TRABALHO COLABORATIVO E EM REDE Warley Bombi. Litogravura MÍDIAS ANTIGAS.
COSTA, Warley . Saber histórico e construção de Identidades: olhares sobre as imagens da...
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SABER HISTÓRICO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES: OLHARES SOBRE AS IMAGENS DA ESCRAVIDÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE
HISTÓRIA DO ENSINO FUNDAMENTAL Warley da Costa
De abordagem sócio-histórica, esta pesquisa desenvolvida para o
curso de mestrado em andamento1, investiga de que forma as imagens da
escravidão reproduzidas em livros didáticos de história utilizados na sexta
série do Ensino Fundamental da Prefeitura do Rio de Janeiro interferem na
construção das representações mais comuns das identidades culturais,
considerando o universo escolar.
Três livros foram inicialmente selecionados para estudo: Os
Caminhos do Homem, de Adhemar Martins Marques, História de José
Roberto Martins Ferreira e História Integrada de Cláudio Vicentino. Os
critérios para seleção dos livros foram: a freqüência de seu uso nas Escolas
Municipais, o que foi feito através de um levantamento junto aos professores,
e sua inclusão no Programa do Livro Didático do Governo Federal2,
verificada através do catálogo do próprio Programa.
As entrevistas estão ocorrendo individualmente, e o contato inicial com
o entrevistado feito através da escola de origem, ou através de contato
pessoal.
A pesquisa aqui proposta nasceu das reflexões sobre a experiência no
magistério como professora de História e do contato com novas abordagens
historiográficas acerca da escravidão no Brasil, no curso de Especialização
em História do Brasil na UFF3, quando elaboramos como produto final uma
análise da historiografia produzida pelos pesquisadores sobre o tema e sua
1Sob a orientação da Prof. Dra Nailda marinho da Costa Bonato do Programa de pós graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO 2 PNLD- Programa Nacional do Livro Didático, implementado a partir de 1994, determina a distribuição gratuita de livros didáticos para alunos do ensino fundamental da rede pública. 3 Universidade Federal Fluminense
1
abordagem nos livros didáticos de história4. O movimento reflexivo, em
relação à ação educativa e produção acadêmica, revelou-nos a necessidade
de aprofundar questões até então superficialmente tratadas.
Nessas reflexões observamos que o livro didático é um importante
recurso a ser analisado, visto que, é amplamente utilizado. Ele desempenha
um papel significativo na formação ideológica e cultural no cotidiano escolar
funcionando como um importante instrumento de trabalho. Muitas vezes,
professores e alunos o têm como única fonte de informação sendo
considerado sistematizador dos conteúdos da proposta curricular oficial. A
partir de um olhar crítico sobre esse significativo instrumento pedagógico,
verificamos a existência de uma grande quantidade de imagens
principalmente nos livros de ensino fundamental. Observamos também
através da presente pesquisa que essas imagens ilustravam ou reforçavam o
teor do texto. Essas entre outras questões nos levaram a pensar que as
imagens contidas nos livros didáticos se configuraram como um forte
referencial para o educando e contribuíam para que no processo cognitivo de
apreensão do conhecimento valores depreciativos acerca do negro fossem
reforçados influenciando a formação das identidades dos alunos.
Analisar de que forma o olhar do aluno sobre essas imagens
contribuiu na construção de determinados valores, é matéria um tanto
instigante e que pretendemos responder através da fala do próprio aluno e
de um maior aprofundamento teórico. Para isso, estamos entrevistando ex-
alunos de Escolas da Rede Municipal dos meados da década de 1990 e que
tiveram acesso aos livros selecionados por nós. A entrevista de forma semi-
estruturada tem como ponto de partida a apresentação das imagens ao
entrevistado.
1. O passado histórico refletindo no cotidiano escolar:
4 COSTA, Warley da. Abordagens da Escravidão no Livro Didático, Monografia de Conclusão do Curso de Especialização em História do Brasil- UFF. Niterói: 1999.
