CORPO, MENTE E EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES … · cognitivos ganham maior atenção por parte...

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CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ CURSO DE GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA CORPO, MENTE E EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES SOBRE A INDISSOCIABILIDADE MARCOS SCHWAMBACH São José, Dezembro de 2009.

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CENTRO UNIVERSITÁRIO MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ

CURSO DE GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA

CORPO, MENTE E EDUCAÇÃO INFANTIL:

REFLEXÕES SOBRE A INDISSOCIABILIDADE

MARCOS SCHWAMBACH

São José, Dezembro de 2009.

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MARCOS SCHWAMBACH

CORPO, MENTE E EDUCAÇÃO INFANTIL:

REFLEXÕES SOBRE A INDISSOCIABILIDADE

Relatório de Pesquisa elaborado para Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Graduação em Pedagogia, do Centro Universitário Municipal de São José. Orientado pela Professora Regina IngridBragagnolo

São José, Dezembro de 2009

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RESUMO

O presente estudo teve por objetivos identificar de que maneira as crianças manifestam a sua corporeidade e sua subjetividade no cotidiano pedagógico da Educação Infantil, bem como, identificar de que maneiras as crianças revelavam as relações entre corpo e mente enquanto dimensões indissociáveis. Para isso, foram realizadas observações e registros em diário de campo, sob uma perspectiva etnográfica, onde buscou-se valorizar as diferentes linguagens, manifestações e interações das crianças em seu contexto. Estas observações aconteceram em uma instituição pública da grande Florianópolis, com um grupo de crianças com idades entre 5 e 6 anos, onde o pesquisador do estudo também atuava como auxiliar de sala. A partir da leitura dos referenciais teóricos envolvendo a questão da dicotomia corpo-mente, percebemos que muitas vezes existe, nas instituições de Educação Infantil, certa desvalorização da unicidade envolvendo corpo e mente. Nestas instituições, muitas vezes, há uma segregação destas dimensões, de forma que o corpo e os movimentos acabam ficando desvalorizados, enquanto a mente e os aspectos cognitivos ganham maior atenção por parte dos profissionais. A partir das observações realizadas no grupo de crianças, percebe-se que elas constantemente buscam manifestar a sua corporeidade e a sua subjetividade, e que estas estão interrelacionadas em todos os momentos das crianças no cotidiano da Educação Infantil. No grupo observado, percebemos também que estas manifestações das crianças eram valorizadas e vimos o quanto esta valorização foi importante para as crianças enquanto possibilidade de ampliação de seus repertórios culturais. A partir disto, apontamos para a necessidade de rompermos com práticas dicotomizantes, de forma que se passe a valorizar as manifestações que envolvem a corporeidade e a subjetividade por parte das crianças, e que estas se façam presentes nos diferentes tempos e espaços dos contextos de educação de crianças pequenas.

Palavras-chave: Corpo, Mente, Educação Infantil e Crianças.

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Portinari, 1950

A criança é feita de cem

A criança é feita de cem.

A criança tem cem mãos, cem pensamentos, cem modos de pensar, de jogar e de falar.

Cem, sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar.

Cem alegrias para cantar e compreender.

Cem mundos para descobrir.

Cem mundos para inventar.

Cem mundos para sonhar.

A criança tem cem linguagens (e depois, cem, cem, cem), mas roubaram-lhe noventa e nove.

A escola e a cultura separam-lhe a cabeça do corpo.

Dizem-lhe: de pensar sem as mãos, de fazer sem a cabeça, de escutar e de não falar,

De compreender sem alegrias, de amar e maravilhar-se só na Páscoa e no Natal.

Dizem-lhe: de descobrir o mundo que já existe e de cem, roubaram-lhe noventa e nove.

Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação,

O céu e a terra, a razão e o sonho, são coisas que não estão juntas.

Dizem-lhe: que as cem não existem.

A criança diz: ao contrário, as cem existem.

Loris Malaguzzi

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 6

1.1 PROBLEMÁTICA..................................................................................................................... 6

1.2 OBJETIVOS........................................................................................................................... 10

1.2.1 Objetivo Geral .............................................................................................................. 10

1.2.2 Objetivos Específicos.................................................................................................... 10

1.3 JUSTIFICATIVA .................................................................................................................... 11

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA........................................................................................... 14

2.1 INFÂNCIA E INSTITUIÇÕES EDUCAÇÃO INFANTIL: UM BREVE HISTÓRICO ........................ 14

2.2 CORPO E MENTE NA HISTÓRIA: UNIÃO E/OU DISSOCIAÇÃO ............................................... 24

2.3 CORPO/MENTE NA EDUCAÇÃO: MOBILIDADE COMO INDISCIPLINA E IMOBILIDADE COMO

DISCIPLINA?............................................................................................................................... 34

3 CAMINHOS PERCORRIDOS ............................................................................................... 43

4 REFLEXÃO/ANÁLISE DAS OBSERVAÇÕES................................................................... 48

4.1 CRIANÇAS E CORPOREIDADE .............................................................................................. 48

4.2 CRIANÇAS E SUBJETIVIDADE............................................................................................... 53

4.3 O CORPO COMO DIMENSÃO BIOLÓGICA E A MENTE COMO DIMENSÃO COGNITIVA? ........ 56

4.4 CORPO E MENTE COMO INDISSOCIÁVEIS ............................................................................ 60

4.5 MOVIMENTOS QUE DESPERTAM SENTIMENTOS.................................................................. 63

4.6 OS TEMPOS E ESPAÇOS DA MENTE E DO CORPO.................................................................. 66

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................... 72

6 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 74

ANEXO ........................................................................................................................................ 82

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1 INTRODUÇÃO

Este estudo se constitui em diferentes momentos, na qual todos estão interrelacionados.

Inicialmente, apresenta-se uma breve discussão acerca dos motivos para a realização deste

estudo, revelando a importância acadêmica e social da temática, como seu estado da arte.

Também estão relatados os objetivos do estudo e a problemática que norteou toda a pesquisa.

Após isto, partimos para uma revisão de literatura, onde são abordados aspectos

relacionados à infância, às crianças e instituições de Educação Infantil sob uma perspectiva

histórica, chegando até os dias atuais, na percepção das crianças como sujeitos de direitos e na

função das instituições de Educação Infantil em valorizá-las como tal. Buscamos também discutir

a questão do corpo e da mente ao longo da história, alguns dos determinantes históricos que

resultaram na dicotomização destas dimensões, bem como a influência que esta segregação

trouxe para o campo da educação, mais especificamente da Educação Infantil.

Na seqüência, discute-se aspectos relacionados à metodologia empregada para a

realização do estudo, especialmente no que diz respeito à pesquisa de campo. Após isto, partimos

para uma reflexão e análise das observações, com o intuito de problematizarmos questões

discutidas nos referenciais e situações observadas durante a estada em campo.

Por último, finalizamos tecendo algumas considerações a respeito do estudo e da

temática, buscando apontar avanços nesta discussão, como também novas pesquisas que podem

ser realizadas sobre esta temática envolvendo o corpo e a mente na Educação Infantil.

1.1 Problemática

Em nossa sociedade, são cada vez mais comuns as dicotomias e as fragmentações.

Rodrigues (1999), afirma que “a vida passará a adquirir sentido mediante contraposições e

dicotomias: entre o mundo natural e o do sobrenatural, entre o do subjetivo e o do objetivo, entre

o da realidade e o da imaginação, entre o do verdadeiro e o do falso, entre o da sociedade e o do

indivíduo, entre o da natureza e o da cultura” (p.63). Estas dicotomias acabam por fazer com que

quase tudo em nossa vida se dê de forma fragmentada, desconexa, sem uma busca pela

integralidade. E dentre estas muitas dicotomias existentes, a que envolve o corpo e a mente, ou a

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corporeidade/subjetividade1, influencia muito nossos dias. O autor aponta para uma possível

origem destas dicotomias, entre elas a do corpo/mente. Segundo ele,

Foi preciso o aparecimento do dualismo cartesiano, distinguindo o corpo e a alma, para que dissecções e olhares objetificantes pudessem ser suportados. Estamos aqui diante de um dos momentos mais intensamente dramáticos da história de nossa sensibilidade moderna, pois, a partir dele, a magia da corporalidade humana se verá crescentemente reduzida à lógica do mecanicismo (p. 59).

Desta forma, vemos o quanto a nossa sociedade capitalista perdeu um pouco de sua

sensibilidade e está organizada de forma que praticamente tudo fique sob a ótica da

fragmentação, inclusive o corpo e a mente, como se o ser humano fosse em um momento corpo e

em outro mente. É esta dicotomia que será abordada neste estudo.

Mas por que a escolha desta temática? Um dos motivos residiu no fato de eu, além de ser

estudante de Pedagogia, cursar Educação Física, que tem como um importante campo de estudo o

corpo e o movimento. Juntamente com estas discussões acerca do corpo, vieram abordagens que

criticavam o estudo da Educação Física apenas pelo viés corporal, tratado como uma máquina,

como se este fosse separado da mente. Entre estes estudos, pode-se citar Freire (1989), Kunz

(1991, 1994, 2005), Coletivo de Autores (1992) e Gonçalves (1994), onde todos buscam dar um

novo olhar sobre as questões que envolvem o corpo e o movimento, sem desconsiderar a mente, a

subjetividade, as emoções, as formas de significação, os desejos e as individualidades, trazendo

uma abordagem mais crítica sobre o ser humano que se movimenta e que também pensa, sente e

se emociona, ou seja, vive em todas as suas dimensões.

Mas não foram apenas reflexões feitas dentro do curso de Educação Física. Na Pedagogia,

especialmente nos estudos sobre a Educação Infantil, vários foram os autores que buscaram

perceber a Educação Infantil sob uma perspectiva mais ampla, menos fragmentada e

1 Os termos corporeidade e subjetividade foram utilizados neste momento como forma de superar uma perspectiva que compreende o corpo apenas sub um viés biológico e funcional e a mente apenas sob um aspecto cognitivo. Desta forma, ambos são compreendidos como dimensões humanas indissociáveis, construídas através da constante interrelação entre natureza e cultura, onde a corporeidade pode ser compreendida por meio das vivências e experiências corporais e de movimentos que o indivíduo tem em sua vida e que o ajudam a constituir-se enquanto ser humano, bem como subjetividade pode ser percebida como a maneira individual que temos de sentir e dar significado ao mundo ao nosso redor e que pode ser expressa através dos mais variados sentimentos. Durante o texto, ao nos referirmos aos termos corpo e mente, consideraremos toda a dimensão que os envolve, e não apenas a dimensão biológica ou cognitiva. Estas definições encontram-se em construção e são focos de amplas discussões atualmente.

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escolarizada, fugindo de uma visão adultocêntrica2, respeitando a criança e as suas linguagens.

Dentre estes autores, podemos citar Sarmento e Pinto (1997), Batista (1998), Edwards, Gandini e

Forman (1999), Rocha (1999), Oliveira (2001), Coutinho (2002), Agostinho (2003), onde todos

buscaram contribuir no sentido de ver a criança enquanto sujeito de direitos, proporcionando

subsídios para a construção de uma Pedagogia da Educação Infantil, rompendo com certos

paradigmas existentes na Educação Infantil. A partir destes textos, vimos que a Educação Infantil

é permeada por algumas dicotomias, como por exemplo, espaços internos e externos, educar e

cuidar, atividade pedagógica e atividade livre, dentre outras, onde todas merecem um

questionamento crítico acerca de sua existência como binárias. Nestas separações, percebemos

que existe uma certa relação hierárquica entre elas, onde normalmente uma é mais valorizada que

a outra. Por exemplo, muitas vezes se valoriza mais a atividade pedagógica em detrimento da

atividade livre, como se este momento de liberdade não tivesse significados importantes para as

crianças, ou como se elas somente aprendessem nos momentos ditos pedagógicos. Outro exemplo

pode ser percebido entre o educar e o cuidar, onde muitas vezes o educar se sobressai, ficando o

cuidado em segundo plano, como se estas relações não se dessem de maneira conjunta.

Outro motivo que me levou a escolher esta temática foi a vivência de momentos no

cotidiano pedagógico da Educação Infantil, onde realizei observações. Estas vivências ocorreram

no segundo semestre do ano de 2008, em uma instituição de Educação Infantil de São José, na

qual realizei a disciplina de Estágio Curricular em Educação Infantil. Nestas vivências, observei

momentos onde as crianças eram proibidas de se movimentar quando estavam realizando alguma

atividade dita “cognitiva”, momentos no parque onde as crianças eram proibidas de correr, onde

as crianças manifestavam através de suas linguagens o desejo de estar em movimento, mas este

desejo não era levado em consideração, onde a ida ao parque para as crianças brincarem e se

movimentarem era condicionada à realização das atividades em silêncio e “quietinhas”. Porém, o

que percebia em muitos momentos era o desejo das crianças em romper com esta lógica,

buscando o movimento. Em uma destas observações, registrei o seguinte:

2 O termo adultocentrismo é entendido aqui conforme Gobbi (1997, p.26 apud ROSA, CERISARA, OLIVEIRA e RIVERO, 2004, p.2) nos aponta. “uma visão de mundo segundo a qual o grupo ao qual pertencemos é tomado como centro de tudo e os outros são olhados segundo nossos valores, criando-se um modelo que serve de parâmetro para qualquer comparação. Neste caso o modelo é o adulto e tudo passa a ser visto e sentido segundo a ótica do adulto, ele é o centro”.

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Algumas coisas me chamaram a atenção neste 1° dia. Uma delas é a grande necessidade que elas têm de se movimentar. A cada oportunidade que elas tinham, elas evidenciavam este desejo pulando, correndo, brincando com os brinquedos e entre si (Registro de estágio, 01/10/2008).

De um lado, estavam os professores tentando controlar as crianças, inibindo ao máximo

que elas vivenciassem o seu corpo e suas possibilidades. De outro, as crianças, relutando ao

máximo às imposições dos professores e buscando sempre a brincadeira, o movimento,

vivenciando o seu corpo.

Todas estas experiências me fizeram pensar no porquê de existirem estas dicotomias. Será

que para pensar é preciso estar parado? Será que quando há movimento corporal, o pensamento

fica inerte? Por que os (as) professores (as) consideram o movimento das crianças indisciplina e

não o percebem como uma expressão de suas linguagens? Será que os (as) professores (as)

buscam incessantemente esta disciplina dos corpos por que é mais fácil lidar com crianças que

ficam paradas? Será que, ao realizarmos estas segregações, não estamos contribuindo para que as

crianças não vivenciem a sua corporeidade e sua subjetividade? Segundo Finco (2007),

As teorias educacionais e as disciplinas que constituem os cursos de formação docente pouco ou nada dizem sobre os corpos. Entramos em uma sala de aula como se apenas a mente estivesse presente, como se fôssemos, todos, espíritos descorporificados. O corpo parece ter ficado fora da escola. Essa é a primeira impressão quando observamos cursos de preparação docente e a formação acadêmica em cursos de Pedagogia (p.94).

Desta maneira, podemos começar a refletir sobre a maneira em que a questão da

corporeidade e da subjetividade é discutida nos cursos de formação de professores, de forma que

estas discussões possam ser ampliadas, para que questões deste tipo sejam desmistificadas.

Todas estas questões trouxeram-me à seguinte problemática: Será que existe uma

dicotomia corpo/mente no âmbito da Educação Infantil?

Este estudo se propôs a trazer elementos de reflexão para percebermos se esta separação

existe de fato, e se existe, de que forma as crianças buscam expressar seu desejo de romper com

esta lógica.

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1.2 Objetivos

1.2.1 Objetivo Geral

Identificar de que maneira as crianças manifestam a sua corporeidade e sua subjetividade

no cotidiano pedagógico da Educação Infantil.

1.2.2 Objetivos Específicos

Perceber de que maneiras as crianças reivindicam o direito/desejo de expressar e

expressam a sua corporeidade e a sua subjetividade;

Compreender de que maneiras se revelam nas crianças as relações entre corpo e mente

como indissociáveis;

Identificar se o cotidiano da Educação Infantil separa/ou não separa o corpo e a mente das

crianças.

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1.3 Justificativa

A questão do corpo e da mente é uma discussão que ainda não está completamente

presente no âmbito da Educação Infantil. Finco (2007) afirma que “a história mostra que a

preocupação com o corpo sempre foi central no enquadramento dos processos, das estratégias e

das práticas pedagógicas. Todos os processos de escolarização sempre estiveram preocupados em

vigiar, controlar, modelar, corrigir e construir os corpos (p.94)”. Desta forma, percebe-se que os

processos pedagógicos ainda estão muito voltados para disciplinar os corpos das crianças,

inibindo seus movimentos, dando mais importância aos aspectos cognitivos e a racionalidade em

detrimento do corpo, fazendo com que a criança não vivencie sua totalidade onde corpo e mente

são percebidos como uma unidade, indissociáveis entre si. Outra questão decorrente desta

situação é a desvalorização das emoções, dos desejos e das singularidades das crianças, ou seja,

de aspectos relacionados a sua subjetividade.

Porém, o que ocorre em muitos momentos é a chamada fragmentação do conhecimento,

resultando na dissociação da própria criança. É preciso que “a fragmentação, a estaticidade, a

unilateralidade, a terminalidade, a linearidade e o etapismo, princípios da lógica formal sejam [...]

confrontados com os princípios da lógica dialética: totalidade, movimento, mudança qualitativa e

contradição” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 34). Nesta fragmentação, acabamos por

desrespeitar as crianças enquanto sujeitos de direitos, buscando discipliná-las, trazendo-as mais

perto de uma lógica adulta, onde a corporeidade é cada vez mais suprimida, dando valor somente

ao pensamento.

A produção teórica sobre a Educação Infantil é muito vasta e encontra-se em expansão.

São vários os autores que tratam de temas que vão desde a criança em si, suas brincadeiras, suas

relações entre si e com os adultos, sua inserção nas creches, entre outros. Dentre os autores,

podemos citar Sarmento e Pinto (1997), Agostinho (2005), Batista (1998, 2003), Coutinho

(2002), Kuhlmann Jr. (1998), Oliveira (2001), entre outros. Já com relação ao corpo e a mente,

também é possível encontrarmos algumas referências que falam sobre o corpo na história, as

formas como o corpo é visto e as relações entre corpo e mente. Dentre eles podemos citar

Gonçalves (1994), Rodrigues (1999), Foucault (1987), Damásio (1996), entre outros.

Porém, é difícil encontrarmos referências que tratam especificamente sobre o tema

corpo/mente na Educação Infantil. Em uma pesquisa on-line, em sites de periódicos e artigos

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científicos3, há muitas referências que tratam do corpo em si, mas um número reduzido delas traz

discussões sobre a questão do corpo e da mente na Educação Infantil. Ao utilizar como

descritores as palavras “corpo”, “corporeidade”, “mente” e “subjetividade”, encontramos poucas

referências que abordam a questão da relação entre estas dimensões. No portal de periódicos e

artigos científicos Scientific Electronic Library Online (SCIELO), autores como Gaya (2006),

Goia (2007), Prado Filho e Trisotto (2008), Ferreira (2008), Pereira (2008) e Nóbrega (2005,

2008), trazem estudos sobre o corpo em nossa sociedade e a maneira como este é visto. Assim

como há alguns estudos que abordam questões exclusivamente relacionadas a mente, advindas

principalmente da Psicologia. É difícil encontrarmos estudos que tratam da relação entre corpo e

mente, bem como não foram encontrados textos referentes ao tema deste estudo.

Já no portal da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

(ANPEd), buscando referências no GT7 – Educação de crianças de 0 a 6 anos, foram encontrados

3 artigos relacionados ao tema deste estudo. Os autores dos estudos são Richter (2005), Carvalho

(2006) e Simão (2008). No site de periódicos da UFSC, acessando revistas como Perspectiva e

Zero-a-Seis, também foram poucas as referências encontradas, e estas, em sua maioria dissertam

sobre o corpo e educação. Dentre os autores, podemos citar Vaz (2004), Almeida (2003), Guerra

(1997), Bassani e Vaz (2003) e Sayão (2002).

Desta maneira, este estudo se mostra bastante relevante para o tema, tendo em vista que

são muitas as referências gerais sobre o corpo e a mente e a relação destas com a educação em

geral, mas escassas são as referências envolvendo a relação/dissociação corpo e mente na

Educação Infantil. Afirmamos que são escassas, pois não encontramos nenhum artigo referente

ao tema específico deste estudo, porém a pesquisa não envolveu todos os periódicos que tratam

de temas sobre a educação ou Educação Infantil existentes no Brasil.

Ao mesmo tempo em que esta temática se revela importante academicamente, na prática

pedagógica dos professores e nas relações que estes estabelecem com as crianças, esta também é

fundamental, pois a partir dela professores (as) terão mais subsídios para problematizarem esta

questão da dicotomia corpo/mente, tornando esta prática mais próxima das especificidades

infantis, respeitando suas singularidades, subjetividades e sentimentos, bem como considerando a

criança em todas as suas dimensões, integralmente.

3 Dados pesquisados no Scielo (http://www.scielo.org/php/index.php), portal da ANPEd (www.anped.org.br) e Portal de Periódicos da UFSC (www.periodicos.ufsc.br).

