Correio do Minho (parte 2)

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Correio do Minho — A ex- pressão dos seus afectos e das opções culturais no 'Dias De- siguais' ou das suas inquietações cívicas em 'Blogueio Continental' não dispensam o fluxo de criativi- dade a que dá vazão pela escrita, tanto em poesia como em cróni- ca? João Ricardo Lopes — A criativi- dade faz parte da escrita e propicia- -a. Entendo que, independente- mente do assunto tratado, da natureza mais ou menos afectiva do texto ou do género a que se recorre, não se possa dispensar a melhor matéria-prima. O primeiro fundamento em arte é que seja ela criativa, e quando criativa original, e quando original autêntica. De facto procuro ser criativo. Melhor, obrigo-me a sê-lo, mes- mo sabendo do quanto de “relati- vo” ou “circunstancial” existe no ser-se criativo. No fundo, voltamos à velha questão do difícil que é determinar o quinhão realmente “nosso” no que fazemos. Poderia, para termi- nar a minha resposta a esta questão, usar a imagem do alfaiate que à força de tanto repetir a cos- tura dos seus fatos acabou por cor- romper o modelo, inaugurando o seu estilo. Com a escrita acontece algo de parecido. CM — Prossegue a criação literária em paralelo com os blogues consciente de que cada um dos suportes vai atingir um alvo diferente? Ou há, por uma e pela outra via, mensagens e destinos comuns? JRL — A escrita em blogue impli- ca de facto condicionantes distintas da escrita literária, muito embora não se possa negar carácter literário ao que se publica na blo- gosfera. O diasdesiguais.blogspot.com é um pouco a prova disso mesmo, ao acondicionar uma série (já volu- mosa, até) de poemas, prosas poéticas e crónicas. Nem tudo o que nele publico é declaradamente literário, mas muitos textos são-no sem dúvida. Arrisco confessar que a criação do blogue — em Janeiro último — constituiu um impulso saudável e vigoroso na minha actividade de es- crita. Ainda assim, escrevo textos para os cadernos, textos que talvez não caibam nesse registo diarístico, ou que talvez caibam mas que não quero sujeitar ao voyeurismo do blogue. O carácter imediatista de muitas das entradas diárias dos blogues impede a necessária ma- duração dos textos, mas podem não passar de uma primeira pince- lada. Dou o exemplo das minhas crónicas. Várias foram inicialmente partilhadas no diasdesiguais- blogspot.com e acabaram em livro, no ‘Dos Maus e Bons Pecados’, com correcções e alterações impor- tantes. Poderíamos, nesta óptica, olhar para o blogue como um su- porte-rascunho, da maior agili- dade. DESCORTINAR O QUE É ÍNTIMO DO AUTOR CM — Será exagerado concluir que quando escreve para o pa- pel revela-se num registo mais íntimo e quando es- creve para os blogues revela uma faceta mais pública? JRL — Em literatura, des- cortinar o que é íntimo — ou não — ao autor revela-se de modo muito particular fala- cioso. Tudo o que é de verdadeira- mente literário (não importando se em papel se em blogue) é, ou deve ser, público. Como autor, não tenho duas facetas. Nos blogues alimento a mesma pessoa que me revelei nos livros. Em ambos deixei de me per- tencer em exclusivo, construindo uma espécie de semiverdade ou, se preferir, uma semificção! O simples facto de transformarmos uma cor- rente de palavras num texto implica uma necessidade de partilha. Não acredito na escrita íntima, visto que mais cedo ou mais tarde até o fundo das gavetas vem à luz do dia, como acontece com docu- mentos pessoais, cartas, bilhetes, inéditos, etc. A esse respeito, poderíamos aqui lembrar os textos da arca de Pessoa: a sua existência como que os condena a ser conhe- cidos. Assim, e para responder concre- tamente à questão, sou apenas um, o mesmo que se espraia no papel ou se mostra nos blogues. FORMATOS ELECTRÓNICOS E OS LIVROS CM — O que pensa da dis- cussão sobre se os formatos elec- trónicos são uma ameaça ou uma nova oportunidade para o livro? JRL — Não acredito que o livro tenha os dias contados, ou algo semelhante. Essa visão parece-me irrealista, porque, entre outros as- pectos, os livros são um veículo no- bre e lúdico: até aqueles que publi- cam nos melhores blogues sabem que a edição dos mesmos textos em livro representa uma mais-valia e até mesmo uma certificação de qualidade. Além do mais, ler em livro e ler no ecrã é muito distinto. Há um prazer muito distinto no folhear as páginas de um volume de poemas daquele que deriva do ratear as páginas de um blogue. E há o cheiro do livro, a sua elegância de objecto enxuto, o re- quinte dos caracteres, etc. Contra- riando até o receio dos pessimistas, acredito que os blogues dão uma ajuda na divulgação das novas pu- blicações. Quem gosta de livros não os preterirá pelo advento das novas tecnologias. E quem não lê livros, dificilmente perde tempo a ler os blogues. 27 PESSOAS 23 de Dezembro 2007 C “TUDO O QUE É DE VERDADEIRAMENTE IMPORTANTE (NÃO IMPORTANDO SE EM PAPEL SE EM BLOGUE) É, OU DEVE SER, PÚBLICO. COMO AUTOR NÃO TENHO DUAS FACETAS. NOS BLOGUES ALIMENTO A MESMA PESSOA QUE ME REVELEI NOS LIVROS”

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Correio do Minho — A ex-pressão dos seus afectos e dasopções culturais no 'Dias De-siguais' ou das suas inquietaçõescívicas em 'Blogueio Continental'não dispensam o fluxo de criativi-dade a que dá vazão pela escrita,tanto em poesia como em cróni-ca?

