Corpointerface

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA ROBERTO BASÍLIO FIALHO CORPOINTERFACE: RELAÇÕES ENTRE CORPO E IMAGEM NA CENA CONTEMPORÂNEA DE DANÇA SALVADOR 2011

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dissertação de mestrado em dança.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DANA

    ROBERTO BASLIO FIALHO

    CORPOINTERFACE: RELAES ENTRE CORPO E IMAGEM NA CENA

    CONTEMPORNEA DE DANA

    SALVADOR

    2011

  • ROBERTO BASLIO FIALHO

    CORPOINTERFACE: RELAES ENTRE CORPO E IMAGEM NA CENA

    CONTEMPORNEA DE DANA

    Dissertao apresentado ao Programa de Ps-Graduao em

    Dana da Escola de Dana da Universidade Federal da Bahia

    como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em

    Dana.

    Orientadora: Profa. Dra. Ludmila Cecilina Martinez Pimentel

    SALVADOR

    2011

  • ROBERTO BASLIO FIALHO

    CORPOINTERFACE:

    RELAES ENTRE CORPO E IMAGEM NA CENA CONTEMPORNEA DE DANA

    Dissertao apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Dana da Escola de Dana da Universi-

    dade Federal da Bahia como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Dana.

    Salvador, ____/____/2011

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    Profa. Dra. Ludmila Cecilina Martinez Pimentel - PPGDana UFBA (Orientadora)

    _______________________________________________________________

    Prof. Dra. Karla Schuch Brunet - Programa Multidisciplinar de Ps-

    Graduao em Cultura e Sociedade, UFBA (Examinador Externo)

    _______________________________________________________________

    Profa. Dra. Leda Muhana Iannitelli - PPGDana UFBA (Examinadora interna)

  • Dedico este trabalho a duas pessoas que nunca desistiram de mim,

    Aquelas pessoas que olharam com carinho as tantas cabeadas que eu dei na vida,

    Minha querida v Candinha e minha me Maura, em memria

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a minha famlia que ama e amada, pelo apoio e incentivo que sempre me deram

    sem isso essa jornada no faria sentido. Ana Doria (Dinda), Reinaldo (Painho), Claudia Doria,

    Dr. Salomo, Carol e Silvia Doria, Jorge Morillo e Nda Morillo;

    Aos professores que iluminaram minha vida, meu corpo e minha dana: Paco Gomes, Vera

    Carvalho, Sheila Barbosa, Amlia Conrado, Adriana Bittencourt, Fabiana Britto, Mestre

    King, Monica Balalai, David Iannitelli, Jussara Setenta, Lucia Matos, Dulce Aquino, Antrifo

    Sanches, Carlos Morais, Claudia Doria (novamente), Emlia Biancard; Em especial as profes-

    soras Beth Rangel e Leda Muhana que com muito carinho fizeram da Graduao em Dana

    um local agradvel de dilogos e trocas de informaes vitais para minha formao acadmi-

    ca;

    Quero agradecer aos funcionrios da Escola de Dana da UFBA, principalmente a Neidinha,

    que nunca me deixou faltar um cabo, um fio, ou uma Xerox;

    A Escola de Dana da FUNCEB e todos professores que alimentam o sonho de danar;

    A minha orientadora professora Dra. Ludmila Cecilina Martinez Pimentel, pela dedicao e o

    olhar cuidadoso, assim como tambm por sua pacincia em me mostrar tantas vezes qual seria

    o melhor jeito de prosseguirmos;

    Quero agradecer a alguns amigos especiais como Ana Karla, Lucia Helena, a pequena flor de

    Lis, Marcos e Fabio, Pai Luis por todas as horas do mundo estar disponvel, Roberto Cerquei-

    ra e sua famlia, Junior Oliveira, David Caldas, Alan Caldas, Wandoka, Araci, Rafael Rebou-

    as;

    A Adriana Telles, no sei nem como agradecer a ateno e o cuidado com que revisou todo o

    texto, queria que meus beijos voassem pra voc e que pudessem ser escutados seus estalos,

    nesse exato momento, muito obrigado;

    Aos alunos integrantes do GDC e sua gentil diretora Gilsamara Moura, meus sinceros cari-

    nhos para todos;

    A marida e parceira de dana, Bel Souza, por muitos momentos de alegria e conflito;

    Ao professor Dr. Sergio Cerqueda por ter me incentivado a fazer um curso universitrio e me

    apoiado nos primeiros anos de graduao;

    Ao candombl religio que me escolheu e me abraou, ao meu pai Xngo, OBANIXE KAO

    KABIESILE;

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), pelo auxlio concedido,

    sem o qual a realizao deste trabalho seria, seguramente, mais difcil;

  • QUEREMOS SABER

    Queremos saber,

    O que vo fazer

    Com as novas invenes

    Queremos notcia mais sria

    Sobre a descoberta da antimatria

    E suas implicaes

    Na emancipao do homem

    Das grandes populaes

    Homens pobres das cidades

    Das estepes dos sertes

    Queremos saber,

    Quando vamos ter

    Raio laser mais barato

    Queremos, de fato, um relato

    Retrato mais srio do mistrio da luz

    Luz do disco voador

    Pra iluminao do homem

    To carente, sofredor

    To perdido na distncia

    Da morada do senhor

    Queremos saber,

    Queremos viver

    Confiantes no futuro

    Por isso se faz necessrio prever

    Qual o itinerrio da iluso

    A iluso do poder

    Pois se foi permitido ao homem

    Tantas coisas conhecer

    melhor que todos saibam

    O que pode acontecer

    Queremos saber, queremos saber

    Queremos saber, todos queremos saber

    Gilberto Gil, 1976

  • RESUMO

    Esta dissertao se prope a criar um conceito de dana intitulado corpointerface, em que, o

    corpo uma interface que une sua condio biolgica humana a estruturas de procedncia

    maqunicas atravs da dana. Entendemos a dana como um fazer tcnico do corpo; uma lin-

    guagem artstica que pode ser pensada dentro de uma organizao sistmica. Nosso recorte

    est focado nas danas que possuem interfaces com a imagem audiovisual. Para isso obser-

    vamos os produtos/processos da dana realizados com os suportes tcnicos das cmeras foto-

    grficas, cinematogrficas e videogrficas, para constatarmos que a imagem do corpo tem

    sido continuamente transformada e ressignificada. As novas tecnologias da comunicao e da

    imagem introduziram na arte, diferentes formas para lidar com processos criativos em dana.

    A teoria ciberntica nos orienta rumo ao mergulho na cultura digital, para entendermos que

    tais relaes s se tornaram pertinentes, devido troca de informaes entre humanos e m-

    quinas. O resultado dessa empreitada est pautado nas imagens de corpos recortados, frag-

    mentados, virtualizados e atualizados que a dana na contemporaneidade tem produzido.

    Palavras-chave: Corpo. Interface. Dana. Tecnologia. Imagem.

  • ABSTRACT

    This thesis proposes to create a concept of dance titled corpointerface, in which the body is an

    interface that unites their biological condition of human origin machinic structures through

    the dance. We understand dance as a technician the body, a language of art that can be

    considered within a systemic organization. Our approach centers on the dances that have

    interfaces with the audiovisual image. For that we witnessed the products/processes of dance

    performed with the technical support of photographic cameras, film and videography, we will

    notice that the body image has been permanently transformed and new meaning. The new

    technologies of communication and image introduced in different art forms to deal with

    creative processes in dance. The cybernetic theory orients us towards the dip in digital culture

    to understand that such relationships have only become relevant because the exchange of

    information between humans and machines. The result of this venture is based in the images

    of bodies cut, fragmented, virtualized and updated that has produced in contemporary dance.

    Keywords: Body. Interface. Dance. Tecnology. Image.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Le point de vue de la fentre .................................... 30 Figura 2: Race horse galloping animated ................................ 32 Figura 3: Bailando .................................................................... 33 Figura 4: Flying pelican ........................................................... 34 Figura 5: Tango de Roxane ...................................................... 36 Figura 6: Hot honey rag ... 36 Figura 7: Cena de 42nd Street .................................................. 37 Figura 8: Frame de La Danse Serpetine .. 39 Figura 9: Frame de Witch Dance ....... 40 Figura 10: Frame do filme A Lanterna Mgica ....................... 42 Figura 11: Frame do filme Intolerance 43 Figura 12: Frame do filme West side story 44 Figura 13: Frame do filme Vem danar comigo 46 Figura 14: Frame do filme Romeu e Julieta 46 Figura 15: Frame do filme Evita 46 Figura 16: Frame do filme Tango 46 Figura 17:Frames de Study in Choreography for Camera 49 Figura 18: ... e fez o homem sua diferena, 53 Figura 19: Frame da videocenografia de Ilinx 53 Figura 20: TV Magnet 55 Figura 21: TV Buddah 56 Figura 22: Usina 60 Figura 23: Esquema ciberntica de I ordem 63 Figura 24: Esquema ciberntica de II ordem 65 Figura 25: Pintando tela numero 12 66 Figura 26: Mquina de Turing 76 Figura 27: Sem nome 114 Figura 28: Instalao I-Arch Body 116 Figura 29: Variations V 118 Figura 30: Trisha Bronw Homemade 121

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................. 10

    INTERFACE I: CORPO & TCNICA ..........................................

    1.1 CORPO, CONSTRUO TCNICA INTERATIVA ................ 15

    1.1.1 Tcnica como interface do corpo ........................................... 17

    1.1.2 corpo/tcnica............................................................................. 19

    1.1.3 Interface corpo e linguagem ................................................... 24

    INTERFACE II: CORPO E TECNOLOGIAS DA IMAGEM ....

    2.1 REPRESENTAES DO CORPO NA HISTRIA DAS TEC-

    NOLOGIAS DA IMAGEM ...............................................................

    28

    2.1.1 Fotografia: Interface do corpo com o registro do movimen-

    to .........................................................................................................

    29

    2.1.1.1 O movimento do corpo na fotografia ...................................... 31

    2.2 CINEMA: INTERFACES DO CORPO QUE DANA COM A

    IMAGEM EM MOVIMENTO ...........................................................

    35

    2.2.1 Registro cinematogrficos de coreografias ............................ 38

    2.2.2 Interface Cinema/Dana ......................................................... 41

    2.2.2.1 O cinema experimental de Maya Deren.................................. 47

    2.2.2.2 A transio cinema-vdeo de dana ........................................ 50

    2.2.2.3 Vdeo de dana........................................................................ 52

    2.2.2.4 Documentrios de dana ........................................................ 57

    INTERFACE III: ESTGIOS PR-HISTRICOS AO CON-

    CEITO DE CORPOINTERFACE

    3.1 AS CIBERNTICAS .................................................................... 61

    3.2 VANGUARDAS NA PS-MODERNIDADE ARTSTICA....... 66

    3.3 DANA, TECNOLOGIA E CINCIA ........................................ 71

    INTERFACE IV: CORPOINTERFACE .........................................