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A partir do momento que o (a) professor (a) respeita a criança em si, esta terá maior

liberdade dentro do contexto da Educação Infantil, podendo ter mais vivências, interagindo mais

com seus pares e com o mundo, pois o corpo, seus movimentos e seus sentimentos também

possibilitam que a criança amplie suas interações. Conforme afirma Strazzacappa (2001, p.69),

“o indivíduo age no mundo através de seu corpo, mais especificamente através do movimento. É

o movimento corporal que possibilita às pessoas se comunicarem, trabalharem, aprenderem,

sentirem o mundo e serem sentidos”. Esta valorização do corpo e de suas possibilidades contribui

para o aprendizado e o desenvolvimento integral da criança.

É importante destacar que este estudo considera corpo e mente de forma indissociável, ou

seja, ambas se relacionam de maneira mútua. Considerar esta união é fundamental para tentarmos

romper com uma lógica capital/racionalista que privilegia principalmente os aspectos cognitivos,

não dando muitas possibilidades de o ser humano vivenciar sua corporeidade e sua subjetividade

conjuntamente.

Diante disso, considera-se que este estudo contribuiu no sentido de auxiliar professores

(as) e profissionais que trabalham na Educação Infantil a refletirem sobre as questões que

envolvem a mente e o corpo da criança na busca de uma superação de paradigmas onde ambos

são percebidos de forma fragmentada, sendo que em muitos momentos um se sobressai em

relação ao outro.

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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Infância e Instituições de Educação Infantil: um breve histórico

Ao pensarmos nas instituições de Educação Infantil e nas crianças que frequentam este

espaço, surge a necessidade de compreendermos aspectos históricos referentes aos mesmos, pois

desta maneira teremos mais subsídios para entendermos como estas crianças pequenas são

educadas e cuidadas nestas instituições, respeitando suas características, individualidades e sua

condição de sujeitos de direitos. Com isso, podemos avançar cada vez mais no sentido de romper

com certas lógicas e práticas que ainda existem, chegando cada vez mais próximos de uma

Pedagogia da Educação Infantil4 que busque, entre outras coisas, respeitar a criança como sujeito

integral.

Inicialmente, buscou-se perceber como a infância e as crianças foram vistas ao longo do

tempo. E para ajudar-nos nesta construção, Lajolo (1997) afirma que existiram algumas

concepções de infância. “Primeiro, vendo a criança como um adulto em miniatura; depois...

Fomos acreditando sucessivamente que a criança é a tábula rasa onde se pode inscrever qualquer

coisa (p.228)”. A partir disso, podemos começar a tecer um maior entendimento a respeito do que

se pensava sobre as crianças durante o passar dos anos. Já as vimos como um adulto em

miniatura, um vir a ser, onde ela era tratada e percebida como um adulto, vestindo-se como tal e

principalmente sendo levada o mais rápido possível a ser adulto. O que importava não era o

agora, mas sim o futuro. Também acreditava-se que o adulto pudesse moldar a criança conforme

a sua vontade, pois esta era vista como uma tábula rasa, sem voz e sem vez, apenas recebendo o

que era considerado importante para sua educação. Desta maneira, percebemos que as crianças,

no passado, não tinham voz e eram tratadas todas como iguais. Elas eram literalmente in (prefixo

de negação) fantes (que é relativo a fala) (ARIÈS, 2006). É claro que isto não aconteceu apenas

no passado. Hoje também podemos perceber em muitos momentos que as crianças não tem

4 O termo Pedagogia da Educação Infantil foi utilizado inicialmente por Rocha (1999). Neste estudo, entende-se que a Pedagogia da Educação Infantil “privilegie as infâncias e não a alunância; que privilegie a diversidade e não a homogeneidade; que privilegie a espontaneidade ao invés do espontaneísmo; que estabeleça uma relação de complementaridade com as famílias e não de favor e caridade; que reconheça a criança como sujeito social de direitos e não mais como objeto de tutela; que a educação das crianças seja sinônimo de emancipação e não de subalternidade” (BATISTA, 2003, p. 44).

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oportunidade de opinarem nas questões que dizem respeito à sociedade e a elas mesmas. Estas

decisões e discussões acabam sendo realizadas somente pelos adultos, ficando as crianças em

segundo plano (SARMENTO e PINTO, 1997).

Ariès (2006) é outro autor que disserta acerca da infância e do sentimento ou surgimento

desta. Porém, muito se critica sua obra por apresentar linearmente a história da infância e da

família (HEYWOOD, 2004). Para Ariès, o “sentimento de infância” surge a partir do

mercantilismo, pois a estrutura social passa a mudar e a criança, a partir daquele momento, é alvo

de educação e de cuidados. Ele afirma também que a infância não tinha lugar na Idade Média,

pois na arte medieval, não era representada, passando despercebida.

Tomando como ponto de partida a Idade Média, Ariès (2006) vem afirmar que até este

período o sentimento com relação à infância não existia. A criança, a partir do momento em que

não precisava mais dos cuidados maternos, era imediatamente inserida no mundo adulto. Após

isso, surgem os dois sentimentos de infância a que se refere Ariès. Em um deles, a criança é vista

como um ser para ser admirado, pois esta tem a capacidade de despertar alegria nas pessoas. É a

chamada “paparicação”. Já o outro se refere à percepção da inocência e da fraqueza da criança,

onde os adultos tinham o dever de preservar a primeira e fortalecer a segunda. Com isso, vemos

que os “sentimentos” em relação à infância, naquele período, ainda não consideravam a criança

como um ser em si, pois esta era apenas vista como um ser que deveria ser paparicado, admirado,

e um ser que necessitava de cuidados dos adultos para se tornar também um adulto, sendo

desconsiderada sua condição de criança. Ariès (2006) afirma que

Na Idade Média, no início dos tempos modernos, e por muito tempo ainda nas classes populares, as crianças misturavam-se com os adultos assim que eram consideradas capazes de dispensar ajuda das mães ou das amas, [...] aproximadamente, aos sete anos (p.193).

Segundo o autor, havia também neste momento histórico, uma percepção da infância

romantizada, na qual a criança era considerada um ser puro, inocente, elo entre o céu e a terra, e

era fundamental que se preservasse esta característica o maior tempo possível.

De certa forma, os estudos de Áries (2006) nos ajudam a perceber que o sentimento de

infância, ou a percepção da existência desta se configurou a partir da Idade Média, mais

precisamente após esta, onde ela começou a ganhar mais notoriedade por parte dos adultos.

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Porém, esta notoriedade se refere a transformar esta criança em adulto o mais rapidamente

possível, ou então de preservar as características de inocência e de pureza.

Colin Heywood (2004) faz uma crítica contundente à obra de Ariès. Para este autor, Ariès

comete alguns equívocos em seu estudo, principalmente com relação às fontes de pesquisas

utilizadas e a idéia de que na Idade Média ainda não havia um sentimento de infância. Ele afirma

que “o mundo medieval provavelmente teve algum conceito de infância, mas suas concepções

sobre ela eram muito diferentes das nossas” (idem, p.27). Desta forma, ele traz outras

contribuições que nos ajudam a perceber as concepções de infância existentes ao longo da

história, principalmente a partir da Idade Média.

Um dos aspectos levantados por Heywood (2004) se refere à forma imprecisa como a

infância era concebida na época medieval, onde ele afirma que “a infância [...] durante a Idade

Média não passou tão ignorada, mas foi antes definida de forma imprecisa” (p.34). Isto contraria

os estudos de Ariès quando ele afirma que naquele período a infância não existia.

Talvez uma das maiores virtudes nos estudos de Heywood (2004) acerca da infância se

deva ao fato de ele a considerar, acima de tudo, uma construção cultural, ou em suas próprias

palavras, “a criança é um constructo social que se transforma com o passar do tempo, e não

menos importante, varia entre grupos sociais e étnicos dentro de qualquer sociedade” (p.21).

Assim, percebe-se que a infância e a noção desta é muito mais do que simplesmente afirmar que

até a Idade Média ela não existia, passando a ter visibilidade a partir disto, como afirma Ariès

(2006). Ela é uma construção histórica, cultural, existindo sempre. Porém, a forma como as

sociedades a percebiam eram diferentes da nossa, por isso, ao pensarmos na história da infância é

importante nos desvincularmos de nossa visão de infância atual e particular, compreendendo de

que forma esta era vista especificamente em seu período, para então traçarmos paralelos com os

dias atuais. Áries também considera a infância como um construto social, mas para ele essa

construção inicia-se somente a partir da idade medieval.

De certa maneira, podemos pensar que a infância e as crianças são um tema que não

esteve muito presente no decorrer do tempo, porém a criança em si sempre existiu. E se

pensamos que ela é uma construção social e cultural, vista sob diferentes focos em cada período

histórico, temos também que pensar que o “sentimento de infância” existente em cada período

depende das condições culturais, sociais e de vida das pessoas em cada época.

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Mas e hoje, como percebemos as crianças e a infância? Será que não tratamos as crianças

da mesma maneira que elas eram tratadas na Idade Média? Será que vemos as crianças como

sujeitos ou objetos?

Para nos ajudar um pouco nestas questões, recorremos a Sarmento e Pinto (1997). Os

autores portugueses falam sobre a atual percepção da criança em nossa sociedade, onde elas têm

direitos, ou seja, tem visibilidade social. Os autores também possuem um posicionamento

semelhante a Heywood (2004), afirmando que as “crianças existiram sempre, desde o primeiro

ser humano, e a infância como construção social [...] existe desde os séculos VXII e XVIII”

(SARMENTO e PINTO, 1997, p.11).

Porém, o fato de as crianças receberem uma maior visibilidade social não significa que

em muitos momentos elas ainda não sejam tratadas ou vistas como antigamente. Sarmento e

Pinto (1997) falam sobre os paradoxos vividos pela infância atualmente. Ao mesmo tempo em

que se defende a infância, vemos cada vez mais crescer o trabalho infantil ou a exploração sexual

das crianças. Há também a questão de os adultos defenderem e gostarem cada vez mais das

crianças, porém procuram cada vez mais terem menos filhos. Ou então pelo fato de se saber da

importância do contato entre pais e filhos, mas este contato é cada vez mais reduzido. Outros

paradoxos encontrados referem-se ao fato de se valorizar a espontaneidade das crianças, quando

damos a elas cada vez menos oportunidades de expressarem, oportunizando espaços cada vez

mais reduzidos. Ou ainda a falta de oportunidade das crianças expressarem seus desejos e

opiniões sobre assuntos relacionados a elas mesmas, assim como não se considera que elas

podem contribuir para a produção do conhecimento (QVORTRUP, apud SARMENTO E PINTO,

1997).

Com isso, vemos que, ao mesmo tempo em que damos visibilidade às crianças, damos

invisibilidade a elas quando tomamos as decisões. Se pensarmos na situação atual da infância e a

situação da mesma na Idade Média, por exemplo, vemos que existem algumas semelhanças, pois

em certos momentos não percebemos a criança de fato como um sujeito que tem vez e voz, mas

apenas a consideramos sob nossa perspectiva adultocêntrica. O que mudou foi a sua maior

visibilidade e uma maior compreensão sobre a mesma.

Mas de nada adianta darmos todos estes direitos e esta visibilidade às crianças, se na

prática ainda agimos como se elas fossem invisíveis. Desta forma, busca-se contribuir para mudar

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o pensamento sobre a participação da infância em nossa sociedade, possibilitando que as crianças

possam opinar sobre o que diz respeito diretamente a elas, assim como outros assuntos.

Porém, nem só de paradoxos vivem as crianças, pois todo este atual entendimento sobre

elas trouxe também muitos avanços, principalmente no que se refere à educação das mesmas nas

instituições de Educação Infantil, bem como a forma como as crianças são vistas e

compreendidas nas mesmas. Mas antes de observar como se configura a relação entre a criança e

as instituições de Educação Infantil, buscou-se compreender de que maneira se deu a construção

histórica destas instituições.

Kuhlmann Jr. (1998) traz uma importante contribuição afirmando que “as instituições de

educação da criança pequena estão em estreita relação com as questões que dizem respeito à

história da infância, da família, da população, da urbanização, do trabalho e das relações de

produção” (p.16). Assim, entende-se que a maneira como as crianças eram tratadas dentro das

instituições de Educação Infantil está muito relacionada ao próprio entendimento que se tinha da

criança com o passar dos anos. Provavelmente, se em um momento da história vimos às crianças

como adultos em miniatura, as instituições responsáveis pela educação das mesmas assumiam

uma postura de tratar as crianças como adultas.

Dentro desta construção, encontramos em Froebel e no seu Jardim-de-Infância uma das

primeiras instituições de Educação Infantil que se assemelham às que conhecemos hoje. Froebel

foi o precursor de uma instituição que se preocupava em educar às crianças, e não apenas em

prestar assistência.

Kuhlmann Jr. (1998) afirma que “o Jardim-de-Infância criado por Froebel, seria a

instituição educativa por excelência” (p.73). Desta forma, se refletirmos sobre as idéias deste

educador, veremos que o Jardim-de-Infância criado por ele preocupava-se em desenvolver a

linguagem, realizar passeios e excursões, possibilitar brinquedos e jogos organizados, aprimorar

os dons, desenvolver atividades de expressão, entre outras. Dentre estas atividades desenvolvidas

nos Jardins, encontramos também as atividades físicas e a ginástica. É interessante perceber que

Froebel preocupava-se com questões como a atividade física para as crianças por considerar que

tanto o desenvolvimento do corpo como da mente da criança eram necessários para desenvolver a

criança de maneira integral. “O desenvolvimento interno e externo seriam complementares: para

haver um desenvolvimento integral da natureza infantil deveria haver um forte estímulo tanto à

cultura física como ao desenvolvimento mental” (KUHLMANN Jr, 1998, p. 136). Entende-se,

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neste momento histórico, como atividade física, o desenvolvimento de marchas, saltos, passos,

aliados a jogos e brincadeiras.

Foi justamente o Jardim-de-Infância criado por Froebel que chegou ao Brasil no final do

séc. XIX, dando uma nova configuração ao contexto da educação das crianças pequenas. A partir

disso, o que percebemos nestas instituições ao longo do tempo foram algumas características

marcantes. Inicialmente podemos citar uma característica assistencialista por parte das chamadas

creches, enquanto que os Jardins propriamente ditos eram responsáveis pela educação das

crianças (KUHLMANN Jr. 1998).

Esta questão envolvendo o educar e a assistência hoje encontra-se problematizada, pelo

menos teoricamente. Afinal, o que se discute hoje é o educar e o cuidar, que acontecem de forma

indissociável, onde um permeia o outro. Cerisara (1999) ainda nos aponta para uma falsa

dicotomia existente entre o educacional e o assistencialismo, ou mais precisamente, entre o

educar e o cuidar. Para a autora, esta falsa dicotomia reside no fato de, mesmo em momentos

onde o profissional que trabalha com crianças lhe proporciona um momento de cuidado, aspectos

educativos estão presentes, assim como em momentos ditos educativos, há uma preocupação em

estar cuidando das crianças pequenas.

Outra questão relacionada ao surgimento das instituições de Educação Infantil é a

mudança da configuração social e econômica no Brasil no fim do séc. XIX. Naquele período, a

industrialização estava em ascensão, fazendo com que as mulheres saíssem de suas casas para

irem trabalhar. A partir disso, surge a necessidade de um local que possa receber estas crianças.

Para ilustrar esta questão, Kuhlmann Jr. (1998) afirma que o “Jardim-de-Infância foi situado

explicitamente no campo de atendimento à infância das classes trabalhadoras” (p.78).

O caráter escolarizante também se fez presente na constituição das instituições de

Educação Infantil. As creches teriam a função de ajudar “a escolarização dos pequenos, ao lhes

fornecer um início à educação” (KUHLMANN Jr., 1998, p. 79). Desta forma, as práticas

pedagógicas eram voltadas para educar as crianças para o futuro mercado de trabalho, tendo em

vista a emergência industrial. Com isto, se desconsiderava o ser criança, impossibilitando à elas

uma educação de acordo com suas necessidades. Traçando um paralelo com as instituições de

hoje, vemos que algumas ainda mantêm uma postura escolarizante, visando preparar as crianças

para a escola.

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Ao fazer esta contextualização histórica acerca da infância, das crianças e das instituições

responsáveis pela sua educação, temos mais subsídios para compreender como estas questões são

tratadas atualmente. E para isso, é necessário fazermos perguntas como: ao pensarmos na

Educação Infantil hoje, o que percebemos sobre a educação das crianças pequenas? Como as

crianças são compreendidas neste contexto?

Ao buscarmos referências sobre o fenômeno da Educação Infantil e da forma como as

crianças são educadas e cuidadas nestas instituições, vemos que muitas coisas diferem em relação

aos tempos passados. Uma delas é o fato de percebermos as crianças como sujeitos de direitos, e

isto se deve refletir nas práticas pedagógicas. Cerisara (2004) afirma que

Se partirmos da compreensão de que não há uma infância, mas infâncias, se não há um padrão único de ser criança, o trabalho a ser realizado com elas não pode ser definido a priori, de forma descontextualizada. Se há diferentes contextos e as crianças são diferentes entre si, nem melhores nem piores, apenas diferentes entre elas, entre elas e os adultos é preciso que a pedagogia a ser realizada também contemple as diversidades das crianças, de cada grupo de crianças nas suas competências, nas suas possibilidades (p.10).

Mas afinal, que crianças são estas? Que infâncias são estas? O que entendemos hoje sobre

as crianças? Ao nos questionarmos sobre estas questões, poderemos ter mais subsídios para

pensar em um trabalho pedagógico voltado para elas.

Arroyo (1994) esclarece que “cada idade não está em função de outra idade. Cada idade,

tem em si mesma, a identidade própria, que exige uma educação própria, uma realização própria

enquanto idade e não enquanto preparo para a outra idade” (p. 90) Desta forma, o autor afirma

ainda sobre a importância de considerar o período da infância

[…] como tempo em si, como vivência em si. Cada fase da idade tem sua identidade própria, suas finalidades próprias, tem que ser vivida na totalidade dela mesma e não submetida a futuras vivências que muitas vezes não chegam. Em nome de um dia chegar a ser um grande homem, um adulto perfeito, formado, total, sacrificamos a infância, a adolescência, a juventude. Hoje não é esta a visão. A visão é que a totalidade da vivência tem que estar em cada fase de nossa construção enquanto seres humanos (idem).

A partir desta afirmação do autor, percebe-se que hoje se busca superar uma visão de

infância como um período de preparação para a vida adulta, na qual a educação voltada para as

crianças busque inserí-las em um mundo adulto com conhecimentos que são importantes para a

vida adulta. A idéia é de possibilitar que as crianças vivenciem a sua infância de maneira plena,

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tendo experiências que vão ao encontro de seus interesses, suas necessidades e que contribuam

para a construção dos mais variados repertórios culturais. Desta forma, as instituições de

Educação Infantil devem privilegiar que as crianças vivenciem este momento de suas vidas como

crianças em si, e não como futuros adultos ou como futuros alunos.

Se partirmos do pressuposto de que as crianças são sujeitos, entendemos também que elas

são capazes de entender, criar, reproduzir e ressignificar a cultura que as cerca, ou seja, elas tem

as suas próprias culturas e as suas próprias manifestações culturais. Coutinho (2002) afirma que

“as manifestações infantis são provenientes de uma cultura própria das crianças. Suas expressões,

nas mais variadas linguagens, decorrem da relação com a cultura que as cerca, ou seja, com os

bens culturais que a sociedade disponibiliza a elas” (p.104). A partir disso, muda-se o paradigma

que considera que as crianças são iguais em qualquer lugar, pois é fato que a infância é

heterogênea, sendo um resultado de suas experiências e vivências individuais dentro de seu

contexto, e que cada criança tem a sua. Ou como afirmam Sarmento e Pinto (1997), “as crianças

têm algum grau de consciência dos seus sentimentos, idéias, desejos, expectativas, que são

capazes de expressá-los e que efectivamente os expressam, desde que haja quem os queira escutar

e ter em conta” (p.65).

Porém, estas culturas infantis não são resultado do acaso. Elas nascem a partir de

experiências concretas das crianças através da ludicidade presente nas brincadeiras das crianças.

Wajskop (1999) afirma que “a brincadeira é um fato social, espaço privilegiado de interação

infantil e de constituição do sujeito-criança como sujeito humano, produto e produtor de cultura e

história” (p.28). Desta forma, percebemos o quanto é importante a brincadeira na vida da criança,

pois é através dela que a criança toma conhecimento de sua própria cultura, dando a ela um novo

significado. Ela é importante também para o seu desenvolvimento psicológico, pois como afirma

Vigotsky (1989), ao brincar, a criança é capaz de ir além de seu próprio desenvolvimento

cognitivo usando o faz-de-conta. O autor cita o exemplo de uma criança que está brincando de

imitar seu irmão de mais idade, tendo atitudes que são próprias deste irmão. No mundo concreto

da criança, talvez ela não conseguisse realizar determinada tarefa que ela consegue realizar no

mundo do faz-de-conta, através da brincadeira. Ao brincar imitando alguém mais velho como o

irmão ou a própria mãe ou pai, a criança desenvolve a chamada zona de desenvolvimento

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proximal, ou zona de desenvolvimento iminente5, conforme afirmou Zóia Prestes (2009). Esta

zona, de certa maneira, irá dar pistas sobre a próxima etapa que a criança poderá desenvolver. Daí

vemos a importância da brincadeira, da ludicidade e da imaginação da criança, pois como nos

aponta Coutinho (2002), “a imaginação infantil é capaz de transformar, de recriar, de

ressignificar a partir do que há no real” (p.114).

