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    O DIREITO PENAL EM UMA ENCRUZILHADA: ABOLIO, DIVERSIFICAO, RETORNAR

    RAZO OU ENTRAR EM RAZO?*, **

    CORNELIUS PRITTWITZ Catedrtico de Direito Penal na Universidade de

    Frankfurt am Main

    RESUMO: O autor indaga em sua exposio se o Direito Penal garantista de um Estado de Direito foi perdido ou abandonado e se, nos dias de hoje, pode ser substitudo por um Direito Penal menos garantista ou at sem garantias, como o programa do Direito Penal do Inimigo sugere.

    PALAVRAS-CHAVE: Poltica Criminal-Direito Penal do Inimigo-Direito Penal do risco-Direito Penal da segurana-Modernizao do Direito Penal

    RESUMEN: El autor se pregunta en su exposicin si el Derecho Penal garantista de un Estado de Derecho se perdi o fue abandonado y si, en los das de hoy, se puede sustituir por un Derecho Penal menos garantista o incluso sin garantas, como el programa del Derecho Penal del Enemigo sugiere.

    PALABRAS-CLAVE: Poltica Criminal-Derecho Penal del Enemigo-Derecho Penal del riesgo-Derecho Penal de la seguridad-Modernizacin del Derecho Penal.

    SUMRIO: 1 Introduo. 2 O Direito Penal em uma encruzilhada: 2.1 A Noo de Direito Penal; 2.2 De Que Homogeneidade Estou

    __________

    *Ttulo original: El Derecho Penal en la encrucijada: abolicin, diversificacin, volver a la razn o entrar en razn? Traduo do original espanhol por rika Mendes de Carvalho, Professora Adjunta de Direito Penal na Universidade Estadual de Maring (UEM). **Conferncia proferida no XX Congresso Latino-americano, XII Ibero-americano e V Nacional de Direito Penal e Criminologia, realizado em Lima (Peru) em setembro de 2008.

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    Falando? 2.3 Direito Penal In The Books e In Action; 2.4 Diferentes Ausncias de Homogeneidade: do que Falamos? 2.5 A Ausncia de Homogeneidade Aqui Referida. 3 Anlise e crticas a essas tendncias: 3.1 A Anlise; 3.2 A Crtica. 4 Solues e sugestes: 4.1 Direito de Interveno; 4.2 A Proposta de Um Direito Penal de Duas Velocidades de Jess-Mara Silva Snchez; 4.3 O Programa do Direito Penal do Inimigo de Gnther Jakobs. 5 Posio pessoal: 5.1 A Poltica Criminal da Mo Invisvel; 5.2 O Direito Penal Para os Inimigos; 5.3 Direito de Interveno ou de Segunda Velocidade. 6 Perspectivas.

    1 INTRODUO

    O Direito Penal chegou a uma encruzilhada. Em um breve resumo, minha anlise a seguinte: o Direito Penal encontra-se nesta situao, sempre incmoda, em virtude da presso de dois desenvolvimentos sociais: primeiro, a modernizao acelerada (no somente tecnolgica) e, segundo, a demanda crescente de segurana objetiva e, talvez a mais importante, subjetiva.

    A reao da poltica criminal frente a esses desenvolvimentos pode ser resumida em trs noes: o Direito Penal do risco; o Direito Penal da segurana; e o Direito Penal do inimigo.

    A percepo - a meu ver, cada dia mais difundida - de que o Direito Penal, efetivamente, pode ser descrito com estas noes (no necessariamente crticas ou pejorativas) suscita o problema de se o Direito Penal garantista do Estado de Direito j est perdido ou abandonado - dolosa ou culposamente. Esse problema conduz seguinte encruzilhada: Deve-se resignar ante a constatao de um Direito Penal homogneo garantista perdido? Deve-se, ento, invocar um Direito Penal diversificado, com divises mais ou menos garantistas - talvez at com divises sem garantias -, como o programa do Direito Penal do inimigo sugere? Ou possvel persistir em um Direito Penal garantista?

    At aqui minha anlise no muito original, nem pretende s-lo. Limita-se a descrever um debate familiar comunidade dos

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    Doutrina

    penalistas; trata-se do debate entre aqueles que - polemicamente - se inscrevem como os que querem modernizar o Direito Penal, destruindo-o e os que persistem com ingenuidade - e s vezes at com fundamentalismo - na idia de um Direito Penal garantista, perdendo, assim, qualquer influxo ante a realidade poltica e social.

