Cor_ Invisível - Aliás - Estadão

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 Entrevista. Fernando Braga da Costa ‘O uniforme é o último elo de uma cadeia que desumaniza para negar a existência’, diz psicólogo que se fez de gari Vitor Hugo Brandalise 20 Junho 2015 | 16h 00  Após anos de humilhação uma pessoa pode se tornar, simplesme nte, invi sív el? Pode-se deixar d e enxergar um ser humano e notar apenas sua função, seu trabalho? Ou, para ir além, é possível negar a própria humanidade de uma pessoa porque não conseguimos suportar o papel social que lhe demos ou suas diferenças? O psicanalista Fernando Braga da Costa, de 40 anos, tinha 19 quando sentiu pela primeira vez o que é desaparecer a partir de uma experiência radical: foi quando começou a trabalhar como gari recolhendo lixo e varrendo as ruas da Cidade Universitária, em São Paulo. Era parte de uma pesquisa em psicologia social que durou dez anos (durante os quais ele não deixou de vestir o uniforme de gari, pelo menos duas vezes por semana) e que resultou no livro  Homens Invis íveis : Relatos de uma Humil hação Social , lançado em 2004 pela Editora Globo. A teoria desenvolvida por ele - da invisibilidade pública, que se consolidou como linha de pesquisa no Instituto de Psicologia da USP - demonstra como a percepção humana é prejudicada e condicionada ao papel social de uma pessoa.  A pa rtir da teoria de Brag a d a Costa, pode-se apontar elos entre episódios díspares de discriminação social e racial. Ao buscar compreender o impacto de uma vida de exclusão, o pesquisador realizou um estudo sobre a negação da humanidade entre pessoas de setores desfavorecidos da sociedade. Uma reflexão que faz pensar em acontecimentos dessa semana, como o ataque a uma igreja em Charleston, na Carolina do Sul, que deixou nove mortos - todos negros -, a agressão com uma pedrada a uma criança negra 11 anos no Rio de Janeiro na volta de uma celebração de candomblé e o inquérito civil aberto contra o Clube Pinheiros, em São Paulo, por causa da exigência de que as babás vistam uniforme branco, obrigatoriamente. “São exemplos de como é possível acabar com a individualidade do ser humano, torná-los invisíveis aos olhos de quem sente ódio religioso ou racial ou de quem não pode suportar a visão de uma pessoa de outra classe social habitando um mesmo espaço”, diz Braga da Costa, que concedeu esta entrevista ao  Aliás .  Você se sentiu invisível durante o s anos e m que trabalhou co mo g ari? Eu fiquei várias vezes invisível. Diante de colegas de sala, diante de professores que me chamavam pelo nome na sala de aula. É uma sensação chocante. Eu passava todos os dias no Instituto de Psicologia da USP, de segunda a sexta, das 8h às 18h. E aí mudou tudo: entrei lá vestido de gari, com o Antonio, o gari, e de repente cruzava com pessoas que me cumprimentavam todo dia e o olhar delas me tangenciava. Varria os estacionamentos, as pessoas manobrando o carro passavam por cima do lixo que eu tinha acabado de amontoar. Houve gente, como um professor meu, que esbarrava ombro com ombro comigo e não pedia desculpa. E não é não pedir desculpa para o Fernando. É não pedir desculpa para alguém. Era uma rotina muito diferente da sua. Como você se sentia ao voltar para casa?  A primeira vez que passei por isso eu tremi a. Tontura era uma sensação comum. Tinha dificuldade p ara c omer, não conseguia me concentrar, diário de campo eu fazia só no dia seguinte. Chegava em casa e chorava. Porque as pessoas me tratavam como se eu fosse uma coisa. Nada diferente de um poste ou uma árvore. Os garis são tão invisíveis mundialmente que suas roupas características são usadas como disfarce preferencial pela Interpol, para passar despercebido numa investigação. Cor: invisível

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    Entrevista. Fernando Braga da Costa

    Ouniformeoltimoelodeumacadeiaquedesumanizaparanegaraexistncia,dizpsiclogoquesefezdegari

    VitorHugoBrandalise

    20Junho2015|16h00

    Apsanosdehumilhaoumapessoapodesetornar,simplesmente,invisvel?Podesedeixardeenxergarumserhumanoenotarapenassuafuno,seutrabalho?Ou,parairalm,possvelnegaraprpriahumanidadedeumapessoaporquenoconseguimossuportaropapelsocialquelhedemosousuasdiferenas?

