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67 O C orpo em devir orpo em devir orpo em devir orpo em devir orpo em devir L uiz Fuganti Luiz Fuganti é filósofo, arquiteto e escritor. Fundador da Escola Nômade de Filosofia. devir – eterno e necessário vir-a-ser, que torna a existência necessária e enquanto tal nos atravessa, constitui e sustenta toda a natureza. Ele, além de causa de si, é tam- bém o único substrato que engendra o corpo. Mas, apesar de jamais deixar de atravessá- lo e de engendrá-lo, o devir e os processos de diferenciação que o produzem nos escapam sempre mais à medida que a vida humana, na condição atual, avança. Assim, vamos nos per- dendo de nós mesmos e do corpo próprio do de- sejo, daquilo que deseja em nós. Nosso modo de vida é o inimigo fundamental. Há séculos, há milênios, e a cada nascimento ou ciclo de vida, essa história se repete. Os tempos acumulados da humanidade e os procedimentos atuais de geração de consciência não param de se cruzar. Camadas e linhas de tempos e movimentos do- brados coexistem, se condensam e se dilatam em nós, em nosso corpo e pensamento. Uma plu- ralidade de devires e de movimentos quebrados que não só são os do corpo penetrado de acon- tecimentos vividos, mas também os do corpo ramificado da humanidade, com toda a pressão virtual da memória que subsiste nele e faz-se continuar no que está por vir. As formações hu- manas, através de seus modos de viver e de pen- sar, inventaram e ainda conservam e cultivam uma tendência em investir e aplicar tempos e movimentos que nos afastam cada vez mais do gosto pelas experimentações criadoras. Ainda que, com o protesto do nosso corpo intenso, desconfiemos do que poderia ser um modo de pensamento afirmativo, desejante das potências de variar e instaurar novas dimensões existen- ciais. Com isso continuamos nos afastando tam- bém, cada vez mais, da capacidade de aconte- cer. Acontecer como produção de realidades inéditas, numa experimentação direta, sem o piedoso comando das estruturas da representa- ção humana. Eis o foco problemático que sugi- ro trabalhar aqui. Nós geralmente vivemos, por mais para- doxal que isso possa parecer, de modo a nos se- parar do que podemos. Nós não sabemos muito bem mais o que é vivermos colados à capacidade de existir na sua abertura máxima ou, no míni- mo, na sua abertura que faz a nossa potência crescer. Esse horizonte é cada vez mais ofusca- do. Eu diria mais: há uma instituição humana que investe cada vez mais na separação da vida do que ela pode; e falsifica o que é viver; assim também falsifica o que é pensar. E não se sabe mais da vida a não ser longe do imediato, a não ser fora do acontecimento. Não se sabe mais o segredo de um modo de vida verdadeiramente

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CCCCCorpo em dev i ro rpo em dev i ro rpo em dev i ro rpo em dev i ro rpo em dev i r

LLLLL uiz Fuganti

Luiz Fuganti é filósofo, arquiteto e escritor. Fundador da Escola Nômade de Filosofia.

devir – eterno e necessário vir-a-ser, quetorna a existência necessária e enquanto talnos atravessa, constitui e sustenta toda anatureza. Ele, além de causa de si, é tam-bém o único substrato que engendra o

corpo. Mas, apesar de jamais deixar de atravessá-lo e de engendrá-lo, o devir e os processos dediferenciação que o produzem nos escapamsempre mais à medida que a vida humana, nacondição atual, avança. Assim, vamos nos per-dendo de nós mesmos e do corpo próprio do de-sejo, daquilo que deseja em nós. Nosso modo devida é o inimigo fundamental. Há séculos, hámilênios, e a cada nascimento ou ciclo de vida,essa história se repete. Os tempos acumuladosda humanidade e os procedimentos atuais degeração de consciência não param de se cruzar.Camadas e linhas de tempos e movimentos do-brados coexistem, se condensam e se dilatam emnós, em nosso corpo e pensamento. Uma plu-ralidade de devires e de movimentos quebradosque não só são os do corpo penetrado de acon-tecimentos vividos, mas também os do corporamificado da humanidade, com toda a pressãovirtual da memória que subsiste nele e faz-secontinuar no que está por vir. As formações hu-manas, através de seus modos de viver e de pen-sar, inventaram e ainda conservam e cultivam

uma tendência em investir e aplicar tempos emovimentos que nos afastam cada vez mais dogosto pelas experimentações criadoras. Aindaque, com o protesto do nosso corpo intenso,desconfiemos do que poderia ser um modo depensamento afirmativo, desejante das potênciasde variar e instaurar novas dimensões existen-ciais. Com isso continuamos nos afastando tam-bém, cada vez mais, da capacidade de aconte-cer. Acontecer como produção de realidadesinéditas, numa experimentação direta, sem opiedoso comando das estruturas da representa-ção humana. Eis o foco problemático que sugi-ro trabalhar aqui.