    Esse debate ganhou autonomia e os argumentos j no so muito originais (o que - vale a pena destacar - no significa que o debate tenha sido decidido ou que a superioridade de uma ou de outra posio tenha sido demonstrada, e tampouco significa que, no mundo da poltica criminal, no seja necessrio assumir essas posies). O que sim ocorre que, s vezes, este debate (muito importante) termina por ofuscar outras duas perguntas que, a meu ver, podem ensejar um debate ainda mais construtivo e, talvez, mais produtivo:

    Primeiramente: hoje em dia ainda realmente possvel falar de tendncias do Direito Penal, de um Direito Penal? Ou devemos reconhecer que, na situao social e poltica atual, j no possvel falar de um Direito penal homogneo? E segundo: o chamamento ao Direito Penal garantista, ou o chamamento razo, , de fato, um chamado para regressar razo ou um chamado para, finalmente, ingressar na razo ou, talvez, continuar nessa difcil misso?

    No final de minha interveno exporei minhas prprias respostas a esses problemas. Na minha palestra, quero esboar minha anlise do caminha at a encruzilhada. Aproximo-me dela em cinco passos e essa a primeira parte da minha conferncia:

    1. Ao tratar da possibilidade e dos limites de um Direito Penal homogneo, preciso esclarecer - muito brevemente - o que entendo por Direito Penal e...

    2. ... de minha noo de homogeneidade; 3. tambm preciso esclarecer se estou falando do Direito Penal de

    nossos cdigos ou se estou falando do Direito Penal em ao; 4. ao problematizar acerca das irregularidades e da ausncia de

    homogeneidade do Direito Penal, vale a pena esclarecer de quais irregularidades no estou falando;

    5. e que tipo de irregularidades sim constituem objeto de meu interesse.

    Depois, na segunda parte e buscando uma resposta adequada perda do Direito Penal homogneo, deve-se perguntar:

    - por que o Direito Penal perdeu sua homogeneidade,

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    - e, muito brevemente, convm abordar as crticas mais importantes ao Direito Penal cada dia menos homogneo.

    Por fim, diante da encruzilhada, recomendada a leitura e compreenso de alguns guias de viagem (terceira parte) antes de se tomar uma deciso.

    2. O DIREITO PENAL EM UMA ENCRUZILHADA

    2.1 A NOO DE DIREITO PENAL

    Em oposio separao entre Direito Penal e Direito Processual penal, tradicional e familiar na Amrica Latina, uma boa anlise das tendncias do Direito Penal, a meu ver, deve trabalhar com uma noo ampla do Direito Penal, que inclua no apenas o Direito Processual Penal, mas tambm as leis orgnicas e o Direito de execuo penal, at as leis que regem a disciplina penitenciria.

    Para comprovar a necessidade de incluir todas essas normas penais pouco conhecidas, pouco debatidas e, ao que parece, de menor importncia, basta mencionar alguns exemplos do contexto alemo - no tenho dvida de que seria fcil encontrar exemplos similares nas normas latino-americanas.

    Primeiro exemplo: no possvel falar das tendncias importantes do Direito Penal atual sem entrar em alguns dos debates dos processualistas, como, por exemplo, o debate sobre as distintas possibilidades de suspenso do processo - inventadas como excees regra (sentena condenatria ou absolutria), mas que, hoje em dia, so um fenmeno quase normal para concluir um processo -, ou sobre o que na Alemanha chamamos deal, utilizando a noo norte-americana em um tom pejorativo, o que - pelo menos em um sistema processual inquisitorial -, em outras palavras, uma declarao de falncia (Bankrotterklrung) com conseqncias incalculveis.

    Segundo exemplo: h pouco tempo o legislador alemo introduziu uma mudana aparentemente de apoucada importncia, a saber, at pouco tempo o tribunal com apenas um juiz criminal foi competente apenas para sentenas de at um ano de pena privativa de liberdade, mas agora pode condenar a at dois anos; a sala menor do tribunal criminal at pouco tempo podia condenar a at trs anos, e agora a at

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    quatro. evidente que tais mudanas alteram mais do que a mera competncia dos tribunais: o juiz, em comparao com a sala menor, a sala menor em comparao com a sala maior, isso significa menos pessoas que percebem e opinam, e claro que significa menos verdade e menos justia. Ademais, para os casos afetados por esta mudana de competncia tambm foram alterados os recursos cabveis.