Outra questão importante a ser pensada sobre as crianças são as manifestações de suas

outras linguagens (EDWARDS, GANDINI e FORMAN, 1999). Entende-se por outras

linguagens aquelas que são diferentes da linguagem oral, mais fácil de ser compreendida pelos

adultos. Os risos, os choros, os olhares, os movimentos corporais, os gestos, entre outros, são

consideradas outras linguagens que são utilizadas pelas crianças para expressarem-se. Porém, é

preciso compreender que estas linguagens não se restringem apenas às crianças, pois são formas

de manifestação próprias do ser humano (COUTINHO, 2002). Porém, ao valorizarmos estas

outras linguagens, estaremos rompendo com uma visão adultocêntrica que consegue apenas

compreender a linguagem oral, esquecendo-se que existem estas outras dimensões.

A partir destas discussões sobre a importância de se considerar a criança como sujeito, o

papel da ludicidade e das brincadeiras na vida delas e as suas outras linguagens, não pretendemos

esgotar o assunto sobre a maneira como compreendemos a criança hoje, pois são muitos os

aspectos que ainda podem ser abordados, como o papel do brinquedo, a interação entre os pares,

entre outros. Entretanto, estas discussões vistas acima nos ajudam a compreender como a criança

insere-se dentro das instituições de Educação Infantil. E o que se percebe hoje por parte das

instituições e dos professores é a valorização do brincar, da ludicidade, das culturas infantis e das

suas linguagens.

Ostetto (2000) e Rocha (2008) ressaltam a importância de as instituições de Educação

Infantil valorizarem estes aspectos, pois eles fazem parte e contribuem para a construção das

culturas da infância. Segundo Rocha (2008),

5 Segundo Prestes (2009), o termo “proximal” não dá conta de traduzir fielmente o termo original de Vigotsky. Para ela, o termo mais adequado é Zona de Desenvolvimento Iminente, pois nem sempre a criança irá desenvolver determinada potencialidade. Há também a necessidade de destacar qual o significado de Vigotsky para Zona de Desenvolvimento Proximal. Para ele, esta zona “é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes” (1989, p.97).

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O desenvolvimento das experiências educativas [...] depende de uma organização pedagógica cuja dinâmica [...] se paute na intensificação das ações das crianças relativas aos contextos sociais e naturais, no sentido de ampliá-los e diversifica-los, sobretudo através das interações sociais, da brincadeira e das mais variadas formas de linguagem (p.2).

Desta forma, estes aspectos mostram-se fundamentais para o respeito às crianças como

sujeitos de direitos, pois elas encontram nestas manifestações os subsídios necessários para

compreender o mundo cultural e natural ao seu redor. E respeitar estas questões, significa

também compreender que as crianças devem ter a possibilidade de vivenciar estas dimensões

inteiramente.

Agostinho (2005) afirma que “o espaço das instituições de Educação Infantil acolhe a

infância das crianças que nelas estão, temos então de pensá-lo, organizá-lo com o que é próprio

das mesmas, para que tenham a identidade da infância” (p.63). Com isso, entende-se que as

instituições de Educação Infantil devem estar atentas aos desejos e necessidades das crianças,

compreendendo suas especificidades. Se compreendermos que a criança necessita da brincadeira,

os espaços e práticas devem ser organizados de forma a privilegiar e possibilitar que as crianças

de fato brinquem. Se entendermos que a ludicidade é uma dimensão presente na criança, as

atividades e vivências delas devem possibilitar que esta se faça presente. Se compreendermos que

as crianças manifestam-se através de diversas linguagens, os (as) profissionais destas instituições

devem estar abertos e preparados para perceber estas outras linguagens.

As práticas dos (as) professores (as) também devem ser pensadas a partir destas

características. Elas devem dar liberdade a brincadeira, favorecendo o lúdico e o faz-de-conta.

Deve-se também levar em conta o que as crianças indicam a respeito de seus gostos e interesses.

Para isso, a prática do registro é fundamental, pois como afirmam Gandini e Goldhaber (2002),

“a fim de examinar e refletir, é necessário que registremos o que vemos e ouvimos, elaborando

registros significativos das nossas observações” (p.152). Assim, o professor terá mais subsídios

para elaborar atividades e projetos que cheguem mais próximos as realidades infantis e aos seus

interesses, ampliando os seus repertórios culturais. E acima de tudo, o (a) professor (a) deve estar

disposto a ouvir o que as crianças têm a dizer, estabelecendo um diálogo com elas e respeitando

suas diferentes linguagens.

Neste estudo, concordamos com Agostinho (2005) quando ela fala sobre os direitos das

crianças na Educação Infantil. Para a autora, as instituições de Educação Infantil são um espaço

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que privilegia a brincadeira, a liberdade, o movimento e o sonho. Estes são alguns direitos da

criança dentro de espaços educativos de crianças pequenas. Aqui, cabe destacar que considerar

que a creche é um lugar para se movimentar é fundamental para pensarmos em uma educação

integral da criança, sem que se dissocie seu corpo de sua mente, pois “movimentar-se para as

crianças é comunicar-se, expressar-se, interagir com o mundo; é uma forma de linguagem; é

explorar e conhecer o mundo e o próprio corpo, seus limites e possibilidades” (AGOSTINHO,

2005, p. 69). Cabe destacar também que é fundamental que as crianças tenham a sua

subjetividade e a sua singularidade respeitadas.

Diante de toda esta contextualização sobre a infância e as instituições de Educação

Infantil, percebe-se que muitas coisas mudaram ao longo do tempo. E aqui entra uma questão que

vem diretamente ao encontro do tema deste estudo. Será que na prática pedagógica busca-se

respeitar a criança enquanto sujeito integral? Para responder a esta questão, buscou-se neste

estudo contextualizar as discussões envolvendo o corpo e a mente humana enquanto dimensões

indissociáveis, trazendo aspectos históricos desta dicotomia/união, bem como o reflexo destas

idéias na educação. Para isso, foram utilizadas referências que problematizam o corpo e a mente

através de autores já citados anteriormente, como também buscou-se revelar concretamente a

importância de pensarmos uma educação que não fragmente as crianças pequenas.

2.2 Corpo e mente na história: união e/ou dissociação

Na continuidade deste estudo, surge a necessidade de problematizarmos um pouco a

questão da mente e do corpo ao longo da história e nos dias atuais. Com esta discussão, temos um

maior aporte teórico para traçarmos um paralelo entre a educação das crianças pequenas e a sua

relação com o corpo/mente das crianças. Porém, antes de discutirmos estas questões, convém

destacar o que entendemos por corporeidade. Compreendemos que corporeidade se caracteriza

pela maneira de o nosso corpo expressar-se nas suas mais diferentes dimensões, sejam elas

afetivas, sociais, culturais, entre outras. Segundo Gonçalves (1994), “cada corpo expressa a

história acumulada de uma sociedade que nele marca seus valores, suas leis, suas crenças e seus

sentimentos, que estão na base da vida social” (p.14). Assim, compreendemos que nosso corpo

também é construído historicamente através de nossas vivências e experiências, na qual cada

indivíduo tem sua própria maneira de expressar-se corporalmente, o que constitui a sua

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corporeidade. É importante destacar também que esta corporeidade está ligada diretamente a

subjetividade/singularidade dos indivíduos. Esta subjetividade vai além da compreensão que

temos sobre a mente em si, uma vez que em muitos momentos, a mente é vista apenas sob o

aspecto cognitivo. Entretanto, ao falarmos em subjetividade, levamos em conta também aspectos

como as emoções, os sentimentos e as maneiras singulares que o ser humano encontra para

expressar-se enquanto sujeito integral.

Desta forma, consideramos ser fundamental considerar tanto nossa corporeidade quanto

nossa subjetividade de maneira indissociável, pois ambas as dimensões interrelacionam-se e são

construídas através das relações, vivências e experiências que o indivíduo vai construindo ao

longo de sua vida. Desta forma, ao nos referimos sobre corpo e mente neste estudo, estaremos

nos referindo ao seu sentido mais amplo que se refere a corporeidade e a subjetividade,

respectivamente. Dito isto, partimos para uma discussão acerca da relação corpo/mente na

história.

Castro, Andrade e Muller (2006) afirmam que “durante a Idade Média, […] a doença era

atribuída ao pecado, sendo o corpo o lócus dos defeitos e pecados, e a alma, o dos valores

supremos, como espiritualidade e racionalidade” (p.40). Com isso, vemos uma visão diferente

entre corpo e mente na Idade Média, pois, enquanto a mente é valorizada por ser a portadora da

racionalidade e da espiritualidade, o corpo era minimizado e reprimido, pois ele era considerado

como a porta para o pecado, sendo o responsável por tirar toda a divindade da mente.

Santin (2002) também direciona sua visão para este lado ao afirmar que “na antiguidade e

na medievalidade o corpo era apenas o recinto provisório de uma alma aprisionada” (p.58). Desta

forma, entende-se que neste período o corpo estava um patamar abaixo da mente, sendo

considerado apenas a morada desta, de maneira que a alma teria uma continuidade eterna,

enquanto o corpo teria um fim.

Outro autor que constrói sua visão acerca desta reflexão é Rodrigues (1999). O autor

apresenta um retrato sobre como corpo e mente foram vistos na idade medieval, porém apresenta

uma visão diferenciada. Segundo ele, na Idade Média, “espírito e matéria, corpo e alma não se

separavam” (RODRIGUES, 1999, p. 60). Desta forma, vemos que neste período histórico, tanto a

mente como o corpo e a alma eram considerados de maneira unida, ou seja, corpo, mente e alma

de maneira indissociável revelavam a própria condição humana.

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Para ilustrar esta indissociabilidade corpo/mente, Rodrigues (1999) aponta que a tortura

era uma maneira de castigar o corpo, sendo que ao castigá-lo, a alma também era torturada. Desta

forma, a alma poderia ser salva se o corpo fosse submetido aos castigos. Entretanto, Rodrigues

(idem) aponta que após este período nossa sociedade passou a fazer sentido a partir das

dissecções, das separações.

Ponto fundamental para nosso raciocínio, é essa lógica de segregações que doravante atribuirá sentido ao mundo, ditará os princípios que vão presidir as mentalidades e sensibilidades posteriores e que deverão resultar na nossa ciência, na nossa etiqueta, nosso meio ambiente, nossa resistência, nossa postura corporal (RODRIGUES, 1999, p.63).

Assim, percebemos que talvez um dos momentos históricos onde se iniciou a

dicotomização entre o corpo e a mente encontra-se após o período medieval.

O autor vai mais além ao afirmar que esta segregação iniciou-se a partir do pensamento de

Descartes, onde este passa a separar as coisas do mundo, inclusive a mente e o corpo. “Descartes

em suas Méditations foi bem explícito nesta comparação: ‘corpo’ não é senão aquilo que sobra da

vida de uma alma” (RODRIGUES, 1999, p.60). A partir do pensamento cartesiano, ou do

dualismo cartesiano propriamente dito, a sociedade passa a ser compreendida a partir de suas

partes, de uma maneira fragmentada, onde o todo não ajuda na compreensão do mundo, mas sim

a separação deste todo em partes como forma de compreensão do mundo.

Diante das afirmações de Rodrigues (1999), percebemos que o período pós Idade Média

juntamente com o surgimento do pensamento de Descartes foram um divisor de águas em nossa

sociedade, pois a partir destes momentos, o mundo passou a se configurar de uma maneira

fragmentada, mecanizada, onde a totalidade foi separada em partes. Este pensamento foi

impulsionado com o advento do capitalismo, onde este buscava e busca na fragmentação e na

especialização a sua lógica. A produção industrial é feita por etapas, o conhecimento é dividido

por áreas separadas que não interconectam-se, o especialista surge como alguém que sabe

praticamente tudo de um fragmento e o conhecimento torna-se segregado. E esta lógica acaba

influenciando a educação, como veremos no próximo item.

Outro autor que vem afirmar que nossa sociedade passou a ser dicotomizada a partir de

Descartes foi Damásio (1996). Para ele, Descartes cometeu um erro ao separar a mente do corpo.

Ele questiona a famosa frase de Descartes “Penso, logo existo”, afirmando que esta frase

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[...] ilustra exatamente o oposto daquilo que creio ser verdade acerca das origens da mente e da relação entre a mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o ato de pensar como uma atividade separado do corpo, essa afirmação celebra a separação da mente [...] do corpo (DAMÁSIO, 1996, p.279).

A partir desta afirmação, percebemos que o autor defende que corpo e mente não devem

ser tratados separadamente. Descartes e seu pensamento contribuíram para que esta separação

surgisse e ganhasse cada vez mais força, havendo uma valorização do pensamento e da mente

sobre o corpo. A mente e o pensamento podem inclusive existir sem a presença do corpo, pois

este é visto como secundário.

Com o pensamento de Damásio (1996), percebemos que ele é contra o dualismo

cartesiano, apontando que este é responsável pela tendência da sociedade por segregar. Para

Damásio (1996), “é esse o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a

substância corporal, infinitamente divisível, [...] e a substância mental, indivisível” (p.280).

Damásio mantém seu pensamento em oposição à lógica cartesiana. Seus estudos

envolvem as relações entre a mente e o corpo através de um viés biológico, porém sem

desconsiderar outros aspectos. Ele defende que corpo e mente não podem ser pensados de

maneira separada, pois eles estão em constante diálogo entre si e com o mundo. “O organismo

constituído pela parceria cérebro-corpo interage com o ambiente como um conjunto, não sendo a

interação só com o corpo ou só com o cérebro” (DAMÁSIO, 1996, p.114).

Para este autor, a interação entre corpo e mente é intensa, e é a partir dela que o

organismo interage com o ambiente que rodeia o ser humano. Ao estar em contato com o

ambiente, mente e corpo estão em relação mútua, “trabalhando” juntos para que o mundo seja

assimilado, compreendido e vivido. Por outro lado, o ambiente promove estímulos ao ser humano

que só podem ser entendidos através da uma perspectiva integral, onde corpo e mente

permanecem indissociáveis (DAMÁSIO, 1996).

Damásio (1996) e Rodrigues (1999) são autores que contribuem para uma superação do

pensamento dualista existente em nossa sociedade. Com eles, podemos perceber que foi a partir

do pensamento de Descartes que surgiu a dicotomia entre corpo e mente presente em muitos

aspectos até os dias atuais. É claro que aqui não afirmamos que foi somente após a época

medieval e a partir do pensamento de Descartes que passou a se configurar esta segregação, pois

seriam necessários mais estudos para compreender estas questões. Porém, esta perspectiva nos

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ajuda a compreender uma das principais influências da dicotomização presente em nossa

sociedade.

Desta forma, além de Descartes, outra aspecto que influenciou as fragmentações foi o

capitalismo. E no caso da dicotomia envolvendo a mente e o corpo, este sistema contribuiu para

supervalorizar a mente em detrimento do corpo, ou seja, o valor que o capitalismo atribui a uma

pessoa depende diretamente da capacidade que esta tem de pensar, e a partir do seu pensamento,

contribuir para a consolidação do sistema. E além disso, desvaloriza-se também os sentimentos e

as emoções como aspectos importantes da vida do ser humano. Desta forma, o corpo acaba

ficando de lado, desvalorizado, pois este não é capaz de produzir. Ele é apenas considerado o

suporte da mente. Como afirma Restrepo (1998), “a cultura ocidental impõe ao nosso corpo uma

relação bastante funcional, produtiva e automatizada, onde os laços afetivos com o ambiente

passam em grande parte despercebidos” (p.27). Ou seja, nossa corporeidade tem muito mais uma

função técnica e reprodutiva do que capaz de criar e expressar algo.

Prado Filho e Trisotto (2008) nos oferecem um outro olhar acerca das relações de poder

que o corpo sofre, afirmando que

Nas sociedades modernas extinguem-se os espetáculos de poder centrados na destruição de corpo – a modernidade, que é o tempo do capital, valoriza economicamente os corpos, investindo-os de produtividade, porque precisa de grandes massas de corpos aptos para o trabalho e ao mesmo tempo dóceis ao poder (p.118).

Desta forma, percebemos que o corpo, além de ser destinado apenas ao trabalho técnico,

ainda passa por uma intensa docilização, de forma que nos acostumemos a usá-lo para o trabalho.

Para ilustrar um pouco esta questão da fragmentação do ser humano e da valorização da

mente e da racionalidade sobre o corpo e os sentimentos e emoções, Silveira e Furlan (2003)

afirmam que, “sendo a alma o depositante de verdades e de discursos, o corpo é, por sua vez, o

depositário de marcas e de sinais que nele se inscrevem e que nele se cravam, de acordo com as

efetividades de tais embates, que têm em tal corpo seu 'campo de prova' e de constante

confirmação e exercício” (p.187). A partir desta afirmação, percebemos que o corpo está

subjugado a uma espécie de depósito da mente, onde nele são colocadas as marcas e as verdades

determinadas pela mente.

Outra questão relacionada ao corpo, que emerge do capitalismo, diz respeito ao fato de o

corpo ser percebido apenas sob aspectos biológicos, ou seja, o corpo do indivíduo passa a ser

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alvo de estudos e intervenções destinadas a tornar este corpo mais sadio, mais capacitado para o

trabalho. “O corpo tem sido tradicionalmente colocado em nossa cultura como objeto da biologia

e da medicina, reconhecidas entre nós como ciências especializadas no conhecimento e na

intervenção sobre aquilo que se denominou de natural” (PRADO FILHO e TRISOTTO, 2008, p.

115). Esta realidade pode ser percebida ainda hoje, pois cada vez mais nosso corpo é alvo de

intervenções que buscam melhorar sua aparência, tendo em vista que o capitalismo determina

que, quanto mais “bela” for a pessoa, mais chances de esta fazer parte do sistema. Isto acaba

fazendo com que as pessoas busquem alienadamente o corpo ideal, esquecendo que a pessoa

integral é capaz de outras possibilidades e de outras vivências.

Os autores ainda vão mais longe e esclarecem que a medicina também impulsionou esta

segregação na sociedade contemporânea. “O corpo objeto tradicional das modernas ciências é o

corpo biológico, natural, sede de processos fisiológicos, solo firme, positivo, onde se instala a

doença” (PRADO FILHO e TRISOTTO, 2008, p.116). Ou seja, a medicina tradicional constitui-

se como uma ferramenta fundamental desta sociedade no sentido de fabricar os corpos,

sujeitando-os a um tratamento cada vez mais fragmentado. Exemplo disso são as diversas

especialidades médicas, onde cada uma é responsável por uma parte do corpo, como se o ser

humano, no momento em que estivesse com algum problema no pé, deixasse de ser dotado de um

corpo inteiro.

Diante de tudo isso, percebemos que o capitalismo, de certa maneira, configura uma

estrutura onde a mente e o corpo são valorizados, porém, de maneira separada. A mente é

valorizada por ser capaz de construir cada vez mais conhecimentos, e o corpo é valorizado

porque ele dará o suporte técnico para isso. O problema é que ambos, além de serem percebidos e

compreendidos dicotomicamente, estão subjugados ao capitalismo, contribuindo para a

propagação do sistema. Outro problema reside no fato de se desconsiderar que o ser humano

possui uma corporeidade e uma subjetividade próprias, que são construídas através das diversas

experiências deste ser humano. Como exemplo disto, podemos citar o caso de um escritor que,

apenas pela sua capacidade intelectual, é valorizado pelo sistema capitalista. Ou então um atleta,

que apenas usando o seu corpo, também se destaca em meio a este sistema. Em ambos os casos,

desconsidera-se que eles são seres de corpo inteiro, ou seja, possuem uma subjetividade e uma

corporeidade que o constituem enquanto sujeitos.

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À medida que aprofundamos nosso olhar sobre o capitalismo e sobre a sociedade

contemporânea, percebemos que existem outras estruturas e paradigmas que acabam por separar

a mente do corpo das pessoas. Dentre elas, a maneira como se buscou submeter os nossos corpos

as mais diferentes normas e regras influenciaram diretamente a nossa corporeidade e a maneira

como nosso corpo é visto e tratado hoje.

De certa maneira, o que a perspectiva capitalista acaba fazendo é tirar das pessoas a

capacidade de vivenciarem a si mesmos de maneira integral e livre, pois através da valorização

de um ou de outro, somos oprimidos enquanto sujeitos integrais.

Esta segregação também acaba nos afetando enquanto sujeitos que possuem a sua

corporeidade, pois acabamos tendo nosso corpo reprimido pelo sistema, ficando impossibilitado

em muitos momentos de expressar nossa própria corporeidade de maneira livre. Para ilustrar esta

questão, Gonçalves (1994) afirma que “nas sociedades mais estruturadas, em que a divisão do

trabalho é acentuada, são menores a espontaneidade e a expressividade corporal, que estão na

base da vida social” (p.15). Com isso, percebemos que o sistema capitalista, ao determinar toda a

sua lógica e valorizar o corpo apenas como um instrumento técnico, acaba nos tirando a

possibilidade de vivenciarmos nosso corpo de uma maneira livre, e com isso nossa criatividade e

nossa subjetividade acabam ficando de lado.