Nós geralmente vivemos, por mais para-doxal que isso possa parecer, de modo a nos se-parar do que podemos. Nós não sabemos muitobem mais o que é vivermos colados à capacidadede existir na sua abertura máxima ou, no míni-mo, na sua abertura que faz a nossa potênciacrescer. Esse horizonte é cada vez mais ofusca-do. Eu diria mais: há uma instituição humanaque investe cada vez mais na separação da vidado que ela pode; e falsifica o que é viver; assimtambém falsifica o que é pensar. E não se sabemais da vida a não ser longe do imediato, a nãoser fora do acontecimento. Não se sabe mais osegredo de um modo de vida verdadeiramente

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ativo, afirmativo da diferença que produz real,que faz do durar um gosto continuado e coladoa uma diferenciação intensiva. A gente sabe, ge-ralmente, de uma vida reativa,, que se ressentedas variações sofridas nos encontros, que pade-ce das multiplicidades, que só tolera a diferençaoperando de maneira domesticada, bem inten-cionada, previsível, conciliada, rendida peloconsenso no mau uso da dor. Parece que só se écapaz de conceber uma vida cujo horizonte énegativo, cujo tempo é um tempo aniquilador,cuja idéia da morte é uma idéia de degeneres-cência pela matéria ou pelo desejo.

Nós não sabemos mais também o que éagir intrinsecamente num devir constituinte denós próprios, nem como engendrar o necessá-rio ponto de vista que faz conquistar uma capa-cidade de auto-geração do valor e que é, em úl-tima instância, a realização imanente da própriapotência que nos constitui e que nos faz viver.Geralmente agimos por determinação extrínse-ca, mesmo e principalmente quando acredita-mos que conquistamos uma autonomia moralde sujeitos legisladores ou de profissionais com-petentes, autorizados e autorizadores, porque,como diz Nietzsche, moral e autônomo se ex-cluem. Chamamos a isso ação, mas ignoramosa causa real do que nos determina a agir, a rea-gir, a pensar, a acreditar, a desejar.

Nesse sentido, de um ponto de vista dequem exerce certo tipo de liberdade real, isto é,de quem efetua e preenche a própria potênciacom encontros que fazem a diferença, eu diriaque para esse, a idéia de um corpo em devir seriauma redundância, porque – poderia ele nosperguntar – haveria alguma coisa fora do devir?O corpo estaria fora do devir? O pensamentoestaria fora do devir? Diríamos nós que é im-possível alguma coisa, algo ou alguém estar forado devir! O devir não é um acidente na existên-cia, o devir é constitutivo da própria essência.Sem ele não haveria nem o ser, nem a existên-cia, muito menos a auto sustentabilidade noexistir. O devir é um campo constitutivo, nãosó da experiência vivida, como da produção daeternidade. A eternidade se produz no devir.

Fica esquisito, então, a gente afirmar que existeum corpo separado do devir, se nada se susten-taria nem continuaria fora do devir! A nossaidéia é de que, conforme Spinoza, só o homemseparado da potência de pensar, portanto pas-sivo e reduzido ao conhecimento por imagens,poderia acreditar e investir em um ser quetranscenderia o devir! Assim também pensaNietzsche, que vislumbra aí a projeção sobre anatureza de uma imagem invertida, engendra-da como reflexo de um devir reativo das forçasdo corpo que entra em decadência. O corpo se-gue em devir, mas o horizonte torna-se um ho-rizonte niilista.

Nietzsche distingue estágios de niilismo.Ele atribui à idéia de niilismo alguns sentidosque se encadeiam, que se sucedem na história ecoexistem no presente. Um deles é o niilismonegativo. O niilismo negativo não é um não-ser, é antes um valor de nada que a vida toma,que a existência, que a natureza, que o desejo,que o movimento, que o tempo e o espaço en-fim, que o corpo e os afetos tomam. Há sempreno niilismo uma desqualificação do corpo, umpressuposto de que a existência tem alguma ca-rência que a torna imperfeita, de que existir édesejar e desejar é ter falta de objeto. E, nessesentido, o homem, separado da capacidade deexistir, busca, desesperado e confusamente –para escapar dessa existência cuja falta de preen-chimento é traduzida por uma consciência de-vedora –, um elemento superior, um valor su-perior à vida, um valor superior à existência.Desse modo não se diz diretamente “não” àvida, não se diz “não” à natureza, não se diz“não” à Terra, mas se diz “sim” a um ideal, “sim”a um outro mundo, ou até mesmo “sim” a umsonho de vida – os publicitários tomando o lu-gar dos velhos sacerdotes. Mas essa é a mentirado ideal, essa é verdadeiramente a maneira dedizer não à vida, de desqualificar o corpo, o de-sejo e o pensamento. E essa também é a manei-ra mais básica, de um ponto de vista formal –relativo ao uso da linguagem – de submeter aexpressão da vida à representação moral, à ló-gica de um investimento de forças gregárias,

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coletivamente determinado; de separar a vida doque ela pode, ou de descolar o corpo do seu tor-nar-se ativo e o pensamento do seu tornar-se afir-mativo, para entregá-los a um devir reativo con-trolado por um sistema de julgamento divinoou humano.