    2.2 DE QUE HOMOGENEIDADE ESTOU FALANDO?

    Ao falar de um Direito Penal homogneo, algum poderia - pelo menos, na Alemanha - lembrar-se do ano de 1871, momento do surgimento de um Direito Penal para todos os pases da Alemanha, ou, na Europa, algum poderia pensar nas tendncias atuais bastante criticveis em direo a um Direito Penal europeu homogneo. No estou falando dessa homogeneidade, s vezes favorvel a uma posio garantista, e s vezes, porm, um verdadeiro risco para o Direito Penal garantista. Estou falando de uma homogeneidade interna das normativas penais, da vigncia dos mesmos padres em distintas reas do Direito Penal.

    Antes de esclarecer e ilustrar com alguns exemplos desta homogeneidade interna, sobre a qual queremos saber se vale a pena batalhar para conserv-la, recuper-la ou consegui-la, quero introduzir a diferenciao sociolgica entre law in the books e law in action.

    2.3 DIREITO PENAL IN THE BOOKS E IN ACTION

    De que falamos quando debatemos tendncias e avaliaes do Direito Penal? Falamos das normativas, do contedo de nossos cdigos penais, ou falamos (tambm) do Direito Penal na realidade do sistema da justia penal? H quase cem anos, em 1920, o socilogo norte-americano do Direito Roscoe POUND introduziu a diferena entre law in the books, o Direito nos livros, e o law in action, o Direito em ao. Apesar desta respeitvel tradio, o debate dos penalistas e, mais ainda, o debate sobre a poltica criminal, sofre a desateno do Direito Penal em ao. Os participantes destes debates so juristas e a jurisprudncia uma cincia de normas (nota-se nos

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    debates!). Ao falar do Direito Penal, claro que preciso analisar as

    normativas penais, mas seria ingnuo vislumbrar o Direito Penal dos livros como a realidade total do Direito Penal. Para ilustrar a necessidade de estar sempre consciente desta diferenciao, basta um exemplo quase banal: o princpio continental europeu de instruo oficial, o princpio de que o tribunal (o Estado), e no as partes, que deve buscar a verdade, e, igualmente, o princpio da livre apreciao da prova pelo tribunal, em princpio (quer dizer: nos livros) exigem a mesma vigncia em todos os pleitos. Mas evidente que nos pleitos nos quais rege o deal - favorvel para alguns acusados, desfavorvel para muitos outros -, no se pode falar na homognea vigncia destes princpios fundamentais do Direito Penal.

    2.4 DIFERENTES AUSNCIAS DE HOMOGENEIDADE: DO QUE FALAMOS?

    Quando lamento a ausncia cada dia mais dramtica de homogeneidade no Direito Penal, uma crtica bvia a de que nunca tivemos uma verdadeira homogeneidade em matria penal. Os crticos tm razo, e, por isso, preciso esclarecer de qual homogeneidade estou falando.

    a) Homogeneidade em abstrato: heterogeneidade concreta. Quando se faz referncia aos princpios gerais, existe muita

    homogeneidade ou, pelo menos, queremos crer que esta exista. Mas, quanto mais se desce na hierarquia das normas, evidencia-se que j em nvel normativo existe uma falta de homogeneidade - e isso no necessariamente criticvel. Explico com um exemplo: em nossos pases, um acusado - de maneira homognea - tem que defender-se ante um tribunal. Pelo menos, na grande maioria dos casos, o juiz tambm ser o juiz natural, isto , o juiz previsto pela lei. Em geral, existe, pois, homogeneidade. E concretamente? O chamado juiz natural pode ser um juiz criminal em um caso menor e pode ser uma turma com trs juzes togados e outros dois juzes leigos quando se trata de um homicdio ou de crimes econmicos de certa gravidade. Logo, h uma falta de homogeneidade prevista pela prpria lei!

    Essa falta de homogeneidade parece - e, finalmente, a meu ver, -

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    plausvel. Mas um exame do Direito Penal em ao mostra que, talvez, seja prematuro no lamentar essa ausncia de homogeneidade. Pois, na realidade do sistema penal, ser acusado ante um juiz penal normalmente significa que o acusado se encontra ante uma fbrica de justia; o juiz tem no mximo uma hora para o caso - e nos tribunais norte-americanos, em se tratando de contraveno penal, sabemos que o ritmo de cinco minutos para cada caso. Por outro lado, o presidente de uma turma tem vrios problemas para fixar os prazos; onde o juiz determina as horas destinadas para o caso individual, o presidente da turma, muitas vezes, tem que perguntar se pode concluir o pleito dentro de um ano.