2
Verificamos que a abordagem da escravidão nos livros didáticos de
história, utilizados no ensino fundamental nas escolas públicas, baseava-se
em estudos realizados em décadas anteriores. Apesar das edições serem
dos anos 1990, observamos que as imagens da escravidão nos livros,
retratavam a vida dos cativos nos momentos de permanente sofrimento,
reproduzindo cenas dramáticas como: castigos corporais, fugas e torturas.
As imagens reproduzidas em grande quantidade, eram de qualidade,
coloridas e de bom tamanho, mas apresentavam o escravo como uma
simples peça da engrenagem. Não encontramos imagens que retratassem a
cultura, as relações afetivas e familiares que certamente se estabeleceram
na vivência cotidiana. Os livros descreviam páginas e mais páginas de quatro
séculos de sofrimento.
Por outro lado, convivência com grupos de alunos, em sua maioria
afro-descendentes, originários de comunidades pobres, permitiu uma
reflexão sobre as suas dificuldades em estarem se posicionando ou mesmo
se reconhecendo como pessoas que podiam intervir sobre determinada
realidade. A baixa auto-estima e a falta de expectativa eram visíveis. O
preconceito racial e social era outro componente perceptível que se
manifestava freqüentemente no dia a dia, nas relações entre os grupos, quer
através de brincadeiras, quer através das disputas, e principalmente em
momentos conflituosos. : a memória de quase quatrocentos anos de
escravidão permanecia acesa consolidando valores culturais depreciativos
em relação ao negro, colocando à prova a nossa democracia racial.5 O
pesado legado cultural do escravismo consolidou-se na memória coletiva
através das representações do passado. São conceitos e valores repassados
de geração a geração, expressos por palavras, gestos, imagens e silêncios.
Na sala de aula esse mecanismo se reproduz tendo como importante aliado
o livro didático.
5 Termo utilizado por Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala e criticado pelos cientistas sociais nas décadas de 1960/1970.
3
2. Currículo, livro didático e imagens da escravidão
Consideramos que o livro didático, apesar de não ser o único, seja um
importante recurso a ser analisado, visto que, tornou-se comum no ensino
fundamental nas escolas públicas, principalmente, a partir da obrigatoriedade
da distribuição gratuita pelo Governo Federal. Seus textos e imagens
passam a ser um forte referencial para quem o lê. Ele desempenha, portanto,
um papel significativo na formação de valores e representações para a
comunidade escolar. Apesar de muitas vezes criticado e tratado como vilão,
é um meio que se propõe a propagar o conhecimento científico e que ao
mesmo tempo funciona como mediador dos conteúdos da proposta
curricular oficial. O livro didático tem sido, desde o século XIX, o principal instrumento de trabalho de
professores e alunos, sendo utilizado nas mais variadas salas de aula e condições pedagógicas, servindo como mediador entre a proposta oficial do poder e expressa nos próprios currículos e o conhecimento escolar ensinado pelo professor.6
O livro didático, como intermediário entre o saber acadêmico e o
conhecimento escolar oferece ao leitor, estudante ou professor algumas
armadilhas. Algumas vezes, os autores tentam veicular informações numa
linguagem mais acessível ao leitor, aproximando-se mais de sua realidade.
Muitas vezes, o resultado é a simplificação exagerada descaracterizando
determinados conceitos, ou mascarando outros. De acordo com Hebe
Mattos, A simplificação de algumas formulações historiográficas
complexas nos livros didáticos, por exemplo, muitas vezes transforma em estereótipos esvaziados de significação acadêmica ou pedagógica, como aconteceu, na década de 1980, com o conhecido conceito de modo de produção. 7
No caso do tema escravidão, a presença do negro aparece apenas
vinculada ao processo produtivo como parte integrante do sistema colonial.
5 BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens In: BITTENCOURT,Circe (Org.). O Saber Histórico na sala de aula, São Paulo, Contexto, 1997. 7 CASTRO, Hebe Maria Matos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.131.