    OpsicanalistaFernandoBragadaCosta,de40anos,tinha19quandosentiupelaprimeiravezoquedesaparecerapartirdeumaexperinciaradical:foiquandocomeouatrabalharcomogarirecolhendolixoevarrendoasruasdaCidadeUniversitria,emSoPaulo.Erapartedeumapesquisaempsicologiasocialqueduroudezanos(duranteosquaiselenodeixoudevestirouniformedegari,pelomenosduasvezesporsemana)equeresultounolivroHomensInvisveis:RelatosdeumaHumilhaoSocial,lanadoem2004pelaEditoraGlobo.Ateoriadesenvolvidaporeledainvisibilidadepblica,queseconsolidoucomolinhadepesquisanoInstitutodePsicologiadaUSPdemonstracomoapercepohumanaprejudicadaecondicionadaaopapelsocialdeumapessoa.

    ApartirdateoriadeBragadaCosta,podeseapontarelosentreepisdiosdsparesdediscriminaosocialeracial.Aobuscarcompreenderoimpactodeumavidadeexcluso,opesquisadorrealizouumestudosobreanegaodahumanidadeentrepessoasdesetoresdesfavorecidosdasociedade.Umareflexoquefazpensaremacontecimentosdessasemana,comooataqueaumaigrejaemCharleston,naCarolinadoSul,quedeixounovemortostodosnegros,aagressocomumapedradaaumacriananegra11anosnoRiodeJaneironavoltadeumacelebraodecandombleoinquritocivilabertocontraoClubePinheiros,emSoPaulo,porcausadaexignciadequeasbabsvistamuniformebranco,obrigatoriamente.Soexemplosdecomopossvelacabarcomaindividualidadedoserhumano,tornlosinvisveisaosolhosdequemsentedioreligiosoouracialoudequemnopodesuportaravisodeumapessoadeoutraclassesocialhabitandoummesmoespao,dizBragadaCosta,queconcedeuestaentrevistaaoAlis.

    Vocsesentiuinvisvelduranteosanosemquetrabalhoucomogari?

    Eufiqueivriasvezesinvisvel.Diantedecolegasdesala,diantedeprofessoresquemechamavampelonomenasaladeaula.umasensaochocante.EupassavatodososdiasnoInstitutodePsicologiadaUSP,desegundaasexta,das8hs18h.Eamudoutudo:entreilvestidodegari,comoAntonio,ogari,ederepentecruzavacompessoasquemecumprimentavamtododiaeoolhardelasmetangenciava.Varriaosestacionamentos,aspessoasmanobrandoocarropassavamporcimadolixoqueeutinhaacabadodeamontoar.Houvegente,comoumprofessormeu,queesbarravaombrocomombrocomigoenopediadesculpa.EnonopedirdesculpaparaoFernando.nopedirdesculpaparaalgum.

    Eraumarotinamuitodiferentedasua.Comovocsesentiaaovoltarparacasa?

    Aprimeiravezquepasseiporissoeutremia.Tonturaeraumasensaocomum.Tinhadificuldadeparacomer,noconseguiameconcentrar,diriodecampoeufaziasnodiaseguinte.Chegavaemcasaechorava.Porqueaspessoasmetratavamcomoseeufosseumacoisa.Nadadiferentedeumposteouumarvore.OsgarissotoinvisveismundialmentequesuasroupascaractersticassousadascomodisfarcepreferencialpelaInterpol,parapassardespercebidonumainvestigao.

    Cor: invisvel

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    Quaisossegmentosmaisinvisveisemnossasociedade?