Este mesmo sistema vem interferir em nossa própria subjetividade, uma vez que

desvaloriza aspectos relacionados aos sentimentos e emoções no ser humano. Afinal, se vivemos

em uma sociedade que preza a racionalidade, a produtividade, o saber fazer apenas, aspectos

como os sentimentos do ser humano acabam ficando em segundo plano, pois se somos seres

capacitados para produzir, o que sentimos acaba não sendo valorizado. Ou seja, nossa mente é

importante apenas para pensar e produzir, não para expressar sentimentos.

Gonçalves (1994) também contribui no sentido de nos ajudar a compreender a influência

do capitalismo sobre o corpo e a mente das pessoas, percebendo-os de maneira segregada. Para

ela,

[…] a civilização ocidental, […] tem em seu cerne a tendência de uma visão dualista do homem como corpo e espírito. Seu processo de desenvolvimento, realizado por meio de tensões e oscilações históricas, caracteriza-se por uma valorização progressiva do pensamento racional em detrimento do conhecimento intuitivo, da razão em detrimento do sentimento, e do universal em detrimento do particular (idem, p.16).

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Diante disto, percebemos o quanto o sistema capitalista contribui para que nossa

sociedade e os sujeitos pertencentes a esta sejam cada vez mais oprimidos enquanto seres que

possuem corporeidade e subjetividade próprias, seres que encontram na união de seu corpo e sua

mente uma maneira de constituírem-se enquanto sujeitos livres, criativos e críticos.

Medina (1998) constrói seu pensamento acerca do corpo baseado em uma visão Marxista.

Para o autor, “o nosso corpo, concretamente e na forma como se representa e é percebido […],

acompanha os matizes fornecidos pelo sistema dominante. Na relação corpo-sociedade, há um

peso decisivo da estrutura sócio-econômica que define, de certa forma, os limites da nossa

estrutura” (idem, p.23). Desta forma, percebemos que nossa corporeidade é influenciada

diretamente pela estrutura dominante. E neste caso, os dominados acabam sendo obrigados a

construírem-se corporalmente de acordo com os padrões que o sistema capitalista determina

como sendo o mais adequado.

O autor afirma ainda que “Marx nos dá uma contribuição inestimável para avançarmos na

compreensão das sociedades capitalistas. Afinal, ao descobrir a verdade das relações sociais do

trabalho, ele indiretamente nos revela os corpos” (MEDINA, 1998, p.60). A maneira como o

corpo e a mente são tratados quando observamos a sociedade capitalista e as relações de trabalho

que esta nos impõe, é de certa forma, a valorização do corpo apenas como instrumento de

trabalho, como uma máquina que está a serviço da produção, enquanto que a mente comanda esta

máquina e é valorizada apenas sob aspectos racionais, cognitivos. Desta forma, a relação que se

estabelece entre mente/corpo diante de uma perspectiva capitalista é hierárquica, uma vez que o

corpo normalmente é comandado pela mente.

Diante do que vimos até este momento a respeito das influências do pensamento

cartesiano e do sistema capitalista sobre a nossa corporeidade, o que se percebe é que a medida

que nossa sociedade foi se constituindo historicamente, o ser humano teve cada vez menos

liberdade de viver enquanto um sujeito integral.

Almeida (2003) e Vaz (2004), construindo seus estudos sobre o corpo baseados no

pensamento de autores da Escola de Frankfurt, especialmente Theodor W. Adorno e Max

Horkheimer, nos trazem algumas contribuições importantes. Para Almeida (2003), a

racionalidade científica, que buscou compreender a vida e seus fenômenos através da razão,

contribuiu fortemente para a submissão de nosso corpo em detrimento de nossa mente, tornando-

o cada vez mais controlado. Para a autora, “as ingerências científico-racionais se unem a forças

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econômicas e passam a determinar os caminhos a serem percorridos pelo corpo,

transubstanciando-o naquilo que ele não é: um corpo unicamente biológico, tecnológico,

mecânico, restrito” (ALMEIDA, 2003, p.57).

À medida que o ser humano vai buscando a sua racionalidade, cada vez mais nosso corpo

é subjugado a práticas e rituais que visam dominá-lo. Esta racionalidade humana, que em seu

discurso busca tornar a sociedade mais esclarecida e apta para ser livre, acaba por nos tornar

escravos dela mesma à medida que acreditamos que para sermos livres devemos recorrer a

práticas que muitas vezes fazem até com que nosso corpo tenha que sofrer, tenha que se

sacrificar. Sob a luz deste “esclarecimento”, acabamos nos desumanizando e banalizamos a dor

(ALMEIDA, 2003; VAZ, 2004). Como exemplo, podemos citar a intensa busca pelo corpo ideal,

na qual algumas pessoas acabam utilizando-se de métodos que muitas vezes causam dor, ou então

de movimentos mecanizados (academias de ginástica) que fazem com que alcancemos o corpo

“ideal”. Porém, com isso, nos esquecemos que somos seres que possuem sentimentos, uma mente

e um corpo, ou sejam uma corporeidade e subjetividade próprias que nos dão a possibilidade de

vivenciarmos nosso corpo de uma maneira livre e autônoma em busca de nosso bem estar. Em

outras palavras, a racionalidade moderna contribui para a “subjugação e sacrifício do corpo em

favor de uma racionalidade absoluta e instrumental” (ALMEIDA, 2003, p.66).

De certa forma, a racionalidade faz com que o ser humano busque dominar a natureza e

superá-la, e com isso o ser humano busca dominar o que há de natureza em si mesmo (seu

próprio corpo), “nem que para isso seja preciso renegar (e alienar-se de) sua própria constituição

fundamental” (ALMEIDA, 2003, p.67).

Nesta busca de dominar a natureza e o nosso corpo, acabamos por criar uma falsa

corporeidade. Falsa pelo fato de que, em busca de um domínio cada vez mais rígido sobre o

nosso corpo, nossas vivências corporais acabam ficando limitadas ao que determina a

racionalidade humana, ou seja, são gestos e movimentos mecanizados que visam dominar o

corpo, porém incapazes de proporcionar uma reflexão sobre estes movimentos, incapazes de

gerar alguma sensação. Com isso, acabamos por desconhecer e desconsiderar que nosso corpo é

capaz de nos fornecer inúmeras possibilidades e diferentes vivências, fundamentais para

constituir nossa verdadeira corporeidade e para nos constituir enquanto sujeitos. O que a

racionalidade acaba por fazer é que nos tornemos apenas objetos de nossa corporeidade, e não

sujeitos desta (ALMEIDA, 2003; VAZ, 2004).

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Almeida (2003) traz outra contribuição para refletirmos acerca da influência da

racionalidade sobre o nosso corpo ao ressaltar que

O que se apresenta em relação ao corpo é um processo de eterno logro para privilegiar um tipo de racionalidade que está acima dos homens, de seus sentimentos, da felicidade. A relação digna com o corpo permanece na obscuridade, é permanentemente recalcada, perdendo chances de contribuir para à formação de relações humanas verdadeiramente justas. A relação digna com o corpo é continuamente e perversamente malograda, esquecida, destituída de importância humanística, ética. O corpo permanece adormecido no que diz respeito as suas potencialidades emancipatórias, suas possibilidades de reconciliação, reduzindo-se a uma fungibilidade inacreditável. O sofrimento, a dor, as pulsões de morte são frequentemente colocadas no 'palco somático', no entanto, atrás das cortinas, enquanto, diante da platéia, é encenado o eterno espetáculo da ciência, do lucro, do consumismo, da razão instrumental, da infelicidade da vida, travestidos com a fantasia da beleza e da alegria (p.70).

Assim como a racionalidade e a busca pelo esclarecimento contribuem para que nosso

corpo vivencie as mais diferentes sensações de sofrimento, nossos sentimentos também

permanecem desvalorizados, pois enquanto somos instigados a construir um corpo ideal, belo, os

sentimentos que este sofrimento acaba gerando permanecem ocultos e reprimidos.

Diante das contribuições que os autores acima nos trazem sobre a questão do corpo sob a

perspectiva de Adorno e Horkheimer, bem como as reflexões anteriores que envolvem o próprio

capitalismo e o dualismo cartesiano, percebemos que o ser humano, enquanto um sujeito que é

constituído de um corpo e uma mente que se relacionam de maneira recíproca, em muitos

momentos acaba sendo fragmentado. Ora o corpo é valorizado e a mente fica de lado, ora a mente

é elevada ao maior status, ficando o corpo abaixo dela. A busca maior pela racionalidade e pelo

esclarecimento fez com que a corporeidade e a subjetividade do ser humano ficassem subjugados

a uma mente racionalizada, fazendo com que nossos corpos servissem apenas como um suporte

técnico, desconsiderando que ele contribui para a formação integral do homem.

Entendemos que tanto a subjetividade quanto a corporeidade dos sujeitos contribuem de

maneira significativa para a construção dos conhecimentos e do próprio ser humano.

Desconsiderar o corpo neste processo é desconsiderar a corporeidade, que faz com que o nosso

corpo “[…] ao navegar por tempos e lugares diferentes, passa a representar não apenas aquilo que

se revela biológico no homem, mas suas paixões, sensibilidades, saberes, juízos, marcas,

recalques, trejeitos culturais, liberdades, imposições” (ALMEIDA, 2003, p.56).

De certa forma, a lógica racionalizada de nossa sociedade muitas vezes não permite que

nosso corpo faça parte dos processos de construção do conhecimento e dos sujeitos. Isto se reflete

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na própria educação e nas escolas, que muitas vezes acabam por valorizar aspectos cognitivos em

detrimento de nosso corpo.

O que se entende aqui, é que não se deve ter apenas uma visão de corpo a partir de uma

perspectiva cultural e histórica, deixando de lado seus aspectos biológicos. Mas sim,

compreender que nosso corpo se constrói a partir das relações entre os aspectos biológicos e

culturais, ou como nos esclarece Daólio (1995), é muito difícil compreendermos os limites entre

o natural e o cultural, de forma que ao pensarmos no corpo, ambos os aspectos se fazem presentes

em sua constituição integral, assim como a mente também faz parte deste corpo e relaciona-se

constantemente com ele. É necessário também superarmos uma visão que desvalorize os

sentimentos e as emoções dos seres humanos em detrimento da racionalidade.

2.3 Corpo/mente na educação: mobilidade como indisciplina e imobilidade como disciplina?

Neste subcapítulo, procuramos refletir um pouco sobre as influências que o dualismo

cartesiano, o capitalismo e o racionalismo exercem sobre a atual educação, bem como buscamos

problematizar como as questões envolvendo o corpo e a mente são percebidas quando pensamos

na infância e nas instituições de Educação Infantil. E aqui cabe uma pergunta inicial: será que nas

instituições de Educação Infantil há espaço para que as crianças vivenciem o seu corpo e sua

mente de maneira integral?

Antes de discutir as questões referentes ao corpo e a mente na Educação Infantil, é

importante destacar rapidamente o que compreendemos que seja uma Educação Infantil que

respeite as crianças como sujeitos de direitos. Considera-se que a criança é um sujeito de direitos,

capaz de produzir e reproduzir a cultura que a cerca, bem como dar um outro significado a ela.

Não consideramos a criança como um ser homogêneo, mas sim heterogêneo, de forma que

existem as diferentes culturas infantis. Entendemos também que a criança encontra

principalmente na brincadeira, nas suas diferentes linguagens e nas suas interações os subsídios

necessários para que a produção destas culturas infantis aconteça. A infância também é um

período que deve ser vivido em sua plenitude, sem a preocupação de adquirir conhecimentos para

tornar-se um futuro adulto, mas sim, um período que possui as suas singularidades e que é

diferente do adulto. Portanto, as instituições de Educação Infantil e os (as) professores (as) devem

priorizar e possibilitar que as crianças tenham liberdade para brincar, interagir e expressar suas

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linguagens, bem como devem encontrar nestas manifestações uma forma de ampliar os

repertórios culturais e os conhecimentos das crianças. E, da mesma maneira que as consideramos

sujeitos de direitos, acreditamos ser fundamental que a sua educação e o seu cuidado aconteçam

de forma que tanto o corpo como a mente da criança possam fazer parte destes momentos de

maneira recíproca, unida. Dito isto, partimos para a discussão envolvendo o corpo e a mente na

educação e na Educação Infantil.

No item anterior, percebemos que a lógica capitalista e o advento do racionalismo

científico estão entre os principais responsáveis por promover uma fragmentação entre o corpo e

a mente, dando a eles um status diferenciado entre si. Esta lógica acaba influenciando a educação.

Segundo Mendes e Nóbrega (2004), “a educação, ao se pautar nos pressupostos racionalistas da

modernidade, tenta instituir códigos morais que ditam as condutas, reprimindo, dessa maneira, as

possibilidades diversas de expressão do corpo” (P.125). Com isso, nos processos educacionais,

geralmente acaba-se segregando a mente e o corpo, tendo em vista que o corpo é visto sob uma

perspectiva instrumental que deve ser tratado apenas como uma máquina. E a mente, neste

processo, fica em primeiro plano, e na maioria das práticas pedagógicas, o objetivo é apenas

transformar a mente dos indivíduos.

Desta forma, o corpo acaba ficando inferiorizado à mente, ou seja, “o corpo e o

movimento, apesar de valorizados nos processos educativos, ainda são considerados elementos

acessórios na formação do ser humano”. (NÓBREGA, 2005, p.603). Este é um ponto

fundamental para compreendermos a dicotomia corpo/mente na educação e na Educação Infantil,

pois a partir do momento em que o racionalismo considera o corpo apenas como um instrumento

e a mente como o principal objeto dos processos educativos, ocorrem uma série de implicações

para a prática pedagógica, e a forma como corpo e mente são percebidos nas instituições

educacionais segue esta lógica fragmentadora. E quem principalmente sofre neste processo é o

corpo e a corporeidade dos (as) educandos (as).

Strazzacappa (2001) nos traz uma contribuição interessante ao afirmar que

O movimento corporal sempre foi dentro do espaço escolar uma moeda de troca. A imobilidade física funcionava como punição e a liberdade de se movimentar como prêmio. Estas atitudes evidenciam que o movimento é sinônimo de prazer e a imobilidade, de desconforto (p. 65).

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A partir desta afirmação, podemos perceber que, em muitos casos, o corpo e os

movimentos são reprimidos quando os educandos estão envolvidos em uma atividade dita

cognitiva. Da mesma forma, o (a) professor (a) acaba possibilitando que estes educandos possam

vivenciar seu corpo apenas como moeda de troca, ou seja, se eles fizerem as atividades em

silêncio e paradas, o prêmio é a liberdade de se movimentar, de vivenciar o seu corpo. Nestas

práticas, percebe-se claramente que a lógica racionalista privilegia a mente em detrimento do

corpo.

Outra implicação que esta situação acaba gerando reside no fato de a escola acabar

considerando que os momentos dentro da sala de aula são os momentos sérios, e os momentos de

liberdade ou fora da sala, ou os que não envolvem que a criança fique sentada, são considerados

como momentos desprovidos de seriedade e de aprendizado (STRAZZACAPPA, 2001). Esta

lógica pode algumas vezes ser percebida nas instituições de Educação Infantil, onde o prêmio

para as crianças irem ao parque é o bom comportamento dentro da sala, assim como os momentos

que a criança vivencia no espaço fora da sala, são pouco considerados como importantes. Isto

acaba gerando, além de uma separação entre corpo e mente, uma outra dicotomia, que é a que se

refere a espaços internos e espaços externos.

No fundo, o que acontece em alguns momentos em muitas instituições, é que a

mobilidade é considerada como indisciplina e a imobilidade é considerada disciplina. “A noção

de disciplina na escola sempre foi entendida como 'não movimento'. As crianças educadas e

comportadas eram aquelas que simplesmente não se moviam” (STRAZZACAPPA, 2001, p.70).

Outro autor que contribui nesta discussão é Restrepo (1998). Para este autor,

A escola, autêntica herdeira da tradição audiovisual, funciona de tal maneira que a criança, para assistir à aula, bastar-lhe-ia um par de olhos, seus ouvidos e suas mãos, excluindo para sua comodidade os outros sentidos e o resto do corpo, se pudesse fazer cumprir uma ordem dessas, a escola pediria aos seus alunos que viessem apenas com seus olhos e ouvidos, ocasionalmente acompanhados da mão, em atitude de segurar um lápis, deixando o resto do corpo bem resguardado em casa (p.32).

Muitas vezes, os corpos das crianças (ou partes deles) são requisitados apenas com a

finalidade de serem um mero instrumento ou objeto para facilitar o aprendizado. E como se não

bastasse uma fragmentação de corpo e mente, o próprio corpo da criança é fragmentado, pois

apenas as mãos, olhos e ouvidos são importantes para o aprendizado. As pernas e os pés ficam de

fora deste processo, afinal, é com eles que a criança muitas vezes irá se movimentar.

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Desta forma, o que acontece nas instituições é um reflexo da racionalização de nossa

sociedade. Sob esta ótica racional/capitalista, a mente é a maior valorizada nos processos

educativos, ficando o corpo apenas para ser domesticado, docilizado. Para Gonçalves (1994),

“com o acelerado progresso das ciências, a partir do século XVII, o homem passou a considerar a

razão como o único instrumento válido de conhecimento, distanciando-se de seu corpo,

visualizando-o como um objeto que deve ser disciplinado e controlado” (p.20).

Foucault (1987) é um autor que traz uma discussão interessante a respeito da docilização

e do disciplinamento dos corpos. Para ele, “o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo

corpo produtivo e corpo submisso” (idem, p. 26). De certa forma, esta questão pode ser percebida

em alguns momentos nas próprias instituições de educação, pois o corpo só é valorizado se for

submisso aos processos cognitivos.

O autor também discute um pouco os processos de disciplinamento. Segundo ele, os

“métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição

constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos

chamar as disciplinas” (FOUCAULT, 1987, p. 118). Podemos perceber este disciplinamento à

medida que o corpo é regulado de acordo com as necessidades do momento. Se o professor

deseja que as crianças terminem logo uma atividade, ele oferece como prêmio a liberdade do

parque para que estas crianças terminem a tarefa. Da mesma maneira, quando alguma criança

utiliza seu corpo e seus movimentos em algum momento em que não deveria (sob a ótica dos

professores), isto é considerado uma indisciplina, e como punição ela é proibida de ir ao parque.

Nestas situações, estabelece-se uma relação de dominação/disciplinamento sobre o corpo, onde

este só pode “entrar em cena” no momento em que for permitido.

O corpo e a mente dentro das instituições de educação exercem diferentes papéis.

Normalmente os educandos não tem liberdade de expressar a sua corporeidade, sendo somente

exigida a sua racionalidade. Esta supervalorização da racionalidade acaba por fazer com que estas

instituições fragmentem os educandos, não dando a eles a possibilidade de vivenciarem-se

enquanto sujeitos integrais.

Mas será que é esta a realidade que encontramos nas instituições de Educação Infantil?

Será que as crianças também são fragmentadas em corpo e mente? Será que elas tem a

oportunidade de vivenciar e construir a sua corporeidade e sua subjetividade? A partir do

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momento em que consideramos as crianças sujeitos de direitos, as relações de cuidado e educação

destas instituições não deveriam fragmentá-las.

Restrepo (1998) afirma que,

[…] ao nascer, o corpo infantil já se encontra aprisionado numa densa rede de sinais que o esperam, o berço preparado pela mamãe, o rosado que decora o quarto da menina, os brinquedos que socializam a criança, o nome que a integra a tradição de seus pais, tudo isso são deliciosas armadilhas para capturar os gestos inexperientes. Nem mesmo neste instante precoce da vida o corpo é livre (p.106).

Toda esta perspectiva dicotomizante de nossa sociedade racionalista acaba nos atingindo

desde que somos crianças. Mas será que as instituições de Educação Infantil estão contribuindo

para isso?

Finco (2007) afirma que “em muitas creches e pré-escolas brasileiras, as crianças ainda

são colocadas para brincar sentadas em cadeirinhas e mesas, as quais, ao mesmo tempo em que

propiciam o brincar, acabam controlando seus corpos” (p.95). O que se percebe é que as

instituições de Educação Infantil, em muitos momentos, acabam desconsiderando que a criança

tem um corpo, e este corpo acaba muitas vezes ficando limitado em suas possibilidades. A

criança fica privada de constituir e vivenciar a sua corporeidade.

Nos espaços coletivos de Educação Infantil, a brincadeira é um dos momentos mais

esperados por parte das crianças. A brincadeira, que contribui de maneira muito significativa para

que a criança assimile a cultura e o mundo ao seu redor, envolve na maior parte do tempo o

movimento das crianças. Porém, os espaços das instituições de Educação Infantil muitas vezes

organizam-se de forma que o movimento não seja permitido. Desta forma, a criança fica restrita

quanto a possibilidade de vivenciar seu corpo e a própria brincadeira.