4
Mesmo considerando a importância dessas análises no momento em que
foram produzidas-década de 1980- podemos questionar até que ponto
determinados valores são reforçados de forma estereotipada, influenciando
negativamente na formação identitária de alunos e professores. Os livros
referem-se a este tema na sexta-série, quando tratam de sociedade e
trabalho na colônia portuguesa. Retomam a este tema somente na série
seguinte ao tratar da abolição da escravatura. Acompanham as definições
dos currículos oficiais, onde a História da África e dos africanos tem sido
colocada em segundo plano e suplantada pela história européia.
Outro aspecto importante a ser mencionado é a utilização de imagens
como recurso pedagógico no processo ensino-aprendizagem. As crianças têm necessidade de ver as cenas históricas para
compreender a história. É por essa razão que os livros de história que vos apresento estão repletos de imagens.8
Para Ernest Lavisse, historiador francês do século XIX e autor de
livros didáticos, “ver as cenas”, possibilita uma melhor compreensão dos
conteúdos escritos além de facilitar a memorização dos fatos. A utilização de
imagens de uma maneira geral nos livros didáticos, cumpre os objetivos de
reforçar o texto e torná-lo mais atraente para o mercado. Observamos que,
ultimamente, o mercado editorial privilegiou o uso de imagens como
ilustração do texto. A grande quantidade de imagens, pode ser justificada
pela grande demanda da cultura visual contemporânea. O caráter mercadológico e as questões técnicas de fabricação da
obra didática interferem no processo de seleção e organização das imagens e delimitam os critérios de escolha, na maioria das vezes, das ilustrações.(...) Os livros didáticos não podem ser caros, mas necessitam de gravuras, como pressuposto pedagógico da aprendizagem, principalmente para alunos do ensino elementar. 9
7 LAVISSE, Ernest, apud BITTENCOURT, Circe, O Saber Histórico na sala de aula, São Paulo, Contexto, 1997, p.75 8 BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens In: BITTENCOURT,Circe (Org.). O Saber Histórico na sala de aula, São Paulo, Contexto, 1997.
5
Verificamos que há uma maior quantidade de gravuras nos livros de
ensino fundamental, em relação aos livros de ensino médio o que comprova
que a imagem, como mediadora da cognição, assume um papel muito
importante no processo ensino-aprendizagem nas séries iniciais.
Nos livros avaliados, verificou-se que a maioria das gravuras foram
produzidas por artistas europeus como Jean Baptiste Debret e Johan Moritz
Rugendas. O primeiro artista chegou ao Brasil acompanhado a Missão
Artística Francesa em 1816 permanecendo aqui por algum tempo. O
segundo, pintor alemão, desembarcou ainda muito jovem no Brasil.
Participou da expedição científica do barão Georg-Heinrich Von Langsdorff
sem muita experiência profissional ou conhecimento do Brasil. Rugendas
separou-se da expedição por desentendimentos com Langsdorff,
permanecendo no Brasil por um curto período (!822-1825) retornando
apenas no II Reinado em 1945. Ambos procuraram retratar o cotidiano do
Brasil no período de formação do Estado Nacional, no momento de nossa
emancipação política, quando fazia-se necessário divulgar uma imagem
desmistificadora do novo país. Ao olhar dos artistas viajantes não escapou
nenhum detalhe: família, escravos, índios, natureza, solidificando o perfil
dessa nação para os seus contemporâneos.Ao olhar dos nossos alunos, as
mesmas figuras reproduzidas no manual didático, podem trazer significados
reveladores para o seu cotidiano funcionando como verdadeiros elos entre
presente e passado.
3. Abordagens da Escravidão nos livros didáticos: O tema escravidão despertou interesse nesta pesquisa devido ao fato
desta questão ainda estar latente nas relações sociais até os dias de hoje.
