes nos conflitos motivadores da lide

[...] Mas a prática libertária só adquire dimensão social na medida em que

transcende tais limites e se manifesta coerentemente em todos os atos da

Page 89: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

78

vida do homem-advogado. O compromisso político refere-se aos atos da vida

pública e particular, e não à atividade política e profissional em si. Ele envolve

a prática da libertação das classes dominadas (Kato, apud Faria, 1997, p.

10).25

É uma tarefa árdua e coletiva desmistificar a afirmativa de que os conflitos

são gerados exclusivamente por comportamentos individuais, verificando as

complexas relações existentes entre os contextos social, econômico, político, cultural

e como trazem conformações imprevisíveis quando se trata de relações humanas,

tensionadas por carências e violações. Pode-se afirmar que é importante o trato

individualizado daqueles que cometem crimes, infrações, contravenções penais, mas

sem retirar esse sujeito do contexto mais amplo, saturado de determinações sócio-

históricas.

Diz ainda Lopes,

O que está em jogo é o conjunto de instituições básicas da sociedade: leva-

se ao Judiciário o conflito entre projetos distintos de instituição social, uns

conservando as discriminações sociais e pessoais, outros propondo uma

sociedade menos excludente e opressiva. Em outras palavras, o processo de

judicialização dos conflitos no Brasil está atravessado por demandas de

justiça dinâmica (alteração de regras), algo que só pode ser realizado

judicialmente na esfera da discussão da constitucionalidade de leis, atos e

25 CF KATO, Shelma Lombardi de. O advogado e o compromisso político da libertação. Revista dos Tribunais, 589, nov. 1984. apud Faria: Direito e Justiça: a função social do Judiciário-, p.10-9, 1997.

Page 90: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

79

políticas públicas. Além disso, está em questão a justiça distributiva

(realocação de riqueza e autoridade) (1994, p. 25).

Lopes considera, assim, que

trata-se de uma tensão permanente entre aplicação retrospectiva de leis

tradicionais em situações novas, gerais e que precisam de regulação (idem)

2.2. Direitos sociais e justiça

O percurso reflexivo acerca do direito e da justiça que se realiza nesta

pesquisa se insere nos limites da sociedade capitalista contemporânea. Assim, há

dois eixos analíticos que se cruzam: o primeiro, situado na realidade concreta, com

as contradições geradas pelo próprio sistema capitalista, nas relações de produção e

reprodução social e, um segundo, numa tentativa de buscar elementos para

aprofundamento do debate societário.

Tratando-se aqui de uma pesquisa científica, impondo-se a necessidade de

situar limites nas reflexões em curso, é também importante esclarecer algumas

questões com base na perspectiva societária anunciada no conjunto deste trabalho.

Para tanto, o texto “Socialismo Jurídico”26 pode trazer elementos para

fundamentar algumas questões que serão aprofundadas na análise dos casos

escolhidos. Este texto foi originalmente publicado em 1887, como resposta aos

26 Friedrich Engels e Karl Kaustky, 1995.

Page 91: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

80

ataques que Marx vinha sofrendo, e buscou construir uma crítica à ideologia jurídica.

Na apresentação da sua publicação brasileira, Naves sintetiza que:

A crítica à visão jurídica aparece, de modo ainda mais expressivo, na análise

que Engels e Kautsky realizam da passagem da concepção teológica de mundo

feudal à concepção jurídica de mundo burguês, na qual se revela a natureza

especificamente burguesa do direito, como forma social intimamente relacionada ao

processo de trocas mercantis (1995, p. 15).

Nessa crítica, os autores afirmam que as normas jurídicas criam

artificialmente uma igualdade – a jurídica – estabelecida em contratos, com regras

universais. Assim,

[...] Temos aqui alguns elementos que autorizam a formulação de uma

concepção crítica do direito, que permita denunciar o “fetichismo da norma”, e

se oponha à teoria normativista, para a qual o direito aparece somente como

um conjunto de normas garantido pelo poder coercitivo do Estado” (idem, p.

15)

Consideramos também importantes as reflexões de Pachukanis publicadas no

livro intitulado “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, originalmente publicado em

1924. Segundo ele, a Teoria Geral do Direito deve trazer explicações tanto sobre o

conteúdo como sobre as formas jurídicas, enquanto produtos históricos. Refletindo

principalmente sobre o conteúdo da regulamentação jurídica frente a uma

determinada época, pondera que:

Page 92: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

81

[...] não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o

conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas

históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a

regulamentação jurídica como forma histórica e determinada. (1988, p. 21)

Pachukanis provoca a reflexão sobre a necessidade de aprofundamento não

sobre o que chamou de “fenômeno jurídico”, mas no sentido de desmistificar quais

são as determinações que criam vínculos no conteúdo do direito, os quais têm

influência na conformação da estrutura do sistema jurídico.

Frente a essas reflexões na perspectiva do projeto socialista, em alguns

momentos da presente pesquisa colocou-se num impasse o avançar das reflexões,

dado que, em função dessa perspectiva de análise, evidencia-se o papel

conservador do Judiciário, onde há uma ilusão de que a norma jurídica efetiva o

direito, e mascara-se o conflito coletivo como sendo individual. A angústia era a de,

ao realizar a investigação proposta, não visualizar saídas em direção aos valores

emancipatórios.

As análises macrossocietárias direcionaram as reflexões sobre essa atuação,

levando a questionar se realmente é possível uma ação profissional não focalizada,

pontual e fragmentada nos casos atendidos no Judiciário. É evidente que existe a

atuação na defesa dos direitos sociais, fundamentando suas interpretações e

intervenções na leitura sobre as determinações socioeconômicas. Tem sido buscado

pelos assistentes sociais o exercício profissional de forma articulada à defesa de

outra sociedade, “sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero”.27 Porém,

27 Um dos Princípios Fundamentais do Código de Ética do Assistente Social

Page 93: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

82

nestas indagações, permanecia a angústia de que, ao atuar na dinâmica dos litígios,

o assistente social estaria apenas amortecendo situações crônicas.

Mezsáros expressou uma formulação bastante esclarecedora sobre as

possibilidades e os limites da atuação crítica, ainda que inserida no atual sistema:

O radicalismo metodológico da abordagem marxiana e sua importância para a

época em que se originou são determinados pela profunda crise de uma

ordem social cujos problemas só podem ser solucionados por uma

reestruturação radical da própria ordem social, nas suas dimensões

fundamentais. Na falta de uma tal solução, podem-se apenas manipular,

“pouco a pouco”, as contradições socioeconômicas em questão e suas

manifestações ideológicas, adiando temporariamente a erupção da crise

iminente sem, no entanto, instituir um remédio estrutural adequado (2004, p.

307).

Assim, os profissionais que “manipulam pouco a pouco” as situações

cotidianas, têm o desafio de viabilizar o acesso aos direitos dos cidadãos que

atendem no judiciário. Se, por um lado, atuam cientes de que muitas vezes realizam

ações que afetam o emergencial, o imediato e o superficial, por outro, há uma série

de mediações que se realizam nesse fazer profissional comprometido com a

emancipação dos sujeitos. Sem esta percepção, pode-se recair num discurso

messiânico (que também apenas traz falsa resolução) ou na inércia intelectual e

política.

Page 94: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

83

Outro debate necessário é a institucionalização do conflito por meio de

mecanismos do Estado, em que persiste a mesma ilusão jurídica de igualdade, pois,

na verdade, quando a luta de classes se expressa no terreno jurídico,

[...] a luta já está antecipadamente ganha pela burguesia, já que o

funcionamento do direito implica necessariamente a reprodução das relações

sociais burguesas.

Essa legalização das lutas de classes significa que as formas de luta do

proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que o

direito e a ideologia jurídica estabelecem (Naves, 1995, p. 16).

Analisando a inserção do Serviço Social nesses enfrentamentos teórico-

metodológicos e político-ideológicos, pode-se afirmar que sua contribuição pode ser

a de explicitar as severas contradições da realidade. Desde sua inserção, o Serviço

Social contribui cotidianamente na realização das funções do Judiciário e traz

influências para o atendimento dos cidadãos (embora nem sempre garantindo a

democratização, reafirmando burocracias). Na vigência do ECA os profissionais das

equipes técnicas têm participado, embora com pouca expressão numérica, mas de

forma representativa, nos debates sobre as políticas públicas e legislações. Como

exemplo, temos a atuação da AASPTJ-SP com outros atores como representantes

do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, do

Ministério Público, do Núcleo de Pesquisas sobre Criança e Adolescente, do

Conselho Regional de Serviço Social, dentre outras várias organizações, no debate

sobre o Projeto de Lei que dispõe sobre Adoção. Este coletivo verificou que, embora

esse Projeto afirmasse pretender garantir a convivência familiar por meio da adoção,

na verdade acelerava a destituição do poder familiar. A Carta de São Paulo,

Page 95: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

84

resultado dos trabalhos desse coletivo, representou a posição deste Estado contrário

ao Projeto. Houve um olhar amplo, considerando aspectos da técnica jurídica, dos

fatores sociais, psicológicos, das pautas do movimento em defesa dos direitos da

criança e do adolescente na exigência do cumprimento do ECA e outras legislações

garantistas. Assim, evidencia-se a riqueza da articulação das forças junto com

outros atores coletivos e em espaços de luta política para além das instituições.

Essa conjugação de forças poderá viabilizar respostas para as necessárias

mudanças estruturais no “bom trato” da criança e do adolescente.

Outra contribuição importante foi a realização da pesquisa, na capital paulista,

coordenada por Fávero (2001), realizada por um grupo de assistentes sociais que

atuam no Tribunal de Justiça, sobre o rompimento de vínculos entre crianças e seus

pais (na maioria, apenas mães). Nesta pesquisa, que expressa o compromisso

técnico, científico e político dos profissionais, evidenciou-se a determinação sócio-

econômica para o desfecho da maioria dos casos, culminando na destituição do

poder familiar.

Os casos julgados permitem apreender um dos produtos gerados pelos

processos de trabalho no Judiciário, que envolvem diferentes atores. A atuação dos

operadores do Direito pode não apenas aproximar a lei à realidade social, mas pode

gerar jurisprudência e pautas para o debate sobre a Justiça.

Assim, se o Poder Judiciário é inerte, ou seja, atua somente sob provocação,

não só os operadores do direito, mas os profissionais já citados têm o papel de

trazer à tona elementos que expliquem os conflitos postos nos autos, não em si

Page 96: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

85

mesmos, mas na processualidade histórica da sociedade e na forma com que

impactou e foi vivenciada por sujeitos sob essas mesmas determinações. Trata-se

do desafio de explicar como e por quê sujeitos determinados agiram desta ou

daquela forma, por haver determinantes sociais das suas condições objetivas e

subjetivas, impostas pela produção e reprodução das relações sociais nos marcos

do capitalismo contemporâneo.

É fundamental recusar a perspectiva de análise psicologizante28 dos conflitos

e contextualizá-los no universo macrossocietário, nas suas dimensões políticas,

econômicas, sociais e culturais, todas construídas no processo histórico. Ou seja,

embora as questões subjetivas sejam também determinações, são decorrentes das

condições objetivas postas na produção e reprodução social. Aos assistentes sociais

e psicólogos cabe articular as dimensões socioeconômicas e subjetivas vivenciadas

pelos sujeitos.

Naves, ao refletir sobre o texto “Socialismo Jurídico”, na apresentação desta

obra, explicita uma das significativas contradições e ilusões colocadas pelo

ordenamento jurídico burguês:

A emergência da categoria de Sujeito de Direito vai possibilitar, então, que o

homem circule no mercado como mercadoria, ou melhor, como proprietário que

oferece no mercado a si mesmo (1995, p. 16).

Enfim, entende-se, com fundamento na teoria social de Marx, que não é

possível avançar na construção de uma sociedade igualitária, com divisão de

riquezas e partilha de oportunidades, nos marcos do capitalismo. O Código de Ética

28 Este termo é utilizado quando se refere ao sentido vulgar e mistificador dos conhecimentos da Psicologia, que já foram utilizados em outros momentos desta ciência para culpabilizar indivíduos

Page 97: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

86

do Assistente Social traz o conceito de democracia de forma muito clara: é a

socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida.

Com base no pensamento histórico-dialético, Naves expressa um grande

desafio:

Toda a complexidade da questão reside em que a classe operária deve

apresentar demandas jurídicas ao mesmo tempo em que deve recusar o

campo jurídico. [...]

As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento

desestabilizador que “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica

(1995, p. 19).

Portanto, enquanto não é possível uma outra ordem societária, as lutas

devem ocorrer de forma permanente, tensionando e alterando as relações, nas suas

mais básicas às mais complexas determinações.

2.3. Criança e Adolescente: assunto de Polícia ou de Política Pública?

As reflexões desta pesquisa transitam pela defesa dos direitos da criança e

do adolescente. Por isso, é necessário levantar alguns elementos históricos para

maior aprofundamento analítico.

No decorrer da história da humanidade é possível identificar algumas

tendências de análise e atendimento em relação ao segmento infanto-juvenil.

Page 98: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

87

O jurista Edson Seda29 fez uma elaboração na perspectiva dos defensores

dos direitos dessa população e do processo democrático e participativo, que tem

atuado nessa direção:

O Estatuto [da Criança e do Adolescente] reflete o momento histórico

brasileiro e cada detalhe das suas exigências reflete, por sua vez, algum tipo

de mazela por que passa nossa população infanto-juvenil. Quanto mais ele

parece exigente em suas normas, mais ele espelha a falta de atendimento de

direitos de seus destinatários, seja pelo mundo governamental, seja na

própria trama das relações interpessoais. Sua aparência de lei boa demais

para o Brasil de hoje é o retrato em negativo do que ocorre à nossa volta!30

(s/d)

Comparando os dados de pesquisas sobre a criança e o adolescente,

principalmente os que se encontram em situações de vulnerabilidade, é possível

afirmar que historicamente a política social voltada a este segmento esteve

relacionada ao assistencialismo e à justiça.

29 Jurista, procurador federal aposentado. 30 O novo direito da criança e do adolescente. s/d. http://www.edsonseda.com.br

Page 99: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

88

2.3.1. Política Social, Justiça e a infância vulnerabilizada: assistir para prevenir

Observa-se na história do desenvolvimento da sociedade ocidental uma

diversidade no trato que foi dado à criança vulnerabilizada, principalmente a que vive

em situações de pobreza e abandono. Porém, também se incluem naquela condição

as com deficiências físicas, mentais ou múltiplas, com doenças crônicas, e também

as que foram abandonadas devido a fatores de ordem moral (gravidez indesejada

causada por incesto, abuso sexual, “relacionamento extraconjugal”, “fora do

casamento” etc.) que ocorreram também entre famílias abastadas financeiramente.

Um aspecto relevante é que nos últimos séculos há uma permanência da

articulação entre o judiciário, a segurança pública e as práticas assistenciais

relacionadas à criança e ao adolescente.

Com o crescimento da população infanto-juvenil, que se avolumava com as

famílias que migravam para os centros urbanos devido à industrialização, começava

a haver um enfoque maior para o controle das crianças em abandono e que

cometiam pequenos delitos nas cidades.

[...] no final do século XIX, os juristas deixaram seu campo de atuação

tradicional e entraram decididamente no setor da infância desvalida e

delinqüente (Marcílio, 1998, p. 194).

Page 100: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

89

Naquela ocasião, fundamentavam-se as análises jurídicas em Lombroso,

criminologista que pautava que as “tendências naturais” poderiam ser refreadas por

rigoroso controle e uma educação rígida; as idéias positivistas de Augusto Comte

ganhavam força na defesa de profissionais e da sociedade de que a “infância

problemática, desvalida e delinqüente” deveria ser separada em instituições totais

para correção de seus comportamentos.

Assim,

Medicina e Direito reelaboram, então, suas propostas de política assistencial,

enfatizando a urgência na reformulação das práticas e de comportamentos

tradicionais e arcaicos, com o uso de técnicas “científicas”. Seus adeptos

criticavam a velha assistência caritativa e davam ênfase à cientificidade da

filantropia [...] (idem, p. 195).

Contudo, essa defesa era de enfoque higienista, como parte constituinte de

uma intervenção junto ao “problema das crianças”. Nessa fase é cunhada a distinção

entre “criança” e “menor”, sendo esta categoria utilizada até hoje, no sentido

pejorativo e discriminatório.

Do início do século, quando se começou a pensar a infância pobre no

Brasil, até hoje, a terminologia mudou. De “santa infância’, “expostos”,

“órfãos”, “infância desvalida”, “infância abandonada”, “petizes”,

“peraltas”, “menores viciosos”, “infância em perigo moral”, “pobrezinhos

sacrificados”, “vadios”, “capoeiras”, passou-se a uma categoria

dominante – menor. O termo menor aponta para a despersonalização e

Page 101: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

90

remete à esfera do jurídico e, portanto, do público. (Moncorvo Filho

apud Marcílio, 1998, p. 195).

Essa despersonalização possibilitou a intervenção ainda maior sobre tais

crianças enquanto objetos de intervenção.

A filantropia foi reforçada nesse período, em que a caridade foi repensada

com fundamentos mais humanistas, mas que, por suas características próprias,

foram (e são) incapazes de ter impacto na sociedade.31

No decorrer da história, inúmeras estratégias foram desenvolvidas e um

exemplo que perdurou por séculos foi a Roda dos Expostos, criada em Roma em

1471, mecanismo que teve sua concepção principalmente pautada na defesa da

ordem, da moral e do desenvolvimento das nações (MARCÍLIO, 1998). Combateria o

aborto e o infanticídio, bem como era uma forma de preservar a moral das famílias

cujas mulheres “erraram”.

Contudo, justamente os médicos higienistas começaram a combater a roda

dos expostos, que acabavam por “esconder” o que a sociedade não poderia tolerar,

que eram as mudanças dos costumes tão defendidos. Observou-se também que

havia um altíssimo índice de mortalidade das crianças das Rodas, por serem mal

cuidadas tanto naquelas casas, quanto pelas amas, fora dali. Alguns arquivos

demonstram que crianças também faleceram por falta de estimulação, ou seja, por

privação afetiva fundamental para o desenvolvimento infantil. Associando tais fatos,

31 Saliente-se que a solidariedade é um valor importante para a sociedade, mas com tal natureza, não pode consolidar direitos e ainda retira-os da arena do coletivo e do social.

Page 102: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

91

os higienistas propuseram uma estratégia de combate à mortalidade infantil e ao alto

índice de nascimentos ilegítimos: a educação das mulheres.

Esta é outra marca persistente na política social: o papel atribuído à mulher

na proteção dos filhos e na prevenção do abandono e do crime. Há uma ênfase em

responsabilizar a mulher, a partir do enfoque mítico do amor natural maternal, sem

problematizar a construção histórica dessas relações. A cultura machista perpetuada

também por essa desresponsabilização do genitor é comum até os dias atuais,

quando enfrentamos o impacto da reestruturação produtiva e todas as suas

conseqüências nas relações sócio-familiares.

As Rodas foram extintas na Europa, mas aconteceram resistências no Brasil.

Uma das primeiras vozes contra a Roda no Brasil foi a do presidente da província do

Rio Grande do Sul, em 1858, quando se pronunciou contra a mera conveniência da

sua preservação. Somente em 1920 o enfrentamento conjugado de médicos e

juristas ganhou força. Em 1927 é aprovado o Código de Menores, que em seu artigo

15 tratava da extinção do sistema das Rodas.

Outra figura significativa nesse processo foi o médico provedor da Santa Casa

de São Paulo, que elaborou em 1932 “um longo e erudito relatório que demonstrava

que a Roda não trazia benefício algum para ninguém” (Marcílio, 1998, p. 200). A

Roda dos Expostos no Rio de Janeiro foi extinta em 1938; as últimas no mundo a

serem extintas foram as da Bahia e de São Paulo, esta em 1944, portanto, 17 anos

após a aprovação da Lei que as extinguia.

Page 103: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

92

Vale ressaltar que no século XIX foram criados inúmeros “asilos” para abrigar

“crianças expostas”. No caso das meninas, estas recebiam educação geral, “prendas

domésticas” e aulas de artesanato, com o intuito de serem preparadas para agirem

“como boas mães” (ou seja, alimentar e prevenir a mortalidade ou o abandono). Os

recursos obtidos com a venda dos artesanatos eram aplicados em dotes para

promover seus casamentos. Os meninos também recebiam educação geral, mas

com ênfase na sua profissionalização em atividades de oficinas e agricultura. Esses

“asilos” não atendiam somente crianças expostas e órfãs, mas aquelas oriundas das

famílias pobres, sendo estas consideradas incapazes de educar e formar um

cidadão. Reforçava-se a concepção de abrigos como instituições totais, preparando

as crianças para o mundo do trabalho, combatendo a ociosidade, a prostituição, o

crime e o abandono.

2.3.2. O bem-estar do menor

Rizzini (1993, 2004) resgatou que o Juízo de Menores no Brasil foi criado em

20/12/1923, pelo decreto nº 16.272, o qual estabeleceu uma nova prática jurídica em

relação ao “menor”. Este era examinado e qualificado, por meio “de ‘pedagógico’,

‘médico-pedagógico’, ‘médico-psicológico’, ‘de discernimento’ e de ‘qualificação do

menor” (1993, p. 83). Esses procedimentos permitiam enquadrá-lo conforme suas

características morais, físicas, sociais, afetivas e intelectuais. O objetivo era chegar a

Page 104: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

93

um diagnóstico com caráter científico sobre sua “personalidade normal ou

patológica”.

Rizzini verificou que no decorrer da atuação do Juízo, gradativamente foram

se incorporando ao entendimento das “causas morais” da situação do menor

elementos relacionados com as mudanças, como problemas de ordem biológica

(hereditários, distúrbios físicos e psíquicos) e de desenvolvimento social (urbanismo,

industrialismo e pauperismo). Porém, a mesma autora identificou que o Juízo,

pautado nesses exames técnicos, depositava no indivíduo as causas de seu

comportamento, garantindo legitimação científica a uma prática de exclusão e

discriminação.

Essa autora, estudando o período de 1923 a 1941, identificou que houve uma

ênfase no uso técnico (como acima ilustrado) e doutrinário. Neste caso, evidenciou-

se nos textos doutrinários a presença de explicações da medicina, da psiquiatria e

da psicologia. Porém, sua pesquisa verificou que um juiz (Sabóia Lima) havia

denunciado que, ainda que se conseguisse realizar tais diagnósticos, havia outro

problema: que as instituições onde se internavam as crianças e adolescentes não

seguiam as prescrições lá indicadas. Ou seja, já havia a lacuna entre a orientação

de tratamento e o atendimento efetivo, seja por falta de qualificação, seja por

ausência do recurso para tanto. Vale salientar, contudo, que, apesar dessas

considerações, o enfoque era a da “reforma do menor”, realizada a partir de

conhecimentos científicos que a justificariam. Tal perspectiva se configurava numa

prática discriminatória e de reclusão de crianças e adolescentes, sem qualquer

direito a garantias processuais e de defesa.

Page 105: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

94

O Código de Menores de 1927 tinha como eixo o controle da infância e da

adolescência abandonada e em risco, “potenciais delinqüentes”. Neste Código, o

Juiz de Menores tornou-se a maior autoridade, cabendo-lhe o duplo papel de

fiscalizar e punir. Para apoio dessa ação do judiciário, foi criado o SAM, Serviço

Nacional de Menores, voltado à assistência ao “carente” e ao “infrator”.

Novamente pressionado pela tendência internacional e pelo agravamento da

situação “dos menores”, o Brasil precisou rever a forma de proteção à criança e ao

adolescente. Em 1964, sob o regime militar, foi aprovada a Fundação Nacional do

Bem-Estar do Menor, Funabem. Ao final de 1970, também com fortes

tensionamentos políticos no contexto nacional, foi aprovado o Código de Menores de

1979, tendo como desdobramentos a ênfase na família e a criação das FEBEMs nos

Estados e outras entidades similares. É importante considerar que muitas entidades

que assumiram essa intervenção já existiam no século anterior, tanto com natureza

pública quanto privada. Assim, a FUNABEM ditou a política no combate à situação

dos abandonados e infratores, fortalecendo o controle fiscalizador e repressor do

Estado.

Sem uma política que realmente enfrentasse as causas deste cenário e com a

pobreza crescente nos centros urbanos, a sociedade civil, vendo a pouca efetividade

dessas ações, começou a se organizar. Além disso, os procedimentos no

atendimento das FEBEMs motivaram questionamentos de organizações de direitos

humanos, lideranças populares e da Igreja. Com a redemocratização do Brasil, essa

mobilização manteve-se em torno da defesa dos direitos da criança e do

Page 106: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

95

adolescente, bem como de políticas públicas para a família. Decorrente dos debates

da Constituinte e da Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente,

foi aprovado no Brasil o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.

2.3.3. A era do ECA

O Estatuto da Criança e do Adolescente resultou do entrelaçamento de três

vertentes que, raramente, se entrecruzaram com tanta felicidade na vida

brasileira: o

movimento social, o mundo jurídico e as políticas públicas (Edson Sêda)

A história demonstra o quanto tem sido difícil tratar da questão da infância,

principalmente a que sofre todos os tipos de violações. Por um lado, há a face

punitiva, a tutela caritativa e paliativa realizada pela sociedade e pelo Estado, sem

uma política permanente que garanta os direitos fundamentais desde a gestação

das novas gerações.

O jurista, educador e procurador federal aposentado Edson Seda bem

conceituou acima o salto ético e político que o ECA representa. Porém, como tal, é

fundamental que o movimento social realize o controle para que esse marco político

seja efetivado.

Page 107: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

96

Para compreender as resistências à efetivação do ECA, é preciso levantar

alguns elementos da conjuntura brasileira, que nos demonstram graves cenários de

desigualdade e diferentes expressões de violência.

Segundo a pesquisadora Laura Tavares,

O Brasil é “campeão” em todos os quesitos relativos à concentração da renda:

a distância entre a renda dos 10% mais ricos com a dos 40% mais pobres é

de 32 vezes, enquanto que a média latino-americana é de 19,3 vezes; [...] e o

Brasil é o único caso da AL [América Latina] onde mais da metade da

população recebe uma renda inferior a 50% da renda média nacional. (Estes

indicadores permitem constatar o quanto a “era dos Fernandos” – Collor e

FHC – foi extremamente bem-sucedida!) (2004, p. 8).

Laura Tavares, analisando os relatórios de diferentes organismos

internacionais, cujo conteúdo aborda a pobreza na América Latina, observou que há

uma tendência de apontar como problemas dos seus países a incapacidade política,

as dificuldades de gestão, a corrupção. Assim, há inúmeras sugestões, desde

“aprender a votar nos políticos”, até regras de ajuste fiscal e mobilização social.

Diante disso, diz a pesquisadora:

Mas o que fazer com a pobreza enquanto o prometido “desenvolvimento

sustentável” não chega? Demonstrando a sua enorme “sensibilidade

social” com o aumento da pobreza (presente em todos os discursos recentes

dos presidentes desses organismos), eles estão dispostos a nos ajudar

através do “apoio” técnico e financeiro aos chamados programas focalizados

Page 108: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

97

de combate à pobreza. Estes programas também apresentam algumas

aparentes “inovações” através do que eles chamam as “boas práticas” ou

“práticas saudáveis” através de uma maior “participação da comunidade local”

que quase sempre significa uma redução de custos e a concomitante

ausência do Estado. Tudo isso com o pomposo e atraente nome de

“Modernização do Estado e fortalecimento da sociedade civil” (2004, p. 2).

Considerando a globalização e o aprofundamento da perspectiva da política

neoliberal, ao se avaliarem as atuais condições da infância e da adolescência, é

imprescindível articular esses vários elementos. Rizzini (2000) bem observou que a

política social sempre abordou a criança em risco, ou seja, focando um recorte da

realidade. Para pensar a infância e a adolescência na sua relação com a política

intersetorial, é preciso partir do reconhecimento de que esta população se encontra

em condição peculiar de desenvolvimento, é sujeito de direitos e tem prioridade

absoluta. Seu processo de sociabilidade demanda o fortalecimento e a garantia do

convívio familiar e comunitário, reconhecendo suas trajetórias e culturas.

Neste sentido, a política pública deve agir para afirmar essa concepção e

combater as violações. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – estabelece

a política de atendimento (art. 87) e a Constituição Federal estabelece o direito à

participação popular na formulação e controle das políticas públicas (art. 204).

É inegável que há urgência de realizar uma proteção aos mais

vulnerabilizados. Porém, a historiografia que aborda o trato da infância demonstra

que a tendência de pensar a “situação de risco” acarreta as ações fragmentárias,

Page 109: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

98

residuais, emergenciais, que não possibilitam o enfrentamento das reais causas

desse cenário e, muito menos, a sua superação.

Com base nessas constatações, é bastante significativo levantar alguns

dados que ilustram essa realidade.

Segundo o Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada – IPEA (2003), em

2000 havia 57 milhões de pessoas com renda per capita mensal inferior a meio

salário mínimo. No mesmo ano, o Censo do IBGE levantou que existiam 60 milhões

de crianças e adolescentes entre 0 a 17 anos, representando 36% da população

brasileira. Desse universo, indicou que 45% viviam em famílias com renda per capita

inferior a meio salário mínimo. O mesmo censo indicou que as principais formas de

exploração do trabalho infantil são relacionadas à violência sexual, ao tráfico de

drogas, ao narcoplantio e aos lixões. De acordo com o UNICEF, em 2003 existiam,

no Brasil, 29 milhões de pessoas vivendo em famílias com renda até meio salário

mínimo, um milhão de crianças entre 07 a 14 anos fora da escola; 1,9 milhões de

jovens analfabetos; 2,9 milhões de crianças entre 05 e 14 anos trabalhando. Destas,

220 mil com até 14 anos são empregadas domésticas e 45 mil expostas nos lixões.

Nesse cenário é importante levantar outros dados alarmantes. O Brasil não

passou por guerras, mas tem, segundo pesquisa do IPEA, 80 mil crianças

abrigadas32 . Deste universo, o “Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e

Adolescentes”, abrangeu cerca de 20 mil crianças, abrigadas em 626 instituições,

em todas as regiões brasileiras. Destas, 589 oferecem programa de abrigo para 32 A metodologia desta pesquisa trouxe alguns problemas quanto à fidedignidade dos dados. Assim, é tomada aqui como levantamento ilustrativo, não sendo tomado como mapa absoluto, mas representativo principalmente quanto a alguns elementos qualitativos.

Page 110: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

99

crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, segundo a definição

adotada na referida pesquisa. Temos os seguintes percentuais de motivos de

abrigamento:

% Motivo

24,1 pobreza

18,8 abandono

11,6 dependência química

7 em situação de rua

Sobre os vínculos familiares observou-se percentualmente que:

% Situação

86,7 têm família

58 mantêm vínculo

5 são órfãos

É inegável que a manutenção de crianças nos abrigos é muito mais onerosa,

do ponto de vista financeiro e dos prejuízos emocionais que traz às crianças, do que

se houvesse ações voltadas para a melhoria das condições psicossociais das

famílias. Outro dado impressionante é que na ocasião da pesquisa apenas 54% das

crianças estavam sendo acompanhadas judicialmente, o que de certo modo vem

configurar uma espécie de cárcere privado, onde elas se tornam novamente objeto

da caridade. Há ainda resistência em criar mecanismos para dar suporte para que as

famílias possam assumir suas crianças e adolescentes.33

33 Há pesquisas importantes sobre este tema realizadas, dentre várias, por Marina França, Abigail Franco e Irene Rizzini

Page 111: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

100

No tocante aos dados sobre saúde e natalidade,34 segundo o Ministério da

Saúde, em 1999 mais de 50% das meninas, dentre 15 e 19 anos, de famílias com

baixa escolaridade, tiveram pelo menos um filho. De 1993 a 1998 aumentou em 31%

o número de partos de meninas entre 10 e 14 anos. 20% das mães brasileiras estão

na faixa de 10 a 19 anos. Assim, este cenário, considerado epidêmico pela OMS,

traz outros agravantes: graves riscos ao desenvolvimento e à saúde das mães

adolescentes, que têm na gravidez precoce o principal fator de morte; além disso,

são gerações que não vivenciam todas as fases de desenvolvimento e ficam

expostas a várias situações de risco. Outro fator decorrente, agravado pelas baixas

condições socioeconômicas e também pela falta de amadurecimento das jovens

mães (inclusive por terem deixado de vivenciar as referidas fases), é a colocação

dos filhos de adolescentes para adoção.

Nesse mesmo sentido, o planejamento familiar e a prevenção de DST/Aids

têm sido realizados ainda do ponto de vista do controle de natalidade e das

doenças. Excluem uma atenção que aborde os sentidos, o afeto, a sexualidade, os

projetos, o respeito, os direitos. A adolescente não é considerada um sujeito, mas

um corpo a ser preservado. Muitas vezes verificamos a falta de metodologia para

tratar do tema com adolescentes. O atendimento à gravidez da mãe adolescente

muitas vezes exclui o pai da criança, reproduzindo a mentalidade machista da

sociedade brasileira.

Vale ressaltar que a atenção exclusivamente no setor da saúde, sem se

considerar a fase peculiar de desenvolvimento de adolescentes mães e pais, acaba 34 Sobre o tema há um artigo importante de Regina Célia Tamaso Mioto, intitulado “A maternidade na adolescência e a (des)proteção social”. In: Revista Serviço Social e Sociedade nº83. p. 128-146. Volume Especial:Criança e Adolescente. 2005.