Muitas vezes, o que acaba acontecendo nas instituições de Educação Infantil, é o fato de

se considerar o corpo da criança apenas sob um aspecto biológico, ou seja, o corpo da criança só

recebe atenção nos momentos que envolvem algum tipo de cuidado como trocar ou cuidar de

algum ferimento. Buscando romper com esta questão, Simão (2007) afirma que “a dimensão

corporal também pode ser vista a partir do seu significado no contexto histórico, social e cultural

no qual está inserido e não somente sob uma perspectiva natural ou biológica que tem se

consolidado no âmbito científico” (p.8). Sendo assim, surge a necessidade de romper com esta

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lógica que considera o corpo da criança apenas sob um aspecto biológico, afinal, além de ter este

aspecto, este corpo é também social, cultural e histórico.

Outra questão que muitas vezes se torna evidente nos espaços de Educação Infantil é a

distinção entre a sala e o parque. Muitas vezes, a sala é o ambiente onde a criança está apenas

presente cognitivamente, enquanto o parque se torna o lugar de liberar as energias acumuladas,

de vivenciar o corpo. Nestes espaços da sala, o corpo da criança acaba sendo privado, como se

este não pudesse contribuir para o desenvolvimento da criança. Ou seja, há uma perspectiva de

privar os movimentos nos espaços da sala, possibilitando-o apenas no parque.

Desta forma, não possibilitar que as crianças vivenciem seu corpo nos momentos que ela

demonstra interesse para isso, é desconsiderar que ela é um sujeito de direitos. Não buscamos

afirmar com isso que a criança possa se movimentar quando bem entender, pois isto seria uma

volta ao escolanovismo, mas sim, o professor deve perceber que as crianças em muitos momentos

tem vontade de vivenciar seu corpo e deve valorizar esta necessidade.

Valorizar e possibilitar que a criança vivencie sua corporeidade é fundamental, pois como

afirma Sayão (apud SIMÃO, 2007), “o movimento de fato ainda precisa se consolidar como

direito das crianças pequenas adquirindo o reconhecimento pelos adultos que atuam em creches e

pré-escolas porque eles se constituem em linguagens peculiares da infância” (p.13). Se uma das

funções da Educação Infantil é ampliar as experiências das crianças, bem como seus repertórios

culturais e seus conhecimentos, é fundamental compreender que a criança, através de seu corpo,

tem a possibilidade de vivenciar e assimilar muitas destas experiências, ou seja, seus repertórios

são ampliados através de seu corpo também. Ou como nos esclarece Simão (2007) “os processos

de apropriação e produção cultural, através dos quais as crianças participam da vida social nas

instituições educacionais ou fora delas, também se dão sobre sua dimensão corporal” (p.9).

Entretanto, o que acontece em muitos momentos nas mediações pedagógicas com as

crianças é uma busca constante por disciplinar seus corpos. Como a perspectiva racionalista

valoriza sobretudo a mente e a razão, na Educação Infantil,

Em uma perspectiva tradicional de socialização, o corpo geralmente é compreendido como o orgão das paixões, dos desejos, do cansaço, das dores, dos sofrimentos, dasemoções fracas e fortes, da fome, da sede, da 'preguiça', do 'agito' e da 'desordem'. Desse modo, no imaginário educacional, é consenso a idéia de que a socialização deve contribuir para que ele seja contido, educado, disciplinado para, em uma visão adultocêntrica, chegar aos padrões de comportamento corporal dos adultos (SIMÃO, 2007, p.14).

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Muitas vezes, a postura adultocêntrica acaba por considerar que para as crianças, o

importante é apenas o aspecto cognitivo, e as práticas pedagógicas caminham neste sentido,

ficando a dimensão corporal da criança restrita apenas ao parque. Desta forma, a linguagem do

movimento ou a linguagem corporal da criança é deixada de lado. Sayão (2002) contribui nesta

discussão ao afirmar que

Esquecemos gradativamente como, enquanto crianças, construímos um sistema de comunicação com o meio social que, necessariamente, integra o movimento como expressão. Com este esquecimento, passamos, então, a cobrar das crianças uma postura de seriedade, imobilidade e linearidade, matando pouco a pouco aquilo que elas possuem de mais autêntico – sua espontaneidade, criatividade, ousadia, sensibilidade e capacidade de multiplicar linguagens que são expressas em seus gestos e movimentos. Os adultos tendem a exercer uma espécie de dominação constante sobre as crianças, desconhecendo-as como sujeito de direitos, até mesmo não reconhecendo o direito de movimentarem-se (p.57).

Muitas vezes, o professor, ao adotar uma postura adultocêntrica, desconsidera que os

movimentos são de fundamental importância para as crianças, pois eles constituem-se em uma

linguagem fundamental delas, na qual elas podem expressar-se, conhecer o mundo ao seu redor e

conhecer a si mesmas enquanto seres de corpo inteiro.

Diante do que foi exposto até aqui, o que se percebe é que as práticas pedagógicas nos

espaços coletivos de Educação Infantil muitas vezes separam a mente do corpo das crianças,

valorizando especialmente a mente. A partir dessa lógica racional, o corpo das crianças é

reprimido, disciplinado e algumas vezes castigado com a imobilidade. Algumas posturas como

premiar o bom comportamento das crianças com a possibilidade de ir ao parque, ou condicionar a

ida ao parque apenas após o término de outra atividade, ou inibir que a criança expresse sua

corporeidade dentro de sala, guardam em si uma postura dicotômica, como se a criança só tivesse

condições de se desenvolver cognitivamente a partir do momento que seu corpo permanecer

parado.

Desta forma, surge a necessidade de romper com este paradigma. A importância desta

mudança reside no fato de que a criança se constitui enquanto sujeito cultural e histórico através

de suas experiências, e estas experiências só podem ser vividas em sua plenitude a partir do

momento em que, tanto a mente quanto o corpo dela estiverem presentes. De certa forma, a

mente já esta presente, faltando um maior espaço para o corpo. Segundo Nóbrega (2005),

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Pensar o lugar do corpo na educação em geral […] é inicialmente compreender que o corpo não é um instrumento das práticas educativas, portanto as produções humanas são possíveis pelo fato de sermos corpo. Ler, escrever, contar, narrar, dançar, jogar são produções do sujeito humano que é corpo. Desse modo, precisamos avançar para além do aspecto da instrumentalidade (p.610).

Outro aspecto fundamental neste processo é superar o caráter instrumental que o corpo

assume na educação. Valorizar o corpo não é valorizar a mão que segura o lápis, ou o ouvido que

escuta o professor, mas sim valorizar o corpo que interage com o mundo ao seu redor, e que

através desta interação, assimila-o (MENDES e NÓBREGA, 2004). É também considerar que

este corpo é capaz de expressar-se através de diferentes linguagens, na qual a linguagem do

movimento é muito presente e diz muito sobre os desejos e necessidades das crianças.

Batista (2003) ressalta que

Nós, professores, ainda temos dificuldade de compreender e legitimar as diferentes formas de as crianças viverem e atuarem no mundo. Suas práticas, marcadas pelas expressões das múltiplas linguagens, [...] sempre foram tratadas como problema [...]. Nesta perspectiva, educar tem como objetivo frear a imaginação, a fantasia, controlar o movimento (p.45).

Controlar o movimento. Esta é uma lógica que muitas vezes está presente nas instituições

de Educação Infantil. Muitas vezes os professores tem dificuldades de lidar com crianças que se

movimentam e que se expressam através de seu corpo. Entretanto, esta também é uma das

linguagens das crianças, através da qual ela pode expressar inúmeros desejos, tais como ir ao

parque, estar com vontade de brincar, querer sair do ambiente da sala, entre outras.

Ora, se compreendemos que as manifestações de diferentes linguagens por parte das

crianças revelam muito do que elas estão sentindo e desejando, a linguagem de movimentos

também revela estas situações, e cabe ao professor romper com a lógica adultocêntrica de

proporcionar o movimento apenas como uma moeda de troca. Estes movimentos devem ser

permitidos, uma vez que eles contribuem para que a criança entre em contato com o mundo e

com ela mesma e descubra as possibilidades de seu corpo.

Agostinho (2005) afirma também que “movimentar-se para as crianças é comunicar-se,

expressar-se, interagir com o mundo; é uma forma de linguagem; é explorar e conhecer o mundo

e o próprio corpo, seus limites e possibilidades” (p.69). Aqui podemos perceber o quanto o

movimento é fundamental para as crianças, pois a partir dele elas relacionam-se com os outros,

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interagem e brincam. Desta forma, o movimento torna-se fundamental para o desenvolvimento

integral desta criança.

De certa maneira, é necessário possibilitar que este corpo não seja mais uma “presença

ausente” dentro das instituições de Educação Infantil, mas sim que ele seja uma presença

constante nas mediações pedagógicas envolvendo as crianças pequenas, afinal, “não há mente,

não há corpo e não há espírito que não estejam encarnados. Sou corpo. Corpo vivido. Sou

sentimentos, emoções e razões num corpo humano” (GAYA, 2006, p.252). E a partir do

momento em que compreendemos a criança como um sujeito integral, devemos valorizar tanto a

mente como o corpo das crianças, afinal, se a infância é um período que deve ser vivido em sua

plenitude, ou um tempo em si, como nos esclareceu Arroyo (1994), elas devem ter a

possibilidade de vivenciarem ambas as dimensões de maneira indissociável, na qual ambas se

fazem presentes nos momentos de educação e cuidado destas crianças dentro das instituições de

Educação Infantil.

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3 CAMINHOS PERCORRIDOS

O estudo em questão caracterizou-se por ser de natureza qualitativa, pois utilizaram-se

para análise dos dados, observações e registros feitos a partir do que as crianças indicaram,

vivenciaram e expressaram pelas suas diferentes linguagens. Uma pesquisa qualitativa

caracteriza-se, entre outras coisas, por apresentar dados não quantificáveis e por entrar em

contato com a realidade observada. Segundo Minayo, (1994), a pesquisa qualitativa “trabalha

com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que

corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não

podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (p.22). Desta forma, percebe-se que este

tipo de pesquisa busca compreender uma determinada realidade a partir do que esta própria

realidade aponta, na qual objetiva-se perceber e compreender as relações sociais que se

estabelecem entre os sujeitos da pesquisa.

Dentro de uma perspectiva qualitativa, encontramos na etnografia um tipo de pesquisa de

grande valia no que diz respeito a observar, interagir e compreender as crianças e suas diferentes

manifestações ou culturas da infância. Neste estudo, realizou-se uma pesquisa de inspiração

etnográfica, tendo em vista que para esta caracterizar-se por uma etnografia, seria necessária uma

permanência prolongada no campo de pesquisa. Desta forma, utilizou-se algumas das ferramentas

de uma pesquisa etnográfica no período de permanência em campo. A partir desta permanência, o

pesquisador encontra mais elementos que possam contribuir para o foco de sua pesquisa. Ferreira

(2004) afirma que, em uma pesquisa etnográfica com crianças, é fundamental “a interpretação

dos textos culturais” (p.38), ou seja, buscar compreender a dinâmica das relações que as crianças

estabelecem entre si e com o ambiente da instituição, para que se possa identificar o que as

crianças estão manifestando a respeito de suas diferentes culturas, suas interações e de seus

direitos enquanto crianças. Para isso,

[…] mais do que olhar para examinar, é preciso compreender o que as crianças dizem, a partir da auscultação da sua voz […]. Trata-se de prestar sentido e não de o impor, entendendo-se aqui prestar como sinónimo de cuidado e abertura ao outro, o que supõe uma inversão da atenção: antes de situar uma pessoa no seu lugar, começa-se por reconhecê-la no seu ser, na sua qualidade de pessoa complexa (idem).

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Em uma pesquisa com inspiração etnográfica, durante a permanência no campo, uma das

estratégias utilizadas para a obtenção de dados é a observação participante, que foi utilizada neste

estudo. A utilização deste tipo de pesquisa deveu-se ao fato de considerarmos que esta pode

contribuir no sentido de adentrarmos a realidade estudada, participando ativamente desta, para

que as informações coletadas possam ser as mais fidedignas possíveis. Segundo Cohn (2005), a

observação participante

[...] consiste em uma interação direta e contínua de quem pesquisa com quem é pesquisado, [...] que permite uma abordagem dos universos das crianças em si. Para tanto, seu caráter dialógico, de interação, terá que ser enfatizado, permitindo ao pesquisador tratar as crianças em condições de igualdade e ouvir delas o que fazem e o que pensam sobre o que fazem, sobre o mundo que as rodeia e sobre ser criança (p.45).

Para Ferreira (2004), “na medida em que, como observadora em presença, não dissocio a

minha interpretação do conteúdo da interacção e estou simbolicamente implicada nela, partilho e

participo comumente do significado que dá sentido aos actos observados” (p.39). Desta forma, a

observação participante permite-nos participar e interagir com as crianças, ouvindo e vendo o que

estas tem a dizer e a expressar acerca de suas culturas e manifestações.

Neste estudo, por meio da observação e do registro em diário de campo do que foi

observado, buscou-se conhecer um pouco melhor a realidade e o contexto na qual as crianças

estavam inseridas, bem como buscou-se compreender por meio das diferentes linguagens das

crianças momentos que foram significativos para o foco deste estudo. Segundo Minayo (2006), o

diário de campo serve para registrar os aspectos mais importantes observados. Para a autora, “o

investigador deve anotar todas as informações que não sejam o registro de entrevistas formais.

Ou seja, observações sobre conversas informais, comportamentos, cerimoniais, festas,

instituições, gestos, expressões que digam respeito ao tema da pesquisa” (idem, p.194). Desta

forma, percebe-se que a observação e o registro em diário de campo são estratégias

complementares para a obtenção de dados em uma pesquisa de caráter qualitativo.

Gandini e Goldhaber (2002) também ressaltam a importância do registro, afirmando que

quando registramos, “estamos deliberadamente optando por observar e registrar os

acontecimentos em nosso ambiente a fim de pensar e comunicar as surpreendentes descobertas do

cotidiano das crianças” (p.150). Desta maneira, o registro é mais do que um simples anotar o que

foi visto e vivenciado, mas sim, é um instrumento que possibilita a reflexão por parte do

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pesquisador, possibilitando que este possa analisar o que foi observado e registrado, bem como,

possa construir novos conhecimentos que serão relevantes ao tema de seu estudo.

É importante salientar que, em uma perspectiva etnográfica de observação participante, é

ponto fundamental a permanência por um tempo relativamente grande no campo, para que os

fenômenos e as interações que acontecem entre os participantes possam ser melhor

compreendidos. Neste estudo, apesar de ter ocorrido um número restrito de observações para os

parâmetros etnográficos, destaca-se que o pesquisador já acompanha o referido grupo de crianças

desde o início do ano, ou seja, já se conhecia previamente o grupo observado e isto foi de grande

auxílio para a construção desta pesquisa.

Neste estudo, a observação participante aconteceu em um grupo de crianças que se auto-

denominou Grupo Aquarela. Este grupo é composto por 17 crianças (9 meninas e 8 meninos)

com idades entre 5 e 6 anos. O grupo encontra-se em uma instituição de Educação Infantil

pública da grande Florianópolis. As crianças que frequentam esta instituição são oriundas das

mais diferentes realidades e contextos, pois há crianças de diferentes etnias, classes sociais,

religiões, etc. A instituição em si é um espaço privilegiado, pois o local abre constantemente as

portas para a realização de estágios e projetos da Universidade Federal de Santa Catarina. Neste

grupo, há a presença de uma professora e de um auxiliar de sala (bolsista). Um fator interessante,

e que de certa forma intervêm na realização da pesquisa, é de que o auxiliar de sala deste grupo é

o próprio autor da pesquisa. Com relação aos nomes das crianças, no estudo optamos por não

utilizar os nomes verdadeiros das mesmas, mas sim, pedimos que as crianças escolhessem um

nome fictício que elas gostariam que as representassem na escrita do trabalho. Apenas três

crianças não estavam presentes no dia em que elas escolheram os nomes, e nestes casos,

acabamos por escolher nomes fictícios para estas.

De certa maneira, a já familiaridade com o grupo de crianças por parte do pesquisador foi

de grande valia no sentido de já se conhecer algumas das características do grupo, bem como

algumas singularidades das crianças. Entretanto, tem-se a ciência de que, em uma pesquisa de

caráter etnográfico, é fundamental termos um olhar de estranhamento sobre a realidade

observada, ou como afirma Da Matta (apud SILVA, BARBOSA e KRAMER, 2005) “de

transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico” (p.49). Com isso, a já familiaridade

com o grupo, que em alguns casos pode dificultar a observação de alguns aspectos, pôde ser

rompida, pois buscou-se um olhar de estranhamento e uma escuta e observação atenta e sensível

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ao que as crianças vivenciaram e evidenciaram. E neste estudo, isto foi fundamental, pois

constantemente foi necessário buscar um olhar de estranhamento perante o grupo e as interações

das crianças. Entretanto, este estranhamento, a princípio, não foi fácil de ser resgatado. Esta

questão pode ser verificada no registro abaixo.

Ao entrar no grupo, logo no primeiro dia de observações, estava bastante ansioso com esta aproximação das crianças e de suas manifestações. Entretanto, logo de início, senti-me de certa maneira perdido. A primeira coisa que me veio à cabeça foi: “E agora, o que eu faço, o que eu observo?” (Diário de campo, 16/09/2009).

Esta situação, de certa maneira, serve para ilustrar um pouco a dificuldade de o

professor/pesquisador buscar sempre um olhar de estranhamento sobre o que já lhe é familiar.

Com relação ao professor-pesquisador, Pereira (1998) ressalta que “os professores-pesquisadores,

ao refletirem suas práticas, trabalham-nas dialogicamente” (p.167). Desta forma, uma postura de

pesquisador por parte do professor é fundamental, uma vez que isto possibilita investigar o

contexto no qual ele está atuando, refletindo sobre o que as crianças evidenciam, buscando novos

conhecimentos e repensando constantemente a sua atuação enquanto profissional, de forma que

sua prática possa corresponder às expectativas e necessidades das crianças, respeitando-as

enquanto sujeitos de direitos.

A partir do momento em que a realidade observada é constituída por crianças, torna-se

fundamental as considerarmos de fato como sujeitos de direitos, capazes de produzir

conhecimentos. Segundo Sarmento e Pinto (1997),

A consideração das crianças como actores sociais de pleno direito, e não como menores ou como componentes acessórios ou meios da sociedade dos adultos, implica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas (p.20).

Desta forma, a partir do momento em que consideramos as crianças sujeitos sociais, de

direitos, produtoras e reprodutoras de cultura, dotadas de suas culturas infantis, a observação

participante se mostra interessante como forma de pesquisa qualitativa, pois consegue adentrar à

realidade pesquisada, percebendo as relações e trocas culturais que se estabelecem entre as

crianças e seus pares e entre crianças e adultos. Ela também se mostra interessante para a

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compreensão das diferentes linguagens das crianças, pois são estas linguagens que irão contribuir

para a construção de novos conhecimentos por parte do pesquisador. Assim, concordamos com

Kramer (2002) quando esta afirma que nas pesquisas com crianças “pesquisamos sempre relações

[...], o que torna fundamental ver e ouvir” (p.48), ou seja, captar os ditos e os não ditos, as falas e

os silêncios, os movimentos e as transgressões das crianças.

Outra questão importante a ser pensada quando realizamos uma pesquisa com crianças

através da observação participante, refere-se a romper com o adultocentrismo. Para isso, é

necessário compreender que “a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas

qualitativa: a criança não sabe menos, sabe outra coisa” (COHN, 2005, p.33). A partir do

momento em que rompemos com uma relação adultocêntrica, estamos mais aptos a compreender

o que as crianças tem a manifestar em suas diferentes linguagens, valorizando-as enquanto

fundamentais para uma melhor compreensão do foco de estudo.

Após todo o período de observações e registros em diário de campo, passou-se então para

a descrição e a análise do que foi observado. Para isso, inicialmente, buscou-se uma leitura atenta

do diário de campo como forma de reflexão sobre o que foi visto durante as observações. Aliada

a esta reflexão, buscou-se também problematizá-la com os aspectos teóricos ressaltados durante a

construção do estudo, para a partir disto, construir categorias de análise que contemplassem os

objetivos deste estudo. Desta forma, foram elaboradas categorias relacionadas a cada um dos

objetivos específicos, para uma posterior interpretação e análise dos registros.

Diante disto, este estudo buscou romper com uma perspectiva adultocêntrica, ouvindo e

observando o que as crianças manifestaram, e principalmente respeitando a alteridade das

crianças enquanto sujeitos de direitos, capazes de ressignificar e produzir cultura, como também

dotadas de conhecimentos que não são inferiores aos conhecimentos dos adultos, mas são apenas

diferentes. E foram estes conhecimentos e as diferentes interações e manifestações das crianças

que ajudaram a compreender melhor o objeto deste estudo.

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4 REFLEXÃO/ANÁLISE DAS OBSERVAÇÕES

A partir de leituras atentas aos diários de campo e a releituras dos referenciais do estudo,

chegou-se a 6 categorias de análise. Desta forma, as categorias são as seguintes: crianças e

corporeidade; crianças e subjetividade; corpo como dimensão biológica e mente como dimensão

cognitiva; corpo e mente como indissociáveis; movimentos que despertam sentimentos; os

tempos e espaços do corpo e da mente. Em cada uma das categorias, buscou-se problematizar

algumas questões e situações que se revelaram importantes a partir das observações feitas durante

a permanência com o grupo de crianças, e que foram fundamentais para uma melhor

compreensão de alguns fenômenos referentes à temática deste estudo.