    4.1 CORPO E VIRTUAL ................................................................... 80

    4.2 INTERFACES CYBORGS/ORGANISMO BIOCIBERNTICO 90

    4.2.1 Corpointerface - A proposio de um conceito ..................... 102

    4.2.1.1 Softwares ................................................................................ 112

    4.2.1.2 Cd-Rom ................................................................................... 114

    4.2.1.3 Instalao De Dana ............................................................... 116

    4.2.1.4 Dana Para Internet ................................................................. 116

    4.2.1.5 Danando Com Sensores ........................................................ 117

    4.2.1.6 Vanguarda na dana: variations V........................................... 117

    4.2.1.7 Trisha Bronw .......................................................................... 120

    4.2.1.7 Isablle Chonire 122

    Consideraes finais ......................................................................... 125

    Bibliografia ........................................................................................ 129

  • 10

    INTRODUO

    A presente dissertao o resultado de uma pesquisa realizada junto ao Programa de

    Ps-Graduao em Dana da Faculdade de Dana da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

    Nossa proposta compreender como interfaces entre corpo e novas tecnologias da imagem

    conceituam uma nova maneira de compor dana.

    O interesse neste assunto foi gestado durante nossa graduao em Dana, realizada

    na mesma Faculdade, entre os anos de 2002 e 2006 e sedimentado durante o curso de Especia-

    lizao em Estudos Contemporneos em Dana, em 2008. Durante a graduao, no ano de

    2004, fui selecionado para participar do Grupo de Dana Contempornea (GDC), situado na

    Escola de Dana da UFBA. Ainda durante a graduao e j integrante do GDC, fui convidado

    pela professora Dra Ivani Santana para desenvolver uma pesquisa de iniciao cientfica (PI-

    BIC 2005/2006) e integrar seu grupo de pesquisa.

    A funo de danarino em dois grupos formados no mbito da Faculdade de Dana

    Grupo de Dana Contempornea (GDC) e o Potica Tecnolgica na Dana1 e a atuao tc-

    nica, a partir da qual buscvamos entender as relaes tericas e prticas entre corpo e cmera

    na dana, nos proporcionaram a realizao operacional de registros de ensaios e espetculos, a

    concepo artstica, a edio de vdeo e a projeo de imagens. Assim, realizamos os espet-

    culos E fez o homem a sua diferena (2005), E fez o homem a sua diferena II (2005),

    Versus (2006), e Ilnx (2007). Essas experincias continuadas alimentavam nossos inte-

    resses sobre especificidades tcnicas e qualidades de movimentos para o suporte do vdeo,

    permitindo pensar as relaes entre corpo e imagem na dana. Foram experincias como essas

    que deram forma ao projeto da pesquisa desenvolvida durante o Mestrado.

    Assim, esta dissertao pretende fundamentar teoricamente o tema, pontuando mo-

    mentos em que podem ser visveis dilogos entre corpo e imagem, descrevendo a pertinncia

    de interfaces que, quando associadas ao corpo, produzem novos padres de corporalidade, ou

    seja, novas tcnicas para a dana. Para dar conta de tal discusso, vimos a necessidade de a-

    bordamos as transformaes culturais que a ciberntica introduziu na sociedade. A idia

    argumentar que a introduo de imagens audiovisuais2 na cena contempornea de dana trans-

    forma o fazer coreogrfico, afetando sua organizao, assim como a prpria imagem do corpo

    1 Conhecido por GP potica promove a reflexo, a investigao e produo de dana e da performance em

    interao com as novas tecnologias e visa possibilitar o desenvolvimento e aprofundamento tcnico-prtico neste

    campo. 2 [...] audiovisual na sua essncia: um discurso sensvel sobre o mundo. (MACHADO, 2003, p.68)

  • 11

    que dana.

    A introduo do pensamento terico sobre a ciberntica na cultura , de maneira geral,

    o que tem embasado a cultura digital, caracterizando-se como o principal agente motivador de

    transformaes que ocorreram durante o sculo XX. Esse aspecto pode ser observado, por

    exemplo, com a introduo da energia eltrica na sociedade, no final do sculo XIX, quando

    os campos da comunicao e do conhecimento foram expandidos, em decorrncia desse

    mesmo fato; mas sua principal ao aconteceu em meados do sculo XX, quando se formaliza

    a relao do homem com o computador, em paralelo aos estudos sobre a ciberntica e sua

    continuidade, a chamada ciberntica da segunda ordem.

    Entendemos que, em 2011, a vida encontra-se sob o reflexo desses acontecimentos an-

    teriores e observamos que as fronteiras que antes delimitavam a arte, a cincia e a tecnologia

    esto cada vez mais dissolvidas umas nas outras. Para ns, o corpo tem sido abordado por

    essas trs formas de produo de conhecimento. O corpo se adapta aos meios com os quais

    dialoga, viabilizando formas de lidar consigo mesmo e com as contingncias impostas por

    essa nova contextura. Nesse processo, est sempre se reformulando, porque precisa interagir

    nesse caso, a transformao um processo fundamental para sua existncia. Assim, a transito-

    riedade do corpo acontece por trocas de informaes3 com o meio no qual est inserido.

    O corpo um organismo vivo, biolgico, aparato tcnico e perceptual, dotado de uma

    linguagem eficaz para faz-lo interagir com seu meio; desenvolve-se e se comunica pela per-

    cepo do movimento que o faz de interface para dialogar com seu meio e esclarece enten-

    dimentos sobre a relao natureza/cultura4.

    O corpo caracterizado por estar sempre em um processo complexo de reelaborao

    sobre si prprio, processo em que se constroem relaes comunicacionais que renem infor-

    maes de distintos tempos, em sua historicidade. Assim, sob esta concepo de temporali-

    dade assimtrica, a historiografia ganha sentido processual enquanto a histria ganha sentido

    co-evolutivo (BRITTO5, 2010, p.169). Passado e presente so situados nos movimentos que

    3 O entendimento de que o corpo abriga informaes proveniente das Teorias da Comunicao, a partir de uma

    viso sistmica. Mas no estamos nos referindo s trocas de informaes dentro do modelo binrio emissor-

    receptor; trata-se de sistemas complexos e abertos que trocam informaes de maneira criativa, adaptativa e no

    linear, no podem ser minimizados como simples trocas. Para Lvy, a informao um bem imaterial que parti-

    lha forma, estrutura, propriedade, contexto e no pode ser do seu suporte fsico. Para o autor, a partir da infor-

    mao que se forma o conhecimento. A informao , assim, da ordem dos acontecimentos ou processos

    (LVY, 1996) 4 Nesta dissertao, estaremos aglutinando algumas palavras com o smbolo /, pois entendemos que tais pala-

    vras no devem ser separadas, o entendimento que elas trazem, juntas, um significado prprio para o contexto

    das nossas discusses. 5 Fabiana Dultra Britto historiadora de dana, Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Dana da

    UFBA, Graduada em dana pela UFBA, Mestre em Artes pela ECA/USP Doutora em comunicao e Semitica

    pela PUC/SP. Ps-Doutora pela Bauhaus Universitt Weimar.

  • 12

    a dana produz essa atemporalidade no representa lacunas estanques no tempo, pura con-

    tinuidade que age como uma qualidade do ser vivo. A experincia anterior reorganizada a

    partir de aes novas, ou seja, no acumulativa ou esttica; um aprendizado, uma forma do

    conhecimento a ser manifestada pelo movimento. Caar, acender uma fogueira, cortar lenha,

    ordenhar uma vaca, pescar, desenhar em paredes de cavernas e danar so aes que foram

    desenvolvidas e aprimoradas ao longo do tempo/espao em diferentes momentos. A corpora-

    lidade humana que temos hoje perpassa por esses momentos de organizao em que uma tc-

    nica formal foi adquirida. Por isso existem tantas diferenas nas aes corporais que enxer-

    gamos no mundo. Foram processos que se instauraram na linha histrica do tempo/espao,

    aconteceram atravs de experincias corporais individuais e coletivas.

    As discusses empreendidas nesta dissertao procuraram dar conta do objetivo geral

    da nossa pesquisa: criar um conceito de dana a noo de corpointerface , a partir da apro-

    priao da ideia de atuao da interface proposta por Steven Johnson como uma espcie de

    tradutor, mediando entre as duas partes, tornando sensvel uma para outra (JOHNSON, 2001,

    p.17).

    Para tanto, traamos dois objetivos especficos: o primeiro foi identificar de que for-

    ma tm ocorrido interfaces entre corpo e imagens no cenrio da dana. Identificamos relaes

    entre corpo e mquina nas artes da fotografia, do cinema e do vdeo, que colaboraram para a

    transformao da dana; o segundo foi compreender como o corpo se apropriou das interfaces

    tecnolgicas da imagem e criou novas possibilidades estticas para a dana.

    Vale salientar que este trabalho no procede anlise de obras de dana; trata-se de

    uma reflexo terica, com vistas criao de um conceito. Entretanto, recorremos a algumas

    obras coreogrficas, como forma de articular nossas discusses. Nessas obras, percebemos

    que a dana foi organizada metodologicamente a partir de uma estrutura interativa que trans-

    forma a imagem do corpo.

    Para fundamentar teoricamente nossas discusses, realizamos uma pesquisa biblio-

    grfica, a partir de obras que discutem questes e conceitos prximos queles que interessam

    ao nosso estudo. Entre essas obras, podem-se citar Cultura da Interface: como o computador

    transforma nossa maneira de criar e comunicar, de Steven Johnson (2001); O que o virtu-

    al?, de Pierre Lvy (2007); Os meios de comunicao como extenses do homem de Marshall

    McLuhan (2007); Corpo e comunicao: sintoma da cultura de Lcia Santaella (2004); Ci-

    berntica e sociedade o uso humano de seres humanos de Nobert Weiner (1993); A Cyborgue

    Manifesto: Science, Technology and Socialist-Feminist in the late twentieth century de Donna

    Haraway (1991); Greenwich Village 1963: o corpo efervescente de Sally Bannes (1999); Arte

  • 13

    e mdia de Arlindo Machado (2007). Alm dessas fontes, tambm recorreremos pesquisa

    documental, a partir de material impresso, como jornais e revistas, bem como sites cujas in-

    formaes nos fossem necessrias vale assinalar, nesse sentido, a importncia dos sites de

    armazenamento e compartilhamento de vdeos, como o YouTube, ao qual recorremos para

    acessar o registro de algumas obras (a importncia desses sites referida, em alguns momen-

    tos, ao longo deste trabalho).

    No mbito acadmico, acreditamos que nossa pesquisa venha a contribuir para o en-

    tendimento da Dana como rea especfica de conhecimento. Nosso estudo vem se delineando

    por uma compreenso diferenciada das relaes complexas entre o corpo e as novas tecnolo-

    gias digitais da imagem, pelo recorte da dana, ampliando as perspectivas tericas e conceitu-

    ais sobre essa arte.