Page 112: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

101

por atender parcialmente a questão, focando mais na sobrevivência dos bebês, do

que na possibilidade de vivência da maternagem/paternagem dos jovens para uma

relação parental sadia, que lhes possibilite inclusive desenvolverem-se

emocionalmente. Assim, qual a possibilidade de mudanças a médio e longo prazos,

se não se investir também nas relações intergeracionais, nas figuras parentais e de

afeto e segurança? Neste sentido, os programas relacionados a adolescência,

sexualidade e saúde reprodutiva contribuirão favoravelmente, a médio e longo

prazos, se agregarem outros elementos. Novamente, verifica-se a importância de

não pensar apenas os riscos, mas as particularidades e potencialidades da

população infanto-juvenil para a consolidação de uma outra sociedade.

Outra face da atenção à adolescência é a da violência. Observa-se a

tendência de uma sociedade punitiva, que aponta o jovem como o problema da

violência. Segundo dados do Ministério da Justiça (apud Volpi, 2001), a cada 100 mil

habitantes adultos há 88 presos e, no caso dos adolescentes, a cada 100 mil

habitantes, 3 estão internados. Para este autor, há fatores que se conjugam: o

hiperdimensionamento do problema, a periculosidade dos adolescentes e o mito da

impunidade juvenil.

Costa (2005) afirma que para compreender esta situação é preciso menos

buscar o conjunto de normas em que foi socializado e focar mais a sua perspectiva a

partir da interpretação das normas. O que se observa é que, ao invés de buscar

compreender os fatores que motivam os comportamentos, tem-se focado a

organização dos órgãos de controle e punição. Como exemplo, temos o modelo da

Febem no Estado de São Paulo, que há décadas consome vidas e recursos

Page 113: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

102

públicos, buscando um pretenso aprimoramento, sem se pensar caminhos reais de

inserção social com dignidade, o vínculo familiar e comunitário, a efetivação dos

direitos fundamentais e o respeito à condição peculiar de desenvolvimento. Vale

ressaltar que a massificação não é contestada pelos defensores de Direitos

Humanos apenas por ser cruel com a maioria dos adolescentes privados de

liberdade, mas também por não ter nenhuma capacidade de atuar em relação aos

pouquíssimos casos de jovens que cometeram atos de extrema violência e daqueles

que são portadores de graves distúrbios de ordem psíquica. Dizem alguns críticos

que os adolescentes foram tornados números, mas nem isso o são, pois são

flagrantes os casos de superlotação de unidades.

Além disso, de uma maneira generalizada, jovens, universitários, profissionais

com especialização estão sem perspectivas, pois há uma grande competência em

superexplorar o trabalhador. Com a mídia alimentando os falsos valores de que há

lugar para todos, temos pessoas cada vez mais frustradas, sentindo-se

incompetentes, quando, na verdade, para a manutenção do sistema, é necessário

justamente maior concentração de poder político e econômico e exploração do ser

humano. Neste contexto, há um aumento da dependência química e de doenças

relacionadas à depressão e psicoses. Um país jovem, assim, tem imensa dificuldade

em construir um projeto de nação, pois seus sujeitos não têm condições de

vislumbrar horizontes diferentes.

Frente a esse cenário temos de pensar num processo permanente de

enfrentamento para a garantia e ampliação de direitos, tornando-o arena para o

exercício de participação política e afirmador de um projeto de gestão pública

Page 114: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

103

emancipatório. É fundamental garantir e valorizar os mecanismos de controle e

participação popular, como os Fóruns, Conselhos e Conferências. Cada vez que se

fragiliza a credibilidade nesses mecanismos, comprometem-se esses caminhos

construídos em uma longa caminhada. Cada vez que as instâncias democráticas

que garantem a participação social são desrespeitadas, há um enfraquecimento da

democracia participativa.

Tanto na Constituição Federal, quanto no ECA, na LOAS, na LDB, temos

afirmada a concepção de sujeito de direitos, da participação social e de novos

conceitos sobre a família, a criança e o adolescente.

Numa sociedade em que se reafirmam práticas mercantilistas, em que tudo

tem um valor de mercado, há pouco espaço voltado para a formação de novos

atores e de sujeitos coletivos. E é nesse sentido que a democracia participativa pode

trazer novas possibilidades de inserção e mobilização.

2.3.4. Enfrentar a questão social e pensar as próximas gerações

Somada à herança cultural da moral cristã (no sentido punitivo, segregador)

no trato da infância, atualmente a sociedade autoritária e conservadora ainda pauta

o controle dos pobres pela minimização das seqüelas do sistema político e

econômico, ao invés de buscar a superação dos entraves para o real

desenvolvimento social.

Page 115: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

104

Embora aparentemente pareça um raciocínio simples e de igual simplicidade

sua solução, a dificuldade para se enfrentar e superar o quadro nacional decorre

muito mais da existência de um projeto em pleno andamento, que se alimenta

dessas mazelas. A democracia somente poderá orientar a superação desse quadro

se efetivar a distribuição do poder e da riqueza socialmente produzida.

A democracia também deve ter instituições fortes, transparentes, com papel

definido e com controle da sociedade, para garantir sua efetividade. Se o Estado

está organizado em três poderes, sendo que o Executivo e o Legislativo são

compostos por representantes eleitos, é fundamental que a sociedade fiscalize e

acompanhe sua atuação. Porém, o Judiciário não sofre controle externo da

comunidade, apenas por seus próprios departamentos.

Portanto, ao discutir a atuação do Estado, é preciso confrontar a realidade

vivida cotidianamente no interior das instituições públicas, onde também se

expressam os conflitos da sociedade. Por exemplo, quando o Judiciário atende

situações de caráter social como se fossem matéria de conflitos judiciais, acaba

contribuindo para que o executivo não cumpra o que lhe cabe. Frente à constatação

de quem são os principais cidadãos envolvidos nos processos – por exemplo, na

área da Infância e da Juventude –, evidencia-se ainda mais o cunho punitivo e

controlador do judiciário em relação à população de baixa renda e de alta

vulnerabilidade social. Efetiva-se o mascaramento da realidade e a culpabilização de

uma determinada classe social. Esta situação não é simplesmente provocada por

intencionalidades de forma linear, racional e mecânica. Na verdade, no interior dos

Page 116: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

105

três poderes, há um emaranhado de questões políticas, institucionais e ideológicas

da sociedade capitalista.

Pelo exposto neste resgate histórico, é possível afirmar que o direito não se

viabiliza, porque também inexiste o pressuposto para isso, que são as políticas

públicas. Estas deveriam garantir os direitos fundamentais previstos na Constituição

Federal e nas demais leis que os regulamentam35.

Planejar e executar políticas públicas em consonância com as leis vigentes,

como o ECA, a LOAS, a LDB-Educação, a LOS,36 parecem inspirar receio por

apresentarem componentes de perigo para a disputa política. Isso porque essas leis

originam-se na nova Constituição Federal, que tem entre seus princípios a

participação social, de forma indireta e direta. É preciso defender, contudo, que

devem acontecer ajustes nessa legislação, mas sempre voltados para a garantia,

não para a revisão de conquistas sociais. Por exemplo, há críticas quanto à abertura

no caso da educação à perspectiva neoliberal, com possibilidades de flexibilizar

alguns deveres do Estado, bem como a exploração do mercado, que tornou a

educação uma rentável mercadoria.

Houve um avanço dos mecanismos democratizantes, mas estes têm sido

colocados em descrédito e, como desdobramento, os princípios que os sustentam. 35 Art. 6 São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar á criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 36 Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica da Assistência Social, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei Orgânica da Saúde.

Page 117: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

106

Talvez esta seja a pior questão: os pilares que lhes dariam sustentabilidade são

corroídos pelas práticas dos diferentes atores. Esta é uma situação que falseia a

importância e a possibilidade da participação social em prol da mudança da

realidade.

O crescimento do que se tem denominado de “terceiro setor” traz outros

desafios para os trabalhadores da área social, dentre os quais, o assistente social,

pois muitos profissionais estão atualmente envolvidos com a área social, mas sem

necessariamente terem uma leitura macro das determinações da questão social. Por

outro lado, na tendência do gerenciamento, há organizações diversas investindo em

pesquisa sobre indicadores sociais para o planejamento e execução de ações na

área social, adotando a lógica e um know-how da administração privada.

Sob o argumento da boa administração não-estatal efetiva-se a diminuição da

intervenção do Estado, que se desresponsabiliza e atribui à “sociedade civil” um

papel que não lhe cabe. Esta “sociedade civil”, por sua vez, também argumenta

sobre a inoperância do poder público, dando força à idéia da privatização dos

serviços.

A realidade mostra os fenômenos em sua superfície, sendo necessário buscar

a origem, os encadeamentos entre fatos e causas, bem como suas

interdependências. Por exemplo, voltando à pesquisa mencionada inicialmente,

coordenada por Fávero (2000), sobre os casos de destituição do poder familiar,

temos importantes análises. Daqueles 201 autos pesquisados, em 16,2% dos casos

a iniciativa de buscar o judiciário partiu da pessoa que, posteriormente, foi destituída.

Page 118: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

107

Outro dado importante é que do total das sentenças, 76,6 % das destituições

recaíram sobre mães e 23,4% sobre pais, evidenciando o aumento das famílias

mantidas pelas mães. Dentre os motivos da entrega ou destituição foram

identificados que em 47,3% dos casos a queixa principal era a de carência

socioeconômica, alegada pelo pai, pela mãe ou pelo guardião. 31,2% foram

motivados por abandono dos responsáveis, que deixaram a criança em entidades ou

com outros/terceiros, sem nunca mais retornar. Outros fatos, como gravidez

decorrente de estupro, mãe cumprindo pena ou sofredora mental totalizaram 7% dos

casos, sendo também um dado relevante. Um dado que mereceria maior estudo é

que 26,6% das mães eram brancas, 14,3% pardas, 8,4% pretas. Contudo, em 50,7%

dos casos não se mencionou esse dado.

Um dado alarmante é que nos autos, em 74% dos casos, nada consta em

relação ao acesso a programas de auxílio, sendo que em outros 22% dos casos não

houve acesso. 19,5% das mães estavam desempregadas e 10,4% eram do lar.

Destas, 23,4% não tinham renda, 5,2% tinham renda instável, 3,9% recebiam um

salário mínimo e em 59,8% nada constava sobre a renda. Em 71,4% não se

registrou informações sobre a moradia.

Tais estatísticas indicam uma tendência na fragilidade (negligência?) de

conhecimento sobre aspectos essenciais da trajetória e da vida daqueles que

serão julgados. A ação do judiciário deve basear-se sobre fatos concretos e

pelo que se constatou: que muitas famílias foram destituídas por estarem em

condições de vulnerabilidade socioeconômica. Outro dado alarmante é

pensar que em muitos casos o judiciário decidiu com informações parciais da

Page 119: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

108

realidade. O enfoque centrado na figura materna também sugere a importância de

se pensar as relações de gênero.

Não se pretende banalizar e naturalizar a ação violadora de pais e

responsáveis contra crianças e adolescentes. Contudo, para se construírem ações

impactantes na cultura sócio-política relativa à criança e à família, é fundamental

questionar, antes, a trajetória histórica das políticas públicas que perpetuam os

cenários acima tratados. Evidentemente há fatores de ordem subjetiva, mas

partimos do pressuposto de que esta sofre grande influência também das relações

concretas dos homens. De outro modo, poderão ser fortalecidas ações públicas de

controle e punição. A ausência das políticas públicas inviabiliza a efetivação dos

direitos, que aparentemente existem, mas são inatingíveis pela precariedade,

insuficiência e/ou inadequação das políticas, impossibilitando atingir os patamares

que levem à emancipação. As políticas públicas que garantem justiça social

deveriam ser mecanismos redistributivos das riquezas socialmente produzidas e

estruturantes de novas relações na sociedade.

São muitos os elementos que merecem maior investigação científica e

posicionamento político quando tratamos das expressões da questão social. No

caso da leitura aqui proposta, pensando no Serviço Social, é fundamental

desconstruir práticas profissionais que acabam por perpetuar a punição da pobreza

e construir novas alternativas, pautadas em princípios como transparência,

democracia participativa, justiça social.

Page 120: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

109

Da mesma forma é inaceitável que políticas sejam traçadas a partir de

especulações, devendo haver seriedade na construção de diagnósticos capazes de

melhor explicar a realidade, para nela intervir. Seja um laudo social apresentado ao

Juiz da Vara da Infância e da Juventude, seja um diagnóstico social de uma cidade,

tais ações podem apontar elementos reveladores dos conflitos e das lutas sociais,

indicando onde há necessidade de negociação ou rompimento. É fundamental que

nessa leitura crítica da realidade, que fundamenta o planejamento, a execução e a

gestão das políticas públicas, afirmemos uma nova cultura em relação à criança e ao

adolescente, enquanto sujeitos de direitos, pessoas em condição peculiar de

desenvolvimento (ECA). De outra forma, estaremos constantemente envolvidos em

políticas reformistas, ou pior, como temos visto, de contra-reforma, revendo

conquistas de lutas coletivas.

Pensar o trato da criança e do adolescente nos diferentes contextos sócio-

históricos levanta elementos para compreender os fundamentos e as práticas das

políticas públicas de atendimento a este segmento.

Tavares, ao refletir sobre a política social, coloca que esta deve deixar de ser

residual, vindo a representar

“uma alternativa real de cidadania para aqueles que certamente não terão

nenhuma condição de incorporar-se pelo “mercado”. Isso implicaria em perder

o medo (que persiste em muitos setores da esquerda) de pensar e reconstruir

o Estado como um espaço público e como uma alternativa democrática de

incorporação à cidadania das grandes maiorias que não têm voz nem poder

de pressão no âmbito da sociedade”. (2004, p. 8)

Page 121: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

110

Para não cair na inércia é preciso buscar caminhos teóricos e políticos.

Pensar a política social, a justiça e a nova cultura em relação à infância e juventude

pressupõe percorrer o caminho crítico-dialético para apreender as contradições,

conhecer a trajetória sócio-histórica deste tema, construir novas possibilidades, mas,

fundamentalmente, ter um horizonte para a ruptura de velhas práticas e a sua

superação.

Portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao estabelecer que as

decisões devem ser tomadas sempre no que for mais benéfico para a criança

sinaliza tanto a abordagem do caso particular, como generaliza o trato da

infância/adolescência como um valor fundamental para a construção de uma

sociedade. Nesse sentido, um enfoque que auxilia a pensar as conquistas e desafios

para a consolidação do ECA é assumi-lo como uma síntese ético-política, além de

marco legal, que agrega o anseio de realmente garantir uma infância e uma

adolescência plenas, reconhecendo que a humanidade precisa propiciar condições

de melhor desenvolvimento das novas gerações.

Page 122: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

111

CAPÍTULO III

Exercício profissional e produção de conhecimentos

A produção das idéias, das representações e da consciência está. em

primeiro lugar, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio

material dos homens; é a linguagem da vida real, [...] surge aqui como

emanação direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a

produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política,

moral, religião, metafísica etc., de um povo. São os homens que produzem as

suas representações, as suas idéias etc., mas os homens reais, atuantes e

tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das

forças produtivas e do modo de relações que lhes corresponde, incluindo até

as formas mais amplas que estas possam tomar.37

A humanidade produz, reproduz, reordena, sistematiza e reelabora

conhecimentos. Estes são construídos historicamente e atingem estatutos de maior

ou menor relevância frente aos problemas que consegue explicar e, principalmente,

superar. Nesse processo, a busca do saber é orientada por diferentes interesses e

37 Karl Marx. A ideologia Alemã. São Paulo, Hucitec, 1974.

Page 123: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

112

estes motivam, no seu processo, a luta por hegemonia. A produção do

conhecimento é, assim, uma expressão histórica permeada de mediações.

[...] a existência humana, histórica, real, concreta, se delineia como um efetivo

exercício de práticas produtivas, de práticas políticas e de práticas culturais

[...]. Em todas as esferas de sua prática, os homens atuam como sujeitos

coletivos. [...] Ainda que mediado pela ação singular e dispersa dos

indivíduos, o conhecimento só tem seu pleno sentido quando inserido nesse

tecido mais amplo do cultural.

O fundamental no conhecimento não é a sua condição de produto, mas o seu

processo. Com efeito, o saber é resultante de uma construção histórica,

realizada por um sujeito coletivo (Severino, 1998, pp. 51-53).

A prática profissional, como já assinalado, é uma dimensão da prática

social, construída historicamente. O Serviço Social, por sua vez, realiza a sua prática

profissional tendo como finalidade a intervenção social, a qual é evidenciada muitas

vezes ao serem dadas respostas urgentes a demandas postas no cotidiano. Assim,

acaba sendo identificada, por uma ação relacionada a esse imediatismo.

[...] os desafios postos no plano do imediato apontam para questões de

sentido estrutural, histórico e podem (devem) informar, na continuidade,

trabalhos mais conseqüentes (Baptista, 1995, p. 90).

Este é o desafio do Serviço Social nos diferentes campos sócio-ocupacionais.

Sua prática deve considerar a construção histórica da realidade, suas mediações,

mas, sobretudo, ter um horizonte delineado num projeto ético-político-profissional. A

leitura da realidade deve informar continuadamente o exercício profissional, dentro

Page 124: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

113

da perspectiva crítico-dialética, consolidando uma prática que cria e recria

conhecimentos, não apenas os reproduz.

[...] Quando, em nossa prática profissional, nos colocamos frente a um

desafio, este se mostra com uma face que, à primeira vista, nos parece a

única. Na verdade, essa face aparente oculta sua verdade essencial (idem, p.

91).

Diante dessas considerações, ao se tratar do tema aqui proposto, é

necessário aprofundar questões relacionadas às ideologias e às metodologias na

construção de conhecimentos e nas práticas sociais.

Nesse processo, se constrói uma identidade e uma representação sobre algo

que se legitima e se legaliza e assume um nome no contexto das profissões.

[...] Contudo, nesse processo de construção, as ações individuais dos

profissionais podem assumir, as mesmo tempo, as dimensões de síntese –

resultante do processo coletivo de elaboração de conhecimentos e práticas

desenvolvido pela categoria – e de criação de novas propostas e de novos

conhecimentos (ibidem, p. 117).

3.1. Ciência e expressões ideológicas

No resgate do histórico do Serviço Social no Judiciário foram citados

elementos sobre as mudanças na profissão, realizadas e sofridas no bojo das

transformações sócio-econômicas e políticas. As diferentes ciências, as quais dão

sustentação teórico-metodológica e instrumental às profissões, também influenciam

e são influenciadas pelas alterações dos novos conhecimentos no conjunto de seu

Page 125: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

114

conteúdo e/ou dos instrumentos e técnicas utilizados. Atualmente há um avanço no

campo tecnológico que não se limita às áreas das biológicas e exatas, havendo a

interdisciplinaridade e a “migração de tecnologias”.

Seguindo esse raciocínio, é necessário considerar que no campo das

ciências sociais há diferentes perspectivas teóricas para a explicação da realidade,

as quais expressam também posições ideológicas. O Serviço Social é uma profissão

que possui suporte teórico e instrumental a partir de diferentes áreas do

conhecimento científico, sobretudo nos campos das denominadas ciências humanas

e sociais. Por esse motivo, antes de avançar no estudo proposto, é fundamental

pontuar algumas questões sobre o conhecimento nestes campos e sobre as

ideologias.

Conforme Löwy,

[...] não existe a ciência pura de um lado, e a ideologia de outro. Existem

diferentes pontos de vista científicos que estão vinculados a diferentes pontos

de vista de classe. Existe, também, uma certa continuidade entre a obra de

Marx e a de Ricardo38, de Sismondi39 e de muitos outros, superando-as,

criticando-as, mas dando continuidade ao trabalho científico. Por outro lado,

há uma ruptura, um corte, introduzido pela ciência nova, que representa o

ponto de vista da nova classe (o proletariado), que é a crítica da economia

política de Marx (1985, p. 104).

38 David Ricardo, economista, “representa o máximo da consciência possível, porque ele representa o setor mais progressista dentro da burguesia do fim do século XVIII” Löwy, 1985, p.100. 39 “Sismondi foi um economista suíço do século XIX, para o qual Marx dá uma importância muito grande, porque ele é um dos poucos economistas, quase o único, que critica os fundamentos mesmo do capitalismo, que demonstra que o progresso do capitalismo produz necessariamente pobreza, desemprego, desigualdade social, exploração, crise etc..” Löwy, 1985, p.101.

Page 126: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

115

Recorremos a Chauí que traz outros elementos sobre a ciência, nesta

atual fase histórica em que, diante da reestruturação produtiva e da fragmentação

das lutas sociais, são usuais afirmativas sobre o fim da história e a busca por

soluções pontuais e superficiais, que não atuam sobre as reais determinações

históricas.

[...] Através dessa identificação entre racional e não-contraditório, a ciência

está, como ideologia, afirmando a não história. Ausência de historicidade e

ausência de contradição aparecem como expressões privilegiadas da

racionalidade. É nessa racionalidade que confiamos na medida em que

confiamos cegamente na ciência (2001, p. 33).

Chauí reflete sobre essa criação artificial “reinante na produção de todas as

representações”, explicitando como um tipo de ciência que visa a manutenção da

situação tem como aliados conteúdos ideológicos que a justificam.

[...] Com isso, a ciência mantém e reforça o desejo da ideologia de coincidir

com aquilo que é proferido pelo seu próprio discurso, pois o que ela profere

(como ideologia), ela mesma (como ciência) construiu (idem, p. 33).

Um exemplo terrível foram as experiências nos campos nazistas, que por

várias questões levaram ao genocídio, realizando ainda diversas experiências onde

seres humanos foram utilizados como objetos descartáveis.

Page 127: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

116

Lukács, no mesmo sentido, salientou a insuficiência de transportar o método

das “ciências da natureza” para compreender a realidade social. Porém, ressaltou a

necessidade de captar que tais medidas são premeditadas, pois há uma

intencionalidade em justificar o funcionamento da sociedade e do sistema capitalista

que lhe impõe forma e conteúdo. Nas suas análises reafirma a necessidade da

reflexão dialética para ultrapassar a análise superficial

O caráter ilusório desse método consiste em que o próprio desenvolvimento

do capitalismo tende a produzir uma estrutura da sociedade que previne tais

processos de pensamento; mas é precisamente nesse ponto e por isso

mesmo que precisamos do método dialético, para não sucumbirmos à ilusão

social assim produzida, para podermos entrever a essência por detrás dessa

ilusão” (1974, p. 20).

Sistematizando as reflexões produzidas por Marx, Lukács reflete sobre alguns

caminhos para a compreensão científica dos fatos.

[...] Portanto, se se pretender considerar os factos precisamente, convém

primeiro captar clara e exactamente esta diferença entre a sua existência real

e o seu núcleo interior, entre as representações que delas se formam e os

seus conceitos. Esta distinção é a primeira condição prévia a um estudo

verdadeiramente científico que, segundo as palavras de Marx, “seria

supérfluo se a aparência fenomenal e a essência das coisas coincidissem

imediatamente” [O Capital] Trata-se, por um lado, de destacar os fenômenos

da sua forma dada como imediata, de encontrar as mediações pelas quais

podem ser referidos ao seu núcleo e à sua essência e captados na sua

Page 128: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

117

própria essência e, por outro lado, atingir a compreensão deste caráter

fenomenal, desta aparência fenomenal, considerada a sua forma de

manifestação necessária. Esta forma de manifestação é necessária em razão

da sua essência histórica porque eles [os fenômenos] se desenvolveram no

campo da sociedade capitalista. Esta dupla determinação, este

reconhecimento e esta superação simultânea do ser imediato é precisamente

a relação dialética (1974, pp. 22-23).

Visto que em toda interpretação da sociedade há uma ideologia que a

subsidia, a Teoria Social de Marx traz uma denúncia dos conflitos gerados pela

relação capital-trabalho e, portanto, implica numa defesa societária, da qual não se

pode furtar.

Vieira, ao refletir sobre a política social, traz esta problematização:

Não existe método, mas métodos. [...] Tomem-se os casos daqueles que

interpretam a política social do ponto de vista do liberalismo ou do

materialismo. Quando isto acontece, embaralha-se conceito de cunho

marcadamente econômico e político com outro conceito de reconhecido teor

filosófico. Mas tal interpretação sugere a realidade de duas concepções

antagônicas de política social; aliás, sugere duas diferentes concepções de

mundo: o liberalismo e o socialismo (2004, p. 149).

Desde o fim do modelo socialista do Leste Europeu, fortaleceu-se a defesa da

impossibilidade de uma sociedade anticapitalista. A globalização, o avanço

tecnológico e a permanência e o agravamento de velhas violações de direitos

humanos, por outro lado, alimenta a reação despolitizada com o retorno a práticas

missionárias, agora sob a roupagem do voluntariado. Paradoxalmente, o capital

Page 129: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

118

utiliza desta tentativa de milhões de pessoas no mundo para seu próprio benefício.

O recurso público cada vez mais apropriado pelo próprio capital, na forma de

isenções fiscais devido aos projetos de “responsabilidade social”, se torna escasso

para as políticas públicas. Apesar das denúncias e protestos, não há sinais de que

haverá reorientação das ações governamentais voltadas ao capital produtivo,

mantendo-se o benefício ao capital financeiro. Ou seja, estas são evidências das

estratégias de manutenção e “aperfeiçoamento” do sistema capitalista. Assim, a

reestruturação produtiva se aperfeiçoa frente ao objetivo de acumulação e

expropriação. Ao mesmo tempo, há cada vez maior exploração e menos distribuição

da riqueza socialmente produzida. Autores como Meszáros (2004) explicam que as

crises cíclicas do capital fazem parte do seu próprio processo, posto que, após cada

crise, estabelecem-se novas estratégias, sem se alterar o objetivo da acumulação

predatória, onde são destruídas vidas humanas e a natureza.

Montaño descreve uma das tendências de “respostas” frente à questão social:

Essa tríplice modalidade de resposta à “questão social”, estatal, filantrópica e

mercantil, exige um processo que cumpre, como veremos, tanto uma função

ideológica quanto de viabilidade econômica (2002, p. 199).

Diante das graves contradições, combinam-se o apelo à solidariedade

(espontaneísta, despolitizada) e a “justificada” redução das responsabilidades do

Estado, que é, neste contexto, considerado ineficaz e incompetente para atuar e

enfrentar a realidade. Além de se pregar o Estado Mínimo, o mercado vai se

tornando árbitro do bem-estar social. Conseqüentemente, evita-se cada vez mais o

controle social e, portanto, diminui a possibilidade de exercício da democracia

Page 130: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

119

participativa enquanto valor e prática social necessários para a consolidação de

outra lógica na sociedade contemporânea.

Assim, o discurso da crise do Estado passa a agregar indistintamente os

diferentes atores que ingênua ou deliberadamente estão afirmando o Estado

Mínimo, que tem graves conseqüências imediatas, na vida dos sujeitos, e mediatas,

no projeto de país e de sociedade.

[...] O tema da crise serve, assim, para reforçar a submissão a um poder

miraculoso que se encarna nas pessoas salvadoras e, por essa encarnação,

devolve aquilo que parecia perdido: a identidade da sociedade consigo

mesma. A crise é, portanto, usada para fazer com que surja diante dos

agentes sociais e políticos o sentimento de um perigo que ameaça igualmente

a todos, que dê a eles o sentimento de uma comunidade de interesses e de

destino, levando-os a aceitar a bandeira da salvação de uma sociedade

supostamente homogênea, racional, cientificamente transparente (Chauí,

2001, pp. 37 e 38).

Por várias razões, portanto, apreender determinantes ideológicos

implicados nas metodologias possibilita maior compreensão da fundamentação e da

teleologia destas. Nas pesquisas sobre a realidade deve-se considerar que outras

determinações existem, bem como analisar a articulação dialética entre objetividade-

subjetividade.

Guerra, ao refletir sobre a “Ontologia social e formação profissional”,

tratando do Serviço Social nesta problematização, refletiu que na disputa entre as

Page 131: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

120

formas de conhecer e interpretar a realidade, os fenômenos sociais e naturais, tem

prevalecido o uso de correntes que enfocam apenas o aparente, a forma, o empírico

e o imediato, operando com

[...] procedimentos abstrativos – abstraem-lhes os seus conteúdos concretos

e os abstraem das relações que os engendram (1997, p. 49).

Com essa crítica, Guerra expressa o pensamento dos pesquisadores

marxistas, que rejeita os modelos predeterminados e a perspectiva que

desconsidera o movimento histórico, o qual é construído em condições objetivas,

mas também impulsionado por diferentes projetos.

3.1.2 Metodologia e ideologia

Para melhor subsidiar as reflexões sobre a contribuição do trabalho do

assistente social, que no judiciário é registrado nos laudos, relatórios e pareceres

sociais, foi necessário recorrer aos estudos sobre a metodologia e a ideologia. Para

tal empreitada, é possível encontrar em importantes autores, que fundamentam suas

análises na Teoria Social crítica, elementos para o aprofundamento neste sentido.

Conforme Chauí:

Page 132: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

121

[...] O campo da ideologia é o campo do imaginário, não no sentido de

irrealidade ou de fantasia, mas no sentido de conjunto coerente e sistemático

de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar a

realidade concreta (2001, p. 19).

Na sociedade existem projetos em disputa, mas também há uma ideologia

dominante, o que exige do profissional preparo intelectual para identificar e enfrentar

tais questões. Considerando que as concepções e os valores são socialmente

construídos, há um tensionamento constante nesse processo de permanência e

inovação. Nessa situação, o profissional jamais fica neutro, pois ao tomar ou não

qualquer posição, já está assumindo valores e concepções.

Nesse sentido, o profissional, deliberadamente ou não, tem implicadas na sua

ação posições ideológicas, que, então, se expressam na sua forma de pensar e agir.

Para compreender melhor esta dinâmica, recorremos a Meszáros:

A preocupação intensa com problemas de método é particularmente

pronunciada em períodos históricos de crise e transição. Em tais períodos,

quando a ideologia anteriormente preponderante das classes dominantes não

pode mais ignorar ou simplesmente pôr de lado seu adversário, as

reivindicações hegemônicas de ambos os lados devem ser formuladas de

maneira que os mais abrangentes princípios metateóricos e metodológicos

dos sistemas rivais se tornem explícitos. Isto acontece precisamente para

reforçar as aspirações mutuamente exclusivas das partes opostas a ocupar a

posição dominante, tanto teórica quanto prática, na sociedade ( 2004, p. 318).

Page 133: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

122

Por várias razões, mas também pela necessidade de se afirmar a perspectiva

da “intenção de ruptura com o conservadorismo” (cf. Netto, 1992; 1999; 2005), o

Serviço Social precisa ter clareza da teleologia profissional. Esta pode ser

evidenciada em alguns processos, como na sua interpretação da realidade, nas

suas reflexões, no domínio da instrumentalidade, nas alianças que constrói no

processo das lutas sociais.

Meszáros, que afirma em suas reflexões a sua perspectiva societária,

explicita a importância de se expressarem as diferenças no confronto das forças

sociais:

Ao mesmo tempo, as ideologias das forças sociais em ascensão também devem

expor a importância de sua posição, traçando claramente as linhas metodológicas de

demarcação por meio das quais as diferenças em relação aos adversários possam

ser apresentadas de modo mais marcante. De fato, as afirmações de sua novidade

radical e validade geral simplesmente não podem ser articuladas sem a rigorosa

formulação da nova abordagem em termos metodológicos explícitos (2004, p. 319).

Nesse sentido, no caso do Serviço Social, a perspectiva hegemônica pauta a

ruptura com o conservadorismo. Ela exige a denúncia e a rejeição do retorno às

abordagens que eram pautadas na busca da “reintegração social”, da

“reestruturação familiar”, pois parte do entendimento de que exclusivamente com a

mudança comportamental pode haver alterações e resoluções na vida da população.

Além disso, paira sobre a fiscalização e normatização dos comportamentos

individuais, ou seja, atribui aos sujeitos total e exclusiva responsabilidade pela

situação vivida, sem considerar os outros elementos que a provocaram e

influenciaram.

Page 134: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

123

Portanto, ao realizar a abordagem interdisciplinar, exige-se que o profissional

tenha clareza do seu papel e das tarefas institucionais, seja para o bom exercício

profissional em direção aos direitos dos usuários, seja para a afirmação do projeto

ético-político-profissional. Neste sentido, o assistente social deve agir orientado

pelos princípios éticos fundamentais, tendo como princípio central a liberdade.

Com este entendimento, rejeita-se aqui que o objetivo do Serviço Social seja

a “inclusão social”, posto que, por todo o percurso discutido até aqui, ela supõe a

manutenção ou “aperfeiçoamento” do sistema capitalista, mas não se propõe à sua

superação.40 Evidentemente, este posicionamento não basta para o enfrentamento

das contradições sociais. Trata-se de uma posição ideológica pautada, como

expressou Vieira (op. cit.), numa concepção de mundo. Esse esclarecimento é

necessário para, inclusive, adentrar nos procedimentos de análise dos casos para

este estudo exploratório.

Por este caminho, considerando a complexidade da realidade social,

entende-se que para analisar os “fatos” que se apresentam no Judiciário como

demandas para a instituição e, assim, para o trabalho do assistente social, é

necessário adotar categorias analíticas da perspectiva marxista.

[...] as categorias exprimem portanto formas de modo de ser, determinações

de existência, freqüentemente aspectos isolados desta sociedade

determinada, deste sujeito,41 e que, por conseguinte, esta sociedade de

maneira nenhuma se inicia, inclusive sobre o ponto de vista científico,

40 Pudemos aprofundar esta reflexão em Robert Castel. “Armadilhas da Exclusão Social”. In: Desigualdade e a Questão Social.São Paulo: Educ, 2004. 2ª ed. 41 Marx se refere à sociedade burguesa.