    Em parte, esta falta de homogeneidade est relacionada com mais problemas de fato ou de direito, com mais testemunhas ou peritos, mas observemos que, s vezes, tambm est vinculada deciso de no lanar mo do Direito para resolver casos menos graves.

    E no legtima essa falta de homogeneidade? Tenho aqui as minhas dvidas. A diferena no criticvel entre o pequeno ladro e o empresrio que cometeu uma fraude milionria so as penas mnima e mxima cominadas; tambm no criticvel que, por isso, um caso seja tratado por um juiz e o outro, por uma turma de juzes criminais. Mas, a meu ver, no evidente que a preciso necessria para provar o dolo do acusado seja distinta.

    H aqui um debate entre os penalistas crticos do Direito Penal, por exemplo, entre alguns de meus colegas de Frankfurt e Bernd SCHNEMANN, que os critica em razo de sua preocupao com o Direito Penal econmico e com os acusados nesses processos. Aqui no temos tempo nem o lugar adequado para entrar nesse debate. Minha prpria posio de que, em geral, estamos no bom caminho quando fortalecemos posies crticas expanso do Direito Penal, e tambm quando reforamos um Direito Penal garantista nos pleitos da criminalidade econmica das classes superiores.

    Mas tambm concordo com Bernd SCHNEMANN: no basta que os benefcios, no que toca poltica criminal ou dogmtica do Direito Penal que exsurgem desses esforos, teoricamente tambm requerem vigncia para a criminalidade das assim chamadas classes superiores. Os lucros colaterais devem ser provados tambm na realidade do Direito Penal para os menos poderosos.

    Em todo caso: deve-se constatar ento que essa ausncia de

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    homogeneidade, que sim uma carncia de justia, familiar, e, talvez, inevitvel. E, por isso, no se encontra no foco dessa palestra.

    2.5 A AUSNCIA DE HOMOGENEIDADE AQUI REFERIDA

    A homogeneidade do Direito Penal aqui salientada outra: trata-se da falta de homogeneidade fundamental no nvel normativo, trata-se da evidncia de que um Direito Penal em expanso e orientado para problemas sociais, econmicos, polticos e meio-ambientais j no pode ser um Direito Penal homogneo.

    Estou falando dos seguintes fenmenos: - antecipao da punibilidade (ou o adiantamento da

    punibilidade) em algumas reas da vida social (de maneira eufemstica, os protagonistas dessa poltica criminal falam em uma antecipao da proteo do Direito Penal);

    - o aumento da criminalizao nessas reas, com a introduo de novas noes (por exemplo, o apoio - ou a apologia - dirigido a associaes criminosas ou terroristas);

    - limitaes dos direitos e das possibilidades de defesa, e de outros direitos do acusado em determinadas reas do Direito Penal;

    - sanes alternativas bastantes engenhosas, como, por exemplo, a perda ou o confisco de lucros;

    - novas formas de ascenso por meio de excluso, por exemplo, um motivo de deteno apenas para os casos de stalking (at pouco tempo um crime no Cdigo Penal alemo);

    - inverso do nus da prova (difcil de acreditar, mas verdade: em alguns casos especficos, o imputado quem deve provar que no culpado!);

    - novas formas de segregao e, de fato, eliminao (sem pena de morte) pelas mudanas nas normativas na prtica da pena de priso perptua e pelo renascimento incrvel do internamento como medida de segurana (a chamada Sicherungsverwahrung);

    - novos mtodos de investigao policial, mtodos que se aproximam dos mtodos dos servios secretos;

    - mas tambm a aprovao das prticas do deal- traduzido ao espanhol de maneira muito nobre como negociao - pela Corte Suprema (BGH) e possivelmente pelo legislador alemo!

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    Seria fcil acrescentar outros exemplos dessa tendncia de inventar regras particulares para reas especficas do Direito Penal.

    Meu resumo provisrio o seguinte: ao lado das - por assim dizer - heterogeneidades tradicionalmente previstas pela Lei, parcialmente necessrias e sem obstculos, e ao lado das heterogeneidades familiares e tradicionais, mas questionveis, pode-se observar uma tendncia a novas formas de heterogeneidade introduzidas pelos tribunais e pelo legislador. Estas so muito questionveis, pois simbolizam um novo tipo de heterogeneidade estrutural e, assim, simbolizam o abandono de um Direito Penal garantista e homogneo.