4.1 Crianças e corporeidade

Nesta categoria, procurou-se discutir acerca da corporeidade das crianças em um contexto

de Educação Infantil, buscando refletir acerca das possibilidades que as crianças têm de vivenciar

o seu corpo, como também os momentos em que elas reivindicam estas diferentes vivências. Para

isso, algumas cenas observadas podem contribuir para as reflexões.

Em um determinado momento observo que Timi Turner, Beto, Alex, Bidu, João, Pedro e Zoie estão ajudando a montar a pista. Quando a montagem termina, vem o momento de testar os carrinhos de controle remoto. Entretanto, as crianças perceberam que faltavam as pilhas para os carrinhos poderem funcionar. Então, dou a sugestão para Timi Turner ir até a Secretaria da instituição perguntar se haviam pilhas para emprestar. Timi Turner concorda com minha idéia e vai correndo para fora da sala para pedir as pilhas. Neste momento, Bidu fica com vontade de ir junto com Timi Turner, e sai correndo também. Entretanto, eu o chamei de volta a sala para perguntar onde ele estava indo, pois até o momento não imaginava que ele queria acompanhar Timi Turner. Quando o chamo de volta, ele não gostou, falando apenas uma palavra: -”Ahh”, fazendo uma expressão de tristeza. Então, após ele dizer o porque de estar saindo da sala (ele queria ir junto com Timi Turner), ele acompanha o amigo para pegar as pilhas (DIÁRIO DE CAMPO, 16/09/2009).

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Nesta situação, pode-se perceber que a criança evidenciou o desejo ao movimento, talvez

por querer acompanhar o amigo, talvez por querer sair do espaço da sala, ou por algum outro

motivo que não pôde ser percebido. Porém, independente do motivo, ela manifestou a

necessidade de vivenciar o seu corpo, os seus movimentos. Entretanto, apesar de ter demonstrado

este desejo, a criança foi de certa maneira reprimida no momento em que foi chamada para voltar

à sala. E numa postura adultocêntrica, ao pedir-se que ela voltasse, privou-se que pudesse de fato

vivenciar a sua necessidade naquele momento. Diante disto, surgem alguns questionamentos: por

que impedir que a criança vivenciasse aquele desejo de acompanhar o seu amigo e de se

movimentar? Será que, em atitudes como esta, não estamos limitando as crianças em seus

direitos?

No documento Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos

fundamentais das crianças (CAMPOS E ROSEMBERG, 2009), um dos pontos destaca que

“nossas crianças têm direito de correr, pular e saltar em espaços amplos, na creche ou nas suas

proximidades” (idem, p.23). Desta forma, percebe-se que é um direito das crianças vivenciarem o

seu corpo e seus movimentos, manifestando-se por meio deles. Entretanto, muitas vezes o que

acontece é a inibição desta linguagem por parte dos professores, principalmente quando as

crianças estão dentro do espaço da sala. Apesar de o documento prever que elas tem o direito a

vivenciarem sua corporeidade em espaços amplos, isto não significa que o espaço da sala deve

impedir que estas manifestações aconteçam, mas sim, o professor deve estar atendo às crianças,

no sentido de perceber nelas o desejo ao movimento, e assim, buscar contemplar esta necessidade

em seu planejamento e durante a rotina com o grupo.

Sayão (2002) afirma que “a cultura adultocêntrica leva-nos a uma espécie de

esquecimento do tempo de infância. Esquecemos gradativamente como, enquanto crianças,

construímos um sistema de comunicação com o meio social que, necessariamente, integra o

movimento como expressão” (p.57). Muitas vezes, os adultos, em uma postura que desconsidera

os direitos das crianças, acabam por desvalorizar que os movimentos são uma forma de expressão

das crianças, são uma linguagem utilizada por elas. E como linguagem, deve ser privilegiada e

proporcionada, afinal, se buscamos uma Pedagogia da Educação Infantil que privilegie, entre

outras coisas, as diferentes linguagens das crianças, a linguagem de movimentos também deve ser

contemplada nos espaços da Educação Infantil.

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Outra autora que contribui nesta discussão, e que busca problematizar a postura dos

adultos/professores em muitas vezes privar os movimentos das crianças é Finco (2007). Segundo

ela “no campo da educação, [...] há uma desconfiança do corpo” (idem, p.95). Desta forma, o que

acontece muitas vezes é que as crianças são impossibilitadas de se movimentarem simplesmente

pelo fato de os professores desconhecerem as possibilidades que a vivência da corporeidade pode

proporcionar para as crianças. Na situação acima, em um primeiro momento, a criança foi

impossibilitada de sair da sala correndo, pois o auxiliar de sala/pesquisador acabou por chamá-la,

sem que houvesse uma reflexão a respeito do porque pedir que ela voltasse.

De certa forma, o que muitas vezes se exige das crianças é que elas tenham uma postura

de seriedade, onde os adultos querem que elas não se movimentem, e com isso, desconsideram

que as crianças, por meio de sua espontaneidade, criatividade e ousadia, são capazes de expressar

diferentes movimentos, passando com isso a conhecerem melhor a si mesmas e as possibilidades

de seus corpos (SAYÃO, 2002).

Kunz (2005), dissertando a respeito do movimento humano, afirma que “a linguagem e o

movimentar-se humano (como diálogo com o mundo) são as poucas possibilidades que ainda nos

restam para uma melhor compreensão de quem somos e ter, a partir deles, uma melhor

consciência do mundo em que vivemos” (p.24). Desta forma, valorizar a vivência de movimentos

por parte das crianças é possibilitar que elas conheçam a si mesmas e ao mundo ao seu redor,

ampliando os seus repertórios culturais e de movimentos.

Mas por que será que os professores teimam em reprimir as necessidades de movimentos

das crianças? Finco (2007) contribui também neste questionamento, ressaltando que “a

brincadeira agita, desperta desejos, permite formas inovadoras e inesperadas de ser. Então, o que

fazer com esses corpos cheios de energia que insistem em fazer movimento?” (p.96). A autora

também aponta uma possível resposta a estas perguntas, dizendo que

[…] há um desconhecimento com o que se fazer com os corpos das crianças em movimento. O próprio espaço da pré-escola, organizado com mesas e cadeiras, não permite esse movimento. Por isso, a escola acaba reservando alguns lugares e horários para que a brincadeira ocorra (idem).

A partir disso, pode-se inferir que provavelmente tanto os professores como a própria

instituição parecem desconhecer as crianças, não permitindo os movimentos e limitando-os

apenas a tempos e espaços pré-determinados.

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A partir destas reflexões, não se procurou afirmar que na instituição observada, os

movimentos e a vivência da corporeidade por parte das crianças eram reprimidos, até porque, em

outras situações observadas e vivenciadas, pode-se perceber claramente que estas necessidades

das crianças eram valorizadas. Com esta discussão, buscou-se apenas demonstrar a reivindicação

do direito ao movimento por parte das crianças, que em muitos momentos aconteceu.

Houveram outros momentos na qual pôde-se perceber as crianças manifestando sua

corporeidade, e o sentido/significado que esta possibilidade teve sobre elas, como podemos

perceber na cena seguinte.

Após o lanche, as crianças do grupo foram ao parque Viva Ciência, localizado no campus da UFSC. Em um momento do trajeto até o parque, as crianças tiveram que passar por um local cercado de árvores, e que no meio do caminho havia alguns buracos e poças de água. Então, por mais que pedíssemos que as crianças permanecessem perto uma da outra e evitassem pular as poças e os buracos, elas rompiam com nossa lógica e pulavam pelos buracos, corriam pelo espaço e vivenciavam aquele momento da maneira que mais lhes interessava. Então, em um determinado momento, a professora do grupo se dá conta de que não é necessário ficar pedindo que elas fiquem sem brincar e pular pelas poças e buracos. E, durante todo o trajeto, elas foram brincando, conversando, pulando pelos obstáculos do caminho e se divertindo (DIÁRIO DE CAMPO, 16/09/2009).

Nesta cena, apesar de no início haver uma tentativa “fracassada” de evitar que as crianças

se movimentassem, as crianças romperam com a lógica adulta e permaneceram fazendo aquilo

que elas queriam naquele momento. Destaca-se também o grande interesse por parte das crianças

de vivenciarem o seu corpo e suas possibilidades, pois elas constantemente buscavam interagir

com os obstáculos oferecidos pela natureza durante o caminho, correndo pelo espaço, pulando e

brincando. Finco (2007), afirma que “a criança pequena, [...] se contrapõe ao adulto com uma

escandalosa corporeidade, com necessidades de corpo inteiro” (p.97). E elas de fato manifestam

esta corporeidade a todo o momento em que tem a oportunidade, mesmo que os adultos, numa

lógica diferente, procurem inibí-las.

Sayão (apud SIMÃO, 2007) afirma que

Do ponto de vista das crianças, a privação do movimento, de fato, constitui-se em um problema não somente porque reduz a autonomia que poderiam conquistar através dele, mas porque tal restrição limita a capacidade e a possibilidade de experimentar com o corpo gestos, movimentos e linguagens próprias da cultura onde estão inseridos/as.

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Valorizando, então a brincadeira e o movimento corporal como instrumentos de apropriação das diferentes linguagens produzidas pela cultura que é reinventada pelas crianças (p.15).

Desta forma, deve-se valorizar os momentos que as crianças procuram vivenciar a sua

corporeidade, caso contrário, impede-se que elas possam ampliar as suas vivências e

experiências, dificultando que elas apropriem-se da cultura que as cerca, ressignificando-a.

Um outro momento onde se pode perceber a vivência da corporeidade e a exploração de

diferentes movimentos por parte das crianças, pode ser verificada no episódio descrito a seguir.

Algumas crianças, após terem passado pelo desafio da Falsa Baiana com cordas algumas vezes, sempre queriam repetir a brincadeira de novo. E à medida que iam passando, elas também buscavam experimentar novas possibilidades de movimentos. Em um momento, Alex diz: “-Eu vou fazer deste outro lado”, e experimenta passar pelas cordas pelo lado oposto ao proposto inicialmente. Em outro momento, Lalá experimenta uma outra possibilidade e passa pela corda de cabeça para baixo, segurando-se com as mãos e pernas somente na corda mais alta. Ao terminar, mostra-se orgulhosa de ter conseguido, e vem me perguntar: “- Você me viu?” (DIÁRIO DE CAMPO, 06/10/2009).

Neste momento, novamente se observa o quanto as crianças buscam manifestar a sua

corporeidade, explorando diferentes movimentos. Elas, a partir do momento em que a brincadeira

ia tornando-se menos desafiante, buscavam por si mesmas torná-la mais difícil, explorando

outros movimentos que ainda não haviam sido experimentados. Ou seja, a brincadeira com as

cordas teve um sentido/significado muito particular a cada criança, tendo em vista que cada uma

procurava brincar conforme a sua necessidade. A crianças também valorizaram a brincadeira,

pois a todo momento elas sorriam diante do fato de terem conseguido vivenciar um outro tipo de

movimento que ainda não tinham realizado.

Nesta situação, também pode-se problematizar acerca das brincadeiras livres das crianças,

pois muitas vezes os professores sentem a necessidade de propor brincadeiras com um fundo

pedagógico, buscando auxiliar as crianças a desenvolverem alguma habilidade ou característica

que aos olhos dos adultos possa parecer importante. Entretanto, como afirma Sayão (2002),

“quando as crianças brincam, elas o fazem para satisfazer uma necessidade básica que é viver a

brincadeira. No entanto, a insistência de que a brincadeira precisa ter uma função 'pedagógica'

[…] limita suas possibilidades” (p.58). Desta forma, valorizar os momentos em que as crianças

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brincam livremente, como também possibilitar estes momentos e participar destes é fundamental

tanto para as crianças como para o professor, que passa a conhecer melhor as brincadeiras e

interações que as crianças estabelecem, sem esquecer que esta possibilidade é rica no sentido de

ampliar as vivências corporais das crianças.

Diante de tudo isto, é fundamental que os professores estejam abertos às necessidades das

crianças de vivenciarem a sua corporeidade, pois este é um direito delas. Em muitos momentos,

as crianças manifestam, através de suas diferentes linguagens, a necessidade que elas tem de se

movimentarem. Manifestações estas que acontecem através da ruptura da lógica do professor,

através de diferentes movimentos, por meio de expressões que revelam o desejo ao movimento.

Com isso, deve-se problematizar atitudes que reprimam estas manifestações das crianças, para

proporcionar-lhes momentos onde elas possam expressar-se corporalmente. É fundamental que o

movimento e a corporeidade das crianças não sejam considerados como indisciplina, ou como

uma espécie de moeda de troca, onde as crianças só podem se movimentar quando ficam quietas

nos momentos em que o professor lhes pede, pois poder ou não ir ao parque ou impedir que as

crianças se movimentem “são castigos corporais muito fortes, que se assemelham a agressões

diretas” (VAZ, 2002, p.95). Estes contribuem para que a criança torne-se cada vez mais cedo

mais disciplinada, mais parecida com o “ideal” adulto, impossibilitando que ela vivencie o seu

tempo de infância enquanto período de ser criança.

4.2 Crianças e subjetividade

Nesta categoria, propõe-se problematizar a questão da vivência da subjetividade expressa

pelas crianças, bem como a reivindicação ao direito a vivenciá-la, afinal, “nossa cultura, devido a

supervalorização da razão como uma forma de nos distinguir dos outros animais, desvaloriza as

emoções” (Pena Pereira, 2008, p.156). Além disso, nas instituições de Educação Infantil, muitas

vezes, manifestações subjetivas como a possibilidade de a criança comer o que gosta, ou então a

vivência das emoções são inibidas em muitas situações, obrigando-as a se enquadrarem na

objetividade imposta. Um episódio interessante pode ser verificado na observação abaixo.

Chega então o momento de as crianças lancharem. Este lanche era composto inicialmente por uma grande variedade de frutas, que eram servidas num primeiro momento, e depois foram servidos sanduíches com verduras e

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requeijão. Observo então que uma das crianças, Lulú, no momento em que as frutas estavam sendo servidas, não quis comê-las. Ela permanece sentada com os seus amigos, mas enquanto as outras crianças comiam as frutas, ela permaneceu só olhando. Ao observar sua expressão, percebo que ela estava bastante séria, apenas olhando para as frutas. Em um determinado momento, a professora do grupo diz: -“Lulú, experimente alguma fruta., pra ver se você gosta”. Lulú apenas sinaliza com a cabeça fazendo um sinal de que não quer, e ela não come as frutas (DIÁRIO DE CAMPO, 16/09/2009).

Nesta cena, pode-se perceber que uma das crianças, no momento do lanche, evidenciou o

desejo de não comer as frutas, passando esta parte do lanche apenas observando os amigos e

conversando com eles. Também se pode notar que a professora do grupo, ao invés de impor que a

criança comesse as frutas, propôs que ela experimentasse-as. Mesmo com esta proposta, a criança

permaneceu sem querem comer as frutas, e ela foi respeitada. Ou seja, a sua subjetividade foi

respeitada, não ficando a criança obrigada a comer algo de que ela não gostasse.

Entretanto, muitas vezes, esta realidade não faz parte do cotidiano em outras instituições

de Educação Infantil, pois em momentos como estes, alguns professores podem optar por obrigar

a criança a comer algo que ela não gosta. Com isto, acaba-se desrespeitando a subjetividade das

crianças, uma vez que elas, enquanto sujeitos de direitos, não devem ser obrigadas a realizar algo

que não lhes agrade, mas sim, os professores devem propor às crianças que elas vivenciem

determinada experiência. Na situação acima, esta foi a realidade, pois a criança teve a

possibilidade de escolher se ela queria comer aqueles alimentos, ou não. Novamente aqui,

recorremos ao documento Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos

fundamentais das crianças (CAMPOS E ROSEMBERG, 2009), onde lê-se que devemos

aprender a “lidar com as preferências individuais das crianças por alimentos” (p.15), e devemos

respeitar as suas opções, pois tratam-se de características subjetivas de cada uma, e obrigá-las a

alimentar-se de algo que não gostam é desrespeitar esta subjetividade.

Entretanto, a subjetividade não diz respeito apenas as preferências alimentares, mas sim,

se refere a todas as nossas singularidades enquanto seres humanos. Finco (2007) ressalta que

muitas das práticas que acontecem dentro de instituições para crianças pequenas “arrancam os

vícios, implantam a civilidade, lapidam os sentimentos, ensinam o gosto, afinam a voz e educam

as mãos para a escrita” (p.96). Ou seja, preocupa-se em “lapidar” as crianças conforme a vontade

dos adultos, tirando delas as possibilidades de expressarem-se enquanto crianças que possuem os

seus interesses, os seus desinteresses, as suas necessidades, seus sentimentos e que tem a opção

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de recusar algo de que ela não gosta, de forma que se sobressaia a sua subjetividade em

detrimento da objetividade dos adultos.

Há outro episódio onde se pôde perceber que algumas das crianças manifestavam a sua

subjetividade e os seus sentimentos, e tiveram liberdade para isso.

A professora do grupo propõe a contação e uma história para as crianças. Então todos sentam em uma roda e ela inicia a contar a história. A história em questão era sobre um menino que, quando criança, gostava muito de brincar com uma árvore, tendo ela como amiga. Então, ao ir crescendo, o menino de vez em quando retornava a árvore, mas demonstrava estar insatisfeito com a vida, querendo sempre adquirir bens materiais. Então a árvore, que muito gostava do menino, sempre se oferecia para ajudá-lo a conseguir seus sonhos, dando uma parte de si para ele. Em um momento, ela dá suas maças, em outro seus galhos e no fim dá o seu caule, sobrando apenas o toco da árvore. A história despertou um sentimento de tristeza em algumas crianças. Em um determinado momento, Bind diz: “- Eu não posso chorar, eu não posso chorar”. A professora dá um sorriso para Bind e continua a contar. Em seguida, é a vez da Poly dizer a mesma frase de Bind. Durante a história, as crianças permaneceram bastante atentas ao que estava sendo contado, e no final, pediram para que a professora contasse de novo a história. Foi interessante perceber a sensibilidade de algumas crianças, pois algumas contestavam a atitude do menino da história em ir tirando as partes da árvore, sua grande amiga de infância (DIÁRIO DE CAMPO, 24/09/2009).

A expressão da sensibilidade também é uma questão que deve ser problematizada nos

contextos de Educação Infantil, pois muitas vezes os choros, os sorrisos em excesso e outras

manifestações de sentimentos por parte das crianças são reprimidos. Nesta cena, pode-se perceber

que algumas crianças, ao ouvirem a história, manifestaram seus sentimentos, compartilhando da

tristeza do menino da história. E elas tiveram a liberdade de expressarem estes sentimentos.

A impossibilidade de expressar os sentimentos e as singularidades é algo que precisa ser

problematizado na Educação Infantil, uma vez que as crianças possuem ritmos, necessidades e

vontades diferentes das dos adultos. A impossibilidade de vivenciar estas singularidades por parte

das crianças, descaracteriza-as enquanto sujeitos de direitos, ou seja, as crianças, ao terem os seus

sentimentos reprimidos, acabam tendo a sua singularidade descaracterizada, uma vez que é

imposto a elas que se adequem a um modelo adulto que desvaloriza esta dimensão humana.

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Desta forma, deve-se proporcionar que os tempos e espaços das instituições de Educação

Infantil privilegiem as manifestações das crianças, tanto corporais como de seus sentimentos,

uma vez que as crianças são sujeitos “com seus sentimentos e emoções. Sentimentos e emoções

que participam ativamente de todo ato de conhecer” (GAYA, 2006, p.262).

Retomando alguns aspectos das situações observadas acima, percebe-se que a

subjetividade/singularidade das crianças se faz muito presente em contextos de Educação Infantil.

Esta subjetividade se revela desde os momentos do lanche, onde cada criança pode ter as suas

preferências alimentares, seus gostos e desgostos, como também se revela em outros momentos

como a contação de uma história, onde esta pode despertar diferentes sentimentos em cada uma

das crianças. Sentimentos estes que estão relacionados com vivências subjetivas de cada criança,

afinal, como já vimos em outras oportunidades, as crianças não devem ser consideradas como

uma categoria homogênea, mas sim heterogênea, na medida em que cada uma delas está inserida

em um diferente contexto, e estas diferenças as constituem enquanto dotadas de diferentes

singularidades.

4.3 O corpo como dimensão biológica e a mente como dimensão cognitiva?

Esta categoria tem por objetivo problematizar porque o corpo muitas vezes é visto apenas

sob aspectos biológicos e a mente apenas sob os aspectos cognitivos, como se ambas dimensões

não fossem dotadas de outras possibilidades. Algumas cenas observadas refletem a necessidade

de problematizarmos a mente e o corpo para além destas dicotomias e reducionismos. No

episódio descrito abaixo, podemos começar a refletir sobre algumas destas questões.