Há uma interrogação sobre o papel do negro na sociedade brasileira ainda
não resolvida. Por isso, são inesgotáveis as questões emergentes.
Antes de analisarmos os efeitos da linguagem imagética no ato
de aprender e a relação texto-imagem no livro didático, se faz necessário,
mesmo que de forma inicial, uma leitura dos diferentes olhares dos autores
6
dos livros selecionados para esta pesquisa sobre a escravidão, assim como
uma rápida abordagem das novas visões propostas pela História Social a
partir dos anos 1980.
Este período foi marcado pela abertura política e anistia propiciando a
emergência de movimentos sociais e abertura de espaços para novos
debates. A expansão dos cursos de pós-graduação contribuiu para a
diversificação dos trabalhos acadêmicos. A expansão intensa do ensino superior, da pós-graduação e a formação de quadros no exterior também é significativa na segunda metade dos anos 80 e início dos anos 90. O retorno destes quadros traz para as universidades, no final da década de 80 e durante a década de 90, contribuições que começam a produzir grandes diversificações nos trabalhos, tanto em relação às temáticas como às formas de abordagem.10
Essas transformações são visíveis tanto no campo das pesquisas
em educação como também no âmbito das pesquisas históricas.
Nos últimos anos, e em especial após o centenário da abolição da
escravidão, a História Social, tem oferecido ricas contribuições ao estudo da
escravidão. Baseados em novos estudos e balizados em fontes de pesquisas
documentais, os historiadores têm avançando bastante nessa questão.
Valorizando-se fontes cartorárias, judiciais, fiscais e demográficas, a História
Social abriu caminhos para a proliferação de pesquisas nesta área.
Até então, estávamos acostumados a análises que inseriam a
escravidão num contexto mais abrangente, apresentando o escravo como
uma simples peça da engrenagem: o escravo passivo e massacrado pelo
sistema. Esses estudos apresentam a escravidão como um aspecto do
sistema colonial a serviço do capitalismo. Nesta visão, o escravo, objeto ou
mercadoria, é uma simples peça imóvel e passiva. Aparece geralmente
vinculado ao latifúndio e à monocultura, estabelecendo uma relação direta
com o mercado externo. A sociedade escravista se apresenta polarizada
entre senhores e escravos, sem considerar as especificidades nascidas ao
10 GATTI, Bernardete A. Implicações e perspectivas da pesquisa educacional no Brasil Contemporâneo. Cadernos de Pesquisa, n 13, 2001.
7
longo do tempo. Por exemplo, na obra Capitalismo e Escravidão no Brasil
Meridional de Fernando Henrique Cardoso, o escravo é retratado como ser
desprovido de raciocínio, ou de qualquer sentimento humano. Incapaz de
criar ou produzir por conta própria “ ...o escravo era uma ‘coisa’, sujeita ao
poder e à propriedade de outrem, e, como tal, ‘havido por morto’, privado de
todos os direitos e sem representação alguma, (...)11 Ao se tornar
propriedade de outrem, perdia a capacidade de criar consciência da
realidade que o cercava e de reagir como ser humano.
Decerto, essa abordagem se desenvolveu no momento em que a
democracia racial, descrita por Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala12,
recebia duras críticas, e a revelação da dura realidade da escravidão
denunciava as condições adversas vividas em cativeiro.
Nas novas abordagens historiográficas produzidas recentemente
porém, o escravo não aparece apenas como figurante, mas como sujeito
capaz de interferir na realidade social. Firma-se como aquele que não deve
apenas ser considerado “coisa”, pois trabalha, tem vida afetiva própria,
constrói família e negocia. É também aquele que não depende apenas de
abolicionistas ou redentores para libertá-lo. Esses estudos apontam para a
importância do papel histórico desempenhado pelo escravo como agente
histórico.