Na medida mesma em que nós perdemosa capacidade de acontecer, nós não sabemosmais qual a fonte ou o motor do nosso desejo.Não sabemos mais qual é a fonte ou o motordo movimento do corpo. Perdemos o sentidodas velocidades e lentidões, dos seus fluxos queredistribuem o desejo. Não apreendemos mais,senão confusa e indiretamente, as modificaçõesque afetam um corpo intensivo e o fazem mudaseu destino. O que nos escapa então é a nature-za operando em ato, constituinte de um campoafetivo. O que nos escapa então é aquilo que,no corpo, produz afetos e, também, o primeirodos afetos, o desejo, ao colocar sua potência decomposição em variação através dos encontrose processos dos quais participa. A fronteira, oextremo do meio, aquilo que ganha vida atra-vés de nós ao tocar a ponta do espaço, ao tocarcom sua pele física o próprio ser do sentir, opercepto do perceber. Na medida que ressen-timos o acontecimento, o corpo perde a suafonte, não só material, mas também temporal.Não sabe mais inventar um jeito verdadeira-mente próprio para um devir auto-sustentável.Nem se auto-modificar, nem se auto-regular.Torna-se impotente para modificar-se a si mes-mo e fruir das coisas modificadas que resultamdessa própria efetuação.

Por outro lado, nesse processo de desqua-lificação do acontecimento sempre inédito,também o pensamento se separa da capacidadede acontecer e de criar no tempo um tempoimediato que o atravessa. Ele perde, digamosassim, o aspecto inovador, a superfície imediatado tempo. Ao perder o próprio meio ou cone-xão com o devir, ele perde o frescor do aconte-cimento sem o qual o pensamento não se cria asi próprio, não cria ao conhecer.

Então nós nos separamos simultanea-mente da capacidade de acontecer no corpo e

da capacidade de acontecer no pensamento.Nos separamos da capacidade de exercer a sen-sibilidade, de ativar os elementos intensivos docorpo; assim como da capacidade de afirmar opensamento sem a instância da representação,do eu ou da consciência. Nós, ao contrário, co-locamos a consciência como mediador impera-tivo do corpo e do pensamento. Mas comete-mos essa inversão atribuindo à consciência umaespécie de eminência sem a qual, acredita-se, aalma seria tragada pelo corpo em devir, fontede sua perdição. E este corpo de fluxos com-prometeria seu resgate ou salvação, pois o cor-po não organizado, não sendo preenchido definalidade ou sentido para o bem, deixaria tam-bém a tutela de uma instância que pretendiarepresentá-lo perante seu tribunal – instânciaque seria inútil sem a dobragem e a traição docorpo em devir.

Nós penhoramos o corpo sob uma cons-ciência reativa, devota e passional. Penduramoso pensamento no teto circular das belas signifi-cações. Abortamos o pensar e etiquetamos o realao colocar em seu lugar uma cadeia de signosde linguagem. Tal rede estrutural de significa-ção, ao mesmo tempo em que enclausura o de-sejo na interioridade do sujeito, traga o pensa-mento na gravitação inelutável de um buraconegro, o de uma dívida infinita. Má-consciên-cia, diria Nietzsche, ilusão do livre-arbítrio oudos decretos livres, diria Spinoza.

Assim buscaríamos maneiras de nos ligarnovamente ao que podemos e de reconquistaras potências do corpo, de abri-lo ao que pode.Ensaiamos retomar a abertura do desejo e in-ventar um pensamento afirmativo e abrir-se atodo o seu vigor, a força do que ele pode. Mas,uma vez que estamos impotentes no pensamen-to, impotentes no corpo e impotentes no dese-jo, é do seio dessa impotência mesma que emer-ge uma vontade de poder, um desejo de poder,um desejo de se religar tristemente àquilo queperdemos. E como, artificialmente, fomos se-parados do que podemos, do ponto de vista dodesejo, do corpo e do pensamento, também,artificialmente, nos ligamos a esse poder pela

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invenção de um espelho, pela invenção de umasuperfície de reconhecimento, por um rebati-mento que nos faz existir através do olhar dooutro, através da aceitação do outro, e que nosameaça e condena ao ostracismo sob a rejeiçãodo Outro.

