“COTIDIANO” E “LUGAR”: CATEGORIAS TEÓRICAS DA HISTÓRIA E DA GEOGRAFIA ESCOLAR.

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“COTIDIANO” E “LUGAR”: CATEGORIAS TEÓRICAS DA HISTÓRIA E DA GEOGRAFIA ESCOLAR Andrea Coelho Lastória Rafael Cardoso de Mello RESUMO: Fruto de mudanças epistemológicas que marcam a trajetória das ciências, duas categorias dentro da História e Geografia chamam a atenção na atualidade. Este trabalho existe com o desiderato de promover uma discussão sobre as conseqüências do uso das categorias “Cotidiano” e “lugar” em sala de aula. Permiti-se assim, a um vasto públicos de leitores (a professores, pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação, técnicos e gestores de Educação) problematizar estas categorias de análise nas práticas pedagógicas. PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano, lugar e práticas pedagógicas. Introdução A História e a Geografia são ciências consideradas fundamentais para a construção de conceitos básicos, imprescindíveis ao exercício de uma cidadania plena. Tal consideração, apesar de amplamente difundida nos dias atuais, é relativamente recente. Essas áreas do conhecimento passaram, nos últimos anos, por diversas mudanças epistemológicas que alteraram seus pressupostos teóricos e Docente do Departamento de Psicologia e Educação, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, na Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Estudos da Localidade de Ribeirão Preto – ELO, na referida universidade. Pós-doutorado na Universidade de Oviedo, Espanha. Doutora e Mstre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Licenciada em Geografia, Pedagogia e Bacharel em Geografia pela Universidade Estadual Paulista-UNESP. Mestrando em História (UNESP-Franca) e graduando em Geografia (Centro Universitário Barão de Mauá-Ribeirão Preto). Professor da Fundação Educacional de Fernandópolis, onde exerce o cargo de Coordenador de Publicação do CDEPE (Centro de Documentação, Ensino, Pesquisa e Extensão). É membro do Grupo ELO (Estudos da Localidade/USP-Ribeirão Preto) e do CEMUMC (Centro de Estudos da Modernidade e da Urbanização do Mundo do Café/UNESP-Franca).

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“COTIDIANO” E “LUGAR”: CATEGORIAS TEÓRICAS DA HISTÓRIA E DA GEOGRAFIA ESCOLARAndrea Coelho Lastória ∗ Rafael Cardoso de MelloRESUMO: Fruto de mudanças epistemológicas que marcam a trajetória das ciências, duas categorias dentro da História e Geografia chamam a atenção na atualidade. Este trabalho existe com o desiderato de promover uma discussão sobre as conseqüências do uso das categorias “Cotidiano” e “lugar” em sala de aula. Permiti-se assim, a um vasto públicos de leitores (a professores,

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“COTIDIANO” E “LUGAR”:CATEGORIAS TEÓRICAS DA HISTÓRIA E DA GEOGRAFIA ESCOLAR

Andrea Coelho Lastória

Rafael Cardoso de Mello

RESUMO: Fruto de mudanças epistemológicas que marcam a trajetória das ciências, duas categorias dentro da História e Geografia chamam a atenção na atualidade. Este trabalho existe com o desiderato de promover uma discussão sobre as conseqüências do uso das categorias “Cotidiano” e “lugar” em sala de aula. Permiti-se assim, a um vasto públicos de leitores (a professores, pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação, técnicos e gestores de Educação) problematizar estas categorias de análise nas práticas pedagógicas.

PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano, lugar e práticas pedagógicas.

Introdução

A História e a Geografia são ciências consideradas fundamentais para a construção de conceitos básicos, imprescindíveis ao exercício de uma cidadania plena. Tal consideração, apesar de amplamente difundida nos dias atuais, é relativamente recente. Essas áreas do conhecimento passaram, nos últimos anos, por diversas mudanças epistemológicas que alteraram seus pressupostos teóricos e metodológicos, tanto na esfera acadêmica, como na escolar. Os desdobramentos destas mudanças podem ser percebidos no dia-a-dia de professores e alunos, mais especificamente, no delineamento de novas políticas e práticas pedagógicas.