    Paraqueapessoasetorneinvisvelbastaquetenhasuaindividualidadenegadaemalgumamedida.oquequerodizercomoconceitodeinvisibilidadepblica.Pessoasqueestonochodefbrica,pessoasquelidamcomlixo,pessoasuniformizadasdeformageral.Dealgumaforma,foramcristalizadasemumafunoprofissionaloucondiodeclasseeexcludasdodilogosocialedaorganizaodasinstituies.Soinvisveisporquesosubstituveisparaquemestemposiosuperior.Poroutrolado,seessaspessoasexistem,sesodecarneeosso,nosoelasasinvisveis.Nsquesomoscegos.Essacegueirapreencheoqu?umanegaodaexistnciadeoutroserhumanoemcondioinferiorporduasrazes:paranonotaroquefazemoscomoutroserhumanoeparaqueelenoameaceoestadodascoisas.Quandofuigari,noteiumabismosocialtograndeentreeles,sujeitospobres,eeu,estudanteuniversitrio,quenopareciaquefalvamosamesmalngua.Comumadistnciatogrande,comovocvaienxergaralgumdefato?

    Qualo'peso'deumuniformecomooquevocvestiu?

    Aqueleuniformeindicarebaixamentomoral.Noalgoqueumapessoadeseja.Masprecisoanalisarquenosouniformequefazcomquepessoasdessaclassesocialsetorneminvisveis.Notecomosecomportaumgariouumaempregadadomsticasaindodotrabalhojcomsuasprpriasroupas,amaneiracomocaminham,amaneiracomoolham,amaneiracomohabitamomundo,especialmentequandoestoembairrosnobres.amesmamovimentao.Ouniformeoltimoelodacadeia.Agentescapazdepensarnumasociedadeondeexistamuniformesquandojadmitiuauniformizaodessaspessoas.Issooquesechamadehumilhaosocial.

    QualrelaovocventresuaexperincianasruaseaexignciadousoderoupasbrancaspelasbabsnoClubePinheiros?

    Aoexigiruniformedeumababemumclubecujossciossodeclassesuperior,oquesetentafazerdeumamaneiraqueparececontraditria,masquetemexplicaomostrarapenassuafuno.Exatamentecomosefazcomosgaris,queningumnotanasruas.Aoidentificlas,elasestocristalizadasemumlugardeondenovopodersair.Roupadebabroupadebab:brancodospscabeaecomocorpocoberto.Perdeualisuaindividualidadeesuahumanidade.amesmalgicaquefazcomquetenhamosummvelchamadocriadomudo.Ababestaliparaservir,apenas.VoumebasearemFreudenapsicanlise.Quemexigequebabsusemuniformeestfazendoumexercciodenegao,queummecanismodedefesa.Elasnegamcertarealidadeporqueexisteumaconfianadeque,aonegla,eladeixadeexistir.

    Eporqueessaspessoasprecisamnegarisso?

    umaformadeamorteceraviolnciaqueaprpriapessoaproduziu.Mesmoquenosedconta,dolorosoparaosujeitodessaagressoolharparaondecolocouumoutroserhumanocomoele.ummecanismopsicolgicoparecidocomoquelevouescravatura.Aescravidosebaseiadecertaformanosadismo:eutenhoprazerdedominaredesacrificarooutro,masaescravidobaseadanacordapeletemavercomdiferena.Elenegro:ento,porisso,eupossoescravizlo.Sefossebrancoeunooescravizaria.Comoelaestbab,euaobrigoausarbrancoeadiferencio.Nessacondio,ahumanidadedeladesaparece.Docontrrio,aprpriaexistnciadelavestidacomoeles,ouseja,semmarcasdedistino,osforariaaolharparaarealidadedequeestoterceirizandoumvalortovitalquantoamaternidadeequehsereshumanoscomumtrabalhoprecrio,comoodasbabs.

    Aspessoasquesofremhumilhaosocialjestoacostumadasaisso?

    Desdeainfncia.umaespciedecondicionamento.Fazpartedosensinamentosdasclassespobresqueospaisdigamparaosseusfilhosaprendamasecomportar,temquesaberqualoseulugar.Fazpartedeummanualdesobrevivncia.Eissopassadodegeraoemgerao.

    Qualrelaopodeserfeitaentreasuaexperinciadehumilhaosocialeoracismo?