Page 135: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

124

somente a partir do momento em que se trata dela como tal (Marx, 1987, p.

21).

Considerando, a partir desta concepção, que é preciso também estabelecer

como se articulam dialeticamente essas categorias, recorremos novamente a essa

parte da obra de Marx:

[...] Em todas as formas de sociedade se encontra uma produção

determinada, superior a todas as demais, e cuja situação aponta sua posição

e influência sobre as outras. É uma luz universal de que se embebem todas

as cores, e que as modifica em sua particularidade. É um éter especial, que

determina o peso específico de todas as coisas emprestando relevo a seu

modo de ser (idem).

Compreende-se que, para a análise da realidade social, uma das

categorias essenciais é a da totalidade. Para compreender a conceituação desta

categoria, pode-se recorrer novamente à formulação de Lukács:

[...] A categoria da totalidade, a dominação do todo sobre as partes, que é

determinante e se exerce em todos os domínios, constituem a essência do método

que Marx tomou de Hegel e que transformou de maneira original para dele fazer o

fundamento de uma ciência inteiramente nova (1974, p. 41).

Nos termos de Löwy:

O princípio da totalidade como categoria metodológica obviamente não

significa um estudo da totalidade da realidade, o que seria impossível, uma

vez que a totalidade da realidade é sempre infinita, inesgotável (1985, p. 16).

Page 136: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

125

Assim, é necessário distinguir que

a totalidade não se identifica meramente com o todo: significa, antes, “a

realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato

qualquer (classes de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente

compreendido” [Kosic, 1969:35] (Apud Netto, 1995, p. 79).

É por essa linha de reflexão crítica que se busca, nas categorias de

análise, uma forma de apreender as determinações e os fatos, numa relação

dialética.

Mészáros tem problematizado sobre a dimensão ideológica das

metodologias, identificando as disputas existentes que refletem a conformação de

diferentes forças da sociedade. Refletindo sobre a contemporaneidade, observando

o desenvolvimento, por exemplo, do Fórum Social Mundial, suas pautas, atores e

tensões, levanta algumas conclusões:

Como pudemos ver, períodos históricos de crise e transição, quando os

antagonismos sociais latentes vêm à tona com grande intensidade, são, em

geral, acompanhados por agudas “disputas metodológicas”. Estas últimas não

são inteligíveis em termos estritamente metodológicos, devendo ser

analisadas à luz das reivindicações hegemônicas das partes envolvidas.

Assim, não obstante muitas opiniões contrárias, o aumento da preocupação

das principais forças antagônicas com questões metodológicas

aparentemente abstratas é prova da intensificação das determinações

ideológicas que influenciam – intelectual e politicamente – a orientação

Page 137: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

126

estratégica dessas forças, quer elas estejam, quer não, conscientes de ser

movidas por tais fatores (2004, p. 324).

Portanto, as metodologias têm sustentação num corpo teórico e têm

imbricadas ideologias. Observar os percursos estratégicos e a instrumentalidade

envolvida na dimensão metodológica da ação profissional e política também traz

elementos significativos para a percepção das ideologias. Esta mútua relação não é

pensada aqui com vistas a estabelecer uma hierarquia entre ideologia e

metodologia: o que se observa é a sua recíproca influência que, sob certas

condições, faz uma ou outra ser dominante. A dinâmica da realidade é

extremamente rica em conteúdos, pois há um processo permanente de construção,

mudanças, permanências, renovações, resistências e confrontos. Assim,

metodologia e ideologia são também expressões dos diferentes projetos societários

em disputa. A sua forma de “aparecer” não é linear, pelo contrário, é cheia de

contradições, demonstrando a possibilidade de cotidianamente construir a luta,

aperfeiçoar os projetos, sendo fundamental ter um horizonte coletivo. É nesta

complexa construção que se pode evidenciar e/ou mascarar os projetos societários

que estão em disputa. Metodologias, portanto, sempre têm, implicadas, ideologias.

3.1.2.Linguagem e ideologia

Realizadas as pontuações sobre as ideologias e as metodologias, cabe

refletir sobre um instrumento fundamental para o assistente social no desempenho

das atividades profissionais: a linguagem.

Page 138: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

127

Como outros profissionais, o Assistente Social necessita ter domínio de

instrumentos e técnicas para desenvolver sua intervenção. Sendo esta uma

atividade criativa, a ampliação do repertório cultural favorece uma melhor apreensão

da realidade por meio do processo congnitivo-intelectual. Neste enfoque, cabe

discutir que o Serviço Social também desenvolve cotidianamente ações de

comunicação, que estão orientadas por intencionalidades profissionais. A sua

comunicabilidade no judiciário se realiza verbalmente nos diálogos em entrevistas,

nos contatos institucionais, nas visitas domiciliares, nas audiências, quando

solicitado, e também na forma escrita, quando apresenta os relatórios e os laudos

sociais.

Para podermos aprofundar nossos estudos sobre estas questões, buscamos

em Bakhtin (1895-1975) as reflexões sobre a linguagem. Existe muita controvérsia

sobre a principal orientação teórica de Bakhtin, devendo-se este fato muito mais à

forma pela qual suas produções foram apreendidas pelos estudiosos nos diferentes

países, que ao conjunto de sua obra. Nesse sentido, há uma maior tendência de

reconhecê-lo como autor marxista, à medida que suas obras evidenciam tanto o uso

de categorias de análise, quanto a perspectiva sócio-política fundamentada na

Teoria Social de Marx.

Assim, nas leituras que subsidiaram este subitem verifica-se a predominância

do eixo relacionado à linguagem como produto sócio-histórico, fruto da produção e

reprodução social. Suas análises pautam este processo na relação dialógica, ou

seja, na interação social entre os interlocutores, enquanto sujeitos sócio-históricos.

Page 139: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

128

Seu percurso, assim, leva à superação de Saussure42 e dos estruturalistas, que se

concentraram na estrutura abstrata da língua e nas suas regras reproduzíveis.

Bakhtin buscou compreender, para além da estrutura, as diferentes expressões da

linguagem nos diferentes contextos sociais. Nesta interação, demonstra que são

insuprimíveis a alteridade, a diferença e o processo coletivo.

O autor desenvolve particularmente em “Marxismo e Filosofia da Linguagem”

(publicado originalmente em 1929) seu entendimento sobre esta questão. Por este

caminho teórico, analisou a importância de considerar o conteúdo ideológico da

linguagem, enquanto processo social, e o cotidiano enquanto expressão dos

tensionamentos gerados pelas agudas contradições existentes na produção e

reprodução social.

Além disso, existe uma parte muito importante da comunicação ideológica

que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se da

comunicação da vida cotidiana. Esse tipo de comunicação é

extraordinariamente rico e importante. Por um lado, ela está diretamente

vinculada aos processos de produção e, por outro lado, diz respeito às

esferas das diversas ideológicas/ideologias especializadas e formalizadas.

[...] o material privilegiado da comunicação da vida cotidiana é a palavra. É

justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se

situam (2004, p. 37).

O autor realizou reflexões alertando para a complexidade da dimensão

ideológica em relação à linguagem.

42 Considerado o “pai” da lingüística moderna.

Page 140: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

129

[...] não pode ser abordada corretamente sem se recorrer aos conceitos

usuais de palavra e de língua tais como foram definidos pela lingüística e pela

filosofia da linguagem não sociológicas. É preciso fazer uma análise profunda

e aguda da palavra como signo social para compreender seu funcionamento

como instrumento da consciência. É devido a esse papel excepcional de

instrumento da consciência que a palavra funciona como elemento essencial

que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for. A palavra

acompanha e comenta todo ato ideológico (idem, 2004, p. 37).

Com base nessas análises, é possível problematizar a importância de

certas palavras que consolidaram significados, sendo utilizadas como veículo de

uma série de conteúdos. Por exemplo, inicialmente o termo “menor” foi utilizado de

forma genérica referindo-se à menoridade penal e civil. Gradualmente, foi utilizado

para “identificar” crianças e adolescentes que infracionavam ou viviam em

abandono, sendo este significado consolidado socialmente, demarcado inclusive

pelo Código de Menores, que tratava exclusivamente deste grupo (“delinqüentes”,

“desvalidos” etc.), portanto, um segmento diferenciado do restante da população

infanto-juvenil. Esta trajetória consolidou de tal forma o significado de que “menor”

refere-se à condição citada e não relacionada à menoridade penal e civil, que está

presente nos discursos atuais. Assim, se por um lado pode apenas aparentar a não

incorporação do termo utilizado no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja,

“adolescente autor de ato infracional” ou “em situação de abandono”, por outro, pode

sinalizar resistências em aceitar este novo conceito e todo seu conteúdo.

Page 141: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

130

Essa dimensão ideológica da linguagem, portanto, é construída

cotidianamente, no processo das relações sociais. Ela decorre da necessidade de

diferentes atores conseguirem se relacionar, consensuar entendimentos, expressar

diferenças, estabelecer acordos, enfim, estabelecer bases comunicativas.

As relações de produção e a estrutura sócio-política que delas diretamente

deriva determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos, todas

as formas e os meios de comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na

criação ideológica. Por sua vez, das condições, formas e tipos da

comunicação verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala

(Bakhtin, 2004, p. 42).

Por este caminho, também é possível interpretar que as diferentes formas de

registro da intervenção do Assistente Social, são influenciadas pelos determinantes

institucionais, que são sócio-históricos. Essa intervenção também sofre influência da

representação social dos diferentes atores e da população usuária do Judiciário

sobre este profissional. A sua atuação num plantão social, numa entrevista social,

numa entrevista psicossocial, numa abordagem na visita domiciliar, na preparação

para o contato com uma criança a ser adotada, enfim, nos diferentes processos de

trabalho, recebe interferência dos valores sociais, da identidade atribuída

socialmente à profissão e do imaginário popular quanto ao poder judiciário. Essas

dinâmicas são vivenciadas nos contatos, mediados pelas linguagens verbais,

escritas e não verbais.

Estas formas de interação verbal acham-se muito estreitamente vinculadas às

condições de uma situação social dada e reagem de maneira muito sensível a

Page 142: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

131

todas as flutuações da atmosfera social. Assim é que no seio desta psicologia

do corpo social materializada na palavra acumulam-se mudanças e

deslocamentos quase imperceptíveis que, mais tarde, encontram sua

expressão nas produções ideológicas acabadas (idem, p. 42).

As formas da comunicação verbal, que se efetivam a todo momento,

carregam conteúdos ideológicos e afirmam visões de mundo. Não é objeto deste

estudo tratar de questões da lingüística, mas deixar claro que esta traz elementos

que auxiliam a compreensão de como o processo de comunicação contribui para a

consolidação de posições ideológicas.

Bakhtin afirmou que as formas de comunicação verbal

[...] são inteiramente determinadas pelas relações de produção e pela

estrutura sócio-política. Uma análise minuciosa revelaria a importância

incomensurável do componente hierárquico no processo de interação das

relações sociais sobre as formas de enunciação (2004, p. 43).

Este caminho reflexivo tem relevância quando se considera que o laudo social

(ou psicossocial, se realizado em parceria com o profissional da Psicologia) é um

dos elementos que poderão fundamentar uma decisão judicial. Ao juiz é facultativo

acolher o conteúdo técnico apresentado pelos diferentes profissionais.43 Vale

problematizar que é possível identificar no interior da instituição diferenças no

acolhimento dos pareceres emitidos por técnicos de diferentes áreas. Por exemplo,

43 No judiciário, além da equipe técnica (psicólogo e assistente social), exercem atividades profissionais os peritos (especialistas como médicos, engenheiros etc., nomeados pelo juiz para um estudo específico) e os assistentes técnicos (que realizam trabalhos especializados contratados pelos advogados das partes).

Page 143: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

132

raramente um parecer médico será desconsiderado, face ao reconhecimento social

dos conhecimentos específicos da profissão.

O assistente social está legitimado como profissional no judiciário, enquanto

funcionário, mas ainda assim parece não se admitir que o estudo social é uma de

suas atribuições privativas. Tal entendimento pode decorrer do senso comum de que

o “social” não é campo específico de nenhuma profissão. Nem assim o defendemos.

Porém, evidencia-se que há ainda a prevalência de que “qualquer” pessoa poderá

apontar suas considerações valorativas sobre o social, principalmente quando se

trata da vida de pessoas em vulnerabilidade. Nesse sentido, tais considerações,

muitas vezes, recaem no senso comum, pautado no saber popular, com enfoque de

cunho preconceituoso. Exemplificando, podemos mencionar o quanto uma mãe que

coloca seu filho para adoção é naturalmente julgada de modo negativo por ter, com

tal atitude, demonstrado sua incapacidade de realizar um papel socialmente

atribuído. Uma vez que se trata a maternagem como decorrente da “natureza”

feminina,44 são retirados os condicionantes sociais e históricos para o seu

desenvolvimento, bem como as condições objetivas e subjetivas para tal

“capacidade”. Exposta a todo tido de opinião, ela é julgada pela atitude e ao mesmo

tempo suas demandas são ocultadas.

O exemplo acima é uma das situações em que todas as pessoas se

consideram aptas a analisar e julgar, pois para tanto se pautam no viés moralizador.

Nesse sentido, suas impressões são emitidas através da linguagem. O indivíduo e a

44 Lucinete Santos escreveu um artigo sobre esse tema, realizando uma crítica ao mito do amor materno.

Page 144: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

133

coletividade transmitem suas opiniões, bem como os veículos da comunicação de

massa.

Pode-se afirmar, ilustrando com tal exemplo, que todo enunciador que

emite uma opinião não deseja somente externá-la, mas agregar outros em torno dela

ou mesmo disputar o convencimento. Bakhtin buscou compreender como linguagem

e ideologia atuam para garantir coesão em torno de significados que orientam uma

determinada comunidade/sociedade.

Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos

socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão

pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social

de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece

(Bakhtin, 2004, p. 44).

Na obra mencionada anteriormente o autor reflete sobre a “tarefa das ciências

das ideologias [de] estudar esta evolução social do signo lingüístico”, buscando

aprofundar os estudos sobre a mútua influência entre linguagem e sujeito. Nos seus

estudos, aponta regras metodológicas para tanto:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no

campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).

2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social.

3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-

estrutura).

Realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico e portanto

também o signo lingüístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma

época e de um grupo social determinados (idem, p. 44).

Page 145: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

134

Assim, parece plausível que, ao estudar os registros dos profissionais, seja

possível identificar alguns conceitos e a leitura da realidade, bem como verificar a

direção social pretendida nesse processo comunicativo.

Partindo do pressuposto de que tais registros expressam parte da interação

comunicativa que se estabeleceu entre os diferentes atores envolvidos no caso em

questão, o que é mais importante para Bakhtin não é a mera “descodificação” que

“consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto

concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular” (2004,

p. 93).

Assim, estaria o assistente social consciente de que, ao utilizar determinadas

expressões (“família desestruturada”, “negligência”, “falta de condições sociais”),

sem contextualizá-las e historicizá-las, pode vir a reafirmar conceitos e

representações sociais, que, por sua vez, podem contribuir para a revitimização

daquela pessoa ou grupo?

Além dessa questão, considerar as instituições onde são emitidos os

enunciados, pensar quem são os interlocutores e a quem coube reproduzir o que foi

dito, pode trazer outros elementos para compreender a direção que é dada a um

determinado conteúdo. No caso do Judiciário, os despachos, as petições e os

registros dos assistentes sociais se referem à fala dos sujeitos, mas podem, nessa

reprodução, trazer não apenas o conteúdo dito, mas uma interpretação:

Page 146: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

135

A cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se grupos de

objetos particulares e limitados que se tornam objeto da atenção do corpo

social e que, por causa disso, tomam um valor particular (2004, p. 44).

Embora Bakhtin centre suas obras na crítica à teoria lingüística, nos estudos

sobre o romance, na ficção, nos textos históricos utilizados para a produção de

literatura de ficção, o conjunto de sua produção traz elementos que provocam

reflexões sobre a comunicação. Nesse sentido, pensou sobre aspectos filosóficos da

linguagem e dos enunciados, feitos pela palavra, verbal ou escrita.

[...] Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas

verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis

ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou

de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as

palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias

ideológicas ou concernentes à vida (2004, p. 95).

Essas indicações são essenciais ao se analisarem quais as explicações

contidas nos laudos dos assistentes sociais que causam a reação dos operadores

do Direito e que ressonâncias podem acarretar.

Entendendo o Judiciário como instituição que se adapta ao sistema

socioeconômico vigente e que possui o papel de garantir o cumprimento das normas

para seu funcionamento, é possível perceber no seu interior as expressões de

tensionamento provocadas pela necessidade de mudança.

Page 147: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

136

Há outro aspecto que é a própria relação entre os diferentes operadores do

direito, cujas ações também são influenciadas por representações sociais que se

reafirmam ou são ressignificadas, conforme as experiências concretas que se

somam em tal instituição. Nesse sentido, pode-se afirmar que no seu exercício

profissional, esses sujeitos vão também se apropriando de perspectivas inovadoras

no exercício do poder jurisdicional. A palavra e seus significados são, então, veículos

desses processos.

Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui papel

algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é, portanto,

indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual; somente

então é que ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras

palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar

raízes senão aquilo que adquiriu um valor social (Bakhtin, 2004, p. 45).

Assim, o Serviço Social, que atua com a vivência dos usuários, tem um papel

social relevante ao reunir elementos que demonstram o quanto os litígios referem-se

na verdade a demandas sociais, que deveriam ter sido sanadas no âmbito das

políticas públicas.45 Faria (apud Colman, 2004, p. 118), por sua vez, relaciona a

explosão da litigiosidade “[...] a um movimento de despolitização dos conflitos

sociais, transformando esses conflitos em questões de natureza econômico-

administrativa”.

45 Fávero, E. T. demonstra em Rompimento dos vínculos do pátrio poder – condicionantes socioeconômicos e familiares, em que estudou 201 autos judiciais, que a precariedade das condições sócio-econômicas foi determinante da destituição do poder familiar.

Page 148: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

137

Para ele, esses conflitos sociais, após serem retirados da esfera política da

luta de classe, são “repolizitados” no interior do aparelho estatal, por meio de outros

mecanismos de controle, podendo incluir aqui o Judiciário.

Observa-se que a pobreza, assim como os movimentos sociais, tem

sido objeto de intervenção do sistema de segurança e do judiciário. Tal tendência

evidencia o peso ideológico contra a situação de carência socioeconômica, o que

tem sido denominado “criminalização da pobreza”. Um processo parecido ocorre

contra os movimentos sociais que lutam por direitos difusos, demonstrando que

atualmente a criminalização é uma tendência que tem orientado o papel de

contenção de conflitos dos órgãos de Estado.

As estatísticas demonstram a atuação do Estado em relação a este

agravamento da miséria. Um dos indicadores é o aumento do volume de mulheres

apenadas, verificando-se que há grande incidência de crimes contra o patrimônio,

não raro furtos em supermercados, desde fraldas, latas de leite a cosméticos. Num

caminho similar está a população adolescente e jovem, avolumando-se nos

estabelecimentos de privação de liberdade, também julgados em geral por crimes

contra o patrimônio. Nesses conflitos se articulam as necessidades vitais

(alimentação, emprego, moradia etc.) e aquelas criadas pela sociedade que

incentiva o consumo, mas que paradoxalmente gera os sobrantes, conforme

definição de Castels. Antes se falava em “exército de reserva”; atualmente a

expressão sobrantes refere-se àqueles que foram tornados “descartáveis” pelo

sistema produtivo.46

46 Categoria social nova, constituída na sociedade salarial pelas pessoas e/ou grupos humanos que foram tornados supranuméricos em relação às competências econômica e social. Trata-se de pessoas normais, mas que foram tornadas inúteis, desestabilizadas, instaladas numa situação de

Page 149: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

138

Portanto, os sujeitos atendidos nas Varas da Infância e da Juventude

podem ter as suas situações retratadas tecnicamente, mas a forma de descrever, de

analisar e compreender tais trajetórias, ao serem registradas nos autos, podem

traduzir posicionamentos ideológicos, mas nem sempre indicar um posicionamento

crítico diante da realidade.

Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um

instrumento de refração e de deformação do ser. A classe dominante tende a

conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de

classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí

se trava, a fim de tornar o signo monovalente (Bakhtin,2004, p. 47).

Por essas razões, os profissionais devem estar atentos aos seus

registros que são colocados para a apreciação de outros sujeitos. Conforme

fundamentado até o momento, é inevitável que o conteúdo da linguagem, e mesmo

a sua forma, deixe de ter, impregnadas, posições ideológicas. A visão fragmentada e

descontinuada do trabalho realizado no cotidiano pode mascarar o que significa o

conjunto formado pelas demandas, pulverizadas em diferentes expressões do

mesmo processo vivenciado no mesmo contexto contemporâneo de agravamento

das péssimas condições de vida.

[...] Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas

épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais

da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se

precariedade geral caracterizada por déficit de lugar no mundo do trabalho e da sociabilidade. (cf. Arcoverde, 1999, p. 81).

Page 150: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

139

mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo

ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar

o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a

verdade de ontem como sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário

é deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante (idem, p.

47).

Por essa perspectiva, Bakhtin compreende que as normas morais, jurídicas,

estéticas etc., são construções e influenciam a coletividade. Nesse processo,

exercem diferentes graus de coerção e controle.

O debate sobre o conteúdo ideológico da linguagem é fundamental quando

analisamos o exercício profissional do assistente social, que no cotidiano de trabalho

se depara com inúmeras questões que tensionam suas relações e os efeitos de sua

ação técnica. São envolvidas, neste sentido, desde a sua trajetória pessoal, sua

formação profissional da graduação e continuada, até condições objetivas, como

ambiente e recursos materiais, e de representações sociais quanto ao seu papel na

instituição e na sociedade. Tais representações sociais vão também influenciar na

realização das suas ações, pois a cada caso há todo um processo de escuta,

aproximação, acolhida, vinculação, bem como momentos em que lhes cabem ações

mais continentes diante das angústias geradas pelas mais diferentes situações

sociais.

Não nos cabe neste estudo aprofundar um debate sobre as representações e

a identidade profissional, questões essas trabalhadas por autores como Martinelli

Page 151: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

140

(1989) e Gentilli (1998). Contudo, é fundamental considerá-las ao situarmos a

dimensão da profissão nos diferentes contextos sócio-históricos e a sua trajetória.

Barros 47, a partir da análise das produções de Bakhtin, traz reflexões sobre o

caráter ideológico dos discursos:

[...] Se nos discursos falam vozes diversas que mostram a compressão que cada

classe ou segmento de classe tem do mundo, em um dado momento histórico, os

discursos são, por definição, ideológicos, marcados por coerções sociais (2001, p.

34).

Outro autor que dentre várias questões analisou a linguagem foi Vygotsky

(1896-1934) que, assim como Bakhtin, nasceu e viveu

num mesmo país, a Rússia e compartilharam da situação histórica pós-

revolucionária, desenvolvendo seu pensamento no mesmo ambiente teórico

ideológico. Entretanto, não há indícios seguros de que se tenham conhecido

pessoalmente (Freitas, 2001, p. 168).

Vygotsky interpreta que o homem é um ser social, histórico e cultural, sendo-

lhe fundamental a linguagem. Ambos tratam, portanto,

de um sujeito histórico, datado, concreto, marcado por sua cultura. O homem sujeito

histórico cria idéias e consciência ao produzir e reproduzir a realidade social, sendo

nela ao mesmo tempo produzido e reproduzido (idem, 2001, p. 171).

47 Embora esta autora faça tais reflexões pautada no estudo da lingüística e da literatura, parece-nos pertinente esta referência, por entender que estas duas disciplinas também são expressões da sociedade num dado tempo histórico.

Page 152: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

141

A apropriação desses dois autores no Brasil deve-se também ao

entendimento da particularidade da produção de conhecimento nas ciências

humanas:

Bakhtin critica as ciências humanas que, sofrendo de um complexo de

inferioridade em relação às ciências naturais, sacrificam sua especificidade

esquecendo que seu objeto é precisamente não um objeto, mas um outro

sujeito. Como o objeto das ciências humanas é um outro sujeito que tem voz,

o pesquisador ao se colocar diante dele, não apenas o contempla, mas fala

com ele (idem, 2001, p. 170).

Portanto, ao se tratar no presente estudo sobre linguagem e ideologia,

evidencia-se a importância de analisar os laudos, pareceres e relatórios sociais não

no aspecto individual deste ou daquele profissional, mas eminentemente como

produto coletivo e sócio-histórico.

Assim, podem-se observar sínteses na linguagem e suas expressões no

judiciário, sendo o desafio aqui uma ampliação da compreensão dos mecanismos

que reforçam ou contribuem para a exclusão ou para a efetivação de direitos da

população atendida no judiciário.

Ao emitir um laudo social, o assistente social realiza um ato de síntese, nem

sempre passível de reformulação. É realizado naquele momento, num contexto

sócio-histórico concreto, podendo contribuir para o desfecho de um conflito judicial.

Page 153: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

142

Outro elemento a considerar é a forma dos enunciados registrados nos autos.

Novamente os estudos sobre a lingüística podem trazer contribuições para esta

análise. Por este caminho, Bakhtin refere que:

[...] Na base da divisão do discurso em partes, denominadas parágrafos na

sua forma escrita, encontra-se o ajustamento às reações previstas do ouvinte

ou do leitor. Quanto mais fraco o ajustamento ao ouvinte e a consideração

das suas reações, menos organizado, no que diz respeito aos parágrafos,

será o discurso (2004, p. 141).

Com esse olhar, parece ser frutífero que esta pesquisa indique alguns

elementos registrados pelos assistentes sociais, que foram acolhidos pelos

operadores do direito. Estes poderiam trazer indicativos para uma melhor

organização do conteúdo, conforme as questões apontadas anteriormente, mas

considerando a forma de seus registros.

Os estudos da lingüística também sinalizam a importância, para a melhor

apreciação dos discursos, de se considerar o contexto narrativo. Quando o

profissional elabora o seu laudo ou outra forma de registro, está num contexto que é

o Judiciário, onde há conflitos interpretativos dessa mesma realidade social. Não se

pode perder de vista tampouco a hierarquia entre os sujeitos envolvidos e, assim,

das suas falas e conteúdos, nesta inter-relação. Um dos papéis do assistente social

talvez seja o de diminuir a distancia entre os cidadãos envolvidos no litígio e entre os

operadores do Direito. Embora pareça um horizonte utópico, traz um dos princípios

fundamentais: de igualdade na diferença, posta a permanência da sociedade

dividida em classes sociais. Vez que a hierarquia é necessária nesta estrutura de

Page 154: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

143

sociedade capitalista, ter atitudes para reduzir esta distância pode ser uma

estratégia pertinente. O profissional poderia ampliar a possibilidade de escuta das

diferentes vozes envolvidas num conflito, no caso, judicial.

Nessa direção, um aspecto observado na análise de discursos é o da posição

do “falante”. Existe um peso atribuído conforme o seu status social ou o valor social

da questão em julgamento. Por exemplo, ao se registrar a fala de um líder

comunitário pode haver direções diferenciadas. Se prevalecer a concepção de que

este tipo de pessoa é prejudicial à ordem, haverá um peso; se reconhecido como

alguém que representa aquela comunidade, outro, e assim por diante. A posição do

falante na estrutura do judiciário também é relevante: por exemplo, um advogado

renomado, com reconhecimento social, influencia na relação com os demais atores.

O impacto de sua presença já traz uma relação diferenciada. Assim, há fatores

subjetivos que podem gerar um peso maior para uma informação, seja pela forma,

conteúdo ou locutor.

Por fim, vale salientar que a arte é uma importante expressão da sociedade,

onde se afirmam valores dos mais diversos e, como tal, pode retratar as mais

diferentes relações sociais, mostrar a realidade a partir de ângulos, de conflitos, de

projetos. Um trabalhador social pode buscar o enriquecimento de seu repertório e da

sua capacidade analítica por meio destas manifestações artísticas (literatura,

cinema, teatro, artes plásticas etc.) e apreender ângulos da realidade. O

enriquecimento desse repertório e seu uso, contudo, sempre receberá uma

orientação de valores. Obras clássicas trazem muitos elementos para aperfeiçoar a

capacidade analítica, aguçar a sensibilidade, agregar conhecimentos sobre outras

culturas em diferentes campos. Daí, a importância de conhecer autores de outros

Page 155: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

144

campos de conhecimento que se referenciam na Teoria Social de Marx, como

Bakhtin, para pensar o Serviço Social contemporâneo. Afinal, os autores que

abordam qualquer objeto a partir da Teoria Social de Marx, o fazem sob a percepção

dos conflitos gerados pela relação capital-trabalho e defendem outro projeto

societário.

Caracteristicamente, a discussão que Bakhtin faz do discurso é ao mesmo

tempo técnica e literária, ética e política. A maneira como os autores tratam o

discurso de seus personagens, ou a maneira como personagens literários

tratam o discurso de outros personagens, é análoga aos processos

discursivos da vida cotidiana e revela o ethos de uma cultura e de uma

sociedade. A análise de Bakhtin reflete sobre a questão do grau de liberdade

concedido às palavras dos outros; as palavras são distorcidas, censuradas,

ignoradas, endossadas? Enquanto filósofo da liberdade, Bakhtin defende a

livre circulação das palavras, sem opressões hierárquicas (Stam, 2000, p. 34-

5).

Analogamente, como “historiadores do tempo presente”, mas sem perder a

leitura das determinações da História, como diz Martinelli, o assistente social registra

e direciona as situações através da sua capacidade de manejo de instrumentos e

técnicas, mas, principalmente, de análise crítica da realidade. Assim, os diferentes

atores são personagens reais, que se deparam com diferentes enredos, mas

gerados no cotidiano. Os cenários são determinações históricas, portanto,

construídas também por personagens reais da História. Os assistentes sociais, são

personagens de um coletivo maior, ora protagonistas, ora coadjuvantes. Se alguns

cenários estão determinados, há necessidade de construir outras condições

objetivas para criar novos enredos.

Page 156: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

145

3.1.3. Reflexões sobre ética

Nas páginas antecedentes perpassaram elementos necessários para a

discussão proposta: os valores e a ética. Estes também foram evidenciados ao se

anunciar em vários momentos a linha teórica que sustenta esta pesquisa. Cabe,

portanto, esclarecer alguns aspectos da ética, que subsidiarão as análises dos

casos levantados neste estudo.

Dentre os autores que subsidiaram esta análise, destacam-se Maria Lúcia

Barroco e Adolfo Sanches Vázquéz. Pesquisadores de origens diferentes traçam um

caminho teórico em comum: a Teoria Social de Marx.

Para o exercício reflexivo proposto partimos da concepção de que a ética é

também um produto sócio-histórico e, como tal, mutável nas relações de uma

determinada época e contexto.

Nessa perspectiva, compreende-se que a moral é a prática dos indivíduos, no

cotidiano, de forma singular, enquanto a ética é a reflexão teórica sobre esse agir

dos indivíduos, buscando seus significados e possibilitando dar um salto do singular

para o humano genérico. A moral é relativa aos costumes, aos hábitos, que são

reproduzidos sem reflexão teórica, mas como respostas possíveis em determinado

contexto sociocultural.

Page 157: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

146

Somente o homem pode agir eticamente, mas, para tanto, é necessário haver

condições adequadas, objetivas e subjetivas. Somente a adesão política não

garante o agir ético, pois toda ação é realizada num contexto sóciopolítico,

econômico e cultural. No mesmo sentido, “uma indicação ética só adquire

efetividade histórico-concreta quando se combina com uma direção

políticoprofissional” (Neto, 1998, p. 99).

Os princípios éticos, em qualquer tempo, ganham concretude através da

ação. O ser ético deve posicionar-se, pôr-se no mundo. Diz Barroco:

A ética é definida como uma capacidade humana posta pela atividade vital do

ser social; a capacidade de agir conscientemente com base em escolhas de

valor, projetar finalidades de valor e objetivá-las concretamente na vida social,

isto é, de ser livre. Tratada como mediação entre as esferas e dimensões da

vida social, e atividade emancipadora, a ética é situada em suas várias

formas e expressão (2003, p. 19).

Por este caminho, Barroco aborda a ética profissional como expressão de um

ethos sociocultural e profissional, da moralidade profissional, de suas bases

teóricas e filosóficas, do produto concreto de sua prática, de sua

normatização. Tais particularidades são situadas na relação entre as suas

demandas ético-políticas e as suas respostas, em cada momento histórico

(idem, p. 19-20).

Page 158: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

147

Com a fundamentação no método crítico dialético de Marx, Barroco nos

mostra que a ética é uma ação prática pautada em valores, mas que extrapolando o

dever ser, projeta o vir-a-ser enquanto possibilidade para a emancipação dos

sujeitos. Assim,

Como mediação entre a singularidade e a genericidade, entre os valores

universais e sua objetivação, a ética perpassa todas as esferas da totalidade

social (2003, p. 64).

Com essas considerações, cabe problematizar que a ética profissional

é uma expressão da objetivação da ética. Neste sentido, é necessário analisá-la

também no contexto dos processos de trabalho do assistente social, que

cotidianamente está inserido nas práticas de avaliação e decisão junto às demandas

que lhes são colocadas.