    Para melhor expor os resultados da pesquisa, esta dissertao est organizada em

    quatro captulos alm desta INTRODUO, na qual procuramos esclarecer os starts das nos-

    sas observaes, a fim de contextualizar as transformaes na imagem do corpo que dana, e

    refletir sobre a introduo do pensamento ciberntico na cultura contempornea. Esta INTRO-

    DUO expe ainda os objetivos da pesquisa e os procedimentos metodolgicos utilizados

    para alcan-los, assim como a justificativa da pesquisa e os principais autores com quais dia-

    logamos.

    No captulo 1, intitulado INTERFACE I: CORPO & TCNICA, abordam-se, a partir de

    uma viso histrica no linear, as questes da construo de uma corporalidade pela tcnica, o

    que conduz o corpo a formalizar uma linguagem especfica para dialogar com os meios que o

    homem desenvolveu.

    No segundo captulo, INTERFACE II: CORPO E TECNOLOGIAS DA IMAGEM, procuramos

    contextualizar o corpo e sua relao com as tecnologias da imagem tcnica, a partir da relao

    do corpo que dana com a fotografia, o cinema e o vdeo. Assim, buscamos entender que tipo

    de transformao essas mquinas de produzir imagens introduziram na arte da dana.

    No captulo trs, intitulado INTERFACE III: ESTGIOS PR-HISTRICOS AO CONCEITO

    DE CORPOINTERFACE. Para trabalhar questes referentes s principais interfaces tecnolgicas,

    recorremos noo de ciberntica (WIERNER, 1954; VON FOERSTER, 1960); Tambm

    contextualizamos nesse captulo o perodo histrico/artstico da ps-modernidade norte-

    americana que revigorou a cena de dana na contemporaneidade, e discutimos algumas as

    relaes entre dana, cincia e tecnologia.

    No quarto captulo, INTERFACE IV: CORPOINTERFACE, procuramos dar forma nossa

    proposta, a partir da observao de pontos em comum e de diferenas em algumas obras de

  • 14

    dana, no intuito de verificar a produtividade e aplicabilidade de tal conceito.

    Ainda que essa operao conceitual s se delineie mais explicitamente no ltimo ca-

    ptulo, durante todas as discusses empreendidas nos captulos 1 e 2 buscamos construir esse

    conceito, configurando-o a partir das transformaes conceituais e estticas que as tecnologias

    digitais da imagem tm operado na produo artstica em dana, mais especificamente no

    corpo que dana. Partimos do pressuposto de que isso acontece porque existem diferentes

    modos de relacionar a dana com as novas tecnologias da imagem, o que impulsiona diferen-

    tes processos criativos e renova o fazer artstico da dana, produzindo diversidade nesse cam-

    po. Esta proposta tambm se apia na idia do corpo, que, segundo entendemo, est em cons-

    tante transformao pelas prprias condies de transitoriedade da vida humana.

  • 15

    INTERFACE I CORPO & TCNICA

    Neste captulo, procuraremos fundamentar a noo de corpo que trabalharemos, as-

    sim como tambm de tcnica de corpo, e linguagem. Direcionamos nossa discusso para a

    ideia de que essa tcnica produz uma corporalidades que transformam o corpo e ampli-

    a/potencializa suas aes/relaes com o mundo.

    1.1 CORPO, CONSTRUO TCNICA INTERATIVA

    A possvel linha histrica do corpo comea h passados 5,5 milhes de anos, com

    os Australopithecus (um nome coletivo, que abriga quatro ou cinco espcies) e termina, por

    enquanto, no Homo sapiens sapiens. Sem pertencerem ao mesmo gnero do homem...

    (KATZ6, 2005, p.185). Os corpos dos possveis ancestrais do homem eram nmades, vivi-

    am no trnsito do ir e vir em diferentes espaos, sob as mais desfavorveis condies climti-

    cas, na busca por gua e reservas alimentcias, mas no com a organizao corporal que co-

    nhecemos hoje esse corpo no tinha a forma, a postura e o gestual como so agora. Varia-

    es no tamanho do crnio foram apontadas por descobertas cientficas, assim como tambm

    no porte fsico desses corpos que eram parecidos com chipanzs. O corpo humano, parecido

    como somos, habita a Terra h provveis 15 milhes de anos; uma longa histria, na qual

    muitas limitaes tiveram que ser superadas para que chegssemos a atual configurao mor-

    folgica e socioantropolgica. No cabe aqui retomar essa trajetria, mas alguns momentos

    que podem nos ajudar a esclarecer o tipo de transformao pelo qual o corpo passou.

    A partir da postura bpede do homem, as mos um rgo ttil, sutil e complexo

    saram do cho para construir a motricidade dos membros superiores, configurando o impor-

    tante papel da construo da gestualidade, ou seja, formalizou a comunicao, uma necessida-

    de primria para a sobrevivncia. A bipedia possibilitou o aprimoramento da viso a distncia,

    permitindo observar o inimigo de longe, procurar comida em copa de rvores e, a partir do

    coito frontal, perceber as expresses faciais do parceiro. A utilizao das mos permitiu que

    6 Helena Katz professora e pesquisadora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da

    PUC-SP, e do Programa de Ps-Graduao em dana na UFBA. Desenvolveu a Teoria do Corpomidia, uma

    teoria especfica para a Dana.

  • 16

    particularidades culturais e sociais se fundissem prpria histria criativa do homem na cons-

    truo das linguagens. A partir do poder de preenso do polegar, foi possvel o armazenamen-

    to de comida, a confeco e transporte de artefatos, a caa em grupo e o que mais tarde viria a

    se formalizar como sociedade7.

    O antroplogo, etnlogo e arquelogo francs Andr Leroi-Gourhan aborda no cap-

    tulo O crebro e a mo, do livro O gesto e a palavra: tcnica e linguagem, a questo da

    relao funcional e arquitetural entre a mo e o crebro no desenvolvimento da inteligncia e

    do corpo humano, considerando-a parte fundamental nos estudos sobre os mamferos. Para o

    autor, desde o incio que o estudo dos mamferos nos leva, por conseqncia, a por o pro-

    blema da mo, o da face e o da postura de preenso, que so na realidade um nico problema,

    mais diretamente ligado construo corporal do homem (LEROI-GOURHAN, 1990, p.55).

    Para se adaptar ao ambiente em que melhor sobreviveria, nossos ancestrais usaram as mos,

    tocaram, gesticularam, afagaram, perceberam, descobriram e sentiram; assim, conseguiram

    interagir e modificar o mundo a sua volta, e isso reverberou em sua corporalidade, pois a mo-

    dificou profundamente.

    De incio, o corpo, significativamente agiu por instinto e, com a mo livre do cho,

    criou artefatos com os quais se beneficiou, ao caar ou se defender. Simultaneamente, esses

    artefatos potencializaram suas aes para a construo de um mundo material e simblico.

    Acreditamos que as transformaes corporais que ocorreram nesse perodo da histria do cor-

    po, foram impulsionadas pela necessidade que a humanidade teve em desenvolver habilidades

    essenciais que garantissem a sobrevivncia e permanncia nas precrias condies ambientais

    da chamada Pr-Histria.

    Ao dar incio ao domnio e transformao rudimentar do seu meio, o corpo perce-

    beu, agiu, repetiu e reagiu novamente at se transformar, observando suas aes; o homem

    desenvolveu manejos e traquejos no domnio de sua corporalidade, dando ignio ao fluxo

    das informaes que construram a plasticidade dos seus movimentos; progressivamente pas-

    sou a controlar seus pensamentos e medos esse foi mais um longo e complexo processo que

    faz parte do que conhecido como cadeia evolutiva humana.

    Estamos sintetizando uma pequena parte dessa trajetria que muito nos interessa, por

    dizer respeito s transformaes corporais que ocorreram em distintos tempo/espaos de nossa

    existncia, para podermos compreender algumas mudanas no comportamento humano, a

    7 Em 2001: uma odissia no espao Stanley Kubrick (1968), encontramos uma das cenas da narrativa cinemato-

    grfica que melhor exemplificam esse momento da histria da evoluo humana. Trata-se de uma das cenas da

    sequncia inicial, no momento em que um primata descobre a funcionalidade do polegar opositor, o que, no

    futuro, dar ao ser humano uma condio superior em relao s outras espcies.

  • 17

    partir do que pode ser visualizado nessa narrativa/trajetria. Nossa tentativa aqui e a de criar

    uma imagem mental para que se possa entender esse percurso histrico. No nossa inteno

    fazer uma descrio detalhada sobre os processos evolutivos ou cognitivos do corpo, mas tra-

    zer uma reflexo contempornea acerca da construo da tcnica corporal, que se deu no de-

    senvolvimento da interao do corpo com seu meio e culminou nas transformaes do corpo

    humano. Historiografar um tal conjunto de eventos, implica construir um modelo cujo enfo-

    que seja o das correlaes dos conjuntos, e no mais o das trajetrias individuais (BRITTO,

    2010, p.168). A transformao do corpo parece ser um processo crucial para a vida, uma vez

    que sempre ocorreu e sempre acontecer. Esse processo se desenvolve de maneira muito lenta

    e j dura alguns milhes de anos.

    As possibilidades do corpo se desenvolver se pensarmos, em alguns momentos,

    que a evoluo dos humanos foi alavancada por muitos processos interativos com seu meio,

    em que se puderam estimular competncias cognitivas cresceram devido ao poder de ao

    que o movimento confere ao corpo, junto s possibilidades de ele agir sobre o ambiente. Essa

    relao desenvolve-se continuamente e dura at hoje; a interao do corpo com seu meio mo-

    dificou a ambos e, novamente, modificou o corpo e, sucessivamente, tem sido uma cadeia

    cclica, em que ambos esto implicados, imersos em processos individuais ou coletivos. Ain-

    da hoje, o humano busca, no movimento e na construo de corporalidades, formas de adapta-

    o para dar continuidade aos processos interativos, mas com as caractersticas que a atuali-

    dade possibilita, tal como veremos nos prximos captulos.

    1.1.1 Tcnica como interface do corpo

    Na histria do desenvolvimento humano, demandas cada vez mais tcnicas e criativas

    despertaram desejos e potncias interativas entre o corpo e seu meio, com o aprimoramento

    do uso das mos, a apreenso do fogo e a inveno de ferramentas; em diferentes pocas, cri-

    ou-se um vocabulrio corporal que complexificava as relaes sociais, inclusive as de poder.

    Isso significa que o corpo transformava seu contexto ao manipul-lo, ao mesmo tempo em

    que as motricidades eram desenvolvidas e assimiladas, isto , corporificadas. Assim, o que

    ainda no havia sido realizado ou criado representava uma possibilidade, um vir a ser.