    3 ANLISE E CRTICAS A ESSAS TENDNCIAS

    3.1 A ANLISE

    Se analisarmos o desenvolvimento do Direito Penal das ltimas dcadas, parece pouco provvel que a nova heterogeneidade do Direito Penal seja o resultado de uma poltica criminal refletida e explicitamente dirigida a um Direito Penal diversificado. Parece mais plausvel imaginar uma poltica criminal da mo oculta, anloga invisible hand de Adam SMITH no desenvolvimento da economia.

    Deve-se ento reconstruir o programa da mo invisvel do mercado de segurana, que estar constitudo pelos seguintes vrtices:

    1. No centro, encontra-se a expanso do Direito Penal (tal como Jess-Mara Silva Snchez descreveu), como reao das sociedades e dos Estados aos processos de modernizao acelerada, uma expanso que ocorre, especialmente, em novas reas sociais e atpicas para o Direito Penal.

    2. A meu ver, como palco programtico desse desenvolvimento expansivo, j no se encontra o Estado autoritrio que quer assegurar seu poder (como , no esqueamos, uma das tradies em matria penal); nas razes programticas encontramos, isto sim, um grupo de fatores que so os seguintes:

    a) O desenvolvimento tecnolgico e das cincias naturais, que, como seus riscos especficos, parece exigir uma reao estatal;

    b) Novos agentes criminais, que querem utilizar o Direito Penal para novos propsitos - muitas vezes bastante sedutores - como, por

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    exemplo, proteger o meio ambiente contra a sociedade, proteger as mulheres e as crianas contra os homens;

    c) Ademais, deve-se mencionar o mito da dirigibilidade atravs do Direito, e, particularmente, por meio do Direito Penal; denomino-a mito porque essa idia (plausvel) mostrou-se surpreendentemente resistente a argumentos empricos;

    d) E todos esses fatores devem ser avaliados no contexto de uma percepo, a de que as liberdades dos cidados so ameaadas cada dia menos pelo Estado e cada vez mais por seus prprios co-cidados.

    Essa expanso do Direito Penal, aliada a demandas crescentes de segurana, vem seguida de ajustes do Direito que, do ponto de vista preventivo, parecem plausveis ou at mesmo indispensveis, mas que, sob a perspectiva do Direito Penal, podem ser resumidos como deformaes do perfil garantista do Direito Penal que no se limitam, porm, s novas divises do Direito Penal, mas que ameaam infectar o Direito Penal como um todo.

    E essa anlise no se torna mais otimista quando nos damos conta do punitivismo atual, um punitivismo avesso a explicaes e, s vezes, prpria culpa individual. Esse punitivismo tambm infectou todo o sistema penal - e caracterizado, perfeitamente, pela noo de Direito Penal do inimigo.

    Fora dos crculos de debates e das batalhas eleitorais, esse programa no explcita ou ostensivamente apresentado ou defendido, mas j a realidade do Direito Penal, uma realidade que mais se assemelha a um Direito Penal do Inimigo.

    3.2 A CRTICA

    Essa realidade do Direito Penal muito criticada, e as principais objees foram formuladas de maneira proeminente em Frankfurt: Winfried HASSEMER, Klaus LDERSSEN e Wolfgang NAUCKE so os nomes mais conhecidos associados a essa crtica, tambm na Amrica Latina. No foi uma crtica muito popular no incio e esteve longe de ser aceita. O mais interessante so as direes de onde vieram as anti-crticas: alm do campo conservador, que entendeu - em parte com razo - a crtica ao Direito Penal moderno como juzo crtico do Direito Penal estatal em geral e, s vezes, at do prprio Estado,

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    tambm se formou uma crtica na ala progressista dos renovadores do Direito Penal, que queriam introduzir mudanas no Direito Penal (e na sociedade) com novas criminalizaes e alterar as j existentes.

    O crtico mais radical dos ltimos anos foi Gnther JAKOBS, que j em 1985 qualificava a maior parte do Direito Penal alemo existente como Direito Penal do Inimigo, simplesmente incompatvel com sua prpria idia de Direito Penal em um Estado de Direito. Embora JAKOBS, j em sua famosa palestra de 1985, tenha deixado uma pequena porta aberta para substituir a crtica por um programa, essa porta s foi descoberta por seus colegas quando, em 1999, efetivamente elaborou um programa a partir de sua crtica.