Os conteúdos de ensino e as formas de ensinar História e Geografia foram mudados nos últimos anos. Afinal, o pensamento histórico e geográfico tem sido marcado por diversas correntes ou vertentes. Algumas que privilegiaram um olhar para o passado à procura dos grandes fatos e personalidades, outras, mais voltadas à observação do real, a partir da descrição do espaço físico dos territórios, outras ainda, voltadas à análise das tensões sociais e, as mais recentes, que partem de paradigmas culturais com tendências humanistas. Enfim, correntes que tomam forma e se constituem, pela ação dos cientistas e dos professores, em suas esferas profissionais, políticas e ideológicas.

Este artigo discute as duas categorias explicitadas à luz de reflexões teóricas da História e da Geografia. Há de se lembrar que tal proposta é tem como destino um público numeroso e variado: professores, pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação, técnicos e gestores de Educação. O cerne das reflexões apresentadas consiste na necessidade de ressaltar tais categorias nas práticas pedagógicas de professores que pretendem contribuir, efetivamente, com a melhoria do ensino de História e Geografia na escola básica brasileira.

Considerações sobre o cotidiano e seu ensino

Docente do Departamento de Psicologia e Educação, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, na Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Estudos da Localidade de Ribeirão Preto – ELO, na referida universidade. Pós-doutorado na Universidade de Oviedo, Espanha. Doutora e Mstre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Licenciada em Geografia, Pedagogia e Bacharel em Geografia pela Universidade Estadual Paulista-UNESP. Mestrando em História (UNESP-Franca) e graduando em Geografia (Centro Universitário Barão de Mauá-Ribeirão Preto). Professor da Fundação Educacional de Fernandópolis, onde exerce o cargo de Coordenador de Publicação do CDEPE (Centro de Documentação, Ensino, Pesquisa e Extensão). É membro do Grupo ELO (Estudos da Localidade/USP-Ribeirão Preto) e do CEMUMC (Centro de Estudos da Modernidade e da Urbanização do Mundo do Café/UNESP-Franca).

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A definição de cotidiano encontrada no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa é a que se refere àquilo de todos os dias; a vida cotidiana. Que se faz ou sucede todos os dias. Que sucede ou se pratica habitualmente, dentre outros.

Aparentemente, o cotidiano não precisa de esforço ou reflexão, pois como sua própria definição expressa, ele se materializa em tudo o que é ou está no diário das pessoas. A História, por muito tempo, creditou pouco valor às análises e interpretações que miravam o cotidiano de homens e mulheres comuns. Os resultados deste descaso aparecem em vários trabalhos de historiadores que (durante anos) não se preocuparam em investigá-lo, de valorizar as relações do dia a dia das pessoas, das minorias étnicas, dos trabalhadores, dentre outras. Eles entendiam que estas questões eram menos importantes ou, até mesmo, desnecessárias se considerarmos o “escopo” científico da época. Seriam esforços em prol do imediatismo, da “vida privada e familiar, [...] atividades ligadas à manutenção dos laços sociais, ao trabalho doméstico e às práticas de consumo. São assim, excluídos os campos do econômico, do político e do cultural na sua dimensão ativa inovadora.” (DEL PRIORI, 1999: 260-261)

No entanto, devemos levar em consideração que as abordagens que mergulharam no cotidiano das pessoas, ao longo do tempo, não são recentes. Desde a Grécia Antiga, Heródoto já realizava tais análises quando descreveu os costumes dos persas e dos egípcios, para explicar os conflitos entre gregos e bárbaros. (CARBONELL, 1987:15-27)

No século XX, vários historiadores (inspirados por autores que se utilizam de análises do cotidiano para explicar tensões sociais, lutas e conflitos políticos) valorizam esta categoria teórica em suas investigações. Agnes Heller (1985) é citada por vários historiadores e geógrafos por tomar a vida cotidiana como:

... a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias.(HELLER, 1985:17)

Assim como na ciência histórica, encontrarmos propostas pedagógicas que se pautam no cotidiano, como uma das categorias centrais da História e da Geografia. Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais de História e Geografia, os Referenciais Curriculares para a Educação Infantil e outros documentos do Ministério da Educação valorizam o cotidiano. As discussões e publicações originadas nos Encontros Nacionais de Didática e Prática de Ensino - ENDIPE, nos Encontros Nacionais de Prática de Ensino de Geografia – ENPEG, nos eventos promovidos pela Associação Nacional de Professores de História – ANPUH e pela Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB reafirmam tal abordagem.