    Alguns milhares de anos posteriores ao que se costuma marcar como surgimento do

    corpo como conhecemos, algumas tecnologias contriburam para a configurao da humani-

  • 18

    dade tal como conhecemos hoje. Desde a inveno roda (4500 a.C), que possibilitou ao corpo

    deslocar-se com mais rapidez e desenvoltura, dando incio a novas configuraes sociais, at a

    inveno da imprensa (1440 d.C.), que modificou substancialmente a comunicao humana,

    essas tecnologias8 tm reestruturado as sociedades, reposicionando permanentemente o corpo

    e estruturando sua relao dialgica com o meio.

    Nesse sentido, vale assinalar que o corpo est implicado nos artefatos que cria. As

    provas dessa observao esto diludas entre os feitos tcnicos e as tecnologias deixadas pela

    humanidade. Podemos perceber, na contemporaneidade, o quanto os artefatos se desenvolve-

    ram, na maior parte das vezes em benefcio do prprio corpo, colaborando com um melhor

    desempenho intelectual e fsico, inserindo o corpo em um processo constante de aprendiza-

    gem.

    O corpo conduziu e se deixou conduzir por fluxos de informaes criativas, necess-

    rias para continuar evoluindo, para formalizar diferentes corporalidades agregadas e dilatadas

    no tempo/espao, como uma sntese de todo acontecimento anterior. J no somos os corpos

    que fomos outrora; somos parte de uma evoluo, na qual a adaptao nosso maior fator de

    permanncia e transformao. Tornamo-nos materializados e materialidades ainda a serem

    trabalhadas, como um projeto encaminhado pela natureza/cultura, que est em elaborao de

    forma contnua. Nessa trajetria, no h uma meta a se alcanar nossa existncia se d num

    continuum, em que aspectos tanto culturais quanto ambientais nos conformam e modificam.

    Em nossa histria, a tcnica tem sido algo complexo e paradoxal, que no se estrutu-

    ra no corpo de forma linear. uma construo ininterrupta, um processo que acontece simul-

    taneamente aos acontecimentos do mundo, partir de continuidades e rupturas, em que as coi-

    sas e os fenmenos do mundo afetam o corpo e o transformam. Um tanto daquilo que foi ex-

    perimentado organiza internamente o corpo, pois imprime nele forma, sentido, significado e

    existncia.

    Assim, a corporalidade est relacionada aos recursos tcnicos, processos e habilida-

    des em que est imersa, e sua manuteno e desempenho dependero dos procedimentos fsi-

    cos cotidianos. As noes de corporalidade e tcnica iro variar de acordo com a experimen-

    tao e repetio em diferentes perspectivas de tempo/espao, ou seja, vai depender da inter-

    face que o corpo vai estabelecer para dialogar com o mundo. Para que surjam novas corpora-

    lidades, diferentes formas relacionais devem ser experimentadas pelo corpo. Diferentes tcni-

    8 Tecnologia aqui se refere a uma relao que envolve a tcnica e a lgica, no um conceito que figura na cultura

    digital, como usaremos em um determinado momento nesta dissertao. Assim, podem ser consideradas tecno-

    logias tanto os artefatos inventados pelo homem quanto formas de interao com esses artefatos, dentro das

    possibilidades permitidas nos diversos contextos histricos.

  • 19

    cas, condutas, hbitos, pocas, contextos e culturas constituiro modos distintos de organizar

    o corpo, suas formas e sua maneira de estar no mundo.

    1.1.2 Corpo/tcnica

    Em nossa concepo de corpo est implicada a noo de trnsito. Corpo: trnsito

    permanente entre natureza e cultura, o que parece no mudar, aparece tambm como a varie-

    dade do que no para de mudar (KATZ, 2005, p.16). Ele detentor de motricidades que se

    constituem ao longo de sua existncia, geradas em simbioses adquiridas durante as trocas de

    informaes com o seu meio. Nesse sentido, a corporalidade uma ao especfica que d

    plasticidade ao corpo, desenvolvida no local de suas experincias prticas, a partir de condi-

    es tcnicas que formam a motricidade.

    Ao se perceber diferente, distinto dos outros fenmenos do mundo, o corpo se conhe-

    ce, rompe a linearidade da ignorncia acerca de si mesmo e passa a navegar entre as possibili-

    dades que levaram a humanidade a se desenvolver intelectualmente. Podemos afirmar com

    clareza que a elaborao dessa corporeidade colaborou para aprofundar o relacionamento do

    corpo com a realidade, tornando-se uma das responsveis por prepar-lo para atuar com o seu

    meio. Ao integrar e interagir em um ambiente, o corpo transforma esse local, assim como

    transforma-se a si mesmo.

    Nesta dissertao, consideramos o corpo como um local de comunicao aberta, onde

    circulam informaes adquiridas nas relaes que mediam o corpo/ambiente e a tcnica essa

    informao no corpo. Essas informaes adquiridas, assimiladas e adaptadas pela tcnica

    transformam conceitos e estticas corporais, porque se misturam com novos conhecimentos,

    culturas e hbitos. Isso impulsiona a formalizao de novas tcnicas porque tambm se trans-

    forma com o passar do tempo algumas deixam de existir, mas abrem caminhos para novas

    perspectivas estticas da corporalidade humana.

    Corpo e o meio se organizam mutuamente a partir de relacionamentos dialgicos. O

    dilogo a chave do que vai estruturar a tcnica; logo, o ambiente um meio que possibilita a

    criao de uma tcnica. Um meio, para ns, , de maneira geral, algo que possibilita atingir

    um objetivo. Isso quer dizer que o corpo como local de comunicao adaptvel, individual e

    social, flexvel, no determinista, especfico, ao mesmo tempo em que tambm condio de

    todos todos temos um corpo. O relacionamento dialgico parte de pontos extremos proveni-

  • 20

    entes das similaridades ou oposies presentes na convergncia das necessidades do corpo. O

    meio em que vive o corpo material, pode ser percebido, explorado e modificado. O corpo

    tambm o . A diferena entre esse meio e esse corpo torna-se um motivador para o desenvol-

    vimento de tcnicas que viabilizem o dilogo entre essas materialidades.

    Na passagem do tempo/espao, o corpo experimenta o aprimoramento da motricida-

    de e, com o surgimento de diferentes prticas, a mudana do comportamento coletivo trans-

    forma, por sua vez, a maneira como nos relacionamos com o outro e com o mundo. O corpo

    busca aperfeioar seus dilogos com as tecnologias para alcanar melhores resultados de a-

    daptao ao meio e, ao construir essas relaes, inventa novos dilogos, sob a regncia de

    diferentes habilidades para coexistir com o seu entorno.

    Na atualidade, o corpo muito mais do que o que podemos delimitar com nossos o-

    lhos. Ele tambm a informao que o constitui, parte de seu ambiente, em muitos casos faz

    parte dos artefatos que criou. O trnsito entre corpo e ambiente a organizao/estrutura de

    um dilogo que aparece no corpo como motricidade, a partir de sua interao com a informa-

    o, uma relao que se instaura no contato e far parte do corpo. Ao nos relacionarmos com

    um artefato, por exemplo, aprendemos a lidar com ele, adquirindo aes especficas para o

    seu manuseio. A presena da informao demanda o entendimento da coisa. Nesse sentido,

    interagir transforma, pois o dilogo confere expressividade a essa relao. Os dilogos so

    interativos e o corpo articula tcnica e lgica para, assim criar seu espao de ao no mundo.

    Nas interaes entre o corpo e o meio so configuradas as tcnicas corporais. Nessas

    relaes, e a depender do contexto, emergem as dificuldades, os obstculos, as barreiras, as

    reflexes que sero encaminhadas para buscar possveis solues. Ainda que nem sempre

    essas solues sejam as mais adequadas, elas acabam por firmar acordos/estratgias que vo

    organizar o jeito mais pertinente para lidarmos com essas dificuldades.

    Os acordos, no corpo, se tornam visveis, a partir da esttica, do padro corporal que

    ele apresenta. O que se pleiteia conseguir, na troca, um dilogo, o que para ns configura

    uma tcnica. Em cada agenciamento acordado configura-se um comportamento diferenciado,

    uma prtica que constri sintonia com o contexto.

    Nesse processo, o corpo segue inventando estratgias que o auxiliar na seleo dos

    padres que lhe interessa, frente s necessidades pessoais. Um conhecimento adquirido pela

    interao torna-se um construto que formaliza no corpo uma tcnica baseada a partir de cada

    contexto vivido; diferentes e complexas adaptaes possibilitaram tcnicas efetivas no corpo.

    Como vimos anteriormente, as tcnicas modificaram o meio, e desde McLuhan (1964), quan-

    do o meio nos foi apresentado como mensagem, percebemos que, ao forjamos nossos

  • 21

    artefatos, eles tambm nos forjaram, ou seja, o que foi criado pelo corpo tambm transforma o

    corpo. No h uma hierarquizao do corpo, do ambiente ou dos artefatos o que h uma

    correlao, em que a ao do corpo potencializada para agir nesse ambiente aqui, ambi-

    ente um conceito proveniente da biologia e no pode ser considerado sem ser correlaciona-

    do com os organismos vivos; o entendimento proposto que uma corporalidade, ao do/no

    corpo existe em virtude de um ambiente; trata-se de articulaes de possibilidades interativas,

    em que ambos, corpo e ambiente, esto implicados.

    Corpo movimento, constitudo de diferentes informaes que lhe do a vida. O

    corpo produo e produtor da relao tempo/espao, uma interface do movimento, um pro-

    cessador dinmico de informaes contnuas que formaro tcnicas expressivas, como resul-

    tado da transitoriedade dos conhecimentos adquiridos.

    O antroplogo Marcel Mauss analisou movimentos do corpo comuns a diferentes

    culturas, estruturados atravs de prticas que exigiam a repetio sistematizada das mesmas

    aes fsicas como, por exemplo: a marcha dos soldados franceses em oposio dos solda-

    dos ingleses e as transformaes na tcnica desenvolvida para a natao. Com base em suas

    observaes, publicou no livro Sociedade e Antropologia um captulo chamado As Tcni-

    cas Corporais, publicado em 1934, chegando concluso de que cada sociedade tem hbi-

    tos que lhes so prprios (MAUSS, 1974, p.213). O autor prope que uma anlise de tcni-

    cas pertinentes ao corpo deve ser embasada por um olhar que considere a relao entre fatores

    de ordem biolgica, sociolgica e psicolgica, pois a construo dos saberes em disciplinas

    separadas no d conta de explicar nem de analisar fenmenos sociais complexos como as

    tcnicas do corpo.

    As transformaes do corpo pela tcnica, nesse argumento, partem de fatores sociais

    referentes a um conjunto de necessidades adaptativas para sua sobrevivncia. Nenhuma tcni-

    ca ou pode ser pertinente a todas as culturas. Cada uma tem seus aspectos sociais referentes

    sua anatomia, psicologia, fisiologia e contexto; e toda cultura imprime no corpo tcnicas,

    gestos, habilidades e comportamentos que lhe so prprios e, de certa forma a define, ao

    mesmo tempo em que a distingue das outras culturas.