    4 SOLUES E SUGESTES

    Para o Gnther JAKOBS de 1985, a crtica ao Direito Penal anti-garantista foi o mais importante; em seu enfoque, no interessavam os problemas sociais que acarretaram as deformaes do Direito Penal. Mas no tardou muito tempo para que em Frankfurt fossem feitas propostas para a salvaguarda do Direito Penal garantista, sem excluir do Direito os problemas da modernizao.

    4.1 DIREITO DE INTERVENO

    A palavra mgica foi Direito de interveno. O primeiro que o sugeriu foi Wolfgang NAUCKE. Para NAUCKE, foi decisivo diferenciar claramente os crimes, por um lado, das meras contravenes penais (isto : comportamentos que exigem preveno), por outro. O Direito Penal com todas as suas garantias estaria reservado estritamente para os crimes; para o restante, sugere-se um Direito de interveno preventiva, no qual o legislador teria toda a liberdade para definir, traar estratgias e pautar-se por consideraes de oportunidade.

    Talvez ainda mais associado ao Direito de interveno se encontre o nome de Winfried HASSEMER, que opinou que seria idealista ou pouco realista tentar proteger o Direito dos problemas sociais da modernizao. Como NAUCKE, tambm HASSEMER considera que so colocados em risco os fundamentos do Direito penal garantista quando este utilizado para resolver os problemas sociais.

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    Tambm para HASSEMER o Direito de interveno surge como uma alternativa possvel para o problema, isto , um Direito...:

    - ... que seria mais flexvel e adequado para resolver os problemas especficos das sociedades modernas;

    - ... que seria algo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo sancionador, mas tambm algo entre o Direito Penal e o Direito civil;

    - ... e que, finalmente, seria caracterizado por um menor nmero de garantias e de normativas processuais, acompanhado por uma menor gravidade das sanes.

    O protagonista mais radical de um Direto de interveno foi meu mestre Klaus LDERSSEN, que imaginava um Direito Penal sem penas, exclusivamente de interveno.

    4.2 A PROPOSTA DE UM DIREITO PENAL DE DUAS VELOCIDADES DE JESS-MARA SILVA SNCHEZ

    Foram aparentemente idias similares que motivaram Jess-Mara SILVA SNCHEZ a propor um Direito Penal de duas velocidades. Eu diria que o de segunda velocidade e o menos garantista um autntico Direito de interveno, tambm chamado de Direito Penal.

    Nesse modelo, o Direito Penal de primeira velocidade seria aquele que, aplicado no contexto de um processo penal, pode terminar com a imposio de uma pena privativa de liberdade para o imputado. Nessa diviso do Direito Penal, dado o seu carter invasivo, devem ser rigorosamente observados todos os princpios garantistas do Direito Penal e do Direito Processual Penal.

    A segunda velocidade surge como uma reao adequada (respondendo presso dos problemas das sociedades modernas) e legtima (cominando sanes de menor gravidade) na seara do Direito Penal que no prev pena privativa de liberdade.

    Lamentavelmente, no posso omitir o fato de que Jess-Mara SILVA SNCHEZ, na terceira edio de seu importante livro, acrescentou um captulo no qual admite a legitimidade de um Direito Penal de terceira velocidade. Essa terceira diviso do Direito Penal descrita como a primeira diviso: o Direito Penal srio para os crimes graves, que admitem a pena privativa de liberdade. Mas sem lhe conferir uma legitimidade especfica e de modo contraditrio

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    como seu prprio modelo e - o que mais importante - com o esprito de seu modelo que prev a estrita observncia dos princpios garantistas nesses casos, permite a relativizao das garantias da poltica criminal, do Direito Penal e do Direito Processual penal. No difcil reconhecer o Direito Penal do Inimigo nessa terceira diviso do Direito Penal, ornamentado com algumas clusulas salvatrias (ato de legtima defesa do Estado, necessariamente limitado por um perodo de tempo especfico).

    4.3 O PROGRAMA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO DE GNTHER JAKOBS

    No obstante os ltimos esforos de JAKOBS em esclarecer que quando fala do Direito Penal do Inimigo lhe falta toda ambio poltico-criminal, e apesar de deixar claro que s trabalha sobre as condies - e, como conseqncia necessria, tambm sobre os limites - de juridicidade do Direito real, parece-me legtimo caracterizar seus discursos sobre o Direito Penal do Inimigo, desde 1999, como um verdadeiro programa de um Direito Penal dessa natureza.

    Esse programa - ao menos - uma provocao, e ainda acredito que seu modelo est motivado pelo desejo de reconstruir um Direito Penal para os cidados que no contenha nenhum elemento do Direito Penal do Inimigo.