Já na década de 1970, Ciro Flamarion Cardoso, com seu estudo
comparativo das sociedades escravistas da América, considerou a
importância das atividades camponesas do escravo, denominada por ele de
“brecha camponesa. ”.13 Verificou que em todas as colônias ou regiões
escravistas muitos dos escravos dispunham de lotes em usufruto e do
tempo para cultivá-los. Na década de 1980, estudos antropológicos e
11 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 12 FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala, Rio de Janeiro: Ed. Record, 2002. 13 CARDOSO, Ciro Flamarion S. A afro-America: ------- Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1979.
8
historiográficos revelaram a relativa autonomia dos escravos, criada a partir
de mecanismos próprios no dia a dia, nas relações familiares ou na busca
pela alforria. Demonstraram assim, que apesar da violência da escravidão, o
negro não se manteve passivo ou alienado. Não se manteve incapacitado
para construir espaços próprios. Das formas mais radicais de resistência
como fugas e quilombos às estratégias mais implícitas eles procuraram
caminhos para a liberdade. Essas tentativas de liberdade aparecem tanto
nos conflitos mais diretos como no cotidiano, quer na luta por benefícios,
quer na compra das cartas de alforria. Conquistar a liberdade, através de tais
expedientes, significava se livrar do cativeiro por vias oferecidas pelo próprio
sistema.
As divergências e diferenças apontadas pelos pesquisadores,
entretanto, restringiram-se apenas ao plano acadêmico. A questão é que
essa produção intelectual vem atingindo timidamente as escolas de ensino
médio e fundamental, pois, ainda hoje a abordagem do tema nos livros
didáticos utilizados nestes segmentos, baseiam-se em estudos realizados
há mais de vinte anos. As imagens repetem cenas de violência e trabalho
pesado, reforçando o sentido panfletário do texto. Imagens dos mesmos
pintores-viajantes que retratam cenas de festas, irmandades ou aspectos da
vida familiar dos escravos, simplesmente são descartadas.
Decerto, não se pode mascarar a realidade, nem muito menos afirmar
que não houve sofrimento no cativeiro. A própria condição de escravo, já
retirava do homem o que se pode ter de melhor: a dignidade. Afirmar porém
que durante todo o tempo em que permaneceram sob a custódia do senhor,
a vida do escravo foi só sofrimento, é negar os outros aspectos da cultura,
relações sociais e afetivas que se estabeleciam na sua vivência cotidiana.
Mesmo sob o cativeiro, os escravos criaram condições sociais específicas:
relações de amizade, solidariedade e amor.
4. Imagens e representações do ser negro:
9
As imagens nos livros didáticos em questão, com o objetivo reforçar o
texto, reproduzem apenas cenas dramáticas: castigos corporais, fugas e
torturas. O título de um capítulo dedicado à escravidão do livro de Ferreira
Martins para a sexta série sugere essa visão: Escravidão, o sofrimento que
produz riqueza.14 As denúncias podem ser interessantes, mas relegam ao
escravo o papel de agente absolutamente passivo. Sem movimento próprio,
sem nenhuma possibilidade de autonomia, ele se transformaria num ser
desprovido de qualquer ação humana. Adhemar Marques no livro Os
Caminhos do Homem também reforça essa idéia: “Não havia possibilidade
de o escravo deixar sua condição. Era escravo, do nascimento à morte.
Somente em ocasiões especialíssimas ele conseguia sua libertação(alforria).
“15
Quando se referem à questão cultural, reduzem-na ao sincretismo
religioso. Do mesmo autor: Os africanos foram dominados violentamente, o que deixou pouco espaço para sua expressão cultural. As poucas vezes que isso ocorreu foi dentro de um processo que conhecemos pelo nome de “sincretismo”, no qual aproximam-se traços de diversas culturas.16
Em resumo, os textos e as imagens sugerem que eles eram
incapacitados para criar sua própria cultura o que, conseqüentemente, os
levaram a se submeter a outras, acabando por produzir o que se chama de
sincretismo cultural. Neste sentido, a cultura negra aproxima-se mais do
folclore brasileiro do que de um conteúdo conceitual próprio.