Somente o homem é capaz de escolher os meios e os fins de suas

ações e projetos e, para realizar tais escolhas, baseia-se em valores e

intencionalidades. Ao se considerar que a ética tem fundamentos sócio-históricos,

entende-se que sua estrutura é determinada pelos diversos fatores e interesses

sociais, econômicos, políticos e culturais. Por esse prisma analítico, pode-se afirmar

que os valores, que compõem os princípios éticos, têm maior estatuto histórico

quando apontam para relações estruturantes, que possam alterar e responder às

demandas coletivas. Ou seja, não se colocam aqui com peso “absoluto”, nem com

uma causalidade linear, mas inseridos e construídos em contextos que causam

mútua influência.

Page 159: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

148

Por este prisma, no caso do Serviço Social, os serviços prestados são

as principais mediações do exercício profissional e a ética perpassa as relações que

estabelece junto a todos os atores: usuários, empregadores, assistentes sociais,

outros profissionais, instituições etc. Enquanto especialização do trabalho coletivo, o

Serviço Social compõe com diversos atores na afirmação de princípios democráticos

e que propiciem a equidade na diversidade, mas não na desigualdade sócio-

econômica e política.

Além disso, para que se possa disputar a direção ético-política na sociedade

é necessário estar articulado com um coletivo maior e com as lutas sociais que

buscam uma realidade que rejeite a barbárie que vivenciamos atualmente,

perpetuada pela trajetória histórica do sistema capitalista que se reordena e se re-

arranja para manter os mesmos interesses de acumulação. Temos o exemplo da

escravidão, em diferentes momentos históricos, que foi tratada com naturalidade,

como algo inerente à organização da sociedade. Atualmente, os direitos

conquistados e afirmados em leis não permitem que a humanidade concorde com a

escravidão, havendo uma posição hegemônica contrária a essa expressão da

barbárie. Porém, ela ainda existe, porque a própria ordem social alimenta a

possibilidade de manutenção dessa realidade. Haja vista os imigrantes ilegais que

vivenciam a escravidão na relação globalizada da indústria de confecções na região

central da cidade de São Paulo. Assim, a sociedade vivencia a contradição de

existirem leis, como o ECA, que têm uma concepção filosófica, ética e política

coerentes com as demandas existentes, mas que, sem a prática sócio-política dos

sujeitos coletivos, expressam apenas intencionalidades e não são concretizadas.

Page 160: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

149

Como colocado no Código de Ética Profissional do Assistente Social, adota-

se aqui a liberdade como valor central, que orienta a busca da emancipação

humana. Nesse sentido, a reflexão ética pode auxiliar o desvelar da realidade, não

no limite dos carenciamentos e necessidades, mas das contradições e

possibilidades para que os sujeitos sejam atendidos em seus direitos, inclusive

tensionando para a ampliação da esfera pública. Nessa relação é que o sujeito

poderia ter outras condições para sair do universo da necessidade para a liberdade,

onde realmente possa ter opções diante das requisições de sua vida cotidiana.

Vázquéz traz outros elementos importantes sobre a avaliação moral, os

quais podem auxiliar o estudo sobre o trabalho do assistente social no campo sócio-

jurídico:

Se avaliação é o ato de atribuir valor a um ato ou produto humano por um

sujeito humano, isso implica necessariamente que se levem em conta as

condições concretas nas quais se avalia e o caráter concreto dos elementos

que intervêm na avaliação (2004, p. 153).

O desafio que se impõe, portanto, é que no processo de trabalho o assistente

social articule os vários elementos, ultrapassando o olhar sobre a legalidade da

moral, mas possa relacioná-los, e a todos esses elementos, como produtos

construídos pelo homem no processo de atividade histórico-social. Vasquez aborda

essa dinâmica da relação dialética entre os valores e o desenvolvimento do homem

como ser histórico e social.

Page 161: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

150

Dado que não existem em si, mas em função do homem e para ele, os

valores se concretizam de acordo com as formas assumidas pela existência

do homem como ser histórico-social (idem, p. 153).

O processo histórico e as relações vão trazendo mais elementos para

as práticas sociais e, assim, também para o interior da profissão, tensionando para

novas direções que podem levar ao rompimento, ou não, com os valores vigentes, e,

de toda forma, provocando a sua manutenção e/ou inovação, não de maneira linear,

mas sempre dialética. O assistente social compõe o conjunto de atores que de forma

imediata tensionam a consolidação de valores em determinadas situações da

realidade, seja afirmando-os ou questionando-os. Portanto, nesse processo

contraditório se efetiva a disputa de projetos profissionais, que são parte da

expressão dos diferentes projetos societários.

Considerando, portanto, que ao fazer ciência existem componentes de cunho

ideológico, que estão implicados nas metodologias, todas estas dimensões são

compostas por valores e princípios, objetos da reflexão ética. Com essas

considerações é possível avançar na defesa de que a reflexão ética deve ser

inerente e orientadora da prática profissional e da vida cotidiana.

3.2. Jurisprudência e Serviço Social

Frente a essas reflexões, esta pesquisa buscou identificar a

contribuição do Serviço Social para a aplicação do Direito, podendo trazer elementos

na geração de jurisprudências.

Page 162: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

151

Compreendemos a Jurisprudência como “doutrina assentada pelas decisões

das autoridades competentes, ao interpretarem os textos pouco claros da lei ou ao

resolverem casos por esta não previstos”,48 e, portanto, portadora de evidências de

que as mudanças sociais podem ter respostas mais adequadas e eficazes, visando

reconhecer o conflito (e não negá-lo) e responder à sua especificidade. Esta análise

contrapõe-se ao caráter generalista e universalista das Leis.

[...] a aplicação do Direito, como todos sabem, não constitui singela operação

mecânica, dependente de esforço físico ou intelectual, mas um plus novo e

não apenas jurídico. A aplicação do Direito necessita de algo mais que os

fatos como matéria e o Direito como ferramenta. A tarefa do Juiz será de

acrescentar à norma jurídica um elemento peculiar que ela não tem: a

prudência. Este juízo jurídico, este resultado da aplicação do Direito a um

caso é, sem dúvida, uma criação jurídica. E sempre o é. nos casos

elementares e nos mais complexos.

[...] ao ser difundida, uma decisão deixa de ser singela resolução de conflitos

para converter-se em doutrina, alicerçada na autoridade dos Tribunais ao se

aplicar as verdadeiras fontes do Direito; e, como tal, extrapola os autos para

sujeitar-se ao crivo do leitor, do analista, do jurista, enfim. (Alike, 2002)49

O entendimento de que os assistentes sociais e psicólogos são os

profissionais que compõem a equipe interdisciplinar já se consolidou, frente à

complexidade das demandas apresentadas ao judiciário. Nas palavras de um

Promotor de Justiça paulista:

48 Dicionário Michaelis. 49 MINISTERIO PÚBLICO.Infância e Juventude: interpretação jurisprudencial, 2002.

Page 163: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

152

Assim, referida a Justiça, mesmo tendo como fonte primária a Lei,

compreendeu que o seu campo de atuação não se limita apenas ao direito,

requerendo uma intervenção multidisciplinar, que proporcionou a abertura para que

profissionais de outras áreas, como psicólogos e assistentes sociais, passassem a

auxiliar no encaminhamento dos problemas enfrentados.50

Defende, ainda, a importância destes profissionais,

uma vez que a intervenção técnica, adentra em questões que fogem à esfera

do direito, mas que se mostram extremamente relevantes para o destino final

do processo(idem)

Numa aproximação, essas análises auxiliam a reflexão sobre as

possibilidades de atuação do assistente social no Judiciário como trabalhador e, ao

mesmo tempo, como agente do Estado para o controle e a aplicação das leis. A

realização do direito é uma possibilidade, mas não está garantida apenas pela

aplicação das normas legais.

Se, por um lado, as discussões marxistas fundamentam a defesa da

necessidade de outra sociedade, sendo este o horizonte aqui defendido, por outro,

as demandas colocadas ao assistente social referem-se sobretudo à “inclusão

social” nesta sociedade. Vale salientar que na perspectiva adotada por esta

pesquisa, rejeita-se como teleologia profissional a “inclusão social”, pois esta

condição pressupõe a concordância com o atual sistema capitalista neoliberal. Esta

50 Luiz Antonio Miguel Ferreira. Aspectos jurídicos da intervenção social e psicológica no processo de adoção, texto digitalizado, s/d.

Page 164: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

153

expressão pode ser mais uma ilusão, pois nega a exclusão como necessária para a

manutenção do próprio sistema.

Nesta perspectiva ético-politica, entende-se, que o profissional realiza

intervenções técnicas com vistas à resolução de conflitos, ao acesso aos direitos e à

inclusão social. Porém, e especialmente, estas devem ser vistas como atividades

meio para outra finalidade: o exercício da autonomia e da emancipação dos sujeitos

sociais. A tão defendida inclusão social, nesta direção, é mais uma das estratégias

que podem contribuir no engajamento para a superação desta sociedade. São

exemplos disso a inclusão nas políticas públicas: na escola, no atendimento de

saúde, em espaços de profissionalização e de possibilidade de emprego formal.

Articuladas a isso estão as importantes reivindicações pelos direitos já adquiridos,

como os trabalhistas e previdenciários, confrontando o seu desmonte galopante.

Nessas relações há uma afirmação permanente de outra lógica societária.

Entende-se aqui, portanto, que aqueles denominados “excluídos” são os

sobrantes, conforme conceituou Castels,51 pois são tão “necessários” quanto os

“incluídos” para a manutenção das relações de produção e reprodução social.

Outro grupo de excluídos-incluídos são os adolescentes que cometem

infrações em São Paulo (na maioria dos casos, contra o patrimônio), cujas

características de atendimento ilustram de forma ímpar a inclusão social no Brasil.

Estes adolescentes são aqueles que a percepção imediata da sociedade identifica

como perigo, quando, na verdade, o que deveria horrorizar é que essas pessoas em

51 Castels. Armadilhas da Exclusão.

Page 165: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

154

desenvolvimento estejam em abandono (não apenas material, mas afetivo e social)

e sem a orientação necessária nessa fase tão importante. Os programas, na maioria,

são elaborados com a premissa de punição. Há uma incapacidade de apreender a

realidade e a fase peculiar de desenvolvimento e, fundamentalmente, a

responsabilidade do Estado no direcionamento do processo de sociabilidade de

crianças e de adolescentes. O enfoque é na transgressão, sem compreender os

seus significados. Conforme já exposto, a realidade socialmente construída tem

feições das mais complexas, exigindo empenho maior da sociedade e do Estado na

formulação de enfrentamentos efetivos. Esses jovens estão incluídos no sistema

punitivo que se sobrepõe ao sócio-educativo, contrariando o previsto na legislação.

[...]os homens devem estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para

viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais.

(Marx, 1999, p. 39)

Saliente-se que autonomia e emancipação social podem ser apenas

conceitos abstratos quando não articulados com reflexões totalizantes da realidade e

com a teleologia profissional, vinculando-se a lutas mais amplas quando se pretende

romper com certas práticas e construir coletivamente outras que sinalizem para outro

projeto de sociedade.

3.3. Construção da pesquisa

O caminho percorrido pela pesquisa foi traçando a sua configuração final. Isto

porque não se localizaram outras pesquisas do Serviço Social sobre

Page 166: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

155

Jurisprudência.52 Neste sentido, é interessante explicar alguns conceitos, antes de

explicitar como o pesquisar foi sendo construído.

Sobre a instituição53

É a Constituição Federal que determina a organização dos três poderes:

Legislativo, Executivo e Judiciário. Além do nível federal, existem as esferas

estadual e municipal. Abaixo será tratado apenas o Poder Judiciário, que, ao

contrário dos demais, não dispõe de esfera municipal.

Segundo Colman

[...] na esfera da União, além dos órgãos de cúpula citados, está concentrada

a justiça especializada (Federal, do Trabalho, Eleitoral e Militar) e na esfera

dos estados fica a chamada justiça comum, que é definida por exclusão, isto

é, julga tudo aquilo que não diz respeito a essas áreas especializadas (2004,

p. 153).

Existe a organização vertical, que “diz respeito à hierarquia dos tribunais

divididos em órgãos de primeiro e segundo graus e órgãos de cúpula” (idem, p.

154), e organização horizontal, que divide a justiça comum e as justiças

especializadas.

52 Durante a finalização desta pesquisa, tomou-se conhecimento de um levantamento feito pela Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direito da Criança e do Adolescente – ANCED – tratando de tema relacionado, mas não foi possível obter maiores dados. Há outras pesquisas, que tratam das decisões judiciais e da apreciação dos operadores do Direito quanto à relevância do trabalho da equipe técnica, porém, não abordam a relação com a jurisprudência. 53 Estas informações foram extraídas da tese de Colman, op. cit. e do Manual de Iniciação Funcional para Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1991-1992. Também foram fundamentadas nas legislações vigentes.

Page 167: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

156

Os órgãos de cúpula são o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal

de Justiça, e os órgãos de cúpula específicos das justiças especializadas da União,

que são o Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Superior Eleitoral e o Superior

Tribunal Militar.

Colman esclarece, ainda, que a existência de juízes de Primeira e Segunda

Instâncias foi motivada pelo direito de questionar a decisão em outra instância.

[...] Com exceção dos órgãos de cúpula, em todos os casos pode-se recorrer

em uma instância superior de uma decisão tomada por um juiz. [...] Mas

Rodrigues esclarece [...] os órgãos aos quais compete julgar os recursos

ocupam posição de revisão, não de mando. Embora possam alterar a

decisão anteriormente proferida, não podem impor aos órgãos de

primeiro grau que passem a adotar as suas posições (2003, p. 19)

Vale salientar que não cabem recursos nas causas julgadas pelos Tribunais

de Júri, formada por cidadãos comuns como jurados que dão o veredicto final,

exceto se forem questões sobre erros processuais. Ou seja, erros no aspecto

técnico-jurídico, não quanto à decisão. O Supremo Tribunal Federal não comporta

nível superior e, por isso, é a última instância nacional para mover recursos.54

54 O Brasil é membro da Organização dos Estados Americanos, OEA, e signatário de vários protocolos internacionais sobre Direitos Humanos. Assim, quando esgotados todos os recursos internos disponíveis no Estado, quando a matéria de denúncia é a violação de tais direitos, é possível recorrer à Corte Interamericana da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É possível ainda quando tal esgotamento não tiver ocorrido por falta de acesso aos recursos, por carência econômica, quando houver retardamento injustificado para a decisão final no país de origem e/ou quando não se assegurou o devido procedimento legal. Contudo, a Corte não é um tribunal de apelações, ou seja, não revisa as decisões, exceto em processo onde tenham ocorrido irregularidades. Para a acolhida neste mecanismo internacional tampouco poderá haver a mesma denúncia pendente na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU). O movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente e o de direitos humanos realizou inúmeras denúncias sobre as violações cometidas pelo Estado na FEBEM, em São Paulo, e, por não haver soluções adequadas, o Brasil foi condenado por essa Corte. Se, por um lado, mecanismos como a Corte Interamericana demonstram um aprimoramento no sistema de justiça, por outro, também pode indicar a incapacidade dos Estados em punir os violadores de direitos. A militância nos movimentos sociais nos propicia essa leitura mais ampla das possibilidades e lacunas para a efetivação dos

Page 168: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

157

Na esfera Estadual, existem o Tribunal de Justiça, o Tribunal de Justiça

Militar, os Tribunais do Júri, os Juizados Informais de Conciliação, os Juizados

Especiais de Pequenas Causas.

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

A divisão do Estado para a administração da justiça é feita por circunscrições

judiciárias, comarcas e distritos.

Nas comarcas existem os Juízes de Direito de Primeira Instância, atuando em

varas cíveis, criminais, de família e sucessões, da Infância e da Juventude, do Idoso,

quantas forem necessárias, que proferem as decisões.

A Justiça de Segunda Instância é órgão hierarquicamente superior que, por

meio das suas Câmaras, reexamina a matéria por provocação de um recurso. Estas

Câmaras são organizadas no interior das Seções Criminal, Especial, Primeira e

Segunda Seção Civil. Quem realiza essa apreciação são desembargadores. Com

exceção da Seção Criminal, todas possuem cinco desembargadores cada, sendo

que na Câmara Especial atua o Decano, desembargador mais antigo na carreira. Os

recursos procedentes das Varas da Infância e da Juventude são julgados pela

Câmara Especial.

A Corregedoria Geral da Justiça é órgão fiscalizador da Justiça, realizando a

fiscalização por intermédio de correição junto aos Ofícios de Justiça (Cartórios

Oficializados) e nos Cartórios não Oficializados ou Extrajudiciais. A correição é Direitos Humanos, na qual estão contidas, como sujeitos destes, as crianças e adolescentes. Para maior aprofundamento sobre o tema consultar www.oea.org, www.pnud.org, www.cejil.org, www.acat.com.br, www.justicaglobal.org

Page 169: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

158

realizada por um conjunto de atos junto aos livros, autos judiciais e atos

administrativos, a fim de verificar a realização das competências nos termos legais.

Sobre os atores envolvidos no judiciário:

O juiz é bacharel em Direito e precisa estar investido no cargo, mediante

concurso público. Ele é o chefe mediato dos Assistentes Sociais e imediato do chefe

desses técnicos, isso no plano hierárquico administrativo. São atos do Juiz o

despacho (todos aqueles que não enfrentam o mérito e nem resolvem questões

incidentes), a decisão interlocutória (ato que no percurso do processo resolve

questão incidente – portanto, não encerra o processo) e a sentença (ato que põe

termo/fim ao processo).

O promotor de justiça é o representante do Ministério Público. Sua

atuação é obrigatória em todos os feitos relativos às crianças e aos adolescentes,

sob pena de nulidade de todos os atos praticados. Toda sua manifestação deve ser

orientada para propiciar o bem-estar das crianças e dos adolescentes. Essa atuação

é realizada por petição, cota (requerendo providencias diversas, sem se referir ao

mérito da causa) ou parecer (manifestação sobre o mérito da causa ou questão

incidental desta). Além da atuação nos autos, pode representar contra o Executivo

quando este não efetiva a política de atendimento prevista no ECA e outras

legislações.

O Setor ou Seção Técnica é órgão assessor dos juízes de Direito, no

qual o assistente social e o psicólogo realizam seu trabalho técnico.

Page 170: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

159

Como técnicos, são auxiliares da justiça e, embora em conformidade

com o Código Processual Civil atuem como peritos, são funcionalmente

denominados assistente social judiciário ou psicólogo judiciário, conforme sua área

de formação universitária. No mesmo Código está prevista a existência do assistente

técnico, que, por sua vez, aprecia e se manifesta sobre o parecer do técnico do

judiciário, sendo contratado por uma das partes para realizar tal atividade. Tem sido

cada vez mais comum a presença do assistente técnico nas ações de Família e

Sucessões, sendo raro nas ações junto à Vara da Infância e da Juventude.

Nesta pesquisa, quando houver referência ao assistente social ou psicólogo

judiciário, estes serão citado sem a qualificação judiciário ou denominado “técnico”

quando a referência abranger os dois profissionais.

O Cartório tem como responsável o escrivão-diretor, cargo de confiança do

juiz de Direito. Sua principal função é dirigir o Cartório, garantindo seu bom

andamento. Alguns juízes delegam aos escrivães-diretores a chefia administrativa

do Setor Técnico.

Sobre os termos do campo sócio-jurídico, utilizados na pesquisa

• Autos judiciais

Popularmente se utiliza o termo processo tanto para se referir ao conjunto de

atos judiciais quanto ao conflito. Processo é uma série ordenada de atos que

compõem o litígio. Os autos refletem tal processo, pois neles estão contidas todas as

peças pertencentes ao processo (petição inicial, documentos, manifestações,

Page 171: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

160

despachos, termos de audiência, decisões). Estas vão sendo anexadas nos autos

em ordem cronológica à sua apresentação

• Casos

Serão aqui utilizados como na linguagem popular para referir situações em

estudo.

• Partes

São os sujeitos do processo, sendo diferenciados por requerente (que fez o

pedido) e requerido (contra quem foi movido o pedido). Muitas vezes os assistentes

sociais e psicólogos utilizam outras nomeações para explicitar mais claramente

sobre quem tratam (genitores, genitora, genitor, avós etc.). Saliente-se que essa

terminologia decorre do Direito positivo, expressando a oposição de interesses.

• Suspensão ou destituição do poder familiar

Procedimento que objetiva suspender ou destituir os pais do exercício do

poder familiar, que abrange todos os deveres e direitos relacionados aos filhos.

Nesta pesquisa utilizou-se o termo destituição do pátrio poder devido a ser o termo

corrente na época em que ocorreram os casos em estudo. A nova terminologia –

poder familiar – foi introduzida com a mudança do Novo Código Civil, aprovado em

2002 e em vigor desde 2003, numa afirmação aos deveres e direitos de ambos os

pais, coerente com os termos da Constituição Federal.

• Colocação em família substituta

Page 172: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

161

Quando esgotadas as possibilidades de os filhos serem mantidos no convívio

cotidiano dos pais ou de um deles, as crianças e os adolescentes são colocados em

família substitutas, em três modalidades:

- Guarda – não implica na suspensão ou destituição do poder familiar, mas

obriga à prestação de todos os cuidados à criança ou ao adolescente. O guardião

tem poderes para opor-se a terceiros, inclusive aos pais. Contudo, a criança pode

ser pleiteada pelos genitores a qualquer tempo, bem como por outros que discordem

da manutenção com o guardião. Pela revogabilidade, não oferece segurança

quando o guardião deseja a permanência definitiva da criança sob seus cuidados.

- Tutela – pressupõe suspensão ou perda do poder familiar ou falecimento

dos pais. O tutor passa a ter os mesmos deveres e direitos dos genitores, devendo

prestar contas sobre os cuidados e administração de eventuais bens dos infantes.

Para a tutela ser revogada é necessária a instauração de procedimento

contraditório, salvo ocorra a concordância do tutor.

- Adoção – Procedimento precedido pela decretação da perda do poder familiar, que

confere ao adotando a condição de filho e, aos adotantes, de pais. O registro

anterior é cancelado e é realizado novo registro, inclusive incluindo os avós, sem

nenhuma identificação de que a pessoa foi adotada. A adoção não pode ser feita por

irmãos ou por avós, ou seja, na linha de geração vertical.

• Recurso – ação recursal

Toda decisão judicial é passível de recurso, que deve ser interposto pela

parte que “perdeu” a ação. Quem move o recurso é um advogado ou um promotor

Page 173: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

162

de justiça. Dois tipos de recursos são os mais utilizados nas Varas da Infância e da

Juventude e na de Família e Sucessões.

a) Agravo de Instrumento – utilizado contra decisão de questão incidental,

sem finalizar o processo e sem aprofundar sobre o mérito da causa.

b) Apelação – movido somente contra sentença que decidiu e encerrou o

processo. O juiz dá vista ao apelado, que responde e, após, é determinada a ida dos

autos ao Tribunal de Justiça.

São dois os tipos de efeitos desses recursos: há o recurso devolutivo, que faz

encaminhar os autos ao Tribunal para reexame da decisão, e o recurso suspensivo,

que suspende a execução (cumprimento) da sentença até o julgamento definitivo da

Segunda Instância.

É interessante observar que o ECA dispõe no seu artigo 198, inciso VI,

que a apelação será recebida em seu efeito devolutivo, ou seja, a sentença da

Primeira Instância pode ser cumprida, independentemente de se aguardar a decisão

de Segunda Instância. Porém, cabe efeito suspensivo quando for interposto recurso

contra adoção por estrangeiros ou quando a autoridade judiciária julgar que há

perigo de dano irreparável ou de difícil reparação.

• Acórdão

É a decisão de Segunda Instância, proferida em votação por três

desembargadores, integrantes de alguma Câmara. O acórdão poderá reformar

total ou parcialmente a sentença, ou mantê-la integralmente.

Page 174: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

163

3.3.1. Aproximações ao objeto

O assistente social inserido no Judiciário atua com uma diversidade de

situações, que lhes são colocadas às vezes no cotidiano do plantão, mas,

principalmente, através de autos judiciais. Diante destas demandas, o assistente

social mobiliza conhecimentos, realiza intervenções e apresenta pareceres que

podem contribuir ou não para a decisão judicial.

Verifica-se o desafio, neste cotidiano profissional, de se perceberem as

particularidades de cada caso, sem perder a articulação de elementos sócio-

históricos que influenciaram tal situação.

Com base nessas reflexões buscou-se identificar casos significativos

para o estudo proposto, levantando inicialmente os autos judiciais relacionados ao

direito da criança e do adolescente, nos quais houve recurso de uma das partes

junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Esse levantamento foi

realizado pela Internet, através do site deste Tribunal e de outros especializados em

jurisprudência, e em bibliografias especializadas. Por se tratar de “segredos de

justiça”, os acórdãos não ficam disponíveis e, então, recorreu-se ao ementário, que

possibilitou levantar dados gerais dos casos.

O levantamento de jurisprudências junto à biblioteca do Tribunal de Justiça

do Estado de São Paulo propiciou verificar a incidência de alguns temas

Page 175: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

164

relacionados a colocação em família substituta, abrigamento e violação dos deveres

do poder familiar:

A título de esclarecer a trajetória da pesquisa, é importante registrar

que a preocupação inicial havia sido a de pesquisar o que se considerava

“negligência” em relação à criança e ao adolescente, a qual tivesse sido

determinante para uma decisão judicial.

Existem diferentes conceitos elaborados por pesquisas das várias áreas.

Nesta aproximação foi possível identificar que, além da carência de uma

conceituação sobre o tema proposto, o mesmo foi utilizado com diversos

entendimentos. Encontramos dois conceitos que nos pareceram bastante

pertinentes dentro da perspectiva adotada:

A negligência se configura quando os pais (ou responsáveis) falham em

termos de alimentar, de vestir adequadamente seus filhos etc., quando tal

falha não é o resultado das condições de vida além do seu controle[...].

Quisemos enfatizar o relacionamento da negligência com as condições

sociais de vida dos pais, aspecto este tão relevante em uma realidade como a

brasileira (Azevedo e Guerra, 2002).

Sob o ponto de vista do Conselho Regional de Medicina de São Paulo:

Não é imperito quem não sabe, mas aquele que não sabe aquilo que um

médico, ordinariamente, deveria saber; não é negligente quem descura

alguma norma técnica, mas quem descura aquela norma que todos os outros

observam; não é imprudente quem usa experimentos terapêuticos perigosos,

Page 176: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

165

mas aquele que os utiliza sem necessidade.... Esse argumento, utilizado pelo

procurador geral da Corte de Apelação de Milão, Itália, coloca a

responsabilidade médica sob a ótica da ponderação.

A negligência evidencia-se pela falta de cuidado ou de precaução com que se

executam certos atos. Caracteriza-se pela inação, indolência, inércia,

passividade. É um ato omissivo. Oposto da diligência, vocabulário que remete

à sua origem latina diligere, agir com amor, com cuidado e atenção, evitando

quaisquer distrações e falhas.55

Porém, no levantamento dos casos tratados nas jurisprudências, o

conceito, majoritariamente, foi utilizado para acusar mães, pais ou outros56 de terem

negligenciado cuidados. Não foi possível identificar decisões que argumentassem

que houve falta de condições articulando-a à ausência de políticas públicas para

atender a criança, o adolescente ou a família. Neste sentido, o recorte a partir dos

casos relacionados à negligencia traria uma grande dificuldade. Verificou-se que a

discussão conceitual de negligência se tornaria o tema central e exigiria um debruçar

intenso, desviando o norte da pesquisa, qual seja, os processos de trabalho do

assistente social e a identificação de elementos apresentados nos seus laudos e

pareceres que tenham contribuído para jurisprudências.

Para proceder ao levantamento das ementas dos casos julgados na

Justiça de Segunda Instância, que constam no ementário do site do Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo, foram adotados alguns procedimentos

55 (http://www.cremesp.com.br) 56 É significativo salientar que a grande maioria recai sobre a mãe, posteriormente sobre os pais, sobre o pai e, raras vezes, sobre outros responsáveis. Em relação à mãe, não se evidencia simplesmente o reforço à questão de gênero, mas como as mulheres vêm enfrentando sozinhas o desafio de criar os filhos. Somando-se a isso, temos o que tem sido chamado de “feminização da pobreza”, decorrente de fatores combinados e da precarização das condições de vida.

Page 177: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

166

Realizou-se uma primeira leitura dos casos que envolviam crianças e

adolescentes por temas relacionados a situações de abrigamento, colocação em

família substituta (adoção, guarda, tutela), violação de direitos (individuais e

coletivos). Uma segunda leitura, seletiva, identificou aqueles que indicassem

elementos relacionados a questões sócio-econômicas e relações sócio-familiares

citados como subsídios para a decisão judicial, seja com realização ou não de

estudo ou perícia social. Esse processo de leitura foi fundamental para mensurar se

para se chegar aos objetivos pretendidos seria necessário verificar todos os casos

ou identificar uma amostragem intencional. No percurso deste levantamento,

verificando-se a necessidade de um olhar jurídico, mas também político sobre a

pesquisa, o Dr. Edson Sêda, foi entrevistado.

Alguns fatores levaram à escolha deste importante jurista. Edson Sêda

compôs o grupo que elaborou o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi

também consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância- UNICEF para a

América Latina, é Procurador Federal aposentado e tem engajamento na defesa da

implementação do ECA. Cabe ressaltar que esta pesquisa adota grande parte das

reflexões desse especialista como referência ético-política no trato da criança. Cabe

salientar que suas reflexões subsidiam a militância na defesa dos direitos da criança

e do adolescente, o que as tornam inerentes a esta pesquisa principalmente no

tocante à participação social e ao dever do Estado para a efetivação dos direitos da

criança e do adolescente.

Com tais posicionamentos, o Dr. Edson Sêda considerou que esta pesquisa

poderia ter dois enfoques. O primeiro seria de interesse mais jurídico, portanto,

Page 178: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

167

relativo aos aspectos processuais do casos analisados. Nessa linha, caberia uma

análise global de todas as jurisprudências, observando suas tendências, ou seja, o

que a maioria dessas decisões defendeu e definiu, e suas especificidades, que

indicariam possíveis inovações ou exceções. Um segundo enfoque seria o de

verificar os casos significativos, que seria de grande relevância para a efetivação da

justiça logo na Primeira Instância.

Discutindo esses dois enfoques, pode-se aprofundar que há necessidade de

explicitar qual o papel do assistente social e sua contribuição para a efetivação dos

direitos da criança e do adolescente. Dr. Edson Sêda alertou sobre a relevância de a

profissão se colocar de maneira fortalecida, com clareza de seu projeto profissional

diante do agravamento e novas configurações das desigualdades sociais. Por

exemplo, citou que tem sido consultado sobre situações que evidenciam a

necessidade de esclarecer que o assistente social não realiza as mesmas

atribuições do Conselheiro Tutelar. Em sua percepção, o assistente social poderá

dar uma grande contribuição ao debate sobre a real distribuição de renda e sobre a

qualidade das políticas sociais públicas. Deixou explícita sua valorização da

profissão, mas implícita a crítica de que a categoria precisa ter maior organização e

se posicionar pelos direitos da população. Em outra oportunidade, em uma reunião

restrita organizada pelo Grupo Tortura Nunca Mais-SP, salientou em suas falas que

passamos por uma conjuntura em que o assistente social pode dar uma direção para

romper com o paternalismo e assistencialismo das políticas públicas. Reconhece

nesta categoria o potencial de mobilizar a participação social. No âmbito do

judiciário, reconhece que o assistente social deve se favorecer da concepção usual

de que “é o olho do juiz”, no sentido não policialesco, mas de permitir a leitura mais

Page 179: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

168

ampla das dificuldades vividas pelas crianças e suas famílias, principalmente sem

apoio do poder público.

Com essa redefinição necessária, buscou-se selecionar os casos para estudo

integral dos autos. Visando também elucidar ao leitor não familiarizado com a forma

da linguagem jurídica e seus modos de apresentação, abaixo estão alguns

exemplos de como são apresentadas tais ementas:

MENOR - Pátrio poder - Perda - Inadmissibilidade - Alegado abandono da

criança pelo pai após o falecimento da esposa por complicações de parto -

Inocorrência - Genitor que deixou o filho aos cuidados de parentes apenas

aguardando sua estabilização material e emocional face à perda de sua

consorte - Diferença econômica entre os requerentes e o pai, que não justifica

a perda da guarda - Recurso não provido. O abandono, para autorizar a

medida gravíssima da perda do pátrio poder, consiste em deixar o menor em

desamparo, sem contar com uma pessoa que o proteja. (Apelação Cível n.

18.083-0 - São Paulo - Relator: SABINO NETO - CESP - M.V. - 23.06.94)

O texto das ementas geralmente apresenta o fato em julgamento, a situação

que levou ao recurso e, por fim, a decisão do Tribunal. Também é possível identificar

a origem dos autos e a Câmara responsável pela decisão. Nas pesquisas

realizadas foi possível observar que, em alguns casos, ao mencionar-se a realização

de estudo social ou psicossocial, foi colocada alguma apreciação a respeito deste

procedimento técnico.

Page 180: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

169

MENOR - Modificação de guarda - Ação julgada procedente em parte,

concedida ao pai a guarda da filha, portadora de deficiência visual, mantida a

guarda do filho com a mãe - Ausência de estudo psicológico e deficiência do

estudo social tocante à dinâmica familiar da residência da genitora dos

infantes - Julgamento convertido em diligência. (Apelação Cível n. 124.566-4 -

Itápolis - 8ª Câmara de Direito Privado - Relator(não publicado)27.03.00 -

V.U.)