Isto significa trabalhar com o ensino de uma história que nega aquilo que ainda é perpetuado em algumas práticas escolares, ou seja, negar as descrições assépticas dos grandes eventos e seus heróis (em sua maioria, personagens masculinos e caucasianos que aparecem como atores principais, ou únicos, no palco do processo civilizatório da humanidade).

O dramaturgo alemão Eugen Bertolt Friedrich Brecht (1898 -1956), poeta, teórico de teatro, crítico severo do capitalismo , pessoa que valorizava a ação política e abominava o “analfabeto político” ilustra tais colocações no poema que segue:

Perguntas De Um Operário Que Lê.

Quem construiu Tebas, a das sete portas?Nos livros vem o nome dos reis,Mas foram os reis que transportaram as pedras?Babilônia, tantas vezes destruída,Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casasDa Lima Dourada moravam seus obreiros?No dia em que ficou pronta a Muralha da China para ondeForam os seus pedreiros? A grande RomaEstá cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quemTriunfaram os Césares? A tão cantada BizâncioSó tinha paláciosPara os seus habitantes? Até a legendária Atlântida

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Na noite em que o mar a engoliuViu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as ÍndiasSozinho?César venceu os gauleses.Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?Quando a sua armada se afundou Filipe de EspanhaChorou. E ninguém mais?Frederico II ganhou a guerra dos sete anosQuem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.Quem cozinhava os festins?Em cada década um grande homem.Quem pagava as despesas?

Tantas históriasQuantas perguntas

Neste contexto, faz se necessário refletir sobre a história do cotidiano, de suas qualidades e potencialidades nas práticas pedagógicas escolares da escola básica. A partir do cotidiano, e de seus protagonistas anônimos (VAINFAS, 2002), professores e alunos podem perceber na História, a presença de pessoas comuns. Pessoas, que ao seu modo, vivem, sentem, se apaixonam, trabalham e enxergam o mundo ao seu modo. Apresentar esta possibilidade nas aulas significa permitir que os alunos (juntamente com o professor) possam se identificar com as pessoas (verdadeiros personagens), pois estas viveram em um determinado tempo e espaço. Tiveram seus problemas, seus dilemas, suas tensões e problematizaram o mundo a sua maneira.

Tal atitude pedagógica se revela mais promissora para construção da cidadania, pois retira o foco da ação descontextualizada e alienante dos grandes atores como Dom Pedro, Napoleão, Hitler... Um exemplo para se caminhar neste sentido é a problematização da vida das mulheres, do caipira, dos negros, dos remanescentes de quilombos, dos índios e outros. Pessoas que, devido à prática de muitos professores, aguardam (enclausurados na cela do esquecimento) o momento de “entrarem em cena”.

A história das mulheres vem sendo escrita há décadas, e nem por isso ela efetivamente está presente nas práticas escolares brasileiras. O mesmo pode ser dito do homem do campo, ou da complexa e rica cultura afro-brasileira. Todos estes temas perpassam as discussões acadêmicas e científicas das áreas de História, Geografia e Educação, mas esbarram ora nos livros didáticos, ora no comodismo da tradição do ensino, ou ainda, nos programas e / ou currículos escolares até então perpetuados pelas políticas públicas de ensino no Brasil.

Vê-se, assim, como os ‘problemas cotidianos’ não são menores e que a história não é produto exclusivo dos grandes acontecimentos; ao contrário, ela se constrói no dia-a-dia de discretos atores que são a maioria. Contrariamente às aparências, cotidiano e história não são noções contraditórias. Resta analisar de que maneira se operam as relações entre ambos, relações que colocam, sem dúvida, muitas perguntas ao historiador, ao geógrafo ou a outros cientistas sociais preocupados em recuperar os laços entre o social e o individual, o social e o histórico. (DEL PRIORI, 1997: 266)

O cotidiano deve ser percebido como uma ferramenta poderosa a ser utilizada pelo professor, uma dentre tantas que detêm qualidades específicas. No dia-a-dia da sala de aula, ele se revela uma peça fundamental para a construção do cidadão que estuda História e Geografia não apenas para decorar datas e nomes de um passado linear e que não lhe pertence. Ao contrário, percebe-se que a partir do resgate da trajetória de seus antepassados, o aluno pode começar a entender a construção da História “no seu” e para além “do seu” cotidiano. Tornando-se um cidadão consciente de seus atos e de suas escolhas.