Nós criamos, digamos assim, um espelhona medida em que produzimos um rosto emnós. O espelho da sociedade é o nosso própriorosto, o modo como o nosso rosto se molda,gera, emite signos, recebe signos e se torna oporta-voz de vozes, da nossa escrita, da nossaleitura, da nossa interpretação. O rosto comouma substância iniciativa que autoriza ou desau-toriza, que institui ou desinstitui a consciênciaou o pensamento submetido à consciência e ocorpo obediente ao organismo. Nós acabamospor perder o corpo, ou o que diz Artaud: nósperdemos o corpo pleno, sem órgãos, que nãonecessita, não dos órgãos, mas de uma organi-zação para os órgãos que faz perder exatamenteessa capacidade autogerativa e autônoma docorpo, talvez da mesma maneira como perde-mos a capacidade autogerativa e criativa do pen-samento. E com isso, uma vez que nós perde-mos a capacidade de acontecer, nós investimosnum ideal. Esse ideal inicialmente tem a alturade Deus, tem altura do outro mundo, tem altu-ra de uma transcendência que não encontraría-mos na existência exatamente pela perfeição oupelo acabamento, ou pela eterna identidade cir-cular que a experiência inviabilizaria. Evidente-mente seria algo que estaria fora da natureza,mas esse algo fora da natureza é um mero pre-texto, é uma mera desculpa, um mero sintoma,não é causa de nada, o mundo verdadeiro, ooutro mundo, o mundo de Deus. O mundoideal na verdade é um pretexto, é um instru-mento, é um meio exatamente fictício para atri-buir ou destituir valor ao corpo e ao pensamen-to, é uma instância de julgamento. Na verdade,pelo investimento num modelo, pelo investi-mento na identidade, pelo investimento numideal, pelo investimento em Deus, pelo inves-timento num estado espiritual nós simples-mente nos servimos de uma máquina de desti-

tuir o corpo e o pensamento da sua autonomia.Nós dizemos que, através desse valor essencial everdadeiro, nós podemos medir o valor do cor-po e do pensamento. Então, dessa maneira, nósfundamos a representação. A representação éum lugar privilegiado de re-apresentação dascoisas imediatas. Nós precisamos mediar as coi-sas imediatas que não são auto-suficientes, quenão são dignas de seu modo próprio de acon-tecer, que tem uma relação muito próxima como caos. Essa, evidentemente, é uma visão reli-giosa, uma visão teológica, uma visão metafísi-ca, uma visão moralista, mas, pra falar comoNietzsche, o ideal ascético, ou simplesmenteesse aspecto do niilismo negativo é apenas, di-gamos assim, uma espécie de primeira instân-cia, ou primeira desculpa que precisa levar acabo uma empresa de acusação generalizada davida. Acusação generalizada em relação a queexatamente? Em relação a forças, a potências, aintensidades, a movimentos, a tempos que nãotêm intencionalidade alguma, que não fun-cionam por finalidade, que não tem um objeti-vo de chegar a um alvo superior que os resgata-ria, porque tem um modo próprio de acontecerno imediato sem o que não realizam, não efe-tuam a sua própria natureza e não transmutam.Então, essa grande empresa, essa política doódio, digamos assim, que é uma instituição hu-mana, uma invenção humana – e os homens seagarram a isso como uma salvação –, é exercidade modo sistemático, não simplesmente por po-deres exteriores a nós, mas por nós mesmos.Nós somos cúmplices dessa política. Colocamosnosso corpo a serviço desse organismo, destitu-ímos o nosso corpo do devir propriamente ati-vo e o introduzimos ou entregamos de bandejaa um devir reativo, que busca simplesmente aconservação de si e que põe a questão criativacomo secundária. A criação, no melhor dos ca-sos, só passa na medida em que é posta a servi-ço da conservação: há uma inversão radical aí.Na mesma medida que quando pensarmos acre-ditando que só podemos pensar verdadeiramen-te, legitimamente, cientificamente a partir deum modelo, de um molde, de uma moldura e

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também de um modelador, sem o que nossasidéias não pareceriam de verdade. Introduzimosuma finalidade para o próprio pensamento,imaginamos um pensamento pensado a partirde um sujeito, a partir de uma consciência, quetem começo e uma finalidade; imaginamos queo meio, o processo, o devir, é apenas meio dechegar a esse objetivo. Penhoramos a nossa vidae a colocamos a serviço de um projeto, a servi-ço de uma finalidade. Perdemos novamente acapacidade de criar e desperdiçamos o inéditodo que a existência nos oferece a cada momen-to, a cada entretempo que está subjacente, quesubsiste e que insiste nos preenchimentos dassignificações. Então vamos entupindo nossa ca-pacidade, nossos modos de fazer o pensamentofluir e passar, vamos entupindo esses modos, es-sas pontes, essas passagens, essas janelas, essasportas, esses poros, com as significações e, amedida em que vamos investindo nossas signi-ficações, vamos também nos afundando cadavez mais num buraco que se pretende autoriza-do para interpretar, para transmitir e para ob-servar e cuidar da aplicação dessas significa-ções. Vamos nos transformando em sujeitos oulegisladores vigiados por um modo de “dever-ser” que já se introjetou em nós. Nesse pontode vista a gente atinge o segundo aspecto do queNietzsche chama de niilismo, que é o niilismoreativo, quando a gente vai organizando demodo tal essa empresa, essa política do ódio deacusar tudo aquilo que não tem finalidade, quenão tem responsabilidade, que tem uma inocên-cia essencial. Uma vez que há uma omissão,uma separação, um envenenamento na atmos-fera do acontecimento. Deus não tem mais amenor necessidade, o tirano não tem mais amenor necessidade, os regimes de soberania nãotêm mais a menor necessidade e nós passamosagora a investir nos valores do homem. Coloca-mos o homem no lugar de Deus, e achamos quefizemos grande coisa, quando na verdade ape-nas ocupamos o velho lugar de julgamento, ape-nas reformamos o lugar de julgamento. Agoradizemos assim: o juiz tem a estatura do homem,nós não precisamos mais de Deus. Falamos