    Para o corpo atingir um determinado objetivo tcnico especfico, como andar de bici-

    cleta, escrever uma carta, pentear os cabelos ou danar, ele deve desenvolver uma corporali-

    dade especfica que cumpra uma finalidade. Assim, para alcanar um objetivo com um deter-

    minado movimento de corpo, podemos encaminhar diferentes tipos de processos que podero

    chegar a alguns resultados satisfatrios. A maneira como penteamos o cabelo ou danamos,

    por exemplo, no precisa ser executada sempre da mesma forma, mas de um jeito que satisfa-

  • 22

    a a realizao dessas tarefas. Dessa maneira, se consegue estruturar o corpo e sua movimen-

    tao dentro de uma prtica, ou seja, criando uma tcnica.

    A tcnica pode ser, de maneira mais ampla, produtora de conhecimento, tanto sobre a

    arte quanto sobre a cincia, pois gera condies para que ideias sejam concretizadas, como

    danar ou construir um edifcio de dez andares, por exemplo. Assim, a corporalidade pode ser

    entendida como uma tcnica que d vida ao corpo e cria possibilidades de ao que, ao mes-

    mo tempo, estimulam e reagem aos estmulos de sua zona de percepo. A partir da experin-

    cia corporal formam-se, cognitivamente, reflexos que vo constituir um vocabulrio de aes

    que, basicamente, no precisam ser movimentos predeterminados podem ser uma combina-

    o de movimentos arranjados no momento para se atingir determinados objetivos. As tcni-

    cas corporais s quais nos referimos no buscam uma uniformizao ou jeito nico de atua-

    o. Tambm no se trata de uma simples ferramenta que o corpo utiliza para atingir seus

    fins. Acreditamos que a tcnica um meio que decorre de processos mltiplos de comunica-

    o, quer dizer, trocas de informaes com o ambiente. A comunicao uma tcnica do cor-

    po; na dana, podemos entender que a estruturao de ideias sistematizadas mobilizadas du-

    rante o movimento a comunicao do corpo.

    O corpo um complexo de movimentos fsicos, respiratrios, sanguneos, motores

    etc. que comunicam processos/produtos de historicidades diversas, uma memria que vive e

    fomenta novas linguagens, interferindo em sua prpria evoluo tcnica. Por exemplo, quan-

    do dana, o corpo criador/criatura da tcnica, sujeito/objeto das relaes; usa o movimento

    para traduzir conceitos e estticas do mundo. A dana tcnica, apesar das crticas que recebe a

    respeito da mecanizao do corpo, como no caso de tcnica de dana do bal clssico, que

    prepara o corpo para danar de uma determinada maneira, constri corporalidades que podem

    ser desconstrudas, repensadas, deslocadas de seu objetivo naquela tcnica.

    Como pesquisa desenvolvida no campo da dana, esta dissertao prope uma viso

    diferente sobre tcnica no como formatadora de corpos e danas, que preparam corpos para

    atuar somente de determinada maneira, mas como colaboradora de possveis relaes abertas

    para que outras ideias possam ser agregadas, a partir de conceitos que possam ser traduzidos

    em dana. Se a corporalidade estruturada a partir de um treino, meios devem possibilitados

    para programar uma atividade que possibilite alcanar determinado objetivo.

    Cada vez que so assimiladas possibilidades de comunicao no corpo, estas tornam-

    se narrveis, fazem parte da histria desse corpo, percursos e relaes tranadas. A tcnica

    pode ocorrer de muitas maneiras, no existindo somente uma forma; tudo depender da poca,

    lugar, objetivo e cultura que a idealiza, e de sua adequao ao ambiente.

  • 23

    Uma tcnica qualquer serve para inserir o corpo em determinados grupos sociais;

    criar ou aprofundar relaes entre linguagens e/ou artefatos; configurar procedimentos, tor-

    nando possvel o fazer, isto , realizar o idealizado; habilitar ou desabilitar particularidades

    no gestual do corpo. Uma tcnica , portanto, movimento elaborado no pensamento. na co-

    munho dos conhecimentos tcnicos desbravados pelo corpo que podemos mensurar a impor-

    tncia dessas tcnicas, pois s assim podemos tornar concretos determinados conceitos.

    Desde a dcada de 1950, tcnicas de interao entre o homem e a mquina esto sen-

    do desenvolvidas para viabilizar a comunicao do corpo com tecnologias digitais. Uma cor-

    poralidade criada para dialogar nesse contingente deve carregar amplos e profundos conheci-

    mentos sobre as duas instncias referidas; tanto o corpo quanto as tecnologias tm objetivos

    conceituais e estticos diferentes. Em cada artefato que existe no complexo panorama tecno-

    lgico so estruturadas motricidades diferentes e, ao apreend-las, o corpo passa a dialogar

    com elas.

    Neste trabalho, propomos que a tcnica seja uma extenso do pensamento que rela-

    ciona o conhecimento interno ao corpo com o externo a ele e, a partir disso, constri vises de

    mundo, faz com que as possibilidades do imaginrio se tornem reais; a mediao, o gestual,

    a comunicao e a ao do corpo sobre o seu meio; a tcnica potencializa a realizao de de-

    sejos pessoais e concretiza outras ideias ao tornar um pensamento realizvel; ela formula e

    realiza atos grandiosos para a humanidade, como o desenvolvimento das sociedades, a estru-

    turao da linguagem, da cincia e da arte, assim como tudo o que pode ser edificado sobre as

    bases da tecnologia.

    A tcnica um meio que possibilita conhecer as coisas; ela tem sido construda passo

    a passo, influenciando diretamente a complexificao dos processos cognitivos, ou seja, os

    atos de pensar, do saber e do fazer. No por coincidncia, mas por uma questo lgica, esses

    aspectos influenciaram diretamente na diversificao do panorama sobre as prticas corporais

    e sua expressividade, reverberando na diversificao da comunicao. Esse um processo

    contnuo, como um aprendizado para o sentido da existncia humana. A tcnica comunica

    porque constri linguagem, modifica o corpo, transforma-o ao agregar novos conhecimentos e

    valores, torna-o hbil, prepara-o para lidar com diferentes circunstncias.

    A preparao tcnica para a dana contempornea segue em mltiplas perspectivas

    pode partir de variados estmulos, como uma msica, uma imagem, um poema, um filme, um

    contexto; de um treinamento fsico; de um conceito; ou pode partir ainda da hibridizao de

    algumas dessas ideias anteriores. A dana contempornea no precisa estar atrelada a um c-

    digo de dana, como o street dance ou a dana moderna, mas pode partir dessas linguagens

  • 24

    para o desenvolvimento coreogrfico, ou tambm desenvolver processos criativos baseados

    em princpios variados. Uma tcnica , para a dana, uma forma e organizar esteticamente um

    discurso no corpo; o que coloca o corpo para desenhar o espao atravs de movimentos,

    criando um pensamento legvel no corpo. Danar exige procedimentos corpreos criados na

    prtica, em hbitos e condutas. Tcnicas de dana to minuciosas como a dana do ventre ou

    a dana afro propem uma organizao corporal e motora especfica, preparando o corpo para

    atuar coreograficamente a partir de uma estrutura de dana configurada em uma determinada

    tcnica.

    O atual cenrio contemporneo da dana exibe apropriaes de tcnicas prticas corpo-

    rais, como as do circo, da capoeira e da ginstica, de conceitos como instabilidade e equilbrio.

    Trata-se de habilidades corporais que, para serem organizadas como dana, demandam a cons-

    truo de estratgias envolvendo distintos treinamentos, perspectivas espaciais, temporais, gra-

    vitacionais tudo isso requer um treinamento pensado na adequao da proposta. A tcnica est

    na organizao desses movimentos. Nesse sentido, propomos que a noo de tcnica coreogr-

    fica, nesta dissertao, seja entendida como uma composio de movimentos que se organizam

    como dana. Pois quando se assiste dana, o que se v so idias que foram organizadas em

    movimentos. A tcnica vai favorecer a organizao do corpo, porque o resultado de uma lgi-

    ca, um processo que se estrutura em ensaios. por meio dessa lgica que se viabilizam interfa-

    ces no corpo, as quais faro conexes com as outras partes da coreografia.

    1.1.3 Interface corpo e linguagem

    Para comear a falar da dana como linguagem, acreditamos ser necessrio esclare-

    cer um pressuposto deste trabalho. Propomos aqui que a dana seja entendida como uma or-

    ganizao sistmica, tal como sugere Bittencourt:

    [...] Cada sistema singular e nico ao mesmo tempo em que est inserido

    nas classes sistmicas: homem, flor, estrela, gafanhoto, dana, musica, poe-

    sia, etc. [...] Entendemos o sistema Dana de alta sofisticao e complexida-

    de, que representa o real agregando informaes elaboradas e o transforma

    na medida em que o representa. A dana, enquanto sistema artstico, pode

    representar o objeto, o real, de inmeras maneiras, uma forma transgressora

    de lidar com a feitura de sua prpria existncia, colocando-se neste sentido

    como espao de liberdade. Os movimentos que desenham sua existncia e, portanto, se conformam na ao da experincia, no momento, produzem sen-

  • 25

    saes estticas refinadas. O corpo que dana explora o real de forma dimen-

    sionada [...], mediando-os em forma de movimento, [...] em transformao,

    em novas organizaes. (2001, p.40)

    O que estamos defendendo neste captulo o entendimento de um corpo especializa-

    do, tcnico, que percebeu, conheceu o mundo e, nesse percurso, agregou e trocou informaes

    para de se comunicar com o meio. Defendemos ainda que a dana um tipo de comunicao

    que se desenvolveu enquanto um conjunto de linguagens, que se deixam ver no corpo atravs

    de movimentos. Cada modalidade de dana uma linguagem que tem uma gestualidade pr-

    pria gestualidade aqui entendida como gramaticidade e plasticidade. Trata-se de uma pro-

    posta esttica estruturada para essa linguagem especfica.

    Nesse sentido, o sistema dana um agregado de coisas que partilham informaes

    como corpo, vdeo e luz, por exemplo, as quais formam uma composio com conectividade.

    Assim, na partilha de relaes com seu ambiente que o corpo que dana vai se apresentar e

    inscrever sua linguagem abstrata a partir de movimentos.

    Na histria da evoluo corporal e, vale dizer, na histria daquilo que chamamos ar-

    te: a construo das linguagens a capacidade humana de perceber e processar informaes

    com certos graus de complexidade criou condies para estruturar a comunicao. As lingua-

    gens criam [...] possibilidades de simular, imaginar, fazer imaginar um alhures ou uma alte-

    ridade (LVY, 1996, p.72). Trata-se de uma construo processual que envolve a percepo,

    para organizar e ampliar a ao dos nossos sentidos. A funo de qualquer linguagem seja

    sonora, tctil, visual, olfativa ou gustativa a comunicao. a partir dos sistemas sgnicos

    que acionamos dispositivos de interao com os outros e com o mundo.