João Ricardo Lopes — A criativi-dade faz parte da escrita e propicia--a. Entendo que, independente-mente do assunto tratado, danatureza mais ou menos afectivado texto ou do género a que serecorre, não se possa dispensar amelhor matéria-prima.

O primeiro fundamento em arteé que seja ela criativa, e quandocriativa original, e quando originalautêntica.

De facto procuro ser criativo. Melhor, obrigo-me a sê-lo, mes-

mo sabendo do quanto de “relati-vo” ou “circunstancial” existe noser-se criativo.

No fundo, voltamos à velhaquestão do difícil que é determinaro quinhão realmente “nosso” noque fazemos. Poderia, para termi-nar a minha resposta a estaquestão, usar a imagem do alfaiateque à força de tanto repetir a cos-tura dos seus fatos acabou por cor-romper o modelo, inaugurando oseu estilo. Com a escrita acontecealgo de parecido.

CM — Prossegue a criaçãoliterária em paralelo com osblogues consciente de que cadaum dos suportes vai atingir umalvo diferente? Ou há, por uma epela outra via, mensagens edestinos comuns?

JRL — A escrita em blogue impli-ca de facto condicionantes distintasda escrita literária, muito emboranão se possa negar carácterliterário ao que se publica na blo-gosfera.

O diasdesiguais.blogspot.com éum pouco a prova disso mesmo, aoacondicionar uma série (já volu-mosa, até) de poemas, prosaspoéticas e crónicas. Nem tudo oque nele publico é declaradamenteliterário, mas muitos textos são-nosem dúvida.

Arrisco confessar que a criaçãodo blogue — em Janeiro último —constituiu um impulso saudável evigoroso na minha actividade de es-crita. Ainda assim, escrevo textospara os cadernos, textos que talveznão caibam nesse registo diarístico,ou que talvez caibam mas que nãoquero sujeitar ao voyeurismo doblogue. O carácter imediatista demuitas das entradas diárias dos

blogues impede a necessária ma-duração dos textos, mas podemnão passar de uma primeira pince-lada. Dou o exemplo das minhascrónicas. Várias foram inicialmentepartilhadas no diasdesiguais-blogspot.com e acabaram em livro,no ‘Dos Maus e Bons Pecados’, comcorrecções e alterações impor-tantes. Poderíamos, nesta óptica,olhar para o blogue como um su-porte-rascunho, da maior agili-dade.

DESCORTINAR O QUE É ÍNTIMO DO AUTOR

CM — Será exagerado concluirque quando escreve para o pa-

pel revela-se num registomais íntimo e quando es-creve para os blogues revelauma faceta mais pública?

JRL — Em literatura, des-cortinar o que é íntimo — ounão — ao autor revela-se demodo muito particular fala-

cioso. Tudo o que é de verdadeira-

mente literário (não importandose em papel se em blogue) é, ou

deve ser, público. Como autor, nãotenho duas facetas. Nos bloguesalimento a mesma pessoa que merevelei nos livros.

Em ambos deixei de me per-tencer em exclusivo, construindouma espécie de semiverdade ou, sepreferir, uma semificção! O simplesfacto de transformarmos uma cor-rente de palavras num texto implicauma necessidade de partilha.

Não acredito na escrita íntima,visto que mais cedo ou mais tardeaté o fundo das gavetas vem à luzdo dia, como acontece com docu-mentos pessoais, cartas, bilhetes,inéditos, etc. A esse respeito,poderíamos aqui lembrar os textosda arca de Pessoa: a sua existênciacomo que os condena a ser conhe-cidos.

Assim, e para responder concre-tamente à questão, sou apenas um,o mesmo que se espraia no papelou se mostra nos blogues.

FORMATOS ELECTRÓNICOSE OS LIVROS

CM — O que pensa da dis-cussão sobre se os formatos elec-

trónicos são uma ameaça ou umanova oportunidade para o livro?

JRL — Não acredito que o livrotenha os dias contados, ou algosemelhante. Essa visão parece-meirrealista, porque, entre outros as-pectos, os livros são um veículo no-bre e lúdico: até aqueles que publi-cam nos melhores blogues sabemque a edição dos mesmos textosem livro representa uma mais-valiae até mesmo uma certificação dequalidade.

Além do mais, ler em livro e lerno ecrã é muito distinto. Há umprazer muito distinto no folhear aspáginas de um volume de poemasdaquele que deriva do ratear aspáginas de um blogue.

E há o cheiro do livro, a suaelegância de objecto enxuto, o re-quinte dos caracteres, etc. Contra-riando até o receio dos pessimistas,acredito que os blogues dão umaajuda na divulgação das novas pu-blicações.

Quem gosta de livros não ospreterirá pelo advento das novastecnologias. E quem não lê livros,dificilmente perde tempo a ler osblogues.

27 PESSOAS 23 de Dezembro 2007 C

“TUDO O QUE É DE VERDADEIRAMENTE IMPORTANTE (NÃO

IMPORTANDO SE EM PAPEL SE EM BLOGUE) É, OU DEVE SER,

PÚBLICO. COMO AUTOR NÃO TENHODUAS FACETAS.

NOS BLOGUES ALIMENTO A MESMA PESSOA

QUE ME REVELEI NOS LIVROS”