junto com Hegel, dizendo assim: o homem es-tava alienado em valores divinos, o homemestava alienado em valores de outro mundo, masesses valores divinos, de outro mundo, eramapenas valores humanos. Esses universais abs-tratos em si na verdade eram universais que ohomem inventou para si. Portanto, temos quede novo resgatar e buscar esses universais em sie transformá-los em mudanças concretas para ohomem. Essa é a grande revolução hegeliana eum certo marxismo investiu também nessemodo dialético de pensar. A idéia de desalie-nação, embora tenha um caráter materialista,não rompe a sua filiação com o ressentimento.Inventou-se então, o homem e os valores do ho-mem, o homem e os direitos do homem, comose então o homem finalmente fosse capaz deconduzir o próprio destino, mas o destino des-se homem nada mais é do que o destino do ve-lho homem cansado, agora mais organizado,mais anestesiado, mais satisfeito, mais feliz, ohomem que não precisa mais da salvação, agoraele tem a felicidade, não precisa mais da eterni-dade, agora ele tem o progresso e a revolução,não precisa mais do tirano, do rei que comandea todos, agora ele tem a democracia, não preci-sa mais de Deus, agora ele tem a lei, uma só leie uma vontade geral, como dizia Sade, umavontade geral de vidas que já não sabem maisacontecer. E nessa medida, vidas que não sabemviver sem a lei, vidas que são capazes de fazeraparecer o que? Monstros, forças do mal, forçascriminosas, como diria Freud, incestuosas eparricidas – todos os padres que fazem coro hojeem dia, os psicanalistas, mas também os publi-citários, enfim, tantos outros que, inclusive, seservem da arte para anestesiar. Hoje em dia aarte também ocupou, junto com as terapias ecom as igrejas, o lugar de tornar a vida miserá-vel mais suportável. Então nós não buscamosmais a concentração, a intensificação, o tensio-namento: nós buscamos a direção, nós busca-mos o descuido de si. Olhar para o lado, olharpara o próximo, mas olhar dentro só para reco-nhecer melhor que somos impotentes. Agora,será que a gente é capaz de olhar dentro e

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chamar os fantasmas, os monstros, as forças cri-minosas, as forças malévolas para brincar?

Eu diria que os devires ativos foram trans-formados em devires monstruosos, em forçasmonstruosas, a ponto de o homem não maisadmitir que pode viver sem lei, que pode viversem moral, que pode viver sem Estado, quepode viver sem Deus, que pode viver sem o eu,sem o ego, que pode viver sem o sujeito, quepode viver sem a significação. Não que nós de-vamos simplesmente jogar isso tudo fora. É sim-plesmente aprender o lugar de onde isso vem ecomo nós investimos nessas coisas, e como agente é cúmplice de tudo isso, e como a genteinveste na democracia. E esse termo, esse con-ceito de democracia que, geralmente, temosmedo de afrontar por podermos ser chamadosde autoritários, de nazistas, de fascistas ou deempregadores de uma ordem aristocrata, não háforma mais autoritária e fascista, fingida e es-condida, do que a democracia e a lei. Não exis-te nenhuma diferença de natureza entre a leicivilizada e a barbárie terrorista: o terrorismo ea barbárie, junto com a lei e a civilização, têm amesma fonte. Não há barbárie, não há mons-truosidade, não há crime sem essa produção so-cial da monstruosidade a partir da incapacida-de de tolerar os devires ativos do corpo. Entãonós somos socialmente educados, codificados,historicamente investidos a cultivar uma formade organizar o corpo, uma forma de organizaro pensamento, sem a qual o homem cairia numabismo, sem a qual as forças do homem, as maiscaóticas, tomariam conta e a vida se perderia,naquilo que Hobbes chamou de um estado deguerra de todos contra todos, uma vez que sóobservaríamos as paixões individuais e na indi-vidualidade só haveria esse tipo de paixão derapina, de transição, de destruição, porque sópensaríamos no interesse individual. Esse pres-suposto, então, que as forças do corpo, as forçasdo pensamento têm uma deficiência de auto-regulação de ordem própria, é o pressuposto detodo poder junto com toda a vida impotente.Não há poder sem vida impotente, a vida im-potente é uma condição do poder, o poder cul-