    Entre estudiosos do campo da linguagem (pensando o termo linguagem em seu

    sentido mais amplo) h muitos pontos de discordncia, como os posicionamentos polticos ou

    mesmo a vertente terica adotada, mas existe pelo menos um ponto em comum entre todos: o

    sculo XX constituiu um marco sem precedentes no processo de desenvolvimento das tcni-

    cas de linguagens, assim como tambm do conhecimento (artstico, cientifico ou filosfico)

    que temos sobre a sociedade.

    Um dos tericos da linguagem mais lembrados, quando se trata da investigao sobre

    as transformaes pelas quais o corpo passou e vem passando desde o sculo XX, Marshall

    McLuhan, autor do best-seller acadmico Understanding Media, publicado em 1964, obra

    que recebeu, no Brasil, o oportuno ttulo de Os meios de comunicao como extenses do

  • 26

    homem, conferido pelo seu tradutor, o poeta e crtico Dcio Pignatari9.

    McLuhan parte do pressuposto de que a linguagem humana representa para a inteli-

    gncia aquilo que a roda representa para os ps, pois lhes permite deslocar-se de uma coisa a

    outra com desenvoltura e rapidez, envolvendo-se cada vez menos. A linguagem projeta e am-

    plia o homem [...] (2007, p.97). Em um dos captulos mais citados dessa obra, intitulado O

    meio a mensagem, McLuhan sugere que pensemos os meios no apenas como canais de

    comunicao, separados da ideia de contedo, mas como, eles mesmos, portadores de signi-

    ficao e de potencial transformador. Para o autor, a fora plasmadora dos meios so os pr-

    prios meios (2007, p.36). A nfase nos meios possibilita a experincia como momento de

    transformao diretamente atravs da percepo durante a relao corpo-meio.

    No mbito da dana, podemos entender o corpo como um meio em que a linguagem se

    faz comunicar atravs de movimentos; uma mdia para os processos da comunicao. Mas

    esse corpo no um mero canal, que funciona apenas como veculo de informaes. Se o

    meio a mensagem e o corpo pode ser entendido como o meio atravs do qual a dana fala,

    esse corpo tambm deve ser pensado como informao. Nesse sentido, o papel da percepo

    ambguo, j que ocorre de forma ativa, enviando e recebendo informaes ao perceber, o

    corpo no apenas recebe e transmite mensagens, como tambm se transforma e, nesse proces-

    so sistmico, provoca alteraes no ambiente.

    Uma das grandes contribuies de McLuhan a prpria noo de extenso do cor-

    po. Sua proposta de compreender os meios como elementos redimensionadores do corpo car-

    rega uma noo fundamental para o pensamento ocidental a de que o corpo biolgico se

    transforma a partir dos artefatos que produz. a partir de McLuhan que propomos, portanto,

    que o corpo reconfigura a dana, como linguagem, assim como o aparato tcnico utilizado

    nessa forma de arte acaba por reconfigurar o prprio corpo.

    Pensar o corpo nessa direo implica consider-lo a partir do binmio nature-

    za/cultura, tal como o entende Marcel Mauss, ao considerar o corpo como o resultado de uma

    configurao biocultural (MAUSS, 1974). Nessa direo, entendemos que, na dana, o corpo

    carrega tanto suas condies biolgicas est vivo quanto suas implicaes culturais, uma

    vez que ele transforma e transformado pelo ambiente, pela histria, pelas marcas da socie-

    dade na qual est inserido.

    A dana, enquanto sistema de comunicao, produz uma linguagem corporal e abstra-

    ta, que tem contexto e faz comunicar quando se instaura nas particularidades do movimento.

    9 A primeira traduo de Understanding Media de 1969, pela editora Cultrix, que detm os direitos sobre a

    obra at os dias atuais. A edio consultada neste trabalho de 2007.

  • 27

    Linguagens artsticas como a dana, que usam o movimento para se apresentar como discurso,

    so desenvolvidas e aprimoradas em ambientes, com treinamentos tcnicos especficos, a par-

    tir dos quais o corpo constri sua prtica.

    Para Katz (2005, p.230), a linguagem resulta de trs processos: o primeiro interativo

    e acontece na relao do corpo com o ambiente esse trnsito/dilogo entre corpo e informa-

    o externa ao corpo mediado pelo sistema sensrio motor; o segundo se d na organizao

    da comunicao, para que a informao externa ao corpo seja identificada e reconhecida por

    ele; o terceiro estimula a produo de novas informaes. Esse processos dependem direta-

    mente da percepo e da cognio, o que nos leva a pensar que a linguagem busca abordar a

    realidade.

    No corpo, a linguagem , de maneira simplificada, um meio que possibilita trocar in-

    formaes. A troca modifica o corpo porque [... ] altera o seu relacionamento com o ambien-

    te, transformando-o. Contgios simultneos em todas as direes, agindo em tempo real

    (KATZ, 200610

    ). Ao trocar informaes, corpo e ambiente se comunicam, configurando uma

    relao que atualiza o corpo com novos conhecimentos.

    Para ns, a dana uma informao do/no corpo e, quando mediada por outra lin-

    guagem artstica, prioriza uma relao embasada na troca de informao. Nesse contexto, sur-

    gem questes que reestruturam a interface corpo/tcnica/percepo/linguagem, e, num efeito

    domin, atingem e modificam simultaneamente os seus objetos distintos: o corpo, a tcnica, a

    percepo e a linguagem. Para Lvy:

    impossvel exercermos nossa inteligncia independentemente das lnguas,

    linguagens e sistemas de signos (notaes cientificas, cdigos visuais, modos

    musicais, simbolismos) que herdamos atravs da cultura e que milhares ou mi-

    lhes de pessoas utilizam conosco. Essas linguagens arrastam consigo manei-

    ras de recortar, categorizar e de perceber o mundo [...] LVY (1996, p.97)

    O corpo que dana na cena contempornea agencia saberes provenientes da fuso de

    outras linguagens, passando assim a veicular novos comportamentos porque ganha novas in-

    formaes. Tambm a ideia de corporalidade deve ser compreendida de uma maneira mais

    ampla, e no restrita a uma padro de movimentos. As linguagens proporcionam formas de

    estimular a comunicao atravs da percepo, so resultantes de um empenho corporal que

    se desenvolve na tcnica que o corpo adquiriu ao sintetizar experincias vividas.

    10

    Cf. Helena KATZ. Todo corpo corpomdia. Comcincia - Revista eletrnica de jornalismo cientfico, n. 74,

    Semitica e Semiologia, 2006. Disponvel em: . Acesso em: jan.2010. Por sua forma distinta, as referncias eletrnicas aparecero em nota de

    rodap. As demais permanecero no corpo do texto, pelo sistema autor-data.

  • 28

    INTERFACE II: CORPO E TECNOLOGIAS DA IMAGEM

    Este captulo pretende contextualizar o corpo a partir de sua relao com as tecnolo-

    gias das imagens fotogrficas, cinematogrficas e videogrficas. Procuramos enfatizar que, a

    partir da relao corpo/cmera, ocorrem transformaes no fazer artstico da dana, princi-

    palmente na imagem do corpo que dana, nesse cenrio emergem novas categorias de dana e

    de corpo.

    2.1 REPRESENTAES DO CORPO NA HISTRIA DAS TECNOLOGIAS DA IMA-

    GEM

    A apreenso do movimento em imagem11 ou seja, a fotografia e o cinema causou

    transformaes na arte, produzindo estratgias singulares e criativas no campo artstico. No

    caso particular da dana, resultou em um hibridismo do corpo com imagens resultado espe-

    cificamente da relao de interface entre corpo e imagem em movimento. A noo de hibri-

    dismo12

    , nesse contexto, nortear as discusses empreendidas neste captulo.

    Interfaces entre corpo e fotografia so verificadas j no final do sculo XVIII, com os

    experimentos de Muybridge e Marey. O interesse pelo corpo em movimento fez com que am-

    bos desenvolvessem tecnologias capazes de capturar aspectos especficos do movimento nu-

    ma imagem parada. Assim, observaremos tambm que interfaces entre dana e cinema partem

    de uma relao construda no dilogo do corpo com a cmera.

    O sculo XX assistiu s interfaces produzidas entre a dana e as linguagens da repre-

    sentao visual a fotografia, o cinema e o vdeo, assim como a disseminao deste ltimo no

    11

    Daqui em diante, quando nos referirmos palavra imagem, evocaremos o sentido de suas qualidades tcni-cas criadas pelos suportes de captura audiovisuais, ou seja, imagens produzidas por cmeras fotogrficas, cine-

    matogrficas e videogrficas. 12

    O conceito de hbrido recorrente, quando se escreve sobre cultura digital. O termo usado tanto para falar da mistura de linguagens quanto dos cruzamentos entre corpo e tecnologia comuns nas mais diversas manifesta-

    es da cultura contempornea. Ainda que se trate de fenmenos muito diferentes um do outro, h no uso repeti-

    do do conceito de hbrido uma herana difusa, que pode sucumbir ao risco do esquecimento de que, antes de

    tudo, hbrido mestio, o que impede que se encontre no hbrido uma origem, uma essncia anterior mistura (BASTOS, 2006. Disponvel em: .

    Acesso em: maio 2011. Marcus Bastos Doutor em Comunicao e Semitica e professor da Pontifcia Univer-

    sidade Catlica de So Paulo

  • 29

    ambiente virtual o que colaborou para a diversidade atual do panorama das artes, assim co-

    mo tambm contribuiu para uma nova qualidade tcnica no campo da dana.

    Aparelhos de captura de movimentos, como mquinas fotogrficas, cmeras cinema-

    togrficas e de vdeo, produzem imagens de corpos hbridos e nutrem nossa observao sobre

    o hibridismo que essas imagens configuram. As transformaes na imagem do corpo que dan-

    a, produzidas por esses aparelhos, configuram interfaces que complexificam as relaes entre

    humanos e mquinas. Isso se dirige cada vez mais para a dissoluo das fronteiras que delimi-

    tavam espaos especficos de atuao da dana.

    Vale assinalar que, conforme o posicionamento adotado neste trabalho, a relao en-

    tre corpo e imagem no pode ser entendida como um encontro que foi encaminhado como

    mero caminho lgico isto , como uma histria linear sobre as interfaces da dana com a

    imagem. O que estamos propondo aqui a criao de possveis pistas para se pensar esse fe-

    nmeno de reestruturao no campo da arte, observando como as tecnologias de captura da

    imagem tornaram-se parceiras nas criaes artsticas, criando um jeito prprio de organizao,

    impulsionando inclusive a formao do que podemos chamar aqui de uma nova vertente para

    as artes do corpo.