GUARDA PROVISÓRIA - Pelo prazo de 1 ano, conferida a casal interessado

em oferecer o apoio necessário à criança em tela, sensibilizados por tomar

conhecimento de que esta necessitava de tratamentos médicos

especializados - Interposição de agravo de instrumento pelo Ministério

Público requerendo a reforma da decisão, uma vez conferida a guarda a casal

não cadastrado, após a apresentação de simples relatório do assistente social

do juízo, inobservando-se a realização de estudo social mais aprofundado

quanto aos guardiães, bem como, pela ausência de intervenção do órgão

ministerial, que apenas manifestou-se nos autos tomando ciência da

concessão do pedido - Prevalência dos interesses da criança que, segundo

informações atualizadas, apresenta-se em condições de desenvolvimento

satisfatório, devendo ser mantida a guarda provisória, com acompanhamento

judicial - Recurso não provido. (Agravo de Instrumento n. 46.225-0 - São

Paulo - Câmara Especial - Relator: Yussef Cahali - 28.10.99 - V.U.) grifo

nosso

Outros exemplos, que evidenciam a contribuição do estudo social para a

decisão:

Page 181: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

170

CRIANÇA - Ação de mudança de guarda - Cumulação com destituição de

pátrio poder - Suspensão concedida liminarmente pelo juiz -

Inadmissibilidade, notadamente se o autor já detém a guarda provisória do

menor - Medidas graves que impõem instrução processual robusta e cautela

extrema para serem efetivadas, com estudo social, inclusive, visando, antes

de tudo, à busca da verdade material, a fim de que sejam resguardados os

interesses da criança no que se refere à melhor formação moral, educacional

e social. PÁTRIO PODER - Pretendida suspensão liminar - Inadmissibilidade

se existe regulamentação de visitas aos filhos concedida a qualquer dos

ascendentes. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) grifo nosso.

AGRAVO DE INSTRUMENTO - Decisão que, em processo de adoção

requerida pelos agravados, determinou fossem feitas visitas da adotanda aos

pais biológicos, estando a adolescente sob a guarda dos adotantes - Estudo

social que indica o acerto da determinação - Necessidade de estabelecer qual

a melhor opção, considerados os interesses da adolescente - Recurso não

provido. (Agravo de Instrumento n. 69.659-0 - São Paulo - Câmara Especial -

Relator: Hermes Pinotti - 20.07.00 - V.U.)

SEPARAÇÃO JUDICIAL - Guarda de filhos - Decisão que acolheu o estudo

social para determinar que um filho ficasse com o pai e os demais com a mãe

- Sentença confirmada - Recurso improvido. (Apelação Cível n. 240.869-1 -

São Paulo - 1ª Câmara Civil - Relator: Alexandre Germano - 17.10.95 - V.U.)

Há também determinação para realização de estudo social em situações cujo

julgamento possui elementos quanto aos aspectos processuais e legais, mas que às

vezes inclui aspectos diante dos quais a posição ética é imperativa. Por exemplo,

Page 182: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

171

houve um caso em que o crime cometido contra criança de nove anos de idade

poderia ser “extinto” se fosse realizado “casamento”.

SUPRIMENTO DE IDADE E CONSENTIMENTO - Hipótese em que o pedido

decorreu de ato ilícito praticado contra menor de 9 anos - Casamento que,

realizado, viabilizaria a extinção da punibilidade em sede criminal -

Superveniência de gravidez envolvendo outro parceiro sexual, não obstativa

do pedido por parte do pretendente de 30 anos - Pai da menor em local

incerto e não sabido - Dúvidas sobre a real situação pessoal da menor em

face da voluntariedade do pedido e relevância de seu interesse, único que

deve ser preservado - Artigo 1.107 do Código de Processo Civil - Conversão

do julgamento em diligência à eventual localização do pai e estudo social da

menor ao convencimento da adequação da medida postulada - grifo nosso -.

(Apelação Cível n. 003.361-4 - São Paulo - 6ª Câmara de Direito Privado -

Relator: Munhoz Soares - 02.10.97 - V.U.)

O mais aberrante é que o Novo Código Civil aprovado em 2002 e em vigor

desde 2003, manteve no seu artigo 1.520 a permissão de

...casamento de quem ainda não atingiu a idade núbil para evitar imposição

ou cumprimento de pena criminal. Em nosso entender, esse artigo relaciona-

se à extinção da punibilidade prevista no Código Penal, aplicável aos casos

em que a vítima de delitos sexuais se casa com o agressor. Pressuposto para

este benefício consiste no fato de a vítima ter sua “honra preservada” por

meio do casamento (Pimentel, 2002, p. 18).

Portanto, eventualmente são colocadas situações que são legalmente

previstas, com possíveis soluções dentro de tal legalidade, mas que estão

Page 183: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

172

incompatíveis com valores humanos que têm sido defendidos. Cabe ao assistente

social, em tais casos, independentemente dos aspectos legais, posicionar-se

criticamente e com encaminhamentos coerentes com a ética profissional.

Esta reflexão se articula ao debate do capítulo anterior, onde se discutiu a

relevância de que a atuação profissional considere a totalidade da realidade, com

vistas a poder contribuir com a melhor aplicação das leis e ampliação/efetivação dos

direitos sociais. As conquistas nesta direção podem ser, assim, efeitos desta prática

persistente de sujeitos coletivos.

Assim, no levantamento das ementas não apenas do Tribunal de Justiça do

Estado de São Paulo, mas também de outros estados, do Superior Tribunal Federal

e outras pesquisas sobre jurisprudências, estudaram-se as mais variadas situações:

maus-tratos, disputa de guarda, destituição do poder familiar, tutela, adoção, idade

muito elevada do adotante, adoção por homossexual, crimes contra a criança,

pedofilia na Internet, filmes em televisão em horário impróprio, enfim, situações da

vida cotidiana que emergem no judiciário, quando muitas vezes, são solicitados os

assistentes sociais e psicólogos para elucidar alguns fatos e apontar elementos

importantes para a decisão do litígio.

Este levantamento dos casos foi permeado por reflexões sobre o

Judiciário, o cotidiano profissional, o projeto ético-político-profissional, a ausência

das políticas públicas, o agravamento da questão social e suas velhas e novas

expressões como objeto de intervenção do assistente social. Porém, havia um eixo

principal de reflexão: como o Serviço Social, compondo o trabalho coletivo, contribui

Page 184: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

173

das mais diferentes formas para as decisões judiciais? Seria uma participação que

afirma a democracia, os direitos sociais, busca desvelar as desigualdades sociais

que se expressam no seu cotidiano de trabalho e, com isso, pensar enfrentamentos

e encaminhamentos? Assim, qual seria a sua contribuição e como ela se expressaria

neste campo?

Considerando essa inserção, a reflexão expressa por Iamamoto ecoou:

Como todo trabalho resulta num produto, qual é o produto do trabalho do

assistente social? Não dá pra dizer “não tem” ou “não sabe”, pois se assim

fosse este trabalho especializado não teria demanda ( 2003, p. 66).

Conforme resgatado no histórico sobre o Serviço Social e sua inserção

no Judiciário, ao refletir sobre os processos de trabalho, buscou-se não apenas

identificar os aspectos técnico-operativos, mas compreendê-los como resultado de

determinações sócio-institucionais e da conjuntura histórica em que se circunscreve

e se desenvolve a profissão.

Com este breve resgate pode-se afirmar que, para o Serviço Social

poder contribuir para a justiça social ao estar inserido no Judiciário, é preciso

compreender a profissão e sua trajetória, bem como a instituição.

Colman (2004) faz o debate sobre o Direito e o Judiciário, onde problematiza

que também esta instituição sofreu os impactos da ditadura brasileira. Portanto, a

reconstrução das instâncias democráticas e a construção de novos mecanismos da

democracia perpassam as profissões e as instituições nas quais se inserem.

Page 185: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

174

Refletir sobre os processos de trabalho é fundamental quando se

busca compreender os rumos ético-políticos que orientam uma determinada

profissão, não apenas no seu papel cotidiano, respondendo a demandas

emergentes, mas como o faz enquanto projeto de uma categoria, que está articulada

a projetos societários.

Essas reflexões devem ser feitas a partir do cotidiano, mas superando

sua imediaticidade, percebendo-o como construção histórica, no qual sujeitos

compõem processos coletivos, embora pareçam individuais.

Por este percurso reflexivo, busca-se compreender o conjunto das

ações profissionais evidenciadas nos autos, os quais culminam numa decisão em

Segunda Instância. Ou seja, naquelas situações em que a decisão judicial de um

caso, atendido e julgado num determinado Foro, gera discordância, as partes e/ou o

Ministério Público movem um recurso judicial que será julgado na Instância Superior.

Empiricamente, verifica-se que muitos dos argumentos na Justiça da Infância e da

Juventude mencionam conteúdos dos laudos sociais ou psicossociais elaborados

pelos técnicos (assistentes sociais e/ou psicólogos).

Após o debate com a banca de qualificação, considerou-se o universo

bastante fluido e muito extenso para a dimensão de uma dissertação de mestrado.

Além disso, há diferenças, tanto processuais quanto de conteúdo dos conflitos, entre

as ações da Vara da Família e Sucessões, Cíveis e da Infância e da Juventude.

Page 186: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

175

No âmbito da infância, empiricamente se observa que há maior atuação

recursal diante de casos de destituição do poder familiar, medidas sócio-educativas

e adoção. As medidas protetivas dificilmente são matéria de recursos, pois em geral

as crianças/adolescentes não contam com pais, responsáveis e advogados que

representem seu direito a tais medidas.

Articulando as considerações da banca, foram retomadas as ponderações do

Dr. Edson Sêda que também apontou a importância de seguir pelo caminho dos

casos significativos. Definitivamente, assumiu-se que esta pesquisa não seria um

levantamento jurisprudencial, mas objetivou qualificar quais foram os subsídios do

trabalho do assistente social que contribuíram para a aplicação da Lei e para as

jurisprudências. Para tal averiguação seria necessário, então, percorrer todo o

caminho processual dos casos.

Tal constatação, provocou novo levantamento, apenas do conjunto de ações

judiciais originadas numa determinada Comarca da região metropolitana de São

Paulo, as quais tramitaram na Vara da Infância e da Juventude e tiveram decisões

na Segunda Instância.

Em virtude da gravidade das conclusões sobre as situações observadas nos

autos, na elaboração final deste trabalho optou-se por omitir o nome da Comarca e a

identificação da Vara da Infância e da Juventude. Sendo o objetivo da pesquisa

subsidiar, com suas reflexões, o trabalho do assistente social, tal omissão apenas

deixa de ilustrar um lugar onde ocorre a intervenção judicial na vida da população,

não interferindo em nenhum aspecto na cientificidade dos procedimentos e das

Page 187: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

176

análises. Nesse sentido, não agregaria nenhum conhecimento relevante permitir a

identificação da Comarca/Vara da Infância e da Juventude onde tramitaram os

autos. A pesquisadora não poderia deixar de realizar as críticas diante dos

elementos que foram sendo levantados, mas cabe preservar a identidade dos

profissionais envolvidos, os quais receberão a devolutiva dos resultados deste

estudo.

Por todo o exposto, quaisquer dados que poderiam levar à identificação

mencionada foram omitidos. Esta explicação se fez necessária, pois os resultados

decorrem do próprio pesquisar que se fundamentou numa perspectiva crítico-

dialética. Coerentemente, há pressupostos éticos que compõe esta perspectiva, o

que exige a crítica radical impessoal e objetiva, não podendo relevar qualquer dado

que informe a possibilidade de realizar um trabalho mais qualificado em direção à

efetivação dos direitos da criança e da família (biológica, substituta, e/ou extensiva).

Tratando-se de uma pesquisa exploratória, avaliou-se que os casos

significativos de uma amostra intencional possibilitariam verificar se e como o

trabalho do assistente social pode contribuir para a criação de jurisprudências.

Compreendendo que são necessários elementos que fundamentem a decisão

judicial, observou-se principalmente os nexos entre os elementos apurados no

estudo social e as análises da equipe técnica, dos representantes do Ministério

Público da Primeira e Segunda Instâncias, dos juízes e dos desembargadores.

Assim, procurou-se identificar quais elementos subsidiaram as manifestações, bem

como possíveis fragilidades.

Page 188: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

177

Verificada a diversidade de situações que podem gerar novas

jurisprudências, foram necessárias outras aproximações. Para tanto, foram

estudados os casos de destituição do pátrio-poder,57 maus-tratos, adoção, guarda e

abrigamento. Além destes, relacionados às medidas protetivas, também foram

identificados casos sobre medidas sócio-educativas, mas que, devido às suas

particularidades, não foram incluídos na análise.

Com essas considerações, foram levantadas na Vara da Infância e da

Juventude escolhida as decisões da Primeira Instância que motivaram recursos

judiciais por alguma das partes, através do “Livro de Remessa ao Tribunal de

Justiça”. Alguns casos anteriores à abertura de tal livro foram registrados

posteriormente, mas é possível que nem todos constem no referido instrumento de

registro do cartório da Vara da Infância e da Juventude.

Frente a este universo, no período de 1991 a 2001, identificou-se um

total de 45 casos, originados na Vara da Infância e da Juventude escolhida, que

receberam recurso junto à Segunda Instância. Para chegar ao total real foi

necessário comparar os dados parciais obtidos pelos livros da referida Vara e todo o

levantamento junto ao Tribunal de Justiça.

Desses 45, estudamos as ementas dos 28 que são indicados como

casos jurisprudenciais. Eram 11 casos de destituição do pátrio poder; três casos de

destituição do pátrio poder cumulada com adoção; cinco casos de adoção; quatro

de modificação de guarda; dois sobre direito de visitas; um sobre inscrição no

57 O termo pátrio poder foi substituído por poder familiar a partir do Novo Código Civil, de 2003.

Page 189: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

178

Cadastro de Pessoas Interessadas em Adoção;58 e dois sobre questão relacionada a

comunicação audiovisual.

3.3.2. Casos selecionados

Dentre eles, foram escolhidos 11 casos significativos, mas não foram

localizados três destes autos, e os oito localizados foram estudados integralmente. A

motivação foi intencional, devido à complexidade do caso, ao tipo de referência dos

operadores do Direito, ao estudo social e à influência na decisão.

Neste sentido, tratou-se especificamente de três casos desse universo,

denominados casos A, B e C, que serão peças principais das análises conclusivas,

sem perder de vista todo o universo explorado.

A fim de ilustrar o que compõe o estudo realizado, registrou-se que os

11 autos analisados são compostos por 2.076 folhas, (ou 4.152 páginas, se assim

consideradas)., embora nem todas sejam utilizadas no seu verso. Contudo, todas as

informações processuais naturalmente compõem o estudo do caso.

A pesquisa indicou um aspecto importante, que é popularmente citado

como a “morosidade” do Judiciário. Assim, vale registrar alguns dados sobre a

questão do tempo de tramitação. Ressalte-se que, obviamente, para validade dos

58 ECA. Art.50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. § 1ª – O deferimento da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do Juizado, ouvido o Ministério Público. Art. 29 – Não se deferirá colocação em família substituta da pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado.

Page 190: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

179

feitos, todos os procedimentos devem estar em acordo com o Código Processual

Civil e os procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. Abaixo

estão identificados alguns dados em relação a este tempo de tramitação, sobre os

casos que estão denominados como 1, 2, 3, 4 e 5. Os dois últimos, devido a

aspectos significativos para a pesquisa, foram abordados também nas

considerações finais deste trabalho. Considerando que os casos A, B e C foram

tratados em detalhe, tais dados estão contidos na análise e não foram descritos no

quadro, evitando-se tornar uma leitura repetitiva. O tempo relacionado à decisão na

Segunda Instância foi calculado considerando-se desde o dia em que os autos foram

recebidos no Tribunal de Justiça até a data do acórdão.

Caso 1 Adoção pleiteada com concordância inicial da genitora

Tempo até a

tomada de

decisão

Primeira Instancia

4 anos e 1 mês

Segunda Instância

8 meses

Total do processo

4 anos e 9 meses

observações Na Primeira Instância houve um esforço em localizar a genitora, bem como

verificar seus laços com a criança, constatando-se que, contrário ao

discurso, não havia mostras de empenho e interesse.

Caso 2 Denúncia de Conselho Tutelar, onde os pais negligenciavam os cuidados de

duas crianças, já com o desenvolvimento cognitivo e motor prejudicado.

Denúncia feita após tentativas de que alterassem a situação com apoio de

serviços municipais

Page 191: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

180

Tempo até a

tomada de

decisão

Primeira Instancia

1 ano e 6 meses

Segunda Instância

5 meses

Total do processo

3 anos e 6 meses

observações As crianças foram colocadas para adoção, mas devido a deficiência que

ainda possuíam, decorrente de, dentre outros fatores, de severa negligencia

sofrida, não se localizou interessados no cadastro da Vara e nem no

Cadastro Central59. Observe-se a rapidez em que a Câmara julgou o caso,

que apresentava riqueza de detalhes sobre o nível de violação e sobre o

empenho dos órgãos envolvidos para favorecer a reorganização da família

biológica, o que, contudo, não atingiu os resultados pretendidos.

Caso 3 Pedido de adoção formulado por tios maternos

Tempo até a

tomada de

decisão

Primeira Instância

1 ano e 6 meses

Segunda Instância

1 ano

Total do processo

3 anos e 3 meses

Observações Caso que exigiu acompanhamento do Setor Técnico, posto tratar-se de

pedido de adoção e que requerentes não tinham elaborado adequadamente

a infertilidade e outros aspectos fundamentais para realmente assumirem a

criança como filha. Observou-se fragilidade da genitora e baixa adesão às

orientações e encaminhamentos. Após a decisão em Segunda Instância,

manteve-se acompanhamento técnico antes de se deferir a adoção. Houve,

ainda, demora para o cancelamento do registro anterior, realizada em

cartório de outro Estado.

59 Todos as pessoas aprovadas para adoção possuem seus dados no Cadastro Central do CEJAI – Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional. Este Cadastro também possui entidades que atuam com adoção internacional e é acionado sempre que não existem casais ou pessoas inscritas na Vara local, dispostas a adotar a criança que está sendo colocada em família substituta nesta modalidade.

Page 192: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

181

Caso 4 Criança entregue pela genitora a casal de conhecidos, com posterior

arrependimento.

Tempo até a

tomada de

decisão

Na Primeira Instância

1 ano e 1 mês

Segunda Instância

1 ano e 4 meses

Total do processo

3 anos e 1 mês

Observações Caso em que há poucos dados sobre a genitora, que manifestou

arrependimento em audiência três meses após a entrega. Há casos

jurisprudenciais que, tratando de situação semelhante, opina pelo retorno à

família biológica, vez que a entrega não constituiria abandono ( vide o caso

citado no início deste item, originado no Tribunal de Justiça de Minas

Gerais).

Caso 5 Caso de destituição do pátrio poder, havendo retorno da criança sob os

cuidados dos genitores, com concordância dos requerentes

Tempo até a

tomada de

decisão

Primeira Instância

1 ano e 3 meses

Segunda Instância

Primeira decisão em 8

meses; nova decisão

após mais um ano

Total do tempo

processual

3 anos e 3 meses

Observações Caso em que após manifestação favorável à destituição do pátrio poder pelo

Procurador de Justiça, foram juntadas novas peças, em que se informava a

desistência dos requerentes.

Page 193: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

182

O quadro acima ilustra quais foram os prazos em que ocorreu o andamento

dos autos.60 Em geral, observou-se variação de prazos entre a chegada dos autos à

Secretaria do Tribunal de Justiça e a posterior distribuição ao Ministério Público para

dar vista ao Procurador de Justiça. Este, em geral, manifestou-se com agilidade nos

autos.

Levantaram-se a partir dos autos, os laudos, relatórios e outros documentos

relacionados à atuação da equipe técnica, os elementos que fundamentaram as

suas posições. Esses itens foram abordados quando tratamos do “conjunto dos

processos de trabalho”.61Além destes, consideraram-se também as manifestações

do Ministério Público e dos advogados, documentos de instituições, os termos de

audiência, a decisão judicial de Primeira e Segunda Instâncias e a decisão final do

´processo.

Ao averiguar o conteúdo que foi registrado e o que foi acolhido por tais

operadores podem-se levantar os procedimentos e formas utilizados para tanto. A

relevância está em poder verificar quais conteúdos contidos na leitura técnica do

assistente social tenham tido maior relevância no desfecho do litígio. Portanto, este

profissional deve cuidar da elaboração dos registros para que seu discurso provoque

a atenção do seu leitor e até oriente a sua reação.

Com tal intenção, também foram feitas análises do seu conteúdo quando

sugeriram divergência de significados entre si.

60 Avaliara-se que tais dados seriam dispensáveis, mas a equipe técnica em geral não tem tais referências e no seu cotidiano são consultados pelos usuários. Embora não seja um fato determinante para a efetivação do seu trabalho, parece ser um dado importante para poder prestar eventuais esclarecimentos ao usuário e, mesmo, para se ter conhecimento sobre o assunto. 61 Abordamos o tema no Capítulo 1 – Histórico do Serviço Social no Judiciário, quando tratamos dos processos de trabalho do assistente social.

Page 194: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

183

CASO A

Neste caso a criança foi entregue pela genitora à Vara da Infância e da

Juventude. A mesma foi ouvida posteriormente em audiência, quando confirmou que

estava entregando a criança. Após a audiência, a criança passou vinte dias em

abrigo e, após, foi colocada em família substituta, que era um casal inscrito no

Cadastro de Pessoas Interessadas em Adoção da Vara.

A genitora contava 21 anos à época, sendo que o genitor da criança não

reconheceu a paternidade. A genitora declarou em Juízo que não possuía condições

para manter a filha consigo e “gostaria que a justiça encontrasse uma família” (termo

de audiência). Tinha outra filha, então com três anos de idade , sob os cuidados dos

avós maternos, em outro Estado.

O primeiro e único laudo foi apresentado após quatro meses da data de

início dos autos. Em razão de a criança ter sido entregue aos cuidados do casal

inscrito no Cadastro de Adoção, o casal era acompanhado

“desde que a criança foi entregue ao casal, em xx, [...] pois constantemente

os requerentes nos procuram (grifo nosso) para compartilhar suas vivências e para

expressar a felicidade que sentem ao estarem consolidando o sonho de se tornarem

pais”

O laudo afirma a boa adaptação da criança que “deu sinais de sua satisfação

por ter sido acolhida desde as semanas iniciais. Atualmente, a criança demonstra

estar com boa saúde física e extremamente vinculada a seus novos pais”.

Page 195: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

184

Observam-se os seguintes elementos apresentados na Primeira Instância

pelo promotor de justiça, juiz de Direito e advogado, com base no estudo

psicossocial.

O Promotor de Justiça levantou objetivamente a legalidade e as

condições do casal requerente para adotar a criança:

“Há notícias nos autos de que o casal requerente é cadastrado no Banco de

Adoção deste Juízo[...], presumindo-se, pois, que tem condições morais, médicas e

econômicas[...]. Comprovada está a estabilidade familiar, pelos relatórios juntados e

depoimentos colhidos”.

O juiz também se manifestou em relação aos requerentes:

“Com os Requerentes, a criança vem recebendo todo o necessário para uma

correta formação, tendo havido plena adaptação em seu novo lar, como atesta a

avaliação técnica nos autos.

O deferimento do pedido, dessa forma, representa real vantagem à criança”

(artigo 43 da citada Lei [ECA]).

As técnicas citaram no laudo que por ocasião da avaliação para inscrição no

Cadastro de Pessoas Interessadas em Adoção foram “constatadas algumas

nuanças do relacionamento conjugal que chegaram a causar preocupações”, tendo

Page 196: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

185

o casal sido encaminhado à terapia familiar. Esta informação foi problematizada pelo

advogado:

“Ainda que pareça que tais nuanças estejam plenamente superadas e

amadurecidas, faz-se necessário um certo rigor antes de se deferir uma adoção a

um casal com tal perfil.”

Cabe observar que o casal havia realizado avaliação psicossocial,

exigida para inscrição no Cadastro. As técnicas observam a dinâmica do casal, seu

histórico, e todos os aspectos de relevância para o propósito de adoção de uma

criança. Assim, se ocorreram situações e estas foram superadas, seja por dinâmica

do casal, ou decorrente de apoio técnico da equipe ou de profissionais externos ao

judiciário, não caberia resgatar este fato nos autos em questão. Por melhor que seja

a intenção dos técnicos de esclarecer que os problemas foram superadas, por outro

lado, é como se o casal estivesse em suspeição por fatos do passado (ainda que

superados). Tal dubiedade, como visto, pode ser utilizada de forma indevida.

Na dinâmica do contraditório, fazendo uso de tal informação, o advogado

moveu recurso contra a decisão, tendo, então, novo parecer dos operadores do

Direito.

Recurso em Primeira Instância:

Ressalte-se que neste momento atuou outra representante do Ministério

Público (substituta), a qual resgatou de forma muito clara toda a trajetória da

Page 197: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

186

situação da criança, até sua chegada ao casal inscrito regularmente no Banco de

Adoção. Tal procedimento foi importante para o andamento do caso, vez que os

autos não deixavam claro que situações havia ocorrido para a criança ser colocada

em família substituta.

A Promotora apreciou os autos e levantou os dados para sua manifestação:

“a genitora biológica compareceu espontaneamente em juízo, com o intuito de

entregá-la à adoção, alegando ausência de condições para criá-la e educá-la, bem

como afirmando que ‘a menina não vai fazer falta pra mim’.”

Além disso, analisou que a genitora, em audiência

“novamente afirmou o desejo de entregar a criança para que fosse adotada.

Estando a criança sem responsável legal, foi encaminhada a entidade de abrigo,

enquanto se realizava consulta ao Cadastro de Adotantes deste juízo.”

Sobre a avaliação técnica, mencionou que

“Passado o prazo estipulado por lei para o estágio de convivência, foi

realizada a avaliação pela assistente social e pela psicóloga deste juízo,

constatando-se a plena adaptação da infante à nova família.”

É relevante registrar a importância da presteza do trabalho dos escreventes.

No presente caso, foi certificado que

Page 198: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

187

“revendo em cartório os autos de nº xxx, em nome da crianças y, verifiquei

que não houve a destituição do pátrio poder da genitora, pois a mesma em

audiência manifestou o desejo de entregar (a criança) para adoção. Outrossim, há

nos autos supra, determinação para a juntada da oitiva da genitora e arquivamento

daqueles autos, a qual foi cumprida conforme fls.09 destes autos.”

O Juiz retomou os fundamentos jurídicos da decisão, explicitando que

foram respeitados todos os trâmites legais. Determinou, então, que fosse remetido

para o Tribunal.

Recurso na Segunda Instância

A Procuradora de Justiça manifestou-se um mês após receber os autos,

quando apontou as falhas da primeira manifestação do representante do Ministério

Público na primeira instância e alguns aspectos processuais.

Trouxe, então, os primeiros elementos relacionados aos direitos da genitora

para a preservação de seus vínculos com a criança. Considerando o teor deste

argumento, transcrevemos parte de sua manifestação:

“Consta que foi esclarecida [pelo magistrado] das conseqüências de sua

atitude, mas não consta que tenha sido de algum modo esclarecida que ante a

pobreza poderia ter sido incluída em algum programa de auxílio ou apoio, o que era

de rigor (art. 23 e seu parágrafo único, ECA) – grifo nosso.

Page 199: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

188

Não há nos autos prova de que tenha abandonado material, emocional,

afetivamente a criança.

A simples declaração de que não tem condições de criar a criança, de que

procurou a Justiça Especializada para que colocasse a recém-nascida de nove

meses em família substituta não pode ser tida (sem outros elementos) como

abandono, se não se tentou colocar a família em programa de apoio, com

acompanhamento de técnicos especializados.

Como se infere dos autos que a criança foi institucionalizada somente após a

oitiva da genitora, é de presumir que, apesar dos parcos recursos materiais, a

apelante deu o atendimento possível à criança, cuja carteira de vacinas demonstra

que a menor foi levada a posto de saúde nas datas corretas.”

Essa apreciação foi bastante assertiva no que se refere aos direitos da

criança, vez que o ECA preconiza o direito ao convívio familiar, devendo haver ação

da política de atendimento para evitar o rompimento desses vínculos.

Considerando aspectos processuais, a representante opinou pela nulidade da

sentença.Após seis meses da manifestação da Procuradora de Justiça, os autos

foram, então, examinados pela Câmara Especial. O relator considerou que não havia

que se questionar os trâmites processuais indicados, posto que o caso constituía

hipótese de adoção consensual, cabendo respeitar as normas do ECA. Além disso,

apreciou o caso:

Page 200: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

189

“Insta consignar que o apelo interposto pela genitora não tem por objetivo o

resguardo dos superiores interesses da menor, mas, pelo que se infere de seus

termos, aos de caráter pessoal.”

Assim, a Câmara rejeitou o recurso. O caso tramitou e foi concluído em um

ano e nove meses.

Analisando os autos, verificou-se que há brevíssimo laudo psicossocial

(em uma lauda), referente apenas à apreciação sobre o estágio de convivência. Se

não existisse a manifestação da Promotora de Justiça substituta, diante do recurso

junto à Segunda Instância, provavelmente haveria o retorno dos autos para

diligência quanto à situação psicossocial do caso, gerando maior demora na solução

do litígio.

Assim, a relevância de estudar este caso deve-se ao fato de que a Promotora

de Justiça Substituta, que atuou após a titular, ao apresentar as contra-razões face à

apelação do advogado da genitora, resgatou elementos fundamentais que

explicaram a chegada da criança até o casal que pleiteava a guarda com fins de

adoção.

Esses autos evidenciam, ainda, que apenas um laudo, sumário, sobre a

adaptação de um bebê à família que pleiteia sua adoção, pode ser insuficiente para

preservar os direitos da criança. De fato, como alertou a procuradora de justiça, não

se vislumbram indícios de uma atuação do Setor Técnico para a preservação dos

Page 201: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

190

vínculos e não há citação de que foram empreendidos esforços neste sentido,

esclarecendo se não houve atendimento pela política pública devido ao desinteresse

da genitora, por não ter havido encaminhamento pelos profissionais ou pela

inexistência dos serviços.

Vejamos: existiram dois processos. O primeiro de entrega da criança para a

Vara da Infância e da Juventude e, posteriormente, a abertura de um segundo, de

adoção desta criança por um casal devidamente cadastrado para tal fim, nos termos

legais.

Neste sentido, vale salientar que fica a dúvida se nos autos onde a genitora

fez a entrega houve tentativas de buscar familiares biológicos ou encaminhamentos

para recursos da comunidade para evitar o rompimento do vínculo entre mãe e

criança. Se, por um lado, o casal estava devidamente inscrito e recebeu a criança

por provocação da Vara da Infância e da Juventude, por outro, decorreram apenas

vinte dias entre a audiência de entrega da criança a tal juízo, que promoveu medida

protetiva de abrigamento, e a chegada da mesma ao casal adotante. Saliente-se que

pela informação contida nos autos analisados, parece improvável que tenha havido

acompanhamento pelo Setor Técnico no sentido ora problematizado.

Não cabe aqui avaliar a qualidade do atendimento técnico, sobre o qual não

temos todos os elementos para uma análise mais aproximada da realidade, mas a

pesquisa crítica deve explicitar quando ficam lacunas que não conseguiu aprofundar.

Fica, então, uma interrogação sobre o esgotamento das medidas para manutenção

da criança junto à família biológica. Observe-se que os operadores do Direito se

Page 202: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

191

manifestaram quanto à correta aplicação da técnica jurídica. Por outro lado,

estudando este caso, ficam indagações sobre o trabalho técnico, que parece ter sido

realizado no estrito sentido de garantir a colocação da criança em família substituta.

Se foram esgotadas as possibilidades de manutenção dos vínculos da criança

com a genitora, não há informações nos autos que informem que isso ocorreu. Esta

observação é importante para alertar o assistente social, que deve considerar que

seus registros serão utilizados em outras instâncias da Justiça, não podendo ser

sumário nas informações. Devido ao acúmulo de trabalho, esta tendência pode ser

reiterada no cotidiano, deixando o profissional de refletir que, ao se posicionar no

laudo, ele perde o controle da informação, que irá percorrer outros caminhos quase

autonomamente, mas sujeita a interpretações sobre as quais o autor não terá

nenhuma possibilidade de esclarecer eventuais distorções.62

CASO B

Este caso teve início ao ser autuado um “pedido de providência”

provocado por um ofício do SOS Criança,63 assinado por uma educadora de rua,

denunciando maus-tratos contra dois irmãos, um menino de 1 ano e sete meses e

uma menina, de sete meses.

Indo os autos para o Setor Técnico, a assistente social informou após

27 dias, que a família havia se mudado e pedia que se oficiasse a Secretaria da

62 Vale reiterar a importância do estudo de Selma Magalhães sobre esta questão. 63 Equipamento ligado à Fundação do Bem-Estar do Menor, que, entre outras ações, recebia por telefone denúncias da população. Tais denúncias eram verificadas por técnicos e educadores de rua, sendo encaminhadas para as Varas da Infância e da Juventude, quando necessário.

Page 203: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

192

Habitação, que, por sua vez, após dois meses conseguiu localizar o casal

denunciado e oficiou a Vara da Infância e da Juventude.

Outra assistente social, então, realizou o estudo social, elaborando um

relatório minucioso, resgatando o histórico familiar, identificando a situação que se

apresentava naquele momento, as demandas estruturais, no aspecto afetivo,

relacional e sócio-econômico e os problemas sofridos pela família em questão. Na

realização do estudo social, verificou as atitudes e a percepção dos genitores sobre

a situação: ambos se mostravam indiferentes à sua forma de lidar com os filhos,

considerando que estava tudo conforme a normalidade. Além disso, o genitor não

aceitou a sugestão da técnica quanto ao atendimento junto à Secretaria Municipal de

Promoção Social, onde também poderia requerer, na época, o registro da filha de

sete meses que não havia sido registrada.