    O chamado Direito Penal do Inimigo bem conhecido e debatido, talvez mais na Amrica Latina do que na Europa. Basta caracterizar esse modelo com algumas linhas: JAKOBS quer tratar como inimigos aqueles sujeitos que se comportam como inimigos (isto , os que ignoram o Direito, provavelmente de maneira permanente, mas sempre com vigor). Utilizando uma noo de pessoa, que talvez seja incontestvel do ponto de vista filosfico, mas de pouca sensibilidade a partir de uma perspectiva histrica e poltica - deve-se recordar que na histria real existiu sim um Estado alemo nazista no qual homens (pessoas) foram assassinados por milhes porque, ao serem considerados no pessoas, no foram aceitos como tais -, os descreve como indivduos que - por seu prprio comportamento - no devem ser tratados como pessoas, mas combatidos como inimigos.

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    Mas indago: como JAKOBS descreve teoricamente o grupo de inimigos (enfatizo teoricamente porque fica absolutamente obscuro como JAKOBS pretende qualificar algum como inimigo antes mesmo que seja condenado como inimigo! E deve faz-lo, porque aos inimigos no so asseguradas garantias essenciais)? Ento, teoricamente, um inimigo, segundo JAKOBS, algum que, cito literalmente (em minha prpria traduo):

    - por sua atitude (delitos sexuais), - por sua vida profissional (delitos econmicos, crime organizado,

    includo o trfico de drogas), - ou por sua integrao em uma organizao (terrorismo, crime

    organizado), rejeitou o Direito, decisiva e permanentemente.

    5 POSIO PESSOAL

    5.1 A POLTICA CRIMINAL DA MO INVISVEL

    A mo invisvel de Adam SMITH, pelo menos na teoria, tinha a vantagem de argumentar que existe uma lgica de dirigibilidade superior ao potencial daqueles homens que querem conduzir a economia. Essa vantagem no pode ser sustentada pela poltica criminal da mo invisvel. E no importa se nos referimos existncia ou ausncia de xitos dessa poltica criminal, ou se nos reportamos aos gastos colaterais para o Estado de Direito e para o seu Direito Penal garantista: o balano desastroso!

    Pior ainda: existem indicadores suficientes de que, por exemplo, o Direito Penal do meio ambiente no conseguiu o que pretendia. Demais disso, pode-se muito bem argumentar que as solues necessariamente estruturais e sistmicas dos problemas ambientais foram impedidas pelas intervenes do Direito Penal.

    Dado que se pode observar a contaminao do Direito Penal como um todo com as doenas de suas divises modernas, evidente que a realidade dessa poltica criminal da mo invisvel termina por ser alvo de uma crtica mordaz. Ainda que avaliemos essas tendncias com toda a benevolncia, o melhor que se pode dizer que se trata de um excesso na defesa putativa por parte da poltica criminal.

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    5.2 O DIREITO PENAL PARA OS INIMIGOS

    O mesmo veredicto vlido para todas as propostas que postulam - explicita ou implicitamente - um Direito Penal especial para os inimigos. Tal Direito no merece ser denominado Direito (o que admite JAKOBS) e a declarao de uma guerra como essa dentro da sociedade no s inaceitvel do ponto de vista normativo, como tambm figura como algo absolutamente condenado ao fracasso. A curto prazo, no necessrio que isso seja feito e, a longo prazo, at mesmo nocivo: declarar uma guerra como essa assegura sim a produo de verdadeiros inimigos e gera um automatismo de violncia e contra-violncia j bem evidente no mundo real e poltico.

    5.3 DIREITO DE INTERVENO OU DE SEGUNDA VELOCIDADE

    O veredicto frente proposta de um Direito de interveno ou de segunda velocidade no to claro. Suas vantagens so evidentes: se, com lastro na realidade, entendemos que o Estado continua a realizar sua tarefa de dirigir seus cidados por meio do Direito Penal e das sanes penais abstratamente cominadas, e se, tambm de maneira realista, assumimos a tese de que um Direito estritamente garantista ter um custo proibitivo, os referidos modelos, pelo menos, tm a vantagem de propor, com um pouco mais de realismo, que as garantias no verdadeiro Direito Penal ou no Direito Penal de primeira velocidade no devem necessariamente desaparecer.

    Mas, por outro lado, as desvantagens so bem visveis: todos esses modelos podem ser caracterizados como oportunistas no sentido de que mudam o Direito e seus princpios sob a presso do paradigma dirigir mediante sano, sem provas suficientes da idoneidade desse paradigma.