Para Bittencourt (2004), o ensino da história do cotidiano, possibilita a articulação entre a história individual e a coletiva. Requer, portanto, que o cotidiano não seja usado apenas como uma motivação para se estudar o passado, pautado em descrições curiosas e desconectadas do contexto social, mas sim, que seja considerado seus pressupostos teóricos e metodológicos a fim de ser possível selecionar conteúdos coerentes com os próprios objetivos da História Escolar. Para a autora,

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O cotidiano deve ser utilizado como objeto de estudo escolar pelas possibilidades que oferece de visualizar as transformações possíveis realizadas por homens comuns, ultrapassando a idéia de que a vida cotidiana é repleta e permeada de alienação. (BITTENCOURT, 2004:168)

Considerações sobre o lugar e seu ensino

A História e Geografia foram concebidas, por muito tempo, como ciências que pouco se comunicavam. Isto gerou uma forma ineficiente de observar e intervir nas complexas relações entre a Sociedade e a Natureza.

O que se convencionou a denominar por Geografia Tradicional ou clássica pode ser entendida como uma vertente formada por um conjunto de correntes diversas, conhecidas por terem em comum, o método positivista estruturado por Augusto Comte. Como não possuía um objeto de estudo bem definido, a cada nova corrente tentava-se encontrar um novo objeto que explicasse as necessidades dessa ciência. Tal vertente foi superada por um movimento de renovação, dividido em duas vertentes. Uma delas é conhecida como Geografia Pragmática e a outra se compõe por tendências alternativas que se assentam em fundamentos teóricos e metodológicos diversificados. Dentre essas tendências encontramos a Geografia Radical ou Crítica (LASTÓRIA, 1996: 55).

Por muito tempo a realidade a ser analisada pelo geógrafo foi aquela passível de ser descrita detalhadamente. Uma paisagem natural que minimiza a participação humana, principalmente pelo determinismo alemão. Depois de tantos anos e tantos outros ismos (aqueles mesmos que também influenciaram a História), os geógrafos foram avançando e repensaram seus objetos e métodos. Surgiram, então, amplas discussões sobre o conceito de espaço geográfico e suas categorias ou recortes teóricos. Dentre as quais surgiu o lugar, categoria de pouca expressão até meados do século XX.

A própria História tem valorizado pesquisas que versem sobre o “local” nas últimas décadas. Tal postura é fruto de vários fatores: a multiplicação dos cursos de pós-graduação pelo país e a conseqüente interiorização do ensino superior público; o novo posicionamento das Instituições de Ensino Superior particulares frente à pesquisa; o rearranjo das identidades sociais frente os efeitos da Globalização; algumas ações governamentais, tais como as novas diretrizes dos PCNs de Ensino e as leis de valorização do patrimônio histórico-cultural e turístico, entendemos como integrantes deste contexto de mudanças do foco de observação (PERINELLI NETO, 2007).

Mais uma vez, ao recorrer ao Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, compreende-se que o verbete lugar encontra relação com uma série de possíveis entendimentos: espaço ocupado; sítio, localidade; terra; povoado; ponto de observação, local; ordem, posição, classe; posição relativa numa escala; cargo, emprego; vaga, tempo; circunstâncias especiais de alguém; pequeno estabelecimento de venda de hortaliças; vez; ensejo; destino; ocasião. Esta variedade de definição permite muitas leituras (algumas equivocadas) daquilo que realmente é o lugar para a Geografia.