Após uma atividade coletiva de pintura, as crianças voltam para a sala para lavar as mãos e ir lanchar. Após todos lavarem as mãos, percebo que Alex permanece no banheiro. Eu vejo que ele está a um bom tempo lavando as mãos, então chego mais perto dele e vejo que ele está com lágrimas nos olhos. Então eu me abaixo e pergunto o que aconteceu. Ele olha para mim, chorando, e me diz que a tinta que está nas mãos dele não quer sair. Ele começa a esfregar as mãos com mais força, e percebo que ele está chorando ainda mais. Então ele diz que a tinta nunca mais vai sair das mãos dele. Ao dizer isso, ele aparenta certo desespero, e continua a chorar. Então, me abaixo e lhe digo que ele não precisa se preocupar, porque aquela tinta era mesmo difícil de sair, mas que provavelmente quando ele tomasse banho em sua casa, a tinta iria sair mais. Ele ainda continua chorando e me diz

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novamente que a tinta vai ficar para sempre em suas mãos. Novamente falo a ele que aquela tinta não iria ficar para sempre, e que iria sair depois de algum tempo. Ele permanece com medo e continua esfregando as mãos. Então, olho para ele e proponho que ele continue lavando as mãos até ele achar que sua mão já estivesse limpa em sua opinião. Então, saio do banheiro. Após um tempo, Alex sai do banheiro com as mãos mais limpas, já sem chorar, e se dirige para sentar com os amigos (DIÁRIO DE CAMPO, 22/09/2009).

Nesta situação, a criança aparenta um sentimento de preocupação ou medo diante do fato

de as suas mãos estarem sujas de tinta. A partir de uma vivência corporal, onde o corpo da

criança é alvo de algo que não lhe agrada (como a tinta nas mãos), ela expressa um sentimento,

que no caso foi o medo, a preocupação. Ou seja, a relação que a criança estabeleceu com seu

corpo foi mais ampla do que puramente biológica. Ela evidenciou sentimentos, revelando que em

sua singularidade, aquela situação não estava de acordo com sua necessidade.

Diante disso, refletir acerca de uma visão de corpo sob um aspecto biológico apenas,

torna-se equivocado, uma vez que nosso corpo é dotado de possibilidades que envolvem

sentimentos e singularidades, ou seja, envolve aspectos históricos e sociais. Almeida (2003),

dissertando acerca desta questão, afirma que “o corpo, em sua idiossincrasia, ao navegar por

tempos e lugares diferentes, passa a representar não apenas aquilo que se revela biológico no

homem, mas suas paixões, sensibilidades, saberes, juízos, marcas, recalques, trejeitos culturais,

liberdades, imposições” (p.56). Desta forma, percebe-se que o corpo, muito mais do que

possuidor de aspectos biológicos, envolve e desperta os mais diferentes sentimentos e é capaz de

construir diferentes subjetividades nos indivíduos.

Retomando a cena anterior, a criança revelou através de suas linguagens, um sentimento

de descontentamento pelo fato de a tinta estar sujando as suas mãos. Muito mais do que recair

sobre o corpo da criança um mal estar biológico, ela evidenciou um desconforto subjetivo,

sentindo a necessidade de limpar as suas mãos até que a tinta saísse. Entretanto, ao perceber que a

tinta provavelmente iria demorar a sair, a criança lavou as suas mãos até ela considerar, de acordo

com os seus parâmetros, que a sua mão estava limpa o suficiente. Ou seja, a única pessoa capaz

de determinar se a mão da criança estava limpa ou não, era a própria criança. Por mais que o

auxiliar de sala/pesquisador buscasse conversar com a criança no sentido de demonstrar que a sua

mão estava limpa, ela somente parou de lavar as mãos quando considerou que estavam bem

lavadas.

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De acordo com Simão (2007), “o corpo é também o lugar onde se inscrevem os elementos

culturais presentes nas experiências que os sujeitos humanos vivem ao longo de sua existência”

(p.4). Ou seja, nos corpos das crianças estão inscritas diversas vivências que irão influenciar a

maneira como elas irão construir a sua auto-imagem. Desta forma, nas instituições de Educação

Infantil, a visão dos educadores sobre os corpos das crianças deveria superar uma perspectiva

biológica, pois em muitos momentos as crianças irão manifestar/reivindicar singularidades acerca

de seus próprios corpos que poderão ser bem diferentes de uma visão adulta, como no episódio

anterior, onde a criança não estava satisfeita com a limpeza de suas mãos, mesmo que o auxiliar

de sala/pesquisador buscasse afirmar o contrário.

Esta situação também revela que a singularidade das crianças é muito mais do que

considerar a mente destas enquanto instância apenas cognitiva. Sobre esta questão, um outro

episódio pode contribuir para esta reflexão.

Uma das crianças chega perto de mim com a caixa de um jogo chamado Imagem e Ação, convidando-me para jogar. Eu aceito o convite, e convido outras crianças para brincar também. Eu, Bind, Timi Turner, Beto, Zoie e Pedro nos sentamos nas cadeiras e começamos o jogo. Este jogo consistia em cada criança desenhar em uma folha de papel algum objeto, enquanto que as outras crianças tem de adivinhar qual é o desenho que esta criança está fazendo. Em um momento, chega a vez de Beto fazer o desenho para os outros adivinharem. Eu sorteio uma carta com nomes de objetos e digo o objeto que ele teria de desenhar em seu ouvido. Então, ele olha para mim e diz: “-Só que eu não sei desenhar isso”. Então, olho para ele e digo: “-Você pode desenhar do jeito que você conseguir”. Então ele pega sua folha, faz o desenho do objeto, e as outras crianças conseguem adivinhar. Noutro momento, as crianças que estavam tentando adivinhar o desenho não estavam conseguindo. Então, peço para a criança que está desenhando dar dicas. Zoie logo em seguida dá uma dica dizendo: “-É uma coisa que a gente usa bastante e cuida bem”. Prontamente, Timi Turner olha novamente o desenho e diz: “-É um cachorro”. Zoie confirma com a cabeça. Em outra situação do jogo, o objeto a ser adivinhado era um sanduíche. Bind começa a dar dicas para as outras crianças, e diz: “-A gente bota coisas de comer dentro”. Então as crianças dão palpites muito interessantes e engraçados, como Panela, Sacola, Prato e até Barriga. Então, Bind, ao observar que os outros não estavam acertando, diz: “-Eu acho que vou ter que contar para eles”. Então ela diz que seu desenho era um sanduíche. Outra situação que aconteceu durante o jogo foi quando Poly, que deveria desenhar um regador, faz um desenho de uma flor e de uma pessoa segurando um objeto que soltava água, ou seja, ela não apenas desenhou o objeto isolado, mas o desenhou em seu contexto de uso. Durante toda esta brincadeira com o jogo Imagem e Ação, percebi que as crianças

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ficaram bastante concentradas, tanto ao desenhar quanto ao adivinhar os desenhos de seus amigos. Ao mesmo tempo, elas davam muitas risadas com toda a brincadeira. As dicas eram muito interessantes, pois as crianças pensavam em várias coisas relacionadas àquele objeto (DIÁRIO DE CAMPO, 29/09/2009).

Neste episódio, pode-se evidenciar que as crianças não manifestam a sua “mente” apenas

sob um aspecto cognitivo, sob uma lógica escolarizante. Percebe-se que elas, em uma situação de

jogo, evidenciavam que os seus pensamentos também envolviam todas as suas construções e

vivências anteriores, pois, para dar as características do desenho que elas estavam fazendo, elas

utilizavam seus repertórios culturais, caracterizando assim a singularidade das crianças. Como

exemplo, retoma-se o momento em que uma das crianças diz que o seu desenho era sobre algo

que as pessoas colocavam coisas de comer dentro. As crianças, em suas singularidades e

maneiras próprias de pensar e se expressar, afirmaram que o desenho era, entre outras coisas,

uma barriga ou uma panela, afinal, de fato, dentro destas coisas, colocam-se coisas de comer

dentro. Ou seja, o pensamento e a mente das crianças não se revelava apenas sob um aspecto

cognitivo, imediato, onde se desconsiderava todos os seus repertórios, mas sim, ele buscou

referências anteriores para buscar as respostas. Desta forma, a mente não é caracterizada apenas

sob um viés cognitivo/biológico, pois envolve outras experiências das crianças. A respeito desta

questão, Sayão (2002b) aponta que “é necessário incorporar a idéia de que os/as pequenos/as

possuam saber provenientes de suas experiências culturais anteriores” (p.50).

Desta forma, considerar a mente das crianças apenas sob os aspectos cognitivos, recai em

um equívoco, uma vez que as crianças pensam das mais diferentes maneiras, permeadas sob as

suas diversas vivências e experiências. Muitas vezes, exige-se que as crianças utilizem seu

pensamento apenas sob uma perspectiva escolarizante, onde elas devem assimilar conhecimentos

que naquele momento provavelmente não serão significativos a elas. Desta forma, as

manifestações subjetivas das crianças e que refletem as suas diferentes maneiras de pensar não

devem ser reprimidas, mas sim, valorizadas como formas peculiares de a criança apreender o

mundo, ampliando os seus conhecimentos.

Assim, concordamos com Daólio (apud SIMÃO, 2007) quando ele afirma que não

devemos negar “expressões ou características biológicas, psicológicas, sociais ou culturais no ser

humano, mas procurar concebê-las como variáveis de um todo humano indissociável, rompendo

com qualquer forma de dicotomia ou de privilégio de alguma abordagem” (p.10). Ou seja, não se

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deve desconsiderar os aspectos biológicos ou cognitivos do corpo e da mente, mas sim,

considerar que eles são um todo indissociável que compreende tanto estes aspectos como outros

envolvendo questões históricas, culturais e sociais, na qual esta interação natureza/cultura

contribui para a formação da criança como ser integral. E os professores devem estar atentos a

estas questões, não fragmentando as crianças ou desvalorizando os aspectos cognitivos ou

biológicos, mas sim, valorizando a criança enquanto um sujeito que tem o direito de pensar,

sentir e agir de maneira indissociável.

4.4 Corpo e mente como indissociáveis

Nesta categoria, buscamos perceber de que maneiras as crianças se revelam como sujeitos

integrais, que possuem uma corporeidade e uma subjetividade que se interrelacionam nos mais

diferentes momentos que elas vivenciam nas instituições de Educação Infantil. Procuramos

também desconstruir a idéia de que as crianças devem vivenciar as suas dimensões de maneiras

segregadas, como se em alguns momentos elas fossem somente corpo, e em outros mente. Para

isso, o episódio abaixo no auxilia no início desta reflexão.

As crianças estão na sala jogando diversos jogos e brincando com alguns brinquedos. Outras estão sentadas nas cadeiras jogando cartas, enquanto outras estão sentadas ou deitadas no tapete da sala brincando com um brinquedo de montar peças. Em um determinado momento, Timi Turner ganhou de Beto o presente de aniversário “atrasado”, que era um pista de carros de controle remoto. Logo que Timi Turner abre o presente, algumas crianças foram com ele para montar a pista no chão da sala, em um espaço onde a pista cabia. Inicialmente, Pedro e Timi Turner tentam montar a pista em conjunto, e logo depois chegam Alex e Bidu para ajudar. Neste momento, percebeu-se que o brinquedo exerceu grande atração nas crianças, pois elas estavam querendo acabar o quanto antes de montar a pista para poder brincar com os carrinhos. Cada uma a sua maneira tentava ajudar a montagem. Algumas davam idéias sobre como a pista deveria ser montada, enquanto que outras iam experimentando diferentes maneiras de encaixar as peças. Cada uma delas também permaneceu de um jeito diferente durante a montagem e a brincadeira. Algumas crianças ficavam deitadas no chão da sala, outras ficavam sentadas, mas elas permaneciam bastante concentradas em montar a pista (DIÁRIO DE CAMPO, 16/09/2009).

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Nesta cena, podemos ver o quanto as crianças agem, nos mais diferentes momentos, em

sua inteireza. Ou seja, elas agem com seu corpo inteiro, com sua mente inteira, ambas estas

dimensões dialogando durante as vivências das crianças. Na cena, durante a montagem da pista,

as crianças manifestaram-se corporalmente de diferentes maneiras. Algumas ficavam deitadas no

chão, outras permaneciam sentadas, algumas em pé, porém todas envolvidas na construção da

pista de carros. E ao mesmo tempo, cada uma delas dava suas opiniões sobre a melhor maneira de

montar a pista, onde ela deveria ser montada, de que maneira elas preferiam brincar. Com isso,

pudemos perceber que as crianças se inseriram naquele momento de montagem da pista em toda

a sua inteireza, revelando tanto em seu corpo como em sua mente as suas singularidades. Desta

forma, mente e corpo das crianças mantiveram uma relação de reciprocidade, de constante

interação, sendo que a corporeidade da criança era manifestada a partir de sua necessidade

subjetiva de permanecer em uma determinada posição, como também suas opiniões a respeito do

que fazer com a pista eram diferentes em cada criança, sendo oriundas de suas singularidades.

Para ilustrar esta questão, Sayão (2002b) já afirmara que “as crianças, quando brincam e se

movimentam, fazem-no com sua totalidade e não a partir de um único domínio” (p.54).

Em diversos momentos das crianças dentro de instituições de Educação Infantil, podemos

perceber que elas nos dizem por meio de suas diferentes linguagens, que querem vivenciá-los

enquanto seres integrais, onde corporeidade e subjetividade caminham juntos e são construídos

nestes diferentes momentos. Coutinho (2002) afirma que “não podemos contemplar a infância de

forma fragmentada na creche, [...] não podemos ter a visão de que nos momentos de cuidado ela é

corpo e durante as atividades que primem mais pelo cognitivo ela é mente, pois a criança é corpo

e mente em todos os momentos” (p.144). Esta afirmação nos ajuda a compreender que as

crianças, enquanto sujeitos de direitos, devem ser consideradas como seres integrais, de forma

que a rotina destas instituições, os momentos de educação e cuidado, os tempos e os espaços,

contribuam para que as crianças vivenciem suas brincadeiras e suas interações de acordo com

suas singularidades e necessidades.

Muitas vezes, tanto a rotina como os tempos e espaços das instituições de Educação

Infantil desconsideram a subjetividade e a corporeidade das crianças, sendo a elas permitido que

se movimentem e que pensem apenas em horários pré-estabelecidos. Romper com esta lógica

adulta torna-se fundamental, pois as crianças, mesmo sendo a elas imposto uma rotina

adultocêntrica, encontram nas suas transgressões a oportunidade de indicarem que são seres de

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corpo e mente inteiros, e que querem vivenciar estas dimensões em todos os momentos, como

pudemos perceber na situação acima, onde elas de fato vivenciaram aquele momento de

construção da pista de carros em toda a sua inteireza. Agostinho (2003), contribui nesta discussão

quando ressalta que “o espaço da creche tem de oportunizar às crianças que nele vivem um lugar

de possibilidades de expressão corporal infantil [...], baseando suas práticas nos princípios de

inteireza humana, contrapondo-se à dicotomia corpo-mente instaurada em nossa sociedade”

(p.122).

E para favorecer esta inteireza, as instituições devem problematizar a questão de

supervalorização da mente em detrimento do corpo e dos movimentos, pois encontramos em

muitos locais uma tendência a valorizar e desenvolver os aspectos cognitivos das crianças, e

nestes momentos o corpo acaba secundarizado. É preciso compreender também que a

corporeidade, enquanto dimensão humana, é fundamental nas mais diversas experiências, pois é

por meio dela que podemos vivenciar diferentes sensações, sentimentos e aprendizagens, pois

como afirma Simão (2007), “os processos de apropriação e produção cultural, através dos quais

as crianças participam da vida social das instituições educacionais ou fora delas, também se dão

sobre a dimensão corporal” (p.9). Muito mais do que valorizar o corpo apenas em momentos pré-

determinados, é valorizá-los e possibilitar que ele participe em todos os momentos.

Outra situação observada que reflete de maneira interessante esta questão da

indissociabilidade entre corpo e mente, pode ser verificada na próxima cena.

Dentro do parque Vida Ciência, as crianças foram em um brinquedo que emitia sons em diferentes tonalidades, formando uma escala musical. As crianças foram instigadas pelos monitores do parque a pensar no porque de haverem aqueles diferentes sons. Lig foi uma das crianças que procurou responder e dar sua opinião para resolver a “charada”. E a cada vez que ele ia dar sua opinião, ele se levantava, explicava seu ponto de vista e gesticulava com seu corpo, dando a entender que sua explicação, para ficar completa, dependesse também de seus gestos e movimentos corporais (DIÁRIO DE CAMPO, 16/09/2009).

Nesta cena, podemos observar de uma maneira bastante clara o quanto as crianças

necessitam manifestar-se em sua completude durante as suas vivências. Para Lig, não bastava

apenas dar a sua opinião verbalmente, mas sim, era preciso que ele se manifestasse

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corporalmente, ou seja, tanto a mente quanto o corpo foram necessários para a construção de sua

opinião.

Vaz (2005) afirma que “a mão exerce um papel essencial na narração. A narrativa como

forma de comunicação da experiência supõe a presença somática daquele que narra aos e com

seus ouvintes. Palavras e gestos fazem parte da narração” (p.7). A mão é parte de um corpo e

ambos fazem parte deste processo de construção e ampliação dos conhecimentos. Muitas vezes, o

corpo foi/é desvalorizado em nossa sociedade, sendo visto apenas como um acessório da mente,

ou como dotado de funções técnicas, como já vimos no referencial teórico. Entretanto, isto

descaracteriza o corpo e a mente como dimensões indissociáveis. Na cena acima, a criança, para

manifestar a sua opinião, envolveu-se corporalmente nela, uma vez que sua fala e seu

pensamento somente pareceram fluir com a possibilidade de ela expressar os seus gestos e

movimentos.

Diante desta discussão, concordamos com Agostinho (2003) quando ela afirma que as

crianças “experimentam e conhecem o mundo com todo o corpo” (p.117). Assim, não

pretendemos esgotar o assunto envolvendo a indissociabilidade entre corpo e mente nas crianças,

mas sim, buscamos chamar atenção para uma problematização desta questão dentro das

instituições de Educação Infantil, pois muitas vezes, ainda nos deparamos com locais onde estas

dimensões são dicotomizadas, seguindo uma lógica escolarizante e racionalista. Desta forma,

deve-se considerar que as crianças manifestam-se e sentem a necessidade de manifestarem-se

enquanto sujeitos completos em si, inteiros, assim como é preciso valorizar o corpo e os

movimentos nestas instituições, uma vez que eles também são uma dimensão das crianças.

Dimensão esta que só consegue se manifestar por completo a partir do momento que todas as

outras dimensões das crianças estiverem presentes e forem uma possibilidade para elas.

4.5 Movimentos que despertam sentimentos

Nesta categoria, buscamos discutir algumas situações que estiveram bastante presentes

durante as observações, e que foram importantes para realizarmos algumas reflexões. Estamos

nos referindo aos momentos em que as crianças estavam se movimentando e percebíamos que

estes movimentos despertavam os mais diferentes sentimentos por parte delas. Nestes momentos,

percebemos que os movimentos não aconteciam apenas sob uma dimensão corporal, mas

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também, envolviam a subjetividade das crianças, de forma que os mais diferentes movimentos

vivenciados por elas despertavam os mais diferentes sentimentos e manifestações. A cena

descrita abaixo, reflete bem esta questão.

Logo na chegada a instituição, apenas Poly e Timi Turner se encontravam na sala. Então, logo que entro, convido as crianças para ir ao parque, e após o convite, Poly abre um sorriso e diz: “-Ehhh”. Vamos então para o parque. Lá, as crianças logo percebem que havia uma nova atração para brincar. Era uma “Falsa Baiana” montada com cordas, por entre algumas árvores. Logo que viram esta Falsa Baiana, as crianças dirigiram-se imediatamente para brincar. A brincadeira na Falsa Baiana consistia em atravessar as cordas equilibrando-se, na qual a criança subia em cima da corda com os pés e segurava uma outra corda com as mãos, equilibrando-se e deslocando seu corpo pela extensão da corda. À medida que as outras crianças do grupo iam chegando, logo elas entravam na fila para passar pelo desafio. Quando as crianças passavam, percebia que elas gostavam muito de estar ali brincando, pois a ansiedade para chegar a sua vez de passar era muito grande, assim como a alegria por chegar a sua vez era visível em seus sorrisos. Em um determinado momento, quando uma das crianças passou pela primeira vez pelo desafio, ao terminar, fica feliz e diz repetidas vezes que conseguiu. Durante a passagem pelas cordas, ouvi também expressões como “tá difícil agora”. Quando Timi Turner foi passar pelas cordas, as outras crianças começaram a torcer por ele, dizendo em voz alta: “-Timi Turner, Timi Turner, Timi Turner”. Ao ouvir a torcida, Timi Turner olhou para as outras crianças e sorriu. Percebi também que cada criança passava de uma maneira diferente, ao seu tempo. Algumas enfrentavam o desafio com mais facilidade, enquanto outras sentiam mais dificuldades e mais medo. Moranguinho, ao passar pelas cordas, disse inicialmente: “-Isso aqui tá difícil”, mostrando em seu rosto uma expressão de dificuldade. Ao terminar, Moranguinho desse sorrindo das cordas e diz: “- consegui, consegui” (DIÁRIO DE CAMPO, 06/10/2009).