    Para entender como as tecnologias de captura do movimento transfor-

    mam/reestruturam a imagem do corpo que dana, acreditamos ser necessrio pontuar momen-

    tos em que essas transformaes se tornaram visveis.

    2.1.1 Fotografia: interface do corpo com o registro do movimento

    Na histria do surgimento das tecnologias da imagem, antes do vdeo, a fotografia

    criou as condies para a formalizao das artes cinematogrficas e, posteriormente, do vdeo.

    A imagem fotogrfica, isto , a imagem plasmada em um suporte porttil, no to antiga

    quanto a pintura, mas, apesar de existir h pouco mais que um sculo, tem se tornado cada vez

    mais acessvel, sofisticada tecnologicamente e, ao mesmo tempo, aparentemente simples de

    ser manipulada. O desenvolvimento desse processo, entretanto, mais antigo e est assentado

    em um conjunto de tcnicas que envolvem regras, procedimentos e materiais cuja criao no

    pode ser referenciada a um nico autor, j que tributrio de descobertas anteriores, nos cam-

    pos da ptica, da mecnica, da qumica e da matemtica.

  • 30

    A apreenso da imagem , portanto, anterior ao advento da fotografia e remonta ao

    perodo do Renascimento, com as portinholas13 de Albrecht Drer, a tavoletta de Filippo

    Brunelleschi, as diversas espcies de cmera escura (DUBOIS, 2004, p.36). As mquinas

    que registravam imagens, no incio, foram criadas por artistas interessados em desenvolver

    novas tcnicas de pintura. Isso nos faz entender que esses artistas tentaram organizar o olhar,

    na construo de uma arte visual, induzindo o foco de suas prprias questes para a apreenso

    do que pode ser considerado real atravs de imagem. No nos interessa aqui discutir o que

    ou no real, mas chamar a ateno para um fato: a busca pelo real na imagem constituiu

    uma sistematizao que acabou por desenvolver e popularizar de tcnicas de registro/captura

    de imagens.

    Com a efetiva criao da fotografia, despertou-se o interesse para a percepo visual

    humana. Mais do que isso, pela primeira vez no processo de reproduo da imagem, a mo

    foi liberada das responsabilidades artsticas mais importantes, que agora cabiam unicamente

    ao olho (BENJAMIN, 1994, p.167). Desenvolveu-se, ento, um outro tipo de relao entre

    mquina e homem, entre tcnica e corpo. Em 1826, a primeira fotografia com fixao perma-

    nente foi reconhecida como de autoria do francs Joseph Nicphore Nipce14

    .

    Figura 1: Le point de vue de la fentre, heliogra-

    fia de Joseph N. Nipce (1826) Fonte: Maison Nicphore Nipce. Disponvel em:

    13

    Segundo Dubois, a cmera escura, a portinhola ou a tavoletta so instrumentos; elas organizam o olhar, faci-litam a apreenso do real, reproduzem, imitam, controlam, medem, ou aprofundam a percepo visual do olho

    humano, mas nunca chegam a desenhar propriamente a imagem sobre o suporte. (DUBOIS, 2004, p. 36-37). 14

    Fsico francs, Joseph Nicphore Nipce autor de pesquisas que deram base inveno da fotografia. Em

    seus primeiros experimentos fotogrficos (1793), junto com o irmo Claude, tentou obter imagens gravadas

    quimicamente com a cmera escura, mas essas imagens no se fixavam por muito tempo. Com a ascenso da

    tcnica da litografia, na Frana, Nipce dedicou-se ao aprimoramento de um novo mtodo de reproduo de

    imagens permanentes, por meio da cmera escura sobre o material litogrfico utilizado na imprensa (1813). Trs

    anos depois, conseguiu reproduzir a vista da janela de sua oficina, em um papel sensibilizado com cloreto de

    prata e exposto durante horas na cmera escura; desse experimento, obteve uma imagem fraca e parcialmente

    fixada com cido ntrico. Como se tratava de imagens em negativo, o fsico realizou novas experincias, produ-

    zindo fotografias rudimentares com chapas de vidro (1822), mas ainda sem estabilidade. Em 1824, conseguiu

    imagens com fixao permanente; dois anos depois, com uma cmera escura, reproduziu uma paisagem em uma

    chapa de estanho a heliografia (1826), considerada a primeira fotografia.

  • 31

    Essa experincia sobre a apreenso da imagem foi desenvolvida por um processo que

    pode ser considerado rudimentar para os padres atuais, mas que constituiu um experimento

    altamente avanado para a poca. Eram necessrias cerca de oitos horas de exposio ao sol

    para que se fixasse a imagem no suporte adequado. Nipce nomeou esse processo de helio-

    grafia gravura de imagem a base da luz do sol.

    Na captao de uma imagem fotogrfica, o que acontece de imediato no a ao da

    imagem sobre a mquina, mas a forma como esta entende o objeto a ser fotografado:

    o que a pelcula fotogrfica registra no a ao do objeto sobre ela no h contato fsico ou dinmico do objeto com a pelcula mas sim o modo par-ticular de absorver e refletir a luz de um corpo disposto num espao ilumina-

    do tal como uma emulso sensvel o interpreta, com base nos raios de luz re-

    fletidos pelos objetos que puderam ser coletados pela lente e filtrados pelos

    dispositivos internos da cmera (MACHADO, 2001, p.125).

    H uma relao de troca de informaes entre o objeto da imagem, o olho e a mqui-

    na fotogrfica. O olho precisa estar em acordo com o ngulo e o foco desejados e, nessa inter-

    face, corpo e mquina precisam atuar juntos, para produzirem a imagem desejada. Nessa in-

    terface reside uma relao tcnica-esttica.

    A fotografia de um corpo qualquer a imagem que foi congelada no tempo atravs

    da interface do seu suporte fsico. Para a fixao da imagem no suporte bidimensional do pa-

    pel, h um percurso tcnico que implicar nos modos como percebemos a imagem. O vnculo

    do corpo (enquanto objeto da imagem) com mquina fotogrfica demanda questes como

    escolha de ngulo, foco e manipulao dos elementos da cmera (como lente, filme, ilumina-

    o, fotmetro), assim como o uso de solues qumicas e o tempo de exposio nesses pro-

    cessos qumicos.

    2.1.1.1 O movimento do corpo na fotografia

    O ingls Edward James Muggeridge (mais conhecido como Eadweard J. Muybridge)

    nos parece um bom exemplo para se pensar o dilogo entre a ideia de corpo em movimento e a

    imagem fotogrfica. Considerado por muitos um fotgrafo-cientista, Muybridge colaborou

    para o estudo do movimento da imagem tcnica. Conhecedor de tcnicas de fotografao,

  • 32

    inventou o zoopraxiscpio, um dispositivo para manipular as imagens/retratos, precursor da

    pelcula de celulide.

    Uma contribuio fundamental de Muybridge para os estudos da imagem em movi-

    mento nasceu de uma histria quase anedtica: em 1872, Leland Stanford, ex-governador da

    Califrnia e apreciador de corridas de cavalo, intuiu que, durante um galope, os quatro cascos

    de um cavalo deixavam a terra, como se o animal pulasse, saindo totalmente do cho. Para

    provar cientificamente sua intuio, Stanford contratou Muybridge. O fotgrafo ingls de-

    senvolveu um esquema de captao instantnea de imagens, com frmulas qumicas para o

    processamento fotogrfico e um disparador eltrico15

    fora da cmera. Esse aparato permitiu a

    comprovao da hiptese de que realmente o cavalo tira as quatro patas do cho durante o

    galope.

    Figura 2: Race horse galloping animated, registros do movimento do cavalo captados por Muybridge

    Fonte: The Franklin Institute. Disponvel em: . Acesso em maio 2011

    A referncia a Muybridge torna-se imprescindvel a um estudo como este, que tem a

    dana como organizadora de um pensamento, sobretudo porque o fotgrafo se interessava

    pelo movimento do corpo como pesquisador da imagem, e, ao registrar o corpo em movimen-

    to, possibilitou que o prprio movimento fosse percebido como agente de transformao da

    imagem retratada desse corpo.

    15

    Criado em conjunto com o engenheiro John D. Isaacs.

  • 33

    Figura 3: Bailando 1887

    Fonte: Larevista el universo. Disponvel em:

    Nesse registro esttico de movimento, podemos ver as transformaes musculares no

    momento em que elas ocorrem. As fotografias produzidas por Muybridge decupam o movi-

    mento do corpo, destacando a imagem como local de transformao visual e muscular. Trata-

    se uma zona de aproximao e contato, que articula comunicao entre corpo e artefato, pro-

    porcionando um tipo de interatividade que s pode ser mediada pelo movimento.

    Outro colaborador nessa investigao tienne-Jules Marey, fisiologista francs que

    pesquisava o movimento (animal ou humano) e que, em 1882, inventou o cronofotgrafo

    uma verso melhorada do zoopraxiscpio de Muybridge e o fuzil fotogrfico16, dois ances-

    trais da cmera fotogrfica utilizados pelo seu inventor como instrumento de pesquisa para

    coleta de dados e anlise de movimentos nos seres vivos.

    Marey no se interessava pela animao da imagem como Muybridge; ele se inco-

    modava com o realismo da imagem apresentada no cinema, considerando tola a reconstituio

    naturalista do movimento.

    16

    O cronofotgrafo um aparelho cuja funo seria analisar o movimento para decompor a sequncia de ima-

    gens e sintetiz-las em um diagrama estrutural; funo semelhante tinha o fuzil fotogrfico, outro dos seus inven-

    tos, um instrumento capaz de produzir 12 frames consecutivos por segundo, todos registrados na mesma ima-

    gem. O cronofotgrafo e o fuzil fotogrfico criaram a sobreposio fotogrfica, diferenciando-se da cmera

    cinematogrfica por suas prprias finalidades (esta ltima tinha por funo produzir uma fita de imagens suces-

    sivas que, a partir de um projetor, criaria a iluso da imagem em movimento).

  • 34

    Figura 4: Cronofotografias de Marey Man jumping (1887) e Flying pelican (1882 circa) Fonte: Monash University Engineering. Disponvel em:

    Embora no gostasse de cinema, Marey tinha uma preocupao com um tipo de ima-

    gem do movimento que no podia ser percebido pelo olhar humano; da a necessidade de re-

    gistrar o percurso desse movimento. O fisiologista no queria que os fotogramas separas-

    sem o movimento, como acontecia nos experimentos de Muybridge, mas que toda a sequncia

    de movimentos fosse flagrada numa mesma foto o que lhe possibilitaria investigar melhor a

    estrutura do corpo em movimento.

    As experincias de Muybridge e Marey imprimem um carter bem particular para os

    padres de produo da imagem, poca. O hibridismo entre fotografia e movimento do cor-

    po produziu a noo de mundos que podem ser manipulados e articulados em outras esferas,

    como a das artes.