    Mais peso tem essa crtica para os modelos que no distinguem claramente o Direito Penal de interveno do Direito Penal (por exemplo, o Direito Penal de segunda velocidade de SILVA SNCHEZ), ou que, ao menos, no enfatizam as caractersticas do Direito Penal (assim, por exemplo, o modelo de HASSEMER, que descreve o Direito de interveno como um Direito situado entre o Direito Penal e o Direito Administrativo sancionador).

  • 40 CORNELIUS PRITTWITZ

    Revista de Cincias Jurdicas - UEM, v.7 n.1, jan./jun. 2009

    Nesses modelos, pode-se ver muito bem que os autores especulam sobre os dividendos do Direito Penal mgico-simblico, ignorando o fato de que a emisso de mais aes na bolsa necessariamente far com que seu valor diminua.

    6 PERSPECTIVAS

    Em sntese, do meu ponto de vista so necessrias duas coisas: em primeiro lugar, devemos buscar alternativas ao Direito Penal nos mbitos onde se exija muito deste em termos de direo dos comportamentos. Ao mesmo tempo, deve-se propugnar pela renncia a um Direito Penal disfuncional e, de conseguinte, meramente simblico no sentido pejorativo. Isso no ser fcil em um mundo com polticos populistas e com meios de comunicao de massas, os quais tambm (mas por outros motivos) estimulam o populismo e o punitivismo.

    Mas no o momento de resignar-se ou de ser pessimista: Primeiro: a meu ver, a idia de um Direito Penal garantista at hoje

    nunca se realizou. Ao contrrio, em oposio aos crticos, que percebem que as coisas pioram cada dia mais, possvel sim constatar melhorias dentro do Direito Penal em ao.

    Segundo: entendo que o debate sobre o Direito Penal legtimo no Estado de Direito mudou: a criminologia descobriu o que pode e - o que mais importante - o que no pode alcanar o Direito Penal: no pode resolver problemas sociais e, certamente, no pode resolver problemas sistmicos de nossa sociedade moderna; tampouco pode entrar em guerra contra os inimigos.

    Porm, o que sim pode fazer o Direito Penal dar lies sobre responsabilidade coletiva e individual, e o que sim deve fazer dar exemplos de como reagir de maneira civilizada ante o comportamento irresponsvel e, s vezes, brbaro. Essas lies so dadas em dois nveis distintos: em um nvel concreto, no mbito judicirio; por isso to importante que tanto o pequeno ladro quanto o empresrio e at mesmo o ditador de ontem possam ser sujeitos e no objetos do sistema penal; sujeitos que, alm disso, sejam tratados com respeito e com justia. Mas essas lies tambm so dadas em um nvel geral por nossa sociedade de meios de comunicao de massas. por isso

  • O DIREITO PENAL EM UMA ENCRUZILHADA... 41

    Doutrina

    que a maneira pela qual esses meios tratam o tema da criminalidade merece muitssima ateno - e aprimoramento!

    Com lastro nesse entendimento, quero terminar minha interveno destacando que, ao encontrar-se o Direito Penal em uma encruzilhada,

    1. no deve ser abandonado nem diversificado; 2. mas tampouco acredito que exista um caminho para voltar

    razo; 3. deve, isto sim, entrar em razo e, por isso, acompanhado por

    alternativas ao Direito Penal, deve persistir em seu programa garantista.

    A meu ver, o argumento por um Direito Penal garantista fundado nessas bases mais slido que a remisso a irrealidades pretritas.

    Para terminar, responderemos a algumas dvidas finais: Esse debate um debate global? Isto , o debate o mesmo tanto na Europa como na Rssia, nos Estados Unidos ou na Amrica Latina? Aqui tambm preciso ter prudncia. Sim, trata-se de um debate global do ponto de vista normativo. Mas, observando os distintos direitos penais em ao, muito diferente criticar um Direito Penal que ainda (ou de novo) um meio para os poderosos se manterem no poder e, em contrapartida, criticar um Direito Penal que, precisamente por ter uma boa conscincia e legitimidade democrtica, expande-se at o ponto de chegar a ser perigoso para o prprio Estado de Direito.

    Todavia, h um fator que possui validade em nvel global: a filosofia do Direito Penal do Inimigo, em cada um e em todo lugar deste mundo, um caso grave de reincidncia civilizadora que rene, globalmente, os debates dos penalistas.