Este episódio revela de uma maneira bastante interessante o quanto os movimentos são

importantes para as crianças, e mais do que isso, uma necessidade delas. No início do episódio, já

podemos perceber o quanto as crianças ficam alegres pelo fato de estarem indo ao parque. Ao

chegarem lá, logo percebem que o parque contém um novo elemento para elas brincarem, e ao

ver isso, vão logo buscando interagir com aquele novo brinquedo instalado no parque. Porém,

chamamos a atenção para o fato de as crianças, enquanto vivenciavam a sua corporeidade por

meio dos movimentos, expressavam diferentes sentimentos. Pode-se perceber que algumas

crianças expressavam sentimentos de alegria por conseguirem passar pelo desafio das cordas,

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algumas expressavam um sentimento de medo diante da possibilidade de cair de cima das cordas

e não conseguirem passar, e a maioria delas expressava ansiedade por querer passar novamente

pelas cordas. A partir disto, pode-se perceber claramente o quanto a vivência de movimentos são

capazes de construírem a subjetividade das crianças, como também são capazes de despertar os

mais diferentes sentimentos.

Sayão (2002) afirma que “aquilo que as crianças mais gostam de fazer é experimentar

novas sensações, novas experiências, mexer, rolar, pular, 'fuxicar', demonstrando uma energia

corporal bastante grande que proporciona o contato consigo” (p.61). A partir desta afirmação,

percebemos o quanto a questão dos movimentos está relacionada aos sentimentos, com o

conhecimento de si, de seu corpo, seus limites, possibilidades, medos, alegrias... Porém, não

podemos dizer que todas as crianças sentem o mesmo ao realizar algum tipo de movimento ou

desafio com seu corpo. Estas diferentes sensações manifestadas por parte das crianças está

relacionada com a subjetividade de cada uma delas, com suas vivências anteriores e com sua

cultura própria, particular, de forma que os sentidos/significados que cada criança irá atribuir ao

movimento que realizar é diferenciado entre cada uma das crianças. Isto pôde ser percebido na

situação descrita acima, pois cada uma das crianças manifestava sentimentos e emoções

diferentes frente ao mesmo desafio.

Outra situação que aconteceu na brincadeira e que não consta na descrição acima, refere a

uma das meninas que estavam brincando na Falsa Baiana. Esta menina, nos momentos iniciais,

aparentava em seu rosto sentir bastante medo de enfrentar o desafio das cordas. Na primeira vez

que ela passou, por algum motivo subjetivo, ela passou com bastante cautela, cuidando ao

máximo para não cair. Após passar algumas vezes, ela foi adquirindo segurança, enfrentando o

desafio com mais tranquilidade, experimentando inclusive novas possibilidades. Em um dos

momentos, ela inclusive pediu para o auxiliar de sala/pesquisador colocá-la em cima da árvore

que havia no final da Falsa Baiana. De certa maneira, por algum motivo subjetivo, esta criança,

inicialmente, aparentou sentir bastante medo em passar pela corda, mas a medida que foi

experimentando as possibilidades de seu corpo por meio dos movimentos, foi aprendendo a lidar

com o seu medo inicial, e foi construindo a sua corporeidade.

Sayão (2002b) nos auxilia nesta discussão ao afirmar que

[…] há, para as crianças, diferentes formas de movimentar-se, e que essas linguagens de movimento expressas por elas mesmas, quando em interação umas com as outras,

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contribuem para a produção da cultura infantil alicerçada em valores como a criatividade, ludicidade e ampliação de suas experiências de movimentos (p.57).

Desta forma, percebemos que as crianças, ao expressarem a linguagem do movimento,

constroem diferentes experiências que irão refletir diretamente nas suas culturas da infância, o

que evidencia o quanto os movimentos são mais do que simples gestos corporais desprovidos de

significados, mas sim, são significativos para as crianças quando vivenciados a partir de suas

necessidades e singularidades.

Com esta categoria, procuramos evidenciar o quanto a corporeidade e a subjetividade das

crianças estão diretamente relacionadas, uma vez que, para cada uma das crianças que estavam

brincando com a Falsa Baiana, o significado e as emoções dos movimentos realizados eram

diferentes. Valorizar momentos onde as crianças possam manifestar-se corporalmente não

significa apenas possibilitar que elas tenham um bom desenvolvimento corporal, mas sim, é uma

possibilidade que as crianças encontram de construírem sua corporeidade, sua subjetividade e as

suas diferentes culturas.

4.6 Os tempos e espaços da mente e do corpo

Nesta última categoria, buscamos problematizar a questão da sala e do parque como

locais da mente e do corpo, respectivamente. E aqui, cabe uma pergunta inicial: será que a sala é

o lugar da mente e o parque é o lugar do corpo? Em muitos contextos de Educação Infantil, a

realidade encontrada acaba sendo esta, pois muitos professores acabam estabelecendo que a sala

é o espaço da mente e o parque é o espaço do corpo. Posturas como esta, acabam contribuindo

para fortalecer uma segregação entre os espaços internos e externos, determinando que hajam

espaços para o corpo e para a mente, legitimando uma dicotomia entre estas dimensões.

Neste estudo, buscamos desconstruir estas dicotomias como forma de respeitar os direitos

das crianças. Na instituição onde as observações foram realizadas, alguns episódios foram

importantes para as discussões, como vemos abaixo.

Logo na chegada à instituição, Timi Turner e Poly estavam sentados nas cadeiras jogando cartas. Em outro momento, Timi Turner e Lig estavam sentados jogando Xadrez. Logo depois, Beto, Lig e Alex estavam jogando Memória, sentados nas cadeiras. Havia também outras crianças que estavam

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jogando outros jogos em diferentes espaços da sala. Algumas estavam sentadas no chão, outras deitadas, cada uma o seu jeito, interagindo e brincando com os amigos (DIÁRIO DE CAMPO, 22/09/2009).

Nesta situação, percebemos as crianças vivenciando o espaço da sala por meio de jogos,

brincadeiras e diferentes interações estabelecidas entre elas. Além disso, as crianças estavam

usando os mais diferentes espaços da sala para a realização dos jogos e brincadeiras, de forma

que estes não foram realizados apenas nas mesas da sala, com as crianças sentadas nas cadeiras,

mas sim, eram realizados no chão ou no tapete da sala, com as crianças deitadas ou sentadas de

diferentes maneiras.

As crianças, por meio de suas diferentes manifestações, demonstraram que o espaço da

sala não é unicamente destinado a vivência de momentos cognitivos ou momentos sem

movimento, mas sim, é um espaço dinâmico, onde as crianças brincam, expressam-se e se

movimentam, manifestando a sua inteireza. Os adultos, frente a estas manifestações das crianças,

buscaram valorizar o que as crianças estavam indicando, procurando não reprimir seus

movimentos, suas brincadeiras, mas sim, possibilitando que elas vivenciassem aquele espaço

enquanto seres integrais que são.

Há outra situação que ilustra com clareza a preocupação em tornar este espaço da sala, um

lugar onde as crianças podem vivenciar a sua corporeidade.

Após uma conversa com as crianças, que estavam sentadas na roda, a professora do grupo propôs para as crianças uma brincadeira de dança de roda, ali naquele espaço da sala. Então ela convidou as crianças a se levantarem e que dessem as mãos umas as outras, formando um círculo. Então, ela inicia demonstrando alguns movimentos que existiam naquela dança de roda. Estes movimentos envolviam a batida de mãos entre as crianças, caminhar de mãos dadas mantendo a roda, batida de palmas e a expressão corporal da própria dança. Após demonstrar algumas vezes os movimentos e as crianças acompanharem, cada uma ao seu jeito, todos realizaram a dança de roda. As crianças, nesta vivência, demonstravam estar gostando bastante. Ao observá-las, vi que elas se expressavam na dança com muito prazer. Elas sorriam, olhavam umas para as outras e brincavam. Após terminarem toda a dança uma vez, algumas crianças deram “vivas”, comemorando, pulando e se abraçando no centro da roda, tudo em um tom de brincadeira. Logo em seguida, após terminarem a comemoração, elas logo queriam começar tudo de novo (DIÁRIO DE CAMPO, 23/09/2009).

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Neste episódio, podemos perceber que a professora do grupo procurou desconstruir a

idéia de que a sala é apenas o lugar para brincadeiras que não envolvem tanto os movimentos. A

partir de sua proposta em fazer uma dança de roda na sala com as crianças, elas se mobilizaram

para arrumar a sala, afastando as cadeiras e mesas e abrindo espaço para a dança. Interessante

notar que aqui, arrumar a sala ganha um sentido novo para as crianças, uma vez que a lógica

deste espaço é que as cadeiras e mesas estejam sempre arrumadas. Assim, para que este

“arrumar” seja possível, foi preciso que se desarrumasse toda a estrutura onde as cadeiras e mesas

estavam organizadas sob uma lógica adulta. E as crianças, frente a esta nova configuração da

sala, pareceram gostar muito, afinal, havia muito mais espaço para elas brincarem e se

movimentarem.

As crianças também evidenciaram gostar muito de estar brincando de roda dentro da sala,

pois percebia-se em seus rostos muitos sorrisos e em seus corpos muita agitação, muita vontade

de dançar. E sempre que a dança terminava, elas queriam começar tudo de novo.

Houveram outros momentos em que esta desconstrução do espaço da sala se fez presente.

Em um deles, a professora do grupo propôs que as crianças pulassem corda ali dentro da sala, e

as crianças, diante desta proposta, mostraram-se bastante entusiasmadas.

Há alguns autores que buscam discutir esta questão dos espaços da instituição como algo

voltado para os interesses e singularidades das crianças. Estes autores buscam problematizar

lógicas onde há uma estruturação muito rígida destes espaços, onde o adulto acaba determinando

o que irá acontecer neste ou naquele ambiente. Coutinho (2002) afirma que “o movimento,

enquanto linguagem do corpo, tem na instituição lugar e hora marcados para acontecer, 'as aulas

de educação física'; e de forma mais livre, os momentos de parque. É considerado dimensão

imprópria para a sala, algo que quebra a organização da rotina” (p.130). Esta afirmação vai ao

encontro das discussões e situações vistas anteriormente, entretanto, o movimento não ficou

apenas restrito a tempos e espaços pré-estabelecidos, mas sim, ele aconteceu no espaço da sala,

foi proposto naquele espaço, e as crianças tiveram a possibilidade de vivenciar os seus corpos em

um ambiente onde muitas vezes elas não tem muitas possibilidades para isto. Porém, isto não

significa que esta seja a realidade em todas as instituições, mas sim, nos auxilia a refletir sobre o

porquê de em muitos momentos ainda reservarmos os espaços da sala apenas para atividades que

não envolvam movimentos.

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De certa maneira, ao restringirmos os movimentos das crianças a tempos e espaços pré-

determinados, onde a sala é sempre o lugar da imobilidade, acabamos contribuindo para uma

educação dos corpos. Educação esta que visa que as crianças aos poucos vão ficando mais

paradas, vão se acostumando a realidade de uma escola que não permite o movimento em sala,

vão se acostumando a dominar os seus corpos para que o pensamento racionalizado entre em

cena. Como já afirmara Vaz (2002b), “crianças que ficam em suas cadeiras estão tendo seus

corpos educados; quando podem ou não andar/correr pelos corredores, ou mesmo entre as

carteiras e mesinhas, também” (p.3).

Diante disto, é fundamental desconstruirmos esta idéia adultocêntrica de que os espaços

da sala sejam restritos ao pensamento e não sejam um local que possibilite o movimento, pois

assim, valorizamos as crianças enquanto sujeitos de direitos, enquanto crianças que vivenciam

este momento não como uma preparação para o futuro, mas sim como um período com as suas

especificidades, e que encontra também nos movimentos uma linguagem e uma maneira

fundamental de interagir, conhecer o mundo e a si mesma.

Mas e o parque? Será que este é um espaço exclusivo do corpo? Assim como vimos que a

sala é vista como um ambiente que deve privilegiar todas as dimensões das crianças, o parque

também deve possibilitar isto às crianças. Entretanto, muitas vezes, se tem a idéia de que o

parque é apenas o local onde as crianças vão descarregar as energias, como o único local possível

onde as crianças podem vivenciar os seus corpos. Há alguns episódios que nos ajudam a refletir

se o parque é apenas o lugar do corpo, ou se é um espaço para a criança por inteiro. Um destes

pode ser verificado a seguir.

Eu estava no parque com as crianças. Observei que algumas estavam brincando no balanço. Então, Lulú aproxima-se de mim e diz: “-Me balança”. Então, proponho que Lulú tente se balançar sozinha. Ela insiste mais um pouco, e eu continuo dizendo para ela tentar sozinha para ver se ela consegue. Ela aceita, e então começa a se balançar. Neste mesmo momento, Timi Turner e Lig também começam a brincar nos balanços, e nesta brincadeira começam a experimentar diferentes maneiras de se balançar. Eles tentam se balançar em pé, depois segurando apenas uma mão, depois levantando uma das pernas, depois colocando a cabeça para trás. Lulú, ao ver os dois fazendo isto, também começa a experimentar outras formas de se balançar. Fico ali próximo a eles, observando os seus diferentes movimentos em cima do balanço. A cada novo movimento experimentado pelas crianças, elas me chamam e dizem: “-Olha Marcos, olha o que eu consigo fazer”. A

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cada diferente movimento que elas realizavam, elas sorriam e demonstravam bastante satisfação em realizá-lo (DIÁRIO DE CAMPO, 09/10/2009).

Neste episódio, podemos perceber as crianças brincando nos balanços. Porém, o balanço

ganha outro significado no momento em que elas começam a tentar se balançar de diferentes

maneiras, superando assim a forma que muitas vezes as crianças utilizam para balançarem-se.

Percebe-se também a interação entre as crianças no momento em que estão se balançando, uma

vez que em um momento, Lig e Timi Turner começam tentando balançar de um jeito diferente, e

Lulú, ao ver os dois fazendo isto, também tenta explorar outras maneiras de se balançar. E as

crianças, a cada vez que se balançavam de um jeito diferente, perguntavam ao auxiliar de

sala/pesquisador se ele tinha visto aquilo que elas tinham feito, evidenciando o quanto elas

valorizaram as suas diferentes manifestações em cima do balanço.

A partir desta cena, podemos considerar que o parque não é apenas um espaço dedicado

exclusivamente ao corpo, ou a vivências corporais por parte das crianças, mas sim, é um espaço

que abriga diferentes interações, diferentes brincadeiras, diferentes trocas entre as crianças, como

visto na cena anterior. As crianças, no momento em que estavam vivenciando o seu corpo e suas

diferentes possibilidades, estavam também realizando outros tipos de experiências, como também

davam um sentido/significado àqueles movimentos realizados nos balanços. E estes movimentos

não eram um simples gesto motor, mas despertava as mais diferentes sensações nas crianças que

o estavam realizando.

Desta forma, é fundamental problematizarmos o espaço do parque não apenas como o

lugar para descarregar as energias das crianças, de forma que elas voltem para a sala cansadas e

queiram ficar paradas. Considerar que o parque tenha unicamente esta função é

compartimentalizar os tempos e espaços das instituições de Educação Infantil, e

conseqüentemente, contribuir para uma dicotomia corpo/mente das crianças, pois no momento

em que realizamos esta compartimentalização, as crianças são limitadas em sua capacidade

criadora, de forma que as brincadeiras, vivências e trocas entre as crianças acabam se

restringindo à lógico dos adultos, que determinam aquele espaço como exclusivo para o corpo

(SAYÃO, 2002b).

A partir destas discussões envolvendo o espaço da sala e do parque, procuramos

evidenciar que estes locais não devem ser considerados unicamente o espaço da mente ou o

espaço do corpo. As crianças, em diferentes momentos, nos revelaram por meio de suas

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linguagens que tanto a sala quanto o parque são os espaços em que elas querem vivenciar a sua

inteireza, sua completude. Mesmo que os professores, sob uma lógica adultocêntrica, queiram

engessar os tempos e espaços nas instituições de Educação Infantil, as crianças encontram na

transgressão a melhor maneira de revelar/reivindicar que querem tempos e espaços voltados para

elas, pensados por elas, estruturados de acordo com os interesses e necessidades delas, e que

acima de tudo, valorizem todas as suas dimensões humanas de maneira indissociável, onde corpo

e mente sejam valorizados em todos os tempos e espaços. Assim, estaríamos “assumindo o desejo

manifestado pelas crianças de se movimentar, para conhecer, para comunicar-se, para explorar,

para interagir, para expressar-se, nesta caminhada de humanos que somos” (AGOSTINHO, 2003,

p.122). Diante disto, consideramos fundamental romper com a lógica adultocêntrica, de forma

que a alteridade e as singularidades das crianças sejam respeitadas, para considerarmos as

crianças seres integrais, que possuem uma corporeidade e uma subjetividade que estão presentes

em todos os momentos que elas vivenciam nos espaços coletivos de educação de crianças

pequenas.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao chegarmos ao final deste estudo, surge a necessidade de tecermos algumas

considerações à respeito do mesmo. Nossa proposta inicial foi a de discutir aspectos envolvendo

a manifestação da corporeidade e da subjetividade das crianças, considerando-as de maneira

indissociável. A temática envolvendo a questão do corpo e mente em contextos de Educação

Infantil ainda encontra poucos estudos. Em sua maioria, observamos algumas discussões

envolvendo o corpo no espaço da Educação Infantil, ou então algumas críticas a falta de espaço

que o corpo tem nestes locais. Com isso, acreditamos que o presente estudo trouxe algumas

contribuições significativas para pensarmos tanto a questão do corpo e da corporeidade, como a

questão da mente e da subjetividade das crianças, pois ambas as dimensões estão

interrelacionadas e estabelecem um constante diálogo, como vimos em algumas situações

observadas.

Durante as observações, as crianças foram os nossos maiores porta-vozes no que diz

respeito a elas mesmas, as suas diferentes maneiras de expressarem-se tanto corporalmente

quanto subjetivamente. E ao almejarmos compreender e estudar questões que dizem respeito às

crianças, é fundamental ouvirmos as suas vozes e diferentes expressões, sejam elas manifestadas

por meio de falas, ou por meio de outras de suas diferentes linguagens.

A posição de professor/pesquisador, em muitos momentos, se revelou bastante difícil,

principalmente no que diz respeito a estranhar o familiar. A cada dia, foi preciso observar as

crianças “como se fosse a primeira vez”. Entretanto, acreditamos que o professor deve ser sempre

um pesquisador, buscando estranhar o que as crianças manifestam, como também refletir e

pesquisar constantemente o seu cotidiano, de forma a torná-lo mais próximo às singularidades

das crianças.

E a partir destas diferentes linguagens das crianças, percebemos o quanto elas valorizam

as vivências que envolvem o seu corpo e seus movimentos, pois a todo momento elas o estavam

vivenciando nos mais diferentes ambientes da instituição, seja na sala ou no parque. Percebemos

também que as crianças manifestaram diversas vezes a sua subjetividade, e mais do que isso,

revelaram que precisam que a sua corporeidade e subjetividade sejam respeitadas para que elas

de fato possam viver a sua infância em sua plenitude.

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Assim, apontamos para a necessidade de tanto as instituições de Educação Infantil, no que

diz respeito a sua organização institucional, quanto os professores, no que se refere ao seu

planejamento dos tempos e espaços para as crianças, busquem contemplar estas dimensões das

crianças de maneira indissociável, ou seja, é fundamental valorizar questões relacionadas a

corporeidade das crianças e a sua subjetividade, pois as crianças encontram nestas, diversas

possibilidades de interagir com o mundo ao seu redor, conhecer a si mesma, interagir entre seus

pares e com adultos, ampliar os seus repertórios culturais e ressignificar a cultura que a cerca.

Na instituição onde realizamos a pesquisa, percebemos que a dicotomia corpo/mente não

se fez presente nos diversos momentos em que as crianças estavam na instituição, de forma que

estas dimensões das crianças foram valorizadas, possibilitadas e ampliadas de uma maneira

indissociável. Entretanto, talvez esta não seja a realidade em outras instituições de Educação

Infantil. Desta forma, apontamos para a necessidade de outros estudos serem realizados no

sentido de avançarmos ainda mais na compreensão acerca desta temática, de forma que possamos

a cada dia superar perspectivas que dicotomizem as crianças.

Diante de todas as considerações e reflexões realizadas a partir deste estudo, finalizamos

voltando nosso olhar para as crianças, onde compreendemos que é sempre fundamental

buscarmos compreender em suas singularidades e diferentes maneiras de se expressar, os

aspectos que dizem respeito a elas mesmas, pois assim, estaremos de fato as considerando

sujeitos de direitos e que possuem diferentes conhecimentos dos adultos, e por isso, devem ser

ouvidas e respeitadas em sua condição de ser criança.

E do contato com as crianças enquanto pesquisador e auxiliar de sala, fica a saudade das

crianças, das risadas, dos momentos engraçados vivenciados com elas, dos abraços por elas

distribuídos, dos pedidos para pegá-las nos braços e girar ou colocar de cabeça para baixo, dos

pedidos para ser “o lobo das cócegas” e de todos os momentos onde a adultez rígida e

racionalizada foi desconstruída, possibilitando voltar a ser criança.

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ANEXO

DECLARAÇÃO

DECLARAMOS para os devidos fins que o Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) de

Pedagogia do Centro Universitário Municipal de São José – USJ, de autoria de Marcos

Schwambach foi revisado gramaticalmente e ortograficamente na Língua Portuguesa.

São José, 18 de fevereiro de 2010.

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Marcos Schwambach