    Assim, no final de sculo XIX, o dilogo entre a dana e as ento emergentes tcni-

    cas de reproduo da imagem (como a fotografia) alterou os modos de se ver dana. O que

    antes s era visto ao vivo passou a ser apreendido tambm pelos registros visuais. Esse fen-

    meno seria tema de futuras investigaes sobre o campo das artes, como o ensaio A obra de

    arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica, publicado em 1936 por Walter Benjamin.

    Nesse texto, o autor observa como as modernas tcnicas de reproduo possibilitaram o aces-

    so ao registro de determinada obra antes s apreendida em seus lugares de execuo.

    Para Benjamin, a reproduo tcnica pode colocar a cpia do original em situaes

    impossveis para o prprio original (BENJAMIN, 1994, p.168). Com a prensagem em disco,

    por exemplo, a catedral abandona seu lugar para instalar-se no estdio de um amador; o coro,

    executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto (1994, p.168). A possibili-

    dade de reproduzir tecnicamente a arte, seja por meio da imprensa, da fotografia, do disco, do

    cinema ou do vdeo, por exemplo, acabou por aproximar do indivduo a obra, seja sob a for-

    ma da fotografia, seja do disco (1994, p.168).

  • 35

    2.2 CINEMA: INTERFACES DO CORPO QUE DANA COM A IMAGEM EM MOVI-

    MENTO

    Buscaremos aqui abordar relaes nas quais a interface cinema/dana tem produzido,

    ao longo do tempo, corpos fragmentados. O que estamos chamando de corpos fragmentados

    so imagens de partes do corpo que aparecem cena nas imagens, mas muitas vezes no apare-

    ce na tela um corpo inteiro, s um brao ou uma perna ou outra parte qualquer. Tais relaes

    podem ser vislumbradas em obras produzidas especificamente para o cinema a dana encon-

    tra na tela uma referncia de ambiente cnico para a atuao, local de sua experimentao

    artstica.

    Estamos em busca de pistas visveis sobre a nossa proposta de corpointerface e, nes-

    se sentido, observamos que, em algumas performances de dana no cinema, a cmera propor-

    ciona um tipo de viso do corpo ao qual s se tem acesso graas a esse suporte. H uma rela-

    o de troca de informaes em que corpo e aparelhos de capturas de imagem so organizados

    para que seja estruturada uma composio artstica. Nesse caso, a interface o dilogo do

    corpo com a cmera. Para ilustrar o que estamos sugerindo, bastaria observarmos filmes como

    Moulin Rouge (Baz Luhrmann, 2001) ou Chicago (Rob Marshal, 2002). Trata-se de musicais

    que, pela natureza de suas narrativas, registram inmeras vezes a arte da dana e o faz a partir

    de recortes impossveis ao olho humano, ao menos nas condies normais de observao de

    um espetculo ao vivo. Em um teatro, de um modo geral, o espectador tem apenas a viso

    panormica do bal. Na tela do cinema, pode-se ter acesso a detalhes, conforme os ngulos

    escolhidos pelo cineasta, como imagens das pernas ou closes que permitem flagrar as expres-

    ses dos danarinos.

  • 36

    Figura 5: Tango de Roxane (Moulin Rouge, Baz Luhrrmann, 2001)

    Fonte: Frame capturado do DVD. Fox Film,

    EUA, 2002, 127 min.

    Figura 6: Hot honey rag (Chicago, Rob Marshall, 2002)

    Fonte: Frame capturado do DVD. Imagem Filmes,

    EUA, 2002, 114min.

    O cinema produziu poucos documentrios de dana (em relao produo mundial

    de outros gneros como a comdia ou a fico), mas imprimiu nessa expresso artstica um

    certo carter de glamour com os musicais lanados por Hollywood aos quais, inclusive,

    Moulin Rouge e Chicago prestam homenagem.

    A interface cinema/dana provoca reconfiguraes na linguagem cinematogrfica e

    na forma de se compor dana. Tal relao altera principalmente a forma de apreenso do mo-

    vimento de dana, a exemplo do cinema experimental de Maya Deren, que recorta partes do

    corpo dos seus danarinos, pela lente da cmera, e evidenciava outros aspectos tcnicos e es-

    tticos, como as perspectivas convencionais de tempo/espao e os modos como essas instn-

    cias afetavam ou era afetadas pelo movimento dos corpos.

    Os anos 1950 transformaram definitivamente o cinema em uma referncia forte da

    cultura moderna. As narrativas cinematogrficas construram imaginrios, criaram e/ou ali-

    mentaram padres estticos, transformaram pessoas comuns em superastros, popularizaram a

    moda, difundiram o rock e criaram uma indstria milionria de entretenimento. Quando alia-

    do dana caso dos musicais desse perodo o cinema acabou criando outros paradigmas

    para essa arte, em especial para os modos de coreografar.

    Vale a pena lembrar, a esse respeito, o musical Rua 42 (42nd Street, 1933), conside-

    rado por muitos o precursor de todos os musicais. Dirigido por Lloyd Bacon, em colaborao

    com o coregrafo Busby Berkeley, o filme traz uma das sequncias mais aludidas do gnero,

    em que as danarinas do corpo de baile formam uma roscea17

    .

    17

    Uma viso impossvel platia de um espetculo ao vivo.

  • 37

    Figura 7: Cena de 42nd Street de Lloyd Bacon (1933) Fonte: cinema clssico. Disponvel em:

    O cinema, assim como a dana, acontece pelo movimento. Esse ponto em comum

    produz informaes que fragmentam a imagem do corpo e da dana. O cinema desperta mais

    intensamente o sentido da viso, e sob esse impacto que observamos as imagens do corpo

    que dana no cinema a partir de cortes de cena, closes, etc. No se trata mais de ver um cor-

    po real, em seu ambiente natural, mas sim de compreender que o corpo se transforma na tela.

    No cinema, conforme a necessidade roteirizada, o danarino constri seu persona-

    gem/corporalidade; da mesma forma, o tamanho da imagem na tela do cinema possibilita uma

    viso diferenciada do corpo. Alm disso, imagem cinematogrfica, assim, potencializa as in-

    formaes do corpo pelo poder de alcance que o cinema tem. A possibilidade de assistir dana

    no cinema constri a imagem de corpo fragmentado, fenmeno que introduziu novos padres

    de composio coreogrfica para a historiografia da dana:

    Com certeza, nossa relao com a histria da dana seria inteiramente dife-

    rente se no nos tivesse sido possvel assistir dana de Loe Fuller, Anna

    Pavlova, Isadora Duncan, Josephine Baker, Martha Graham, Fred Astaire,

    Cyd Charisse, Merce Cunningham, Pina Baush, e Carolyn Carlson. (GA-

    LANOPOULOU, 2008, p.21)

    Na histria dessa relao entre cinema e dana, identificamos trs momentos funda-

  • 38

    mentais para a dana: os registros de coreografias ou do processo coreogrfico18

    ; o cinema

    musical; e o cinema experimental de dana que analisaremos a seguir.

    2.2.1 Registro cinematogrficos de coreografias

    Nos primeiros registros de dana para o cinema, a cmera era fixada em um ponto e

    capturava imagens, somente daquele nico angulo, sem movimentos de cmeras. Era como

    um olhar fixo e atento que registrava os movimentos da dana. Dessa forma, criava-se a viso

    particular sobre o evento, narrando o que estava visvel nas imagens, como, por exemplo, a

    movimentao, os aspectos espaciais e temporais, assim como o seu contexto e ambiente. A

    cmera filmadora utilizada para fazer registros se comportava como um tipo tpico de espec-

    tador que apenas observa, no interfere (ou interfere muito pouco) na estrutura do que se pre-

    tende realizar.

    Os registros documentais de algumas coreografias acabaram por se converter em im-

    portantes fontes de pesquisa para o campo das artes. Atravs desses registros, podemos criar

    reflexes sobre a produo artstica em dana, sejam elas histricas, estticas, polticas. Do

    registro de uma obra de dana, podemos no mnimo extrair informaes contidas na natureza

    da prpria linguagem.

    Um bom exemplo disso so os documentos visuais sobre a obra de Loie Fuller, em

    que podemos ver o pensamento de dana que era produzido naquela poca. A artista ideali-

    zadora da composio de uma iluminao para o palco especialmente para a dana o que

    reverberou numa revoluo sobre as concepes de iluminao cnica tambm para o teatro e

    para o cinema. O registro de trabalhos de Fuller atesta aluses feitas artista como a primei-

    ra criadora de corpos de luzes que danam19.

    Cinema e dana encontram no argumento do movimento uma afinidade em que

    possvel compreender como essas duas artes singulares se complementaram ao se permearem.

    Loe Fuller, no final do sculo XIX, foi convidada por Thomas Edison para uma experincia

    flmica que resultou na obra La Danse Serpentine (1894); assim, um dos primeiros filmes a

    ser realizado o registro de uma coreografia.

    18

    Em relao ao caso especifico da dana, podemos apontar, de um modo geral, trs situaes de acesso: o espe-

    tculo ao vivo; o espetculo produzido para o cinema ou para a TV; e o registro, em vdeo, do espetculo ao

    vivo. Nossas observaes se referem, neste momento, a este ltimo caso. 19

    Cf. [...] la primera creadora de cuerpos de luces que bailan (PIMENTEL, 2008, p.50). Traduo nossa.

  • 39

    O Sr Edison ainda [...] registrou a Srta. Jesse Cameron, campe infantil de dana de espada, filmou Anabelle em sua dana sinuosa, e a princesa Rajah,

    danando enquanto segurava uma cadeira sustentada pelos dentes [...] dois

    minutos de Ruth Dennis que danava uma dana de saia [...] BROOKS

    (2006, p.9).

    Figura 8: frames de La Danse Serpetine, (Loie Fuller, 1894)

    Fonte: YouTube. Disponvel em:

    Por outro lado, a diversidade de trabalhos de dana registrados pelo cinema tem ali-

    mentado novas ideias e prticas sobre essa interface. Cabe ressaltar, ainda, que o registro de

    uma obra de dana no a obra em si. a preservao de imagens, como memria para o que

    aconteceu, material de arquivo; a configurao de um processo em que podemos perceber a

    maneira como ela ocorreu; uma estratgia a partir da qual podemos ter acesso ao que aconte-

    ceu em tempos passados; e, tambm, um modo de percebermos as diversas configuraes

    (tcnicas, estticas e polticas) que a dana assumiu ao longo do tempo. O discurso enunciado

    por esses registros histricos diminui o espao entre o tempo do registro e o tempo atual

    trata-se, alis, de uma contingncia proporcionada pelas tecnologias da comunicao. Hoje,

    esses registros podem ser encontrados no formato vdeo (VHS, DVD, BLU-RAY) ou ainda

    nos sites de compartilhamento de vdeos, como o YouTube, caso, por exemplo, da maioria