tiva a vida impotente, ele cultiva essas paixões,e toda a vida impotente busca o poder.Há uma cumplicidade entre a vida impotentee a busca pelo poder e o exercício do poder.Não há poder que não seja sempre exercido,Foucault já dizia isso muito bem, pelos domi-nados e pelos dominantes. O poder não está nopalácio tal, na realeza tal, na instituição tal, noaparelho de estado tal: ele é sempre exercido eatravessa todos os corpos. E de que modo ele éexercido? Pela nossa sensibilidade e pela nossalinguagem. O uso que fazemos da nossa sensi-bilidade e da nossa linguagem atravessa modosde poder. Através do uso da na nossa sensibili-dade a gente separa o nosso corpo do que elepode, através do uso da nossa linguagem a gen-te separa o nosso pensamento do que ele pode.Nós investimos o pensamento, submetemos opensamento a uma representação. Nós sub-metemos o corpo a um organismo. Nós perde-mos a capacidade de acontecer no imediato por-que achamos que isso tudo é uma efemeridade,que o acontecimento é um mero acidente, queo acaso não tem nenhuma necessidade, que odevir não tem nenhum ser, que essa multiplici-dade caótica não tem nenhuma unidade. Entãonós investimos numa unidade e numa necessi-dade, num ser, numa essência, numa identida-de que nos resgataria. E esse investimento mes-mo é o que, ao mesmo tempo nos apazigua,nos dá o sentido do nosso sentimento em vão.No fundo ele é um sofrimento humano feitode falsos problemas, um desperdício só, porquenós não sabemos mais sofrer, não sabemos apro-veitar a dor. Levamos a sério a dor, somos de-masiado sérios e responsáveis diante das injusti-ças, somos extremamente sensíveis diante denaturezas dolorosas em relação ao que ameaça-ria uma existência que já está podre na sua es-sência, ao invés de investirmos na capacidadede adubar a nossa própria terra, de revolver osolo que já está empedrado, onde semente al-guma mais brota em nós. Será que a gente é ca-paz de fazer de nós mesmos um arado que areessa terra que já está sem oxigênio? Será que agente é capaz de arejar a nós mesmos? Para isso

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é necessário ser também destruidor, é necessá-rio ser assassinos de nós mesmos, destruir a par-te de nós que está podre, que deve ser morta ehonrada até. Chorar, fazer o luto necessário edizer adeus e alegrar-se quando se ultrapassanovamente essa condição de afundamento, dedecadência. Ou seja, nós somos muito piedososconosco, nós não somos ainda capazes de apren-der o não necessário. Somos educados para di-zer sim e para ser amável e o nosso sim só é per-mitido na medida em que a gente diz um nãofundamental, um não inconfessável que destituia vida da sua capacidade de acontecer. Então agente diz um sim que na verdade esconde essenão fundamental e não sabemos mais dizer nãoa esse não fundamental que separa a vida do queela pode. Então, como diz Nietzsche: não sabe-mos nem dizer sim e nem dizer não. O nossosim é um falso sim porque afirmamos valoresque oneram a vida, que tornam a vida pesada,incapaz de dançar, incapaz de acontecer, inca-paz de fluir e nós, ao mesmo tempo em queoneramos a vida, investimos ainda mais numasalvação que estaria sempre no futuro ou, nocaso dos pessimistas, que já foi, que está perdi-da, num paraíso que não volta mais. Nossa vidafica entre a memória e o projeto, mas nunca nodevir. Nunca somos capazes de fazer a nossa ple-nitude, a nossa eternidade aqui e agora sem fal-ta, saber que o caminho é pleno, que é no ca-minho que existe a plenitude, que a plenitudenão está no fim e nem na origem, que nãoestamos indo em direção a nenhuma unidadeoriginal e nem a uma totalidade final, que seexiste ainda alguma idéia de salvação, a salvaçãoé pelo meio. Pelo meio a gente é capaz de acon-tecer, mas a gente só é capaz de acontecer se agente é capaz de reencontrar o virtual que atra-vessa o atual ou o existencial. Se a gente nãoencontra essa dimensão do virtual, que dimen-são é essa? É o inesgotável de qualquer relação,o inesgotável no espaço, o vazio que nós nãosabemos mais valorizar e transformamos todovazio em nada, ou o entretempo que não sabe-mos mais valorizar porque há um tempo cro-nológico e necessário ao bom andamento das

coisas e das tarefas a serem cumpridas e perde-mos os entretempos que são destituídos comocaóticos, como desviantes, como labirínticos,como condutores da loucura. Então perdemoso virtual do tempo, perdemos o virtual do es-paço, perdemos o virtual da superfície, perde-mos o meio de acontecer. Nós preenchemosessa impotência com referências e nos enche-mos de referências e daí a gente até fala emnome de Nietzsche, de Spinoza, de muitos pen-sadores bacanas que estão na moda, Deleuze,Guattari, Foucault, Baudrillard, enfim tem umasérie deles aí. Como se bastasse, simplesmente,a gente se servir deles. Às vezes é até uma formade desespero: você busca aliados, busca algumtipo de luz porque há, de fato, um investimen-to sincero, honesto, na retomada da nossa ca-pacidade de acontecer. Mas muitas vezes é tra-paça, é negociação, muitas vezes é conquista eaprimoramento de um novo nicho de mercado,uma maneira diferente de falar que gera frutos,gera lucros, gera reconhecimentos. Enfim, agente está sempre existindo pelo espelho quea gente é incapaz de quebrar e a gente cuida paramanter o espelho sempre bem limpinho paraele refletir bem a nossa impotência, que é mas-carada com o poder que a gente ganha a cadadia, com a competência.