    Onegronoprecisaestaruniformizadoparaserhumilhado.Eletemnapelealgoqueoidentificaeodiferenciaemnossasociedadeeemoutrassociedadesnegativamente.Pornoenxergaroutramaneiradeinsero,muitasvezesprocuramocaminhodaostentao,osrelgios,oscordesparamostrarquetambmsocapazesdeseinserir.OjornalistaMrioFilhocontaumahistriaemONegronoFutebolBrasileiro,emqueelecontadeumaentrevistacomumjogadorquefalaalgodotipoeuseicomodifcil,eujfuinegro.Elenodeixouacondiodenegro,maseleenriqueceu,ficoufamoso.Noentanto,assimquereageaumahumilhaoquesofreuavidatoda.

    ComoentendercrimesdediocomoessequeaconteceunosEstadosUnidos?

    Nessecaso,ainvisibilidadedessessereshumanoschegouatalpontoquenoexistiunadaquepudesseimpedirquefossemmassacrados.Oassassinopassoualgunsminutosdentrodaigreja,saboreandoomomento,sabendooqueiaacontecer,oqueiapraticar.Sdepoiscometeuaatrocidade.Elenotevenenhumtipodehesitao,porquejnoviasereshumanosali.Ooutrojnoeraooutro.Seooutronoexisteenquantoserindependente,quedesejaefazescolhas,eupossomassacrloetorturlo.Paraalgumsercapazdecometeralgumacoisadessas,ooutrotemdeseralgoinferioramim.

  • 21/06/2015 Cor:invisvelAlisEstado

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    Umcasodeintolernciareligiosa,comoadaestudantenegrade11anosatingidaporumapedradanacabeaapssairdeumacelebraodecandombl,noRiodeJaneiro,nessasemana,podetambmserapontadocomoreflexodahumilhaosocial?

    Assimcomoosgariseasbabs,otodonessecasotambmfoitomadopelaparte.Essagarotaquelevouapedradanosumapraticantedocandombl.Elatemumabiografia,umamenina,estudante,gostadeumtipodemsica,elanegra.Elamuitascoisas.Assimcomoaspessoasdogrupocomquemelaestavatambmsomuitascoisas.Aoseragredida,issoaconteceuporcausadeumdosaspectosquecompemavidadela,apersonalidadedela.Ento,nessesentido,opreconceitoeahumilhaocaminhamjuntos,porqueelatomadaporparte,quandodeveriaservistapelotodoque,erespeitada.Eladeixoudeserooutro,comomaisculo,parasetornarumrepresentantedaclassepobre.

    Comofazerparaqueaspessoasreapaream?

    Dandolhesmaiscondiesmateriais,pormeiodepolticasinclusivas.Edandolhesateno.Mostrandospessoasquedetmasfunesmaisprecriasdenossasociedade,enquantonoevoluirmososuficienteparaacabarcomprofissesprecriascomoadosgaris,quevocsabequeelasexistem.Assimelasrelaxam,deixamdesentirsedeslocadas,esentirocommenosforaoesmagamentoqueexistesobreelashgeraes.Sertambmacuraparanossacegueirasocial,porqueveremosoquenoshabituamosanovermais.Almdisso,paraqueconsigamelaborarahumilhaoquesempreviveram,tratamentopsicanalticoquepromovamconscinciahistricadeexploraodonegroedopobre,comofazumgrupodeprofissionaisdoInstitutodePsicologiadaUSP(doInstitutoAMMA,PsiqueeNegritude),umbomcaminho.Emumadasminhasexperinciascomogari,euestavacomumespetodepapelrecolhendolixoquandoumcolega,Moiss,falou:Cuidadoa,porqueestudanteaquifingequenovagente.Eufiqueihorrorizado.Comoassim,fingequenov?Masissomesmo:finge,deliberadamenteevitanotar,quehumserhumanoali.Essaexperinciadeimerso,essenveldecomunidadequefoicriado,mudouminhavida.Foiumaprendizadonosintelectual,masemtodososnveis.Depoisdeminhaexperincia,eununcamaisdeixeidedarumbomdiaaumtrabalhador.