Foram necessários vários anos de amadurecimento epistemológico para que os geógrafos ampliassem seu leque de interpretações. A ênfase no estudo do lugar, por meio de grandes intelectuais (dentre os quais citamos Milton Santos) permitiu uma maior participação do ser humano na transformação e organização do espaço geográfico atual:

Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como afirma M.A. de Souza (1995, p.65), "todos os lugares são virtualmente mundiais". Mas, também, cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais. A uma maior globalidade, corresponde uma maior individualidade. É a esse fenômeno que G.Benko (1990, p.65) denomina "glocalidade", chamando a atenção para as dificuldades do seu tratamento teórico. Para apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um tratamento localista, já que o mundo se encontra em toda parte. Também devemos evitar o "risco de nos perder em uma simplificação cega", a partir de uma noção de particularidade que apenas leve em conta "os fenômenos gerais dominados pelas forças sociais globais" Georges Benko (1990, p.65). A história concreta do nosso tempo repõe a questão do lugar numa posição central, conforme, aliás, assinalado por diversos geógrafos. A.Fischer (1994, p.73), por exemplo, refere-se à "redescoberta da dimensão local.” (SANTOS, 2006: 314)

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Pensar o lugar como espaço que está intimamente relacionado com o global – glocalidade – é compreender a existência de uma tensão dialética entre aquilo que se entende por mundo e como o próprio se mostra nos diversos lugares do globo. É crer o local como muito mais que uma aldeia fechada em si mesma, mas uma aldeia que lê o mundo de sua forma e devolve ao mundo a sua leitura apropriada, específica, é ainda, creditar valor planetário a uma dimensão que até então era menosprezada pelos geógrafos.

Ao reduzir sua escala de análise no ensino da Geografia e da História, o professor consegue vislumbrar experiências de vida únicas, formas de ler e interpretar o mundo que são próprias, concretas e individuais. Tal postura educativa possibilita que o aluno, a partir da dimensão local, passe a valorizar não só o cotidiano das pessoas comuns, como a própria espacialidade em que ele se encontra. Todo lugar é munido de uma história. Ao diminuir a escala de observação, chega-se, portanto, mais próximo do real e do vivido.

O ensino do cotidiano e do lugar como categorias inter-relacionadas

Tendo em vista as considerações acima, percebemos que os autores de livros e coleções didáticas partiram, recentemente, em uma “corrida” para promover situações que problematizem os conteúdos aos problemas da escola, do bairro, ou da cidade em que se encontra o aluno.

As tentativas de incorporar o lugar e o cotidiano nos materiais escolares foram (e ainda são) motivadas pelo Parâmetro Curricular Nacional – de História e Geografia, pela avaliação que vem sendo realizada em coleções e livros didáticos e paradidáticos de História e Geografia, por meio do Plano Nacional do Livro Didático – PNLD, pelas necessidades docentes, dentre outros.

As dificuldades das editoras e dos autores esbarram ainda em duas outras questões centrais, ou seja, no “que” e no “como” ensinar o lugar e o cotidiano tendo em vista a enorme variedade de contextos locais que o Brasil possui. Tal imensidão contraria a lógica do mercado editorial brasileiro que produz livros e os distribui a todas as vastas e diferentes regiões brasileiras.

Outra consideração importante diz respeito às práticas pedagógicas. Estas parecem ainda estar “amarradas” a discussão (antiga porém não ultrapassada) sobre o ensino de conteúdos da “parte” física e da “parte” humana da ciência geográfica. Ou ainda, práticas (influenciadas por um estudo superficial nos autores marxistas) que negam a descrição do ambiente natural para se dedicarem exclusivamente aos eixos econômicos e sociais. Práticas escolares que se pautam unicamente no livro didático e ensinam o lugar como um conteúdo conceitual presente no livro didático, porém, desvinculado do contexto da própria realidade dos alunos.

Neste cenário, o cotidiano e o lugar ainda aguardam reflexões interessadas na ampliação de seus potenciais analíticos e pedagógicos. Ao analisar o lugar, percebe-se uma forte relação com a experiência humana. Diante disso, podemos entender que, lugar e cotidiano formam, juntos, uma equação cujos resultados são, no mínimo, curiosos. Cada situação, no dia-a-dia do aluno acontece em um espaço diferenciado, num lugar. Possibilitar o estudo e a compreensão do local de suas ações significa instrumentalizar o aluno para se posicionar perante as dificuldades de sua própria vida. Significa ainda, a necessidade de interligar tempo e espaço, comparar o que acontece no seu lugar com outros lugares, identificar as especificidades de cada lugar e as identidades de seus moradores. Sobre este aspecto, Bittencourt (2004) salienta que:

A história do lugar como objeto de estudo ganha, necessariamente, contornos temporais e espaciais. Não se trata, portanto, ao se proporem conteúdos escolares da história local, de entendê-los apenas na história do presente ou de determinado passado, mas de procurar identificar a dinâmica do lugar, as transformações do espaço, e articular esse processo às relações externas, a outros ‘lugares’.(BITTENCOURT, 2004: 172)

Trabalhos como os de Santos (2007), Bittencourt (1997 e 2004), Callai (1988, 2006), Cavalcanti (1998), Fonseca (2006, 2007), Claudino e Oliveira (2005) e Lastória (2005, 2006) abordam a importância das categorias cotidiano e lugar. Por estes autores, é possível compreender que tais categorias devem ser entendidas tanto como recurso didático (por possibilitar a articulação entre a teoria e a prática, entre os conteúdos escolares e a realidade concreta, enfim, entre o local e o global) quanto como conteúdo de ensino (considerado uma referência para analisar a dinâmica que move a localidade, permitindo o reconhecimento dessa dinâmica mundial refletida no local a fim de que as relações estabelecidas entre o lugar e o mundo possam vir a ser compreendidas).

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Considerações finais

Cada uma das categorias apresentadas carrega consigo uma temporalidade, uma trajetória na história das duas ciências. Permitiu-se, a partir da reconstrução destas temporalidades, perceber o enriquecimento que cada uma adquiriu com o tempo, além da compreensão de que são filhas de determinados desejos científicos.

Buscar o cotidiano dos mais diversos personagens, agentes, atores, sujeitos em tempos pretéritos foi buscar apreender um passado que levasse em consideração a vida destas pessoas naquilo que se considerou menos importante por muito tempo – suas ações costumeiras, do dia-a-dia. Tal perspectiva abriu os olhos da ciência para um novo olhar as ações cotidianas - as ações de anônimos, ou seja, uma abertura significativa do leque de possibilidades do cientista do tempo. Aos professores, permitiu-se práticas pedagógicas que lançassem mão de trabalhos que visassem tais desconhecidos de nossa história, tal qual negros, mulheres e agentes que nunca dantes foram “merecedores” de ação na História.

O lugar foi uma categoria logo em seguida questionada. Por muito tempo acreditou-se que esforços cuja finalidade fossem a procura por respostas de indagações sobre o “local”, eram práticas menores, pois perdiam-se na vastidão de problemáticas macro-sociais, mundiais. Outra reviravolta epistemológica nos interessou, só que esta ocorreu no campo da Geografia. A partir de teóricos como Milton Santos, vimos o quão rico pode ser a leitura sobre a localidade, pois esta, segundo o autor, constrói o mundo ao seu modo. Desta feita, atualmente, o professor que se permite observar a realidade desta forma, consegue em cada localidade ver as relações mundiais pulsando de perto – no glocal.

Pretende-se aqui, uma leitura do mundo que leve em consideração estas duas abordagens. A vida cotidiana de anônimos transeuntes em um local que lê o mundo a sua maneira, deve ser a finalidade das práticas pedagógicas contemporâneas.

A preocupação com estas duas categorias continua sendo notoriamente percebida tanto nas universidades como em vários fóruns de discussões acadêmicas, científicas e profissionais. No entanto, na realidade escolar, tais preocupações ainda precisam ser analisadas e tomadas como centrais. Apesar dos discursos docentes já estarem sendo modificados, as práticas pedagógicas ainda parecem aguardar a efetiva mudança idealizada nos fóruns coletivos de discussões e nos programas de formação inicial e continuada de professores.

LASTÓRIA, A. C.; MELLO, R. C.. “Day-to-day” and “Place”: Theoretical categories of School History and Geography. UNIVERSITAS, Fernandópolis, v.4, n.1, 2008, p.

ABSTRACT: Fruit of epistemological changes that mark the path of science, two classes in the History and Geography calling attention today. This writing exists with the goal of promoting a discussion about the consequences of the use of categories "Day-to-day" and "place" in the classroom. Thus, a broad audience of readers (the teachers, researchers, students, graduate and post-graduate, technicians and managers of Education) may question this option, state or leave aside these categories of analysis on teaching practices.

KEYWORDS: Day-to-day, place and teaching practices.

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