Então eu diria que, assim como há umapolítica do ódio e o ódio implica tristeza, há uminvestimento essencial na tristeza, há um inves-timento essencial na desqualificação de nósmesmos ou uma impotência através do medo,através da clareza – temos um pensamento mui-to claro, científico, racional, temos muita tec-nologia – através do poder, porque ele faz gozaro impotente e sempre acabamos sucumbindonum grande cansaço porque a morte tarda, masnão falha, como a justiça – são da mesma natu-reza essa morte e essa justiça. Assim como háuma política do ódio, há uma política da triste-za, que é compensada com o prazer – nós bus-camos o tempo todo compensações. Nós somosestimulados a ter desejos, mas o desejo não podeser exagerado, ele tem que ser comedido, é umpequeno desejo, é um meio querer, assim como

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o que ele ganha é um pequeno prazer. Meiosquereres e pequenos prazeres. Não há hoje nin-guém que ouse falar contra o prazer, não há hojegente que fale contra as diferenças, contra asmultiplicidades. São engraçadas essas coisas.Hoje em dia se fala em empoderamento das co-munidades e ninguém desconfia; De graça,empoderamento? Como assim? E as comunida-des mordem a isca. Por que? Porque elas são tãoingênuas assim? Será que ninguém sabe o quefaz? Não. De fato, a vida separada do que pode,ela necessita disso, ela fabrica essa doença e ofe-rece essa saúde, o modelo de saúde que faz comque essa doença seja reproduzida. A mesma coi-sa com o prazer: oferece esse prazer exatamentepara manter o desejo em baixa intensidade. De-sejo em alta intensidade é desejo sem intencio-nalidade, é desejo revolucionário, incomoda; elede fato faz a diferença, e desejo que faça diferen-ça não é tão interessante assim. Só é interessan-te se essa diferença estiver a serviço da deman-da que o estimulou ou então que o capturou.A diferença não é de fato amada, a multiplici-dade não é de fato amada, a mudança e o acon-tecimento não são de fato amados. No máximosão tolerados.

É essa autocrítica que eu quero convidara gente a fazer. Esse rigor com a gente mesmo.Até que ponto a gente diz viva à multiplicida-de, viva à diferença, viva à mudança, viva aoacontecimento? Quando, de fato, nós sofremosdisso, nós padecemos disso, nós temos umentristecimento com isso, e vemos que não temoutra saída mesmo, então a gente vai inventaruma maneira de passar melhor com isso, apesardisso. Quando, na verdade, não existe outra es-sência, outra eternidade, outra necessidade, ou-tra liberdade, outro gozo a não ser a afirmaçãoplena do acontecimento. Então, essa incapaci-dade de dizer sim ao acontecimento só é umaincapacidade a partir de uma cumplicidade dequem está separado do que pode: ela é um in-vestimento social. Há um investimento não sóno ódio e na tristeza, como há um investimen-to num gozo e num prazer ou numa afirmaçãoque reiteram a política do ódio e do entristeci-

mento. Nunca o poder vai chegar e dizer queele precisa da desqualificação da existência, masnão há poder sem essa desqualificação. Nuncao poder vai falar que vai odiar e entristecer, masnão há poder sem o ódio e sem a tristeza. Nun-ca o poder vai falar que a vida, ou que a nature-za, é insuficiente, mas o poder só existe na me-dida em que ele cria uma instância que provêuma vida insuficiente. Nunca o poder vai, a nãoser nas situações limites e críticas, nos capturarpela dívida. Ele vai fazer o contrário, vai ofere-cer o crédito, vai oferecer a ajuda, vai oferecer oamor, o bem, a verdade, a paz, todos os valoresque nós reclamamos, a democracia, os direitos(quanto mais direito melhor). De quê? Do ho-mem. Quem é o homem? Não sabemos mais.Será que o homem é essa instância que tem umavontade livre, que tem liberdade para escolhero bem e o mal, para evitar o falso e buscar overdadeiro, para denunciar as injustiças e inves-tir na justiça, para investir na utilidade ou desin-vestir na nocividade? Será que é essa forma?É essa a forma interessante de ser? É essa a for-ma interessante de existir e de acontecer? Entãoserá que a gente não vive um grande sono e in-veste nesse sono? E será que não seria interes-sante fazer como Nietzsche – não buscar acon-selhar a humanidade ou até a nós mesmos afazer outra coisa, mas acelerar o processo –, edizer com ele : “bem-aventurados os que têmsono porque em breve adormecerão”? Por que agente segue investindo em aconselhamentos,em ideologias, em verdadeiros sistemas, emreferências? Não queremos outras referências?Fomos enganados?

A ciência está só ocupando o lugar da re-ligião, mas ela tem o pressuposto moral. Qual éo pressuposto dela? É que a vida não vale por simesma, é que existe um acaso e uma multipli-cidade que devem ser recusados. Não somos to-dos moralistas, em última instância? Se quiser-mos o anarquismo, então abaixo o Estado,abaixo tudo, abaixo a lei. E será que o nossoanarquismo também não é uma forma de res-sentimento? Eu estou provocando um pouco,mas não quero pintar nenhum quadro negro.