Essas análises relegam em segundo plano a possibilidade do negro
reconstituir tudo o que lhe foi destituído e construir uma identidade dentro de
um novo contexto histórico. Ao contrário, a criação de laços de família e
relações afetivas estáveis no cativeiro não dependia exclusivamente do
senhor, mas sim do esforço do próprio escravo em ocupar um espaço onde
pudesse criar regras e identidade social, perdidas na condição de cativo. Ao
14 FERREIRA, José Roberto Martins. História.São Paulo: FTD Editora, 1991. 15 MARQUES, Adhemar Martins: BERUTTI, Flávio Costa & FARIA, Ricardo de Moura. Os Caminhos do Homem, Volume 2. Belo Horizonte: Editora Lê, 1991. 16 Ibdem
10
silenciar sobre o cotidiano do negro escravo os autores subestimam a sua
capacidade de estar construindo espaços próprios.
Nesta perspectiva, considerando o teor do texto e o sentido das
imagens questionamos: até que ponto o processo cognitivo de apreensão do
conhecimento, tendo como referência o uso do livro didático e sua relação
texto-imagem, imagem-texto, pode reforçar valores sociais depreciativos em
relação à origem do indivíduo, influenciado a formação da identidade do
aluno?
5- Retratos do passado e construção de identidades: Sabemos que a formação de uma identidade individual ou coletiva
depende da influência que os processos sociais exercem sobre o indivíduo.
Estes processos fazem parte da realidade histórica e objetiva que é
transmitida pela sociedade, quer seja pelo grupo familiar, amigos ou
comunidade escolar. Neste contexto, apesar, de não serem o único veículo,
a influência das imagens reproduzidas no livro didático na formação dessas
representações sociais é bastante significativa.
O retrato do passado, de sua origem, estampado nos livros didáticos
não escapam ao olhar atencioso dos nossos alunos da escola pública. A
identificação com o passado, a partir das cenas dos artistas-viajantes, pode
ter um significado negativo na medida em que revela apenas uma face
depreciativa da cultura africana.
De acordo com Hall, As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um
passado histórico com a qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver entretanto, com a questão da utilização de recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tem a ver não tanto com as questões “quem somos nós” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios.” 17
17 HALL, Stuart.Quem precisa de Identidade in Identidade e diferença , SILVA, Tomaz Tadeu (org), Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
11
Sendo assim, questionamos, em que medida utilização de recursos
visuais, neste caso as imagens da escravidão, pode contribuir para a
produção do auto-preconceito e de uma imagem negativa do ser negro no
Brasil? A representação elaborada sobre o papel do negro na sociedade
brasileira desde os tempos da escravidão afeta a representação que os
sujeitos fazem de si mesmo?
Para isso, estamos entrevistando ex-alunos de Escolas da Rede
Municipal dos meados da década de 1990 e que tiveram acesso aos livros
selecionados por nós. A entrevista de forma semi-estruturada tem como
ponto de partida a apresentação das imagens ao entrevistado. Analisar a
percepção dos entrevistados sobre essas imagens e as representações que
elaboraram sobre seus personagens e ainda, se houve alguma identificação
com esse passado são aspectos que buscaremos nestas entrevistas.
6-Considerações finais: As questões centrais que nos propomos responder serão analisadas a
partir da fala dos próprios alunos e de uma conceituação mais aprofundada
em relação à representação social e produção de identidades.
Cabe ainda ressaltar que as experiências acumuladas e os estudos
iniciados serviram até aqui para aumentar as inquietações, e apontar para
um maior aprofundamento das questões teóricas e das implicações práticas
que novos conhecimentos possam trazer.
Acreditamos ser de grande relevância a produção dessa pesquisa
para o fortalecimento das reflexões e debates empreendidos, hoje, pela
comunidade acadêmica, debruçada sobre os estudos da educação e da
cultura brasileira, de modo mais amplo.
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