Diante desta situação, a técnica orientou os genitores sobre os deveres

inerentes ao poder familiar e sugeriu novo estudo social em trinta dias e um estudo

psicológico do caso, o que foi determinado pelo Juiz.

Provavelmente devido à gravidade do quadro, o segundo estudo social

foi realizado por uma dupla de assistentes sociais, e uma avaliação psicológica,

também por outra dupla de psicólogos.

No prazo previsto, o novo estudo social verificou o agravamento da

situação, tendo inicialmente as assistentes sociais alertado o casal sobre a “natureza

da negligência material e afetiva para com os filhos”. Assim, foram encaminhados

Page 204: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

193

para o Fundo Social, Casa da Criança (abrigo que acolhia crianças durante a

semana, devolvendo-as às sextas-feiras, com retorno na segunda pela manhã) e

Posto de Saúde. Advertida sobre as condições da moradia, a genitora “pareceu

concordar”, mas quando da última visita “nada se alterou”. As técnicas descreveram

as condições de vida, com evidências de que os cuidados para com os filhos eram

negligenciados. Como identificado pela denúncia, o casal sofria de dependência de

álcool, mas sem interesse em tratamento adequado. As assistentes sociais

afirmaram que “os genitores não atentam objetivamente para as necessidades dos

filhos”, sendo as crianças “privadas dos cuidados”, com comprometimento do

desenvolvimento, mostrando-se “deprimidas, inativas, desanimadas e pálidas”. O

menino, por exemplo, parou de falar e os pais não se mostram preocupados com tal

situação. As orientações em geral foram contestadas pelo casal, que apresenta

discurso contraditório e resistente. As profissionais procuraram levantar indícios que

explicassem esse quadro, articulando a esta análise as condições de miserabilidade

da família. Por fim, opinaram pelo “abrigamento ou por colocação em família

substituta”.

O laudo psicológico trouxe posteriormente a contribuição de que as

duas crianças encontram-se intensamente prejudicadas no desenvolvimento, com

atrasos motor e na formação de vínculos afetivos. Entrevistou, ainda, os outros três

filhos apenas do genitor em questão. Uma delas relata que a madrasta não sabia

cuidar de crianças, mas elogiava o pai. Conclui o parecer na mesma direção do

estudo social.

Page 205: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

194

As crianças foram abrigadas. O Ministério Público manifestou-se,

resgatando todo o quadro descrito nos referidos laudos, afirmando

“Assim, demonstram os requeridos terem violado todos os deveres inerentes

ao pátrio poder, quais sejam o de sustento, guarda e educação, demonstrando que

não estão aptos a exercê-lo”.

Nesse sentido afirmou que a “destituição de pátrio poder visa proteger o

menor para dar-lhe oportunidade de ser integrado em família substituta na

modalidade de adoção”.

Os pais moveram a contestação, alegando serem inverídicas as

alegações da inicial e contestaram a ação de destituição do pátrio poder. O

advogado registrou o “compromisso [dos genitores] de cuidar bem dos filhos,

inclusive com acompanhamento de estudo social”.

O juiz manifestou-se afirmando ser cabível produção de prova oral, por

meio de depoimentos pessoais e avaliações técnicas, designando oitiva das

testemunhas, depoimento dos genitores, “Estudo Social no lar dos genitores,

submetendo estes a avaliação psicológica, devendo, ainda, a situação atual das

crianças ser avaliada, em comparação com aquela anterior à colocação em entidade

de abrigo”.

A avaliação psicológica apontou as contradições do discurso dos

genitores, que exageravam ao afirmar como cuidavam da bebê, que seria então, a

Page 206: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

195

caçula, que vivia na ocasião em companhia deles: segundo eles, davam três banhos

por dia e a alimentavam a cada uma hora. A psicóloga verificou que o casal tinha

“caráter dissimulado” e que o desejo de retorno dos filhos “está(va) mais vinculado a

sentimentos de vaidade e posse do que uma preocupação genuína com o bem-estar

dos filhos”. A profissional percebeu, ainda, que o casal não buscou mudanças e nem

apresentava dados confiáveis; ambos procuravam “ocultar o modo de vida, atrás de

mentiras, contradições e dissimulações”. Não admitiam as “condições psicológicas

precárias em que se encontravam seus filhos”. Propôs, por fim, a colocação em

família substituta.

O novo estudo social verificou que a “situação habitacional continua(va)

inalterada”. Porém, a recém-nascida estava registrada, havendo organização dos

seus objetos e suas roupas. A genitora mostrou brinquedos que alegou serem dos

filhos abrigados, mas que inexistiam no período do primeiro estudo social. O mesmo

discurso fantasioso e exagerado da genitora observado pela psicóloga foi

evidenciado nos contatos com a assistente social, chegando a dizer que tiraram “03

certidões” da bebê recém-nascida. Esse discurso, porém, não evidenciou que havia

reflexões sobre o que seria melhor para os filhos, mas uma conduta que buscava o

convencimento da Justiça. A assistente social confirmou também que os outros três

filhos realmente não viviam com o genitor, mas tinham sido devolvidos à genitora

deles, que residia muito próximo dali. As outras duas crianças da genitora viviam

com os avós maternos, já passados quatro anos (as crianças tinham seis e sete

anos de idade na ocasião desse estudo).

Page 207: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

196

A assistente social concluiu que o “casal ainda não reúne condições para ficar

com os filhos, já que também não demonstrou mudanças significativas no modo de

viver e pensar, denotando uma situação de insegurança e riscos às crianças. Os

mesmos não possuem auto-crítica de sua situação, ao contrário, procuram simular

uma situação que não existe”. Finalizou o estudo sugerindo colocação em lar

substituto.

O Juiz reiterou o pedido de avaliação do desenvolvimento da criança,

tendo a psicóloga exposto que o desenvolvimento das crianças no abrigo indica que

o vínculo afetivo com os pais era realmente frágil, pois o abrigamento pouco as

afetou. Foi confirmado que o desenvolvimento das crianças estava muito atrasado,

tanto no aspecto motor, quanto na aquisição de linguagem.

Diante disso, o representante do Ministério Público manifestou suas

alegações finais, articulando todas as provas apresentadas nos autos, concluindo

que a ação deveria ser julgada procedente. Destacou, ainda, que

“...cabe ressaltar que a presente ação tem como objetivo precípuo a defesa e

proteção dos menores envolvidos”, alertando que “apesar do aparente sofrimento

sentido pelas crianças devido à separação compulsória dos pais, o que se pretende

é justamente o seu bem-estar a longo prazo...” (grifo nosso).

É possível observar que a análise anterior não foi apresentada com

base nos dados informados nos autos, onde se dizia o contrário, de que não havia

um sofrimento da separação. Em outros casos também foi perceptível que os

Page 208: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

197

operadores do direito externam mais suas convicções do que análises pautadas nos

dados existentes nos autos. O termo “aparente sofrimento” é contraditório à análise

da psicóloga, que descreveu que as crianças não sentiram a separação e, pelo

contrário, estavam dando bons sinais de desenvolvimento físico-motor e relacional.

Tal fato tem relevância. Ora, eventualmente, acrescentar elementos

para análise auxilia no andamento dos processos, mas há inadequação quando a

argumentação do operador do Direito contradiz os elementos contidos nos autos.

Na manifestação da promotora, esta apontou com clareza que os genitores

não prestavam cuidados aos outros filhos existentes. Considerou que as orientações

técnicas foram em vão ao se verificar que não ocorreram mudanças na vida do

casal. Concluiu que demonstraram “incapacidade absoluta para regerem suas vidas,

quanto mais de duas crianças pequenas” e que “Os laudos são todos, como se

verifica, negativos quanto ao retorno das crianças ao lar dos genitores”.

Manifestou-se, por fim, pela destituição do pátrio poder em relação às duas

crianças abrigadas.

O advogado, em suas alegações finais, manteve a defesa do direito à

convivência familiar e considerou que não se justificava a perda do pátrio poder

motivada por carência econômica. Sem adentrar na técnica jurídica, nas

argumentações sumárias do advogado foi possível identificar apenas esses dois

Page 209: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

198

argumentos, que se tornam jargão quando não se fornece sustentação para eles,

dentro do contexto em julgamento.

O Juiz levantou os seguintes elementos apresentados nos estudos

realizados:

“Acionado o Setor Técnico deste Juízo, verificou-se que a família vivia em

condições sub-humanas, e que as crianças vinham sendo privadas das mínimas

condições de vida, apesar dos genitores, potencialmente, poder atendê-las. Foram

eles, então, encaminhados para os recursos da comunidade, com vistas à reversão

do quadro”.

Verificou-se que as orientações do assistente social não foram atendidas

“Como resultado, as crianças se apresentavam mal nutridas, [mal] vestidas, apáticas

e com retardo no seu desenvolvimento psicomotor. [...] verificou-se que o

relacionamento conjugal é instável.”

O termo “mal vestidas” relaciona-se à observação da profissional quando

realizou visita domiciliar e constatou que, apesar do tempo frio e da existência de

roupas de inverno, os genitores não cuidaram para que os filhos estivessem

devidamente agasalhados. Portanto, tratou-se do cuidado e não da estética. A

linguagem utilizada pela profissional demonstra tal fato com clareza, o que foi

articulado com outros fatos também.

Page 210: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

199

“À avaliação social, seguiu-se a psicológica, com informação da negligência

no trato das crianças, o que motivou o retardo em seu desenvolvimento, [...] havendo

ainda agressividade entre si e com os filhos.”

“A avaliação social elaborada no lar dos genitores, de sua parte, passado

mais de um ano do início do feito, revela que as pequenas alterações ali introduzidas

têm mais a intenção de impressionar do que mudança efetiva de comportamento,

quando haveria, em tese, potencialidade para tanto. Conclui, também, pela não

devolução das crianças.”

O magistrado reafirmou que carência sócio-econômica não pode levar

ao afastamento de filhos da família natural, mas que “não menos certo que, se tal

situação vem influindo no pleno desenvolvimento das crianças, mesmo tendo os

genitores condições potenciais e auxiliados com recursos do município, quedando-

se inertes, a retirada das crianças, cujos interesses se sobrepõe a qualquer outro, é

medida de rigor, como demonstrada nos autos.”

À sua manifestação, adotou “como parte integrante desta decisão, as razões

constantes da manifestação [...] da Ilustrada Curadora da Infância e da Juventude,

que bem analisou os fatos tratados nestes autos”.

Recurso junto à Primeira Instância

O advogado recorreu da decisão de destituição do pátrio poder,

argumentando que “todas as provas colhidas em Juízo foram favoráveis” aos

Page 211: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

200

genitores. A Promotora de Justiça apresentou as contra-razões de apelação,

argumentando que “outra realidade foi extraída das provas colhidas, isto é,

exatamente um quadro de negligência e desídia dos genitores em relação a seus

filhos”, sendo tudo comprovado através de prova técnica e testemunhal, mostrando

que os genitores não reuniam condições morais, emocionais e materiais de terem os

filhos sob sua guarda. Levantou ainda que

“Apesar de todas as orientações fornecidas pelas técnicas deste Juízo, os

recorrentes em nada alteraram sua situação por não aceitarem mudanças em seu

modo de vida, mesmo que isso significasse o risco de [perder] seus filhos.”

Observando os dados apresentados, concluiu que havia descaso não

somente com as duas crianças em tela, mas com os três filhos dele e com os dois

dela, todos vivendo em outros lares.

O Juiz, na mesma linha de análise, retomou que os genitores foram

encaminhados aos recursos da comunidade, onde receberam orientações técnicas.

Ressaltou que o quadro das crianças decorre das privações, havendo inclusive,

como conseqüência, grave comprometimento do desenvolvimento. A decisão pela

destituição do pátrio poder foi proferida em um ano e três meses após a abertura dos

autos.

Recurso junto à Segunda Instância

Page 212: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

201

O Procurador de Justiça manifestou-se frente ao recurso de Segunda

Instância quatro meses após a decisão da Primeira Instância, ou seja, muito

rapidamente, considerado o tempo de trânsito dos autos (quando se efetivam todas

as certidões sobre tal movimentação). O referido procurador evidenciou em sua

manifestação a importância da visita domiciliar para elucidação e entendimento do

caso, e acompanhamento posterior, cujos dados apresentados nos laudos gerados

foram elementos fundamentais para sua decisão. Do laudo psicológico, citou o

entendimento de que o casal “está distante da realidade, não percebendo a situação

como ela é e não tendo nenhuma crítica de seus atos”. Acolheu o entendimento dos

pareceres psicológico e social quanto à conduta dissimulada, quando alegaram

cuidados inexistentes aos filhos, buscando “aparentar condições para a recobrada

dos infantes”. Considerou que se “nenhuma melhora houve, realmente, a ponto de

justificar alteração da situação, avaliando também que ficou caracterizado grave

descumprimento dos deveres inerentes ao pátrio-poder, com prejuízos inequívocos

para o desenvolvimento das crianças” que se mantenha a decisão de destituir os

genitores deste poder. Sinaliza que essa decisão deve “possibilitar a rápida

colocação em família substituta.”

Chegando à distribuição do Tribunal de Justiça somente seis meses

após a manifestação do Procurador de Justiça, os autos foram destinados ao

desembargador, que decidiu após dois meses, ou seja, também com agilidade. O

desembargador-relator ressaltou o primeiro laudo social, quando se evidenciou que

os genitores foram resistentes às orientações, havendo denúncia dos vizinhos

quanto ao alcoolismo e à violência doméstica. “O mesmo relatório informa que os

genitores não atentam para as reais necessidades dos filhos.” Indicou como

Page 213: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

202

relevante a situação de miséria e falta de condições de higiene, inclusive porque

recusaram o auxílio oficial. Também foi salientada a postura dos genitores (“distante

da realidade”).

Ressaltou que

“Se é certo que a situação sócio-econômica, por si só, não pode justificar a

retirada das crianças de sua família natural, não menos certo é que, se esta situação

persiste e afeta o desenvolvimento dos infantes, ainda mais quando os genitores são

orientados e rejeitam qualquer auxílio, o afastamento das crianças é imperativo.

Seus interesses devem se sobrepor a qualquer outro.”

Observa-se neste caso a grande importância de terem sido apresentadas

conclusões assertivas, evidenciando que não se trata do nível de detalhamento das

informações, mas das elaborações técnicas diante do que foi levantado. Apresentar

um quadro extenso, descritivo das condições, nem sempre favorece uma boa

decisão. Os laudos sociais evidenciaram não apenas os fatos, mas na reelaboração

pela profissional, esta recorreu a conhecimentos, os quais foram articulados com um

posicionamento diante da situação. Explicitaram-se as trajetórias das partes, mas

garantindo compreender a dinâmica dos genitores diante da vida cotidiana, suas

condutas, discursos, posturas. Muitas vezes apenas se diz que uma pessoa fez isto

ou aquilo, sem haver uma análise do que tais atos significam na totalidade dos fatos

da realidade, quais são as possíveis causas, quais as contradições. É preciso

levantar elementos sobre a vida anterior, o presente e os planos futuros, sendo

também importante observar a consistência de tais planos. A profissional tampouco

Page 214: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

203

deixou de buscar atendimento da família pela política pública, sendo este rejeitado

pelos genitores devido à dinâmica dos mesmos.

Saliente-se aqui que os elementos apontados pelo estudo social foram

acolhidos integralmente, sem se questionar os fatos e as conclusões elaboradas

pelas profissionais. A relevância deste caso é a agilidade de intervenção, sua

qualidade, a busca de conhecer o histórico da família, mas compreender também os

aspectos sócio-econômicos da mesma.

Vale ressaltar que o termo sócio-econômico tem sido majoritariamente

utilizado como aspectos materiais, financeiros. Contudo, é fundamental que não se

perca o sentido da expressão “sócio-econômica”, que trata das relações sociais

articuladas à dimensão econômica. Não se pode avaliar um aspecto em detrimento

do outro, mas evidenciar de que maneira tais dimensões se articulam, se compõem

e trazem características particulares a um sujeito, mas inserido no contexto maior,

permeado de variáveis e determinantes.

Outro aspecto de relevância é que a visita domiciliar foi explorada com

perspicácia, sendo um instrumento de aproximação e de averiguação, bem como

momento para sensibilizar e orientar os genitores.

Pensando sobre a efetividade da Justiça, observa-se um fato grave na

tramitação destes autos: entre a manifestação do Procurador de Justiça e a

decisão da Câmara Especial decorreram vinte e dois meses. Embora as crianças

não estivessem com os pais na situação grave identificada, por outro, o longo

período de abrigamento pode acarretar outros problemas. Além disso, em caso

Page 215: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

204

de irmãos com o histórico relatado a colocação em família substituta torna-se mais

difícil.

Decidida a destituição, iniciou-se, com o retorno dos autos (dois meses após

o acórdão), a busca por família para as duas crianças. Solicitada a lista de casais ao

Cadastro Central, a assistente social verificou que os dados estavam

desatualizados, pois a maioria já havia adotado. Um detalhe interessante é uma

recomendação anotada no verso do ofício respondido por esse Cadastro: “OBS: Não

há casais no Cadastro Central que aceitem os dois irmãos. Tentar a colocação de (a

menina), em separado, para os casais apontados para (o menino)”.64 O juiz,

assertivamente, despachou que “Tratando-se de irmãos, que se encontram na

mesma instituição há vários anos, é inviável sua separação.” Determinou que a

consulta fosse para colocação dos irmãos no mesmo lar. Não havendo interessados,

que se iniciasse a busca por casais estrangeiros devidamente inscritos.

Diante da determinação do Juiz, novamente, verificou-se o Cadastro em

busca de pretendentes estrangeiros, identificando que não existiam. Contudo, em

consulta diretamente a representantes de uma agência italiana,65 houve interesse e

foi feita solicitação de autorização de visitas na entidade, com vistas a realizar coleta

64 É importante fazer aqui um parêntese e registrar o espanto diante da referida recomendação feita por um escrevente do Cadastro Central. Caberia a este uma “apreciação” sobre a colocação das crianças, principalmente propondo este tipo de conduta (separação dos irmãos). Esta é uma questão pendente, pois além de esse Cadastro ser desatualizado (até os dias atuais), dificultando muito o andamento das pesquisas, há que se pensar uma maneira de garantir a sua funcionalidade e, principalmente, eficácia. Não é pauta deste trabalho problematizar esse departamento, mas há muita angústia por parte dos profissionais toda vez que é necessário recorrer a tal listagem. 65 Outra nota se faz necessária: é fato que pelos problemas existentes no Cadastro Central, quando esgotadas as tentativas de localizar casais estrangeiros, recorre-se diretamente às agências de adoção internacional, as quais apresentam casais devidamente autorizados pelo órgão de referência. Portanto, evidenciam-se as severas dificuldades em acessar o referido Cadastro.

Page 216: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

205

de sangue para exames de HIV e para fotografar os infantes. Após três meses do

retorno dos autos, as crianças foram adotadas por casal estrangeiro.

CASO C

Este caso iniciou com a petição de um termo de guarda e

responsabilidade de uma criança, então com 09 meses de vida. O caso foi concluído

quando a criança estava com três anos e onze meses.

Consta no termo de audiência que a genitora “entregou a criança para a

requerente para que a batizasse; como a genitora estava passando por dificuldades

financeiras e crise conjugal esta deu a criança aos requerentes para que a adotasse;

algum tempo depois a genitora arrependeu-se e quis retomar a criança, mas como

seu companheiro e genitor da criança foi assassinado ela não mais procurou pela

criança”

A genitora não foi localizada, tendo os requerentes afirmado que a

mesma havia se mudado para outra localidade. Foi determinado que se realizasse

avaliação psicossocial.

A Promotora de Justiça propôs ação de destituição do pátrio poder,

argumentando que

“a requerida abandonou (a criança), deixando-a aos cuidados de (f) e

de (g) , para que fosse adotada por eles, sob a alegação de não possuir condições

Page 217: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

206

financeiras para manter a criança, ou mesmo psicológica, pois passava por crise

conjugal. Não comprovou, porém, essa versão, nem procurou recursos municipais

ou quaisquer outros, na tentativa de possibilitar a criação” da criança. Além disso,

considerou o fato de a genitora não ter deixado endereço e não ter retornado para

ver a criança. Entendeu, assim, que a genitora violou os deveres inerentes ao pátrio

poder. Solicitou que se buscasse localizar a genitora por meio do “TRE, SPC, DRF,

IRGP e INSS”.66 A criança estava com o casal desde a idade de, aproximadamente,

um a dois meses de vida.

Em seguida, foram anexados o laudo psicológico e o relatório social. A

psicóloga realizou a avaliação por meio de três entrevistas com os requerentes,

percebendo o grande interesse de efetivação da adoção. Na ocasião estavam há

dez meses com a criança. A requerente declarou que “recebe visita da genitora

esporadicamente e esta se nega a comparecer ao Fórum para manifestar-se sobre a

criança, apesar do casal já ter se oferecido para ir buscá-la em sua casa”.

O casal considerava a genitora teimosa e irresponsável, mas afirmou

que a mesma não interferia na relação com a criança. O casal tinha filhos

adolescentes que aceitaram a chegada da outra criança, com quem tinham boa

relação fraternal.

O laudo social trouxe dados sobre a composição e dinâmica familiar, as

condições sócio-econômicas e a descrição do ambiente habitacional. Nele, o técnico

confirmou os dados anteriores sobre a chegada da criança aos cuidados dos

66 Tribunal Regional Eleitoral, Serviço de Proteção ao Crédito, Delegacia da Receita Federal, Instituto de Identificação Ricardo Glumbleton Daunt, Instituto Nacional de Seguridade Social.

Page 218: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

207

requerentes e sobre as visitas esporádicas da genitora, afirmando também que esta

não aceitava formalizar a adoção. Os requerentes afirmaram para as técnicas que a

genitora tem outros filhos que “passam por privações materiais”.

Assim, a assistente social ponderou que, embora a criança estivesse

bem cuidada e integrada à família requerente, havia a informação de que a genitora

“não concorda(va) com a adoção”. A sugestão da técnica foi de que o termo de

guarda fosse prorrogado e a genitora fosse “submetida a avaliação psico-social, com

vistas a um parecer conclusivo referente ao pedido de adoção”.

Decorreram meses de tentativas para localizar a genitora. Após nove

meses desde o pedido inicial, a genitora apresentou a contestação do pedido de

adoção. Na petição, informou que havia movido ação de busca e apreensão na Vara

Cível (que ocorreu no mês de fevereiro).

Nessa contestação, a advogada informou que a genitora teve três filhos

com o marido. Quando a criança em questão nasceu, o genitor estava

desempregado e mantinha um relacionamento com outra pessoa. Ou seja, a criança

foi gestada num período de conflitos e incertezas. A genitora recorreu ao casal para

receber apoio no cuidado da criança recém-nascida, vez que precisava trabalhar.

Conforme já vinha ameaçando, o genitor expulsou a requerente e os filhos para “fora

de casa”. Nesse período, a genitora pediu novamente apoio dos requerentes, de

forma mais contínua. O genitor vinha fazendo ameaças de tirar os filhos da ex-

mulher e isso a “obrigou a assinar o termo de guarda provisória” que teria dado início

aos autos. Logo depois, o genitor veio a falecer. Nessa ocasião, a criança

Page 219: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

208

permanecia com o casal e a genitora a buscava no final de semana. Não se

menciona quanto tempo tal situação perdurou.

A genitora começou a receber a pensão do falecido após um ano da

entrega da criança. Diante deste fato, que garantiria condições melhores para cuidar

dos filhos, a genitora pediu a criança de volta, tendo recebido resposta negativa.

Além disso, acusou que os requerentes tinham conhecimento do seu

paradeiro, ao contrário do que disseram em audiência e em avaliação psicossocial.

Junto à petição da genitora foram apresentados dois boletins de

ocorrência que a mesma registrara contra o ex-marido. Dentre os fatos narrados

está a afirmativa de que “a vítima noticiou a autoridade policial que o indiciado supra

qualificado vem ameaçando-a de morte”, sendo que estava se separando e que o

conflito naquele momento era a resistência do marido em entregar os bens pessoais

dela e mobília do lar. Apresentou cópia de “Carteira familiar de controle de

distribuição de alimentos”, que comprovava o recebimento deste benefício para as

duas crianças pequenas, no posto de saúde. Anexou envelope de correspondência

recebido da Prefeitura Municipal e também o extrato do INSS, a fim de comprovar

renda e endereço, este último na comarca onde tramitaram os autos.

O juiz determinou oitivas de testemunhas, audiência com a genitora e

novo “estudo psico-social, com visita domiciliar no lar da genitora e dos guardiões,

onde será verificada a relação de afetividade entre eles”.

Page 220: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

209

Na audiência com a requerente-guardiã, esta esclareceu que ao entrar

com o pedido de guarda “a genitora disse não concordar com a adoção, mas a

criança permaneceria com a depoente”. A genitora, por sua vez, reafirma que ”pediu

aos requerentes que cuidassem (da criança), temporariamente; em nenhum

momento concordou com a adoção”. Afirmou ainda que “não vê a criança há três

meses por orientação do Serviço Social; está em condição de reaver a criança”.

Em novos estudos psicológico e social, foram entrevistados os

requerentes, a genitora e os demais filhos desta. No contato com a psicóloga, a

genitora reiterou que nunca pretendeu doar a criança e esclareceu que não soube

das convocações anteriores, pois havia se mudado e retornou àquela comarca. O

laudo refere-se à entrevista com as outras crianças, mas não relata como é a

relação destas com a mãe. Finaliza dizendo que “Diante da manifestação da

genitora e considerando-se a delicada relação de afetividade estabelecida entre a

criança e seus guardiões, consideramos que o caso seja acompanhando

mensalmente pelo Setor Técnico, após a devolução da criança ao convívio materno,

a fim de avaliar a readaptação da criança em família de origem”.

O assistente social apresentou logo no início do seu “relatório social”

que a genitora declarou “que nunca teve intenções de doar (a criança)”, dando as

mesmas informações sobre o período temporário, a busca de melhores condições

para reassumi-la, pois “na ocasião passava por sérias dificuldades econômicas e

habitacionais”. Retoma o abalo emocional devido ao conflito com o genitor da

criança.

Page 221: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

210

A genitora afirmou que “nunca deixou de manter contatos com (a

criança), visitava esporadicamente”. Desconhecia o interesse do casal pela adoção,

tendo entendido que apenas foram ao Fórum “para obter o termo de guarda”.

Consta ainda no laudo que “Os requerentes, por sua vez, confirmam

parte da versão (da genitora)”. Devido ao envolvimento afetivo com a criança,

“Mesmo com a indefinição da genitora, decidiram pedir a adoção”. O laudo informa

que há sete meses a genitora encontrava-se em emprego fixo, recebendo dois

salários mínimos por mês. Além disso, recebia cinco salários mínimos de pensão

deixada pelo falecido marido. Estava residindo em imóvel alugado, de alvenaria, com

amplos cômodos. Em contato com os três filhos, a técnica considerou “todos com

aparência saudável e sinais de bons cuidados”. Além destes, residia na casa outra

irmã da genitora, que trabalhava e auxiliava nas despesas. Por fim, afirma que a

genitora “apresenta propostas seguras e favoráveis” para o retorno da criança.

Concluiu que “não existem elementos suficientes que caracterize[em]

negligência e abandono da genitora. Além disso, ela no momento reúne condições

favoráveis para assumir o papel materno junto (à criança) como vem fazendo

adequadamente com os outros filhos”. Considerou que a convivência constante dos

requerentes com a criança propiciou “um vínculo consistente entre eles”. Pondera

que não havendo concordância da genitora, “isto no futuro mais distante poderá

prejudicar o desenvolvimento sócio-emocional (da criança), visto que haverá

interferência da genitora, como já vem acontecendo. Assim sendo, o parecer é

favorável, s.m.j., que a criança seja entregue à genitora”.

Page 222: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

211

Diante dos laudos e das audiências com outras testemunhas, a

promotora de justiça apresentou seu parecer. Resgatando os fatos, afirmou que

“O feito deve ser julgado improcedente, diante da prova coligida, já que

não se comprovou o abandono voluntário da infante”. Dentre outros fatos, citou que

uma das testemunhas presenciou a entrega da criança aos requerentes

temporariamente. Reiterou que “não há provas, assim, que (a genitora) tenha

abandonado (a criança) de forma definitiva”. Considerou relevante a prova de que a

genitora foi movida pelas dificuldades financeiras quando da entrega da criança,

“mas nunca dela se afastou, visitando-a”. O boletim de ocorrência convenceu-a do

“relacionamento tumultuado” com o marido. Aos autos foram apensados os autos de

busca e apreensão, promovido nove meses após a abertura dos autos. Verifica-se

que a primeira atitude formal da genitora, quando recebeu a negativa de devolução

da criança, foi a de mover tal ação. Observe-se que, na ocasião, a população

daquela Comarca somente poderia ter acesso a advogados através do atendimento

da Procuradoria Geral do Estado. Por isso, havia demora na nomeação de um

advogado para poder dar início à manifestação do interessado.67 Sobre os

trabalhos do Setor Técnico, registrou que os estudos sociais comprovaram que a

criança recebeu assistência moral, educacional e material junto ao casal guardião.

Concluiu-se, porém, que a requerida estava em condições de assumir (a criança),

assim como já assumiu seus outros filhos”.Concluiu pela improcedência da ação,

“acompanhando-se o caso pelo Setor Técnico, que deverá aproximar mãe e criança,

para posterior convivência, já que há vínculos estabelecidos com o casal guardião”. 67 Saliente-se que muitas vezes tal demora não é considerada pelos operadores do Direito e, às vezes, é atribuída a uma possível falta de interesse do cidadão que, na verdade, teve dificuldades em obter um advogado. Ou seja, o problema também não era a demora de atendimento pela Procuradoria Geral do Estado, que acaba tendo um excesso de demanda, mas era a falta da Defensoria Pública, órgão previsto na Constituição Federal.

Page 223: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

212

O Juiz despachou determinando estudo social junto aos guardiões, vez

que o estudo abordou somente a genitora. O laudo social complementar relatou a

dinâmica familiar e a estrutura sócio-econômica de todos os membros da família.

Relatou sobre as acomodações habitacionais, que se encontravam em reforma e

com boa organização. O relacionamento dos requerentes com a criança era de

grande vínculo, havendo muita ansiedade para a solução do caso. A criança estava

bem cuidada, reconhecendo nos requerentes as figuras parentais.

O Juiz então se manifestou em sete páginas. Dentre alguns elementos

vale considerar suas interpretações. Sobre a avaliação psicológica entendeu que

esta informou sobre a relação de afetividade entre a criança e os requerentes, que

proporcionaria boa formação. E compreendeu que, por isso, a psicóloga contrariou o

conteúdo do laudo ao concluir que poderia haver a devolução da criança com

acompanhamento temporário para verificação da adaptação. Sobre a avaliação

social registrou que foi verificado que a genitora tinha condições de reaver a criança

e que no laudo complementar, como determinado, avaliou os requerentes, onde

“encontrou ambiente propício à correta formação da criança, que tem no casal as

figuras parentais”.

Sob o prisma dos elementos analisados, é possível afirmar que o Juiz

já tinha uma convicção anterior aos laudos técnicos, pois o mesmo continuou

afirmando, apesar da manifestação das técnicas, que havia situação “confusa e

incerta”, que a genitora manteve-se “acomodada”, e que as conclusões das

avaliações não analisaram o processo de forma adequada, limitando-se a verificar

Page 224: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

213

se era ou não possível a devolução, atentando mais para o interesse da genitora do

que para o da criança. Numa clara defesa dos requerentes, afirmou que não se

poderia mudar uma situação de fato, pois não havia segurança para tanto.

É visível nos laudos, nos termos de audiência e nas argumentações da

promotora de justiça que não restam dúvidas sobre a possibilidade de retorno da

criança para a família biológica, com segurança afetiva e material. Os argumentos

do magistrado reiteravam o ato de entrega da criança, denotando uma avaliação

moral de tal atitude, desconsiderando os elementos apresentados nos autos. O juiz

argumentou, ainda, que a genitora moveu ação de busca e apreensão tardiamente.

Recurso na Primeira Instância

A advogada utilizou em sua argumentação referências aos laudos

psicológicos e sociais, sustentando que não havia uma situação confusa, mas

favorável à devolução da criança.

A Promotora de Justiça apresentou as contra-razões, afirmando que

“não se comprovou o abandono involuntário da infante”. Mantém grande parte da

outra manifestação, contextualizando que a genitora passava por inúmeras

dificuldades no momento da entrega, mas que havia reestabelecido suas condições

para o pleno zelo dos filhos. Nos relatórios apreendeu que os requerentes prestam

todos os cuidados à criança, bem como que a genitora sempre esteve presente na

vida da criança.

Page 225: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

214

Fundamentada nos dados dos laudos e de outros documentos

constantes nos autos, apresentou a seguinte reflexão:

“ao se destituir a genitora do pátrio poder, está a recorrente sofrendo

duas punições: a de ser pobre e a de perder a criança. Nestes autos, não há o caso

típico de abandono, em que um dos pais, simplesmente entrega a prole a terceiros e

desaparece”. Ressaltou a importância de, ao contrário de muitos pais, a genitora ter

conseguido reorganizar sua vida em curto espaço de tempo, demonstrado inclusive

pelos filhos sob os seus bons cuidados.