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Acho que quem pinta quadro negro quer ofere-cer salvação. Não é isso. Eu só quero me apro-ximar de certas nuances que não são suficiente-mente observadas por nós para liberar o ladopotente do corpo e do pensamento. O que podeo corpo, o que pode o pensamento, o que podea vida (uma vida afirmativa, uma vida ativa,uma vida criativa). Por que somos tão medro-sos, tão covardes, investindo primeiro nas for-ças de conservação e não nas de criação? Porquea gente não sabe mais o que é criar. Porque pen-samos que criar é só embaralhar as imagens e oscódigos, dar uma mexida aqui e ali e já sai algonovo. Não sabemos mais criar produzindo eter-nidade, produzindo tempo próprio, produzindoespaço, produzindo vazio, produzindo corpo,produzindo elementos, produzindo realidadesem última instância. Nós não sabemos mais quea própria natureza é usina de si e de tudo e quenós somos parte da natureza. Quem disse que ohomem não é animal? Quem disse que o ho-mem não é vegetal? Quem disse que o homemnão é mineral? Nós somos parte disso tudo, nósestamos nessa imanência. Assim como a lingua-gem e o pensamento não são exclusividade hu-mana. O homem tem a linguagem humana,mas existem outras linguagens, outros pensa-mento. A natureza pensa, não precisa do ho-mem para pensar. Ao contrário, o homem podeter inviabilizado o pensamento nele, porqueexistem forças em nós inteiramente positivas eplenas. O inconsciente é radicalmente inocen-te, não tem falta no inconsciente, não tem faltano desejo, o desejo não carece de objeto para sesatisfazer, o desejo já começa na capacidade deacontecer, ele já é acontecimento antes de de-sejar em nós. E quando ele se efetua ele já éuma diferenciação e um ultrapassamento de sie ele não precisa de um objeto para se satisfazer:ele inventa o objeto dele. Assim nós deveríamosinventar o nosso mundo e a nossa realidade aoinvés de buscar encontrar a realidade ou nosencontrar. Não tem nada para encontrar emnós e nem fora de nós. Precisamos inventar oque precisamos encontrar. Então é essa tomadade posição.

Eu diria, o corpo em devir ativo é aqueleque toma parte no processo e se põe fazendoprocesso. Fazendo o que? Não só outras coisas:obras de arte, ciência, filosofia, funções, técni-cas, objetos, mas fazendo a si próprio. O ho-mem perdeu a capacidade de produzir a si pró-prio. Acomodou-se, acreditou que tinha umaforma natural: tem um eu e esse eu é natural,tem um objeto e esse objeto é natural, tem umarazão e a razão nos foi dada por Deus. Comodiz Spinoza: “Deus, asilo da ignorância”. Então,que razão é essa? Essa razão sempre existiu?Ela foi inventada. Isso é um modo de pensar, éum modo, diria mais, de imaginar que essa ra-zão que o homem inventou o separa da própriapotência de pensar, assim como a sensibilidadeorgânica. É natural do olho ver, mas quem in-ventou o olho? Não foi a luz? A luz existe sem oolho? Quem inventou o ouvido? Não foi o som?O som não é anterior ao ouvido? Não é umcorpo sem órgãos antes dos órgãos, antes dasfunções? O que é o ouvido e o olho? O que sãoos órgãos, senão dobras intensivas de forças?Mas nós acreditamos que há um sujeito atrásdo olho que faz ver, há um sujeito atrás do ou-vido que faz ouvir, há um sujeito atrás da falaque faz falar, há um sujeito atrás do pensamen-to que faz pensar.

É essa existência nossa, nesse limiar, quenos faz reféns do medo e que nos faz investir nafalsa clareza de uma certa ciência mistificada, eao mesmo tempo ter esse fascínio pelo poder,pelo gozo, pelo reconhecimento, quando na ver-dade isso são apenas migalhas, são esmolas.Como diria Nietzsche, não somos suficiente-mente pobres para dar esmola: quem dá esmolaé quem é pobre e quem recebe é ainda pior.Temos que dar presentes, temos que procuraraliados, temos que sair da situação de referênciaou de seguidor. Temos que conquistar e afirmaras diferenças para que nos tornemos fortes. Aforça é a favor da liberdade. Essa idéia de que aforça gera violência é a falsificação que o poderintrojeta em nós. É exatamente porque somosfracos que somos violentos. O forte não é vio-lento, o forte é generoso. O forte não toma, o

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forte dá, o forte gera, o forte cria. A idéia quetemos de força é completamente deturpada. Nósprecisamos reinventar a idéia de força e desin-vestí-la da idéia de lei e de forma. Não precisa-

mos da forma, precisamos inventar a qualidadeda força e a qualidade da força é a afirmação daforça ativa ou da força criativa. Isso seria umdevir ativo para o corpo e para o pensamento.

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