O Juiz retomou alguns fatos, avaliando negativamente a genitora por

ter entregado a criança com poucos meses, afirmando que a mesma posteriormente

se acomodou diante dos encargos do pátrio poder. Atribui ainda que a ação movida

na vara cível foi maliciosa. Entendeu, ainda, que a reversão da decisão somente era

de interesse da genitora, mantendo que há insegurança para a devolução. Valorizou

os laudos técnicos somente no tocante aos aspectos que considerou “incontestáveis

quanto a afirmação de que a criança tem no lar dos requerentes um ambiente

tranqüilo e propício a seu desenvolvimento físico e mental”, reiterando, três vezes

em duas páginas, que a genitora não garantia segurança nesse sentido. Esta

decisão ocorreu um ano e dez meses após o início dos autos, e um ano e um mês

após o pedido de busca e apreensão da genitora.

Recurso em Segunda Instância

Page 226: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

215

O Procurador de Justiça se manifestou rapidamente, argumentando

que não havia provas que autorizassem a decretação da destituição do pátrio poder,

entendendo também que não houve abandono da criança, mas a entrega para que

pudesse se reorganizar, o que de fato ocorreu. Entendeu que o fato de a genitora ter

mantido contato e movido a busca e apreensão da criança “reforça a convicção de

que tudo fez para reaver (a criança)”.

Considerou o parecer social “amplamente favorável” à genitora e que

deveria ser acolhida a orientação do Setor Técnico quanto ao acompanhamento,

realizando mudança de guarda de forma gradual a fim de evitar ou minorar o trauma

decorrente da medida. Manifestou, ainda, total concordância com a manifestação da

promotora de justiça.

Neste percurso, após a manifestação acima, a advogada descobriu, ao

acaso, que os requerentes haviam entregue um dos filhos, que contava então três

anos, a um casal de conhecidos, que o criaram como filho. Assim, protocolou tal

informação, devidamente fundamentada com dados, questionando, então, como os

requerentes entregaram um filho biológico e depois pleiteavam a adoção de outra

criança. Tal fato foi considerado irrelevante para o julgamento.

Os autos foram distribuídos, cinco meses após a decisão da Primeira

Instância, para a Câmara. Nesse percurso, após dois meses, foram juntados dois

novos laudos, um psicológico e outro social, elaborados pelas mesmas técnicas,

procedentes da comarca de origem. Nos referidos laudos havia um parecer

Page 227: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

216

totalmente contrário à devolução da criança. Tal elemento trouxe surpresa para o

entendimento do caso.

Diante dessa novidade, estudando os detalhes dos documentos, foi

possível identificar que foram abertos outros autos enquanto se aguardava a decisão

na Segunda Instância. Cabe esclarecer que em consulta realizada junto à Vara onde

tramitaram esses autos, afirmou-se que, naquela ocasião, as ações de

regulamentação de visitas eram realizadas pelas Varas Cíveis. Os estudos nessas

Varas podem ser realizados pela equipe da Vara da Infância e da Juventude, por

determinação do juiz responsável. Portanto, não foi possível entender por que houve

uma ação de tal natureza na Vara da Infância. Não constava nenhuma informação

que identificasse a natureza da ação. , nem no cabeçalho dos laudos e nem no

ofício do juiz. Mas, ao final do laudo social, existia a indicação de que se tratou de

um pedido de regulamentação de visitas.

O que trouxe maior espanto é que houve muita ênfase nos laudos

quanto ao tempo em que a criança ficou afastada da mãe. Ao contrário dos laudos

anteriores (três de cada profissional), afirmou-se que, devido aos conflitos instalados

na disputa, não estavam acontecendo visitas entre a genitora e a criança. O laudo

social sugeriu aguardar a decisão da Segunda Instância.

O laudo psicológico afirmou que a figura parental atribuída à genitora está

totalmente comprometida e um investimento para fortalecê-la seria prejudicial.

Assim, era desaconselhável o resgate do vínculo com a família de origem, tendo “um

prognóstico bastante duvidoso”.

Page 228: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

217

A advogada apresentou uma petição extremamente agressiva,

sugerindo que a situação posta evidenciava “um orgulho pessoal” por parte do

magistrado. Afirmou que o pedido de visitas, autuado um ano e seis meses após a

petição inicial, foi negado; que negada a liminar, moveu um mandado de segurança

contra o ato do juiz. Um ano após tal pedido, ocorreu audiência em outros autos,

para regulamentação de visitas, com ausência da curadora (promotora de justiça).

Este fato fez com que se desse nova vista ao Ministério Público, tendo

o procurador de justiça manifestado que os outros autos não poderiam ser tratados

naquele em questão. Contudo, considerou que os documentos não alteravam o

entendimento de que não havia motivos para a destituição do pátrio poder. Porém,

diante dos novos laudos, opinou pelo provimento parcial, mantendo-se a criança sob

a guarda dos atuais guardiões.

O Desembargador-Relator recuperou fatos processuais e observou que

foi levantado pelo laudo social que a genitora atingiu melhoria nas condições

econômicas, perseguia a posse da criança e possuía condições favoráveis para

assisti-la, a exemplo do que vem fazendo com os outros filhos. Afirmou que “Seja

como for, não existe nos autos a hipótese clássica de abandono”, valorizando a ação

de busca e apreensão da criança quando esgotadas as “alternativas conciliatórias”.

Assim, deu parcial provimento ao recurso, desconstituindo a sentença de destituição

de pátrio poder e mantendo a guarda da criança sob responsabilidade dos

requerentes.

Page 229: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

218

Retornando os autos à vara de origem, o Juiz determinou o seu

arquivamento, considerando que a genitora moveu novo processo de

regulamentação de visitas, o qual tramitaria, como agora o mesmo afirmou, em

“juízo competente”. Portanto, não houve nenhum acompanhamento após o retorno

dos autos. O tempo de tramitação até esta decisão foi de três anos e dois meses.

Os fatos acima elencados ilustram bem o caso e todas as suas

dificuldades. Destaca-se dentre eles que, ao final do julgamento, ocorre uma

mudança total do posicionamento técnico, com elementos até acusatórios contra a

genitora, que se mostrava “queixosa” (pondere-se aqui que parece humanamente

impossível não ter queixas diante da vivência ora descrita).

Vejamos: comparado aos casos anteriores (A e B), os estudos

apresentados neste (caso C), até o julgamento em Primeira Instância, foram

bastante claros, expondo os elementos necessários para um laudo judicial, contendo

dados que informam, esclarecem e apresentam um posicionamento técnico.

Outro fato que chama a atenção é que em dois documentos foi citado que as

visitas da genitora na casa dos requerentes cessaram por orientação do Serviço

Social. Em nenhum momento tal informação foi esclarecida, nem mesmo foi

localizado nos laudos registro a respeito disso. Se nos seis laudos apresentados

antes do recurso à Segunda Instância afirmava-se que ocorriam visitas da genitora,

nos laudos anexados no período do recurso final os técnicos afirmam o contrário.

Page 230: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

219

O exercício profissional no judiciário é impregnado por dinâmicas e

pela cultura institucional e, assim, quando um técnico presta orientação ao usuário,

esta é tomada como determinação. Nesse sentido, o profissional deve, sempre,

explicar o seu papel em qualquer instituição.68

A ausência de endereço da genitora levou a se considerar que a mesma

estava em “local incerto e não sabido”.

Há aqui tanto a questao processual, quanto um pouco sobre a trajetória

desta genitora. Com esse entendimento, pode-se afirmar que caberia ao assistente

social ter tecido considerações sobre a condição atribuída à genitora (local incerto),

o que não se localiza nos autos. Às vezes, confunde-se que a localização da

genitora está vinculada à “investigação de paradeiro” exclusivamente. Com tal

entendimento, deixa-se de compreender a dinâmica relacional na sociedade, a

circulação das pessoas, seu pertencimento territorial, dentre outros aspectos. Não

que o assistente social deva realizar a busca de pessoas no sentido investigativo; o

que é importante é que coloque seu parecer a respeito, manifestando-se inclusive

sobre a necessidade de determinadas informações, cabendo-lhe ainda, para a

realização do seu trabalho, sugerir que se peticione junto aos órgãos a obtenção de

dados que auxiliem a encontrar as pessoas envolvidas. Assim, o estudo social não

visa “investigar paradeiros”, mas levantar informações que permitam uma melhor

apreensão das causas da trajetória dos diferentes sujeitos, sem as quais não é

possível interpretar de forma menos equivocada as conseqüências que têm gerado.

68 Às vezes, lamentavelmente, verifica-se que profissionais no desempenho de suas atribuições se revestem do poder de uma forma equivocada e inadequada diante do usuário. Tal realidade está presente em inúmeras situações, devendo ser combatida pela categoria.

Page 231: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

220

São esses fatores que auxiliarão na compreensão de parte da totalidade estudada

para a instrução dos autos.

Por fim, o caso tem relevância também para problematizar se o juiz tinha uma

convicção, anteriormente aos estudos psicossociais e à própria tramitação dos

autos. A releitura dos autos evidenciou que apesar da posição inicial dos técnicos

pelo retorno da criança à genitora, vez que não se provou abandono ou negligência

por parte da genitora, houve desde o início outro entendimento por parte do juiz.

Existe uma relação delicada no trabalho que os profissionais realizam no

judiciário, vez que é facultativo ao juiz acolher o conteúdo de seus laudos técnicos.

Porém, no tocante à responsabilidade ética e profissional, cabe ao técnico, dentro da

sua autonomia relativa, fornecer seus elementos de análise e convicção, a partir da

natureza de suas profissões. Considerada a dinamicidade da realidade, havendo

alterações, é fundamental que se resgate o que aconteceu para uma mudança de

avaliação técnica. Assim, a posição ética é sempre contextualizar e explicar, do

ponto de vista técnico, tais alterações. No caso C não é possível realizar estas

mediações. Como se verificou, muitos dados são contraditórios ao conjunto de

ações realizadas anteriormente. Não é possível saber o que motivou a brusca

mudança, pois não se articularam outros elementos que a explicassem, além de

questões relacionadas ao tempo que se passou. A falta de vínculo, o acirramento do

conflito, a rejeição à genitora, enfim, todos foram apenas fundamentados na questão

do tempo. Assim, percebe-se que, mais uma vez, a criança não é vista,

prevalecendo o trato ao conflito e à disputa das partes. Mesmo que esta não seja a

Page 232: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

221

intencionalidade, a priori, dos técnicos e operadores do direito, acaba-se por cair

nessa situação.

Se o caso for analisado apenas em relação ao decurso do tempo, nem

os técnicos poderiam reverter o que o próprio tempo consolidaria: o afastamento e o

estranhamento da criança à família biológica e a sua vinculação à família que

requereu sua guarda para fins de adoção. Mais uma vez evidencia-se o valor do

tempo para uma criança. O tempo tem dimensões particulares para as diferentes

fases geracionais e nas situação de conflito. Em que pese, muitas vezes, o tempo,

ao invés da Justiça resolver um conflito, acaba por se definir um resultado, nem

sempre solucionando as demandas.

Ficam, então, algumas perguntas: os técnicos buscaram atuar para a

preservação de vínculos com a família biológica, orientando a todos os interessados

sobre os direitos da criança em questão? Os atos dos requerentes visaram a

preservação do bem-estar da criança, ou foram de auto-preservação? E se a criança

tivesse sido devolvida quando a genitora se apresentou, após nove meses do início

dos autos, ao invés de se aguardar o julgamento dois anos após? Caberia um papel

mediador dos técnicos neste caso?

Por fim, olhando para este caso, pode-se concluir que o processo não

possibilitou à genitora resgatar seu vínculo junto à criança. Todo o contexto de

desesperança e a sua luta posterior parece terem sido tratados com indiferença.

Afirmar que prevaleceu o que melhor beneficia a criança, em tal altura, não parece

Page 233: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

222

correto. Diante do decurso do tempo, uma separação conflituosa poderia trazer mais

danos a esta criança.

Contudo, espera-se que tenha sido bem-sucedida a regulamentação de

visitas “pela vara competente”. Lá poderiam ser estabelecidas regras para a

manutenção do contato entre a genitora e a criança. Mas, diante do que temos visto,

o argumento de que “cada caso é um caso” tem sido utilizado das mais diversas

formas.

Page 234: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

223

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo desta pesquisa foi muito instigante e, por vezes, doloroso. Afinal,

observar histórias de sujeitos que se submeteram ao crivo da justiça é uma situação

que provoca muitas indagações e reflexões. É difícil ficar impassível diante das

vozes anônimas nos autos. Ao pesquisador parece que fica o dever de expressá-las

para que outras vozes não sejam caladas.

Neste percurso foi possível encontrar algumas confirmações e dúvidas se

redesenharam, mas evidenciou-se o que empiricamente se sabe: que há um poder

silencioso vindo das salas de atendimento e de audiências do Poder Judiciário, que

ressoa nos caminhos da justiça.

Page 235: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

224

Este poder é exercido por diferentes atores que atendem a população que

demanda serviços dessa instituição. De certo modo, até soa estranhamente atribuir

o significado de “serviços” aos atos desempenhados neste poder.

Dentre estes atores, está o assistente social que, no Brasil, teve no Judiciário

um dos primeiros locais de trabalho na área pública. Desde então, seu trabalho tem

sido solicitado para cumprir as mais diversas atribuições.

E, atualmente, há demandas que são colocadas no cotidiano por ter-se

conquistado o lugar sócio-ocupacional. Se por um lado a sua análise técnica não é

um elemento que obrigatoriamente seja considerado para as decisões do judiciário,

por outro, verifica-se que, sempre que existente, recorre-se a ela.

O desafio que se perseguiu nesta pesquisa foi o de trilhar “o caminho de

volta”, perguntando-se pelos processos e os produtos do trabalho do assistente

social no judiciário e, assim, refletir sobre a sua contribuição nesta instituição e,

talvez, para a sociedade.

Costuma-se dizer que tomando ou não posição, já se tomou uma. Assim é o

trabalho do assistente social: impossível ser neutro. O desafio, portanto, é de ter

uma ação profissional o mais qualificada possível, fornecendo aquilo que outro

profissional não poderia trazer aos autos. É esta leitura apurada, que resgata as

trajetórias e perspectivas dos diferentes sujeitos submetidos a determinações macro,

que parece contribuir junto aos outros atores do Judiciário.

Page 236: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

225

A especificidade que particulariza o conhecimento produzido pelo serviço

social é a inserção de seus profissionais em práticas concretas [...] Sua

preocupação é com a incidência do saber produzido sobre a sua prática: em

serviço social, o saber crítico aponta para o saber fazer crítico (Baptista, 1993,

p. 89).

Se a princípio a expectativa era a de localizar a relevância no sentido da

contribuição do exercício profissional para a realização de direitos, a amostra

intencional por si revelou a perspectiva crítica do Serviço Social:

O grande desafio que se faz ao profissional é o da superação dessas

imposições da cotidianidade. Sem deixar de responder aos desafios

emergentes do cotidiano, como se pode superar esta prática imediatista e dar

a ela uma dimensão revolucionária? (Baptista, 1993, p. 90).

Nesse sentido, as considerações finais aqui expostas se baseiam em diversos

elementos teóricos e nos dados levantados na pesquisa. Além disso, uma análise

mais atenta também se fez em relação a dois casos da amostra intencional, sobre

os quais vão tecidos, a seguir, os comentários e análises sobre aspectos

particulares, mas que podem ser relacionados ao conjunto de casos que foram

levantados. As falas e as trajetórias dos sujeitos, que nos autos são individuais,

podem ser encontradas em outras situações, evidenciando que são, na verdade,

expressões de uma totalidade social complexa e dinâmica, podendo ser reprodutora

de opressão, potencializadora de libertação e, muitas vezes, um conjunto

contraditório de ações humanas.

Page 237: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

226

a. Comunicação, ideologia e poder

Toda história tem uma moral... A desta é muito simples: se você quiser saber quem

são os lobos, não pergunte a eles. É mais seguro confiar nos cordeiros69

(“O que as ovelhas dizem dos lobos”. Rubem Alves)

Para realizar as análises dos casos foi necessário buscar subsídios para

compreender a linguagem e o processo comunicativo. Neste, diferentes sujeitos

interagem, expressando-se com maior ou menor poder, desencadeando também

níveis de escuta. No judiciário, o falante pode ser os técnicos, os operadores do

Direito, os outros sujeitos profissionais e, principalmente, os cidadãos atendidos. As

falas, ao serem ouvidas, são registradas em diferentes momentos e por prismas de

cada ator. A audiência é registrada por um escrevente. O estudo social é registrado

em laudos e relatórios. Nele o técnico pode apresentar descrições, análises,

posicionamentos, pareceres, observações, enfim, um conjunto de elementos que

considera importantes para o cumprimento de suas atribuições. Também pode

conter as falas das partes, suas argumentações, seus projetos, suas histórias.

Ao serem elaborados os laudos ou outros documentos escritos, o técnico

pode informar o que levantou por meio do estudo social, podendo indicar os fatos

importantes, resgatar dados, apresentar suas interpretações, colocar

questionamentos em aberto, sugerir encaminhamentos, dentre outros. Assim, seus

registros podem resgatar a história das partes, ao mesmo tempo em que interage

com elas, realiza suas intepretações e intervenções. 69 Crônica em que o autor fala da busca de um cordeiro comprometido com a objetividade da verdade, que quis compreender, frente às falácias e preconceitos, “o que são os lobos”, perguntando, para tanto, a um lobo-filósofo. Feliz com a verdade que descobriu, vai ter debates face a face e descobre, tarde demais, que não eram falsas as alegações sobre os hábitos alimentares dos lobos. A crônica sugere, ainda, que algumas verdades não são encontradas, mas pré-estabelecidas: por preconceitos ou por desejo do cientista.

Page 238: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

227

As reflexões sobre o poder e as relações institucionais continuam sendo

temas importantes para o exercício profissional. Chauí traz importantes reflexões

sobre essa questão:

O discurso competente é o discurso do instituído. É aquele no qual a

linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é

qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer

lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois,

com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, como um

discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como

tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram

predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o

conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de

sua própria competência (2001, p.7).

Nos casos estudados pode-se verificar que os sujeitos assumem lugares

diversos, podendo ora ter maior, ora menor poder de fala, de escuta, de diálogo.

Algumas falas que pareceram importantes, nem sempre foram ouvidas pelos

operadores do Direito. Quando o assistente social e o psicólogo puderam ter

diferentes formas de interação, compartilharam suas reflexões e análises, resultando

daí um trabalho mais completo. No caso contrário, ou seja, quando não se efetivou

tal interação, ficando cada qual em seu lugar, houve um olhar parcial diante da

situação. O problema gerado, neste sentido, é a fragilidade de um parecer que deixa

de articular todos os elementos analisados.

Page 239: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

228

Frente ao processo de pesquisa realizado, é possível afirmar que mesmo com

um parecer consistente dos técnicos, pode haver pouca consideração por parte da

autoridade judiciária. No judiciário há hierarquias que definem lugares

preestabelecidos que vão influenciar o entendimento e os posicionamentos diante

dos litígios. Deste modo, o conhecimento sobre ideologia e linguagem é fundamental

para compreender as dinâmicas nesta instituição e para o exercício profissional

comprometido com a justiça.

Os casos analisados levantam indicações de que algumas vezes os

operadores do Direito recorrerão aos elementos apresentados pelo assistente social

para justificar sua convicção já existente. Porém, majoritariamente o conteúdo do

estudo social é considerado para elucidar alguns aspectos da situação em litígio.

Foi possível verificar a tendência do Ministério Público em considerar o

conteúdo das análises técnicas, somando-as a outros elementos de prova (termo de

audiência, boletim de ocorrência policial, documentos de órgãos oficiais) como

fundamento para suas manifestações. Portanto, reafirma a relevância do trabalho do

assistente social com vistas a contribuir para que os litígios sejam solucionados de

forma justa. Evidencia-se, ainda, que os representantes do Ministério Público têm

dado maior ênfase à busca de medidas para a efetivação dos direitos sociais, por

meio dos serviços municipalizados, os quais poderiam, em tese, garantir melhores

condições para a convivência familiar. Inclusive, tal medida evita que se julguem as

pessoas, exclusivamente, por sua condição material e, principalmente, que

dificuldades dessa ordem, que podem influenciar a dinâmica sócio-familiar dos

envolvidos no litígio em questão, sejam superadas.

Page 240: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

229

O caso 5 destaca-se por ilustrar muito bem “o lugar do falante” e a valoração

moral que influencia os julgamentos. Envolveu uma criança entregue aos seus dez

meses de vida, a um casal de conhecidos. No ato da entrega, a mãe deixa uma

carta “para lhe falar o que eu não falei pessoalmente”. A genitora explica que decidiu

após dez meses, escolhendo-os como pais.

Diz ainda “vou amá-lo vocês, se vocês amá-la, pois não estou dando um

objeto, mas um filho. Mas não amo como mãe porque tenho mágoas de que foi ela

que atrapalhou minha vida. Então dar o carinho que ainda não conheço”. (sic!)

Após esta explicação, finaliza com “algumas recomendações: para dormir, faz

cafune na cabeça ou bate nas costas. Ela gosta de Danone e comidinha e descubra

o resto”.

A carta era curta, mas eloqüente.

Os laudos, social e psicológico, foram favoráveis à adoção. Após três meses

da entrega, a mãe manifestou arrependimento em audiência. Seis meses após o

pedido, o Ministério Público manifestou-se pela destituição do pátrio poder. Dentre

várias questões, o advogado da genitora solicitou autorização de visitas, o que foi

negado devido à “natureza da ação”. Um ano após o pedido, a destituição de pátrio

poder foi decretada em primeira instância. Em segunda instância foi mantida a

destituição do pátrio poder. O tempo total do processo foi de três anos e três meses.

Page 241: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

230

A relevância deste caso é que, embora se afirmasse a instabilidade da

genitora, esta estaria trabalhando na residência do seu advogado, que também

permitiu que a criança fosse morar com eles. A genitora era doméstica e cuidava dos

filhos do advogado.

E o segundo e principal aspecto foi o de constatar o peso da carta da

genitora, ou, como fundamentado no segundo capítulo deste trabalho, o peso do

falante, nas relações comunicativas, conforme o lugar social que o autor ocupa. No

caso do judiciário, quando o falante é o acusado, este lugar muitas vezes definirá

como será a sua escuta. E assim por diante.

Salta aos olhos o fato de que a carta foi vista por todos os atores (técnicos e

operadores do Direito) como algo estritamente negativo. Todos mencionam a fala

“não amo como mãe...”. Este caso parece evidenciar o peso que se deu a uma

interpretação parcial de sua fala. Todos se ativeram a sua declaração de que não

ama a criança como mãe e que a culpa pelos infortúnios vividos. Não houve

nenhuma menção sobre “dar o carinho que não conheço”. Seria este um pedido de

amparo? Também não se menciona a gratidão que a genitora diz vir a ter se o casal

puder amar a criança. Não houve nenhuma referência sobre possíveis significados

das recomendações humildemente descritas pela mãe. Considerando a gravidade

da situação que esta mãe vivia, tais contradições de sentimentos são

compreensíveis. O julgamento moral certamente condenará que uma mãe acuse

uma criança como motivo de seus infortúnios. Uma análise crítica poderia ter

buscado outros elementos para uma melhor avaliação do seu quadro sócio-

Page 242: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

231

econômico, familiar e psicológico. Não se questiona o desfecho do caso

simplesmente, mas o caminho que se percorreu para tanto.

Por cautela exigida pela ética na pesquisa, a carta não foi totalmente

reproduzida, mas foi inevitável que a pesquisadora-leitora não tivesse uma reação

dúbia diante da fala desta mãe, então com vinte e um anos de idade, que se

arrependeu de entregar sua única filha. Os laudos não explicam qual foi a história

desta jovem, de onde veio, quais suas aspirações, seus projetos, como elaborou o

arrependimento e com quem mais podia ou não contar, além do seu advogado.

Acusou-se que esta jovem tinha uma situação instável, vez que era

empregada doméstica e morava na residência onde trabalhava. E, neste contexto,

grita a pergunta: afinal, quantas mães moram em seus empregos, por falta de

moradia? Quantas são migrantes que vieram meninas “para estudar”, vivendo nas

casas de familiares, passando por inúmeras opressões? É um traço cultural a

circulação de meninas, até os dias atuais, que são trazidas por familiares para o

Sudeste, havendo intenção de que tenha outro destino. Opções? Apenas se

pensadas romanticamente, pois a história mostra que a grande maioria das pessoas

não tem possibilidades de escolha.

Neste estudo pode-se observar que o judiciário é um lócus privilegiado para a

análise do lugar social e político dos sujeitos. Pensar o lugar do falante é importante,

seja na perspectiva do assistente social, trabalhador especializado, seja na dos

sujeitos que são submetidos ao julgamento da Justiça.

Page 243: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

232

Tratar de sujeitos é também pensar em seus territórios, seu pertencimento.

Conforme explorado no Capítulo I deste trabalho, um dos instrumentos utilizados

pelo assistente social para conhecer a realidade e o modo de ser e viver dos sujeitos

é a visita domiciliar. No contexto do judiciário existe por parte dos operadores do

Direito uma valorização da visita domiciliar, muitas vezes confundida como sendo

ela, exclusivamente, o próprio estudo social. Tal tendência se apresentou também

nos autos estudados e, deste modo, indica a necessidade dos profissionais

explicitarem quais instrumentos utilizaram na realização do estudo social, que é uma

atribuição privativa do assistente social.

Os casos analisados praticamente não registraram a realização de contatos

institucionais. Por exemplo, pode-se recorrer a profissionais de outras instituições e

órgãos para melhor compreensão da situação e, principalmente, para levantar as

possibilidades para que as famílias acessem seus direitos sociais. Quando

esgotadas estas possibilidades, ao serem registradas nos autos, também favorecem

um julgamento com mais elementos, podendo ser mais justo.

A realidade vem mostrando que, nas mais diferentes condições, o assistente

social realiza intervenções, devendo ser orientado pelos valores e princípios do

projeto profissional, inscrito numa perspectiva societária. O projeto ético-político-

profissional hegemônico do Serviço Social fundamenta essa natureza interventiva

da profissão e, portanto, mesmo quando realiza o estudo social no âmbito sócio-

jurídico (judiciário, previdência social, sistema prisional, etc.), é sem perder essa

natureza que o faz.

Page 244: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

233

Marcada pela área da assistência social, o próprio profissional parece

reafirmar que a intervenção ocorre somente quando mobiliza recursos materiais e

serviços relacionados a saúde, habitação, renda etc. Assim, o que se entende por

intervenção social também deve ser aprofundado.70 Numa relação aproximativa,

nesta pesquisa adotou-se que a intervenção do assistente social se efetiva em toda

ação profissional, portanto, com dimensões ética, técnica e política. Busca a

garantia, efetivação e/ou ampliação dos direitos sociais, os quais podem propiciar a

emancipação e a plena realização dos sujeitos sociais.

Uma atenção especial deve ser dada à maneira com a qual se utiliza a

linguagem para informar sobre a história dos sujeitos. Mesmo uma apreciação

desfavorável não pode, jamais, ter sentido pejorativo contra as pessoas. Este é um

pressuposto ético para o exercício profissional. O que não significa se confundir com

a neutralidade positivista. Conforme fundamentado teoricamente, toda posição é

tomada com base em valores e permeada por ideologias.

Um exemplo também sobre a linguagem foi o uso do conteúdo do laudo pelo

advogado no Caso A. O laudo psicossocial resgatou que num outro procedimento

havia uma avaliação que fazia ressalva à dinâmica conjugal do casal que pretendia

adotar uma criança, embora este fato estivesse superado. A própria informação diz

que ela não era importante para o andamento do pedido.

Quando se emite um parecer, este deve ter clareza, ser fundamentado em

dados e conhecimentos, informar quais alternativas foram acessadas, quais não

70 Saliente-se a importante atividade programática do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-SP que se denomina “O significado da intervenção social”

Page 245: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

234

puderam se alcançadas, por quais motivos, enfim, apresentar as várias questões

que compõem o caso. Há uma tênue distância entre a fala que resgata a

particularidade do caso e a que leva a uma culpabilização do indivíduo. O que

orienta a decisão de qual conteúdo comunicar é a sua intencionalidade. Assim, falar

de sujeitos é tratar de sua individualidade e também de sua construção como ser

social, no seu sentido ontológico.

Quando o assistente social é o falante, ele interage com falas e com a escuta.

E, ao fazê-lo, revela parte de sua ideologia, de seus preconceitos, de seus valores.

O lugar de falante, ao ser ocupado, pode provocar justiça, opressão, possibilidades,

cerceamentos. Ao assistente social cabe sempre se questionar por que, para quem

e com que sentido realiza sua interlocução. O seu fazer deve estar impregnado de

sentidos ético-políticos.

O assistente social é também, portanto, ouvinte e leitor. E essas posições se

realizam enquanto processo, construindo relações, possibilitando empatia ou

conflitos. Ao ser falante e ouvinte, seu posicionamento profissional pode revelar uma

escuta democrática e respeitosa, mas também emitir valores pessoais e

preconceitos.

Por isso, se a formação profissional é fundamental, há também uma

qualificação que se adquire neste fazer profissional. Portanto, para uma prática

competente, conhecimento teórico e prático devem se articular numa relação crítico-

dialética.

Page 246: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

235

Por todo o exposto, os significados, os conteúdos e as formas da linguagem

devem ser pauta de preocupação profissional, pois, no confronto de forças no

cotidiano, será determinante para o encaminhamento das situações. Compondo o

processo comunicativo que existe em toda relação, conteúdo e forma podem dar

múltiplas direções aos significados que serão interpretados por diferentes atores.

Manifestadas, elas transitarão sem o amparo de seu autor. Sendo “as palavras

portadoras de idéias”,71 são instrumentos de luta, conciliação e rupturas.

b. A interdisciplinariedade

Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi

então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior

seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros seria eu

(Para não esquecer, Clarice Lispector)

Outro caso que foi importante para a análise tratava de dois irmãos, que

foram entregues pela genitora a outros familiares. Tais crianças viviam com os

requerentes há seis anos, mas já no primeiro laudo psicológico constatou-se que o

casal resistia a informar-lhes a sua origem biológica. É sabido que omitir de crianças

adotivas a sua origem biológica é extremamente prejudicial para o seu

desenvolvimento. Assim, a psicóloga opinou contrariamente à adoção. O estudo

social, por sua vez, ateve-se às condições favoráveis dos requerentes, nada

manifestando sobre a questão problematizada pela psicóloga.

71 Martinelli, anotação de aula, 2004.

Page 247: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

236

Novo estudo foi realizado, tendo a psicóloga confirmado que uma das

crianças trazia, tanto no cotidiano familiar (fazendo perguntas sobre as diferenças

físicas) quanto nos testes projetivos, a demanda por conhecer sua origem. Essa

criança apresentava, ainda, convulsões desde os oito meses, após ter tido uma forte

febre, e utilizava medicação de controle (Gardenal). Tal fato era um argumento que

reforçava a resistência do casal quanto às conseqüências da revelação, mostrando-

se impassível diante das orientações técnicas a respeito do direito e da importância

do conhecimento sobre a origem biológica.

A genitora não aceitou o pedido de adoção e intensificou o contato com as

crianças. Fora destituída na Primeira Instância e tudo direcionava para que a

decisão fosse mantida em Segunda Instância. Contudo, já na fase de julgamento, os

requerentes manifestaram desistência, pois, devido aos conflitos, entregaram as

crianças à genitora.

Junto à manifestação dos requerentes, apresentada à Segunda Instância, a

mesma psicóloga afirmava em laudo que com o retorno ao convívio materno, a

criança que tinha convulsões deixou de manifestá-las e, portanto, também deixou de

utilizar o medicamento.

Este caso é emblemático ao se pensar a importância da

interdisciplinariedade. Ainda que já sejam de comum conhecimento e domínio os

temas relacionados à adoção e à revelação da origem, há que se considerar que o

psicólogo tem instrumentos específicos para fundamentar sua apreciação sobre o

assunto. O assistente social possui um domínio em outro campo e, assim, é

Page 248: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

237

extremamente importante que tais domínios específicos se somem na busca do que

for mais benéfico para a criança.

Além disso, é sabido que há, infelizmente, inúmeros casos de “devolução de

crianças”, que estavam sob guarda de fato ou mesmo com a devida

regulamentação, mas em que não houve estudo psicossocial e orientações cabíveis.

O quadro de miséria que a maioria da população brasileira vive, parece favorecer

que não se realize, adequadamente, os estudos psicossociais para fins de

regularização de guarda. Verificadas situações preocupantes na relação entre os

guardiões e a criança ou o adolescente, cabe ainda encaminhar o grupo aos

serviços sociais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. A ausência

de tais serviços é um problema grave, mas até a falta deles exige maior rigor na

efetivação dos princípios estabelecidos no Estatuto. A realidade deve obrigar o

Estado a dar cumprimento aos seus deveres, posto que a mudança de cultura exige

o reordenamento institucional estabelecido pelo ECA em suas disposições

transitórias.72

Com os recentes programas de transferência de renda (Bolsa Família, Bolsa

Escola, Renda Cidadã, entre outros), a cobertura massiva de um segmento

vulnerável socialmente acarretou uma grande busca por regularização de guarda.

Em muitos casos, verificou-se que avós, tios, familiares geralmente maternos,

padrinhos e outros, já viviam há anos com a criança ou adolescente em questão. Em

muitos casos de avós, estes cuidavam de grupos de irmãos. Esta situação

72 Art. 259. A União, no prazo de noventa dias contados da publicação deste Estatuto, elaborará projeto de lei dispondo sobre a criançao ou adaptação de seus órgãos às diretrizes da política de atendimento fixadas no art. 88 e ao que estabelece o Titulo V do Livro II. Parágrafo único. Cometpe aos estados e municípios promoverem a adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta Lei.

Page 249: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

238

reacendeu a importância de se discutir o tema da guarda visando a preservação dos

direitos da criança e do adolescente, principalmente quanto ao direito de convivência

familiar saudável em todos os aspectos.

O tema convivência familiar, assim, precisa estar na pauta do judiciário, pois a

família contemporânea está organizada por diferentes laços, consangüíneos ou não,

por afinidade, por afeto, por necessidades. Assim, a análise sobre esses laços

ultrapassa a família tradicional burguesa, referindo-se a estratégias de sobrevivência

e de solidariedade. Estas, contudo, são permeadas também pelas antigas relações

de favor que historicamente foram utilizadas também de forma nefasta, criando laços

de opressão e domínio. O tema é controverso e precisa de aprofundamento,

sobretudo interdisciplinar e interinstitucional, pois a família tem sido o eixo das

políticas sociais. Além disso, muitas vezes a família é tratada mais em relação a sua

“disfunção” do que como espaço de possibilidades. Facilmente se recai na

moralização das suas diferentes estratégias de organização. O mesmo ocorre com a

discussão das “novas configurações familiares”, que às vezes é feita com

conotações pejorativas.

Por outro lado, uma dinâmica que a sociedade brasileira vem vivenciando nas

duas últimas décadas é a violência envolvendo adolescentes, havendo muitos

desfechos fatais. Agregando-se a isso, temos gerações de pais e mães

adolescentes, o que tem gerado tema de discussão na academia. Somando-se a

esse quadro, o mundo vem vivenciando o envelhecimento da população; e no caso

do Brasil não é diferente. Porém, o olhar parece centrar-se mais no “fenômeno” do

que nos impactos que tais relações e mudanças podem trazer, não apenas em

Page 250: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

239

termos conjunturais, mas estruturais, posto que o estudo e enfrentamento de tais

cenários também devem considerar as relações de gênero e de classe.

Nesse sentido, o assistente social precisa inserir-se em debates e estudos

que se realizam em outros espaços para uma melhor compreensão das situações

que se apresentam no cotidiano do Judiciário. Recentemente, em discussão

informal, uma assistente social judiciária que também é bacharel em Direito tentava

convencer três colegas, feministas e militantes de direitos humanos, que era

favorável à união civil de homossexuais com vistas à garantia patrimonial, sendo

este um importante direito, mas ao mesmo tempo se afirmava totalmente contrária à

permissão de que adotem crianças. A profissional não elaborava nenhum argumento

consistente, atendo-se à percepção moral, que, veladamente, se relacionava à

questão da sexualidade e da diversidade.

As contradições são muitas, provocando e intensificando a defesa de que

sem conhecer a complexidade dessa realidade, as alternativas construídas são

inconsistentes e frágeis.

A antropologia, a sociologia, a psicologia, a filosofia etc., compõem o

conhecimento que fundamenta a ação do Serviço Social, devendo estar articuladas

de forma a dar consistência a nossas indagações. As respostas são construídas

coletivamente, mas, para isso, é preciso saber perguntar. Outra vez, verifica-se a

importância das reflexões sobre a comunicabilidade e a linguagem. As nossas

perguntas devem servir para dar voz àqueles a quem o devido espaço foi roubado

Page 251: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

240

(ou mesmo nunca ocupado) e para construir coletivamente, como numa orquestra,

com diferentes posições, mas buscando criar uma outra história.

As análises demonstraram que o assistente social precisa se apropriar do

poder que lhe é colocado nesta instituição, a fim de contribuir para o que for mais

benéfico para a criança e para sua família. Vale resgatar que, na perspectiva do

Direitos Humanos, estes são compostos por um conjunto indivisível, ou seja, não é

possível falar de direito da criança sem pensar sua família e sua comunidade. Por

vezes, dizer o que é mais benéfico para a criança permite também à condução de

resoluções que ferem os direitos à convivência familiar. Observe-se que os casos A

e C indicam que houve tendência em se priorizar a permanência da criança na

família guardiã. No caso A, a criança foi entregue pela genitora e vinte dias após a

audiência, a criança foi colocada para uma família. Em nenhum momento se

menciona nos autos sobre o termo de guarda para fins de adoção que o Setor

Técnico encaminhou a genitora para atendimento social e não se menciona o estado

emocional da mesma. Na verdade, não há nada no laudo psicossocial sobre a

genitora. Não se questiona aqui se foram ou não realizadas determinadas

intervenções, mas sim, o fato de não haver registros sobre elas. Tal ausência

dificulta o andamento dos autos, por não se esclarecer o que vinha ocorrendo com a

genitora e as análises dos técnicos a respeito da sua situação.

No caso C evidenciou-se que a genitora recorreu ao apoio dos padrinhos da

criança e não concordava com a adoção. Conforme descrito, o caso apresentou

várias dificuldades. Porém, há evidências da tendência de priorizar que a criança

ficasse com o casal requerente.

Page 252: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

241

Ambos os casos, portanto, sinalizam a necessidade de aprofundar como se

realiza o que for mais benéfico para a criança, sem violar também o seu direito à

convivência familiar. Ressalte-se que tem sido adotado o conceito de que a família

contemporânea não é exclusivamente aquela formada por laços sangüíneos e nem

é esse o critério ora adotado. Trata-se de validar as trajetórias e estratégias das

famílias em manter seus laços frente ao desafio de sobrevivência. Não é possível

pensar o que é mais benéfico à criança sem pensar a sua família. O direito ao

conhecimento da sua origem remete às velhas questões filosóficas da humanidade:

quem sou e de onde venho. Nesse sentido, cabe valorizar o importante trabalho que

tem sido realizado pela antropologia urbana para pensar como a sociedade se

organiza diante das requisições do mundo globalizado, com sofisticadas tecnologias,

mas que vem gerando outras formas de violência social. Esse desenho

contemporâneo vem dando outras feições à realidade social. E, por outro lado, na

consolidação do Estado Mínimo, que é negligente com seus deveres, este mesmo

Estado exerce a punição dos sujeitos que vivem as conseqüências desse processo.

Todo esse quadro é extremamente complexo e não há receitas prontas para

seu enfrentamento, mas há caminhos já percorridos que podem iluminar a atuação

comprometida e competente.

É preciso que o técnico também tenha melhor entendimento de que instituição

é essa, quais os atores e as diferenças nas relações de poder que se exercem

diante dos conflitos com os quais lida. Reconhecer a incompletude profissional e

Page 253: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

242

institucional, por exemplo, favorece a busca de consolidação do trabalho de equipe e

da rede.

Foi extremamente relevante poder ter constatado, ao contrário do que parece

prevalecer no imaginário popular, que os desembargadores, nos casos similares aos

analisados, têm realizado manifestações que consideram a complexidade da

desigualdade social e suas conseqüências. Mesmo o assistente social tem pouco

contato com a posição dos desembargadores, vez que quando emite o laudo social,

encerra sua participação nos autos. Isso sinalizou a necessidade de maior

aproximação e conhecimento do que ocorre na Segunda Instância da Justiça. É

neste sentido que esta pesquisa defendeu a importância de o assistente social ter

conhecimento e visão crítica sobre todos os caminhos, os processos e os produtos

do trabalho de que participa.

Também foi possível constatar que há uma posição muito positiva dos

desembargadores em relação aos elementos apresentados pelo assistente social.

Os desembargadores mantiveram coerência entre a análise sobre a situação da

população brasileira e os argumentos utilizados sobre os casos que julgaram. Em

muitos casos, observa-se que houve uma grande ênfase no conteúdo do laudo

social. Houve também, como identificado, casos em que se ressentiu de maior

aprofundamento do estudo social.

Nos autos estudados, destacam-se como elementos apresentados nos laudos

sociais que fundamentaram a análise e julgamento dos operadores do Direito:

Page 254: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

243

Informações relacionadas ao empenho do sujeito para reverter a situação de

dificuldade

evidências sobre a coerência entre o discurso, os projetos e a ação

empenhada para a reversão da situação

indicações científicas do que pode acarretar a tomada de certas decisões, ou

seja, a construção pelo profissional de cenários possíveis para a solução dos

conflitos

Em relação aos direitos sociais e à conjuntura política, problematizaram:

o direito da família em recorrer aos serviços municipais

o direito à convivência familiar

a defesa de que, conforme o ECA, a carência material, por si só, não pode

motivar a destituição do pátrio poder

Conforme a própria história da inserção do Serviço Social no Judiciário

demonstra, os profissionais podem contribuir muito além da apresentação destes

elementos. Os casos indicam que em alguns momentos os dados apresentados pelo

assistente social esclareceram os fatos e as dificuldades vivenciadas pelas partes.

Porém, também foram utilizados para reforçar os argumentos dos operadores do

Direito. Assim, o conteúdo dos laudos são muito mais relevantes quando trazem um

enfoque novo, que não poderia ser apreendido pela ótica do processo legal.

Saliente-se que quando se evidenciou que não foram cumpridos os ritos

processuais, os recursos contra tais situações foram acolhidos.

Page 255: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

244

Face a esta situação, o assistente social pode contribuir para a

compreensão dos seguintes aspectos:

o contexto sócio-econômico e cultural

o resgate da trajetória da situação vivenciada: quem são essas pessoas,

como se iniciou o conflito, quais as principais tensões e dificuldades;

histórico familiar: qual a composição, com quem as partes podem contar, que

lugar a criança ocupa no conflito, qual a dinâmica familiar, como aquele grupo

expressa afetos e cuidados, como a questão da cultura afeta esta história;

relações sociais: que vínculos existem, como se dão os relacionamentos, qual

o nível de inserção das partes no mercado de trabalho e de formação

profissional

em que condições o conflito foi apresentado ao Judiciário, quais intervenções

com apoio do poder público, por meio das políticas sociais, foram realizadas e

as mudanças que delas decorreram

que elementos indicam que a ausência de condições objetivas implicaram no

tipo de dificuldade vivenciada pelos sujeitos envolvidos

Neste sentido, é fundamental que se tenha maior clareza de que o estudo

social deve conter uma boa descrição, mas não apenas isso. Deve trazer elementos

que fundamentem a análise, compreendam os fatos e consigam explicá-los a luz dos

conhecimentos. Além disso, deve ter suporte teórico-metodológico e, como afirmado

em vários momentos, posicionamento ético-político.

Na pesquisa ficou evidenciada, também, a importância do primeiro laudo

social. Ele é um parâmetro muito importante para o encaminhamento das análises e

Page 256: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

245

do andamento dos autos. Não que se pretenda que seja um prognóstico totalmente

correto, o que seria impossível até pela dinamicidade do cotidiano. É um parâmetro

no sentido de garantir os nexos e o entedimento da processualidade do caso.

Portanto, resgatar o trabalho de profissionais expressos em casos judiciais

permitiram a reflexão da importância da inserção do assistente social no judiciário e

da sua responsabilidade em contribuir para a resolução de conflitos e efetivação de

direitos. Os técnicos (assistentes sociais e psicólogos) são atores privilegiados, que

têm contato com a realidade “nua e crua”, mas a qual tem de ser analisada para

além das aparências. A estes técnicos cabe resgatar as dores e os sonhos de uma

população que vivencia inúmeras privações e explorações de toda espécie. Esse

desvelamento do cotidiano favorece o reconhecimento das injustiças que existem.

Os técnicos podem ser ouvintes e, com destreza, registrar a história que pode ser de

João, de Maria, mas sempre de um sujeito.

Evidencia-se na prática profissional que muitas vezes o assistente social,

embora considere as injustiças e desigualdades como algo a ser enfrentado, acaba

apenas agindo sobre os fatos emergentes, num manejo de variáveis que estão

colocadas, sem buscar os nexos causais. As ações cotidianas tendem a buscar os

resultados mais por critérios de necessidade. Vale retomar a reflexão de Meszáros

quanto à importância de termos metodologias que radicalizem, ao enfrentar as

contradições sociais, a diferenciação dos projetos societários em disputa.

Frente às contradições da realidade, os assistentes sociais também se

realizam como sujeitos coletivos, afirmando uma categoria e seu projeto ético-

Page 257: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

246

politico-profissional. Na hierarquia do poder, ocupam lugares diferentes. Já o

conhecimento pode ser um instrumento que rompa uma rígida hierarquia, rompendo

culturas e estabelecendo novas práticas. A valorização profissional pode se efetivar

em diferentes níveis, mas cabe aos seus sujeitos realizarem práticas coerentes com

os princípios defendidos, articulando as idéias com estratégias igualmente coerentes

(isto é, dizer-se democrático não basta, devem-se se adotar estratégias

democráticas). A contribuição para o conjunto de saberes gera um outro poder, não

atribuído, mas conquistado cotidianamente. Se é certo que o assistente social tem

uma autonomia relativa, tão certo também é o fato de que somente a ampliará numa

relação coletiva e, principalmente, se sua intervenção estiver impregnada de

sentidos, orientada para cenários de justiça social.

O sujeito coletivo, quando é a categoria profissional, é potencialmente sujeito

político. Mas, para tanto, precisa ter organização, pautas reivindicativas e bandeiras

de luta, que se somem a outros coletivos, nas lutas mais amplas. Por exemplo, a luta

pela Defensoria Pública em São Paulo se ressentiu da ausência de assistentes

sociais do campo sócio-jurídico.73 E sabe-se que aquele é um órgão fundamental

para o acesso à Justiça pela maioria da população. O sujeito coletivo, assistentes

sociais do judiciário, existia, mas não atuou suficientemente nessa situação como

sujeito político.

73 Na ocasião, o Cress-SP teve uma importante participação, junto com o Sindicato dos Psicólogos, na elaboração do item que tratava da equipe interdisciplinar deste órgão. O Cress-SP contou com duas diretoras, contando ainda com a colaboração de um assistente social do CIC –Centro de Integração de Cidadania, serviço do Governo Estadual,que também prestava atendimento sócio-jurídico. Também participava duas assistentes sociais que assessoravam gabinetes de vereadores, vinculado à questão dos Direitos Humanos de um partido de esquerda. Mas, de modo geral, não houve adesão nesta luta enquanto categoria profissional. Embora o Cress seja um órgão de representação, suas ações somente fazem sentido se construído coletivamente, com a base representada.

Page 258: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

247

Guerra confirma a necessidade de um fazer profissional crítico, competente e

eficaz.

Mas este fazer não se reduz ao aspecto técnico, porque as demandas que se

colocam são de natureza abrangente, ética e política (1997, p. 61).

Decorrente dessa perspectiva, este pesquisar foi uma busca de

conhecimentos, procurando um desvelar da realidade profissional e da sua

contribuição para a sociedade. Esta trajetória está marcada, como se evidenciou,

pela defesa de outro projeto societário, alinhado aos princípios socialistas.

Atuando no âmbito dos direitos da criança e do adolescente é preciso

apreender como as práticas efetivam ou não o que se define como “o mais benéfico

para a criança”. Para um projeto societário que rejeite toda forma de violência e

opressão não dá para pensar a criança isoladamente, mas como valor para a

construção de outra sociedade.

No judiciário, infelizmente, muitas vezes a criança não é o centro da questão.

A disputa judicial é feita pelas partes e muita vezes as decisões não são tomadas a

partir da criança, colocando-a não como sujeito de direitos, mas, ainda como objeto.

É necessário que as instituições do Estado provoquem uma nova cultura em relação

à população infanto-juvenil.

Percebe-se que, tanto no litígio judicial quanto nos programas sociais se

reproduz esta prática que coloca os interesses dos adultos, das autoridades, dos

planejadores etc. como eixo para a elaboração das propostas e das ações. A criança

Page 259: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

248

continua sendo secundarizada, embora privilegiada no discurso. Quem tem coragem

de negar que a criança tem de ser prioridade absoluta? Porém, a realidade nos

mostra que tal determinação legal está longe de ser efetivada.

Destaca-se a relevância de considerar a questão do tempo quando se trata do

destino de uma criança ou de um adolescente. A dimensão do tempo, como já

afirmado, é muito diferente para estes sujeitos. Essa é uma questão pendente que

merece urgente apreciação. Em que situações podem ser agilizados os

procedimentos? Os prazos processuais são necessários para a garantia da ampla

defesa, etc. Porém, há que se pensar medidas para realmente efetivar o que é mais

benéfico para a criança, afirmada como prioridade absoluta pelas legislações e

protocolos de que o Brasil é também signatário.

Enquanto esta discussão não se efetiva no universo jurídico, aos

trabalhadores da equipe do Setor Técnico caberia, talvez, avaliar o que é urgente e

o que é importante. Nesse sentido, vale salientar a percepção empírica de que falta

um planejamento das ações, acabando por tornar o cotidiano de trabalho um

conjunto de atividades que parecem ganhar uma dinâmica quase que autônoma. É

fato que os técnicos têm de garantir os prazos processuais, mas, eticamente, cabe

afirmar que há muitas possibilidades para dar cumprimento às normas impostas

institucional e legalmente, sem perder os princípios que são defendidos pelos

projetos profissionais do assistente social e do psicólogo.

No âmbito das lutas gerais, é preciso que as duas categorias mostrem aos

operadores do Direito todos os danos que se causam às crianças e adolescentes

Page 260: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

249

que, como exemplificado, crescem (e sofrem) enquanto os autos tramitam. Vale

salientar que os dados apontam que há uma significativa demora na circulação dos

autos, de sua saída do cartório da Primeira Instância, até a sua distribuição ao

Procurador de Justiça, na Segunda Instância. Em geral, pode-se averiguar que os

operadores do Direito atuam com certa agilidade quando o caso é muito mais grave.

Nesse ponto, a pesquisa traz indicações de que há muito o que fazer, o que inclui os

setores de autuação e distribuição dos autos.74

Alguns críticos compreendem a causa da defesa dos direitos infanto-

adolescentes como algo fragmentado e dissociado da totalidade. É preciso alertar

que o movimento de defesa considera que o trato dado à infância é uma expressão

das conquistas e das barbáries da humanidade. A historiografia, conforme exposto,

demonstra que a criança e o adolescente foram tratados a partir do enfoque do

risco. Edson Sêda alerta que isso, além de tudo, é um eufemismo gritante, pois a

criança também representa a violação que os mais vulneráveis sofrem, de diferentes

maneiras, ao longo da história. Ainda temos diferentes “categorias” de criança e de

adolescente. Esta superação será possível ao caminharmos para a ruptura com a

desigualdade gritante entre classes sociais e nas relações de gênero, étnicas e

intergeracionais. A luta pelos direitos da criança e do adolescente, contudo, sofre da

mesma ecleticidade de interesses. Nos dizeres de Chauí “carências e privilégios são

para alguns segmentos determinados. Interesses são gerais para grupos ou classes.

Só o direito é universal” (1995, apud Silva, p. 57). Assim, o mal-entendido de

importantes intelectuais e formadores de opinião sobre o movimento da infância 74 Saliente-se que nos últimos cinco anos ocorreram as duas greves históricas dos funcionários do judiciário paulista, justificada pela precarização das condições de trabalho e diminuição do quadro de servidores, em relação ao aumento de demandas. E inegável que a ampliação das ações judiciais está diretamente relacionada aos problemas estruturais do país, como se fundamentou no Capítulo II.

Page 261: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

250

decorre dessa ecleticidade, portanto, dessa confusão. Talvez isto aconteça devido

ao fato de esta luta ainda ser forjada por grupos. Sequer superamos interesses de

classe, para então, poder realmente efetivar direitos universais, que, assim, abarque

a população infanto-adolescente.

Este pesquisar foi, antes, uma reflexão crítica, considerando não a

singularidade de cada caso, mas as feições particulares de expressões da questão

social quando manejadas no interior do Poder Judiciário. Nesse contexto, são

fragmentos da totalidade, tratadas numa linguagem jurídico-formal necessária para o

pretenso trato imparcial, dando até certa arficialidade ao real.

Contudo, compondo este cenário, há então os momentos de resistências nas

falas, nos argumentos, nas petições das partes, no olhar do Ministério Público. E

esse conjunto de elementos, se demonstram os limites, indicam também trilhas a

percorrer. Os caminhos, são sabidos. São necessárias outras trilhas, se pretendida

outra realidade.

Não seria necessário afirmar que a própria leitura do pesquisador traz os

componentes ideológicos mencionados nas argumentações anteriormente expostas.

Neste trabalho isso se evidencia não como descuido, mas como afirmativa de

momentos de resistência, impregnados nas práticas dos inúmeros trabalhadores

anônimos, contra as configurações da barbárie.

Pensar o sentido e a direção do trabalho do assistente social se reafirma,

nestas considerações finais, como parte do posicionamento ético e político e da

Page 262: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

251

responsabilidade por construir coletivamente outra realidade para as novas

gerações. E esta é uma missão histórica, com a qual estas reflexões visaram

contribuir, tomando-a como construção coletiva e permanente.

Page 263: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

252

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Rubem. O que as ovelhas dizem dos lobos. Estórias de quem gosta de ensinar. 8. ed. são Paulo:Papirus, 2000. p. 121-126. ARCOVERDE, Ana C. B. Questão Social no Brasil. Capacitação em Serviço Social e política social. Modulo II: Reprodução social, trabalho e Serviço Social. Brasília: UnB- CEAD, 1999, p. 73-86. ARIES, Philippe. História Social da Criança. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. AZEVEDO, Maria A.; GUERRA, Viviane. http://mulhervida.com.br/servicos_conceito_ violência.htm Acesso em 26/09/2004 BAPTISTA, Myrian V. A ação profissional no Cotidiano. In: Martinelli, Maria L. et al. O uno e o múltiplo nas relações entre as áreas do saber. 2ª edição. São Paulo: Cortez/Educ. 1998. p. 110 – 123. _____. A participação como valor e como estratégia de ação do Serviço Social. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 25. p.83-109.São Paulo: Cortez, 1987. _____. A produção do conhecimento social contemporâneo e sua ênfase no Serviço Social. Caderno ABESS, n. 05. p. 84-95São Paulo: Cortez. jul-1995,. BAKTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da Linguagem. 9. edição, São Paulo: Hucitec, 1999. BARROCO, Maria Lúcia S. Ética e Serviço Social – fundamentos ontológicos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. BARROS, Diana L. P. de. Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso. Diálogos com Bakhtin. 3. Ed, p. 21-42. Curitiba: Editora UFPR, 2001. CARVALHO, M. C. Brant e NETTO, José Paulo. Cotidiano: conhecimento e crítica. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1996. CASTEL, Robert. Armadilhas da Exclusão Social. Desigualdade e a Questão Social. São Paulo:Educ, 2004. 2. ed. CEAD-UnB. Programa de Capacitação em Serviço social e Política Social: Módulos 01 a 05. Brasília: Cortez, 2000/2001 CRESS. O Serviço Social e a realidade da criança e do adolescente. Caderno 1. São Paulo: CRESS, mar.2003. CFESS. Atribuições privativas do assistente social em questão. Brasília: CFESS, fev. 2002. CFESS. O Estudo Social em perícias, laudos e pareceres técnicos: contribuição ao debate no Judiciário, Penitenciário e na Previdência Social. 2. ed. São Paulo:Cortez, 2004. CFESS. Código de Ética Profissional do Assistente Social. Legislação Brasileira para o Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Cress 9 ª Região, 2006.

Page 264: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

253

CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2001. 9. edição _____. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 5. ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. COLMAN, S. A. A formação do Serviço Social no Poder Judiciário. 2004. Tese (Doutorado em Serviço Social) Pontifícia Universidade Católica,São Paulo. COSTA, Ana P. M. As garantias processuais e o direito penal juvenil como limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005. CRESS. Legislação Brasileira para o Serviço Social. 2 ed. ver. ampl. atual. São Paulo: Cress 9ª Região, 2006. _____. A realidade da criança e do adolescente. São Paulo: Cortez, 2003. ENGELS,F e KAUTSKY, K. O socialismo jurídico. 2. ed. São Paulo: Editora Ensaio, 1995. ESTEVES, Martha de A. Meninas perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. FALEIROS, Vicente de P. Estratégias em Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1997. _____. Circuitos e curtos-circuitos no atendimento, defesa e responsabilização do abuso sexual de crianças e de adolescentes no Distrito Federal. (relatório final da pesquisa). http://www.cecria.org.br Acesso em: 28 ago. 2001 FARACO, Carlos A., TEZZA, C. , CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin. 3. ed. Curitiba: Editora, UFPR, 2001. FARIA,José Eduardo (org). A crise do Direito numa sociedade em mudança. Brasília: Editora UnB, 1988. _____ Justiça e Conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991. _____ Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros Editora, 1998. _____Direito e Justiça: a função social do Judiciário. São Paulo: Ed. Ática, 1997. _____O Poder Judiciário nos universos jurídico e social: esboço para uma discussão de política judicial comparada. Revista Serviço Social e Sociedade, n.67, p. 07-17. São Paulo: Cortez, 2001. FÁVERO, Eunice T. Serviço Social, práticas judiciárias, poder. São Paulo: Veras, 1999. _____ (coord) Perda do Pátrio Poder: aproximações a um estudo socieconômico. São Paulo: Veras, 2000. _____. O Estudo Social – fundamentos e particularidades de sua construção na Área Judiciária. In: CFESS.O Estudo Social em perícias, laudos e pareceres técnicos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2004.

Page 265: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

254

FÁVERO, Eunice T., MELÃO, Magda J. R., JORGE, Maria Rachel T.(org) O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário: contruindo saberes, conquistando direitos. São Paulo: Cortez-AASPTJSP, 2005. FERNANDES, Maria Manuela L. B. L. Mãe não há só uma: o processo de Serviço Social quanto ao consentimento para a adoção de recém-nascidos numa grande maternidade de São Paulo. 1989. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 7 ed. Org. e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,1988. FREITAS, M. Ideologia e Linguagem. São Paulo: Atica, 2001. GENTILI, R. Representações e Práticas: identidade e processo de trabalho no serviço social. São Paulo: Veras, 1998. GIDDENS, A e TURNER, J (ORG). Teoria Social Hoje. São Paulo: Unesp,1999 GUERRA, Yolanda. A instrumentalidade do Serviço Social. São Paulo: Cortez,1995. _____. Ontologia social e formação profissional. Ontologia social, formação profissional e política. São Paulo: NEAM, PUC-SP, n.1, p. 45-64, maio 1997. HOBSBAWN, E. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 _____.A Era das Revoluções. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1972

IANNI, O - Karl Marx- Sociologia.São Paulo: Editora Ática, 1992.

IAMAMOTO, M.Serviço Social na Contemporaneidade. São Paulo: Cortez, 2003. _____. Projeto profissional, espaços ocupacionais e trabalho do(a) assistente social na atualidade. Atribuições privativas do assistente social em questão, p.13-50. Brasília: CFESS, fev. 2002. _____. Renovação e Conservadorismo no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2002a. IPEA. Levantamento nacional de abrigos para crianças e adolescentes da rede sac. Brasília: SEDH-CONANDA, 2003. arquivo pdf. KOLOUSTIAN, Sílvio M. (org). Família brasileira: a base de tudo. 3. ed. São Paulo:Cortez, Brasília: Unicef, 1998. LAKATOS, Eva M., MARCONI, Marina de A. Técnicas de Pesquisa. 3. ed. ver. e ampl. São Paulo: Atlas, 1996. LEI n. 8.742,de 7 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência Social. LEI n. 8069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. LEI n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde.

Page 266: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

255

LEI N. 17.943, de 12 de outubro de 1927. Código de Menores. LEI ESTADUAL n. 560, de 27 de dezembro de 1949 Serviço de Colocação Familiar. LEI n. 9.394, de dezembro de 1996 (sic!). Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação. LEI n. 8.662, de 7 de junho de 1993. Dispõe sobre a profissão de Assistente Social e dá outras providências. LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. 2. ed. São Paulo: Ática, 1979. LOPES, José R. L. Justiça e Poder Judiciário ou a virtude confronta a instituição. Revista USP:Dossiê Judiciário. n.21, 22-33. São Paulo: Edusp, mar/abr/maio 1994. _____ Direito, Justiça e Utopia. In: FARIA, Jose E. A crise do Direito numa sociedade em mudança. p.67-78. Brasília: Editora UnB, 1988. LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1985. LUKACS, Georg. História e consciência de classe: estudos da dialética marxista. Porto: Publicações Escorpião, 1974. MAGALHÃES, S. Avaliação e Linguagem: relatórios, laudos e pareceres. São Paulo: Veras, 2003. MATIAS, Dilza S. G. Crise, demandas e respostas fora de lugar. 2002. Dissertação (mestrado em Serviço Social) Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. MARCÍLIO, Maria L. Historia Social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. MARTINELLI, Maria Lúcia, RODRIGUES ON, Maria Lúcia, MUCHAIL, Salma T. (org). O uno e o múltiplo nas relações entre as áreas do saber. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1998. MARTINELLI, Maria Lúcia. Serviço social: identidade e alienação. São Paulo: Cortez,1989. MARX, K e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977. MARX, K. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda. Coleção Os Pensadores, 1999.

_____. A Miséria da Filosofia. São Paulo: Global Editora, 1985.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. _____. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. _____. Filosofia, ideologia e Ciência Social. São Paulo: Editora Ensaio, 1993. MINISTERIO PÚBLICO. Infância e da Juventude: interpretação jurisprudencial. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002. MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e Questão Social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.

Page 267: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

256

MIOTO, Regina C. T. A maternidade na adolescência e a (des)proteção social. Revista Serviço Social e Sociedade, n.83 –Especial Criança e Adolescente, p. 128-146. São Paulo: Cortez, 2005. NAVES, Marcio B. Apresentação. O Socialismo Jurídico.p. 13-20. São Paulo: Editora Ensaio, 1995. NETTO, J. P. Ditadura e serviço social: uma analise do serviço social pós-64. São Paulo: Cortez, 1991. _____. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992. _____. A construção do projeto ético-político do Serviço Social frente à crise contemporânea. Capacitação em Serviço Social e política social. Modulo I : Reprodução Social, Trabalho e Serviço Social, p. 91-109. Brasília: UnB- CEAD, 1999. _____. O movimento de reconceituação – 40 anos depois. Revista Serviço Social e Sociedade,n. 84, p. 5-20. São Paulo: Cortez, 2005. PACHUKANIS, E.B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica,1988. PIMENTEL, Silvia. Perspectivas jurídicas da família: o Novo Código Civil e a violência familiar. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 71. p.26-44.São Paulo: Cortez, 2002. REVISTA SERVIÇO SOCIAL E SOCIEDADE. Criança e adolescente. n.83, Especial 2005. São Paulo: Cortez, 2005. _____. Reconceituação do Serviço Social: 40 anos. N. 84. São Paulo: Cortez, 2005. RIZZINI, Irene. (org) A criança no Brasil Hoje: Desafio para o Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária, 1993. _____. Criança não é risco, é oportunidade: fortalecendo as bases de apoio familiares e comunitários para crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária: Instituto Pro-mundo, 2000. SADER, E. Estado e Política em Marx. São Paulo, Cortez, 1983. SALES, Mione A, MATOS, Maurílio C., LEAL, Maria C (0rg). Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. SANTOS, Lucinete S. Adoção: da maternidade à maternagem.- uma crítica ao mito do amor materno. Revista Serviço Social e Sociedade. n. 57. São Paulo: Cortez, 1998. p. 99-108. SEDA , Edson. “O novo direito da criança e do adolescente” – texto digitalizado, s/d. http:www.edsonseda.com.br acesso em 08 de jul. 2004. SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 22. ed. São Paulo: Cortez, 2004. _____. O poder da verdade e a verdade do saber. O uno e o múltiplo nas relações entre as áreas do saber, 2. ed., p. 46-54. São Paulo: Cortez, 1998.

Page 268: Contribuição do as para a justiça na área da infância e juventude

257

SILVA, Ademir A. As relações Estado-sociedade e as formas de regulação social. Capacitação em Serviço Social e política social. Modulo II: Reprodução social, trabalho e Serviço Social. Brasília: UnB- CEAD, 1999, p. 55-71. SILVA, Maria Liduína de O. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Menores: descontinuidades e continuidades. Revista de Serviço Social e Sociedade, nº 83 – Especial Criança e Adolescente. p. 30-48. São Paulo: Cortez, 2005. STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. 2ª impressão. São Paulo: Ática, 2000 TAVARES, Laura. Desigualdades sociais: o contexto latino-americano. Projeto de análise da conjuntura brasileira. Laboratório de Políticas Públicas-UERJ-Instituto Rosa de Luxemburgo. 12/01/2004. arquivo PDF. THIOLLENT, M. Crítica metodológica, investigação social e enquête operária. São Paulo: Polis Ltda, 1987. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual de iniciação funcional para assistentes sociais e psicólogos judiciários. São Paulo: TJ-FCBIA-Comissão, 1991. VÁZQUÉZ. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. VIEIRA, E. Os Direitos e a Política Social. São Paulo: Cortez, 2004. VOLPI, Mário. Sem liberdades, sem direitos. São Paulo: Cortez, 2001. WARAT, Luis A. O sentido comum teórico dos juristas. In: FARIA, José E. A crise do Direito numa sociedade em mudança. P.31-42. Brasília: Editora UnB, 1988. http://www.cress-sp.org.br http://www.emcrise.com.br http://www.ibge.gov.br http://www.ipea.org.br http://www.tj.sp.gov.br http://www.unicef.org.br